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DAN BROWN ANJOS E DEMÓNIOS Tradução de MÁRIO DIAS CORREIA 8.' Edição m BERTRAND EDITORA Chiado 2005

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literatura

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DAN BROWN

ANJOS E DEMÓNIOS

Tradução de MÁRIO DIAS CORREIA

8.' Edição

m BERTRAND EDITORA

Chiado 2005

Título Original: ANGELS AND DEMONS © 2000 Dan Brown

Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil, reservados por: Bertrand Editora Rua Anchieta, 29-1.°, 1249-060 Lisboa Telef.: 210 305 500 Fax: 210 305 563 Correio electrónico: [email protected] Revisão: Nataniel Oliveira

Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. Este livro foi impresso em papel Editorial da TORRASPAPEL Depósito legal n.° 231 000/05 Acabou de imprimir-se em Agosto de 2005

ISBN: 972-25-1409-1

Para Blythe...

AGRADECIMENTOS

Uma dívida de gratidão para com Emily Bestler, Jason Kaufman, Ben Kaplan e a toda a gente na Pocket Books, por terem acreditado neste projecto.

Para Jake Elwell, meu amigo e agente, pelo seu entusiasmo e infatigável esforço.

Para com o lendário George Wieser, por me ter convencido a escrever romances.

Para com o meu querido amigo Irv Sittier, que me conseguiu uma audiência com o Papa e me mostrou partes da Cidade do Vaticano que poucos têm oportunidade de conhecer, tornando inesquecível a minha estada em Roma.

Para um dos mais engenhosos e dotados artistas vivos, John Lang-don, que respondeu brilhantemente ao meu desafio impossível e criou os ambigramas para este romance.

Para Stan Planton, bibliotecário-chefe da Universidade de Ohio - Chil-Hcothe, por ter sido a minha fonte de informação número um sobre inúmeros tópicos.

Para Sylvia Cavazzini, pela graciosa visita-guiada ao secreto Passetto. E para os melhores pais que qualquer filho poderia desejar. Dick e

Connie Brown... por tudo.

Os meus agradecimentos vão também para o CERN, Henry Beckett, Brett Trotter, a Academia Pontifícia de Ciências, o Brookhaven Institute, a FermíLab Library, Olga Wieser, Don Ulsh do National Security Instimte, Caroüne H. Thompson da Universidade do País de Gales, Kathryn Gerhard e Omar AI Kindi, John Pike e a Federation of American Scientists, Heimlich Viserholder, Corinna e Davis Ham-

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mond, Aizaz Ali, o Projecto Galileu da Universidade de Rice, Julie Lynn e Charlie Ryan da Mockinbird Pictures, Gary Goldstein, Dave (Vilas) Arnold e Andra Crawford, a Global Fraternal Network, a Phillips Exeter Academy Library, Jim Barrington, John Maier, o olho extremamente atento de Margie Wachtel, os alt.masonic. members, Alan Woo-ley, a Exposição de Códices do Vaticano da Biblioteca do Congresso, Lisa Callamaro e a Callamaro Agency, Jon A. Stowell, Musei Vaticani, Aldo Baggia, Noah Alireza, Harriet Walker, Charles Terry, a Micron Electrics, Mindy Renselaer, Nancy e Dick Curtin, Thomas D. Nadeau, a NuvoMedia and Rocket E-books, Frank e Sylvia Kennedy, Simon Edwards, a Comissão de Turismo de Roma, o maestro Gregory Brown, Val Brown, Werner Brandes, Paul Krupin da Direct Contact, Paul Stark, Tom King da Computalk Network, Sandy e Jerry Nolan, a guru da web Linda George, a Academia Nacional de Arte de Roma, o físico e confrade escriba Steve Howe, Robert Weston, a Water Street Bookstore em Exeter, New Hampshire, e o Observatorio do Vaticano.

FACTO:

O maior organismo de investigação científica do mundo — o Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (CERN) — sedeado na Suíça, conseguiu recentemente produzir as primeiras partículas de antimatéria. A antimatéria é idêntica à matéria física, só que constituída por partículas cujas cargas eléctricas são opostas às que encontramos na matéria normal.

A antimatéria é a mais poderosa fonte de energia conhecida do homem. Liberta energia com uma eficiência de cem por cento (a da fissão nuclear é de apenas 1,5 por cento). Não provoca poluição nem produz radiação e uma única gota bastaria para fornecer electricidade a Nova Iorque durante um dia inteiro.

Há, no entanto, um óbice... A antimatéria é altamente instável. Reage quando entra em contac

to com o que quer que seja... até com o ar. Um único grama de antimatéria contém energia equivalente à de uma bomba nuclear de vinte quilotoneladas — a potência da que foi lançada sobre Hiroxima.

Até há muito pouco tempo, só tinha sido possível criar antimatéria em pequeníssimas quantidades (uns poucos átomos de cada vez). Mas o CERN acaba de inaugurar uma nova era com o seu Desacelerador de Antiprotões — uma unidade de produção de antimatéria que promete criá-la em maior quantidade.

A grande questão que se põe é: virá esta substância altamente volátil salvar o mundo, ou será usada para criar a arma mais mortífera de sempre?

NOTA DO AUTOR

As referencias a todas as obras de arte, túmulos, túneis e elementos arquitectónicos de Roma são totalmente factuais (bem como as respectivas localizações). Ainda hoje podem ser vistos.

A Irmandade dos llluminati é igualmente factual.

Santa Maria del Popólo

O

u

>

A CIDADE DO VATICANO

1. Basílica de São Pedro 2. Praça de São Pedro 3. Capela Sistina 4. Pátio dos Bórgia 5. Gabinete do Papa 6. Museus do Vaticano 7. Gabinete da Guarda Suíça

8. Heliporto 9. Jardins 10. Passem 11. Pátio do Belvedere 12. Estação Central de Correios 13. Salão de Audiências do Papa 14. Palácio do Governo

PROLOGO

O físico Leonardo Vetra sentiu o cheiro de carne queimada, e soube que era a sua. Ergueu o olhar aterrorizado para a escura figura que se debruçava para ele.

— O que quer? — IM chiave — respondeu a voz rouca. — h. password. — Mas... eu não... O intruso voltou a carregar, cravando o objecto incandescente

ainda com mais força no peito de Vetra. Ouviu-se um silvo de carne a grelhar.

Vetra uivou de dor. — Não há nenhuma flj-j-M on/.'— gemeu, sentindo-se deslizar para

a inconsciência. Os olhos do assassino brilharam. — JVí avevopaura. Já o temia. Vetra lutou por se agarrar à vida, mas a escuridão fechava-se à sua

volta. Restava-lhe como única consolação saber que o homem que ia matá-lo nunca conseguiria o que fora aH procurar. Um instante depois, no entanto, a mão do atacante empunhou uma lâmina, que aproximou da cara da vítima. A lâmina moveu-se. Cuidadosamente. Cirurgicamente.

— Pelo amor de Deus! — gritou Vetra. Mas era demasiado tarde.

CAPITULO UM

Lá bem alto nos degraus da grande pirâmide de GuÍ2a, uma jovem ria e chamava-o:

— Robert, despacha-te! Eu bem sabia que devia ter casado com um homem mais novo!

E o sorriso dela era mágico. Ele esforçava-se por subir, mas sentia as pernas como se fossem

de chumbo. — Espera — pediu. — Por favor... Enquanto subia, a visão tornou-se-lhe confusa. Havia um latejar

surdo a ressoar-lhe nos ouvidos. Tenho de alcançá-la! Mas quando voltou a erguer os olhos, a mulher tinha desaparecido. No lugar dela estava um homem de dentes podres. O homem olhou para baixo, encurvando os lábios num esgar de tristeza. Então gritou, um longo grito de angústia que ecoou pelo deserto...

Robert Langdon acordou sobressaltado do seu pesadelo. O telefone tocava na mesa-de-cabeceira. Meio zonzo, pegou no auscultador.

— Estou? — Doutor Robert Langdon? — perguntou uma voz de homem. Langdon sentou-se direito na cama vazia e tentou aclarar as ideias. — Sim... sim, sou eu. — Semicerrou os olhos para consultar o re

lógio digital. Eram 5.18. — Preciso de vê-lo imediatamente. — Quem fala? — Chamo-me Maximilian Kohler. Sou físico de partículas discretas. — É o ^/^e.?—Langdon mal conseguia concentrar-se. — Tem a cer

teza de estar a falar com o Langdon certo? — O senhor é professor de Iconologia Religiosa na Universidade

de Harvard. Escreveu três livros sobre simbologia e...

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— Sabe que horas são? — Peço desculpa. Tenho uma coisa que preciso que veja. Não pos

so discutir o assunto pelo telefone. Langdon deixou escapar um gemido. Aquilo já lhe acontecera nou

tras ocasiões. Um dos perigos de escrever livros sobre simbologia religiosa era os telefonemas de zelotas que queriam que lhes confirmasse o último sinal recebido de Deus. No mês anterior, uma stripper de Oklahoma prometera-lhe o melhor sexo da sua vida se ele voasse até lá e verificasse a autenticidade de uma marca em forma de cruz que lhe aparecera misteriosamente nos lençóis da cama. O sudário de Tuba, chamara-lhe ele.

— Como conseguiu o meu número de telefone? — Langdon estava a tentar ser delicado, apesar da hora.

— Na Worldwide Web. No site do seu livro. Langdon franziu a testa. Tinha a certeza de que não incluíra no site

do livro o número de telefone de casa. O homem estava obviamente a mentir.

— Preciso de vê-lo — insistiu a pessoa que dizia chamar-se Köhler. — Pago-lhe bem.

Agora Langdon começava a ficar zangado. — Lamento, mas... — Se partir imediatamente, poderá estar aqui... — Não vou a parte nenhuma! São cinco da madrugada! — Desli

gou e deixou-se cair de costas na cama. Fechou os olhos e tentou voltar a adormecer. Nem pensar. Tinha o sonho gravado no espírito. Relutantemente, vestiu o roupão e desceu ao piso inferior.

Robert Langdon deambulava pela casa deserta, a beberricar o seu remédio ritual para as insónias: uma caneca de fumegante Quick da Nestle. O luar de Abrü entrava pelas grandes janelas de sacada da velha mansão vitoriana, dançando na alcatifa ao ritmo do ligeiro ondular das cortinas. Os colegas costumavam dizer, na brincadeira, que aquela casa parecia mais um museu de antropologia do que um lar. As estantes estavam cheias de artefactos religiosos vindos de todo o mundo: uma ekuaha do Gana, uma cruz de ouro de Espanha, um ídolo cicládico do Egeu e até um raro hoccus tecido do Bornéu, o símbolo de juventude eterna de um jovem guerreiro.

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Quando se sentou na arca maharishi de bronze, a saborear o calor do chocolate, os vidros da janela devolveram-lhe o seu próprio reflexo. A imagem era distorcida e pálida... como um fantasma. Um fantasma a ficar velho, pensou, cruelmente recordado de que no seu espírito jovem habitava um invólucro mortal.

Ainda que não exageradamente bonito no sentido clássico, Lang-don tinha, aos quarenta e cinco anos, aquilo a que as colegas da universidade gostavam de chamar um charme «erudito» — finas pinceladas de cinzento na densa cabeleira castanha, inquisitivos olhos azuis, uma cativante voz de barítono e o sorriso forte e descuidado de um atieta universitário. Membro da equipa de saltos para a água na escola secundária e na faculdade, continuava a ter um corpo de nadador, um metro e oitenta de físico bem afinado que mantinha vigilantemente em forma com cinquenta piscinas diárias.

Os amigos sempre o tinham considerado uma espécie de enigma — um homem apanhado entre dois séculos. Aos fins-de-semana, podia ser visto a deambular, áe. jeans, pelo quadrângulo, a discutir gráficos de computador ou história religiosa com os seus alunos; noutras ocasiões aparecia, com o seu casacopaiskj de tweed, nas páginas das melhores revistas de arte, fotografado na abertura de uma qualquer exposição museológica para a qual fora convidado a fazer uma palestra.

Sem deixar de ser um professor exigente e um estrito disciplinador, era o primeiro a exaltar aquilo a que chamava «a arte perdida da boa e velha diversão». Adorava divertir-se com um fanatismo contagioso que lhe conquistara uma espécie de aceitação fraterna entre os estudantes. A alcunha que tinha no campus — o Golfinho — era uma referência tanto à sua afabilidade como à sua lendária capacidade de mergulhar numa piscina e fintar toda a equipa adversária numa partida de pólo aquático.

Estava ali sentado, sozinho, com o olhar absorto perdido na escuridão, quando o suêncio da casa foi novamente quebrado, desta vez pela campainha ào fax. Demasiado exausto para se irritar, Langdon esboçou um sorriso resignado.

O povo de Deus, pensou. Dois milanos à espera de um Messias, e continuam

persistentes como o raio que os parta.

Foi, a arrastar os pés, deixar a caneca na cozinha e dirigiu-se ao escritório, uma divisão de paredes apaineladas a carvalho. O fax acabado

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de chegar esperava no tabuleiro de saída. Com um suspiro, Langdon pegou no papel e deu-lhe uma vista de olhos.

No mesmo instante, foi invadido por uma onda de náusea. A imagem era a de um corpo humano. Estava completamente nu,

e a cabeça fora torcida cento e oitenta graus, ficando voltada para trás. O peito da vítima apresentava uma queimadura horrível. O homem fora marcado com um ferro em brasa... e a marca reduzia-se a uma única palavra. Uma palavra que Langdon conhecia bem. Muito bem. Ficou a olhar, incrédulo, para as ornamentadas letras.

— llluminati — balbuciou, com o coração a bater loucamente. Não é possível. .

Como que em câmara lenta, com medo do que ia ver, Langdon rodou o papel cento e oitenta graus. Olhou para a palavra invertida.

Ficou instantaneamente sem fôlego, como se tivesse sido atropelado por um camião. Quase incapaz de acreditar no que via, voltou a rodar o fax, lendo a palavra na posição normal, e depois mais uma vez invertida.

— llluminati — murmurou. Aturdido, deixou-se cair numa cadeira. Ficou ali sentado, mergu

lhado na mais absoluta perplexidade. Pouco a pouco, os seus olhos foram atraídos pela luz vermelha que piscava no fax. Quem lhe enviara aquela mensagem continuava em linha... à espera para falar. Langdon ficou a olhar para a luz que piscava durante muito tempo.

Então, a tremer, pegou no auscultador.

CAPITULO DOIS

— E agora, consegui captar a sua atenção? — perguntou uma voz de homem.

— Pode apostar que sim. Quer expHcar-se? — Tentei dizer-lho há pouco. — A voz soou rígida, mecânica. —

Sou físico. Dirijo uma instituição de pesquisa. Tivemos um assassínio. Viu o corpo.

— Como foi que me encontrou? — Langdon mal conseguia con-centrar-se. A imagem do fax teimava em encher-lhe o pensamento.

—Já lhe disse. Na Worldwide Web. No sifá do seu livro, A Arte dos llluminati.

Langdon fez um esforço para pensar. O seu Hvro era praticamente desconhecido nos círculos habituais da literatura, mas conquistara uma grande audiência on-line. Mesmo assim, a afirmação daquele homem continuava a não fazer sentido.

— Essa página não contém qualquer informação para contacto — desafiou. — De certeza absoluta.

— Tenho aqui no laboratório pessoas muito hábeis em extrair da web informações sobre os utilizadores.

Langdon não estava convencido. — Parece que o seu laboratório sabe muito a respeito da web. — É natural — ripostou o homem. — Fomos nós que a inventámos. Algo na voz dele dizia que não estava a brincar. — Preciso de vê-lo — insistiu o seu interlocutor. — Não é assunto

que possamos discutir pelo telefone. O meu laboratório fica apenas a uma hora de voo de Boston.

A meia-luz do gabinete, Langdon examinou o fax que tinha na mão. A imagem era avassaladora, representando possivelmente a des-

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coberta epigráfica do século. Uma década de investigação confirmada num único símbolo.

— É urgente — pressionou a voz. Os olhos de Langdon estavam presos à marca gravada a fogo. lllu-

minati, leu uma e outra vez. O seu trabalho sempre se baseara nos equivalentes simbólicos de fósseis — documentos antigos e rumores históricos — mas aquela imagem era o presente. O presente. Sentiu-se como um paleontólogo que se visse frente-a-frente com um dinossauro vivo.

— Tomei a liberdade de. mandar um avião buscá-lo — continuou a voz. — Estará em Boston dentro de vinte minutos.

Langdon sentiu a boca pôr-se-lhe seca. Uma hora de voo... — Peço-lhe que perdoe a minha presunção — dizia a voz. — Pre

ciso de si aqui. Langdon voltou a olhar para o papel — um mito antigo confirma

do preto no branco. As implicações eram assustadoras. Olhou distraidamente pelas altas portadas da janela. Os primeiros alvores da madrugada insinuavam-se por entre as faias do jardim, mas, sem que soubesse dizer porquê, a vista parecia-lhe diferente, naquela manhã. Sentindo-se invadido por uma complexa mistura de medo e exaltação, soube que não tinha alternativa.

— Está bem, ganhou — disse. — Diga-me como encontrar o avião.

CAPITULO TRES

A milhares de quilómetros dali, dois homens encontravam-se. A sala era sombria. Medieval. Pedra.

— Benvenuto — disse o homem que mandava. Estava sentado na sombra, invisível. — Foi bem sucedido?

— Si — respondeu a figura escura. — Perfettamente. — As palavras eram duras como as paredes de rocha.

— E não haverá dúvidas quanto a quem foi responsável? — Nenhuma. — Soberbo. Tem o que pedi? Os olhos do assassino brilharam, negros como petróleo. Mostrou

um pesado aparelho electrónico e pousou-o em cima da mesa. O homem que se escondia nas sombras pareceu satisfeito. — Fez bem — disse. — Servir a Irmandade é uma honra — respondeu o assassino. — A segunda fase começará em breve. Descanse um pouco. Esta

noite, mudamos o mundo.

CAPÍTULO QUATRO

O Saab 900S de Robert Langdon saiu do Callahan Tunnel e emergiu no lado leste do porto de Boston, perto do acesso ao aeroporto de Logan. Confirmando as indicações que lhe tinham sido dadas, Lang-don encontrou a Aviation Road e voltou à esquerda, passando pelo antigo edifício da Eastern Airlines. Trezentos metros mais à frente, um hangar destacava-se no meio da escuridão. Tinha um grande «4» pintado no lado. Langdon estacionou no parque e saiu do carro.

Um homem de cara redonda e envergando um macacão de voo azul surgiu de trás do edifício.

— Robert Langdon? — perguntou. A voz era amistosa. Com um sotaque que Langdon não conseguiu situar.

— Eu mesmo — disse, enquanto trancava a porta do Saab. — Mesmo a tempo — disse o homem. — Acabo de aterrar. Siga-

-me, por favor. Contornaram o hangar, Langdon sentia-se tenso. Não estava ha

bituado a misteriosos telefonemas a meio da noite nem a encontros secretos com desconhecidos. Não sabendo com o que contar, optara pelas roupas que habitualmente usava para dar aulas — calças de sarja de algodão, camisola de gola alta, casaco de tweed. Enquanto caminhava, pensava no fax que tinha no bolso, ainda incapaz de acreditar na imagem que ele mostrava.

O piloto pareceu detectar-lhe a ansiedade. — Andar de avião não é problema, pois não? — De modo nenhum — respondeu Langdon. Cadáveres marcados

com ferros em brasa são um problema. Andar de avião não me atrapalha.

Caminharam até ao fim do hangar e dobraram a esquina. Langdon deteve-se como se tivesse chocado contra uma parede

e ficou a olhar para o aparelho estacionado na pista.

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— Vamos voar naquilo} O piloto fez um sorriso de orelha a orelha. — Gosta? Langdon continuou a olhar por um longo momento. — Se gosto? Nem sequer sei o que é! '

O aparelho que tinha ã sua frente era enorme. Fazia vagamente lembrar um vaivém espacial, com a diferença de que toda a parte de cima fora como que rapada, ficando perfeitamente lisa. AH parado na pista, parecia uma cunha gigantesca. A primeira impressão de Langdon foi que devia estar a sonhar. Aqmlo parecia tão capaz de voar como um Buick. Não tinha praticamente asas — apenas dois pequenos estabilizadores na traseira da fuselagem. Na secção da ré, sobressaía um par de lemes de direcção dorsais. O resto do avião era fuselagem — cerca de sessenta metros do nariz à cauda. Sem janelas. Só fuselagem.

— Duzentas e cinquenta toneladas completamente abastecidas — informou o piloto, como um pai a gabar o filho recém-nascido. — Consome hidrogénio Hquido. A fuselagem é uma matriz de titânio com fibras de carboneto de silício. A razão propulsão/peso é de vinte para um. Na maior parte dos jactos, é de sete para um. O director deve estar cheio de pressa em vê-lo. Não é muito comum enviar aqui o matulão.

— Esta coisa voa? — perguntou Langdon. O püoto sorriu. — Oh, sim. — Guiou Langdon até ao avião. — Tem um ar um

bocado estranho, eu sei, mas o melhor é ir-se habituando. Dentro de cinco anos não verá outra coisa. TCAv. Transportes Civis de Alta Velocidade. O nosso laboratório é um dos primeiros a ter um.

Deve ser um laboratório e tanto, pensou Langdon. — Este é um protótipo do Boeing X-33 — continuou o puoto —,

mas há dúzias de outros... o National Aero Space Plane, os Russos têm o Scramjet, os Ingleses o HOTOL. O fumro já aí está, só vai é demorar um pouco a chegar ao sector civu. Pode dizer adeus aos jactos convencionais.

Langdon olhou, desconfiado, para o aparelho. — Acho que preferia um jacto convencional.

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O püoto apontou para a escada. — Por aqui, por favor. Cuidado com o degrau.

Minutos depois, Langdon estava sentado sozinho na cabina vazia. O piloto indicara-lhe um lugar na primeira fila de bancos, ajudara-o a apertar o cinto e seguira para a dianteira do aparelho.

A cabina em si parecia-se surpreendentemente com a de um grande avião comercial. A única diferença notável era a inexistência de janelas, que estava a deixar Langdon pouco à-vontade. Toda a sua vida sofrera de uma ligeira claustrofobia — vestígios de um incidente de infância que nunca conseguira ultrapassar totalmente.

A aversão de Langdon aos espaços fechados não era de modo algum incapacitante, mas não deixava de ser frustrante. Manifestava-se em pequenas coisas, de maneiras subtis. Evitava, por exemplo, desportos como o racquethall e o squash, e pagara gostosamente uma pequena fortuna pela ampla e arejada casa vitoriana, de tectos altos, onde vivia, apesar de a Universidade facultar alojamento a um preço muito acessível. Muitas vezes suspeitara de que a sua atracção pelo mundo da arte, já desde rapaz, derivava em grande parte do gosto pelos grandes espaços abertos dos museus.

Os motores despertaram com um rugido surdo que se transmitiu ao longo da fuselagem. Langdon engoliu em seco e esperou. Sentiu o avião começar a mover-se. Por cima dele, o sistema de som difundia uma suave música country.

Um telefone instalado na parede junto ao banco tocou duas vezes. — Sim? — Confortável? — Nem por isso. — Relaxe. Estamos lá dentro de uma hora. — E onde exactamente é lá^ — perguntou Langdon, aperceben-

do-se de que não fazia a mínima ideia para onde ia. — Genebra — respondeu o piloto, acelerando os motores. — Genebra — repetiu Langdon, sentindo-se um pouco melhor.

— No norte do estado de Nova Iorque. Por acaso, até tenho família, perto do lago Seneca. Não sabia que havia um laboratório de física em Genebra.

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O püoto riu-se. — Não estou a falar de Genebra, Nova Iorque, senhor Langdon.

Vamos para Genebra, Suíça. A palavra demorou um longo momento a registar. — Suíça? — Langdon sentiu o coração bater mais depressa. —

Pensei que tinha dito que o laboratório fica a uma hora de voo. — E fica. Este menino faz Mach 15.

CAPITULO CINCO

Numa movimentada rua europeia, o assassino caminhava pelo meio da multidão. Era um homem forte, escuro e entroncado. Dotado de uma agilidade que não raras vezes surgia como uma surpresa letal num corpo tão pesado. Ainda tinha os músculos tensos da emoção do encontro.

Correu bem, disse para si mesmo. Apesar de o homem que o contratara nunca ter mostrado o rosto, sentia-se honrado por ter estado na sua presença. Teriam passado verdadeiramente apenas quinze dias desde o primeiro contacto? Ainda recordava cada palavra do telefonema.

— Chamo-me Janus — dissera o homem que ligara. — De certo modo, pertencemos ao mesmo clã. Temos um inimigo comum. Di-zem-me que aluga as suas capacidades.

— Depende de quem representa — respondera o assassino. O homem dissera-lhe. — É esta a sua ideia de uma brincadeira? — Vejo que já ouviu falar de nós. — Claro. A Irmandade é lendária. — E no entanto, duvida de que eu seja genuíno. — Toda a gente sabe que os irmãos desapareceram há muito. — Uma manobra astuciosa. O inimigo mais perigoso é aquele que

ninguém teme. O assassino mantivera o seu cepticismo. — A Irmandade subsiste? — Mais secreta do que nunca. As nossas raízes infiltram tudo o que

vê... até a sagrada fortaleza do nosso inimigo mais jurado. — Impossível. Eles são invulneráveis. — O nosso braço é comprido. — Nenhum braço consegue chegar tão longe.

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— Muito em breve, acreditará. Já foi feita uma demonstração irrefutável do poder da Irmandade. Um único acto de traição e prova.

— O que foi que fizeram? O homem dissera-lhe. O assassino esbugalhara os olhos. — Impossível! No dia seguinte, a mesma notícia aparecera na primeira página de

todos os jornais do mundo. O assassino tornara-se um crente. Agora, passados quinze dias, essa fé solidificara para lá de qualquer

sombra de dúvida. A. Irmandade subsiste, pensou o assassino. Usta noite, surgirá à lut^para revelar o seu poder.

Enquanto caminhava pelas ruas, os seus olhos negros brilhavam de antecipação. Uma das Irmandades mais secretas e temidas que o mundo alguma vez conhecera solicitara os seus serviços. Escolheram bem, pensou. A sua reputação de secretismo só era superada pela fama da sua eficácia.

Até ao momento, servira-os nobremente. Executara a sua vítima e entregara o objecto a Janus, como lhe fora pedido. Agora, cabia a Janus usar o seu poder para conseguir a colocação do objecto.

A colocação... O algoz perguntou a si mesmo como poderia Janus levar a cabo

uma tão difícil tarefa. O homem tinha obviamente contactos no interior. O domínio da Irmandade parecia ilimitado.

Janus, pensou o assassino. Um nome de código, claro. Seria uma referência ao deus romano com duas caras... ou à lua de Saturno? Não que fizesse qualquer diferença. Janus detinha um poder enorme. Provara-o para lá de qualquer dúvida.

Imaginou que os seus antepassados lhe sorriam. Estava a travar a guerra deles, combatia o mesmo inimigo que eles tanto tinham combatido, no século XI... quando as hordas dos cruzados começaram a saquear a sua terra, matando e violando o seu povo, declarando-o impuro, profanando os seus templos e os seus deuses.

Para se defenderem, tinham criado um pequeno mas mortífero exército. Um exército que se tornara famoso em toda a terra como protector — hábeis executores que percorriam o país e matavam todos os inimigos que encontrassem. Eram famosos não só pela maneira brutal como matavam, mas também por festejarem essas mortes mer-

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gulhando num transe induzido por drogas. E a sua preferida era um poderoso intoxicante a que chamavam hashish.

A medida que a sua notoriedade se espalhava, tinham-se tornado conhecidos por uma única palavra — Hashashin — literalmente, «os que consomem haxixe». O nome Hashashin passara a ser sinónimo de morte violenta em quase todas as línguas do mundo. E continuava ainda a ser usado nos tempos modernos. Só que a palavra, como a profissão de matar, tinha evoluído.

Pronunciava-se agora assassino.

CAPITULO SEIS

Tinham decorrido sessenta e quatro minutos quando um incrédulo e ligeiramente enjoado Robert Langdon desceu a escada do avião para a pista encharcada em sol. Uma brisa fresca agitou-lhe a lapela do casaco de tweed. A sensação de espaço aberto foi maravilhosa. Observou de olhos semicerrados o luxuriante vale rodeado por montanhas toucadas de neve onde se encontrava.

Estou a sonhar, pensou. Vou acordar de um momento para o outro. — Bem-vindo à Siuça — gritou o piloto para se fazer ouvir acima

do rugido dos motores HEDM que ia esmorecendo atrás deles. Langdon consultou o relógio. Eram 7.07. — Atravessámos seis zonas horárias — informou o puoto. — Aqtii

passa um pouco da uma da tarde. Langdon acertou o relógio. — Como se sente? — Como se tivesse comido esferovite — respondeu Langdon, es

fregando o estômago. O piloto assentiu com a cabeça. — É da altimde. Voámos a dezoito mil metros. Lá em cima, o nos

so corpo é trinta por cento mais leve. Felizmente, foi só um saltinho. Se fôssemos para Tóquio, tê-lo-ia levado mesmo até lá acima... cento e sessenta quilómetros. Isso sim, consegue dar-nos a volta à barriga.

Langdon fez um débu aceno de cabeça e deu-se por feHz. Vistas bem as coisas, o voo fora notoriamente normal. Exceptuando a esmagadora aceleração durante a descolagem, a viagem nada tivera de extraordinário — algumas ligeiras turbulências, umas poucas diferenças de pressão enquanto subiam, mas nada que sugerisse que voavam pelo espaço a uns estonteantes 17 600 quilómetros por hora.

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Meia dúzia de técnicos afadigava-se à volta do X-33. O piloto escoltou Langdon até um Peugeot ipt&to que aguardava numa área de estacionamento ao lado da torre de controlo. Momentos depois, percorriam velozmente a estrada que se estendia a todo o comprimento do vale. Ao longe avistava-se, vagamente, um grupo de edifícios. Do lado de fora das janelas do carro, os campos desfilavam numa mancha que a velocidade tornava indistinta.

Langdon viu, incrédulo, o piloto levar o velocímetro até aos 170 quilómetros por hora. Que raio de fixação é que este tipo tem com a veloädade?,

perguntou a si mesmo. — Cinco quilómetros até ao laboratório — informou o piloto. —

Ponho-o lá em dois minutos. Langdon procurou, em vão, um cinto de segurança. Porque não em

três e chegarmos vivos?

Entretanto, o carro continuava a voar estrada fora. — Gosta de Reba? — perguntou o pñoto, enfiando uma cassete

no leitor. Uma mulher começou a cantar: «É só o medo de estar sozinha...» Por aqui não há medo, pensou Langdon, distraidamente. As colegas da

universidade costumavam picá-lo afirmando que a mania de coleccionar artefactos de museu não passava de uma tentativa muito transparente de encher uma casa vazia, uma casa que, insistiam, muito beneficiaria com a presença de uma mulher. Langdon ria-se destas afirmações, re-cordando-lhes que já tinha três amores na vida — a simbologia, o pólo aquático e o celibato —, constituindo este último uma liberdade que lhe permitia viajar por todo o mundo, dormir até tarde sempre que quisesse e desfrutar noites tranquilas em casa com um brande e um bom Hvro.

— Somos como uma pequena cidade — disse o piloto, arrancando Langdon ao seu devaneio. — Não é só laboratórios. Temos supermercados, um hospital e até um cinema.

Langdon assentiu silenciosamente com a cabeça e observou o vasto conjunto de edifícios que surgia à frente deles.

— Na realidade — continuou o piloto —, temos a maior máquina do mundo.

— A sério? — Langdon perscrutou os campos em redor.

ANJOS E DEMÓNIOS 35

— Não a encontrará cá em cima. — O piloto sorriu. — Está escondida seis andares debaixo de terra.

Langdon não teve tempo para responder. Sem qualquer aviso, o piloto pisou o travão. O carro deteve-se, com uma pequena derrapagem, diante de uma guarita de betão reforçado.

Langdon leu a tabuleta suspensa sobre a estrada à frente deles: SECURITE. ARRETEZ. Sentiu-se subitamente invadido por uma onda de pânico, ao aperceber-se de onde estava.

— Meu Deus! Não trouxe o passaporte comigo! — Não são necessários passaportes — tranquilizou-o o piloto. —

Temos um acordo permanente com o governo suíço. Langdon viu, aturdido, o piloto entregar um cartão de identificação

ao guarda, que o passou por um aparelho de autenticação electrónica. Acendeu-se uma luz verde.

— Nome do passageiro? — Robert Langdon — informou o puoto. — Convidado de? — Do director. O guarda arqueou as sobrancelhas. Voltou-se e verificou a impres

são do computador, comparando-o com os dados que tinha no visor, e voltou à janela da guarita.

— Tenha uma boa estada, senhor Langdon. O carro arrancou novamente, acelerando mais duzentos metros à

volta de uma ampla rotunda que conduzia à entrada principal das instalações. A frente deles havia uma ultramoderna estrutura de vidro e aço. Langdon ficou surpreendido pela impressionante concepção transparente do edifício. Sempre gostara muito de arquitectura.

— A Catedral de Vidro — informou o piloto. — Uma igreja? — Raios, não! Uma igreja é a única coisa que não temos. Por estes

lados, a religião é a Física. Pode invocar o nome do Senhor em vão tanto quanto quiser. — Riu-se. — Só não se lembre de dizer mal de quaisquer quarks ou mesões.

Langdon ainda estava meio confuso quando o piloto parou o carro diante do edifício de vidro. Quarks e mesões? Nada de controlos de fronteira? Aviões que voam a Mach 15?Quem diabo SÃO estes tipos?

36 DAN BROWN

A placa de granito afixada na frontaria do edifício deu-lhe a res

posta.

(CERN)

Conseil Européen pour la

Recherche Nucléaire

— Pesquisa Nuclear? — perguntou Langdon, razoavelmente seguro de que a sua tradução estava correcta.

O piloto não respondeu. Estava inclinado para a frente, atarefado a ajustar o leitor de cassetes do carro.

— É aqui que fica — disse. — O director virá recebê-lo à entrada. Langdon reparou no homem sentado numa cadeira de rodas que

saía do edifício. Parecia ter sessenta e poucos anos. Magro e completamente calvo, usava uma bata branca de laboratório e sapatos convencionais firmemente assentes nos patins da cadeira. Mesmo àquela distância, os olhos pareciam sem vida: como duas pedras cinzentas.

— É ele? — perguntou Langdon. O piloto ergueu os olhos. — Macacos me mordam. — Voltou-se e dirigiu-lhe um sorriso omi

noso. — Falai no mau... Sem saber muito bem o que esperar, Langdon apeou-se. O homem na cadeira de rodas acelerou em direcção a ele e esten-

deu-lhe uma mão húmida. — Doutor Langdon? Falámos ao telefone. Sou Maximilian Kohler.

CAPITULO SETE

Maximilian Kohler, director-geral do CERN, era conhecido, às escondidas, como König — Rei. Um título mais de medo do que de reverência para com a figura que governava o seu domínio da cadeira de rodas que lhe servia de trono. Apesar de poucos o conhecerem pessoalmente, a horrível história de como ficara aleijado fazia parte da tradição do CERN, e poucos eram também os que lhe censuravam o azedume... ou a dedicação obsessiva à ciência pura.

Bastaram a Langdon poucos segundos para se aperceber de que o director gostava de manter as devidas distâncias. Teve praticamente de correr para acompanhar a cadeira de rodas eléctrica que deslizava veloz e silenciosamente em direcção à porta principal. Era uma cadeira diferente de qualquer outra que Langdon tivesse visto — equipada com um painel de instrumentos electrónicos que incluía uma central telefónica, um sistema de paging, um monitor de computador e até uma pequena câmara de vídeo destacável. O centro de comando móvel do Rei Köhler.

Langdon passou atrás dele pelas portas automáticas e entrou no amplo átrio do CERN.

A Catedral de Vidro, murmurou para si mesmo, erguendo os olhos para o céu.

Lá muito em cima, o tecto de vidro azulado refulgia ao sol do começo da tarde, projectando padrões geométricos no ar e dando ao local uma sensação de grandiosidade. Sombras angulares desciam como veios pelos azulejos brancos das paredes até ao chão de mármore. Cheirava a Hmpo, a estéril. Meia dúzia de cientistas dirigia-se apressadamente aos respectivos destinos, quaisquer que eles fossem, e os seus passos ecoavam naquela vasta caixa de ressonância.

38 DAN BROWN

— Por aqvá, por favor, doutor Langdon. — A voz parecia quase digitalizada. O sotaque era rígido e preciso, em consonância com a dureza das feições. Köhler tossiu e limpou a boca com um lenço branco, enquanto fixava em Langdon os olhos cinzentos e mortos. — Apresse-se, por favor. — E a cadeira de rodas como que voava pelo chão lajeado.

Langdon seguiu-o, passando pelo que lhe pareceu uma infinidade de corredores que partiam do átrio principal. Todos eles fervilhavam de actividade. Os cientistas que viam Köhler faziam um ar ligeiramente surpreendido, e olhavam para Langdon como que a perguntarem a si mesmos quem seria ele para merecer uma tal escolta.

— Envergonha-me admiti-lo — arriscou Langdon, numa tentativa de entabular conversa —, mas a verdade é que nunca tinha ouvido falar do CERN.

— É natural — respondeu Köhler, e as palavras secas tiveram um tom de dura eficiência. — A maior parte dos americanos não vê a Europa como o líder mundial em matéria de pesquisa científica. Encara--nos como pouco mais do que um exótico bairro comercial... uma ideia curiosa, se considerarmos a nacionalidade de homens como Einstein, Galileu ou Newton.

Langdon ficou sem saber muito bem o que dizer. Tirou o fax do bolso.

— O homem nesta fotografia, pode... Köhler interrompeu-o com um gesto. — Por favor. Aqui não. Vou levá-lo até ele. — Estendeu a mão.

— Talvez seja melhor eu ficar com isso. Langdon entregou-lhe o papel e continuou a segui-lo em silêncio. Köhler virou à esquerda e meteu por um corredor cujas paredes

estavam cobertas de diplomas e louvores. Uma placa particularmente grande dominava a entrada. Langdon abrandou o passo para 1er as palavras gravadas no bronze.

PRÉMIO ARS ELECTRÓNICA Por Inovação Cultural na Era Digital

Atribuído a Tim Berners Lee e ao CERN pela invenção da WORLDWIDE WEB

ANJOS E DEMÓNIOS 39

Macacos me mordam, pensou Langdon, ao 1er o texto. O fulano não estava a brincar. Sempre pensara que a web fora uma invenção americana. Também era verdade que os seus conhecimentos na matéria se limitavam ao site do livro de que era autor e à ocasional exploração on-line do Louvre ou do Prado no velho Maántosh com que trabalhava.

— A web — disse Köhler, voltando a tossir e limpando a boca — começou aqui como uma rede de computadores internos. Permitia aos cientistas dos vários departamentos partilharem uns com os outros as descobertas do dia. Claro que o mundo inteiro está convencido de que a tecnologia é americana.

Langdon continuou a segui-lo ao longo do corredor. — Porque não repõem a verdade? Köhler encolheu os ombros, aparentemente desinteressado. — Um erro sem importância a respeito de uma tecnologia irrele

vante. O CERN é muito maior do que a ligação global de computadores. Os nossos cientistas produzem milagres quase diariamente.

Langdon lançou-lhe um olhar interrogativo. — Milagres'^ — A palavra «milagre» não fazia certamente parte do

vocabulário corrente no Harvard's Fairchild Science Bunding. Os milagres eram da competência exclusiva da Faculdade de Teologia.

— Parece céptico — disse Köhler. — Pensei que fosse um simbo-logista religioso. Não acredita em milagres?

— Continuo indeciso no que respeita a milagres — respondeu Langdon. Sobretudo aos que acontecem em laboratórios áentíficos.

— Talvez müagre seja a palavra errada. Estava apenas a tentar falar a sua linguagem.

— A minha linguagem? — Langdon sentiu-se repentinamente incomodado. — Não quero desapontá-lo, caro senhor, mas estudo sim-bologia religiosa. Sou um académico, não um sacerdote.

Köhler reduziu o andamento da cadeira e voltou-se para Langdon, com uma expressão que se suavizara um pouco.

— Evidentemente. Tolice minha. Não é preciso ter cancro para analisar os sintomas.

Langdon nunca ouvira a questão posta exactamente naqueles termos.

Enquanto continuavam a percorrer o corredor, Köhler fez um gesto de assentimento com a cabeça.

40 DAN BROWN

— Desconfio, doutor Langdon, que nós os dois vamos entender--nos perfeitamente.

Fosse pelo que fosse, Langdon duvidava.

À medida que avançavam, Langdon começou a sentir um ronco profundo lá mais adiante. O ruído tornava-se mais forte a cada passo que davam, repercutindo-se nas paredes. Parecia vir do extremo do corredor à frente deles.

— Que barulho é este? — perguntou finalmente, já obrigado a gritar para se fazer ouvir. Era como se estivessem a aproximar-se de um vulcão em actividade.

— Poço de Queda Livre — respondeu Köhler, e a sua voz cava cortou o ar sem esforço. Não deu qualquer outra explicação.

Nem Langdon a pediu. Estava exausto, e Maximilian Kohler não parecia interessado em ganhar quaisquer prémios de hospitalidade. Recordou a si mesmo a razão da sua presença naquele lugar: os lUuminati. Assumia que algures naquele colossal edifício havia um cadáver... um cadáver marcado com um símbolo, que ele voara quatro mu e oitocentos quilómetros para ver.

Quando se aproximaram do fim do corredor, o barulho tornou-se quase ensurdecedor, vibrando através das solas dos sapatos de Langdon. Dobraram a esquina, e do lado direito surgiu uma espécie de varanda de observação. Havia quatro grandes portais de vidro grosso profundamente embutidos numa parede curva, como vigias num submarino. Langdon deteve-se e olhou através de um deles.

O professor Robert Langdon tinha visto algumas coisas estranhas ao longo da sua vida, mas aquela era a mais estranha de todas. Piscou várias vezes os olhos, perguntando a si mesmo se não estaria com alucinações. Estava a olhar para uma enorme câmara circular. No interior da câmara, flutuando como se não tivessem peso, havia pessoas. Três. Uma delas acenou-lhe enquanto dava uma cambalhota em pleno ar.

Meu Deus, pensou. Yístou no país de O^. O chão da câmara era uma grelha de arame, como um gigantesco

pedaço de rede de galinheiro. Através da rede, distinguia-se a mancha metálica e difusa de uma enorme ventoinha.

ANJOS E DEMÓNIOS 41

— Poço de queda livre — disse Köhler, parando para esperar por ele. — Pára-quedismo de interior. Para aliviar o stress. É um túnel de vento vertical.

Langdon continuava a olhar, espantado. Um dos utilizadores da câmara, uma mulher muito gorda, manobrou de modo a aproximar-se da janela. Apesar de fustigada pelas correntes de ar, sorriu e fez-üie o sinal de polegar levantado. Langdon esboçou um sorriso de resposta e retribuiu o gesto, perguntando a si mesmo se ela saberia que se tratava de um antigo símbolo fáKco de viriKdade masculina.

A senhora gorda, notou, era a única que usava o que parecia ser xim pára-quedas miniatura. O pedaço de tecido oscilava por cima dela, como um brinquedo.

— Para que serve o pequeno pára-quedas? — perguntou. — Não pode ter mais de um metro de diâmetro.

— Fricção — respondeu Köhler. — Diminui a aerodinâmica dela para que a ventoinha possa levantá-la. — Recomeçou a deslizar corredor fora. — O efeito de resistência de um metro quadrado de tecido é o bastante para reduzir em quase vinte por cento a velocidade de queda de um corpo.

Langdon assentiu, com um ar ausente. Mal ele sabia que, horas mais tarde, num país a centenas de quiló

metros dali, aquela informação iria salvar-lhe a vida.

CAPITULO OITO

Quando emergiram das traseiras do complexo principal do CERN

para a luz crua do sol suíço, Langdon sentiu-se como se tivesse sido transportado para casa. A cena que tinha à sua frente parecia um campus da Ivy League.

Um declive relvado descia até um vasto espaço plano onde pequenos grupos de aceres salpicavam quadrângulos delimitados por dormitórios de tijolo vermelho e caminhos de saibro. Indivíduos com um ar muito estudioso e montes de Hvros debaixo do braço entravam e saíam dos edifícios. Como que para reforçar o ambiente académico, dois hippies de longos cabelos lançavam um frisbee de um para o outro, enquanto os potentes acordes da Quarta Sinfonia de Mahler jorravam da janela de um dos dormitórios.

— Estes são os nossos dormitórios residenciais — explicou Köhler enquanto acelerava caminho abaixo em direcção aos edifícios. — Temos mais de três mil físicos a trabalhar aqui. O CERN emprega, sozinho, mais de tnetade dos físicos de partículas do mundo inteiro... os cérebros mais brilhantes do planeta... alemães, japoneses, italianos, holandeses, de todo o lado. Os nossos físicos representam mais de quinhentas universidades e sessenta nacionalidades.

Langdon estava espantado. — Como é que todos eles comunicam? — Em inglês, claro. A língua universal da ciência. Langdon sempre ouvira dizer que a Matemática era a Mngua univer

sal da ciência, mas estava demasiado exausto para discutir. Limitou-se a seguir obedientemente atrás de Köhler.

Quando iam a cerca de meia encosta, um jovem passou por eles a correr. «NO GUT, NO GLORY!», proclamava a t-shirt que vestia.

ANJOS E DEMÓNIOS 43

Langdon ficou a segui-lo com o olhar, confuso. — Tripas? — General Unified Theory — expHcou Kohler. — A teoria de

tudo. — Estou a ver — disse Langdon, que não estava a ver coisa ne

nhuma. — Sabe alguma coisa de Física de Partículas, doutor Langdon? Langdon encolheu os ombros. — Sei alguma coisa de Física em geral... queda de corpos, e esse

género de coisas. — Os seus anos como membro da equipa de saltos da prancha mais alta tinham-lhe incutido um profundo respeito pelo terrível poder da aceleração gravitacional. — A Física de Partículas é o estudo dos átomos, não é?

Köhler abanou a cabeça. — Os átomos parecem planetas comparados com aquilo que aqui

estudamos. O nosso interesse centra-se no núcleo do átomo... que representa apenas a décima milésima parte do todo. — Voltou a tossir, uma tosse seca, doentia. — Os homens e as mulheres do CERN procuram respostas para as mesmas perguntas que a Humanidade tem vindo a fazer desde o início dos tempos. De onde viemos? De que somos feitos?

— E essas respostas estão num laboratório de Física? — Parece surpreendido. — E estou. As perguntas parecem-me espirituais. — Doutor Langdon, todas as perguntas foram a dada altura es

pirituais. Desde o começo dos tempos, a espiritualidade e a religião foram chamadas a preencher os vazios que a ciência não compreendia. O nascer e o pôr do Sol eram atribuídos a Hélio e a um carro de fogo. Os terramotos e os tsunamis eram manifestações da ira de Posídon. A ciência provou que esses deuses eram falsos ídolos. Em breve, ficará provado que todos os deuses são falsos ídolos. A ciência tem hoje resposta para quase todas as perguntas que a Humanidade pode fazer. Restam apenas algumas, e essas são esotéricas. De onde viemos? O que fazemos aqui? Qual é o significado da vida e do Universo?

Langdon estava estupefacto. — E é a essas perguntas que o CERN está a tentar responder?

44 DAN BROWN

— Correcção. É a essas perguntas que estamos a responder. Langdon manteve-se silencioso enquanto os dois atravessavam os

quadrângulos residenciais. A dada altura, um frisbee veio pelos ares e caiu imediatamente à frente deles. Köhler ignorou-o.

— S'il vous platt!— gritou uma voz do outro lado do quadrângulo. Langdon olhou. Um homem já idoso, de cabelos brancos, vestindo

uma camisola que tinha estampadas as palavras COLLEGE PARIS, fazia--Ihe sinais. Langdon apanhou o frisbee do chão e lançou-o com a perícia de um profissional. O homem apanhou-o com a ponta de um dedo e fê-lo saltar duas ou três vezes antes de o atirar por cima do ombro para o parceiro.

— Merci!— gritou a Langdon. — Parabéns — disse Köhler, quando Langdon se lhe juntou. —

Acaba de jogar com um Prémio Nobel, Georges Charpak, inventor da câmara proporcional multifios.

Langdon limitou-se a um aceno de cabeça. Deve ser o meu dia de sorte, pensou.

Demoraram mais três minutos a chegar ao destino — um grande e bem cuidado dormitório rodeado de álamos. Comparado com as outras, a estrutura parecia luxuosa. A laje de pedra aposta na fachada dizia apenas: EDIFÍCIO C.

Muito imaginativo, pensou Langdon. Mau grado, porém, a esterilidade do nome, o Edifício c apelava à

sua noção de estilo arquitectónico — conservador e sólido. Tinha uma fachada de tijolo vermelho, uma ornamentada balaustrada, e estava enquadrado por sebes de buxo simetricamente esculpidas. Enquanto subiam o caminho empedrado de acesso à porta, passaram por baixo de um portal formado por duas colunas de mármore. Numa delas, alguém colara \xxn post-it o^t afirmava:

ESTA COLUNA É IÓNICA

Graffiti de físicos"^, pensou Langdon, olhando para a coluna e rindo para dentro.

ANJOS E DEMÓNIOS 45

— E com alívio que verifico que até os cérebros mais brilhantes cometem erros.

Kohler ergueu a cabeça. — Que quer dizer com isso? — Quem escreveu aquela nota cometeu um erro. Aquela coluna

não é iónica, ou, como eu prefiro dizer, jónica. As colunas jónicas têm o mesmo diâmetro a toda a altura. Esta afunila para o topo. E dórica... o equivalente grego. Um erro bastante comum.

Köhler não sorriu. — A intenção do autor da nota foi fazer um trocadilho, doutor

Langdon. Iónica significa que contém iões... partículas eléctricamente carregadas. Acontece à maior parte dos objectos.

Langdon voltou a olhar para a coluna e suspirou.

Ainda se sentia estúpido quando saiu do elevador no último piso do Edifício C. Caminhou atrás de Köhler por um bem cuidado corredor. A decoração era inesperada — francês colonial tradicional — um sofá de cerejeira, uma grande jarra de porcelana no chão, madeiras lavradas.

— Gostamos de proporcionar conforto aos nossos cientistas residentes — explicou Köhler.

Evidentemente, pensou Langdon. — O homem d o ^ x vivia então aqui? Um dos vossos cientistas de

mais alto nível? — Sem dúvida. Faltou a uma reunião comigo esta manhã e não

respondeu ao pager. Vim aqui procurá-lo e encontrei-o morto na sala de estar.

Langdon teve um súbito arrepio, apercebendo-se de que ia ver um cadáver. Nunca tivera um estômago particularmente forte. Uma fraqueza que descobrira quando era estudante de História de Arte e o professor explicara à turma que Leonardo da Vinci adquirira o seu profundo conhecimento da anatomia humana exumando cadáveres e dissecan-do-lhes a musculatura.

Köhler conduziu-o até ao fim do corredor. Havia apenas uma porta.

— O penthouse, como diriam na América — anunciou, limpando uma gota de transpiração da testa.

46 DAN BROXJWSI

Langdon olhou para a porta de carvalho que tinha à frente e para o nome gravado na placa.

LEONARDO VETRA

— Leonardo Vetra — disse Kohler — faria cinquenta e oito anos na próxima semana. Era um dos dentistas mais brilhantes do nosso tempo. A sua morte é uma grande perda para a ciência.

Por um instante, Langdon julgou detectar um vislumbre de emoção no rosto pétreo de Köhler. Mas tão depressa como tinha aparecido, desapareceu. O director tirou um chaveiro do bolso e pôs-se a procurar a chave de que precisava.

Um estranho pensamento ocorreu subitamente a Langdon. O edifício parecia deserto.

— Onde se meteu toda a gente? — perguntou. A ausência de actividade era inesperada, considerando que se preparavam para entrar no local de um crime.

— Os residentes estão nos respectivos laboratórios — explicou Kohler, encontrando a chave.

— Referia-me à polícia — esclareceu Langdon. —Já se foram embora?

Köhler deteve-se, com a chave meio inserida na fechadura. — A polícia? Os olhos dos dois encontraram-se. — Sim, a polícia. Enviou-me uma foto de um homem assassinado.

Com certeza mandou chamar a polícia. — Claro que não mandei. — O quê? Os olhos cinzentos de Köhler tornaram-se ainda mais duros. — A simação é complexa, doutor Langdon. Langdon sentiu uma vaga de apreensão. — Mas... com certeza mais alguém sabe do que se passou! — Sim. A filha adoptiva de Vetra. Também ela trabalha como fí

sica aqui no CERN. Partilha um laboratório com o pai. Formam uma equipa. A Vittoria tem estado fora toda a semana, a fazer trabalho de campo. Notifiquei-a da morte do pai. Deve regressar de um momento para o outro.

ANJOS E DEMÓNIOS 47

— Mas foi assa... — Será levada a cabo uma investigação formal — disse Kohler,

num tom firme — que, no entanto, envolverá com toda a certeza uma vistoria ao laboratório de Vetra, um espaço que ele e a filha consideravam altamente privado. Por conseguinte, aguardaremos até ela chegar. Sinto que lhe devemos pelo menos esse mínimo de discrição.

E fez rodar a chave na fechadura. Quando a porta se abriu, um bafo de ar gelado escapou-se para o cor

redor e atingiu o rosto de Langdon, que recuou, surpreendido. O que via do outro lado do umbral era um mundo alienígena. O apartamento estava imerso num denso nevoeiro branco. A névoa rodopiava em espessas volutas à volta da mobília e envolvia tudo num sudário opaco.

— Que... — começou. — Sistema de arrefecimento por fréon — explicou Köhler. — Ge

lei o quarto para preservar o corpo. Langdon abotoou o casaco de tweed píLfa. se proteger do frio. Estou

em O^ pensou. E esqued-me de tra^r os sapatos mágicos.

CAPITULO NOVE

O cadáver que Langdon viu estendido no chão era horrível. O falecido Leonardo Vetra estava deitado de costas, completamente nu, e a pele adquirira um tom cinzento-azulado. Os ossos do pescoço sobressaíam no ponto onde tinham sido partidos e a cabeça fora torcida para trás, apontando na direcção errada, com a cara voltada para o chão. O homem jazia numa poça gelada da sua própria urina. Os pêlos púbicos à volta do pénis engelhado pareciam ter sido polvilhados com geada.

Lutando contra uma onda de náusea, Langdon obrigou os olhos a fixarem-se no peito da vítima. Apesar de ter visto a ferida simétrica na foto do fax mais de uma dúzia de vezes, a queimadura era infinitamente mais impressionante assim ao vivo. A carne sobrelevada e queimada formava um desenho perfeitamente nítido.

Langdon perguntou a si mesmo se o intenso frio que lhe invadia o corpo era uma consequência do ar condicionado ou do seu espanto total face à importância do que estava a ver.

fuiniilâ Sentia o coração a bater enquanto contornava o corpo para 1er a pa

lavra invertida, confirmando a genialidade da simetria. O símbolo parecia ainda menos concebível agora que estava a olhar para ele.

— Doutor Langdon? Langdon não ouviu. Estava noutro mundo... o seu mundo, o seu

elemento, um mundo onde a História, o mito e o facto colidiam, inun-dando-lhe os sentidos. As engrenagens rodavam.

ANJOS E DEMÓNIOS 49

— Doutor Langdon? — insistiu Köhler, e os olhos dele perscrutavam, expectantes.

Langdon não desviou o olhar. Todos os seus sentidos estavam intensificados, a sua concentração era total.

— O que é que já sabe.- — Só o que tive tempo para 1er no seu website. A palavra llluminati sig

nifica «os iluminados». É o nome de uma espécie de antiga Irmandade. Langdon assentiu. —Já o tinha ouvido antes? — Nunca até tê-lo visto marcado a fogo no peito de Leonardo

Vetra. — E resolveu então fazer uma pesquisa na web. — Sim. — E a palavra apareceu em centenas de páginas, sem dúvida. — Milhares — disse Köhler. — A sua, no entanto, continha refe

rências, a Harvard, a Oxford, a um. editor conhecido, além de uma lista de publicações relacionadas. Como cientista, acabei por descobrir que uma informação só vale o que vale pela respectiva fonte. As suas credenciais parecem autênticas.

Os olhos de Langdon continuavam presos ao cadáver. Köhler nada mais disse. Limitou-se a olhar, aparentemente à espera

de que Langdon lançasse alguma luz sobre a cena que tinham ã frente. Langdon ergueu os olhos e passeou-os em redor do apartamento

gelado. — Talvez devêssemos discutir o assunto num lugar mais quente?

— sugeriu. — Esta sala serve perfeitamente — respondeu Köhler, que parecia

não dar pelo frio. — Falamos aqui. Langdon franziu o sobrolho. A história dos llluminati era tudo menos

simples. Vou morrer congelado enquanto tento explicá-la, pensou. Voltou a olhar

para a marca gravada a fogo, com uma renovada sensação de espanto. Apesar de os relatos sobre a insígnia dos llluminati serem lendários

na moderna simbologia, nunca nenhum académico a vira com os seus próprios olhos. Documentos antigos descreviam a insígnia como um ambigrama, o que significava que era legível de ambas as maneiras. E embora os ambigramas fossem comuns na simbologia — suásticas, j w e

jang, estrelas de David, simples cruzes — a ideia de se poder desenhar

50 DAN BROWN

uma palavra sob a forma de ambigrama parecia totalmente impraticável. Os simbologistas modernos tinham tentado durante anos forjar a palavra Illuminati num traçado perfeitamente simétrico, mas tinham falhado. A maioria dos académicos acabara por decidir que a existência do símbolo não passava de um mito.

— Quem são então os Illuminati'^ — perguntou Köhler. Sim, pensou Langdon. Quem? E deu im'cio à sua narrativa.

— Desde o começo da História — explicou —, tem existido uma profunda clivagem entre ciência e religião. Cientistas mais ousados como Copérnico...

— Foram assassinados — interpôs Köhler. — Assassinados pela Igreja por revelarem verdades científicas. A religião sempre perseguiu a ciência.

— Sim. Mas, no século XVI, em Roma, surgiu um grupo que resolveu fazer frente à Igreja. Alguns dos homens mais esclarecidos de Itália... físicos, matemáticos, astrónomos... começaram a reunir-se secretamente para falar da sua preocupação com os falsos ensinamentos da Igreja. Temiam que o monopóuo da «verdade» que ela exercia ameaçasse o esclarecimento académico em todo o lado. Fundaram o primeiro clube de pensamento científico do mundo, e designavam-se a si mesmos como «os Iluminados».

— Os Illuminati. — Sim... Os espíritos mais eruditos da Europa... dedicados à pro

cura da verdade cienü'fica. Kohler permaneceu calado. — Claro que os Illuminati foram implacavelmente perseguidos pela

Igreja Católica. Só através da prática de um extremo secretismo conseguiam permanecer a salvo. A noti'cia espalhou-se pelos canais subterrâneos do mundo académico, e a Irmandade dos Illuminati cresceu, passando a incluir estudiosos de toda a Europa. Os cientistas reuniam--se regularmente em Roma, num local ultra-secreto a que chamavam a Igreja da Iluminação.

Köhler tossiu e agitou-se na cadeira. — Muitos dos Illuminati — continuou Langdon — queriam com

bater a tirania da Igreja com actos de violência, mas o mais respeitado

ANJOS E DEMÓNIOS 51

dos seus membros convenceu-os a não o fazer. Era um pacifista, bem como um dos mais famosos cientistas de todos os tempos.

Langdon estava certo de que Köhler reconheceria o nome. Até os não-cientistas já tinham ouvido falar do malogrado astrónomo que fora preso e quase executado pela Igreja por proclamar que era a Terra que girava em torno do Sol e não o Sol em torno da Terra. Apesar de os seus dados serem incontroversos, o astrónomo fora severamente castigado por afirmar que Deus colocara a Humanidade noutro sítio qualquer que não no centro do Seu universo.

— Chamava-se Galileu GaHlei — disse. Köhler ergueu a cabeça. — Galileu? — Sim. GaHleu era um llluminatus. E era também um católico de

voto. Tentou suavizar a posição da Igreja relativamente à ciência proclamando que esta não minava a crença na existência de Deus, antes a reforçava. Escreveu, certa vez, que sempre que observava através do seu telescópio o rodopiar dos planetas, ouvia a voz de Deus na música das esferas. Afirmava que a ciência e a religião não eram inimigas, muito pelo contrário, eram aliadas... duas linguagens diferentes que contavam a mesma história, uma história de simetria e equüíbrio... céu e inferno, noite e dia, quente e frio. Deus e Satanás. Tanto a ciência como a religião rejubilavam na simetria divina... na infindável competição entre a luz e a escuridão. — Langdon fez uma pausa, batendo com os pés no chão para os manter quentes.

Köhler limitou-se a continuar sentado na sua cadeira de rodas, a olhar.

— Infelizmente — prosseguiu Langdon —, a unificação da ciência e da religião não era o que a Igreja desejava.

— Claro que não — interrompeu Köhler. — Essa união teria anulado a pretensão da Igreja a ser o único veículo através do qual a Humanidade podia compreender Deus. Por isso julgou GaHleu como herético, declarou-o culpado e colocou-o sob prisão domicüiária permanente. Conheço bem a história científica, doutor Langdon. Mas mdo isso aconteceu há séculos. O que é que tem a ver com o Leonardo Vetra?

A. pergunta do milhão de dólares. Langdon resolveu atalhar caminho. — A prisão de Galileu semeou a confusão entre os llluminati. Co-

meteram-se erros, e a Igreja descobriu a identidade de quatro mem-

52 DAN BROWN

bros do grupo, que foram detidos e interrogados. Mas os quatro cientistas nada revelaram... nem mesmo sob tormra.

— Tormra? Langdon assentiu. — Foram marcados com ferros em brasa. No peito. Com o sím

bolo de uma cruz. Köhler abriu muito os olhos e lançou um olhar inquieto ao corpo

de Vetra. — Em seguida, os cientistas foram brutalmente assassinados e os

seus corpos abandonados nas ruas de Roma como aviso para outros que estivessem a pensar em juntar-se aos llluminati. Com a Igreja a apertar o cerco, os restantes membros da Irmandade fugiram de Itália.

Langdon fez uma pausa para sublinhar o que tinha dito. Fixou directamente os olhos de Köhler.

— Os llluminati passaram à clandestinidade, onde começaram a mis-turar-se com outros grupos de refugiados que fugiam à perseguição da Igreja... místicos, alquimistas, ocultistas, muçulmanos, judeus. Com o passar dos anos, começaram a absorver novos membros. Surgiu então uma nova Irmandade dos llluminati. Mais sombria. Profundamente an-ticristã. Tornaram-se poderosos, praticando rituais misteriosos, jurando manter o segredo mesmo sob ameaça de morte, fazendo o voto de que um dia haviam de voltar a erguer-se para se vingarem da Igreja Católica. O seu poder cresceu ao ponto de a Igreja os considerar a força anticristã mais perigosa do mundo. O Vaticano denunciou a Irmandade como Shaitan.

— Shaitan'?

— É uma palavra árabe. Significa «adversário»... o adversário de Deus. A Igreja escolheu o árabe por ser a língua do Islão e ser considerado uma língua suja. — Langdon hesitou. — Shaitan é a raiz da palavra... Satanás.

Uma espécie de embaraço perpassou pelo rosto de Köhler. A voz de Langdon soou sombria. — Não sei, doutor Köhler, como apareceu esta marca no peito

deste homem... ou porquê... mas está a olhar para o há muito perdido símbolo do mais antigo e poderoso culto satânico do mundo.

CAPITULO DEZ

A estreita viela estava deserta. O Hashashin caminhava rapidamente, com os olhos brilhantes de expectativa. Enquanto se aproximava do seu destino, as palavras de despedida de Janus ecoavam-lhe na memória: A segunda fase começará em breve. Descanse um pouco.

Sorriu. Passara a noite inteira acordado, mas o sono era a última das suas preocupações. Dormir era para os fracos. Ele era um guerreiro, como os seus antepassados tinham sido, e o seu povo nunca dormia uma vez começada a batalha. Aquela batalha tinha sem a mínima dúvida começado, e fora-lhe concedida a ele a honra de derramar o primeiro sangue. Tinha agora duas horas para celebrar a sua glória antes de voltar ao trabalho.

Dormir? Há maneiras muito melhores de relaxar... O gosto pelos prazeres hedonísticos era algo que lhe estava nos ge

nes. Os seus antepassados usavam o haxixe, mas ele preferia outro tipo de gratificação. Orgulhava-se do seu corpo, uma máquina letal e bem afinada que, a despeito de uma herança cultaral de séculos, recusava poluir com narcóticos. Criara uma dependência bem mais compensadora do que as drogas... uma recompensa muito mais saudável e satisfatória.

Sentindo a familiar excitação crescer-lhe no peito, o Hashashin es-tagou o passo. Chegou diante de uma porta sem nada de especial que a distinguisse e premiu o botão da campainha. Dois suaves olhos castanhos estadaram-no cuidadosamente através de uma fresta de vigia. Logo a seguir, a porta abriu-se.

— Bem-vindo — disse a mulher elegantemente vestida. Condu-ziu-o até uma sala onde reinava uma discreta penumbra. O ar cheirava a perfumes caros e a almíscar. — Esteja à sua vontade. — Entregou--Ihe um álbum de fotografias. — Chame-me quando tiver feito a sua escolha. — E retirou-se.

54 DAN BROWN

O Hashashin sorriu. Enquanto se sentava no luxuoso divã e pousava o álbum de foto

grafias nos joelhos, sentiu a excitação do apetite carnal. Embora o seu povo não celebrasse o Natal, imaginou que era assim que devia sentir--se uma criança cristã, sentada diante de um monte de prendas, preparada para descobrir os tesouros que encerravam. Abriu o álbum e examinou as fotos. Uma vida inteira de fantasias sexuais olhava para ele.

Marisa. Uma deusa italiana. Fogosa. Uma jovem Sofia Loren. Sachiko. Uma gueixa japonesa. Esguia, sem dúvida competente. Kanara. Uma deslumbrante visão negra. Musculosa. Exótica. Viu duas vezes o álbum de uma ponta à outra, e fez a sua escolha.

Premiu o botão em cima da mesa a seu lado. Um minuto mais tarde, a mulher que o recebera reapareceu. Ele indicou-lhe a sua preferência. Ela sorriu.

— Venha comigo. Uma vez resolvidos os pormenores financeiros, a mulher fez um

telefonema. Aguardou alguns minutos e então subiu à frente dele uma larga escadaria encurvada até um luxuoso corredor.

— A porta dourada, ao fim do corredor — disse. — Tem gostos caros.

É natural, pensou ele. Sou um perito. O Hashashin percorreu o corredor como uma pantera a antecipar

uma refeição há muito aguardada. Ao chegar junto da porta, sorriu para si mesmo. Já estava entreaberta... convidando-o a entrar. Empurrou com a mão, e a porta abriu-se silenciosamente.

Quando viu a mulher, soube que tinha escolhido bem. Estava exactamente como ele pedira... nua, deitada de costas, com os braços amarrados aos postes da cama por grossos cordões de veludo. Atravessou o quarto e passou um dedo escuro pelo ventre de marfim. A. noite passada matei, pensou. Tu és a minha recompensa.

CAPITULO ONZE

— Satânico? — Kohler limpou a boca e agitou-se na cadeira, pouco à-vontade. — Isto é o símbolo de um culto satânico'^

Langdon começou a andar de um lado para o outro no quarto gelado, para se manter quente.

— Os Illuminati eram satânicos, mas não no sentido moderno da palavra.

Explicou então rapidamente como a maior parte das pessoas imagina os cultos satânicos como grupos de indivíduos demoníacos adoradores do diabo, quando na realidade os satanistas eram historicamente homens cultos que se afirmavam como adversários da Igreja. Shaitan. Os rumores a respeito de sacrifícios animais, magia negra e pentagramas rituais não passavam de mentiras espalhadas pela Igreja, numa campanha de difamação dos seus inimigos. Com o passar do tempo, os que se opunham à Igreja, querendo imitar os Illuminati, tinham começado a acreditar nessas mentiras e a agir de acordo com elas. Assim nascera o satanismo moderno.

Köhler resmungou entredentes. — Tudo isso é história antiga. O que eu quero saber é como esse

símbolo chegou até aqui. Langdon inspirou fundo. — O símbolo propriamente dito foi criado por um membro anó

nimo da Irmandade, no século xvi, como tributo à paixão de Galileu pela simetria... uma espécie de logótipo sagrado. A Irmandade manteve o desenho secreto, planeando supostamente só o revelar quando tivesse reunido poder suficiente para reaparecer à luz do dia e levar a cabo o seu objectivo final.

Köhler pareceu preocupado. — Este símbolo significa então que a Irmandade dos Illuminati vai

reaparecer?

56 DAN BROWN

Langdon franziu a testa. — Isso seria impossível. Há um capítulo da história dos Illuminati

que ainda não foi explicado. — Esclareça-me — pediu Köhler, e a voz dele soou mais intensa. Langdon esfregou as palmas das mãos uma contra a outra, passan

do mentalmente em revista as centenas de documentos que lera ou escrevera a respeito dos Illuminati.

— Os Illuminati eram sobreviventes — explicou. — Quando fugiram de Roma, viajaram por toda a Europa em busca de um lugar seguro onde pudessem reagtupar-se. Foram acolhidos por uma outra sociedade secreta... uma Irmandade de abastados artesãos da pedra bá-varos conhecidos como Pedreiros-Livres.

Köhler pareceu sobressaltado. — Os Maçons"^ Langdon assentiu, nada surpreendido por Köhler ter conhecimento

da existência do grupo. A Irmandade dos Maçons contava no momento mais de cinco rmlhões de membros em todo o mundo, metade dos quais residentes nos Estados Unidos e mais de um milhão na Europa.

— Com certeza não me vai dizer que os Maçons são satânicos — exclamou Köhler, num tom céptico.

— Claro que não. Os Maçons foram vítimas da sua própria benevolência. Depois de terem acolhido os cientistas em fuga, no início do século XVIII, tornaram-se, sem o saber, uma cortina de fumo para os Illuminati, que se multiplicaram entre as suas fileiras, ocupando gradualmente posições de poder nas Lojas. Sem dar nas vistas, recriaram a sua Irmandade científica no seio da Maçonaria... uma espécie de sociedade secreta dentro de uma sociedade secreta. E então serviram-se das ligações mundiais das Lojas Maçónicas para espalhar a sua influência.

Langdon inspirou uma lufada de ar gelado e continuou: — A obliteração do Catolicismo era o objectivo central dos Illumi

nati. Segundo a Irmandade, o dogma supersticioso imposto pela Igreja era o grande inimigo da Humanidade. Temiam que se a reKgião continuasse a promover o mito piedoso como facto absoluto, o progresso científico seria travado, e a humanidade ficaria condenada a um futuro ignorante de absurdas guerras santas.

— Mais ou menos como acontece hoje. Langdon franziu a testa. Köhler tinha razão. As guerras santas con

tinuavam a encher os cabeçalhos dos jornais. O meu Deus é melhor do que

ANJOS E DEMÓNIOS 57

O teu Deus. Parecia haver sempre uma estreita correlação entre verdadeiros crentes e um grande número de mortos.

— Continue — pediu Köhler. Langdon organizou as ideias e prosseguiu: — Os llluminati tornaram-se mais poderosos na Europa e volta

ram os olhos para a América, onde acabava de se instalar um governo inexperiente em que muitos dos membros eram Maçons... George Washington, Ben Franklin... homens honestos e tementes a Deus que nada sabiam do poder dos llluminati no seio da Maçonaria. Os llluminati tiraram partido desta infiltração e ajudaram a fundar bancos, universidades e uma indústria para financiar o seu objectivo final. — Lang-don fez uma pausa. — A criação de um Estado mundial unificado... uma espécie de Nova Ordem Mundial secular.

Köhler não se mexeu. — Uma Nova Ordem Mundial — repetiu Langdon -— baseada no

esclarecimento científico. Chamam-lhe a sua Doutrina Luciferiana. A Igreja afirmava que Lúcifer era uma referência ao diabo, mas a Irmandade insistia em que o nome devia ser entendido no seu sentido latino uteral: o que tra;^ a lu^. Ou o Iluminador.

Kohler suspirou, e a voz tornou-se-lhe repentinamente solene: — Doutor Langdon, sente-se, por favor. Langdon sentou-se, cautelosamente, numa cadeira coberta de cris

tais de gelo. Köhler levou a cadeira de rodas para mais perto. — Não estou certo de ter compreendido tudo o que me disse, mas

compreendo o seguinte. Leonardo Vetra era um dos cientistas mais valiosos do CERN. Era também um amigo. Preciso que me ajude a localizar os llluminati.

Langdon ficou sem saber o que responder. — Localizar os llluminati — HLle está a brincar, certo? — Receio que

isso seja completamente impossível. Na testa de Köhler cavou-se uma funda ruga. — Que quer dizer com isso? Não... — Doutor Köhler — Langdon inclinou-se para o seu anfitrião,

sem saber como fazê-lo compreender o que se preparava para dizer. — Não acabei a minha história. A despeito das aparências, é muito pouco provável que esta marca tenha sido feita pelos llluminati. Não há provas da sua existência há mais de meio século, e a maior parte dos

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estudiosos está de acordo em que a Irmandade desapareceu há muito tempo.

As palavras chocaram contra uma parede de silêncio. Köhler olha-va-o através da fria névoa com uma expressão que se situava algures entre a estupefacção e a fúria.

— Como diabo é capaz de me dizer que essa gente desapareceu quando estou a ver o nome deles gravado a fogo no peito do meu amigo?

Havia horas que Langdon se perguntava a mesmíssima coisa. O aparecimento do ambigrama da Irmandade era surpreendente. Ia deixar extremamente confusos os simbologistas de todo o mundo. E no entanto, o académico que havia nele compreendia que a reemergência do logótipo não provava absolutamente nada a respeito dos Illuminati.

— Os símbolos — acabou por dizer — de modo algum confirmam a presença dos seus criadores originais.

— O que é que isso supostamente quer dizer? — Quer dizer que quando as filosofias organizadas, como os ïllu-

minati, deixam de existir, os seus símbolos permanecem... e podem ser adoptados por outros grupos. Chama-se a isso transferênría. É muito comum em simbologia. Os nazis foram buscar a suástica aos Hindus, os Cristãos adoptaram a cruz dos Egípcios, os...

— Quando esta manhã teclei a palavra Illuminati no computador — argumentou Köhler —, obtive milhares de referências actuais. Aparentemente, há muitas pessoas convencidas de que o grupo continua activo.

— Sim, os maníacos da conspiração — respondeu Langdon. A plétora de teorias da conspiração que circulava na moderna culturado/) era para ele uma fonte constante de irritação. Os meios de comunicação andavam sempre à procura de cabeçalhos apocalípticos, e os autopro-clamados «especialistas de cviltos» continuavam a ganhar dinheiro à custa da loucura do milénio, que fabricava histórias como a de que os Illuminati continuavam vivos e de saúde e a preparar a sua Nova Ordem Mundial. Recentemente, o ISiew York Times denunciara as misteriosas ligações à Maçonaria de inúmeros nomes famosos, como Sir Artur Conan Doyle, o duque de Kent, Peter Sellers, Irving Berlin, o príncipe Fiüpe e Louis Armstrong, além de todo um panteão de conhecidos industriais e banqueiros contemporâneos.

Köhler apontou furiosamente para o corpo de Vetra.

ANJOS E DEMÓNIOS 59

— Considerando as provas, diria que talvez os maníacos da conspiração tenham razão.

— Compreendo que assim pareça — disse Langdon, o mais diplomaticamente que foi capaz. — E no entanto, uma explicação mtoito mais plausível é que qualquer outra organização se tenha apoderado da insígnia dos llluminati e esteja a usá-la para os seus próprios fins.

— Que fins? O que é que este assassínio prova? Boa pergunta, pensou Langdon. Estava também a ter dificuldade em

imaginar onde teria alguém ido desencantar a insígnia dos llluminati ao fim de quatrocentos anos.

— Tudo o que posso dizer-lhe é que mesmo que os llluminati continuassem activos nos nossos dias, e estou praticamente convencido de que não continuam, nunca poderiam estar envolvidos na morte de Leonardo Vetra.

— Não? — Não. Os llluminati podiam acreditar na abolição do Cristianis

mo, mas exerciam o seu poder através de meios poKticos e financeiros, não através de actos terroristas. Além disso, tinham um estrito código moral no que respeitava a quem consideravam seus inimigos. Tinham a mais alta consideração pelos homens de ciência. Nunca assassinariam um irmão cientista como o doutor Vetra.

Os olhos de Köhler tornaram-se de gelo. — Talvez eu me tenha esquecido de mencionar que Leonardo Ve

tra era tudo menos um cientista vulgar. Langdon expirou lentamente, enchendo-se de paciência. — Doutor Köhler, estou certo de que Leonardo Vetra era brilhan

te dos mais diversos modos, mas o facto permanece... Sem aviso, Köhler fez rodar a cadeira e acelerou para fora da sala

de estar, deixando atrás de si uma esteira de revoluteante névoa enquanto desaparecia no corredor.

Pe/o amor de Deus, gemeu Langdon. Saiu também. Köhler esperava por ele junto a uma pequena alcova no fim do corredor.

— Este é o gabinete de Leonardo Vetra — disse, apontando para a porta de correr. — Talvez depois de o ver entenda as coisas de maneira diferente. — Com um estranho grunhido, soergueu-se da cadeira, e a porta deslizou para um lado.

Langdon espreitou para dentro do gabinete e sentiu imediatamente um arrepio percorrer-Ihe o corpo. Santa Mãe de Jesus, disse para si mesmo.

CAPITULO DOZE

Num outro país, um jovem guarda estava pacientemente sentado diante de um vasto painel de monitores de vídeo. Observava as imagens que desfilavam à sua frente numa procissão infindável, enviadas pelas centenas de câmaras sem fios que vigiavam o enorme complexo.

Um corredor. Um gabinete. Uma cozinha de proporções industriais. Enquanto as imagens passavam, o jovem guarda esforçava-se por

não se deixar cair no devaneio. Apesar de estar perto do fim do seu turno, mantinha-se atento. Servir era uma honra. Um dia, teria a sua recompensa.

Subitamente, uma das imagens que ia vendo enquanto os seus pensamentos derivavam, registou alarme. Num reflexo tão rápido que até ele próprio se sobressaltou, estendeu a mão e premiu um botão no painel de controlo. A imagem imobilizou-se.

Com os nervos a vibrar, o jovem guarda inclinou-se para a frente, para ver melhor. A leitura do monitor disse-lhe que aquela imagem estava a ser transmitida pela câmara número 86 — uma câmara que deveria estar a vigiar um corredor.

O que estava a ver não era, porém, definitivamente um corredor.

CAPITULO TREZE

Langdon olhava, estupefacto, para dentro do gabinete. — Que lugar é este? Mau grado a agradável lufada de ar quente que lhe bateu no rosto,

foi com receio que passou o umbral. Köhler seguiu-o em silêncio. Langdon examinou a sala, sem fazer a menor ideia do que pensar

daquMo. Estava ali reunida a mais estranha mistura de artefactos que alguma vez vira. Na parede mais distante, dominando toda a decoração, havia um enorme crucifixo de madeira, que identificou como sendo espanhol, do século XIV. Por cima da cruz, suspenso do tecto, um móbil metálico representando os planetas. A esquerda, um quadro a óleo da Virgem Maria e, ao lado, uma tabela periódica dos elementos, de plástico laminado. Na parede lateral, outros dois crucifixos de bronze enquadravam um cartaz de Albert Einstein, com a sua famosa afirmação: DEUS NÃO JOGA AOS DADOS COM O UNIVERSO.

Avançou mais alguns passos, olhando em redor, espantado. Em cima da secretária, uma Bíblia encadernada a couro fazia companhia a um modelo atómico de Bohr, de plástico, e a uma pequena réplica do Moisés de Miguel Angelo.

Venham-me cá falar de ecletismo, pensou. O calor era agradável, mas havia qualquer coisa na decoração daquele lugar que lhe provocava arrepios. Era como se estivesse a assistir a uma luta entre dois titãs filosóficos... uma perturbadora confusão de forças opostas. Examinou os títulos na estante:

A. Partícula de Deus. O Tao da Física. Deus: A Propa.

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Num dos suportes estava gravada uma citação:

A VERDADEIRA CIÊNCIA DESCOBRE DEUS

À ESPERA ATRÁS DE CADA PORTA.

— PAPA PIO XII

— O Leonardo era um padre católico — disse Köhler. Langdon voltou-se. — Padre? Pensava que me tinha dito que era físico. — Era ambas as coisas. Os homens de ciência e de religião não são

invulgares na História. O Leonardo era um deles. Chamava à Física «a lei natural de Deus». Afirmava que a escrita de Deus era visível na ordem natural que nos rodeia. Esperava, através da ciência, conseguir provar a existência de Deus às massas descrentes. Considerava-se a si mesmo um teofísico.

Teoßsico?, pensou Langdon. Soava impossivelmente contraditório. — A área da Física de Partículas — continuou Koliler — tem

feito recentemente algumas descobertas chocantes... descobertas com implicações muito espirimais. O Leonardo foi responsável por várias delas.

Langdon estudou o director do CERN, ainda a tentar processar o bizarro ambiente que o rodeava.

— Espiritualidade e Física? — Langdon passara toda a sua carreira a estudar História religiosa, e se havia um tema recorrente, era que a ciência e a religião tinham sido como a água e o azeite a partir do primeiro dia... arqui-inimigos... imiscíveis.

— O Vetra situava-se na primeira linha da Física de Partículas — disse Köhler. — Estava a começar a fundir ciência e religião... a mostrar que se complementam uma à outra de maneiras muito inesperadas. Chamava ao campo Nova Física. — Tirou um livro da estante e estendeu-o a Langdon.

Langdon estudou a capa. Deus, Milagres e a Nova Física, de... Leonardo Vetra.

— O campo é restrito — continuou Köhler —, mas está a trazer respostas novas para algumas velhas perguntas... perguntas sobre a origem do Universo e as forças que ligam todas as coisas. O Leonardo acreditava que a sua pesquisa tinha potencial para converter milhões

ANJOS E DEMÓNIOS 63

de pessoas a uma vida mais espiritual. No ano passado, provou categoricamente a existência de um campo de energia que nos une a todos. Na realidade, demonstrou que estamos todos fisicamente ligados... que as moléculas do seu corpo estão entretecidas com as do meu... que há uma única força a agir dentro de todos nós.

Langdon ficou desconcertado. E o poder de Deus unir-nos-á a todos. — O doutor Vetra descobriu uma maneira de demonstrar o^t as par

tículas estão interligadas? — Provas conclusivas. Um artigo recente na Scientific American exal

tava a Nova Física como um caminho mais seguro para chegar a Deus do que a própria religião.

O comentário atingiu-o com toda a força. Langdon deu repentinamente por si a pensar nos anti-religiosos Illuminati. Com alguma relutância, permitiu-se uma momentânea divagação intelectual pelo impossível. Se os Illuminati continuassem activos, teriam assassinado Leonardo Vetra para impedi-lo de fazer chegar ao mundo a sua mensagem religiosa? Afastou o pensamento. Absurdo! Os Illuminati são história antiga! Todos os académicos o sabem!

— Vetra não tinha falta de inimigos no mundo científico — dizia Köhler. — Muitos puristas desprezavam-no. Até aqui, no CERN. Achavam que usar a Física Analítica para apoiar princípios religiosos era trair a ciência.

— Mas não é verdade que os cientistas são hoje um pouco menos defensivos em relação à Igreja?

— Porque haveríamos de ser? — resmungou Köhler, num tom de desprezo. — Talvez a Igreja já não queime cientistas na praça pública, mas se pensa que aliviou o jugo que faz pesar sobre a ciência, pergunte a si mesmo por que é que metade das escolas do seu país não pode ensinar a teoria da evolução. Pergunte a si mesmo porque é que a U. S. Christian Coalition é o mais poderoso grupo de pressão contra o progresso cienti'fico do mundo. A luta entre a ciencia e a religião continua, doutor Langdon. Transferiu-se dos campos de batalha para as reuniões dos conselhos de administração, mas continua.

Langdon apercebeu-se de que Köhler tinha razão. Ainda na semana anterior, a Faculdade de Teologia de Harvard organizara uma marcha no Edifício de Biologia como protesto contra a cadeira de Engenharia Genética incluída no programa do curso. O presidente do

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Departamento de Biologia, o famoso ornitólogo Richard Aaronian, defendera o programa pendurando uma grande faixa na janela do seu gabinete. A faixa mostrava o «peixe» cristão modificado com quatro pequenas patas — um tributo, afirmara Aaronian, à evolução dos peixes pulmonados africanos para terra firme. Por baixo do peixe, em vez da palavra «Jesus», podia ler-se «DARWIN».

Um bip agudo quebrou o momentâneo silêncio, e Langdon ergueu os olhos. Köhler procurou entre a panóplia de instrumentos electrónicos que equipava a cadeira de rodas, tirou um beeper do respectivo encaixe e leu a mensagem.

— Óptimo. É a filha do Leonardo. Está a chegar neste preciso momento ao heliporto. Encontramo-nos lá com ela. Julgo que é melhor não a deixar vir até aqui e ver o pai naquele estado.

Langdon concordou. Era um choque que nenhum filho merecia. — Vou pedir-lhe que lhe explique o projecto em que ela e o pai

estavam a trabalhar... Talvez lance alguma luz sobre a razão por que o Vetra foi assassinado.

— Pensa que foi morto por qualquer motivo relacionado com o seu trabalho?

— E muito possível. O Leonardo disse-me que estava a trabalhar num projecto pioneiro. Foi tudo o que revelou. Tinha-se tornado muito reservado no que respeitava ao trabalho. Tinha um laboratório privado e exigiu um isolamento total, que eu de boa vontade autorizei, tendo em conta a sua importância como cientista. O trabalho dele estava, ultimamente, a consumir grandes quantidades de energia eléctrica, mas abstive-me de lhe perguntar as razões. — Köhler fez rodar a cadeira, apontando-a para a porta do gabinete. — Há, no entanto, mais uma coisa que precisa de saber antes de nos irmos embora.

Langdon não estava muito seguro de querer saber o que era. — O assassino roubou uma coisa ao Leonardo Vetra. — Uma coisa? — Venha comigo. O director voltou a conduzir a cadeira de rodas até à sala gelada

e cheia de névoa. Langdon seguiu-o, sem saber o que esperar. Köhler chegou a poucos centímetros do corpo de Vetra e deteve-se. Fez sinal a Langdon para que se lhe juntasse. Relutantemente, Langdon obedeceu, com a bflis a subir-lhe à garganta devido ao cheiro da urina da vítima.

ANJOS E DEMÓNIOS 65

— Olhe para a cara dele — disse Köhler. Olhe para a cara dele? Langdon franziu a testa. 'Não me disse que tinha

sido roubada qualquer coisa? Hesitantemente, ajoelhou-se. Tentou ver a cara de Vetra, mas a ca

beça fora torcida cento e oitenta graus e o rosto fazia pressão contra a alcatifa.

Apesar da sua deficiência, Köhler estendeu uma mão e rodou cuidadosamente a cabeça gelada. Com um estalido arrepiante, o rosto do cadáver surgiu à vista, contorcido num esgar de agonia. Köhler mante-ve-o naquela posição por alguns instantes.

— Jesus! — exclamou Langdon, erguendo-se precipitadamente e recuando, dominado pelo horror. O rosto de Vetra estava coberto de sangue. Um único olho cor de avelã olhava para ele com a fixidez da morte. A outra órbita estava rasgada e vazia.

— Roubaram-lhe um olhol

CAPITULO CATORZE

Langdon saiu do Edifício C para o ar livre, grato por estar fora do apartamento de Vetra. O Sol ajudou a dissipar a imagem da órbita vazia que se lhe gravara no cérebro.

— Por aqui, por favor — indicou Kohler, começando a subir um ingrenu .. aminho. A cadeira de rodas eléctrica parecia acelerar sem esforço. — A Vittoria deve estar a chegar a todo o momento.

Langdon estugou o passo para se manter a par dele. — Então — prosseguiu Köhler —, ainda duvida do envolvimento

dos llluminati? Langdon já não fazia ideia do que pensar. A filiação religiosa de

Vetra era indiscutivelmente perturbadora, mas nem mesmo assim conseguia convencer-se a pôr de lado todos os fragmentos de prova académica que estudara ao longo de anos. Além disso, havia o olho...

— Continuo a manter — disse, com mais veemência do que tencionara — que os ïlluminati não podem ter sido os responsáveis por este assassínio. E o olho que falta prova-o.

— O quê? — A mutilação gratuita — expHcou Langdon — é muito... pouco

llluminata. Os especialistas de cultos consideram a desfiguração sem objectivo uma prática de seitas marginais e inexperientes... zelotas que cometem actos aleatórios de terrorismo... mas os llluminati sempre foram mais ponderados.

— Ponderados? Remover cirurgicamente o globo ocular de uma pessoa não é ponderado?

— Não transmite qualquer mensagem clara. Não serve qualquer objectivo maior.

Köhler deteve a cadeira no topo da colina e voltou-a para Langdon.

ANJOS E DEMÓNIOS 67

— Doutor Langdon, acredite, aquele olho em falta serve um objectivo maior... um objectivo muito maior.

Enquanto atravessavam o cume aplanado e arrelvado da colina, chegou-lhes, vindo de oeste, o bater sincopado característico do rotor de um helicóptero. Pouco depois, o aparelho surgia à vista, descrevendo um arco por cima do vale em direcção a eles. Inclinou-se bruscamente para um lado, numa curva apertada, e ficou a pairar por cima do quadrilátero branco pintado na relva.

Langdon observava, distraído, com o cérebro a girar como as pás do rotor, perguntando a si mesmo se uma boa noite de sono bastaria para dissipar a sua actual desorientação. Fosse pelo que fosse, duvidava.

Quando os patins tocaram no chão, o piloto saltou da cabina e começou a descarregar coisas. Havia montes delas: lonas, sacos de vinil, botijas de oxigénio e o que pareciam ser caixotes cheios de equipamento de mergulho de alta tecnologia.

Langdon estava confuso. — Tudo aquilo pertence à doutora Vetra? — gritou a Köhler, por

cima do ruído dos motores. Köhler assentiu e gritou em resposta: — Estava a fazer pesquisa no mar das Baleares. — Pensava que me tinha dito que era física. — E é. Física de Interacção Biológica. Estuda a interconectividade

dos sistemas vivos. O trabalho dela está intimamente relacionado com o do pai na Física de Partículas. Ainda muito recentemente, refutou uma das teorias fundamentais de Einstein usando câmaras de filmar atómicamente sincronizadas para observar um cardume de atuns.

Langdon procurou no rosto do seu anfitrião quaisquer vestígios de humor. Einstein e atuns? Começava a perguntar a si mesmo se o X-33 não o teria, por engano, deixado no planeta errado.

Instantes depois, Vittoria Vetra saltou para o chão. Robert Langdon apercebeu-se de que aquele ia ser um dia de intermináveis surpresas. Ao apear-se do helicóptero com os seus calções de caqui e a camisola branca sem mangas, Vittoria Vetra parecia tudo menos a sisuda física que ele esperara. Esbelta e graciosa, era alta, com uma pele bronzeada e longos cabelos negros que a corrente de ar provocada pelo rotor

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agitava. O rosto era inconfundivelmente italiano — não exageradamente bonito, mas com feições fortes e telúricas que, mesmo a vinte metros de distância, pareciam transpirar sensualidade. O vento açoitava-lhe as roupas, colando-as ao corpo e realçando o torso esguio e os seios pequenos.

— A Vittoria Vetra é uma mulher dotada de uma tremenda força de vontade — disse Köhler, perecendo adivinhar o fascínio de Langdon. — Passa meses seguidos a trabalhar em sistemas ecológicos perigosos. É estritamente vegetariana e a guru residente de Hatha joga do CERN.

Hatha joga?, espantou-se Langdon. A antiga arte budista da relaxação meditativa parecia uma estranha competência para uma física, filha de um padre católico.

Ficou a vê-la aproximar-se. Estivera obviamente a chorar e tinha os olhos negros e profundos cheios de emoções que Langdon não conseguia identificar. Mesmo assim, avançava para eles com determinação e autocontrolo. Os membros fortes e flexíveis irradiavam a saudável luminescência da pele mediterrânica que desfrutara de longas horas ao sol.

— Vittoria — disse Köhler, quando ela se aproximou —, as minhas mais sentidas condolências. É uma perda terrível para a ciência... para todos nós aqui no CERN.

Ela assentiu com a cabeça, num gesto de agradecimento. Quando falou, a voz foi suave — um inglês gutural, com um ligeiríssimo sotaque:

— Já sabem quem foi o responsável? — Ainda estamos a tratar disso. Vittoria voltou-se para Langdon, oferecendo-lhe uma mão esguia. — Chamo-me Vittoria Vetra. É da Interpol, presumo? Langdon pegou-lhe na mão, momentaneamente fascinado pela pro

fundidade líquida daqueles olhos. — Robert Langdon — disse, e ficou sem saber o que mais acres

centar. — O senhor Langdon não pertence à polícia — explicou Köhler.

— É um especialista vindo dos Estados Unidos. Está aqui para ajudar--nos a identificar o responsável por esta situação.

Vittoria pareceu pouco segura. — E a polícia? Köhler suspirou, mas não respondeu.

ANJOS E DEMÓNIOS 69

— Onde está o corpo? — perguntou ela. — Estão a tratar dele. A mentira, ainda que inofensiva, surpreendeu Langdon. — Quero vê-lo. — Vittoria — disse Köhler —, o seu pai foi brutalmente assassina

do. É melhor recordá-lo tal como era. Vittoria começou a falar, mas foi interrompida. — Eh, Vittoria! — gritaram vozes à distância. — Bem-vinda a casa! Voltou-se. Um grupo de cientistas que passava perto do heliporto

acenou-lhe alegremente. — Refutaste mais alguma das teorias de Einstein? — gritou um

deles. — O teu pai deve estar orgulhoso — acrescentou outro. Vittoria fez-lhes um aceno embaraçado, enquanto passavam. Vol

tou-se então para Köhler com um rosto onde se espelhava a confusão. — Ainda ninguém sabe? — Decidi que a discrição era essencial. — Não disse ao pessoal que o meu pai foi assassinado^ — A voz

surpreendida tinha agora uma nota de fúria. O tom de Köhler endureceu instantaneamente. — Talvez esteja a esquecer, doutora Vetra, que logo que eu comu

nique o assassínio, haverá uma investigação no CERN. Incluindo uma revista minuciosa ao laboratório do seu pai. Sempre tentei respeitar a privacidade que ele me pediu. O seu pai disse-me apenas duas coisas a respeito do vosso actual projecto. Uma, que tinha potencial para proporcionar ao CERN milhões de francos em contratos de licenciamento ao longo da próxima década. A outra foi que não estava ainda pronto para divulgação pública, por se tratar de uma tecnologia perigosa. Considerando estes dois factos, preferia não ter desconhecidos a meter o nariz no laboratório dele ou a roubar-lhe o projecto ou deixar-se matar na tentativa e responsabilizarem o CERN. Fui suficientemente claro?

Vittoria ficou a olhar, sem dizer palavra. Langdon sentiu nela uma relutante aceitação da lógica de Köhler.

— Antes de comunicarmos seja o que for às autoridades — continuou Köhler — preciso de saber no que estavam os dois a trabalhar. Preciso que nos leve ao seu laboratório.

70 DAN BROWN

— O laboratório é irrelevante — respondeu ela. — Ninguém sabia o que eu e o meu pai estávamos a fazer. A experiência não pode ter qualquer espécie de relação com o assassínio.

Kohler deixou escapar um suspiro áspero, doentio. — As provas sugerem o contrário. — Provas? Que provas? Langdon estava a fazer a si mesmo a mesma pergunta. Kohler limpou a boca com o lenço. — Vai ter de confiar em mim — disse. Foi evidente, pelo olhar furioso de Vittoria, que não confiava.

CAPÍTULO QUINZE

Langdon seguiu silenciosamente Kohler e Vittoria até ao átrio principal onde a sua bizarra visita começara. As pernas de Vittoria moviam--se com fluida eficiência — como as de um saltador olímpico —, uma capacidade, imaginou Langdon, sem dúvida nascida da flexibilidade e do autocontrolo da ioga. Ouvia-a respirar lenta e deliberadamente, como se estivesse de algum modo a tentar filtrar o seu desgosto.

Queria dizer-lhe qualquer coisa, oferecer-lhe a sua compreensão. Também ele conhecera, havia já muito tempo, o súbito vazio de perder o pai. Lembrava-se sobretudo do funeral, chuvoso e cinzento. A casa estava cheia de homens vestidos de cinzento, do escritório, homens que lhe apertavam a mão com demasiada força. Todos eles murmuravam palavras como cardíaco e stress. A mãe dizia, num tom que queria ser de brincadeira, apesar dos olhos avermelhados pelas lágrimas, que para acompanhar as flutuações da bolsa lhe bastara sempre pegar na mão do marido... O pulso dele era a sua tabela de cotações privada.

Uma vez, quando o pai era ainda vivo, ouvira a mãe pedir-lhe que «parasse e cheirasse as rosas». Nesse ano, no Natal, comprara para o pai uma pequena rosa de vidro. Era a coisa mais bela que alguma vez vira... o modo como o Sol a atravessava, desenhando um arco-íris de cores na parede. «É muito bonita», dissera o pai ao abrir o embrulho, beijando-o na testa. «Vamos arranjar um lugar seguro para ela.» E então colocara cuidadosamente a rosa numa alta e poeirenta prateleira, no canto mais escuro da sala de estar. Uns dias mais tarde, Langdon trepara para cima de um banco, tirara a rosa e fora devolvê-la à loja. O pai nunca chegara a aperceber-se do seu desaparecimento.

O aviso sonoro de um elevador fê-lo voltar ao presente. Vittoria e Köhler, à frente dele, já tinham entrado. Langdon hesitou diante das portas abertas.

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— Passa-se alguma coisa? — perguntou Kohler, parecendo mais impaciente do que preocupado.

— Não, nada — respondeu Langdon, obrigando-se a entrar na acanhada cabina. Só usava elevadores quando era absolutamente necessário. Preferia os espaços mais abertos das escadas.

— O laboratório do doutor Vetra é subterrâneo — explicou Köhler. Estupendo, pensou Langdon enquanto passava por cima da frincha

do chão, sentindo nas pernas o vento frio que subia das profundezas do poço do elevador. As portas fecharam-se e a cabina começou a descer.

— Seis andares — disse Köhler numa voz átona, como um robô. Langdon imaginou a escuridão do poço vazio por baixo deles.

Tentou bloquear este pensamento olhando fixamente para o pequeno mostrador onde se sucediam em algarismos vermelhos o número dos pisos. Estranhamente, o painel tinha apenas dois botões: PISO TÉRREO eLHC.

— O que significa LHC? — perguntou, esforçando-se por não parecer nervoso.

— Large Hadron Collider — respondeu Köhler. — É um acelerador de partículas.

Acelerador depart/culas? Langdon conhecia vagamente o termo. Ouvi-ra-o pela primeira vez durante um jantar com alguns colegas na Dunster House, em Cambridge. Um dos membros do grupo, um físico chamado Bob Brownell, aparecera no tal jantar lívido de raiva.

— Cancelaram-no, os filhos da mãe! — desabafara. — Cancelaram o quê? — perguntaram eles em coro. — O ssc! — O quê? — O Superconducting Super CoUider! Alguém encolhera os ombros. — Não sabia que Harvard estava a construir um. — Não era Harvard, eram os Estados Unidos! Ia ser o maior ace

lerador de partículas do mundo! Um dos projectos científicos mais importantes do século! Dois bi/iões de dólares já gastos e o Senado liquida o projecto! A culpa é dos lobbies desses malditos fundamentalistas religiosos!

Quando, finalmente, acalmara um pouco, Brownell explicara que um acelerador de partículas era um grande mbo circular ao longo do

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qual eram aceleradas partículas subatómicas. Imanes distribuídos por toda a circunferência do tubo eram ligados e desligados em rápida sucessão de modo a «empurrarem» as partículas até que elas atingiam velocidades tremendas. Na aceleração máxirna, as partículas circulavam pelo tubo a mais de duzentos e noventa mil quilómetros por segundo.

— Mas isso é quase a velocidade da luz! — exclamara um dos professores.

— Pois é — dissera Brownell. Explicara então que acelerando duas partículas em direcções opostas e fazendo-as colidir, os cientistas conseguiam decompô-las nas suas partes constituintes e ter um vislumbre dos componentes fundamentais da natureza.

— Os aceleradores de partículas — concluíra Brownell — são essenciais para o fumro da ciência. A colisão de partículas é a chave para a compreensão dos elementos com que foi construído o Universo.

O Poeta Residente de Harvard, um homem tranquilo chamado Charles Pratt, não parecera impressionado.

— A mim parece-me — dissera —, uma abordagem bastante nean-dertalense à ciência... do género de esmagar relógios um contra o outro para ver as engrenagens internas.

Brownell deixara cair o garfo e saíra da sala, furioso.

O CERN tem então um acelerador de partículas"^, pensava Langdon enquanto o elevador continuava a descer. Um tubo circular para esmagar partículas. Perguntou a si mesmo por que razão o teriam enterrado tão fundo.

Quando a cabina se deteve com um ligeiro estremeção, ficou aliviado por voltar a sentir terra firme debaixo dos pés. Mas quando as portas se abriram, o seu alívio evaporou-se. Robert Langdon deu por si mais uma vez no limiar de um mundo totalmente alienígena.

O corredor estendia-se até ao infinito em ambas as direcções, para a direita e para a esquerda. Era um túnel de cimento liso, suficientemente largo para permitir a passagem de um camião de dezoito rodas. Brilhantemente uuminado no ponto onde se encontravam, tornava-se escuro como breu mais para diante. E daquela escuridão soprava um vento húmido — um perturbador sinal de que estavam nas profunde-

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zas da terra. Langdon quase conseguia sentir o peso do solo e da rocha suspenso sobre a sua cabeça. Por um instante, voltou a ter nove anos... a escuridão fê-lo recuar no tempo... até às cinco horas de esmagador negrume que continuavam a assombrá-lo. Cerrando os punhos, lutou contra a sensação.

Vittoria continuou calada enquanto saía do elevador e avançava decididamente para a escuridão, sem esperar por eles. As luzes fluorescentes do tecto acendiam-se uma a uma, para lhe iluminar o caminho. Lang-don achou o efeito fantasmagórico, como se o túnel estivesse vivo... antecipando-se aos movimentos dela. Ele e Köhler seguiram-na a alguma distância. As luzes apagavam-se automaticamente atrás deles.

— O tal acelerador de partículas, fica algures neste túnel? — perguntou Langdon, em voz baixa.

Köhler apontou para um refulgente tubo cromado que corria ao longo da parede interior do túnel.

— Aí o tem. Langdon olhou para o tubo, confuso. — Aquilo é o acelerador? — O artefacto não se parecia nada com

o que imaginara. Com cerca de noventa centímetros de diâmetro, corria em linha recta, horizontalmente, a todo o comprimento visível do túnel, antes de desaparecer na escuridão. Parece mais um esgoto de alta--tecnologia, pensou. — Pensava que os aceleradores de partículas eram anulares.

— Este acelerador é um círculo — respondeu Köhler. — Parece recto, mas trata-se de uma ilusão de óptica. A circunferência do túnel é tão grande que a curva se torna imperceptível... como a da Terra.

Langdon estava estupefacto. Isto é um arculo? — Mas... deve ser enorme! — O LHC é a maior máquina do mundo. Langdon como que rebobinou. Lembrou-se de o puoto do CERN

ter dito qualquer coisa a respeito de uma gigantesca máquina enterrada no chão. Mas...

— Tem mais de oito quilómetros de diâmetro... e vinte e sete quilómetros de comprimento.

Langdon tinha a cabeça a andar à roda. — Vinte e sete quilómetros? — Olhou para Köhler, e depois para

o túnel mergulhado em escuridão que se estendia à sua frente. — Este

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túnel tem vinte e sete quilómetros de comprimento? Isso... isso é mais de dezasseis milhas!

Köhler assentiu. — Descreve um círculo perfeito. Passa por território francês antes

de regressar a este ponto. As partículas aceleradas ao máximo percorrem o tubo mais de dez mil vezes por segundo antes de colidirem.

Langdon sentiu as pernas como que de borracha ao olhar para as profundezas do túnel.

— Está a dizer-me que o CERN removeu milhões de toneladas de terra só para atirar pequenas partículas umas contra as outras?

Köhler encolheu os ombros. — Por vezes, para encontrar a verdade, é preciso mover montanhas.

CAPITULO DEZASSEIS

A centenas de quilómetros do CERN, uma voz crepitou num recep-tor-transmissor:

— Okay, estou no corredor. O técnico que vigiava o painel de monitores premiu o botão de

transmissão. — Procura a câmara 86. Deverá estar ao fundo do corredor. Seguiu-se um longo silêncio. O técnico que esperava tinha a testa

coberta por uma fina camada de suor. Finalmente, o rádio emitiu um estalido.

— A câmara não está cá — disse a voz. — Mas estou a ver o sítio onde estava montada. Alguém deve tê-la tirado.

O técnico deixou escapar o ar que estivera a reter nos pulmões. — Obrigado. Aguenta aí um segundo, está bem? Com um suspiro, voltou a dirigir a sua atenção para o painel de mo

nitores. Grandes partes do complexo estavam abertas ao público, e aquela não era a primeira vez que desapareciam câmaras sem-fios, habitualmente roubadas por visitantes «brincalhões» em busca de souvenirs. Mas logo que a câmara era levada para fora do seu raio de alcance, o sinal perdia-se e o monitor correspondente ficava branco. Perplexo, o técnico olhava para o ecrã. A câmara 86 continuava a emitir uma imagem perfeitamente nítida.

Se a câmara foi roubada, interrogou-se, por que é que continuamos a rece

ber o sinal? Sabia, claro, que só podia haver uma explicação. A câmara continuava no interior do complexo, e alguém se limitara a mudá-la de lugar. Mas quem? E porquê?

Esmdou o monitor por um longo momento. Finalmente, pegou no rádio.

— Há armários na escada? Aparadores, ou recantos escuros?

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A voz que respondeu parecia confusa. — Não. Porquê? O técnico franziu o sobrolho. — Nada, não tem importância. Obrigado pela ajuda. Sabia, considerando o pequeno tamanho do aparelho e o facto de

funcionar sem fios, que a câmara 86 podia estar em qualquer lugar dentro do apertadamente vigiado complexo — um conjunto compacto de trinta e dois edifícios diferentes distribmdos por um espaço com oitocentos metros de raio. A única pista era que parecia ter sido colocada num sítio escuro. O que, evidentemente, não constituía grande ajuda. O complexo possuía um número infindável de sítios escuros — arrecadações, condutas de aquecimento, barracões de jardinagem, armários e até um labirinto de túneis subterrâneos. Era muito possível que passassem semanas antes que a câmara 86 fosse encontrada.

Mas esse é o mais pequeno dos meus problemas, pensou o técnico. Por muito confuso que fosse o dilema posto pela relocalização da

câmara, havia uma outra questão mais perturbadora e imediata. O técnico olhou para a imagem que a câmara estava a transmitir. Era um objecto estacionário. Um artefacto de aspecto moderno, diferente de tudo o que conhecia. Estudou o mostrador electrónico que piscava junto à base daquela coisa.

Apesar de ter sido rigorosamente treinado para enfrentar situações de tensão, sentiu o pulso acelerar. Não entres em pânico, ordenou a si mesmo. Tinha de haver uma explicação. O objecto parecia demasiado pequeno para constituir um perigo significativo. De todos os modos, a sua presença dentro do complexo era permrbadora. Muito perturbadora, de facto.

A.inda por cima hoje, pensou. A segurança era sempre uma prioridade absoluta para o seu em

pregador, mas naquele dia, mais do que em qualquer outro dos últimos doze anos, revestia uma importância crucial. O técnico olhou para o objecto durante muito tempo e sentiu o ribombar de uma tempestade que se formava ao longe.

Então, a transpirar, pegou no telefone e marcou o número do seu superior.

CAPÍTULO DEZASSETE

Poucos filhos poderão dizer que se lembram do dia em que conheceram o pai, mas Vittoria Vetra podia. Tinha oito anos, e vivia onde sempre tinha vivido, no Orfanotrofio di Siena, um orfanato católico perto de Florença, abandonada pelos pais que nunca conhecera. O dia estava chuvoso. As freiras já a tinham chamado duas vezes para o jantar, mas ela, como sempre, fingira não ouvir. Estava lá fora estendida no pátio, a olhar para as gotas de chuva... a senti-las baterem-lhe no corpo... a tentar adivinhar onde a próxima acertaria. As freiras voltaram a chamar, ameaçando que uma pneumonia era bem capaz de tornar uma menina insuportavelmente casmurra muito menos curiosa a respeito das coisas da natureza.

Não as ouço, pensou Vittoria. Estava encharcada até aos ossos quando o jovem padre saiu para

a ir buscar. Não o conhecia. Era novo no orfanato. Esperava que ele a agarrasse por um braço e a arrastasse para dentro. Mas não. Em vez disso, para seu enorme espanto, estendeu-se no chão ao lado dela, ensopando as roupas na poça.

— Dizem que fazes muitas perguntas — disse o jovem sacerdote. Vittoria franziu a testa. — É mau fazer perguntas? Ele riu-se. — Parece que têm razão. — O que está aqui a fazer? — O mesmo que tu... a perguntar porque caem as gotas de chuva. — Não estou a perguntar porque é que elas caem! Já sei! O padre lançou-Ihe um olhar espantado. — Sabes? — A irmã Francisca diz que as gotas de chuva são lágrimas dos an

jos que caem do céu para lavar os nossos pecados. — Uau! — exclamou ele, espantado. — Então é isso.

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— Não, não é! — atirou-lhe ela. — As gotas de chuva caem porque tudo cai. Tudo cai. Não é só a chuva!

O padre coçou a cabeça, com um ar perplexo. — Sabes uma coisa? Tens razão. Tudo cai. Deve ser por causa da

gravidade. — Por causa do quê? O padre olhou para ela, surpreendido. — Nunca ouviste falar da gravidade? — Não. Ele encolheu tristemente os ombros. — É uma pena. A gravidade responde a \im2L porção de perguntas. Vittoria sentou-se. — O que é a gravidade? — exigiu saber. — Diga-me! O padre piscou-lhe um olho. — E que tal se eu te dissesse enquanto jantamos? O jovem padre era Leonardo Vetra. Apesar de ter sido o melhor

aluno a Física na universidade, respondera a um outro apelo e entrara para o seminário. Leonardo e Vittoria tornaram-se amigos inesperados no solitário mundo das freiras e dos regulamentos. Vittoria fazia-o rir, e ele tomou-a sob a sua protecção, ensinando-lhe que as coisas belas como os arco-íris e os rios tinham muitas explicações. Falou-lhe da luz, dos planetas, das estrelas e de toda a natureza através dos olhos de Deus e da ciência. O intelecto e a curiosidade inatos de Vittoria faziam dela uma aluna cativante. Leonardo protegia-a como a uma filha.

Vittoria também estava feUz. Nunca conhecera a alegria de ter um pai. Enquanto todos os outros adultos respondiam às suas perguntas com uma repreensão, Leonardo passava horas a mostrar-lhe livros. Até se interessava pelas ideias dela. Vittoria pedia a Deus que ele nunca se fosse embora. Mas, um dia, o seu pior pesadelo tornou-se realidade. O padre Leonardo disse-lhe que ia deixar o orfanato.

— Vou para a Suíça — explicou. — Tenho uma bolsa para estudar Física na Universidade de Genebra.

— Física! — gritou Vittoria. — Pensei que amava Deus! — E amo, muito. É por isso que tenho de estudar os seus divinos regu

lamentos. As leis da Física são a tela em que Deus pinta a sua obra-prima. Vittoria ficou desolada. Mas o padre Leonardo tinha outras novi

dades. Disse-lhe que falara com os seus superiores, e que estes tinham concordado que poderia adoptá-la.

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— Gostavas que eu te adoptasse? — perguntou-lhe Leonardo. — O que é que quer dizer adoptar? O padre Leonardo expHcou-lhe. Vittoria abraçou-o durante cinco minutos, a chorar lágrimas de

alegria. — Oh, sim! Sim! Leonardo disse-Ihe que teria de deixá-la por algum tempo, enquan

to preparava a casa dos dois na Suíça, mas que mandaria buscá-la dentro de seis meses. Foi a espera mais longa de toda a vida de Vittoria, mas Leonardo cumpriu a sua palavra. Cinco dias antes do seu nono aniversário, mudou-se para Genebra. Estudava no Colégio Internacional de Genebra durante o dia, e à noite aprendia com o pai.

Três anos mais tarde, Leonardo Vetra foi contratado pelo CERN.

Mudaram-se os dois para um país de maravilhas que a jovem Vittoria nunca sonhara que pudesse sequer existir.

Vittoria Vetra caminhava, entorpecida, pelo túnel do LHC. Via o seu reflexo distorcido no tubo cromado e sentiu a ausência do pai. Normalmente, vivia num estado de calma profunda, em harmonia com o universo à sua volta. Agora, porém, de repente, nada fazia sentido. As últimas três horas eram como uma mancha difusa.

Eram dez da manhã nas ilhas Baleares quando recebera o telefonema de Köhler. O seu pai foi assassinado. Venha imediatamente. Apesar do calor escaldante que esbraseava o convés do barco, as palavras tinham--na gelado até aos ossos. E o tom desapaixonado de Köhler magoara-a tanto como a notícia.

Agora, voltara a casa. Mas que casa? O CERN, o seu mundo desde que tinha doze anos, parecia-lhe subitamente um lugar desconhecido. O pai, o homem que o tornava mágico, tinha desaparecido.

Inspirações profundas, disse a si mesma, mas não conseguia acalmar a mente. As perguntas rodopiavam mais depressa, sempre mais depressa. Quem lhe assassinara o pai? E porquê? Quem era aquele «especialista» americano? Porque insistia Köhler em visitar o laboratório?

Köhler falara de provas que relacionavam o assassínio com o projecto em curso. Que provas? Ninguém sabia em que estávamos a trabalhar! E mesmo que alguém descobrisse, porque haveriam de matá-lo?

ANJOS E DEMÓNIOS 81

Enquanto percorria o túnel do LHC em direcção ao laboratório, percebeu que estava a preparar-se para revelar uma das maiores realizações do pai sem a presença dele. Imaginara aquele momento muito diferente. Imaginara o pai a convocar os mais brilhantes cientistas do CERN ao seu laboratório e a mostrar-lhes a sua descoberta, vendo as expressões de assombro e admiração. Então sorriria com orgulho paternal e explicaria que fora uma das ideias dela que o ajudara a tornar realidade o seu projecto... que 2L filha fora essencial para o seu êxito. Sentiu um nó apertar-lhe a garanta. Deveríamos partilhar este momento, eue o meu pai. Mas ali estava ela sozinha. Sem colegas. Sem rostos felizes. Apenas um americano desconhecido e Maximilian Kohler.

Maximilian Kohler. Der König. Vittoria sempre o detestara, desde criança. Apesar de ter acabado

por lhe respeitar o poderoso intelecto, os seus modos gélidos sempre lhe tinham parecido inumanos, a antítese exacta do calor que o pai dela emanava. Köhler esmdava ciência pela sua lógica imaculada... Leonardo Vetra pelas suas maravilhas espirituais. E no entanto, estranhamente, sempre parecera haver um respeito tácito entre os dois homens. O génio, explicara-lhe certa vez alguém, aceita o génio incondicionalmente.

O génio, pensou. O meu pai... o papá. Morto. O acesso ao laboratório de Leonardo Vetra era um comprido e es

téril corredor inteiramente pavimentado com azulejos brancos. Lang-don sentiu-se como se estivesse a entrar num qualquer hospício subterrâneo para loucos. Ao longo das paredes havia dúzias de imagens emolduradas, a preto e branco. Apesar de ter feito a sua carreira a estudar imagens, aquelas eram-lhe totalmente alheias. Pareciam negativos caóticos de faixas e espirais aleatórias. Arte moderna?, pensou, meio ironicamente. Jackson Pollock depois de uma dose de anfetaminas?

— Diagramas de dispersão — disse Vittoria, tendo aparentemente notado o interesse dele. — Representações computadorizadas de colisões de partículas. Esta é a partícula-z — acrescentou, apontando para um débil rastro quase invisível no meio da confusão. — O meu pai descobriu-a há cinco anos. Energia pura... nenhuma massa. E bem possível que se trate do mais pequeno elemento constitutivo da natureza. A matéria é apenas energia aprisionada.

A matéria é energia? Langdon inclinou a cabeça para um lado. Soa muito zen. Olhou para o levíssimo traço na fotografia e pòs-se a pensar

82 DAN BRO\XTS!

no que diriam os seus amigos do Departamento de Física de Harvard quando lhes dissesse que passara o fim-de-semana num Grande Coli-sionador de Hadrões a admirar partículas-Z.

— Vittoria — disse Köhler, quando se aproximavam da imponente porta de aço do laboratório —, devo dizer-lhe que vim cá esta manhã, à procura do seu pai.

Vittoria corou muito ligeiramente. — Veio? — Sim. E imagine a minha surpresa quando descobri que ele tinha

substituído a fechadura de segurança padrão do CERN por outra coisa. — Estava a apontar para um complicado aparelho electrónico montado ao lado da porta.

— Peço desculpa — disse ela. — Sabe como ele era em questões de privacidade. Não queria que mais ninguém além de nós dois pudesse aqui entrar.

— Muito bem. Abra a porta — disse Köhler. Vittoria ficou imóvel por um longo momento. Então, inspirando

fundo, avançou para o mecanismo na parede. Langdon não estava de modo algum preparado para o que acon

teceu a seguir. Vittoria aproximou-se do aparelho e alinhou cuidadosamente o olho

direito com uma lente saliente, que fazia lembrar um telescópio. Depois, premiu um botão. Dentro da máquina, qualquer coisa fez clique. Um feixe de luz percorreu o olho para trás e para a frente, como uma fotocopiadora.

— Exame da retina — explicou ela. — Segurança infalível. Autorizado para apenas dois padrões oculares. O meu e o do meu pai.

Horrorizado, Langdon compreendeu. A imagem de Leonardo Ve-tra encheu-lhe o cérebro com os horrendos pormenores: o rosto ensanguentado, o único olho cor de avelã a olhar sem ver, a órbita vazia. Tentou rejeitar a verdade óbvia, mas então viu-as... por baixo do scanner nos azulejos brancos do chão... pequeníssimas gotas vermelhas. Sangue seco.

Vittoria, felizmente, não reparou. A porta de aço deslizou para um lado e ela entrou. Köhler olhava para Langdon com uma expressão de pedra. A men

sagem era claríssima: Como lhe disse... o olho roubado serve um objectivo maior.

CAPITULO DEZOITO

A mulher tinha as mãos amarradas, os pulsos violáceos e inchados devido ao atrito dos cordões. O Hashashin de pele cor de mogno estava deitado ao lado dela, esgotado, a admirar a nudez do seu prémio. Perguntou a si mesmo se a sonolência dela não seria apenas uma mentira, uma tentativa patética de evitar voltar a servi-lo. Não queria saber. Tivera uma recompensa suficiente. Saciado, sentou-se na cama.

No j'íApaís, as mulheres eram objectos. Fracas. Ferramentas de prazer. Gado que se podia comprar e vender como qualquer outro. Mas ali, na Europa, fingiam uma força e uma independência que o divertiam e ao mesmo tempo o excitavam. Forçá-las à submissão física era uma gratificação que muito apreciava.

Agora, saciada a luxúria, o Hashashin sentiu um outro apetite crescer dentro dele. Matara na noite anterior, matara e mutilara, e, para ele, matar era como heroína... cada encontro satisfazia-o apenas temporariamente antes de aumentar a fome por mais. A excitação esvaíra-se, a fome voltara.

Estudou a mulher adormecida deitada a seu lado. Ao passar a palma da mão pelo pescoço dela, sentiu-se excitado pela percepção de que podia pôr fim àquela vida num instante. Que diferença faria? Ela era sub-humana, um mero veículo de prazer e serviço. Os dedos fortes rodearam a garganta, saboreando a ligeira palpitação. Então, combatendo o desejo, retirou a mão. Havia trabalho a fazer. Serviço a prestar a uma causa mais elevada do que o seu próprio prazer.

Enquanto saía da cama, pensava na honra do trabalho que o aguardava. Não conseguia sequer imaginar a influência daquele homem chamado Janus e da antiga Irmandade que chefiava. A Irmandade que, espantosamente, o escolhera a ele. Tinham tido conhecimento do seu

84 DAN BROWN

Ódio... e das suas capacidades. Como, não sabia. As raives deles chegam longe.

E, agora, tinham-lhe concedido a honra derradeira. Seria a voz e as mãos deles. O assassino e o mensageiro deles. Aquele que o seu povo conhecia como Malk al-haq: o Anjo da Verdade.

CAPITULO DEZANOVE

O laboratório dos Vetra era loucamente futurista. De um branco ofuscante e cercado a toda a volta por computado

res e equipamento electrónico especializado, parecia uma espécie de sala de comando. Langdon perguntou a si mesmo que segredos guardaria aquele lugar que justificassem arrancar um olho a alguém para conseguir lá entrar.

Köhler parecia pouco à-vontade, dardejando nervosamente os olhos em redor, como que a procurar sinais de um intruso. Mas o laboratório estava deserto. Também Vittoria se movia lentamente... como se aquele espaço lhe parecesse desconhecido sem o pai lá dentro.

O olhar de Langdon pousou imediatamente no centro da sala, onde uma série de curtos pilares se erguia do chão. Como um Stomhenge em miniatura, cerca de uma dúzia de colunas de aço polido formava um círculo. Tinham aproximadaniente noventa centímetros de altura e fizeram lembrar a Langdon expositores de museu para pedras preciosas. Cada um deles suportava um grosso recipiente transparente mais ou menos do tamanho de uma embalagem de bolas de ténis. Pareciam vazios.

Köhler estudou os recipientes, com uma expressão intrigada. Decidiu, aparentemente, ignorá-los naquele momento. Voltou-se para Vittoria.

— Foi roubada alguma coisa? — Roubada? Como? — argumentou ela. — O analisador de retina

só permite a entrada a nós os dois. — Procure bem. Vittoria suspirou e examinou a sala por alguns momentos. Enco

lheu os ombros. — Parece tudo como o meu pai costuma deixar. Um caos orde

nado.

86 DAN BROWN

Langdon sentiu que Kohler estava a avaliar as suas opções, perguntando a si mesmo até que ponto poderia pressionar Vittoria... e o que dizer-lhe. Acabou obviamente por resolver deixar as coisas como estavam, até mais ver, pois levou a cadeira de rodas até ao centro da sala e pôs-se a examinar o misterioso conjunto de recipientes aparentemente vazios.

— Os segredos — disse, por fim — são um luxo que não podemos continuar a permitir-nos.

Vittoria assentiu, parecendo de repente muito emocionada, como se o estar ali arrastasse consigo uma torrente de recordações.

Dê-lhe um minuto, pensou Langdon. Como que a preparar-se para o que ia revelar, Vittoria fechou os

olhos e inspirou fundo. E expirou devagar. E voltou a inspirar e a expirar. Mais uma vez...

Langdon observava-a, subitamente preocupado. Yíla está bem? Lançou um olhar a Köhler, que permanecia impassível, tendo já, tudo o indicava, assistido a este ritual noutras ocasiões. Passaram dez segundos antes que Vittoria voltasse a abrir os olhos.

Langdon não queria acreditar na metamorfose. Vittoria Vetra trans-formara-se. Os lábios cheios estavam relaxados, os ombros descaídos, os olhos suaves e pacificados. Era como se tivesse reaHnhado todos os músculos do corpo para aceitar a situação. O fogo do ressentimento e da angústia pessoal extinguira-se e como que desaparecera, submergido por uma calma profiinda, aquática.

— Por onde começar... — disse, numa voz serena. — Pelo princípio — sugeriu Köhler. — Fale-nos da experiência

do seu pai. — Conciliar a ciência e a religião sempre foi o sonho da vida do

meu pai — começou Vittoria. — Esperava conseguir provar que a ciência e a religião são dois campos perfeitamente compatíveis... duas abordagens diferentes para descobrir a mesma verdade. — Fez uma pausa, como que incapaz de acreditar no que se preparava para dizer. — E, recentemente... descobriu uma maneira de fazer isso mesmo.

Köhler manteve-se silencioso. — Concebeu uma experiência, que, esperava ele, resolveria de vez

um dos mais amargos conflitos da História da Ciência e da Religião.

ANJOS E DEMÓNIOS 87

Langdon perguntou a si mesmo a que conflito estaria ela a referir--se. Havia tantos.

— O criacionismo — declarou Vittoria. — A batalha sobre como nasceu o Universo.

Oh, o debate, pensou Langdon. — A Bíblia, claro, afirma que Deus criou o Universo — expucou

ela. — Deus disse: «Faça-se luz», e tudo o que vemos surgiu de um enorme vazio. Infelizmente, uma das leis fundamentais da Física estipula que não é possível criar matéria a partir do nada.

Langdon já lera a respeito deste impasse. A ideia de Deus ter alegadamente criado «qualquer coisa a partir de coisa nenhuma» contrariava frontalmente leis aceites da Física moderna, pelo que, afirmavam os cientistas, o Génesis era cientificamente absurdo.

— Senhor Langdon — disse Vittoria, voltando-se para ele —, assumo que conhece a teoria do Bz¿ Bang?

Langdon encolheu os ombros. — Mais ou menos. — O Big Bang era, sabia-o, o modelo cientifi

camente aceite para a criação do Universo. Não afirmaria que o compreendia muito, muito bem, mas sabia que, de acordo com a teoria, um único ponto de energia altamente concentrada deflagrara numa explosão cataclísmica, expandindo-se até formar o Universo. Ou algo assim parecido.

— Quando a Igreja Católica propôs pela primeira vez a teoria do Big Bang, em 1927, o... — continuou Vittoria.

— Desculpe? — interrompeu-a Langdon, antes de conseguir con-ter-se. — Está a dizer que o Big Bang foi uma ideia católica?

Vittoria pareceu surpreendida pela pergunta. — Claro. Apresentada por um monge católico, Georges Lemaitre,

em 1927. — Mas eu pensava... — Langdon hesitou. — A teoria do Big Bang

não foi proposta pelo astrónomo de Harvard, Edwin Hubble? Kohler lançou-lhe um olhar fulminante. — Mais uma vez, a arrogancia científica americana. Hubble publi

cou em 1929, dois anos depois de Lemaitre. Langdon franziu a testa. Chamase telescopio Hubble, caro senhor. Nunca

ouvi falar de nenhum telescópio lemaitre!

88 DAN BROWN

— O doutor Kohler tem razão — disse Vittoria —, a ideia pertenceu a Lemaítre. Hubble apenas a confirmou reunindo os elementos que provavam que o í>ig Bang era cientificamente verosímil.

— Oh — murmurou Langdon, perguntando a si mesmo se os fanáticos de Hubble no Departamento de Astronomia de Harvard alguma vez referiam Lemaítre nas suas conferências.

— Quando Lemaítre propôs a teoria do Big Bang — prosseguiu Vittoria, retomando o fio do discurso —, os cientistas declararam-na totalmente ridícula. A matéria, dizia a ciência, não podia ser criada a partir do nada. Por isso, quando Hubble chocou o mundo provando que estava certa, a Igreja proclamou vitória, apresentando o facto como prova de que a BíbKa era cientificamente exacta. Era a verdade divina.

Langdon assentiu com a cabeça, agora intensamente atento. — Claro que os cientistas não gostaram de ver as suas descober

tas usadas para promover a religião, de modo que reduziram imediatamente a teoria do Big Bang a termos matemáticos, expurgando-a de todas as conotações religiosas, e reclamaram-na como sua. Infelizmente para a ciência, no entanto, as equações deles, ainda hoje, continuam a ter uma grave deficiência, que a Igreja se compraz em destacar.

— A singularidade — resmungou Köhler. Pronunciou a palavra como se fosse o veneno da sua vida.

— Sim, a singularidade — confirmou Vittoria. — O momento exacto da criação. O tempo zero. — Olhou para Langdon. — Ainda hoje, a ciência não consegue agarrar o instante inicial da criação. As nossas equações explicam de um modo muito eficaz os primeiros momentos do Universo, mas à medida que recuamos e nos aproximamos do tempo zero, de repente a nossa matemática desintegra-se e tudo deixa de fazer sentido.

— Correcto — disse Köhler, num tom cortante —, e a Igreja apresenta esta deficiência como prova do envolvimento miraculoso de Deus. Vamos ã questão.

A expressão de Vittoria tornou-se distante. — A questão é que o meu pai sempre acreditou no envolvimento

de Deus no Big Bang. Apesar de a ciência ser ainda incapaz de compreender o divino momento da criação, acreditava que um dia seria. — Apontou tristemente para um papel impresso a laser preso a um

ANJOS E DEMÓNIOS 89

painel por cima da área de trabalho do pai. — O meu pai costumava sacudir-mo debaixo do nariz sempre que eu tinha dúvidas.

Langdon leu a mensagem:

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO NÃO SÃO CONTRADITÓRIAS.

A CIÊNCIA É SIMPLESMENTE DEMASIADO JOVEM PARA COMPREENDER.

— O meu pai queria levar a ciência a um nível mais elevado — continuou Vittoria —, um nível em que a ciência apoiasse o conceito de Deus. — Passou a mão pelos longos cabelos, com uma expressão de tristeza. — Decidiu fazer algo que nenhum cientista pensou até agora fazer. Algo que nunca ninguém teve a tecnologia para fazer. — Fez uma pausa, como se não soubesse muito bem como dizer as palavras seguintes. — Concebeu uma experiência para provar que o Génesis era possível.

Provar a probabilidade do Génesis?, espantou-se Langdon. Faça-se lu^ Matéria a partir do nada?

O olhar sem vida de Köhler estava fixo no outro lado da sala. — Desculpe? — O meu pai criou um universo... a partir de coisa nenhuma. Köhler voltou vivamente a cabeça. — O quê!? — Melhor dito, recriou o Big Bang. Kohler parecia preparado para saltar da cadeira. Langdon estava oficialmente perdido. Criar um universo? Recriar o Big

Bang? — Foi feito a uma escala muito mais pequena, evidentemente —

disse Vittoria, falando agora mais depressa. — O processo foi notavelmente simples. Acelerou dois feixes ultrafinos de partículas em direcções opostas no tubo do acelerador. Os dois feixes colidiram frontalmente a uma enorme velocidade, juntando-se um ao outro e comprimindo toda a sua energia num pequeníssimo ponto. Conseguiu densidades de energia extremas. — Começou a desfiar um rol de algarismos, e os olhos de Köhler abriam-se cada vez mais.

Langdon tentava desesperadamente acompanhar o diálogo. Leonardo Vetra estava então a simular o ponto de energia comprimida a partir do qual o universo supostamente nasceu.

90 DAN BROWN

— O resultado — disse Vittoria — foi nada mais nada menos do que espantoso. Quando for publicado, abalará os próprios fundamentos da Física moderna. — Falava agora lentamente, como que saboreando a imensidade da notícia. — Sem aviso, dentro do mbo do acelerador, naquele ponto de energia altamente concentrada, começaram a aparecer, do nada, partículas de matéria.

Köhler não teve qualquer reacção. Limitava-se a olhar. — Matéria — repetiu Vittoria. — A surgir do nada. Uma incrí

vel exibição de fogo-de-artifício subatómico. Um universo miniatura a surgir para a vida. O meu pai provou não só que é possível criar matéria a partir do nada, mas também que é possível explicar o Big Bang e o Génesis aceitando simplesmente a presença de uma tremenda fonte de energia.

— Quer dizer Deus? — perguntou Köhler. — Deus, Buda, a Força, lavé, a singularidade, o ponto de unicida

de... chame-lhe o que quiser, o resultado é o mesmo. A ciência e a religião apoiam a mesma verdade: a energia pura é a origem da criação.

Quando Köhler finalmente falou, a voz dele soou sombria: — Vittoria, não sei se entendi bem. Parece estar a dizer-me que

o seu pai criou matéria... a partir do nada? — Sim. — Vittoria fez um gesto na direcção dos contentores.

— E ali está a prova. Aqueles recipientes contêm amostras da energia criada.

Köhler tossiu e aproximou-se dos contentores como um animal desconfiado a descrever círculos à volta de qualquer coisa que sentia instintivamente estar errada.

— Deixei obviamente escapar qualquer coisa — disse. — Como espera que alguém acredite que estes recipientes contêm partículas de matéria que o seu pai criou? Podiam ser partículas vindas de praticamente qualquer lado.

— Na verdade, não podiam — respondeu Vittoria, num tom confiante. — Estas partículas são únicas. São um tipo de matéria que não existe em parte alguma na Terra... logo, foram forçosamente criadas.

O rosto de Köhler alterou-se. — Vittoria, que quer dizer com um tipo de matéria? Há apenas um

tipo de matéria, e... — calou-se bruscamente. A expressão de Vittoria era triunfante.

ANJOS E DEMÓNIOS 91

— O senhor mesmo fez conferências sobre o tema, doutor Kohler. O Universo contém dois tipos de matéria. Facto científico. — Vol-tou-se para Langdon. — Senhor Langdon, que diz a Bíblia a respeito da Criação? O que foi que Deus criou?

Langdon sentiu-se pouco à-vontade, sem perceber muito bem o que tinha aquilo a ver com tudo o mais.

— Hum, Deus criou... a luz e a escuridão, o paraíso e o inferno... — Exactamente — interrompeu-o Vittoria. — Criou tudo em opos

tos. Simetria. Equilíbrio perfeito. — Voltou a olhar para Köhler. — Senhor director, a ciência afirma a mesma coisa que a religião, que o Big Bang criou tudo no Universo com um oposto.

— Incluindo a própria matéria — murmurou Köhler, como que para si mesmo.

Vittoria assentiu com a cabeça. — E quando o meu pai fez a experiência apareceram, como era

inevitável, dois tipos de matéria. Langdon perguntou a si mesmo o que quereria aquilo dizer, l^onar-

do Vetra criou o oposto da matéria?

Köhler parecia furioso. — A substância a que se refere só existe algures no Universo. Não

com certeza na Terra. E possivelmente nem sequer na nossa galáxia! — Exactamente — respondeu Vittoria. — O que prova que as par

tículas que estão dentro daqueles recipientes tiveram de ser criadas. A expressão de Köhler endureceu. — Vittoria, não está com certeza a dizer que aqueles recipientes

contêm amostras reais? — Estou. — Vittoria olhou orgulhosamente para os contentores.

— Doutor Köhler, tem ã sua frente as primeiras amostras de antimatéria do mundo.

CAPÍTULO VINTE

Segunda fase, pensou o Hashashin, caminhando pelo escuro túnel. O archote que levava na mão era um exagero. Bem o sabia. Mas

destinava-se a causar efeito. O efeito era tudo. O medo, havia muito que o descobrira, era seu aliado. O medo incapadta o inimigo mais depressa do que qualquer arma de guerra.

Não havia na passagem espelhos em que pudesse admirar o seu disfarce, mas sabia, pela sombra da veste ondulante, que era perfeito. Confundir-se com o inimigo fazia parte do plano... parte da perversidade da intriga. Nunca, nem nos seus sonhos mais loucos, imaginara desempenhar aquele papel.

Duas semanas antes, teria considerado impossível a missão que o esperava no fim daquele túnel. Uma missão suicida. Como entrar nu no covil de um leão. Mas Janus alterara a definição de impossível.

Tinham sido muitos os segredos que Janus partilhara com o Hashashin ao longo das duas últimas semanas... e aquele túnel era apenas um deles. Antigo, mas ainda perfeitamente utilizável.

Enquanto se aproximava do seu inimigo, o Hashashin interrogava--se sobre se o que o esperava lá dentro seria tão fácil como Janus prometera. Janus assegurara-lhe que alguém no interior trataria de fazer o necessário. Alguém no interior. Incrível. Quanto mais pensava nisso, mais se apercebia de que era uma brincadeira de crianças.

Wahad... tintain... thalatha... arhaa, disse para si mesmo em árabe, avançando para o fim do túnel. Um... dois... três... quatro...

CAPITULO VINTE E UM

— Pressinto que já ouviu falar de antimatéria, senhor Langdon? — Vittoria estava a observá-lo. A pele bronzeada da jovem contrastava vivamente com a brancura do laboratório.

Langdon ergueu os olhos. De repente, estava como que aturdido. — Sim. Bem... de certo modo. Um ligeiro sorriso perpassou pelos lábios dela. — Costuma ver o Star Trek. Langdon corou. — Bem, os meus alunos gostam... — Franziu a testa. — Não é a an

timatéria que propulsiona a U. S. S. Enterprise? Vittoria assentiu. — A boa ficção-científica assenta na boa ciência. — Então a antimatéria é real? — Um facto da natureza. Tudo tem um oposto. Os protões têm os

electrões. Os up-quarks têm os down-quarks. Há uma simetria cósmica ao nível subatómico. A antimatéria é ojin para oyang da matéria. Equilibra a equação física.

Langdon pensou na crença de Galueu na dualidade. — Desde 1918 que os cientistas sabem — continuou Vittoria —

que o Big Bang criou dois tipos de matéria. Um deles é o que vemos na Terra, que constitui as rochas, as árvores, as pessoas. O outro é o seu inverso... idêntica à primeira em todos os aspectos menos num: as cargas das suas partículas são invertidas.

Köhler falou como se emergisse de um denso nevoeiro. A voz dele soou subitamente trémula.

— Mas há enormes barreiras tecnológicas ao arma^namento de antimatéria. Como resolveram o problema da neutralização?

— O meu pai criou um vácuo de polaridade invertida para extrair os positrões de antimatéria do acelerador antes que eles decaíssem.

94 DAN BROWN

Kohler franziu a testa. — Mas um vácuo arrastaria também a matéria. Não haveria modo

de separar as partículas. — Aplicou um campo magnético. A matéria desviou-se para a di

reita, a antimatéria para a esquerda. Têm polaridades opostas. Neste instante, a parede de dúvida de Köhler pareceu fender-se.

Olhou para Vittoria com evidente espanto e então, sem aviso, foi sacudido por um acesso de tosse.

— Incrí... vel... — disse, limpando a boca. — E no entanto... — Era como se a sua lógica continuasse a resistir. — No entanto, mesmo que o YÍCUO funãonasse, estes contentores são feitos de matéria. A antimatéria não pode ser armazenada em recipientes feitos de matéria. A antimatéria reagiria instantaneamente...

— A amostra não está em contacto com o contentor — disse Vittoria, que parecia esperar a objecção. — A antimatéria está suspensa. Estes contentores chamam-se «armadilhas de antimatéria» porque prendem literalmente a antimatéria no seu centro, suspendendo-a a uma distância segura dos lados e do fundo.

— Suspensa. Mas... como? — Entre dois campos magnéticos que se intersectam. Veja. Atravessou a sala e pousou a mão num grande aparelho electró

nico. A engenhoca fez lembrar a Langdon uma arma de raios dos desenhos animados: um cano grosso, como o de um canhão, com uma mira em cima e um emaranhado de elementos electrónicos presos à parte de baixo. Vittoria alinhou a mira com um dos contentores, espreitou pelo ocular e ajustou alguns botões. Então recuou, oferecendo o lugar a Köhler.

O director do CERN parecia estupefacto. — Recolheram quantidades visíveis? — Cinco mil nanogramas — disse Vittoria. — Um plasma líquido

que contém milhões de positrões. — Milhões? Mas umas 'ponczspartículas foi tudo o que alguém con

seguiu alguma vez detectar... onde quer que fosse. — Xénon — disse Vittoria, numa voz átona. — O meu pai ace

lerou o feixe de parti'culas através de um jacto de xénon, retirando os electrões. Insistiu em manter secreto o procedimento exacto, mas envolvia injectar simultaneamente electrões em bruto no acelerador.

ANJOS E DEMÓNIOS 95

Langdon sentiu-se perdido, perguntando a si mesmo se a conversa ainda estaria a decorrer em inglês.

Köhler ficou silencioso por instantes, com as rugas da testa a ca-varem-se cada vez mais fundo. Subitamente, arquejou, e o corpo dele abateu-se, como se tivesse sido atingido por uma bala.

— Tecnicamente, isso deixaria... Vittoria assentiu com a cabeça. — Sim. Montes dela. Köhler voltou o olhar para o contentor que tinha à sua frente. Com

uma expressão de incerteza, soergueu-se um pouco na cadeira e encostou um olho ao ocular. Ficou assim durante muito tempo, sem dizer palavra. Quando finalmente voltou a recostar-se, tinha a testa húmida de suor. As rugas do rosto tinham desaparecido. A voz dele foi um murmúrio.

— Meu Deus... conseguiram realmente. Vittoria assentiu. — O meu pai conseguiu-o. — Não... não sei o que dizer. Vittoria voltou-se para Langdon. — Quer ver? — perguntou, indicando o aparelho. Sem saber o que esperar, Langdon aproximou-se. A meio metro

de distância, o contentor parecia vazio. Fosse o que fosse que estava lá dentro, era infinitesimal. Espreitou pelo ocular. A imagem tardou um instante a tornar-se m'tida.

E então viu. O objecto não se encontrava no fundo do contentor, como seria

de esperar. Flutuava no centro do mbo — suspenso em pleno ar —, um glóbulo brilhante de um Mquido semelhante ao mercúrio. Pairando como que por magia, o líquido oscilava no espaço. Minúsculas ondas metálicas percorriam-lhe a superfície. O fluido suspenso recordou a Langdon o vídeo que vira certa vez de uma gota de água em gravidade zero. Apesar de saber que o glóbulo era microscópico, conseguia ver todos os sulcos e ondulações da bola de plasma que rodava lentamente em suspensão.

— Está a... flutuar — disse. — É melhor que esteja — respondeu Vittoria. — A antimatéria é al

tamente instável. Energicamente falando, é o espelho da matéria, de

96 DAN BROWN

modo que as duas se anulam instantaneamente uma à outra quando entram em contacto. Manter a antimatéria isolada da matéria é um desafio, claro, porque tudo o que existe na Terra é feito de matéria. As amostras têm de ser armazenadas de modo a não tocarem seja no que for... nem sequer no ar.

Langdon estava estupefacto. Venham-me cà falar de trabalhar no va^io. — Estas armadilhas de antimatéria... — interrompeu Köhler, pas

sando um pálido dedo pela base de uma delas. — Foi o seu pai que as inventou?

— Na verdade, fui eu — respondeu Vittoria. Köhler ergueu os olhos. — O meu pai produziu as primeiras partículas de antimatéria —

explicou Vittoria, num tom despretensioso —, mas tinha o problema de armazená-las. Sugeri esta solução. Contentores herméticos de na-nocompósitos com imanes opostos em cada extremo.

— Parece que o génio do seu pai era contagioso. — Nem por isso. Fui buscar a ideia à natureza. A caravela portu

guesa captura peixes entre os tentáculos usando as cargas dos nema-tocistos. Apliquei aqui o mesmo princípio. Cada contentor tem dois electroimanes, um em cada extremo. Os campos magnéticos opostos intersectam-se no centro do recipiente e mantêm lá a antimatéria, suspensa no vácuo.

Langdon voltou a olhar para o mbo-contentor. Antimatéria a flutuar no vazio, sem tocar em coisa alguma. Köhler tinha razão. Era genial.

— Onde está a fonte de energia para os electroimanes? — perguntou Köhler.

Vittoria apontou. — No pilar, por baixo de cada armadilha. Os contentores estão

atarraxados num encaixe que os recarrega constantemente, de modo a que os imanes nunca falhem.

— E se o campo falhar, o que acontece? — O óbvio. A antimatéria cai, entra em contacto com a base do

contentor e assistimos a uma aniquilação. Langdon arrebitou as orelhas. — Aniquilação? — Não gostava do som da palavra. Vittoria não parecia minimamente preocupada.

ANJOS E DEMÓNIOS 97

— Sim, quando a antimatéria e a matéria entram em contacto, ambas são instantaneamente destruídas. Os físicos chamam ao processo «aniquilação».

Langdon assentiu com a cabeça. — Oh. — É a reacção mais simples da natureza. Uma partícula de maté

ria e uma partícula de antimatéria combinam-se e libertam duas novas partículas... chamadas fotões. Um fotão é, na realidade, uma pequena quantidade de luz.

Langdon tinha lido alguma coisa a respeito de fotões — partículas de luz — a mais pura forma de energia. Resolveu abster-se de fazer perguntas a respeito de o comandante Kirk usar torpedos de fotões contra os Klingons.

— Então, se a antimatéria caísse, assistiríamos a uma pequena explosão de luz?

Vittoria encolheu os ombros. — Depende do que considera pequena. Deixe-me mostrar-lhe. —

Estendeu a mão para o contentor e começou a desenroscá-lo do pilar de carga.

Sem aviso, Köhler deixou escapar um grito de terror e saltou para a frente, afastando as mãos dela.

— Vittoria! Enlouqueceu?

CAPITULO VINTE E DOIS

Por um inacreditável momento, Kohler manteve-se de pé, a oscilar sobre as pernas atrofiadas. Estava lívido de medo.

— Vittoria! Não pode tirar daí a armadilha! Langdon observava, confiíso, o súbito pânico do director do

CERN.

— Quinhentos nanogramas! — exclamou Köhler. — Se interromper o campo magnético...

— Não há qualquer perigo, doutor Köhler — assegurou Vittoria. — Todos os recipientes estão equipados com dispositivos de segurança... uma bateria de apoio para o caso de serem removidos do carregador. A amostra continua suspensa mesmo que retiremos o recipiente.

Köhler parecia pouco convencido. Então, hesitantemente, voltou a sentar-se na cadeira.

— As baterias são activadas automaticamente — continuou Vittoria. — Funcionam durante vinte e quatro horas. É como um depósito de gasolina de reserva. — Voltou-se para Langdon, como que detec-tando-lhe o desconforto. — A antimatéria tem características surpreendentes, que a tornam bastante perigosa. Calcula-se que uma amostra de dez miligramas... do tamanho de um grão de areia... contenha tanta energia como cerca de duzentas toneladas de combustível de foguetão convencional.

Langdon tinha outra vez a cabeça a andar à roda. — É a fonte de energia do futuro. Mü vezes mais poderosa do

que a energia nuclear. Cem por cento eficiente. Sem subprodutos. Sem radiação. Sem poluição. Uns poucos gramas bastariam para fornecer energia a uma cidade durante uma semana.

Gramas? Langdon afastou-se desconfiadamente dos pilares de carga.

ANJOS E DEMÓNIOS 99

— Não tenha receio — continuou Vittoria. — Estas amostras são diminutas fracções de grama... milionésimos. Relativamente inofensivas. — Voltou a estender a mão para o contentor e retirou-o da coluna.

Köhler agitou-se, mas não interferiu. Quando o contentor saiu do seu encaixe, ouviu-se um bip agudo e, perto da base, iluminou-se um pequeno mostrador LED. Os dígitos vermelhos piscavam, iniciando a contagem decrescente a partir de vinte e quatro horas.

24:00:00... 23:59:59... 23:59:58... Langdon observou o contador e decidiu que se parecia desagrada-

velmente com uma bomba. — A bateria — explicou Vittoria — ftincionará vinte e quatro ho

ras antes de se esgotar. Pode ser recarregada voltando a enroscar o contentor no encaixe. Foi concebida como medida de segurança, mas também facilita o transporte.

— Transporte? — Köhler parecia siderado. — Seria capaz de levar essa coisa para fora do laboratório?

— Claro que não — respondeu Vittoria. — Mas a mobuidade per-mite-nos estudá-la.

Conduziu os dois homens até à parede mais afastada. Correu um cortinado, revelando uma janela de vidro para lá da qual havia uma ampla sala. As paredes, o tecto e o chão eram de aço. Recordou a Langdon o porão de carga do petroleiro que certa vez o levara à Papuásia-Nova Guiné para estudar as pichagens corporais dos Hanta.

— O tanque de aniquilação — anunciou Vittoria. Köhler ergueu a cabeça. — Vocês observam aniquilações? — O meu pai estava fascinado pela física do Big Bang... vastas quan

tidades de energia extraídas de minúsculos núcleos de matéria. — Vittoria abriu uma gaveta de aço por baixo da janela. Colocou o contentor dentro da gaveta e voltou a fechá-la. Puxou então uma alavanca. Instantes depois, o contentor apareceu do outro lado do vidro, rolando suavemente pelo chão de metal num amplo arco até se deter perto do centro da sala.

Vittoria esboçou um pequeno sorriso.

100 DAN BROWN

— Estão prestes a testemunhar a vossa primeira aniquilação de antimatéria. 7\lguns milionésimos de grama. Uma amostra relativamente minúscula.

Langdon estava a olhar para a armadilha de antimatéria ali parada, sozinha, no centro do enorme tanque. Também Köhler se voltou para a janela, parecendo inseguro.

— Normalmente — expHcou Vittoria —, teríamos de esperar vinte e quatro horas, até ao esgotamento da bateria, mas esta câmara possui por baixo do chão imanes mais poderosos do que os do contentor, capazes de anular o estado de suspensão. E quando a matéria e a antimatéria entram em contacto...

— Aniquilação — murmurou Köhler. — Mais uma coisa — continuou Vittoria. — A antimatéria Hber-

ta energia pura. Uma conversão a cem por cento da massa em fotões. Portanto, não olhem directamente para a amostra. Protejam os olhos.

Apesar do seu desassossego, Langdon apercebeu-se de que Vittoria estava a exagerar o dramatismo. Não olhem directamente para a amostra? O contentor estava a mais de trinta metros de distância, do outro lado de uma ultragrossa parede de Plexiglas fumado. Além disso, o seu conteúdo era invisível, microscópico. Proteger os olhos? Quanta energia pode aquela coisa minúscula...

Vittoria premiu o botão. No mesmo instante, Langdon ficou cego. Um brilhante ponto de

luz acendeu-se dentro do contentor e explodiu numa onda de choque de luz que irradiou em todas as direcções, embatendo na placa de vidro com uma força tremenda. Langdon recuou a cambalear, enquanto a detonação abalava o tanque de aço. A luz brilhou por um momento, ofuscante, e então, logo a seguir, contraiu-se, absorvendo-se a si mesma, concentrando-se num minúsculo ponto que logo desapareceu. Langdon pestanejou dolorosamente, recuperando pouco a pouco a visão. Olhou para dentro da câmara. O contentor que estivera no chão desaparecera completamente. Vaporizado. Sem deixar rasto.

Continuou a olhar, assombrado. — D... Deus! Vittoria assentiu, com um sorriso triste. — Precisamente o que o meu pai disse.

CAPITULO VINTE E TRES

Kohler estava a olhar para a câmara de aniquilação com um ar de surpresa total pelo que acabava de ver. Robert Langdon, junto dele, parecia ainda mais espantado.

— Quero ver o meu pai — exigiu Vittoria. — Mostrei-lhes o laboratório. Agora quero ver o meu pai.

Köhler voltou-se devagar, sem parecer tê-la ouvido. — Porque esperaram tanto tempo, Vittoria? Deviam ter-me falado

desta descoberta imediatamente. Vittoria olhou para ele. Quantas rat^ões quer? — Podemos discutir isso mais tarde. Neste momento, quero ver

o meu pai. — Tem consciência do que esta tecnologia impuca? — Claro — atirou-lhe Vittoria. — Dinheiro para o CERN. Muito.

Agora quero... — Foi por isso que guardaram segredo? — perguntou Köhler, ni

tidamente a engodá-la. — Por temerem que a administração e eu próprio votássemos o seu licenciamento?

— Deve ser licenciada — ripostou ela, irritada, sentindo que estava a ser arrastada para a discussão. — A antimatéria é uma tecnologia importante. Mas é também perigosa. O meu pai, e eu, queríamos tempo para optimizar o processo e torná-lo seguro.

— Por outras palavras, não acreditaram que a comissão de directores fosse capaz de pôr a ciência prudente à frente do lucro financeiro.

Vittoria ficou surpreendida pela indiferença no tom de Köhler. — Houve também outras considerações — disse. — O meu pai

queria tempo para apresentar a antimatéria a uma luz apropriada. — Querendo com isso dizer...? O que acha que quero dií^er?

102 DAN BROWN

— Matéria a partir de energia? Qualquer coisa a partir de coisa nenhuma? É praticamente a prova de que o Génesis é uma possibilidade científica.

— Não queria, então, ver as implicações religiosas da sua descoberta perdidas numa vaga comercial?

— De certo modo. — E a Vittoria? Ironicamente, as preocupações de Vittoria eram quase o oposto.

O comércio era essencial para o êxito de qualquer nova tecnologia. Apesar de a antimatéria ter potencialidades espantosas como fonte de energia eficiente e não poluidora, se premamramente revelada correria o risco de ser destruída pelas políticas e pelos fiascos de relações públicas que tinham matado à nascença as energias nuclear e solar. A energia nuclear proliferara antes de ser segura, e tinha havido acidentes. A energia solar proliferara antes de ser eficiente, e as pessoas tinham perdido dinheiro. Ambas as tecnologias tinham ganho má fama e estiolado na raiz.

— Os meus interesses — disse Vittoria — eram um pouco menos elevados do que unir ciência e religião.

— O ambiente — arriscou Köhler, num tom seguro. — Energia ilimitada. Sem minas a céu aberto. Sem poluição. Sem

radiação. A tecnologia da antimatéria pode salvar o planeta. — Ou destruí-lo — disse Köhler. — Dependendo de quem a use

e para o quê. — Vittoria sentiu o gelo que emanava da figura sentada na cadeira de rodas. — Quem mais sabe disto?

— Ninguém. Já lho tinha dito. — Porque pensa então que o seu pai foi assassinado? Os músculos de Vittoria ficaram tensos. — Não faço a mínima ideia. Ele tinha inimigos aqui no CEPW,

como muito bem sabe, mas isso não podia ter nada a ver com a antimatéria. Jurámos um ao outro guardar segredo durante alguns meses, até estarmos prontos.

— E tem a certeza de que o seu pai manteve esse voto de silêncio? Agora, Vittoria começava a ficar furiosa. — O meu pai manteve votos muito mais difíceis do que esse! — E a Vittoria, não falou nisto a ninguém? — Claro que não!

ANJOS E DEMÓNIOS 103

Kohler expirou devagar. Fez uma pausa, como se estivesse a escolher cvddadosamente as suas próximas palavras.

— Suponha que alguém descobriu. E suponha que alguém conseguiu entrar neste laboratório. Em sua opinião, do que viria essa pessoa à procura? O seu pai conservava notas aqui? Documentação sobre o processo?

— Doutor Köhler, tenho sido paciente. Preciso de algumas respostas, e preciso delas agora. Insiste numa entrada forçada, mas viu o analisador de retina. O meu pai era muito cauteloso em termos de secretismo e segurança.

— Faça-me a vontade — pediu secamente Köhler, sobressaltando--a. — O que poderia faltar?

— Não faço ideia. — Vittoria examinou irritadamente o laboratório. Todas as amostras de antimatéria estavam onde deviam. A área de trabalho do pai parecia em ordem. — Ninguém entrou aqui — declarou. — Aqioi em cima parece estar tudo bem.

Köhler pareceu espantado. — Aqui em áma'^ Vittoria dissera-o instintivamente. — Sim, aqui no laboratório superior. — Estavam a usar também o laboratório inferior? — Para armazenamento. Köhler, outra vez a tossir, fez a cadeira rolar até ela. — Usaram a câmara de Mat-Per como armazém. Para armazenar

o quê? Materiésperigosos, o que havia de JÍ^'Vittoria estava a perder a paciência. — Antimatéria. Köhler soergueu-se, apoiando-se nos braços da cadeira. — Há outras amostras? Porque raio não me disse isso? — Acabo de Uio dizer — disparou Vittoria. — E quase não me

deu oportunidade! — Temos de verificar essas amostras — disse Köhler. — Agora. — Amostra — corrigiu Vittoria. — Singular. E não há problema.

Ninguém poderia... — Só uma? — Köhler hesitou. — Porque é que não está aqui? — O meu pai queria-a abaixo do leito de rocha, por precaução.

E maior do que as outras.

104 DAN BROWN

A troca de olhares de alarme entre Kohler e Langdon não passou despercebida a Vittoria. Köhler voltou a aproximar-se dela.

— Criaram uma amostra maior do que quinhentos nanogramas? — Por necessidade — defendeu-se ela. — Tínhamos de provar

que o limiar de investimento/rendimento podia ser ultrapassado com segurança.

Vittoria bem sabia que o problema com as novas fontes de combustível era sempre uma questão de investimento versus rendimento — quanto dinheiro era preciso gastar para obter o combustível. Construir uma torre de perfuração para extrair um barru de petróleo era um empreendimento ruinoso. No entanto, se essa mesma torre, com um mínimo de despesa acrescida, produzisse milhões de barris, o negócio compensava. Fazer funcionar vinte e sete quilómetros de electroimanes para criar uma amostra minúscula de antimatéria consumia mais energia do que aquela que a antimatéria resultante continha. Para provar que a antimatéria era eficiente e viável, era preciso criar amostras de maiores dimensões.

Apesar de o pai ter hesitado em produzir uma amostra maior, Vittoria insistira com ele. Argumentara que para que a antimatéria fosse levada a sério, tinham de provar duas coisas. Primeiro, que era possível produzi-la em quantidades que a tornassem rentável. Depois, que se podia armazená-la em segurança. No fim, levara a melhor, e o pai aquiescera, ainda que relutantemente. Não, porém, sem ter definido directivas muito estritas em matéria de secretismo e acesso. A antimatéria seria guardada na Mat-Per— uma pequena cavidade escavada no granito, vinte e cinco metros abaixo do laboratório. A amostra seria um segredo só deles, e só os dois lhe teriam acesso.

— Vittoria? — insistiu Köhler, com a voz tensa. — De que tamanho é essa amostra que criaram?

Vittoria sentiu uma espécie de amargo prazer interior. Sabia que a quantidade espantaria até o grande Maximilian Kohler. Imaginou a antimatéria escondida nas profundezas da rocha. Uma visão incrível. Suspensa dentro do contentor, perfeitamente visível a olho nu, dançava uma pequena esfera de antimatéria. Não se tratava de um grão microscópico. Era uma gota do tamanho de uma pinta de esferográfica.

Vittoria inspirou fundo.

ANJOS E DEMÓNIOS 105

— Um quarto de grama. O sangue fugiu do rosto de Köhler. — O quê? — Foi sacudido por um novo e violento acesso de tosse.

— Um quarto de grama? Isso representa... quase cinco quilotoneladas! Quilotoneladas. Vittoria detestava a palavra. Ela e o pai nunca a usa

vam. Uma quilotonelada equivalia a mil toneladas de TNT. As quilotoneladas eram para armas. Bombas. Poder destrutivo. Ela e o pai falavam de electrões, volts ç. joules — energia construtiva.

—- Essa quantidade de antimatéria é o bastante para obliterar literalmente tudo num raio de meia milha! — exclamou Köhler.

— Sim, se aniquilada de uma só vez — ripostou Vittoria. — Coisa que nunca ninguém fará!

— Excepto alguém que não saiba o que está a fazer. Ou se a vossa fonte de energia falhar! — Köhler já ia a caminho do elevador.

— Foi precisamente por isso que o meu pai a guardou na Mat-Per, com uma fonte de energia à prova de falhas e um sistema de segurança redundante.

Köhler voltou-se, com um bruho de esperança nos olhos. — Têm segurança adicional na Mat-Per? — Sim. Um segundo analisador de retina. Köhler disse apenas três palavras: — Para baixo. Já.

O elevador de carga caiu como uma pedra. Mais vinte e cinco metros nas entranhas da terra. Vittoria sentia o medo dos dois homens enquanto o elevador des

cia. O rosto habitualmente pétreo de Köhler estava tenso. Eu sei que a amostra é enorme, pensou. Mas foram tomadas precauções.

A porta do elevador abriu-se e Vittoria foi a primeira a sair para um corredor escassamente iluminado, que terminava numa enorme porta de aço. MAT-PER. O leitor de retina junto à porta era idêntico ao do laboratório. Aproximou-se. Cuidadosamente, alinhou o olho com a lente.

Recuou. Havia aH algo de errado. A lente, sempre impecavelmente limpa, estava suja... manchada com qualquer coisa que parecia... sangue? Confusa, voltou-se para os dois homens, mas o que viu foi dois ros-

106 DAN BROWN

tos cor de cera. Kohler e Langdon estavam brancos, a olhar fixamente para qualquer coisa caída no chão junto aos pés dela.

Seguiu a direcção do olhar deles... para baixo. — Não! — gritou Langdon, e estendeu a mão. Mas era demasiado

tarde. Os olhos de Vittoria estavam presos ao objecto caído no chão. Era

ao mesmo tempo completamente estranho e intimamente familiar. Demorou apenas um instante. Então, abalada pelo horror, soube. A olhar para ela do chão, dei

tado fora como um pedaço de Hxo, estava um olho. Teria reconhecido aquele tom de avelã fosse onde fosse.

CAPITULO VINTE E QUATRO

O técnico de segurança reteve a respiração enquanto o comandante se inclinava sobre o ombro dele, a estudar o painel de monitores que tinham à frente. Passou um minuto.

O silêncio do comandante era de esperar, disse o técnico para si mesmo. O comandante era um rígido cumpridor do protocolo. Não chegara ao comando de uma das forças de segurança mais famosas do mundo falando primeiro e pensando depois.

Mas que está ele apensar? O objecto que observavam no monitor era um recipiente — um

contentor de lados transparentes. Essa parte era fácu. O resto é que era difícil.

Dentro do recipiente, como que graças a um qualquer efeito especial, uma pequena gota de metal líquido parecia flutuar em pleno ar. A gota aparecia e desaparecia ao ritmo do robótico acender e apagar dos números vermelhos que, num pequeno mostrador LED, marcavam uma contagem decrescente e provocavam arrepios na pele do técnico.

— Consegue aumentar a luminosidade? — perguntou o comandante, sobressaltando o técnico.

O técnico cumpriu a ordem, e a imagem tornou-se um pouco mais clara. O comandante inclinou-se para a frente, semicerrando os olhos para examinar de mais perto algo que acabava de se tornar visível na base do contentor.

O técnico seguiu a direcção do olhar do comandante. Quase imperceptível, impresso ao lado do mostrador LED, havia um acrónimo. Quatro maiúsculas que brilhavam à luz intermitente.

— Fique aqui — ordenou o comandante. — Não fale com ninguém. Eu trato disto.

CAPITULO VINTE E CINCO

Mat-Per. Cinquenta metros abaixo do chão. Vittoria Vetra cambaleou para a frente, quase caindo em cima do

analisador de retina. Sentiu o americano correr para ela, agarrá-la, su-portar-lhe o peso do corpo. Do chão, o olho do pai olhava para cima. Sentiu o ar ser-lhe arrancado dos pulmões. Tiraram-lhe um olho! O seu mundo contorceu-se com uma horrível dor. Köhler estava perto, a falar. Langdon guiou-a. Como num sonho, deu por si a olhar para o analisador de retina. O mecanismo emitiu um bip.

A porta abriu-se. Mesmo avassalada com a imagem do olho do pai a verrumar-lhe

a alma, Vittoria adivinhou o horror adicional que a esperava lá dentro. Quando ergueu o olhar velado para o interior da sala, confirmou o capítulo seguinte do pesadelo. Diante dela, o solitário pilar de recarga estava vazio.

O contentor desaparecera. Tinham cortado um olho ao pai dela e roubado o contentor. As implicações chegaram demasiado rápidas para que as compreendesse plenamente. Correra tudo mal. A amostra que ia supostamente provar que a antimatéria era uma fonte de energia segura e viável fora roubada, mas ninguém sabia que aquela amostra existia! A verdade era, no entanto, inegável. Alguém descobrira. Vittoria não conseguia imaginar quem. Nem sequer Köhler, que tinha fama de saber tudo o que se passava no CERN, fazia, muito claramente, a mínima ideia da existência do projecto.

O pai estava morto. Assassinado. Vítima do seu próprio génio. Enquanto o desgosto lhe destroçava o coração, uma nova emoção

irrompeu no consciente de Vittoria. Esta era muito pior. Esmagadora. A apunhalá-la. Culpa. Incontrolável, implacável culpa. Vittoria sabia que

ANJOS E DEMÓNIOS 109

fora ela que convencera o pai a criar a amostra. Contra o que ele julgava ser mais sensato. E ele fora morto por causa disso.

Um quarto de grama... Como qualquer outra tecnologia — o fogo, a pólvora, o motor de

combustão interna —, a antimatéria podia, nas mãos erradas, ser letal. Perigosamente letal. A antimatéria era uma arma mortífera. Poderosa, imparável. Uma vez retirado do seu puar de recarga no CERN, o contentor iniciava a contagem decrescente. Inexorável. Como um comboio lançado a toda a velocidade e sem maquinista.

E quando o tempo se esgotasse... Uma luz ofuscante. Uma detonação. A incineração espontânea. Ape

nas o relâmpago... e uma cratera vazia. Viva.2.grande cratera vazia. A ideia de o génio tranquilo do pai poder ser usado como ferra

menta de destruição era como um veneno no sangue dela. A antimatéria era a perfeita arma terrorista. Não tinha peças metálicas que accionassem um detector, nem assinatura química que os cães pudessem farejar, nem detonador que fosse possível desactivar se as autoridades encontrassem o contentor. A contagem decrescente já começara...

Langdon não sabia o que fazer mais. Tirou o lenço do bolso e cobriu com ele o olho de Leonardo Vetra. Vittoria estava como que petrificada à entrada da câmara de Mat-Peri, com uma expressão de desgosto e pânico. Aproximou-se dela, instintivamente, mas Köhler interveio.

— Doutor Langdon? — O rosto dele não apresentava qualquer emoção. Com um gesto, chamou-o à parte. Langdon obedeceu, relutante, deixando Vitoria sozinha. — O senhor é o especialista — continuou Köhler, num murmúrio intenso. — Quero saber o que esses filhos da mãe dos llluminati pretendem fazer com a antimatéria.

Langdon tentou concentrar-se. Apesar da loucura que o rodeava, a sua primeira reacção foi lógica. Rejeição académica. Köhler continuava a fazer assunções. Assunções impossíveis.

— Os llluminati ]2L não existem, doutor Köhler. Reafirmo o que disse. Este crime pode ter as mais diversas razões... Talvez até outro investigador do CERN que tivesse sabido da descoberta do doutor Vetra e a considerasse tão perigosa que tinha de ser travada.

Köhler pareceu estupefacto.

l i o DAN BROWN

— Acha que se tratou de um crime de consciência, doutor Langdon? Absurdo. Quem matou o Leonardo queria uma coisa... a amostra de antimatéria. E não resta a mínima dúvida de que alguém fez planos para obtê-la.

— Está a falar de terrorismo? — Parece evidente. — Mas os Illuminati não eram terroristas. — Diga isso ao Leonardo Vetra. Langdon sentiu a verdade daquela afirmação. Leonardo Vetra fora

indiscutivelmente marcado com o símbolo dos Illuminati. De onde viera esse símbolo? A insígnia sagrada parecia um engodo demasiado difícil de obter para alguém que tentasse proteger-se desviando as atenções noutro sentido. Tinha de haver outra explicação.

Mais uma vez, via-se obrigado a considerar o implausível. Se os Illuminati continuam activos, e se foram eles que roubaram a antimatéria, que tenáonam faí^ercom ela?Qual será o seu alvo? A resposta que o cérebro lhe forneceu foi instantânea. Langdon descartou-a com a mesma rapidez. Era certo que os Illuminati tinham um inimigo óbvio, mas um ataque terrorista em grande escala contra esse inimigo era inconcebível. E totalmente in-característico. Sim, os Illuminati tinham matado pessoas, mas sempre indivíduos, alvos cuidadosamente circunscritos. A destruição em massa parecia uma coisa desajeitada, grosseira. Por outro lado, pensou, teria uma espécie de eloquência majestosa — a antimatéria, a maior descoberta científica de todos os tempos, a ser usada para vaporizar...

Recusou aceitar aquele pensamento absurdo. — Há — disse, inesperadamente — uma explicação lógica além

do terrorismo. Köhler ficou a olhar para ele, obviamente à espera. Langdon tentou aHnhar a ideia. Os Illuminati tinham sempre exerci

do um enorme poder através de meioí, financeiros. Controlavam bancos. Tinham reservas de ouro. Dizia-se até que tinham possuído a gema mais valiosa do mundo — o Diamante llluminatus, um diamante enorme, perfeito, sem a mais pequena impureza.

— Dinheiro — disse. — A antimatéria pode ter sido roubada com o objectivo de conseguir um ganho financeiro.

Köhler parecia incrédulo.

ANJOS E DEMÓNIOS 111

— Um ganho financeiro? A quem é que se pode vender uma gota de antimatéria?

— Não a amostra — argumentou Langdon. — A tecnologia. A tecnologia da antimatéria deve valer uma quantidade incalculável de dinheiro. Talvez alguém tenha roubado a amostra para a analisar e fazer pesquisa.

— Espionagem industrial? Mas aquele contentor tem apenas vinte e quatro horas até que a bateria acabe. Os investigadores iriam pelos ares antes de conseguirem descobrir fosse o que fosse.

— Podem recarregá-lo antes que expluda. Podem construir uma coluna de recarga compatível, como as que existem aqui no CERN.

— Em vinte e quatro horas? — questionou Köhler. — Mesmo que roubassem os esquemas, um recarregador daqueles demoraria meses a construir, nunca horas!

— Ele tem razão! — disse a voz débil de Vittoria. Voltaram-se os dois. Vittoria avançava para eles, com passos tão

trémulos como as suas palavras. — Tem razão. Ninguém conseguiria reconstittiir um recarregador

daqueles a tempo. Só a interface demoraria semanas. Os filtros de fluxo, as servo-bobinas, as ligas de condicionamento de potência, tudo calibrado para o grau de energia específico do local.

Langdon franziu a testa. A questão fora claramente exposta. Uma armadilha de antimatéria não era coisa que se pudesse simplesmente ligar a uma tomada de parede. Uma vez retirado do CERN, o contentor iniciava uma viagem só de ida, de vinte e quatro horas, para o oblívio.

O que deixava uma única, e muito perturbadora, conclusão.

— Temos de chamar a Interpol — disse Vittoria, e até a ela própria a voz soou distante. — Temos de chamar as autoridades. Imediatamente.

Köhler abanou a cabeça. — Absolutamente, não. As palavras surpreenderam-na. — Não? Porque não? — Vocês os dois, a Vittoria e o seu pai, colocaram-me numa posi

ção muito difícil.

112 DAN BROWN

— Doutor Kohler, precisamos de ajuda. Temos de encontrar o contentor e trazê-lo para aqui antes que alguém se magoe. Temos essa responsabilidade!

— Temos a responsabilidade áe pensar— disse Kohler, o tom

a endurecer. — Esta situação pode ter repercussões gravíssimas para

o CERN.

— Está preocupado com a reputação do CERN? Tem ideia do que aquele contentor pode fazer numa área urbana? Destrói tudo num raio de oitocentos metros! Nove quarteirões!

— Talvez você e o seu pai devessem ter pensado nisso antes de

criarem a amostra. Foi como se a tivessem apunhalado. — Mas... mas nós tomámos todas as precauções. — Aparentemente, não foram as suficientes. — Mas ninguém sabia da existência da antimatéria. — Vittoria aper-

cebia-se, evidentemente, de que o argumento era absurdo. Claro que alguém sabia. Alguém tinha descoberto.

Ela não dissera a ninguém. O que só deixava duas explicações. Ou o pai confidenciara a alguém sem lhe dizer, o que não fazia sentido porque fora o pai que insistira para que ambos jurassem segredo, ou ela e o pai tinham sido espiados. O telemóvel, talvez? Sabia que tinham falado algumas vezes, quando andava a viajar. Teriam dito demasiado? Era possível. Havia também o e-mail. Mas aí tinham sido discretos, não tinham? O sistema de segurança do CERN? Teriam sido observados sem o saberem? Sabia que já nada daquuo importava. O que estava feito feito estava. O meu pai está morto.

Este pensamento acicatou-a a agir. Tirou o telemóvel do bolso dos calções.

Köhler acelerou em direcção a ela, a tossir violentamente, com os olhos a faiscar de fúria.

— A quem... está a telefonar? — À central do CERN. Eles podem ligar-nos à Interpol. — Pense! — disse Köhler com uma voz estrangulada, detendo a ca

deira diante dela. — É realmente assim tão ingénua? A esta hora, aquele contentor pode estar em qualquer ponto do mundo. Nenhuma agência policial poderia mobilizar meios para encontrá-lo a tempo.

ANJOS E DEMÓNIOS U 3

— Então não fazemos nada?—Vittoria sentia-se mal por estar a desafiar um homem claramente fragilizado pela doença, mas o director parecia ^o desorientado que já nem sequer o reconhecia.

— Fazemos o que é inteligente — respondeu Köhler. — Não pomos em risco a reputação do CERN envolvendo autoridades que de toda a maneira não nos podem ajudar. Não para já. Não sem pensar muito bem.

Vittoria sabia que havia lógica algures nos argumentos de Köhler, mas também sabia que a lógica era, por definição, despojada de responsabilidade moral. O pai dela vivera para a responsabilidade moral — ciência cuidadosa, aceitar responsabilidades, ter fé na bondade intrínseca do ser humano. Também ela acreditava nessas coisas, mas via-as em termos de karma. Voltando as costas a Köhler, levantou a tampa do telefone.

— Não pode fazer isso — disse ele. — Tente impedir-me. Köhler não se moveu. Um instante mais tarde, Vittoria compreendeu porquê. Aquela pro

fundidade, o telemóvel não tinha rede. Furiosa, encaminhou-se para o elevador.

CAPITULO VINTE E SEIS

O Hashashin deteve-se no fim do túnel de pedra. O archote continuava a arder, o fumo a misturar-se com o cheiro a musgo e a ar parado. Estava rodeado de silencio. A porta de ferro que lhe impedia a passagem parecia tão velha como o próprio túnel, cheia de ferrugem mas ainda resistente. Esperou no escuro, confiante.

Eram quase horas. Janus prometera que alguém do lado de dentro abriria a porta.

A enormidade da traição parecia-lhe uma coisa espantosa. Teria esperado a noite inteira diante daquela porta para levar a cabo a sua missão, mas sentia que não ia ser necessário. Estava a trabalhar para homens determinados.

Minutos mais tarde, precisamente à hora marcada, ouviu o tinir metálico de pesadas chaves do outro lado da porta. O metal raspou no metal quando as várias fechaduras se abriram. Um a um, três enormes ferrolhos correram nos respectivos encaixes. As fechaduras rangeram, como se não fossem usadas há séculos. Finalmente, ficaram as três abertas.

Fez-se silêncio. O Hashashin esperou pacientemente, cinco minutos, exactamente

como lhe fora ordenado. Então, com o sangue a fervilhar, empurrou. A grande porta abriu-se.

CAPITULO VINTE E SETE

— Vittoria, não o permitirei! — Köhler respirava entrecortadamente, parecendo cada vez pior à medida que o elevador subia.

Vittoria ignorou-o. Ansiava por um refúgio, qualquer coisa familiar naquele lugar onde já não se sentia em casa. Mas sabia que não podia ser. Naquele momento, tinha de engolir a dor e agir. Chegar a um telefone.

Robert Langdon estava junto dela, silencioso como de costume. Vittoria já desistira de perguntar a si mesma quem seria aquele homem. Um especialista? Köhler não podia ter sido menos específico. O senhor iMHgdonpode ajudar-nos a encontrar o assassino do seu pai. Langdon não estava a ajudar fosse de que maneira fosse. A simpatia e gentileza de que dava mostras pareciam genuínas, mas estava claramente a esconder qualquer coisa. Estavam ambos, ele e Köhler.

Kohler voltou à carga. — Como director do CERN, tenho uma responsabilidade para com

o futuro da ciência. Se transformar isto num incidente internacional e o CERN sofrer...

— O futuro da ciência? — Vittoria voltou-se para ele. — Está verdadeiramente a planear fugir às suas responsabilidades não admitindo que esta antimatéria saiu do CERN? Tenciona ignorar as vidas que pusemos em perigo?

—Que pusemos?— perguntou Köhler. —Que vocês puseram, a Vittoria e o seu pai.

Vittoria desviou o olhar. — Quanto a pôr vidas em perigo — continuou Köhler —, a vida

é precisamente o que está aqui em causa. Sabe muito bem que a antimatéria tem implicações enormes para a vida no planeta. Se o CERN for à falência, destruído pelo escândalo, toda a gente perde. O futuro da Humanidade está em lugares como o CERN, nas mãos de cientistas como a Vittoria e o seu pai, a trabalhar para resolver os problemas de amanhã.

116 DAN BROWN

Não era a primeira vez que Vittoria ouvia a palestra «a Ciência-como--Deus», e continuava a não a comprar. Fora a própria ciência que criara metade dos problemas que estava a tentar resolver. O «progresso» era a doença derradeira da Mãe Terra.

— O progresso científico implica riscos — dizia Köhler. — Sempre assim foi. Os programas espaciais, a investigação genética, a medicina... todos cometeram erros. A ciência tem de sobreviver aos seus próprios erros, custe o que custar. Pelo bem de todos.

Vittor'^. ficava sempre espantada com a capacidade de Köhler de contrapoi questões morais e desprendimento científico. O intelecto do homem parecia o produto de um gélido processo de divórcio da sua vida interior.

— Acredita realmente que o CERN é tão essencial ao fiituro do mundo que deveria ser imune à responsabilidade moral?

— Não discuta moralidade comigo. Pisou o risco quando criou aquela amostra, e comprometeu todo o trabalho que fazemos aqui. Estou a tentar defender não só os empregos dos três mil cientistas que trabalham connosco, mas também a reputação do seu pai. Pense nele. Um homem como o seu pai não merece ser recordado como o criador de uma arma de destruição maciça.

Vittoria sentiu a lança acertar no alvo. ¥ui eu quem convenceu o meu pai a criar aquela amostra. A. culpa é minha!

Quando a porta se abriu, Köhler estava ainda a falar. Vittoria saiu do elevador, pegou no telefone e voltou a tentar.

Continuava a não ter rede. B^ios! Dirigiu-se para a porta. — Vittoria, pare! — Köhler parecia agora asmático, acelerando a ca

deira para a alcançar. — Espere. Temos de falar. — ^asta di parlare!

— Pense no seu pai — pediu Köhler. — O que faria ele? Ela continuou a andar. — Vittoria, não fui totalmente franco consigo. Vittoria sentiu as pernas moverem-se mais devagar. — Não sei o que me passou pela cabeça — continuou Köhler. —

Estava só a tentar protegê-la. Diga-me o que quer. Temos de trabalhar juntos nisto.

ANJOS E DEMÓNIOS 117

Vittoria deteve-se completamente a meio caminho da saída do laboratório, mas não se voltou.

— Quero encontrar a antimatéria. E quero saber quem matou o meu pai — disse, e ficou à espera.

Köhler suspirou. — Vittoria, já sabemos quem matou o seu pai. Lamento muito. Desta vez, ela voltou-se. — Vocês o quê? — Não sabia como dizer-lhe. É difícil... — Sabe quem matou o meu pai? — Temos quase a certeza, sim. O assassino debcou uma espécie de

cartão-de-visita. Foi por isso que chamei o senhor Langdon. O grupo que reclama a responsabilidade é da especialidade dele.

— O grupo? Um grupo terrorista? — Vittoria, roubaram um quarto de grama de antimatéria. Vittoria olhou para Robert Langdon, que se tinha detido no outro

lado da sala. As peças começavam a encaixar. Isto explica em parte o secretismo. Estava espantada por não lhe ter ocorrido mais cedo. Köhler sempre chamara as autoridades. As autoridades. Robert Langdon era americano, desempoeirado, conservador, obviamente muito perspicaz. Que outra coisa podia ser? Pensou que devia ter adivinhado logo de início. Sentiu uma renovada esperança ao voltar-se para ele.

— Senhor Langdon, quero saber quem matou o meu pai. E quero saber se a sua agência é capaz de encontrar a antimatéria.

Langdon pareceu confuso. — A minha agência? — Assumo que pertence aos Serviços Secretos Americanos. — Na verdade... não. — O doutor Langdon é professor de História da Arte na Univer

sidade de Harvard — interveio Köhler. Vittoria sentiu como se lhe tivessem despejado em cima um balde

de água gelada. — Um professor de arte? — É especialista em simbologia de cultos. — Köhler suspirou.

— Vittoria, estamos convencidos de que o seu pai foi morto por um culto satânico.

118 DAN BROWN

Vittoria ouviu as palavras ecoarem-üie no cérebro, mas foi incapaz de processá-las. Um culto satânico'?

— O grupo que reclama responsabilidade autodesigna-se os lllu-minati.

Vittoria olhou para Köhler, e depois para Langdon, perguntando a si mesma se aquilo seria alguma espécie de brincadeira perversa.

— Os Illuminaß? — perguntou. — Como os llluminati da Baviera} Köhler fez um ar de surpresa. —Já ouviu falar deles? Vittoria sentiu as lágrimas de frustração fervilharem no seu peito. — «Os llluminati da Baviera: A Nova Ordem Mundial». Um jogo de

computador. Metade dos nossos técnicos passa o tempo a jogá-lo na internet. — A voz quebrou-se-lhe. — Mas não compreendo...

Köhler lançou a Langdon um olhar confuso. Langdon assentiu. — Um jogo bastante popular. A antiga Irmandade domina o mun

do. Semi-histórico. Não sabia que também o tinham aqui na Europa. Vittoria estava completamente baralhada. — De que estão vocês a falar? Os llluminati? É um jogo de com

putador! — Vittoria — disse Köhler —, os llluminati são o grupo que recla

ma a responsabilidade pela morte do seu pai. Vittoria reuniu todos os restos de coragem que ainda tinha para con

ter as lágrimas. Forçou-se a aguentar e avaUar a situação logicamente. Mas quanto mais se concentrava, menos compreendia. O pai fora assassinado. O CERN sofrera uma grave quebra de segurança. Havia algures, em contagem decrescente, uma bomba pela qual era responsável. E o director escolhera um professor de arte para ajudá-los a encontrar uma Irmandade mítica de satanistas.

Subitamente, sentiu-se muito sozinha. Voltou-se para sair, mas Köhler barrou-lhe a passagem. Meteu a mão no bolso, tirou de lá um amarrotado pedaço de papel de fax e estendeu-Iho.

Vittoria cambaleou de horror quando os seus olhos pousaram na imagem.

— Marcaram-no — murmurou Köhler. — Os malditos marca-ram-no a fogo no peito.

CAPITULO VINTE E OITO

A secretária Sylvie Baudeloque estava em pânico. Andava para trás e para a frente à porta do gabinete vazio do director. Onde se meteu ele? O que é que eu faço?

Fora um dia bizarro. Claro que qualquer dia de trabalho com Maximilian Kohler tinha potencial para ser um dia estranho, mas naquela manhã o director mostrara-se ainda mais invulgar.

— Descubra-me o Leonardo Vetra! — exigira, mal entrara a porta. Obedientemente, Sylvie tentara contactar Leonardo Vetra por^<2-

ger, telefone e e-mail Nada. Então, Köhler saíra disparado, aparentemente com a intenção de ir

ele próprio procurar Vetra. Quando regressara, várias horas mais tarde, não parecia nada bem... não que alguma vez parecesse realmente bem, mas desta vez parecia ainda pior do que o costume. Fechara-se no gabinete e Sjdvie ouvira-o ao telefone, a &asrÍ2.t faxes, a falar. Depois disto, tornara a sair. E ainda não voltara.

Sylvie decidira ignorar tudo aquilo como mais um melodrama koh-leriano, mas começara a preocupar-se a sério quando ele não aparecera a horas para as suas injecções diárias; o estado de saúde do director exigia um tratamento regular, e sempre que ele decidia forçar a sorte, os resultados eram pouco agradáveis: choque respiratório, acessos de tosse, e uma corrida louca para a enfermaria. Havia alturas em que Sylvie se convencia de que Maximilian Kohler desejava secretamente morrer.

Ponderou a hipótese de o chamar pelo pager para o lembrar, mas aprendera que caridade era algo que o orgulho de Köhler desprezava. Na semana anterior, enfurecera-se de tal modo com as inoportunas manifestações de comiseração de um cientista visitante que atirara um

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dossier à. cabeça do homem. O RÍ? Kohler conseguia ser surpreendentemente ágil quando estuva. pissé.

Naquele momento, porém, a preocupação de Sylvie com a saúde do director estava a ser relegada para segundo plano por... um dilema muito mais premente. A operadora da central telefónica do CERN ligara havia cerca de cinco minutos, frenética, a dizer que tinha uma chamada urgente para o director.

— Não pode atender — respondera Sylvie. Fora então que a telefonista lhe dissera quem estava a ligar. Sylvie soltara uma meia gargalhada. — Está a brincar, não está? — Escutara o que telefonista dizia, o

rosto velado por uma sombra de incredulidade. — E a identidade da pessoa está confirmada... — Franzira a testa. — Estou a ver. Okay. Pode perguntar... — Suspirara. — Não. Está bem. Peça-lhe que aguarde um pouco. Vou imediatamente tentar localizar o director. Sim, compreendo. Vou já tratar disso.

Sylvie não conseguira, porém, localizar o director. Tentara ligar-lhe para o telemóvel três vezes, e recebera sempre a mesma mensagem: «O número que deseja contactar não está acessível.» Não está acessível? Onde se terá ele metido? Sylvie tentara então o pager. Duas vezes. Sem resposta. Altamente invulgar. Tentara até enviar um e-mail pM-i o computador portátil. Nada. Era como se o homem tivesse desaparecido da face da Terra.

Que faço agora?, perguntava Sylvie a si mesma. Sabia que, exceptuando uma busca ao complexo inteiro, só havia

outra maneira de atrair a atenção do director. Não ia ficar satisfeito, mas a pessoa que estava ao telefone não era alguém que se pudesse fazer esperar. Nem lhe parecia que quem telefonava estivesse com disposição para ouvir dizer que o senhor director não podia atender.

Assustada pela sua própria temeridade, Sylvie tomou uma decisão. Entrou no gabinete de Köhler e dirigiu-se à caixa metálica na parede atrás da secretária. Abriu-a, examinou os comandos e encontrou o botão certo.

Então, inspirou fundo e pegou no microfone.

CAPITULO VINTE E NOVE

Vittoria não se lembrava de terem chegado ao elevador principal, mas era onde se encontravam. A subir. Atrás dela, Köhler respirava com crescente dificuldade. O olhar preocupado de Langdon passou através dela como um fantasma. Tinha-lhe tirado o fax da mão e guar-dara-o no bolso, escondendo-o, mas a imagem ficara-lhe gravada na memória.

Enquanto o elevador subia, o mundo de Vittoria rodopiava para a escuridão. Papa. Estendeu mentalmente os braços para ele. Por um fugaz instante, no oásis das suas recordações, Vittoria esteve com o pai. Tinha nove anos e rolava pela encosta de tima colina coberta de flores de edelvais, com o céu suíço a dar voltas por cima dela.

Papa! Papa!

Leonardo Vetra estava junto dela, a sorrir. — O que é, meu anjo? — Papá. — Vittoria riu-se, chegando-se para mais perto dele. —

Pergunta-me o que é a matéria! — Mas tu estás tão feHz, minha querida. Porque hei-de eu pergun-

tar-te o que é a matéria? — Vá lá, pergunta. Ele encolheu os ombros. — Está bem. O que é a matéria? Ela começou imediatamente a rir. — O que é a matéria? Tudo é matéria! As rochas! As árvores! Os áto

mos! Até os papa-formigas! Tudo é matéria! Ele riu-se também. — Foste m que inventaste isso? — Sou muito esperta, não sou? —- A minha Eisteinezinha. Ela franziu a testa.

122 DAN BROWN

— Tem um cabelo estúpido. Vi um retrato dele. — Mas tem uma cabeça inteligente. Já te disse o que ele provou,

não foi? Ela abriu muito os olhos, de horror. — Papá! Não! Tu prometeste! — E=mc^! — Ele fez-lhe cócegas. — E=mc^! — Matemática não! Eu disse-te! Detesto matemática! — Ainda bem que detestas. Porque as meninas nem sequer são au-

tori^^adas a estudar matemática. Vittoria parou imediatamente de rir. — Não são? — Claro que não. Toda a gente sabe disso. As meninas brincam

com bonecas. Os rapazes estudam matemática. Nada de matemática para as meninas. Nem sequer va& permitem falar de matemática a meninas pequenas.

— O quê! Mas isso não é justo! — Regras são regras. Nada de matemática para as meninas pequenas. Vittoria fez um ar horrorizado. — Mas as bonecas são tão aborrecidas! — Lamento — disse o pai. — Podia falar-te de matemática... mas

se sou apanhado... — E olhou nervosamente em redor, para as colinas desertas.

Vittoria seguiu-lhe o olhar. — Okay — murmurou —, diz-me baixinho.

O movimento do elevador sobressaltou-a. Abriu os olhos. O pai tinha desaparecido.

A realidade abateu-se sobre ela, apertando-a com dedos gelados. Olhou para Langdon. A preocupação ansiosa que havia no rosto dele foi como o calor de um anjo-da-guarda, especialmente devido à aura fria de Köhler.

Um único pensamento consciente começou a martelar-lhe o cérebro com implacável insistência.

Onde está a antimatéria? A horrível resposta aguardava a um curto momento de distância.

CAPITULO TRINTA

— Doutor Maximilian Kohler. Faça o favor de entrar imediatamente em con

tacto com o seu gabinete.

A luz ofuscante do Sol inundou os olhos de Langdon quando as portas do elevador se abriram no átrio principal. Antes que os ecos do anúncio feito através do sistema sonoro se dissipassem, todos os aparelhos electrónicos da cadeira de rodas de Köhler começaram a apitar e a zumbir ao mesmo tempo. O pager. O telefone. O e-maiL Köhler baixou os olhos para as luzes que piscavam, aparentando confusão. O director regressara à superfície, e estava de novo contactável.

— Director Köhler. Por favor, contacte o seu gabinete.

O som do seu nome dito pelos altifalantes pareceu sobressaltar Köhler.

Olhou para cima, com uma expressão irritada, e quase logo a seguir de preocupação. Os olhos de Langdon encontraram os dele, e os de Vittoria também. Ficaram os três imóveis por um instante, como se toda a tensão entre eles tivesse desaparecido, substituída por uma única premonição unificadora.

Köhler tirou o telemóvel do respectivo suporte. Marcou o número de uma extensão, lutando contra novo ataque de tosse. Vittoria e Langdon esperaram.

— Fala... o director Köhler — disse, ofegante. — Sim? Estava debaixo de terra, fora do alcance. — Escutou, com os olhos cinzentos muito abertos. —Quem? Sim, passe imediatamente. — Seguiu-se uma pausa. — Estou. Fala Maximilian Kohler. Sou o director do CERN.

Com quem estou a falar?

Vittoria e Langdon observaram em silêncio enquanto Kohler ouvia.

124 DAN BROWN

— Não é aconselhável — disse finalmente Köhler — falar sobre este assunto pelo telefone. Vou imediatamente para aí. — Estava outra vez a tossir. — Vão esperar-me... ao aeroporto Leonardo da Vinci. Quarenta minutos. — Parecia agora quase incapaz de respirar. Foi sacudido por novo ataque de tosse e mal conseguiu pronunciar as palavras: — Localizem imediatamente o contentor... Vou a caminho. — E desHgou o telefone.

Vittoria correu para junto dele, mas Köhler já não estava em condições de falar. Langdon viu-a pegar no seu próprio telemóvel e ligar para a enfermaria do CERN. Sentiu-se como um navio na periferia de uma tempestade... sacudido, mas desligado.

Vão esperar-me ao aeroporto Leonardo da Viná. As palavras de Köhler ecoavam-lhe na cabeça.

As sombras indistintas que lhe tinham vagueado pelo espírito toda a manhã soUdificaram-se, num único instante, numa imagem m'tida. Ali no meio daquele torvelinho de confusão, sentiu uma porta abrir-se dentro dele... como se um qualquer limiar místico tivesse sido franqueado. O ambigrama. O padreIdentista assassinado. A. antimatéria. E agora... o alvo. O aeroporto Leonardo da Vinci só podia significar uma coisa. Num relâmpago de pura compreensão, Langdon soube que tinha passado para o outro lado. Tornara-se um crente.

Cinco quilotoneladas. Faça-se lu^ Dois enfermeiros de bata branca pareceram surgir do nada, atra

vessando o átrio a correr. AjoeUiaram-se ao lado de Köhler e apHca-ram-lhe uma máscara de oxigénio. Os cientistas que se encontravam no átrio recuaram, abrindo um largo círculo de espaço vazio à volta da cadeira de rodas.

Köhler inspirou dois longos haustos, afastou a máscara da boca e do nariz e, ainda a ofegar, olhou para Vittoria e para Langdon.

— Roma. — Roma? — perguntou Vittoria. — A antimatéria está em Roma?

Quem telefonou? O rosto de Köhler contorceu-se, com os olhos cinzentos a la

crimejar. — A guarda... — engasgou-se com as palavras e os enfermeiros

voltaram a pôr-lhe a máscara na cara. Quando se preparavam para o levar, Köhler ergueu uma das mãos e agarrou o braço de Langdon.

ANJOS E DEMÓNIOS 125

Langdon assentiu. Sabia. — Vá... — sibilou Köhler por baixo da máscara. — Vá... telefone-

-me... — Os enfermeiros empurraram a cadeira, afastando-se rapidamente.

Vittoria ficou como que pregada ao chão, a vê-lo. Então, voltou-se para Langdon.

— Roma? Mas... o que foi aquilo a respeito ás. guarda? Langdon pousou uma mão no ombro dela, mal sussurrando as pa

lavras. — A Guarda Suíça — disse. — Os protectores da Cidade do Va

ticano.

CAPITULO TRINTA E UM

O avião espacial X-33 elevou-se com um rugido e iniciou um arco para sul, em direcção a Roma. A bordo, Langdon sentava-se em silêncio. Os últimos quinze minutos tinham sido uma mancha confusa. Agora que acabara de elucidar Vittoria a respeito dos llluminati e da sua guerra com o Vaticano, as verdadeiras proporções daquela situação começavam a assentar-Ihe no espírito.

Que diabo estou eu afa:^r?, perguntou a si mesmo. Devia ter voltado para casa quando tive oportunidade. Mas, no fundo de si mesmo, sabia muito bem que nunca tivera essa oportunidade.

Tudo o que nele havia de bom senso gritara-lhe que regressasse a Boston. A estupefacção académica conseguira, porém, vetar a prudência. Tudo aquuo em que sempre acreditara sobre o desaparecimento dos llluminati parecia de repente um logro brilhantemente conseguido. Uma parte dele exigia provas. Confirmação. Havia também uma questão de consciência. Com Köhler doente e Vittoria entregue a si mesma, Langdon sabia que se o seu conhecimento dos llluminati náesse. de alguma maneira ajudar, tinha a obrigação moral de estar ali.

Havia mais, no entanto. Embora o envergonhasse admiti-lo, o seu horror inicial ao saber onde se encontrava a antimatéria não se devera apenas ao perigo que ela representava para a vida das pessoas na Cidade do Vaticano, mas também a algo mais.

Arte. A maior colecção de arte do mundo estava naquele momento sen

tada em cima de uma bomba-relógio. O Museu do Vaticano albergava sessenta mil peças sem preço em mil quatrocentas e sete salas — Miguel Angelo, da Vinci, Bernini, Botticeli. Langdon perguntava a si mesmo se seria possível evacuar todas aquelas obras-primas, em caso de necessidade. Sabia que não. Muitas das peças eram esculturas que pesa-

ANJOS E DEMÓNIOS 127

vam toneladas. Não esquecendo que os maiores de todos os tesouros eram arquitecturais — a Capela Sistina, a Basílica de São Pedro, a famosa escada em espiral de Miguel Angelo que condu2Ía ao Museu do Vaticano — testemunhos inapreciáveis do génio criativo do homem. Deu por si a perguntar quanto tempo restaria no contentor.

— Obrigada por ter vindo — disse Vittoria, em voz baixa. Langdon arrancou-se ao seu devaneio e ergueu os olhos. Vittoria

estava sentada do outro lado da coxia. Até na crua luz fluorescente da cabina, mantinha uma espécie de aura de compostura — uma irradiação quase magnética de integridade. A respiração dela parecia agora mais profunda, como se no seu interior se tivesse acendido uma centelha de autopreservação... um anseio de justiça e retribuição alimentado pelo amor de uma filha.

Não tivera tempo de mudar de roupa — continuava a vestir os calções e a camisola sem mangas — e a pele bronzeada das pernas estava arrepiada pelo frio da cabina. Instintivamente, Langdon despiu o casaco e ofereceu-lho.

— Cavalheirismo americano? — perguntou ela, agradecendo-lhe silenciosamente com os olhos.

O avião atravessou uma zona de turbulência e Langdon teve uma sensação de perigo. A cabina sem janelas voltava a parecer-lhe abafada, e tentou imaginar-se num campo aberto. A ideia, apercebeu-se, era irónica. Estava em campo aberto quando aquilo acontecera. Uma escuridão esmagadora. Afastou a recordação do espírito. História antiga.

Vittoria estava a observá-lo. — Acredita em Deus, doutor Langdon? A pergunta sobressaltou-o. O interesse na voz dela era ainda mais

desarmante do que o interrogatório. Acredito em Deus? Tinha contado com um tema de conversa mais leve para entreter a viagem.

Um enigma espiritual, pensou. É como os meus amigos me chamam. Apesar de estudar religião havia muitos anos, não era um homem religioso. Respeitava o poder da fé, a benevolência das igrejas, a força que a religião dava a tantas pessoas... e no entanto, no seu próprio caso, a suspensão intelectual da descrença que era um imperativo para quem quisesse verdadeiramente «acreditan) sempre se revelara um obstáculo que o seu espírito académico não conseguia ultrapassar.

128 DAN BRONXTSI

— Quero acreditar — ouviu-se a si mesmo dizer. A resposta de Vittoria não continha qualquer julgamento ou desafio. — Então por que não acredita? Ele riu-se. — Bem, não é assim tão fácü. Ter fé implica satos de fé, a aceita

ção cerebral de milagres... concepções imaculadas e intervenções divinas. E depois, há os códigos de conduta. A Bíbua, o Corão, as escrituras budistas... todos fazem exigências semelhantes... e todos ameaçam com castigos idênticos. Afirmam que se uma pessoa não viver de acordo com um determinado código irá para o inferno. Não consigo imaginar um Deus que governe dessa maneira.

— Espero que não deixe os seus alunos fugirem às perguntas com tanto descaramento.

O comentário apanhou-o desprevenido. — Como? — Doutor Langdon, não lhe perguntei se acreditava no que os ho

mem dizem a respeito de Deus. Perguntei-lhe se acredita em Deus. Há uma diferença. As sagradas escrituras são contos... lendas e a história do esforço do homem para compreender a sua própria necessidade de significado. Não estou a pedir-lhe que faça juízos sobre literatura. Estou a perguntar-lhe se acredita em Deus. Quando está estendido de costas num campo, sob as estrelas, sente a presença do divino? Sente, lá bem no fundo, que está a olhar para a obra de Deus?

Langdon demorou um longo momento a considerar a pergunta. — Estou a meter-me onde não sou chamada. Peço desculpa —

disse Vittoria. — Não, é que eu... — Com certeza deve debater questões de fé com os seus alunos. — Interminavelmente. — E faz o papel de advogado do diabo, imagino. Sempre a alimen

tar o debate. Langdon sorriu. — Também deve ser professora. — Não, mas aprendi com um mestre. O meu pai era capaz de ar

gumentar a favor dos dois lados da fita de Mobius. Langdon riu-se, imaginando a artificiosa elaboração de uma Fita

de Mobius — uma tira de papel enrolada em forma de oito e de tal

ANJOS E DEMÓNIOS 129

modo que tecnicamente tem só um lado. Tinha-a visto pela primeira vez numa obra de M. C. Escher.

— Posso fazer-lhe uma pergunta, doutora Vetra? — Trate-me por Vittoria. Doutora Vetra faz-me sentir velha. Ele suspirou para dentro, repentinamente consciente da sua pró

pria idade. — Vittoria, sou o Robert. — Tinha uma pergunta. — É verdade. Como cientista e filha de um sacerdote católico,

o que pensa da religião? Vittoria hesitou, afastando dos olhos uma madeixa de cabelo. — A religião é como a linguagem, ou a maneira de vestir. Somos

atraídos para as práticas em que fomos educados. No fim, porém, todos proclamamos a mesma coisa. Que a vida tem um significado. Que estamos gratos ao poder que nos criou.

Langdon parecia intrigado. — O que está a dizer, então, é que sermos Cristãos ou Muçulma

nos depende apenas do lugar onde nascemos? — Não é óbvio? Veja a difusão da religião no mundo. — A fé é então aleatória? — De modo nenhum. A fé é universal. Os nossos métodos especí

ficos de entendê-la é que são arbitrários. Alguns de nós rezam a Jesus, outros vão a Meca, outros estudam partícxilas subatómicas. No fundo, andamos todos simplesmente à procura da verdade, uma verdade maior do que nós.

Langdon desejou que os seus alunos soubessem exprimir-se com a mesma clareza. Raios, desejou que ele próprio soubesse exprimir-se com a mesma clareza.

— E Deus? — perguntou. — Acredita em Deus? Vittoria ficou silenciosa durante muito tempo. — A ciência diz-me que Deus deve existir. O meu cérebro diz-me

que nunca serei capaz de compreender Deus. E o meu coração diz-me que não deverei conseguir.

Que tal como condsão?, pensou Langdon. — Acredita então que Deus é um facto, mas que nunca conseguirá

compreendê-l'O?

130 DAN BROWN

— Compreendê-1'A — disse ela, com um sorriso. — Os seus americanos nativos tinham razão.

Langdon riu-se. — A Mãe Terra. — Gea. O planeta é um organismo. Todos nós somos células com

diferentes propósitos. E apesar disso interligados. Servindo-nos uns aos outros. Servindo o todo.

Ao olhar para ela, Langdon sentiu agitar-se no fiindo de si mesmo uma sensação que não experimentava havia muito tempo. Tinha uma luminosidade enfeitiçante nos olhos... uma pureza na voz. Sentiu-se esgotado.

— Deixe-me fazer-lhe outra pergunta, doutor Langdon. — Robert — disse ele. Doutor Langdon fa^me sentir velho. Sou velho! — Se não se importa que lhe pergunte, Robert, como foi que se

envolveu com os Illuminati? Langdon recuou no tempo. — Para dizer a verdade, foi uma questão de dinheiro. Vittoria pareceu desapontada. — Dinheiro? Está a falar de uma consultoria? Langdon riu-se, apercebendo-se de como as suas palavras deviam

ter soado. — Não. Dinheiro, notas. — Meteu a mão no bolso das calças e ti

rou de lá algum dinheiro. Encontrou uma nota de dólar. — Fiquei fascinado com o culto quando descobri que o papel-moeda americano está cheio de simbologia Illuminata.

Vittoria semicerrou os olhos, aparentemente sem saber muito bem se devia ou não levá-lo a sério.

Langdon entregou-lhe a nota. — Repare no verso. Está a ver o Grande Selo, à esquerda? Vittoria voltou a nota. — Refere-se à pirâmide? — A pirâmide. Sabe o que é que as pirâmides têm a ver com a His

tória dos Estados Unidos? Ela encolheu os ombros. — Exacto — disse Langdon. — Absolutamente nada. Vittoria franziu a testa.

ANJOS E DEMÓNIOS 131

— Então por que é a pirâmide o elemento central áo vosso Grande Selo?

— É uma história estranha — respondeu Langdon. — A pirâmide é um símbolo oculto que representa a convergência para cima, no sentido da fonte última de Iluminação. Vê o que está por cima?

Ela estudou a nota. — Um olho dentro de um triângulo. — Chama-se trinacria. Já viu o olho dentro de um triângulo em

qualquer outro lugar? Vittoria ficou calada por um instante. — A verdade é que sim, mas não tenho a certeza... — Aparece nas Lojas maçónicas de todo o mundo. — O símbolo é maçónico? — Não, é dos llluminati. Chamavam-lhe o Delta Brilhante. Um apelo

à mudança esclarecida. O olho significa a capacidade de os llluminati se infiltrarem e observarem todas as coisas. E o triângulo é também a letra grega delta, que é o símbolo matemático de...

— Mudança. Transição. Langdon sorriu. — Esqueci-me de que estou a faiar com uma cientista. — Está então a dizer que o Grande Selo dos Estados Unidos é um

apelo a uma mudança esclarecida, clarividente? — Haveria quem lhe chamasse uma Nova Ordem Mundial. Vittoria pareceu sobressaltada. Voltou a olhar para a nota. — Novus Ordo Seclorum — disse Langdon. — Significa Nova Or

dem Secular. — Secular no sentido de não religiosa? — Exacto. A frase não só afirma claramente o objectivo dos lllu

minati, como também contradiz descaradamente a que está ao lado. In God We Trust. Confiamos em Deus.

Vittoria estava pertorbada. — Mas como pôde toda esta simbologia ir parar à mais poderosa

moeda do mundo? — A maior parte dos académicos acredita que foi pela mão do vice-

-presidente Henry Wallace. Wallace pertencia aos altos graus da Maçonaria e tinha de certeza ligações aos llluminati. Se era membro ou estava

132 DAN BROWN

inocentemente sob a influencia deles, ninguém sabe. Mas foi ele quem vendeu o desenho do Grande Selo ao presidente.

— Como? Porque havia o presidente de concordar com... — O presidente era Franklin D. Roosevelt. Wallace limitou-se a di-

zer-lhe que Novus Ordo Seclorum significava Neiv Deal. Vittoria fez um ar céptico. — E Roosevelt não pediu a mais ninguém para dar uma vista de

olhos ao símbolo antes de mandar o Departamento do Tesouro imprimi-lo?

— Não precisava. Ele e Wallace eram irmãos. — Irmãos? — Verifique os seus livros de História — disse Langdon, com um

sorriso. — Franklin D. Roosevelt era um conhecido maçon.

CAPITULO TRINTA E DOIS

Langdon conteve a respiração quando o X-33 iniciou a descida em espiral para o aeroporto internacional Leonardo da Vinci. Vittoria sen-tava-se do outro lado da coxia, de olhos fechados, como que a tentar controlar a situação através de pura força de vontade. O aparelho tocou no chão e seguiu directamente para um hangar privado.

— Peço desculpa pela lentidão do voo — disse o puoto, saindo do cockpit. — Tive de travá-lo um pouco. Regulamentos de rmdo sobre áreas povoadas.

Langdon consultou o relógio. Tinham estado no ar trinta e sete minutos.

O piloto abriu a porta da cabina. — Alguém quer explicar-me o que se está a passar? Nem Vittoria nem Langdon responderam. — Óptimo — disse o homem, espreguiçando-se. — Vou estar no

cockpit, com o ar condicionado e a minha música. Só eu e Garth.

O Sol do fim de tarde brilhava no exterior do hangar. Langdon levava o casaco de tweed ao ombro. Vittoria ergueu o rosto para o céu e inspirou profundamente, como se de algum modo os raios solares transferissem para ela uma mística recarga de energia.

Mediterrânicos, pensou Langdon, já a transpirar. — Um pouco velho para desenhos animados, não é? — comentou

Vittoria, sem abrir os olhos. — Desculpe? — Vi o seu relógio, no avião. Langdon corou ligeiramente. Estava habituado a ter de defender

o seu relógio. A edição de coleccionador do relógio Kato Mickey fora

134 DAN BROWN

uma prenda de infância dos pais. Apesar das delirantes contorções dos braços de Mickey a indicar as horas, era o único relógio que alguma vez usara. A prova de água e fosforescente, era perfeito para fazer umas piscinas ou para passear pelos escuros caminhos do campus durante a noite. Quando os alunos lhe questionavam o sentido de moda, respondia--Ihes que aquele relógio lhe recordava todos os dias a necessidade de manter um espírito jovem.

— São seis horas — disse. Vittoria assentiu, de olhos ainda fechados. —Julgo que vem aí o nosso transporte. Langdon ouviu um silvo distante, ergueu os olhos e sentiu o co

ração afundar-se-lhe no peito. Vindo de norte, um helicóptero voava baixo sobre a pista. Voara de helicóptero uma vez, no vale andino de Palpa, para examinar as marcas na areia de Nazca, e não gostara nem um bocadinho. Uma caixa de sapatos voadora. Depois de uma manhã de voos num avião espacial, esperara que o Vaticano tivesse a decência de mandar um carro.

Aparentemente, não. O helicóptero abrandou por cima deles, pairou por alguns instan

tes e desceu para a pista. Era branco e tinha um brasão pintado num dos lados — duas chaves atravessadas sobre um escudo e uma coroa papal. Langdon conhecia bem o símbolo. Era o tradicional Selo do Vaticano — o símbolo sagrado da Santa Sé, ou «santa sede» do governo, sendo a «sede» literalmente o antigo trono de São Pedro.

O Santo Helicóptero, resmungou para si mesmo, vendo o aparelho aterrar. Esquecera que o Vaticano tinha uma daquelas coisas, que usava para transportar o Papa até ao aeroporto, a encontros ou ao seu palácio de Verão em Gandolfo. Teria definitivamente preferido um carro.

O piloto saltou da cabina e avançou para eles. Foi a vez de Vittoria parecer pouco à-vontade. — Aquilo é o nosso piloto? Langdon partilhava a preocupação dela. — Voar ou não voar. Eis a questão. O piloto parecia ataviado para representar um drama shakesperia-

no. A túnica tufada dividia-se em brilhantes riscas verticais douradas e azuis. Usava calças a condizer e polainas. Calçava uns sapatos pretos.

ANJOS E DEMÓNIOS 135

sem salto, que pareciam chinelos. Na cabeça, ostentava um barrete de feltro negro.

— O uniforme tradicional da Guarda Suíça — explicou Langdon. — Desenhado por nada menos que Miguel Angelo. — Fez uma careta, enquanto via o homem aproximar-se. — Admito que não foi uma das melhores realizações do mestre.

Via-se que, apesar da garridice da indumentária, o püoto do helicóptero levava muito a sério o seu papel. Avançou para eles com toda a pompa e dignidade de um flizueiro dos Estados Unidos. Langdon lera muito a respeito das rigorosas exigências impostas aos pretendentes à entrada para aquele corpo de elite. Recrutados num dos quatro cantões católicos helvéticos, os candidatos tinham de ser varões suíços entre os dezoito e os trinta anos, com pelo menos um metro e setenta e cinco de altura, treinados pelo Exército suíço, e solteiros. Aquele corpo imperial era invejado pelos governos do mundo inteiro como a mais leal e mortífera força de segurança do planeta.

— São do CERN? — perguntou o guarda, detendo-se diante deles. A voz parecia aço.

— Sim — respondeu Langdon. — Fizeram um tempo notável — comentou o piloto, lançando ao

X-33 um olhar confuso. Voltou-se para Vittoria. — Posso perguntar--Ihe, minha senhora, se tem outras roupas?

— Desculpe? — Não é permitido o uso de calções curtos no interior do Vatica

no — disse o homem, indicando as pernas dela. Langdon seguiu a direcção do gesto e franziu a testa. Esquecera-se

completamente daquele pormenor. A Cidade do Vaticano proibia estritamente as pernas nuas acima do joelho — tanto masculinas como femininas. O regulamento era uma maneira de mostrar respeito para com a santidade da Cidade de Deus.

— É só o que tenho — respondeu ela. — Viemos à pressa. O guarda assentiu, claramente desagradado. Voltou-se então para

Langdon. — Traz consigo quaisquer armas? Armas?, pensou Langdon. Nem sequer trago uma muda de roupa interior.

Abanou a cabeça.

136 DAN BROWN

O piloto acocorou-se diante dele e começou a revistá-lo, principiando pelas meias. Sujeito desconfiado, pensou Langdon. As mãos fortes do guarda subiram-lhe pelas pernas, chegando desconfortavelmente perto das virilhas, e por fim passaram para o peito e ombros. Aparentemente convencido de que Langdon não transportava armas, o guarda voltou-se para Vittoria. Os olhos dele percorreram-lhe o corpo dos pés à cabeça.

— Nem sequer pense nisso — disse ela, num tom gelado. O guarda olhou-a com uma fixidez que pretendia claramente ser

intimidante. Vittoria nem pestanejou. — O que é isso? — perguntou o homem, apontando para uma pe

quena protuberância rectangular no bolso da frente dos calções dela. Vittoria tirou do bolso um telemóvel ultrafino. O guarda pegou

nele, ligou-o, esperou até ouvir o sinal de rede e só então, parecendo convencido de que era de facto apenas um telefone, devolveu-o. Vittoria voltou a enfiá-lo no bolso.

— Volte-se, por favor — pediu o guarda. Vitoria obedeceu, rodando trezentos e sessenta graus com os bra

ços levantados. O guarda examinou-a com atenção. Langdon já tinha decidido que

os calções e a blusa da jovem não apresentavam quaisquer volumes que não devessem lá estar. Aparentemente, o guarda chegou à mesma conclusão.

— Obrigado. Venham comigo, por favor.

O rotor do helicóptero da Guarda Suíça continuava a girar em ponto morto quando Langdon e Vittoria se aproximaram. Ela foi a primeira a subir para bordo, com a desenvoltura de uma profissional daquelas andanças, quase não se detendo ao passar por baixo das pás que rodavam. Langdon hesitou um instante.

— Suponho que está fora de questão irmos de carro? — gritou, meio a brincar, ao guarda, que se instalava no lugar do piloto.

O homem não respondeu. Langdon sabia que, com a maneira perfeitamente louca como os

romanos conduziam, ir de helicóptero até talvez fosse mais seguro.

ANJOS E DEMONIOS 137

mesmo assim. Inspirou fundo e subiu para o aparelho, inclinando-se cautelosamente ao passar por baixo do rotor.

— Encontraram o contentor? — perguntou Vittoria, enquanto o guarda acelerava o motor.

O guarda olhou por cima do ombro, com uma expressão confusa. — Encontrámos o quê? — O contentor. Ligaram para o GERN a respeito de um contentor. O homem encoLhea os ombros. — Não faço ideia do que está a falar. Temos andado ocupados

todo o dia. O meu comandante mandou-me vir buscá-los. E tudo o que sei.

Vittoria lançou a Langdon um olhar preocupado. — Apertem os cintos, por favor — gritou o piloto, acima do silvo

cada vez mais alto do motor. Langdon procurou o cinto de segurança e prendeu-o. A pequena

fuselagem pareceu encolher à volta dele. Então, como que empinan-do-se, o aparelho saltou e voltou-se numa curva apertada para norte, em direcção a Roma.

Koma... o caput mundi, onde César reinou, onde São Pedro foi crucificado. O berço da civilização moderna. E, no coração da cidade... uma bomba ia contando os segundos que faltavam.

CAPITULO TRINTA E TRES

Vista do ar, Roma é um labirinto — um dédalo inextricável de antigas ruas que se contorcem à volta de edifícios, fontes e ruínas.

O helicóptero manteve-se a baixa altitude enquanto seguia para noroeste através da omnipresente manta de smog tossida para o ar pelos eternos engarrafamentos de trânsito. Langdon contemplava lá de cima as motocicletas, os autocarros de turismo e os exércitos de diminutos Viat que zumbiam à volta das rotundas em todas as direcções. Koyaanis-qatsi, pensou, recordando a palavra hopi para «vida sem equilíbrio».

Vittoria sentava-se, absorta num silêncio determinado, no banco ao lado dele.

O helicóptero incHnou-se e desceu bruscamente, numa curva apertada.

Com o estômago a subir-lhe à boca, Langdon alongou o olhar até mais longe. Avistou as paredes derruídas do Coliseu romano. O Coliseu, sempre o pensara, era uma das grandes ironias da História. Agora um respeitado símbolo da ascensão da cultura e da civilização humanas, fora construído para servir de palco a séculos de eventos bárbaros — leões esfomeados a despedaçar prisioneiros, exércitos de escravos lutando até à morte, violações em massa de mulheres exóticas trazidas de terras distantes, além de decapitações e castrações públicas. Era irónico, pensou Langdon, ou talvez apropriado, o facto de o Coliseu ter servido de modelo arquitectónico ao Soldier Field de Harvard — o estádio de futebol onde as antigas tradições de selvajaria eram revividas todos os Outonos... multidões enlouquecidas a clamar por sangue enquanto Harvard enfrentava Yale em cruenta batalha.

Enquanto o helicóptero continuava para norte, Langdon espreitou o Fórum Romano — o coração da Roma pré-cristã. As colunas degradadas pareciam pedras tumulares caídas num cemitério que conse-

ANJOS E DEMÓNIOS 139

guira de um modo ou de outro evitar ser engolido pela metrópole que o rodeava.

Para oeste, a vasta bacia do Tibre traçava grandes arcos através da cidade. Mesmo do ar, percebia-se que as águas eram profundas, riscadas por agitadas correntes em tons de castanho, espumejantes e carregadas de sedimentos carreados pelas chuvas.

— Mesmo em frente — disse o piloto, ganhando altitude. Langdon e Vittoria olharam e viram. Como uma montanha a ras

gar a bruma matinal, a colossal cúpula erguia-se na névoa, à frente deles: a Basílica de São Pedro.

—Aquilo — disse Langdon, dirigindo-se a Vittoria — foi uma coisa que Miguel Angelo fez bem-feita.

Nunca tinha visto São Pedro do ar. A fachada de mármore refulgia como fogo ao sol da tarde. Enfeitado com cento e quarenta estátuas de santos, mártires e anjos, o hercúleo edifício tinha a largura de dois campos de futebol e o comprimento de seis. O cavernoso interior podia albergar sessenta mu fiéis... mais de cem vezes a população da Cidade do Vaticano, o país mais pequeno do mundo.

Incrivelmente, porém, nem mesmo uma cidadela daquela magnitude conseguia roubar imponência à praça que se espraiava a seus pés. Vasta extensão de granito, a Praça de São Pedro era um surpreendente espaço aberto na congestionada Roma, uma espécie de Central Park clássico. A frente da Basílica, debruando a grande oval, duzentas e oitenta e quatro colunas estendiam-se para fora em quatro arcos concêntricos de tamanho decrescente... um trompe /o«'/arquitectural usado para realçar a sensação de grandeza do lugar.

Enquanto contemplava o magnifico santuário, Langdon perguntou a si mesmo o que acharia São Pedro se ali estivesse naquele momento. O santo sofrera uma morte horrível, crucificado de cabeça para baixo naquele preciso local. Repousava agora no mais sagrado dos túmulos, cinco pisos abaixo do nível do chão, exactamente sob a cúpula central da Basílica.

— A Cidade do Vaticano — disse o piloto, num tom que foi tudo menos de boas-vindas.

Langdon olhou para os altos bastiões de pedra que se erguiam à sua frente — fortificações impenetráveis a rodear o complexo... uma defesa

140 DAN BRO\XTSI

estranhamente terrena para um mundo espiritual de segredos, poder e mistério.

— Olhe! — disse subitamente Vittoria, agarrando-lhe um braço. Apontava freneticamente para a Praça de São Pedro, directamente por baixo deles. Langdon encostou a cara ao vidro da janela e olhou. — Ali! — insistiu ela, apontando.

A parte traseira da praça parecia um parque de estacionamento ocupado por cerca de uma dúzia de camiões e reboques. Do alto de cada um deles, grandes antenas parabólicas voltavam-se para o céu, ostentando nomes conhecidos:

TELEVISOR EUROPEA

VIDEO ITALIA

BBC

UNITED PRESS INTERNATIONAL

Langdon sentiu-se repentinamente confuso, perguntando a si mesmo se as noticias sobre a antimatéria já teriam transpirado para os media.

Vittoria estava tensa. — Que está a imprensa aqui a fazer? Que se passa? O piloto voltou-se e lançou-lhe por cima do ombro um olhar es

pantado. — O que se passa? Quer dizer que não sabe? — Não! — ripostou ela, num tom rouco e forte. — II Conclave — disse o homem. — Começa dentro de uma hora.

O mundo inteiro está à espera.

II Conclave.

A palavra ecoou por um longo momento nos ouvidos de Langdon antes de lhe cair, como um tijolo, no fundo do estômago. II Conclave. O Conclave do Vaticano. Como pudera esquecer? Estivera recentemente em todos os noticiários.

Quinze dias antes, o Papa falecera, pondo fim a um pontificado de doze anos tremendamente popular. Todos os jornais do mundo tinham publicado a história do AVC fetal que vitimara o pontífice en-

ANJOS E DEMÓNIOS 141

quanto dormia — uma morte súbita e inesperada que muitos consideravam suspeita. Mas agora, de acordo com a tradição sacra, quinze dias depois da morte do Papa, o Vaticano reunia // Conclave — a cerimónia sagrada em que os cento e sessenta e cinco cardeais de todo o mundo, os homens mais poderosos da Cristandade — se reuniam para eleger o sucessor.

Todos os cardeais do planeta estão aqui hoje, pensou Langdon enquanto o helicóptero passava por cima da Praça de São Pedro. O mundo interior da Cidade do Vaticano espraiava-se por baixo dele. A. estrutura de poder da Igreja Católica Apostólica Romana está sentada inteirinha em cima de uma bomba-relógio.

CAPITULO TRINTA E QUATRO

O cardeal Mortati ergueu os olhos para o sumptuoso tecto da Capela Sistina e tentou encontrar um momento de serenidade. As paredes cobertas de frescos ecoavam com as vozes de prelados oriundos de países espalhados por todo o mundo. Moviam-se pelo tabernáculo alumiado pela luz de velas murmurando excitadamente e conferenciando uns com os outros em muitas línguas, mas sobretudo em inglês, italiano e espanhol.

A luminosidade na capela era habitualmente sublime — longos e coloridos raios de sol que rasgavam a escuridão como lanças vindas do céu —, mas naquele dia não. Em obediência ao costume, todas as janelas tinham sido cobertas com panos de veludo negro, em nome do segredo. Destinava-se isto a garantir que ninguém no interior poderia enviar sinais ou comunicar fosse de que maneira fosse com o mundo lá de fora. O resultado era uma escuridão profunda iluminada apenas por velas... uma luz bruxuleante que parecia purificar todos os que tocava, dando-lhes um ar fantasmagórico... como santos.

Que privilégio, pensou Mortati, presidir a este santificado aconteámento. Os cardeais com mais de oitenta anos eram demasiado velhos para serem elegíveis e não assistiam ao Conclave, mas, com setenta e nove, Mortati era o mais antigo e fora escolhido para dirigir o evento.

De acordo com a tradição, os cardeais reuniam-se ali duas horas antes do início do Conclave, para reencontrar velhas amizades e entabular negociações de última hora. Às sete da tarde, o camareiro do falecido Papa apareceria, faria a oração de abertura e retirar-se-ia. Então, os guardas suíços selariam as portas, trancando os cardeais no interior. Só voltariam a ser libertados depois de decidirem qual de entre eles seria o novo Papa.

ANJOS E DEMONIOS 143

Conclave. Até o nome evocava segredo. «Con clave» significava literalmente «fechado à chave». Não seria permitido aos cardeais qualquer contacto com o mundo exterior. Nem telefonemas. Nem mensagens. Nem murmúrios sussurrados através de portas fechadas. O Conclave era um vazio que não podia ser influenciado pelo que quer que fosse vindo de fora. Pretendia-se assim assegurar que os cardeais teriam Solum Dumprae oculis... apenas Deus diante dos olhos.

No exterior das paredes da capela, claro, os media vigiavam e esperavam, especulando sobre qual dos cardeais iria tornar-se o Uder de mil milhões de católicos em todo o mundo. Os Conclaves criavam uma atmosfera intensa, politicamente carregada, e, ao longo dos séculos, alguns tinham-se revelado mortíferos: envenenamentos, cenas de pugilato e até assassínios tinham ocorrido dentro das paredes sagradas. História antiga, pensou Mortati. Uste Conclave vai ser unificador, paafico e sobretudo... curto.

Ou, pelo menos, tinha sido essa a sua esperança. Agora, no entanto, surgira um desenvolvimento inesperado. Qua

tro cardeais estavam inexplicavelmente ausentes da capela. Mortati sabia que todas as saídas do Vaticano estavam guardadas e que os cardeais faltosos não poderiam ter ido muito longe, mas mesmo assim, com menos de uma hora antes da oração de abertura, sentia-se desconcertado. Ao fim e ao cabo, os quatro ausentes não eram cardeais vulgares. Eram os Cardeais.

Os quatro escolhidos. Como supervisor do Conclave, já enviara, através dos canais ade

quados recado à Guarda Suíça, alertando-a para a situação. Ainda não tivera notícias. Outros tinham-se entretanto apercebido das intrigantes ausências. E já haviam começado os murmúrios. De todos os cardeais, aqueles quatro deviam ter chegado a horas! O cardeal Mortati começava a temer que aquela viesse a ser uma longa noite, apesar de tudo.

Nem ele imaginava como.

CAPITULO TRINTA E CINCO

O heliporto ficava, por razões de segurança e controlo de ruídos, situado no extremo noroeste da Cidade do Vaticano, tão longe quanto possível da Basílica de São Pedro.

— Terra firme — anunciou o piloto, quando pousaram. Apeou-se e abriu a porta de correr a Langdon e a Vittoria.

Langdon desceu do aparelho e voltou-se para ajudar a jovem, mas já ela saltara agilmente para o chão. Todos os músculos do seu corpo pareciam sintonizados com um único objectivo — encontrar a antimatéria antes que ela deixasse um horrível legado.

Depois de ter esticado uma pala reflectora sobre a janela da cabina, como protecção contra o Sol, o piloto conduziu-os até uma espécie de carrinho de golfe eléctrico, só que bastante maior, que aguardava junto da placa. O veículo transportou-os silenciosamente ao longo da fronteira ocidental do país — uma muralha de cimento com quinze metros de altura, suficientemente robusta para aguentar o ataque até de tanques. Numa espécie de caminho de ronda, a intervalos de cinquenta metros, guardas suíços, numa rígida posição de sentido, vigiavam atentamente o interior do complexo. O carro virou à direita, entrando na Via deUa Osservatorio. Tabuletas indicavam várias direcções:

PALAZZO GOVERNATORIO COLLEGIO ETIOPE BASILICA SAN PILTRO CAPELLA SISTINA

Aceleraram ao longo da esmeradamente cuidada via, passando diante de um edifício atarracado sobre cuja porta se lia: RADIO VATICANA. Era ali, compreendeu Langdon para seu grande espanto, o centro ner-

ANJOS E DEMÓNIOS 145

VOSO da estação de rádio mais ouvida do mundo — a Radio Vaticana — que levava a palavra de Deus a rrdlhões de ouvintes espalhados por todo o planeta.

— Atten^ione — avisou o puoto, virando bruscamente à direita numa rotunda.

Quando o carro completou a curva, Langdon quase não queria acreditar na vista que se lhe deparou. Giardini Vaticani, pensou. O coração da Cidade do Vaticano. Directamente em frente, erguiam-se as traseiras da Basílica de São Pedro, uma perspectiva, apercebeu-se, que a maior parte das pessoas nunca via. A direita, avistava-se o Palácio do Tribunal, a sumptuosa residência papal cuja decoração barroca só tinha rival na magnificência de Versalhes. O Governatorato, de aspecto severo, estava agora atrás deles, abrigando a administração da Cidade do Vaticano. E mais à frente, do lado esquerdo, avultava o edifício maciço e rectangular do Museu do Vaticano. Langdon soube que não haveria tempo para visitas a museus durante aquela viagem.

— Onde se meteram as pessoas? — perguntou Vittoria, observando, com alguma surpresa, os relvados e os caminhos desertos.

O guarda consultou o cronometro negro, de estilo militar, que tinha no pulso — um curioso anacronismo por baixo da manga tufada.

— Os cardeais estão reunidos na Capela Sistina. O Conclave começa dentro de pouco menos de uma hora.

Langdon assentiu, recordando vagamente que, antes do Conclave, os cardeais passavam duas horas dentro da Capela Sistina em tranquila reflexão e consultas mútuas com os seus colegas vindos de todos os pontos do globo. A intenção era reatar antigas amizades entre os prelados e promover um processo eleitoral menos acalorado.

— E os restantes residentes e membros do pessoal? — Banidos da cidade, por motivos de segredo e segurança, até ao

fim do Conclave. — E quando acaba o Conclave? O guarda encolheu os ombros. — Só Deus sabe. Aos ouvidos de Langdon, as palavras soaram estranhamente Hterais.

Depois de ter estacionado o carrinho eléctrico no relvado imediatamente junto às traseiras da Basílica, o guarda subiu à frente deles um

146 DAN BROWN

pequeno decHve empedrado até uma praça de chão de mármore. Atra-vessando-a, aproximaram-se da parede posterior do templo e seguiram ao longo dela passando por um pátio triangular, pela Via Belvedere e por um conjunto de edifícios que pareciam estar muito apertados uns contra os outros. O estudo da História de Arte ensinara a Langdon o italiano suficiente para 1er as tabuletas que apontavam a Imprensa do Vaticano, o Laboratório de Restauração de Tapeçarias, a Administração dos Correios e a Igreja de Sant'Ana. Atravessaram mais uma pequena praça e chegaram finalmente ao destino.

O gabinete da Guarda Suíça fica contíguo ao II Corpo di Vigilanza, junto à face nordeste da Basílica de São Pedro. É um edifício de pedra, baixo e atarracado. De cada lado da porta havia uma sentinela, imóvel como uma estátua.

Aqueles guardas tinham, viu-se Langdon obrigado a admitir, um ar que podia ser tudo menos cómico. Apesar de envergarem o uniforme azul e dourado, cada um deles empunhava a tradicional «espada comprida do Vaticano» — uma alabarda com dois metros e quarenta de comprido e uma lâmina afiada como uma navalha que, dizia-se, decapitara incontáveis muçulmanos em defesa dos cruzados cristãos, no século XV.

Quando Langdon e Vittoria se aproximaram, os dois guardas deram um passo em frente e cruzaram as alabardas, barrando-lhes a passagem. Um deles olhou para o piloto, com uma expressão confusa.

— Ipantaloni— disse, apontando para os calções de Vittoria. O piloto fez-lhes sinal para que se afastassem. — // comandante vuok vederli subito -— explicou.

Os guardas franziram a testa. Relutantemente, recuaram para as posições iniciais.

Lá dentro, o ar estava fresco. O local não se parecia em nada com o centro administrativo de uma força de segurança tal como Langdon o imaginava. Decorados e impecavelmente mobilados, os corredores ostentavam quadros que, Langdon tinha a certeza, qualquer museu do mundo se orgulharia de expor na sua principal galeria.

O piloto apontou para um lanço de escadas que descia. — Por aqui, por favor.

ANJOS E DEMÓNIOS 147

Langdon e Vittoria desceram os degraus de mármore branco por entre duas filas de esculturas de nus masculinos. Cada estátua tinha a ta-par-lhe o baixo-ventre uma parra cuja cor era ligeiramente mais clara do que o resto do corpo.

A Grande Castração, pensou Langdon. Fora uma das mais horríveis tragédias sofridas pela arte da Renas

cença. Em 1857, o Papa Pio IX decidira que a representação exacta da forma masculina poderia incitar à luxúria dentro do Vaticano. Portanto, pegara num cinzel e num malho e decepara os órgãos genitais de todas as estátuas masculinas da Cidade do Vaticano. Desfigurou deste modo obras de Miguel Angelo, Bramante e Bernini. Recorreu-se a folhas de videira de gesso para tapar os estragos. Centenas de estátuas tinham sido emasculadas. Langdon perguntara muitas vezes a si mesmo se não haveria algures um grande caixote cheio de pénis de pedra.

— Aqui — anunciou o guarda. Chegaram ao fundo das escadas e viram-se diante de uma enorme

porta de aço. O guarda digitou um código de entrada e a porta deslizou para um lado. Langdon e Vittoria entraram.

Do outro lado, a balbúrdia era total.

CAPITULO TRINTA E SEIS

O gabinete da Guarda Suíça. Langdon deteve-se à entrada, contemplando a colisão de séculos

que tinha à sua frente. Meios misturados. A sala era uma biblioteca renascentista magnificamente decorada, com estantes em talha, tapetes orientais e coloridas tapeçarias de parede... cheia de equipamento de alta-tecnologia: computadores,^XÍJ, mapas electrónicos do complexo do Vaticano, televisores sintonizados para a CNN. Homens envergando calças de tons garridos dedilhavam febrilmente teclados de computadores e escutavam, atentos, auscultadores de aspecto futurista.

— Esperem aqui — disse o guarda. Esperaram, enquanto o guarda atravessava a sala em direcção a um

indivíduo excepcionalmente alto e seco, que vestia um uniforme militar azul-escuro. Estava a falar a um telemóvel e mantinha-se tão exageradamente direito que quase se inclinava para trás. O guarda disse-lhe qualquer coisa e o homem lançou um olhar a Langdon e Vittoria. Então voltou-lhes as costas e continuou a falar ao telefone.

O guarda regressou para junto deles. — O comandante Olivetti recebe-os dentro de momentos — disse. — Obrigado. Sem mais uma palavra, o guarda saiu e subiu as escadas. Langdon estudou o comandante Olivetti, do outro lado da sala,

apercebendo-se de que aquele homem era de facto o comandante-che-fe das Forças Armadas de todo um país. Continuaram à espera, observando o que se passava diante deles. Guardas vistosamente vestidos andavam de um lado para o outro, gritando ordens em italiano.

— Continua cercando! — berrava um deles para um telefone. — Probasti il museo? — perguntava outro.

ANJOS E DEMONIOS 149

Langdon não precisava de ser fluente em italiano para perceber que aquele centro de segurança estava de momento em estado de alerta. Estas eram as boas notícias. As más notícias era que não tinham ainda obviamente encontrado a antimatéria.

— Está bem? — perguntou Langdon a Vittoria. Ela encolheu os ombros, esboçando um sorriso cansado. Quando o comandante desligou finalmente o telefone e come

çou a atravessar a sala em direcção a eles, deu a impressão de tornar-se maior a cada passo. Langdon era bastante alto e não estava habituado a ter de erguer os olhos para muitas pessoas, mas o comandante Olivetti exigia-o. Sentiu de imediato que estava ali alguém que já enfrentara muitas tempestades; lia-se-lho no rosto pálido e duro. Usava um corte de cabelo muito curto, tipicamente militar, e os olhos ardiam com um tipo de determinação que só se consegue ao cabo de muitos anos de treino intenso. Movia-se com a precisão de um aríete, e o auscultador discretamente escondido atrás da orelha fazia-o parecer mais um membro dos Serviços Secretos Americanos do que da Guarda Suíça.

Dirigiu-se-lhes num inglês com sotaque italiano. A voz era surpreendentemente baixa para um homem daquele tamanho, pouco mais do que um murmúrio. Soava com uma eficiência seca, militar.

— Boa tarde — disse. — Sou o comandante Olivetti... Comandante Prinrípale da Guarda Suíça. Fui eu que telefonei ao vosso director.

Vittoria olhou para cima. — Obrigada por nos receber, senhor. O comandante não respondeu. Fez-lhes sinal para que o seguissem

e guiou-os através do labirinto de equipamento electrónico até uma porta na parede lateral da sala.

— Entrem — disse, mantendo a porta aberta para eles passarem. Langdon e Vittoria obedeceram e viram-se numa sala de controlo

escurecida onde um enorme painel de monitores de vídeo mostrava preguiçosamente uma série de imagens a preto e branco do complexo. Um jovem guarda, sentado diante dos monitores, observava atentamente as imagens.

— Fuori— disse Olivetti. O guarda levantou-se e saiu. Ouvetti dirigiu-se a um dos monitores e apontou para ele. Voltou-

-se então para os seus convidados.

150 DAN BROWN

— Esta imagem está a ser transmitida por uma câmara de controlo remoto escondida algures na Cidade do Vaticano. Gostaria de ter uma explicação.

Langdon e Vittoria olharam para o visor e inspiraram em uníssono. A imagem não deixava margem para dúvidas. O que estavam a ver era o contentor de antimatéria do CERN. Dentro dele, uma refulgente gota de metal líquido pairava sinistramente em pleno ar, uuminada pelo piscar rítmico do mostrador do relógio digital. De uma maneira que contribuía para aumentar o efeito de ameaça, a área circundante era quase inteiramente negra, como se a antimatéria se encontrasse dentro de um armário ou numa sala escurecida. No canto superior direito do monitor, podia ler-se em letras brancas: LIVE FEED — CAMERA 86. A imagem estava, pois, a ser transmitida em directo pela câmara 86.

Vittoria olhou para o tempo que restava no indicador luminoso do contentor.

— Menos de seis horas — sussurrou para Langdon, o rosto tenso. Langdon consultou o relógio. — O que nos dá até... — Calou-se, com um nó a formar-se-lhe no

estômago. — A meia-noite — disse Vittoria, com um ar de desânimo. Meia-noite, pensou Langdon. Um gosto^nho pela teatralidade. Aparen

temente, quem roubara o recipiente na noite anterior planeara a acção ao segundo. Sentiu-se invadir por uma negra premonição ao aperce-ber-se de que se encontrava em plena zona de impacte total.

Desta vez, o murmúrio de OHvetti soou mais como um silvo. — Aquele objecto pertence à vossa organização? Vittoria assentiu. — Sim. Foi-nos roubado. Contém uma substância altamente com

bustível chamada antimatéria. Olivetti não pareceu impressionado. — Minha senhora, estou bastante familiarizado com produtos in

cendiários. Nunca ouvi falar de antimatéria. — É uma tecnologia nova. Temos de localizá-la imediatamente ou

evacuar a Cidade do Vaticano. Olivetti fechou lentamente os olhos e voltou a abri-los, como se

refocar Vittoria pudesse alterar o que acabava de ouvir.

ANJOS E DEMÓNIOS 151

— Evacuar? Tem consciência do que se vai passar aqui esta noite? — Tenho. E as vidas dos vossos cardeais estão em perigo. Temos

cerca de seis horas. Fizeram alguns progressos na localização do contentor?

Olivetti abanou a cabeça. — Não começámos a procurar. Vittoria quase se engasgou. — O quê? Mas nós ouvimos distintamente os seus guardas falarem

a respeito de procurar... — Procurar, sim — disse Olivetti —, mas não o vosso contentor.

Os meus homens andam à procura de uma coisa que não vos diz respeito.

A voz de Vittoria como que se quebrou. — Ainda nem sequer começaram a procurar o contentor? Os olhos de Olivetti deram a impressão de recuar para o interior

do crânio. Tinham a expressão desapaixonada de um insecto. — Doutora Vetra, não é? Deixe-me explicar-lhe uma coisa. O direc

tor da vossa instituição recusou partuhar comigo pelo telefone quaisquer pormenores a respeito deste objecto, a não ser para me dizer que tinha de encontrá-lo imediatamente. Estamos excepcionalmente ocupados, e não posso dar-me ao luxo de dispensar homens a uma situação antes de estar na posse de alguns factos.

— Neste momento, há apenas um facto relevante — disse Vittoria —, e é o seguinte: dentro de menos de seis horas, aquele objecto vai vaporizar todo este complexo.

Olivetti permaneceu imóvel. — Doutora Vetra, há algo que precisa de saber. — O tom dele ti

nha uma nota de condescendência. — Mau grado o aspecto arcaico da Cidade do Vaticano, todas as entradas, tanto públicas como privadas, estão equipadas com o mais sofisticado equipamento de detecção conhecido. Se alguém tentasse entrar com qualquer espécie de engenho incendiário, seria imediatamente descoberto. Temos detectores de isótopos radioactivos, filtros olfactivos concebidos pelo DEA americano para detectar a mais ligeira assinatura química de combustíveis ou toxinas. Usamos também os mais avançados detectores de metais e de raios-X disponíveis.

152 DAN BROWN

— Muito impressionante — disse Vittoria, respondendo taco-a--taco à frieza de OUvetti. — Infelizmente, a antimatéria não é radioactiva, a sua assinatura química é a do hidrogénio puro, e o contentor é de plástico. Nenhum desse equipamento seria capaz de detectá-lo.

— Mas o objecto contém uma fonte de energia — argumentou Olivetti, apontando para o mostrador LED. — Até o mais pequeno vestígio de níquel-cádmio seria...

— A bateria é também de plástico. A paciência de Olivetti começava claramente a esgotar-se. — Baterias de plástico? — Electrólito de gel polimerizado com Teflon. Olivetti inclinou-se para ela, como que para acentuar a vantagem

da sua altura. — Signorina, o Vaticano é alvo de dúzias de ameaças de bomba todos

os meses. Treinei pessoalmente todos os guardas sob o meu comando em moderna tecnologia de explosivos. Sei muito bem que não existe à face da Terra qualquer substância suficientemente potente para fazer aquuo que diz a menos que estejamos a falar de uma ogiva nuclear com um núcleo de combustível do tamanho de uma bola de basebol.

Vittoria fixou nele um olhar fulminante. — A natureza tem muitos mistérios ainda por revelar — disse. OHvetti incUnou-se ainda um pouco mais para a frente. — Posso perguntar-lhe quem é exactamente? Qual é a sua posição

n o CERN?

— Sou membro do escalão superior da equipa de investigação e fui nomeada elemento de ligação junto do Vaticano no âmbito da actual crise.

— Desculpe-me a indelicadeza, mas se há de facto uma crise, porque é que estou a falar consigo e não com o seu director? E que falta de respeito é essa de vir para o Vaticano de calções curtos?

Langdon gemeu. Nem queria acreditar que, naquelas circunstâncias, o homem estivesse disposto a levantar a questão das regras do vestuário. Por outro lado, pensando bem, se os pénis de pedra podiam atear a luxúria no Vaticano, Vittoria Vetra de calções podia sem a mínima dúvida ser uma ameaça para a segurança nacional,

— Comandante Olivetti — interveio, tentando despoletar o que parecia ser uma segunda bomba prestes a explodir. — Chamo-me Ro-

ANJOS E DEMÓNIOS 153

bert Langdon. Sou professor de estudos religiosos nos Estados Unidos e não estou ligado ao CERN. Assisti a uma demonstração dos efeitos da antimatéria e posso confirmar a afirmação da doutora Vetra de que é extraordinariamente perigosa. Temos motivos para crer que foi trazida para o interior do vosso complexo por um culto anti-religioso disposto a perturbar o vosso Conclave.

Olivetti voltou-se, olhando do alto para Langdon. — Tenho uma mulher de calções que me diz que uma pequena

gota de Hquido vai mandar pelos ares a Cidade do Vaticano e tenho um professor americano que me diz que somos o alvo de um não sei qual culto anti-religioso. O que é que esperam que eu faça exactamente?

— Encontre o contentor — disse Vittoria. —Já. — Impossível. Essa coisa pode estar em qualquer lado. A Cidade

do Vaticano é enorme. — As vossas câmaras não estão equipadas com localizadores GPS? — Geralmente, não são roubadas. Esta vai demorar dias a localizar. — Não temos dias — declarou Vittoria, veemente. — Temos seis

horas. — Seis horas até que aconteça o quê, doutora Vetra? — A voz

de OHvetti tornou-se repentinamente mais alta. Apontou para os números no visor. — Até que aquela contagem chegue ao fim? Até que a Cidade do Vaticano desapareça? Acredite, não fico nada satisfeito quando alguém se põe a brincar com o meu sistema de segurança. E também não gosto de engenhocas mecânicas a aparecerem inesperadamente dentro das minhas paredes. Estou preocupado. Faz parte do meu trabalho estar preocupado. Mas aquilo que estão a dizer-me é inaceitável.

Langdon falou antes de pensar bem no que ia dizer: —Já ouviu falar dos Illuminati? O exterior gélido do comandante estalou. Os olhos tornaram-se

brancos, como os de um tubarão antes de atacar. — Estou a avisá-lo. Não tenho tempo para isto. — Portanto,yö ouviu falar dos Illuminati. Os olhos de Olivetti perfuraram-no como baionetas. — Sou um defensor da Igreja Católica. Claro que já ouvi falar dos

Illuminati. Estão extintos há décadas.

154 DAN BROWN

Langdon enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o fax com a fotografia do cadáver marcado com um ferro em brasa de Leonardo Vetra. Estendeu-o a Olivetti.

— Sou um estudioso dos llluminati — disse, enquanto o comandante estudava a imagem. — Estou a ter uma enorme dificuldade em aceitar que a Irmandade continue activa, mas o aparecimento desta marca combinado com o facto bem conhecido de os llluminati serem inimigos jurados da Cidade do Vaticano fez-me mudar de ideias.

— Uma trucagem feita em computador — sentenciou Olivetti, de-volvendo-lhe o papel.

Langdon ficou a olhar para ele, incrédulo. — Trucagem. Olhe para a simetria! O senhor, mais do que qual

quer outra pessoa, deveria reconhecer a autenticidade de... — Autenticidade é precisamente aquilo que lhe falta. Talvez a dou

tora Vetra não o tenha informado, mas há décadas que os cientistas do CERN se dedicam a criticar as políticas do Vaticano. Apresentam regularmente petições para que retractemos a teoria criacionista, apresentemos desculpas formais a Galileu e a Copérnico, abandonemos as nossas críticas à investigação imoral e perigosa. Que cenário lhe parece mais provável: que um culto satânico velho de quatrocentos anos tenha reaparecido equipado com uma arma de destruição maciça, ou que um brincalhão qualquer do CERN esteja a tentar perturbar um evento sagrado do Vaticano com uma fraude bem montada?

— Aquela fotografia — disse Vittoria, com a voz a borbulhar como lava — é do meu pai. Assassinado. Acha que é essa a minha ideia de uma brincadeira?

— Não sei, minha senhora. Mas sei, isso sim, que até ter conseguido algumas respostas que façam sentido, não vou levantar qualquer espécie de alarme. A vigilância e a discrição são o meu dever... a fim de que as questões espirituais possam aqui decorrer com Hmpidez de espírito. Sobretudo hoje.

— Ao menos, adiem o evento — sugeriu Langdon. — Adiar! — Olivetti quase deixou cair o queixo. — Que arrogân

cia! O Conclave não é nenhum jogo de basebol que se possa adiar por causa da chuva. É um acontecimento sagrado, com um estrito código processual. Para não falar do bilião de católicos de todo o mundo

ANJOS E DEMÓNIOS 155

que esperam um novo líder. Para não falar dos meios de comunicação mundial que estão lá fora. Os protocolos deste acontecimento são sagrados... e não estão sujeitos a alterações. Desde 1179, os Conclaves têm sobrevivido a terramotos, a fomes e até à peste. Acredite, não vai ser cancelado por causa de um cientista assassinado e uma gota sabe Deus de quê.

— Quero falar com a pessoa que manda — exigiu Vittoria. Olivetti fulminou-a com o olhar. — Está a falar com a pessoa que manda. — Não — insistiu ela. — Refiro-me a alguém do clero. As veias da testa de Olivetti começaram a ficar salientes. — O clero não está cá. Com excepção da Guarda Suíça, as únicas

outras pessoas presentes na Cidade do Vaticano neste momento são os membros do Colégio dos Cardeais. E esses estão dentro da Capela Sistina.

— E o camareiro'^— perguntou Langdon, secamente. — Quem? — O camareiro do falecido Papa. — Langdon repetiu a palavra con

fiadamente, esperando que a memória não estivesse a atraiçoá-lo. Lem-brava-se de ter lido qualquer coisa a respeito dos curiosos procedimentos de transferência de autoridade no Vaticano a seguir à morte de um Papa. Se bem recordava, durante o interregno entre dois pontífices, o poder total e autónomo passava temporariamente para as mãos do assistente pessoal do falecido Papa — o seu camareiro — uma espécie de secretário que supervisionava o Conclave até que os cardeais escolhessem um novo Santo Padre. —Julgo que o camareiro é quem manda neste momento.

— IIcamerlengo?— Olivetti fez uma careta. — O camerlengo é apenas um padre. Era o criado pessoal do falecido Papa.

— Mas está aqui. E o senhor responde perante ele. Olivetti cruzou os braços. — Senhor Langdon, é verdade que as regras do Vaticano determi

nam que o camerlengo assuma o poder executivo durante o Conclave, mas isso apenas porque o facto de não ser elegível para o papado assegura uma eleição imparcial. E como se o seu presidente morresse e um dos ajudantes dele se sentasse temporariamente na Sala Oval. O ca-

156 DAN BROWN

merlengo é jovem, e o seu entendimento das questões de segurança, ou de quaisquer outras, por sinal, é extremamente limitado. Para todos os efeitos e propósitos, sou eu quem manda aqui.

— Queremos falar com ele — insistiu Vittoria. — Impossível. O Conclave começa dentro de quarenta minutos.

O camerlengo está no gabinete do Papa, a preparar-se. Não tenho a mínima intenção de incomodá-lo com questões de segurança.

Vittoria abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma pancada na porta. Olivetti abriu.

Do outro lado estava um guarda de uniforme completo, que apontou para o relógio.

— E /'ora, comandante. Olivetti consultou o seu próprio relógio e assentiu. Voltou-se para

Langdon e Vittoria, como um juiz a ponderar a sorte de ambos. — Sigam-me. — Atravessou à frente deles a sala do centro de se

gurança até um pequeno e espartano cubículo na parede do fundo. — O meu gabinete. — Fez-lhes sinal para que entrassem. A divisão não tinha nada de especial. Uma secretária coberta de papéis, arquivos, uma cadeira desmontável, um depósito de água fresca. — Volto dentro de dez minutos. Sugiro que aproveitem o tempo para decidir o que querem fazer.

Vittoria enfrentou-o. — Não pode ir-se embora! O contentor está... Olivetti estava a fumegar. — Não tenho tempo para isto. Talvez os detenha até depois do

Conclave, altura em que já terei tempo. — Signore — insistiu o guarda, voltando a apontar para o relógio.

— Spa^^re di cappella. Olivetti assentiu e começou a sair. — Spai^are di cappella? — perguntou Vittoria. — Vai-se embora

para varrer a capela? Olivetti voltou-se, com os olhos a trespassá-la. — Vamos fazer uma busca a aparelhos electrónicos, doutora Ve-

tra... uma questão de discrição. — Apontou para as pernas dela. — Uma coisa que não espero que compreenda.

E com esta, fechou violentamente a porta, fazendo estremecer o pesado vidro. Num único movimento, tirou do bolso uma chave, intro-

ANJOS E DEMÓNIOS 157

duziu-a na fechadura e rodou-a. Uma pesada lingueta deslizou para o respectivo encaixe.

— Idiota! —- gritou Vittoria. — Não pode prender-nos aqui! Através do vidro, Langdon viu Olivetti dizer qualquer coisa ao guar

da. O homem assentiu. Enquanto Olivetti saía da sala, o guarda fez meia volta e colocou-se de frente para a porta, de braços cruzados, com uma enorme pistola claramente visível suspensa da cintura.

Perfeito, pensou Langdon. Mesmo porreiramente perfeito.

CAPITULO TRINTA E SETE

Vittoria lançou um olhar furibundo ao guarda que os vigiava do outro lado da porta fechada do gabinete de OHvetti. O guarda pagou--Ihe na mesma moeda, com o colorido uniforme a criar um contraste gritante com o seu ar definitivamente ameaçador.

Che fiasco, pensou Vittoria. Refém de um homem de pijama. Langdon remetera-se ao silêncio, e Vittoria esperou que estivesse

a usar aquele seu cérebro de Harvard para arranjar uma maneira de tirá-los daü. Adivinhou, porém, pela expressão da cara dele, que estava mais em choque do que a pensar. Lamentou tê-lo envolvido em tudo aquilo.

O seu primeiro instinto foi pegar no telemóvel e Hgar para Köhler, mas sabia que seria uma tolice. Em primeiro lugar, o guarda muito provavelmente entraria no gabinete e confiscaria o aparelho. Em segundo, se o ataque que Köhler sofrera seguisse o seu curso habitual, o director estaria ainda quase de certeza incapacitado. Não que isso fizesse grande diferença... Olivetti não parecia muito disposto a dar ouvidos fosse a quem fosse, de momento.

hembra-te!, disse a si mesma. Ijemhra-te da solução para esta prova.

Recordar era um truque da filosofia budista. Em vez de pedir ao cérebro que encontrasse uma solução para um desafio potencialmente impossível, pedia-se-lhe apenas que a recordasse. O pressuposto de que a pessoa soubera em tempos a resposta criava a convicção íntima de que essa resposta tinha de existir... eUminando assim a incapacitante sensação de impotência. Vittoria usava muitas vezes o processo para resolver problemas científicos... aqueles que a maior parte das pessoas acreditava não terem solução.

De momento, porém, o truque da recordação não estava a dar grande resultado. Resolveu então examinar as suas opções... as suas ne-

ANJOS E DEMÓNIOS 159

cessidades. Precisava de avisar alguém. E era preciso que alguém no Vaticano a levasse a sério. Mas quem? O camerlengo? Como? Estava fechada numa gaiola de vidro com uma única saída.

Ferramentas, disse a si mesma. Há sempre ferramentas. Reexamina o meio. Instintivamente, baixou os ombros, relaxou os olhos e fez três ins

pirações profundas. Sentiu o ritmo cardíaco abrandar e os músculos distenderem-se. O medo caótico que lhe enchia o espírito dissolveu-se. Okay , pensou, liberta a mente. O que é que torna esta situação positiva"^ Quais são os meus trunfos'^

O cérebro anaiïtico de Vittoria Vetra, uma vez acalmado, era uma força poderosa. Em poucos segundos, compreendeu que o estado de encarceração em que se encontravam era na realidade a chave para a fuga.

— Vou fazer um telefonema — disse, subitamente. Langdon ergueu os olhos. — Ia sugerir-lhe que ligasse para o Köhler, mas... — Não é para o Köhler. E para outra pessoa. — Quem? — O camerlengo. Langdon pareceu totalmente baralhado. — Vai ligar para o camareiro? Como? — O Olivetti disse que o camerlengo está no gabinete do Papa. — Muito bem. E sabe o número privado do Papa? — Não. Mas não vou usar o meu telefone. — Indicou com um

gesto a sofisticada central telefónica da secretária de Olivetti. Tinha uma enorme quantidade de botões de ligação imediata. — O chefe da segurança tem de ter uma linha directa para o gabinete do Papa.

— E também tem um halterofilista com uma pistola plantado a dois metros de distância.

— E nós estamos trancados cá dentro. — Estou vivamente consciente do facto. — O que quero dizer é que o guarda está trancado lá fora. Isto

é o gabinete particular do Olivetti. Duvido que mais alguém tenha a chave.

Langdon olhou para o guarda. — Temos aqui um vidro bastante fino, e temos ali um homem bas

tante grande.

160 DAN BROWN

— O que é que ele vai fazer? Dar-me um tiro por usar o telefone? — Quem diabo sabe! Este lugar é bastante estranho, e pelo modo

como as coisas estão a correr... — Ou isso — disse Vittoria —, ou podemos passar as próximas

cinco horas e quarenta e oito minutos na prisão do Vaticano. Pelo menos, teremos um lugar na primeira fila quando a antimatéria estourar.

Langdon empalideceu. — Mas o guarda vai chamar o OHvetti logo que a vir pegar no te

lefone. Além disso, essa coisa tem para aí uns vinte botões. E não estou a ver qualquer espécie de identificação. Vai experimentá-los todos e contar com a sorte?

— Não — respondeu ela, aproximando-se da secretária. — Só um. — Pegou no telefone e premiu o primeiro botão. — O número um. Aposto consigo um desses dólares llluminati que tem no bolso em como é o do gabinete do Papa. Que outro lugar poderia ser mais importante para um comandante da Guarda Suíça?

Langdon não teve tempo para responder. O guarda que estava lá fora começou a raspar no vidro da porta com a coronha da pistola. Fazia sinais a Vittoria para que pousasse o telefone.

Vittoria piscou-lhe um olho. O guarda pareceu prestes a estourar de raiva.

Langdon afastou-se da porta e voltou-se para a jovem. — É bom que tenha razão — disse —, porque aquele fulano não

parece nada divertido! — Raios! — exclamou ela, com o auscultador colado ao ouvido.

— Uma gravação! — Uma gravação? — espantou-se Langdon. — O Papa tem um

atendedor de chamadas? — Não era o gabinete do Papa — disse Vittoria, desligando. —

Era o raio da ementa semanal do comissariado do Vaticano. Langdon dirigiu um débil sorriso ao guarda que, do outro lado do

vidro, olhava para eles com uma expressão assassina enquanto chamava Olivetti pelo rádio.

CAPITULO TRINTA E OITO

A central telefónica do Vaticano fica situada no Ufficio di Com-municazione, nas traseiras da Estação Central de Correios. E uma sala relativamente pequena, equipada com uma Corelco 141 de oito linhas. Os serviços processam mais de duas mil chamadas diárias, na sua maioria automaticamente encaminhadas para o sistema de registo de informação.

Naquela noite, o único operador de serviço estava tranquilamente sentado, a beberricar uma caneca de chá quente. Orgulhava-se de ser um dos poucos funcionários a quem fora permitido permanecer no Vaticano. Claro que a honra era de certo modo diminuída pela presença dos guardas suíços plantados diante da porta. Uma escolta para ir à casa de banho, pensou o operador. Ah, as indignidades que uma pessoa tem de suportar em nome do Santo Conclave.

Felizmente, o tráfico de chamadas até ao momento fora reduzido. Ou talvez não tão felizmente como isso, pensou. O interesse do mundo pelo que se passava no Vaticano parecia ter esmorecido nos últimos anos. O número de chamadas da imprensa diminuíra, e já nem sequer os taradinhos ligavam com tanta frequência como antigamente. O gabinete de imprensa esperara que o evento daquela noite fosse rodeado por uma azáfama mais festiva. Tristemente, no entanto, apesar de a Praça de São Pedro estar cheia de carrinhas eriçadas de antenas, parecia tratar-se sobretudo da imprensa italiana e europeia. Só um punhado das chamadas redes globais aparecera... tendo sem dúvida enviado os seus giornalisti secondarii.

O operador pegou na caneca com as duas mãos e perguntou a si mesmo quanto tempo iria aquela noite durar. Até lá por volta da meia--noite, calculou. Nos tempos que corriam, a maior parte dos «da casa» sabia quem era o favorito ao trono de São Pedro muito antes de o Con-

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clave começar, de modo que o processo era mais um ritual de três ou quatro horas do que uma verdadeira eleição. Claro que dissensões de última hora entre as fileiras podiam sempre prolongar a cerimónia até de madrugada... ou mais além. O Conclave de 1831 durara cinquenta e quatro dias. Mas não o desta noite, pensou; toda a gente dizia que aquele Conclave era coisa para se resolver de uma penada.

Os pensamentos do operador foram dispersos pelo som do besouro de uma linha interna no painel. Olhou para a luz vermelha que piscava e coçou a cabeça. Estranho, pensou. A. linha-^ero. Quem do interior estará a ligar para as informações esta noite"? Ou melhor, quem será que cá está?

— Città dei Vaticano, prego?— disse, pegando no auscultador. A voz que estava em linha falou num italiano rápido. O opera

dor reconheceu vagamente o sotaque como sendo o habitual entre os guardas suíços — italiano fluente matizado pela influência franco-helvética. Mas a pessoa que tinha ligado não era, definitivamente, um dos membros da Guarda Suíça.

Ao ouvir a voz da mulher, o operador pôs-se repentinamente de pé, quase entornando o chá. Lançou um rápido olhar ao painel. Não se enganara. Uma extensão interna. A chamada vinha de dentro. Deve haver aqui um erro qualquer!, pensou. Uma mulher dentro da Cidade do Vaticano? Esta noite?

A mulher falava rápida e furiosamente. O operador passara anos suficientes ao telefone para saber quando estava a lidar com um ^0^0. Aquela mulher não parecia louca. Era veemente, mas racional. Calma e eficiente. Ouviu o pedido dela, confuso.

— // camerlengo? — perguntou, ainda a tentar adivinhar de onde diabo vinha a chamada. — Não posso pô-la em comunicação... sim, sei perfeitamente que está no gabinete do Papa, mas... quem é a senhora?... E quer avisá-lo de... — Escutou, cada vez mais enervado. Toda a gente em perigo? Como?E de onde estás tu a falar?—Talvez seja melhor passá-la para a Guarda... — Interrompeu-se. — Diz que está onde? Onde?

Continuou a ouvir, em estado de choque, e então tomou uma decisão.

— Aguarde um momento, por favor — disse, e suspendeu a Unha antes que a mulher pudesse responder. Ligou então para a linha directa do comandante Olivetti. Não épossível aquela mulher estar...

ANJOS E DEMÓNIOS 163

A chamada foi imediatamente atendida. — Per I'amore di Dio! — disse a voz da mulher. — Passe o raio da

chamada!

A porta do centro de segurança da Guarda Suíça deslizou para um lado. Os guardas afastaram-se quando o comandante Olivetti entrou como um furacão. Ao dobrar a esquina para o seu gabinete, Olivetti confirmou o que o guarda lhe dissera pelo rádio; Vittoria Vetra estava atrás da sua secretária, a falar ao seu telefone privado.

Che coglioni che ha questa!, pensou. Os tomates desta tipa. Lívido, avançou quase a correr e enfiou a chave na fechadura. Abriu

violentamente a porta e perguntou: — Que está a fazer? Vittoria ignorou-o. — Sim — dizia para o aparelho —, e devo avisá-lo... Olivetti arrancou-lhe o auscultador da mão e levou-o ao ouvido. — Quem diabo fala?! Por uma fracção de segundo, a postura rígida do comandante como

que se afundou. — Sim, camerlengo... — disse. — Correcto, signare... mas questões

de segurança exigem... claro que não... retenho-a aqui para... — Escutou durante alguns instantes. — Sim, senhor — disse, por fim. — Levo-os imediatamente.

CAPITULO TRINTA E NOVE

O Palácio Apostólico é um conglomerado de edificios localizado perto da Capela Sistina, no canto nordeste da Cidade do Vaticano. Sobranceiro à Praça de São Pedro, o palácio alberga os aposentos papais e também o gabinete do Papa.

Vittoria e Langdon seguiram em silêncio o comandante Olivetti, que caminhava à frente deles, por um comprido corredor rococó, com os músculos do pescoço a latejar de raiva. Depois de terem subido três lanços de escadas, entraram numa larga e mal uuminada galeria.

Langdon nem queria acreditar nas obras de arte que enfeitavam as paredes — bustos, tapeçarias, frisos —, peças que valiam centenas de milhares de dólares. A dois terços do comprimento da galeria, passaram por uma fonte de alabastro. Olivetti virou à esquerda e avançou para uma das maiores portas que Langdon vira em toda a sua vida.

— Uffido dl Papa — anunciou o comandante, premiando Vittoria com uma careta de fúria. Ela nem sequer pestanejou. Passou por ele e bateu à porta.

Gabinete do Papa, pensou Langdon, sentindo dificuldade em imaginar que estava à porta de uma das salas mais sagradas de todo o mundo religioso.

— Avantil— disse alguém, lá de dentro. Quando a porta se abriu, Langdon teve de proteger os olhos. A luz

do Sol era ofuscante. Lentamente, a imagem que tinha à sua frente foi--se definindo.

O Gabinete do Papa parecia mais um salão de bañe do que um gabinete. Um chão de mármore vermelho espraiava-se em todas as direcções até às paredes decoradas com brilhantes frescos. Um lustre colossal pendia do tecto. Uma enfiada de janelas em arco oferecia uma vista espectacular da Praça de São Pedro, inundada de sol.

ANJOS E DEMÓNIOS 165

Meu Deus, pensou Langdon. A isto é que se pode chamar um quarto com vista para a ádade.

No extremo mais distante da enorme sala, sentado diante de uma secretária de madeira lavrada, um homem escrevia furiosamente.

— Avanti! — voltou a dizer, pousando a caneta e fazendo-lhes sinal para se aproximarem.

Olivetti precedeu-os, caminhando com um rígido passo militar. — Signore — disse, apologéticamente. — No hopotuto... O homem interrompeu-o com um gesto. Pôs-se de pé e estudou

os seus dois visitantes. O camerlengo não tinha qualquer semelhança com os anciãos frá

geis e beatíficos que Langdon habitualmente imaginava a deambular pelos corredores do Vaticano. Não trazia rosários ou crucifixos pendurados ao pescoço. Nem usava pesadas vestes. Vestia uma simples sotaina preta que parecia realçar a solidez da sua forma substancial. Aparentava ter perto de quarenta anos, o que fazia dele uma criança pelos padrões do Vaticano. Tinha um rosto surpreendentemente agradável, cabelos castanhos e ondulados e uns olhos verdes quase radiantes que brilhavam como se fossem alimentados pelos mistérios do Universo. A medida que se aproximava, no entanto, Langdon notou neles uma profunda exaustão — como uma alma que acabava de passar pelos quinze dias mais difíceis de toda a sua vida.

— Sou Cario Ventresca — disse, num inglês perfeito —, o camerlengo do falecido Papa. — A voz era despretensiosa e amável, apenas com uma ligeiríssima inflexão italiana.

— Vittoria Vetra — disse ela, adiantando-se e estendendo-lhe a mão. — Obrigada por nos receber.

Olivetti fez uma careta ao ver o camerlengo apertar a mão a Vittoria.

— Robert Langdon — apresentou Vittoria. — Professor de História Religiosa na Universidade de Harvard.

— Padre — disse Langdon, no seu melhor italiano. Inclinou a cabeça ao estender a mão.

— Não, não — pediu o camerlengo. — O gabinete de Sua Santidade não me faz santo. Sou apenas um sacerdote... um camareiro que serve num momento de necessidade.

Langdon pôs-se direito.

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— Por favor, sentemo-nos — convidou o camerlengo, arranjando as cadeiras à volta da secretária. Langdon e Vittoria sentaram-se. Olivetti preferiu manter-se de pé.

— Signare — disse o comandante —, a indumentária da senhora é culpa minha...

— ATiío é a indumentária da senhora que me preocupa — respondeu o camerlengo, parecendo demasiado cansado para querer saber. — Quando o telefonista do Vaticano me liga meia hora antes de eu dar início ao Conclave e me diz que uma mulher está a telefonar do seu gabinete para me avisar de uma grave ameaça da qual não fui informado, isso sim, preocupa-me.

Olivetti mantinha-se rigidamente de pé, com as costas arqueadas como um soldado em parada.

Langdon estava hipnotizado pela presença do camerlengo. Jovem como era e cansado como estava, o sacerdote tinha o ar de um herói mítico, irradiando carisma e autoridade.

— Signore — disse Olivetti, o tom nervoso mas ainda inflexível. — Não deve preocupar-se com questões de segurança. Tem outras responsabilidades.

— Estou bem consciente das minhas outras responsabilidades. Estou igualmente consciente de que, como direttore intermediario, sou responsável pela segurança e bem-estar de todos os participantes no Conclave. O que se passa aqui?

— Tenho a situação sob controlo. — Aparentemente, não. — Padre — interrompeu Langdon, tirando do bolso o amarrotado

fax e estendendo-o ao camerlengo. — Por favor. Olivetti avançou um passo, disposto a intervir. — Padre, por favor, não perturbe os seus pensamentos com... O camerlengo pegou no fax, ignorando o comandante por um ins

tante. Olhou para a fotografia do corpo de Leonardo Vetra e abafou uma exclamação, sobressaltado.

— O que é isto? — É o meu pai — respondeu Vittoria, com a voz a tremer. — Era

um padre e um homem de ciência. Foi assassinado ontem à noite. O rosto do camerlengo suavizou-se imediatamente. Ergueu os olhos

para ela.

ANJOS E DEMÓNIOS 167

— Minha querida filha. Lamento muito. — Benzeu-se e voltou a pousar no fax uns olhos que pareciam agitados por ondas de abominação. — Quem teria... e esta queimadura no... — Interrompeu-se, examinando mais de perto a imagem.

— Diz llluminati — esclareceu Langdon. — Sem dúvida conhece bem o nome.

Uma expressão estranha perpassou pelo rosto do camerlengo. — Ouvi falar do nome, sim, mas... — Os llluminati assassinaram Leonardo Vetra para poderem rou

bar uma nova tecnologia que ele... — Signore — interveio Olivetti. — Isto é absurdo. Os llluminati?

É de certeza um truque muito bem elaborado. O camerlengo pareceu ponderar as palavras do comandante. En

tão, voltou-se e olhou para Langdon tão intensamente que ele sentiu o ar fugir-lhe dos pulmões.

— Doutor Langdon, passei toda a minha vida na Igreja Católica. Conheço a história dos llluminati... e a lenda das marcações com ferro em brasa. No entanto, devo avisá-lo, sou um homem do presente. A Cristandade já tem inimigos reais que lhe cheguem sem necessidade de ressuscitar fantasmas.

— O símbolo é autêntico — afirmou Langdon, num tom que lhe pareceu um tudo nada excessivamente defensivo. Estendeu a mão, pegou no fax e rodou-o cento e oitenta graus.

O camerlengo ficou silencioso ao ver a simetria. — Nem os computadores mais modernos — continuou Langdon

— conseguiram até agora gerar um ambigrama simétrico dessa palavra. O camerlengo cruzou as mãos e manteve-se süencioso por um

longo momento. — Os llluminati estão extintos — disse, finalmente. — Há muito

tempo. É um facto histórico. Langdon assentiu. — Ainda ontem, não teria tido a mínima dúvida em concordar. — Ontem? — Antes da cadeia de acontecimentos de hoje. Acredito que os

llluminati reapareceram para dar cumprimento a um antigo voto. — Peço desculpa. A minha História está um pouco enferrujada.

De que antigo voto está a falar?

168 DAN BROWN

Langdon inspirou fundo. — A destruição da Cidade do Vaticano. — Destruir a Cidade do Vaticano? — Parecia menos assustado do

que confuso. — Mas isso seria impossível. Vittoria abanou a cabeça. — Receio que tenhamos mais más notícias.

CAPITULO QUARENTA

— Isto é verdade? — perguntou o camerlengo, voltando-se de Vit-toria para Olivetti.

— Signore — respondeu o comandante —, admito a existência de um artefacto qualquer. E visível num dos nossos monitores de segurança. Mas quanto às afirmações da doutora Vetra relativamente ao poder destrutivo da substância, não posso...

— Espere um pouco — pediu o camerlengo. — Essa coisa é visível? — Sim, signore. Na câmara número 86. — Nesse caso, porque não o recuperou? — A voz do padre conti

nha agora uma nota de ira. — E extremamente difícil, signore. — E Olivetti manteve-se rigida

mente direito enquanto explicava a situação. O camerlengo escutou, e Vittoria detectou a sua crescente preo

cupação. — Tem a certeza de que se encontra no interior da Cidade do Va

ticano? — perguntou por fim o camerlengo. — Talvez alguém tenha levado a câmara para o exterior e esteja a transmitir de outro lugar qualquer.

— Impossível — afirmou Olivetti. — As nossas muralhas exteriores estão dotadas de um escudo electrónico para proteger as comunicações internas. O sinal só pode vir do interior, ou não estaríamos sequer a recebê-lo.

— E presumo — disse o camerlengo — que está neste momento a procurar a câmara em falta com todos os recursos disponíveis?

Olivetti abanou a cabeça. — Não, signore. Localizar aquela câmara pode exigir centenas de

homens por hora. Temos várias outras preocupações de segurança, neste momento, e, com o devido respeito à doutora Vetra, esta gota de

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que ela fala é muito pequena. Não pode de modo algum ser tão explosiva como afirma.

A paciência de Vittoria evaporou-se. — Aquela pequena gota é o suficiente para arrasar a Cidade do Va

ticano! Será que não ouviu uma palavra do que eu lhe disse? — Minha senhora — disse Olivetti, numa voz de aço —, tenho

uma longa experiência com explosivos. — A sua experiência é obsoleta — replicou ela, com igual dureza.

— Apesar das minhas roupas, que, como estou a ver, o permrbam, sou uma física de escalão superior no organismo de investigação subatómica mais avançado do mundo. Concebi pessoalmente a armadilha de antimatéria que está a impedir a aniquilação daquela amostra neste preciso instante. E estou a avisá-lo de que a menos que encontre aquele contentor dentro das próximas seis horas, os seus guardas não terão nada para proteger durante o próximo século senão um grande buraco no chão.

Olivetti voltou-se para o camerlengo, com os olhos de insecto a faiscarem de raiva.

— Sigmre, não posso, em boa consciência, permitir que isto vá mais longe. Está a desperdiçar o seu tempo com brincalhões. Os Illuminati? Uma gota capaz de destruir-nos a todos?

— Basta. — Apesar de dita em voz baixa, a palavra pareceu ecoar pela sala. Seguiu-se um silêncio. — Perigosa ou não — continuou o camerlengo, num murmúrio —, com Illumination sem Illuminati, seja essa coisa o que for, não devia com toda a certeza estar no interior do Vaticano... e logo na véspera do Conclave. Quero-a localizada e removida. Organize imediatamente uma busca.

Olivetti não desistiu. — Signare, mesmo que usássemos todos os guardas para revistar

o complexo, poderíamos levar dias a encontrar aquela câmara. Além disso, depois de ter falado com a doutora Vetra, mandei um dos meus homens consultar o guia baHstico mais avançado de que dispomos em busca de qualquer referência a essa substância chamada antimatéria. Não é mencionada em parte alguma. Nada.

Cretino pomposo, pensou Vetra. Um guia balístico? Tentaram uma enciclopédia? Na letra A !

Olivetti ainda estava a falar:

ANJOS E DEMONIOS 171

— Signare, se está a sugerir que façamos uma busca à vista desarmada a toda a Cidade do Vaticano, vejo-me obrigado a objectar.

— Comandante. — A voz do camerlengo fervia de raiva. — Per-mita-me lembrar-lhe que quando se dirige a mim, está a dirigir-se a este gabinete. Bem sei que não leva a sério a minha posição... mas no entanto, pela lei, sou eu que mando. Se não estou enganado, os cardeais encontram-se neste momento a salvo no interior da Capela Sistina, e as suas preocupações de segurança são mínimas até ao fim do Conclave. Não compreendo porque hesita tanto em procurar este artefacto. Se não soubesse que tal não é verdade, poderia pensar que está deliberadamente a tentar pôr o Conclave em perigo.

Olivetti fez um ar de desdém. — Como se atreve! Servi o seu Papa durante doze anos! E o que o

antecedeu durante catorze! Desde 1438 que a Guarda Suíça... O rádio que Olivetti trazia à cintura emitiu um bip, interrompendo-o. — Comandante? Olivetti pegou nele com um gesto brusco e premiu o botão de trans

missão. — Sono occupato! Cosa voi?! — Scusi — disse a voz pelo altifalante. — Fala das comunicações.

Pensei que gostaria de ser informado de que recebemos uma ameaça de bomba.

— E então? — Olivetti não poderia parecer mais despreocupado. — Tratem disso! Façam o rastreio habitual e transcrevam o texto.

— Foi o que fizemos, senhor, mas a pessoa que falou... — o guarda fez uma pausa. — Não o teria incomodado, senhor, se o homem que ligou não tivesse referido a substância que me mandou investigar. Antimatéria.

Todos os presentes na sala trocaram olhares estupefactos. — Referiu o quê? — gaguejou Olivetti. — Antimatéria, senhor. Enquanto tentávamos localizar a chamada,

investiguei um pouco mais a questão. A informação sobre antimatéria é... bem, francamente, é muito perturbadora.

— Pensava que me tinha dito que não aparece qualquer referência no guia.

— Encontrei-a na net. Aleluia, pensou Vittoria.

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— A substância parece ser altamente explosiva — continuou o guarda. — Custa acreditar que a informação seja correcta, mas afirma que, por cada quilo, a antimatéria tem uma capacidade de destruição cem vezes superior à de uma ogiva nuclear.

Olivetti abateu-se. Foi como ver uma montanha desmoronar-se. A sensação de triunfo de Vittoria foi apagada pela expressão de terror no rosto do camerlengo.

— Conseguiram localizar a chamada? — tartamudeou Olivetti. — Não tivemos sorte. Telemóvel muito codificado. As linhas SAT

estão misturadas, o que irripossibilitou a triangulação. A assinatura IF sugere que está algures em Roma, mas não é verdadeiramente uma localização.

— Fez alguma exigência? — perguntou Olivetti, numa voz apagada. — Não, senhor. Limitou-se a avisar-nos de que há antimatéria es

condida algures no interior do complexo. Pareceu surpreendido por eu não saber. Perguntou-me se já a tinha visto. Como me mandou investigar aquilo da antimatéria, achei melhor informá-lo.

— Fez bem — disse Olivetti. — Vou já para aí. Avise-me imediatamente se o homem ligar outra vez.

Houve um momento de silêncio no rádio. — Ainda está em linha, senhor. Olivetti pareceu ter sido electrocutado. — A Unha está aberta? — Sim, senhor. Há dez minutos que tentamos localizá-lo, e tudo

o que temos conseguido são dados baralhados. Ele deve saber que não podemos tocar-lhe, porque recusa desligar sem falar com o camerlengo.

— Ponha-o em linha — ordenou o camerlengo. —Já! Olivetti hesitou. — Padre, não. Um negociador treinado é muito mais adequado

para Hdar com isto. -Já! Olivetti deu a ordem. No instante seguinte, o telefone que estava em cima da secretária

começou a tocar. O camerlengo bateu com tanta força no botão do sistema de mãos-livres que quase o partiu.

— Quem, em nome de Deus, julga você que é?

CAPITULO QUARENTA E UM

A voz que brotou do altifalante do telefone era dura e metálica, cheia de arrogância. Todos os presentes na sala escutaram com atenção.

Langdon tentou simar o sotaque. Médio Oriente, talvet^? — Sou o mensageiro de uma antiga Irmandade — anunciou a voz,

numa cadência estranha. — Uma Irmandade que perseguiram durante séculos. Sou um mensageiro dos llluminati.

Langdon sentiu os músculos porem-se-lhe tensos, enquanto os últimos fiapos de dúvida se dissipavam. Por um instante, voltou a experimentar a mesma mistura de excitação, privilégio e medo mortal que conhecera quando vira pela primeira vez o ambigrama, naquela manhã.

— Que quer? — perguntou o camerlengo. — Represento homens de ciência. Homens que, como vocês mes

mos, procuram respostas. Respostas sobre o destino do homem, o seu propósito, o seu criador...

— Seja quem for — interrompeu-o o camerlengo —, não... — Silent^o. Fará melhor se ouvir. Durante dois milénios, a sua Igre

ja dominou a procura da verdade. Esmagaram quem se vos opunha com mentiras e profecias de fim do mundo. Manipularam a verdade de modo a servir as vossas necessidades, assassinando aqueles cujas descobertas não convinham à vossa poUtica. Surpreende-o serem agora o alvo de homens esclarecidos de todo o mundo?

— Homens esclarecidos não recorrem à chantagem para defender as suas causas.

— Chantagem? — O homem riu-se. — Não se trata de chantagem. Não temos exigências a fazer. A aboHção do Vaticano não é negociável. Esperámos quatrocentos anos por este dia. A meia-noite, a vossa cidade será destruída. Não há nada que possam fazer.

Olivetti avançou para o telefone como um touro furioso.

174 DAN BROWN

— O acesso a esta cidade não é possível! Não podem ter colocado explosivos aqui dentro!

— Fala com a devoção ignorante de um guarda suíço. Talvez até um oficial? Com toda a certeza tem conhecimento de que, durante séculos, os llluminati infiltraram-se em instituições elitistas por todo o mundo. Acredita sinceramente que o Vaticano foi imune?

Jesus, pensou Langdon, têm alguém no interior. Não constituía segredo que a infiltração era uma espécie de marca registada do poder dos llluminati. Tinham infiltrado a Maçonaria, grandes redes bancárias, governos. Na realidade, Churchill dissera uma vez aos jornalistas que se os espiões britânicos tivessem conseguido infiltrar os nazis como os llluminati tinham infiltrado o Parlamento, a guerra teria acabado num mês.

— Uma mentira transparente — rosnou Olivetti. — A vossa influência não pode de modo algum chegar tão longe.

— Porquê? Porque a Guarda Suíça está atenta? Por que vigia cada centímetro do vosso mundo privado? Mas, e os próprios guardas suíços? Acaso não são homens? Acredita verdadeiramente que estão dispostos a apostar a vida na fábula de um homem que caminha sobre a água? Pergunte a si mesmo como foi que o contentor entrou na sua cidade. Ou como quatro dos vossos bens mais preciosos desapareceram esta tarde.

— Nossos bens? — Olivetti franziu a testa. — Não entendo o que está a dizer.

— Um, dois, três, quatro. Ainda não deram por falta deles? — De que diabo está a falar... — Olivetti calou-se bruscamente, de

olhos muito abertos, como se tivesse levado um murro no estômago. — Faz-se luz — disse o homem. — Quer que leia os nomes deles? — Que se passa? — perguntou o camerlengo, com um ar confuso. O homem riu. — O seu oficial ainda não o informou? Que grande pecado. Mas

não admira. Tanto orgulho. Imagino a vergonha de lhe dizer a verdade... que quatro dos cardeais que jurou proteger desapareceram...

— Como conseguiu essa informação? — explodiu Olivetti. — Camerlengo — continuou o homem, num tom de troça —,

pergunte ao seu comandante se todos os cardeais estão presentes na Capela Sistina.

ANJOS E DEMÓNIOS 175

O camerlengo voltou-se para Olivetti, os olhos verdes a exigirem uma explicação.

— Signore — sussurrou-lhe Olivetti ao ouvido —, é verdade que quatro dos nossos cardeais ainda não se apresentaram na Capela Sistina, mas não há motivo para alarme. Todos se registaram no pavilhão residencial esta manhã, portanto sabemos que estão a salvo no interior da Cidade do Vaticano. Estão apenas atrasados para a cerimónia que precede o Conclave. Andamos a procurá-los, mas temos a certeza de que perderam simplesmente a noção do tempo e estão a aproveitar a visita.

— A aproveitar a visita? — A calma sumiu-se da voz do camerlengo. — Deviam ter-se apresentado na capela há mais de uma hora!

Langdon lançou a Vittoria um olhar de espanto. Cardeais desapareados? Então era deles que andavam à procura, lá em baixo.

— Vai achar o nosso inventário muito convincente — disse a voz. — Há o cardeal Lamassé, de Paris, o cardeal Guidera, de Barcelona, o cardeal Ebner, de Frankfurt...

Olivetti parecia tornar-se cada vez mais pequeno à medida que os nomes eram lidos.

O homem fez uma pausa, como se a leitura do último nome lhe proporcionasse um prazer especial.

— E de Itália... o cardeal Baggia. O camerlengo ficou flácido como as velas de um navio que tivesse

entrado numa zona de calmaria absoluta. Com a sotaina a pender-lhe do corpo, deixou-se afundar no cadeirão.

— Ipreferiti— murmurou. — Os quatro favoritos... incluindo Baggia, o sucessor mais provável como Sumo Ponü'fice... como é isto possível?

Langdon lera o suficiente a respeito de modernas eleições papais para compreender a expressão de desespero no rosto do camerlengo. Ainda que tecnicamente qualquer cardeal com menos de oitenta anos pudesse tornar-se Papa, só muito poucos eram suficientemente respeitados para obterem a necessária maioria de dois terços num processo de eleição ferozmente faccioso. Eram conhecidos como o'à prejeriti. E todos eles tinham desaparecido.

O suor escorria da testa do camerlengo.

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— Que tenciona fazer com esses homens? — O que é que lhe parece? Sou um descendente dos Hashashin. Langdon sentiu um arrepio. Conhecia bem aquele nome. A Igreja

fizera alguns inimigos mortais ao longo dos anos — os Hashashin, os Cavaleiros do Templo, exércitos que o Vaticano perseguira ou traíra.

— Liberte os cardeais — pediu o camerlengo. — Ou não será suficiente ameaçar destruir a Cidade de Deus?

— Esqueça os quatro cardeais. Já estão perdidos para si. Mas descanse, as suas mortes serão recordadas... por milhões de pessoas. O sonho de qualquer mártir. Vou fazer deles estrelas dos media. Um a um. A meia-noite, os llluminati vão ter as atenções universais. Para quê mudar o mundo se o mundo não estiver a ver? As execuções públicas têm uma espécie de horror inebriante, não têm? Vocês provaram-no há muito tempo... a Inquisição, a tortura dos Templários, as cruzadas. — Fez uma pausa. — E, claro, la purga.

O camerlengo permaneceu silencioso. — Lembra-se de la purga"? — perguntou o homem. — Claro que

não, é uma criança. E os padres sempre foram maus historiadores, de todos os modos. Talvez porque a sua própria história os envergonhe?

— IM purga— deu Langdon por si a dizer. — Mil seiscentos e sessenta e oito. A Igreja marcou a fogo quatro cientistas llluminati, com o símbolo da cruz. Para os expurgar dos seus pecados.

— Quem falou? — inquiriu a voz, num tom mais intrigado do que preocupado. — Quem mais está aí?

Langdon sentiu-se abalado. — O meu nome não importa — disse, tentando impedir que a voz

lhe tremesse. Falar com um Illuminatus vivo desorientava-o... era quase como falar com George Washington. — Sou um académico que estudou a história da vossa Irmandade.

— Óptimo — respondeu a voz. — Fico contente por saber que alguém vivo ainda recorde os crimes cometidos contra nós.

— A maior parte de nós acredita que os llluminati foram eliminados. — Uma uusão que a Irmandade se esforçou arduamente por fo

mentar. Que mais sabe a respeito de la purga? Langdon hesitou. Que mais sei? Sei que toda esta situação é de loucos,

é o que seil

ANJOS E DEMÓNIOS 177

— Depois das marcações, os cientistas foram assassinados e os seus corpos abandonados em locais públicos de Roma, como aviso para outros que estivessem a pensar juntar-se aos llluminati.

— Sim. E o mesmo faremos nós. Quid pro quo. Considerem-no uma retribuição simbólica pelo assassínio dos nossos irmãos. Os vossos quatro cardeais morrerão, um de hora a hora, a partir das oito. A meia--noite, o mundo inteiro estará a prestar atenção.

Langdon aproximou-se do telefone. — Tenciona verdadeiramente marcar a fogo e matar esses quatro

homens? — A História repete-se sempre, não é? Mas, claro, seremos mais

elegantes e ousados do que a Igreja. Essa matou em segredo, abandonando os corpos quando não estava ninguém a ver. Parece tão cobarde.

— O que é que está a dizer? — espantou-se Langdon. — Que vai marcar e matar esses homens em público?

— Muito bem. Embora dependa daquuo que considera público. Bem sei que já não vai muita gente ã igreja.

Langdon demorou um segundo a compreender. — Vai matá-los em igrejas? — Um gesto de bondade. Deste modo, permito a Deus despachar

mais expeditamente as almas deles para o Paraíso. Parece-me justo. Claro que a imprensa também vai apreciar, imagino.

— Está a fazer bluff—- disse Olivetti, cuja voz recuperara a frieza. — Não pode matar um homem numa igreja e esperar escapar impune.

— A fazer bluff? Movemo-nos entre os seus guardas smços como fantasmas, raptámos quatro dos vossos cardeais do interior das vossas muralhas, colocámos um explosivo mortífero no seio do vosso santuário mais sagrado e acha que estou a fazer bluff? A medida que as mortes acontecerem e os corpos forem encontrados, a imprensa estará por todo o lado. A meia-noite o mundo inteiro conhecerá a causa dos llluminati.

— E se nós colocarmos guardas em todas as igrejas? — desafiou Olivetti.

O homem riu-se. — Receio que a natureza prolífica da vossa religião torne uma tal

tarefa improvável. Não as tem contado ultimamente? Há mais de quatrocentas igrejas católicas em Roma. Catedrais, capelas, tabernáculos, abadias, mosteiros, conventos, escolas paroquiais...

178 DAN BROWN

O rosto de Olivetti permaneceu de pedra. — Começa dentro de noventa minutos — disse o homem, num

tom final. — Um de hora a hora. Uma progressão matemática de morte. Agora tenho de ir.

— Espere! — pediu Langdon. — Fale-me das marcas que tenciona usar nesses homens.

O assassino pareceu divertido. — Suspeito de que já sabe quais serão as marcas. Ou talvez seja

um céptico? Em breve verá. Prova de que as antigas lendas são verdadeiras.

Langdon sentiu a cabeça a andar à roda. Sabia exactamente o que o homem queria dizer. Recordou a marca no peito de Leonardo Vetra. O folclore llluminatus falava de um conjunto de cinco marcas. Faltam quatro marcas, pensou, e desapareceram quatro cardeais.

— Estou obrigado — disse o camerlengo — a eleger um novo Papa esta noite. Obrigado perante Deus.

— Camerlengo — disse o homem —, o mundo não precisa de um novo Papa. A partir da meia-noite, nada terá sobre o que reinar excepto um monte de entulho. A Igreja Católica está liquidada. A vossa passagem pela Terra chegou ao fim.

O silêncio desceu sobre a sala como uma capa de chumbo. O camerlengo parecia sinceramente entristecido. — Está enganado. Uma igreja é mais do que argamassa e pedras.

Não pode pura e simplesmente apagar dois mil anos de fé... qualquer ié. Não pode remover a fé esmagando as suas manifestações terrenas. A Igreja Católica continuará com ou sem a Cidade do Vaticano.

— Uma nobre mentira. Mas mesmo assim uma mentira. Ambos sabemos a verdade. Diga-me, por que razão é o Vaticano uma cidadela murada?

— Os homens de Deus vivem num mundo perigoso — respondeu o camerlengo.

— Será possível que seja assim tão jovem? O Vaticano é uma fortaleza porque a Igreja Católica conserva metade das suas riquezas dentro dessas muralhas... quadros raros, esculturas, jóias, livros sem preço... E depois há o ouro e os ü'mlos de propriedade guardados nos cofres do Banco do Vaticano. Estimativas feitas pela vossa própria gente situam o valor da Cidade do Vaticano em quarenta e oito mil e quinhen-

ANJOS E DEMÓNIOS ] 79

tos milhões de dólares. Um belo pé-de-meia. Amanhã, será apenas cinza. Activos liquidados, digamos. Estarão falidos. Nem mesmo os homens da Igreja trabalham a troco de coisa nenhuma.

A exactidão da afirmação pareceu reflectir-se no ar aturdido de Olivetti e do camerlengo. Langdon não saberia dizer o que era mais espantoso, se a Igreja Católica ter todo aquele dinheiro, ou os llluminati terem conhecimento do facto.

O camerlengo deixou escapar um fundo suspiro. — A fé, e não o dinheiro, é a espinha dorsal desta Igreja. — Mais mentiras — replicou o homem. — O ano passado, gasta

ram cento e oitenta e três milhões de dólares a tentar aguentar as vossas dioceses em todo o mundo. A frequentação das igrejas atingiu um mínimo histórico... menos quarenta e seis por cento do que na década passada. Os donativos estão reduzidos a metade do que eram há apenas sete anos. Há cada vez menos jovens a entrar para os seminários. Embora não o admitam, a vossa Igreja está a morrer. Considerem isto uma oportunidade de sair em grande estilo.

Olivetti deu um passo em frente. Tinha agora um ar menos combativo, como se finalmente se apercebesse da realidade que enfrentava. Parecia um homem em busca de uma saída. Qualquer saída.

— E se algum desse ouro fosse financiar a vossa causa? — Não nos insulte a ambos. — Temos dinheiro. — Também nós. Mais do que pode imaginar. Langdon recordou a alegada fortuna dos llluminati, a antiga riqueza

dos maçons bávaros, os Rothschild, os Büderberger, o legendário Diamante llluminatus.

— Ipreferiti— interveio o camerlengo, mudando de assunto. A voz dele era uma súplica. — Poupe-os. São velhos. São...

— São virgens sacrificiais. — O homem riu-se. — Diga-me, acredita verdadeiramente que são virgens? Pensa que os cordeirinhos vão gritar quando morrerem? Sacrifia vergini nell'altare di scien^a.

O camerlengo ficou silencioso por muito tempo. — São homens de fé — disse, finalmente. — Não temem a morte. O homem deixou escapar um riso escarninho. — Leonardo Vetra era um homem de fé, e no entanto vi medo nos

olhos dele, ontem à noite. Um medo que eu eliminei.

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Vittoria, que até ao momento se mantivera silenciosa, voou repentinamente para o telefone, o corpo tenso de ódio.

— Assassino! Era meu pai! O altifalante crepitou numa gargalhada. — Seu pai? O que é isto? Leonardo Vetra tinha uma filha? Saiba

que o seu pai choramingou como uma criança, no fim. Uma coisa lamentável, palavra. Um homem patético.

Vittoria cambaleou, como se o choque das palavras a tivesse atirado para trás. Langdon estendeu as mãos para ampará-la, mas ela recuperou o equilíbrio e cravou os olhos negros no telefone.

— Juro pela minha vida, antes que esta noite acabe, hei-de encon-trar-te. — A voz dela tornou-se cortante como um raio laser. — E quando te encontrar...

O homem riu roucamente. — Uma mulher de coragem. Estou excitado. Talvez, antes que esta

noite acabe, eu te encontre a ti. E quando te encontrar... As palavras ficaram suspensas como uma lâmina. No instante se

guinte, a ligação foi cortada.

CAPITULO QUARENTA E DOIS

O cardeal Mortati suava copiosamente na sua sotaina preta. Não só a Capela Sistina começava a parecer uma sauna, como o Conclave tinha o seu im'cio marcado para dentro de vinte minutos, e continuava a não haver notícia dos quatro cardeais desaparecidos. Uma ausência que transformara em ansiedade declarada os murmúrios iniciais de confusão entre os outros purpurados.

Mortati não fazia ideia de onde os faltosos pudessem estar. Takef^ com o camerlengo? Sabia que o camerlengo tivera o tradicional chá com os quatro preferiti ao início da tarde, mas isso fora horas antes. Estarão doentes?Qualquer coisa que comeram? Duvidava. Mesmo à beira da morte,

os preferiti estSLtizm ali. Ser eleito Sumo Pontífice era uma oportunidade que um cardeal tinha uma vez na vida, normalmente até nunca, e a lei do Vaticano estipulava que o cardeal tinha de estar dentro da Capela Sistina no momento da votação. Caso contrário, tornava-se inelegível.

Embora houvesse a^'äXtopreferiti, poucos dos presentes tinham dúvidas quanto a quem seria o próximo Papa. Nos últimos quinze dias tinham assistido a um turbilhão át faxes e telefonemas a discutir possíveis candidatos. Como era costume, tinham sido escolhidos quatro nomes como preferiti, satisfazendo todos eles os requisitos tácitos para se tornar Papa.

Eluênáa em italiano, espanhol e inglês.

Sem rabos-de-palha.

Entre os sessenta e cinco e os oitenta anos.

Como de costume, um dos quatro destacara-se dos restantes como o homem que o Colégio se propunha eleger. Naquela noite, esse homem era o cardeal Aldo Baggia, de Milão. A impecável folha de serviço de Baggia, combinada com os seus incomparáveis dotes linguísticos

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e a capacidade de comunicar a essência da espirimalidade, tinha feito dele o indiscutível favorito.

Então onde diabo se meteu ele'?, perguntou Mortati a si mesmo. Estava particularmente enervado com a ausência dos cardeais por

que a tarefa de supervisar o Conclave lhe coubera a ele. Uma semana antes, o Colégio Cardinalício escolhera-o unanimemente para o cargo conhecido como O Grande Eleitor — o mestre-de-cerimónias interno do Conclave. Embora o camerlengo fosse, naquela altura, o mais alto funcionário da Igreja, era apenas um padre e estava pouco familiarizado com as complexidades do processo eleitoral, de modo que era escolhido um cardeal para conduzir a cerimónia no interior da Capela Sistina.

Os cardeais costumavam dizer, e só meio a brincar, que ser nomeado Grande Eleitor era a honra mais cruel de toda a Cristandade. A nomeação tornava o visado inelegível como candidato, e ainda por cima exigia-lhe que passasse vários dias debruçado sobre as páginas do Uni-versi Dominid Gregis a rever as subtilezas dos arcanos rituais do Conclave, a fim de garantir que a eleição era devidamente conduzida.

Mortati não guardava, no entanto, ressentimentos. Sabia que era a escolha lógica. Não só era o cardeal mais antigo, como também fora o confidente do falecido Papa, um facto que o colocava em alta estima. Apesar de se encontrar ainda, tecnicamente, dentro da janela etária legal para ser eleito, estava a tornar-se demasiado velho para ser um candidato sério. Com setenta e nove anos, passara o limiar tácito para lá do qual o Colégio deixava de confiar na saúde fosse de quem fosse para fazer face às rigorosas exigências do pontificado. Um Papa trabalhava normalmente catorze horas por dia, sete dias por semana, e morria de exaustão numa média de 6,3 anos. Uma outra piada «interna» afirmava que aceitar o papado era, para um cardeal, a «maneira mais rápida de chegar ao Paraíso».

Mortati, muitos estavam disso convencidos, poderia ter sido Papa quando era mais novo, se não fosse um espírito tão aberto. Quando se tratava de seguir o papado, havia uma Santíssima Trindade: Conservador. Conservador. Conservador.

Mortati sempre achara agradavelmente irónico o facto de o falecido Papa, Deus tivesse a sua alma, se ter revelado um surpreendente liberal depois de assumir o cargo. Talvez por sentir que o mundo mo-

ANJOS E DEMÓNIOS 183

derno se afastava progressivamente da Igreja, mostrara-se aberto, suavizara a posição do Vaticano relativamente à ciência, chegara inclusive a doar dinheiro a determinadas causas científicas. Infelizmente, fora um suicídio político. Os católicos conservadores tinham-no declarado «senil», enquanto os puristas da ciência o acusavam de tentar fazer chegar a influência da Igreja a áreas onde ela não tinha lugar.

— Então, onde estão eles? Mortati voltou-se. Um dos cardeais batia-lhe nervosamente num ombro. — Sabe onde eles estão, não sabe? Mortati tentou não mostrar demasiada preocupação. — Talvez ainda com o camerlengo. — A esta hora? Seria altamente inortodoxo! — O cardeal franziu

o sobrolho, desconfiado. — Talvez o camerlengo tenha perdido a noção do tempo?

Mortati duvidava muito sinceramente que fosse possível, mas nada disse. Sabia que a maior parte dos cardeais não tinha especial apreço pelo camerlengo, considerando-o demasiado jovem para servir o Papa tão de perto. Desconfiava de que grande parte deste desagrado era na verdade ciúme, e até gostava bastante do jovem padre, aplaudindo em segredo a escolha do falecido Papa para o cargo de camareiro. Via apenas convicção quando olhava para os olhos do camerlengo, que, ao contrário de muitos cardeais, punha sempre a fé à frente de comezinhas políticas. Era, na verdadeira acepção da palavra, um homem de Deus.

Durante o tempo em que ocupara o cargo, a indefectível devoção do jovem sacerdote tornara-se legendária. Muitos atribuíam-na a um miraculoso acontecimento da sua infância... um acontecimento que teria deixado uma impressão indelével no coração de qualquer homem. Que coisa maravilhosa, pensava Mortati, tantas vezes desejando que a sua própria infância tivesse sido marcada por um acontecimento capaz de gerar aquele tipo de fé isenta da mínima sombra de dúvida.

Infelizmente para a Igreja, Mortati bem o sabia, nunca o camerlengo chegaria a Papa nos seus anos mais maduros. Aceder ao pontificado exigia uma certa quantidade de ambição política, algo que, aparentemente, faltava de todo ao jovem camerlengo; recusara consistentemente vários convites do Papa para mais altos cargos eclesiásticos, dizendo que preferia servir a Igreja como um simples homem.

184 DAN BROWN

— E agora? — O cardeal voltou a bater no ombro de Mortati, à espera.

Mortati ergueu o olhar. — Perdão? — Estão atrasados! O que é que fazemos? — Que podemos nós fazer? — replicou Mortati, — Esperamos.

E temos fé. Visivelmente insatisfeito com a resposta, o cardeal voltou a desa

parecer na sombra. Mortati deixou-se ficar de pé por um instante, esfregando as têm

poras e tentando aclarar o espírito. Sim, o que é quefa^mos? Contemplou, do outro lado do altar, o famoso fresco de Miguel Angelo, O Julgamento Final A pintura não lhe acalmou a ansiedade. Era uma assustadora representação de Jesus Cristo, com quinze metros de altura, a dividir a humanidade em justos e pecadores, condenando estes ao inferno. Havia carne dilacerada, corpos a arder e até um dos rivais do pintor instalado no inferno, com orelhas de burro. Guy de Maupassant escrevera certa vez que o fresco parecia ter sido pintado para uma tenda de luta de feira por um carvoeiro ignorante.

O cardeal Mortati via-se obrigado a concordar.

CAPÍTULO QUARENTA E TRES

Langdon estava de pé junto à janela de vidro à prova de bala do gabinete do Papa, a olhar para a azáfama da imprensa que reinava na Praça de São Pedro. A fantasmagórica conversa telefónica deixara-o num estado de grande ansiedade... de certa maneira distendido. Diferente do seu habitual.

Os llluminati, como uma serpente saída das profundezas esquecidas da História, tinham-se erguido e enlaçado nos seus anéis um antigo inimigo. Nada de exigências. Nada de negociações. Apenas vingança. Demoniacamente simples. Estrangulando. Uma vingança preparada durante quatrocentos anos. Era como se, ao fim de quatro séculos de perseguição, a ciência contra-atacasse o seu perseguidor.

O camerlengo continuava sentado à secretária, a olhar com uma expressão vazia para o telefone. Olivetti foi o primeiro a quebrar o silêncio.

-— Cario — disse, usando o primeiro nome do camerlengo e parecendo mais um amigo cansado do que um oficial. — Durante vinte e seis anos, dediquei a minha vida à protecção deste gabinete. Parece que esta noite fui desonrado.

O camerlengo abanou a cabeça. — Ambos servimos Deus de maneiras diferentes, mas o serviço

traz sempre honra. — Estes acontecimentos... não consigo imaginar como... esta situa

ção... — Olivetti parecia esmagado. — Compreende que nos resta apenas uma linha de acção possível.

Sou responsável pela segurança do Colégio de Cardeais. — Receio que essa responsabilidade seja minha, signore. — Nesse caso, os seus homens organizarão a evacuação imediata

da Cidade do Vaticano.

186 DAN BROWN

— Signare?

— Outras opções que existam poderão ser exercidas mais tarde... uma busca para encontrar o tal artefacto, uma caçada para descobrir os cardeais desaparecidos e os seus captores. Mas, em primeiro lugar, é preciso pôr os cardeais em segurança. A santidade da vida humana sobrepõe-se a tudo. Aqueles homens são os alicerces desta igreja.

— Sugere que cancelemos imediatamente o Conclave? — Tenho outra opção? — E a sua obrigação de fazer eleger um novo Papa? O jovem camerlengo suspirou e voltou-se para a janela, os olhos

perdidos na imensidão de Roma que se espraiava do outro lado. — Sua Santidade disse-me um dia que o Papa é um homem divi

dido entre dois mundos... o mundo real e o mundo divino. Avisou-me de que qualquer igreja que ignorasse a realidade não sobreviveria para desfrutar o divino. — A voz dele pareceu subitamente reflectir uma sensatez muito para lá dos seus anos. — Esta noite, o mundo real caiu sobre nós. Seria uma estupidez ignorá-lo. O orgulho e o precedente não podem nem devem ofuscar a razão.

Olivetti assentiu, parecendo impressionado. — Subestimei-o, signare. O camerlengo pareceu não o ouvir. Tinha o olhar perdido para lá

da janela. — Vou falar francamente, signare. O mundo real é o meu mundo.

Mergulho na sua fealdade todos os dias, para que outros possam procurar sem impedimentos algo mais puro. Deixe-me aconselhá-lo sobre a presente situação. Foi para isto que fui treinado. Os seus instintos, ainda que dignos... podem ser desastrosos.

O camerlengo voltou-se. Olivetti suspirou. — A evacuação do Colégio CardinaUcio da Capela Sistina é a pior

coisa que pode fazer neste momento. O camerlengo não pareceu indignado, apenas confuso. — Que sugere? — Não dizer nada aos cardeais. Selar o Conclave. Dar-nos-á tempo

para considerar outras opções. — Está a sugerir que tranque todo o Colégio Cardinahcio em cima

de uma bomba-relógio?

ANJOS E DEMÓNIOS 187

— Sim, signare. Para já. Mais tarde, se houver necessidade, podemos tratar da evacuação.

O jovem padre abanou a cabeça. — Adiar a cerimónia antes de ela ter começado é já por si motivo

para um inquérito, mas depois de as portas terem sido seladas, nada intervém. O procedimento do Conclave obriga...

— O mundo real, signare. É onde estamos esta noite. Escute com atenção. — Olivetti falava agora com a rapidez e a precisão de um comandante de operações. — Levar cento e sessenta e cinco cardeais, sem aviso e sem preparação, para o meio de Roma, seria insensato. Iria provocar confusão e pânico em alguns homens muito velhos e, francamente, uma síncope fatal este mês já basta.

Uma síncape fatal. As palavras de Olivetti lembraram a Langdon os cabeçalhos dos jornais que lera com alguns dos seus alunos no campus em Harvard: PAPA SOFRE SÍNCOPE. MORRE DURANTE o SONO.

— Além disso — continuou Olivetti —, a Capela Sistina é uma fortaleza. Apesar de não publicitarmos o facto, a estrutura foi fortemente reforçada e é capaz de aguentar praticamente tudo abaixo de um míssil. Como preparação para o Conclave, revistámo-la esta tarde, centímetro a centímetro, em busca de microfones ou outros equipamentos de vigilância. Está limpa, segura, e tenho a certeza de que a antimatéria não se encontra no seu interior. Neste momento, não há lugar mais seguro onde esses homens possam estar. Podemos sempre discutir uma evacuação de emergência mais tarde, se chegarmos a isso.

Langdon estava impressionado. A lógica fria e inteligente do comandante fazia-lhe lembrar Köhler.

— Comandante — interveio Vittoria, num tom tenso — há outras preocupações. Nunca ninguém tinha criado tanta antimatéria. O raio de impacte é algo sobre o qual só podemos especular. Uma parte circundante de Roma pode estar em perigo. Se o contentor se encontrar num dos vossos edifícios centrais, ou enterrado, o efeito fora das muralhas poderá ser mínimo, mas se estiver perto do perímetro... neste edifício, por exemplo... — Olhou pela janela, com uma expressão preocupada, para a multidão na Praça de São Pedro.

— Estou bem consciente das minhas responsabilidades para com o mundo exterior — respondeu OHvetti —-, mas isso não torna a si-

188 DAN BROWN

tuação mais grave do que já é. A protecção deste santuário tem sido a minha única ocupação desde há mais de duas décadas. Não tenho a mínima intenção de permitir que essa arma expluda.

O camerlengo ergueu os olhos. — Acredita que pode encontrá-la. — Deixe-me discutir as nossas opções com alguns dos meus es

pecialistas. Há a possibilidade, se cortarmos a electricidade na Cidade do Vaticano, de eliminarmos a RF de fundo e criar um ambiente suficientemente limpo para conseguir uma leitura do campo magnético do contentor.

Vittoria pareceu surpreendida, e depois impressionada. — Quer apagar todas as luzes na Cidade do Vaticano? — Talvez. Não sei se é possível, mas é uma opção que quero ex

plorar. — Os cardeais vão com certeza espantar-se e perguntar o que es

tará a acontecer — observou Vittoria. Olivetti abanou a cabeça. — Os Conclaves decorrem à luz de velas. Os cardeais nunca darão

por isso. Uma vez selado o Conclave, posso convocar todos os meus homens, excepto alguns do perímetro, e iniciar a busca. Em cinco horas, cem homens podem cobrir uma grande porção de terreno.

—Quatro horas — emendou Vittoria. — Preciso de levar o contentor para o CERN. A detonação é inevitável sem as baterias de recarga.

— Não há maneira de recarregá-las aqui? Vittoria abanou a cabeça. — A interface é complexa. Tê-la-ia trazido comigo, se pudesse. — Quatro horas, então — disse Olivetti, de testa franzida. — Con

tinua a ser tempo suficiente. O pânico não serve a ninguém. Signare, tem dez minutos. Vá à capela, sele o Conclave. Dê aos meus homens algum tempo para fazerem o seu trabalho. Quando nos aproximarmos da hora crítica, tomaremos as decisões críticas.

Langdon perguntou a si mesmo até quão perto da «hora crítica» iria Olivetti deixar que as coisas chegassem.

O camerlengo parecia permrbado. — Mas o Colégio vai perguntar ^úo^preferiti... especialmente pelo

cardeal Baggia... vão querer saber onde estão.

ANJOS E DEMÓNIOS 189

— Nesse caso, vai ter de pensar numa resposta, signare. Diga aos cardeais que lhes serviu durante o chá qualquer coisa que lhes caiu mal.

O camerlengo pareceu irritado. — Pôr-me diante do altar da Capela Sistina e mentir ao Colégio

Cardinalício? — Em nome da segurança deles. Una bugia veníale. Uma mentira

inofensiva. A sua missão será manter a paz. — Olivetti dirigiu-se para a porta. — Agora, se me dão licença, preciso de começar.

— Comandante — insistiu o camerlengo —, não podemos simplesmente voltar as costas ao desaparecimento de quatro cardeais.

Olivetti deteve-se junto à porta. — Baggia e os outros estão de momento fora da nossa esfera de

alcance. Temos de sacrificá-los... para salvar mdo o resto. Os militares chamam-lhe triagem.

— Não quererá dizer abandonou A voz de Olivetti endureceu. — Se houvesse alguma maneira, signore... alguma maneira de loca

lizar esses quatro cardeais, sacrificaria a minha vida para fazê-lo. No entanto... — apontou para a janela do outro lado da sala e para o infindável mar dos telhados de Roma que brilhava ao sol do fim da tarde. — Fazer uma busca numa cidade de cinco milhões de habitantes não está ao meu alcance. Não desperdiçarei um tempo precioso para acalmar a minha consciência numa tentativa fútil. Lamento.

— Mas se apanhássemos o assassino — disse Vittoria, inesperadamente —, não poderia obrigá-lo a falar?

Olivetti franziu a testa. — Os soldados não podem dar-se ao luxo de ser santos, doutora Ve-

tra. Acredite, compreendo o seu incentivo pessoal para capturar esse homem.

— Não é só pessoal — respondeu ela. — O assassino sabe onde está a antimatéria... e onde estão os cardeais que desapareceram. Se conseguíssemos apanhá-lo...

— Fazer o jogo deles? Acredite, retirar toda a protecção da Cidade do Vaticano para vigiar centenas de igrejas é o que os llluminati esperam que façamos... desperdiçando tempo e homens preciosos quando deveríamos procurar... ou pior ainda, deixando o Banco do Vaticano totalmente desprotegido. Para não falar dos restantes cardeais.

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Olivetti tinha evidentemente razão. — E a polícia italiana? — perguntou o camerlengo. — Podíamos

alertar as autoridades da cidade para a existência desta crise. Pedir-lhes ajuda para encontrar o raptor dos cardeais.

— Outro erro — respondeu Olivetti. — Sabe bem o que os Cara-binieri de Roma pensam a nosso respeito. Tudo o que conseguiríamos seria o esforço desinteressado de meia dúzia de homens a troco de venderem a história do nosso problema aos media mundiais. Exactamente o que os nossos inimigos querem. Não tardaremos a ter problemas com os meios de comunicação, de toda a maneira.

Farei dos vossos cardeais estrelas dos media, pensou Langdon, recordando as palavras do assassino. O corpo do primeiro aparecerá às oito horas. Depois, um de hora a hora. A imprensa vai adorar.

O camerlengo estava outra vez a falar, com uma nota de irritação na voz.

— Comandante, não podemos, em boa consciência, ficar de braços cruzados em relação aos cardeais desaparecidos!

Olivetti olhou-o bem de frente nos olhos. — A oração de São Francisco, signore. Lembra-se dela? O jovem padre pronunciou a frase com dor na voz: — Deus, concede-me a força de aceitar as coisas que não posso

mudar. — Acredite — continuou Olivetti. — Usta é uma dessas coisas. E saiu.

CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

Os escritorios centrais da British Broadcasting Corporation (BBC) situam-se em Londres, a oeste de Piccadilly Circus. O telefone tocou, e uma jovem secretária de produção atendeu.

— BBC — disse, esmagando no cinzeiro o Dunhil que estava a fumar.

A voz em Hnha era rouca, com sotaque do Médio Oriente. — Tenho uma notícia de abertura que talvez possa interessar o vos

so canal. A jovem secretária de produção pegou numa caneta e num bloco

de papel. — A respeito de? — Da eleição papal. A jovem franziu a testa. A BBC passara um trabalho preliminar so

bre o assunto no dia anterior e a resposta fora medíocre. O público, segundo parecia, estava pouco interessado no que se passava na Cidade do Vaticano.

— Qual é a perspectiva? — Têm alguém em Roma a cobrir a eleição? —Julgo que sim. — Preciso de contactar imediatamente essa pessoa. — Lamento, mas não posso dar-lhe esse número sem ter uma

ideia... — Há uma ameaça ao Conclave. É tudo o que posso dizer-lhe. A jovem secretária de produção começou a tomar notas. — O seu nome? — O meu nome é irrelevante. A jovem não ficou surpreendida. — E tem provas do que afirma?

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— Tenho. — Teria muito gosto em receber a informação, mas a nossa políti

ca é não dar os números de contacto dos nossos jornalistas a menos... — Compreendo. Vou ligar para outra estação. Obrigado pelo tem

po que me concedeu. A... — Um momento! — pediu ela. — Pode esperar um pouco? A jovem pôs a linha em espera e distendeu o pescoço. A arte de

detectar potenciais brincalhões estava longe de ser uma ciência exacta, mas aquele homem acabava de passar os dois testes tácitos da BBC para determinar a autenticidade de uma fonte telefónica. Recusara dizer o nome, e mostrara-se desejoso de desligar. Os taradinhos e os sedentos de glória regra geral queixavam-se e argumentavam.

Felizmente para ela, os jornalistas viviam no medo perpétuo de perder uma grande notícia, de modo que raramente a censuravam por lhes passar de vez em quando um ou outro psicótico. Desperdiçar cinco minutos do tempo de um jornausta era perdoável. Perder um furo, não.

Com um bocejo, olhou para o computador e teclou as palavras «Cidade do Vaticano». Quando viu o nome do jornalista que cobria a eleição papal, riu para dentro. Era um tipo novo que a BBC fora buscar a um qualquer sebento tablóide londrino para tratar dos assuntos mais mundanos. A redacção fizera-o obviamente começar pelo fundo da escada.

Estava provavelmente morto de tédio, com uma noite inteira à espera de gravar dez segundos de vídeo. O mais certo era ficar grato pela quebra da monotonia.

A jovem tomou nota do número do telefone-satéHte do jornalista na Cidade do Vaticano. Então, acendendo outro cigarro, deu o número ao homem que Hgara.

CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

— Não vai resultar — disse Vittoria, a andar para trás e para a frente no gabinete do Papa. Olhou para o camerlengo. — Mesmo que a equipa da Guarda Suíça consiga filtrar a interferência electrónica, vai ter de estar praticamente em ríma do contentor para detectar qualquer sinal. E isso se o contentor estiver acessível... não protegido por outras barreiras. E se estiver enterrado numa caixa de metal algures dentro do complexo? Ou numa conduta de ventilação metálica. Nunca conseguirão encontrá-lo. E se a Guarda Suíça foi de verdade infiltrada? Quem nos pode garantir que a busca será bem-feita?

O camerlengo parecia esgotado. — O que é que está a propor, doutora Vetra? Vittoria ficou desconcertada. Não será óbvio? — Estou a propor, senhor, que tome outras precauções imediata

mente. Não podemos esperar contra toda a esperança que a busca do comandante Olivetti seja bem sucedida. Ao mesmo tempo, olhe pela janela. Está a ver aquelas pessoas? Aqueles edifícios do outro lado da pia:^? As furgonetas das redes de televisão? Os turistas? Estão muito provavelmente dentro da zona de impacte. Tem de agiryö.

O camerlengo assentiu com um ar ausente. Vittoria sentiu-se frustrada. Olivetti convencera toda a gente de

que havia tempo mais do que suficiente. Mas ela sabia que se a notícia do que se passava no Vaticano se espalhasse, toda a área podia ficar apinhada de basbaques de um momento para o outro. Vira-o acontecer uma vez, diante do Parlamento suíço. Durante uma situação com reféns que envolvia uma bomba, tinham-se reunido milhares de pessoas no exterior do edifício para assistir ao desfecho. A despeito dos reiterados avisos da polícia de que estavam em perigo, a multidão apro-ximara-se cada vez mais. Nada prendia tanto a curiosidade humana como a tragédia humana.

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— Signore — insistiu, voltando à carga. — O homem que assassinou o meu pai está algures lá fora. Todas as células deste corpo querem sair daqui e ir procurá-lo. Mas continuo neste gabinete... porque tenho uma responsabilidade para consigo. E para com outros. Há vidas em perigo, signore. Está a ouvir o que lhe digo?

O camerlengo não respondeu. Vittoria ouvia o seu próprio coração bater loucamente. l'orque não

conseguiu a Guarda Suíça locali^r o maldito telefonema'^ O assassino dos Illu-minati é a chave! Ele sabe onde está a antimatéria... raios, ele sabe onde estão os cardeais! E apanhá-lo, efica tudo resolvido.

Sentiu que estava a começar a perder o controlo, uma estranha perturbação que recordava só muito vagamente dos seus tempos de infância, dos anos no orfanato, uma frustração contra a qual não tinha ferramentas. Tens ferramentas, disse a si mesma. Tens sempre ferramentas. Mas era inútil. Os pensamentos intrometiam-se, estrangulando-a. Era uma investigadora e uma solucionadora de problemas. Mas aquilo era um problema sem solução. De que dadospredsas? O que é que queres?, disse a si mesma que respirasse profundamente, mas, pela primeira vez na vida, não foi capaz. Estava a sufocar.

Langdon tinha uma terrível dor de cabeça e sentia-se derivar para fora dos Hmites da racionalidade. Estava a olhar para Vittoria e para o camerlengo, mas a sua visão era distorcida por imagens horríveis: explosões, enxames de jornalistas, câmaras a filmar, quatro corpos humanos marcados a fogo.

Shaitan... Lúafer... Portador da Lu^... Satanás...

Sacudiu do espírito as hediondas imagens. Terrorismo calculado, recordou a si mesmo, agarrando-se à realidade. Caos planeado. Recordou um seminário em Radcliffe a que certa vez assistira quando investigava o simbolismo pretoriano. Nunca mais olhara para os terroristas com os mesmos olhos, desde então.

— O terrorismo — dissera o professor — tem um objectivo muito concreto. Qual é?

— Matar pessoas inocentes? — arriscara um aluno. — Errado. A morte é apenas um subproduto do terrorismo. — Uma demonstração de força? — Não. Não existe forma de persuasão mais fraca.

ANJOS E DEMÓNIOS 195

— Causar o terror? — Concisamente exposto. Muito simplesmente, o objectivo do ter

rorismo é criar o terror e o medo. O medo mina a fé nas instituições. Enfraquece o inimigo a partir do interior... causando agitação nas massas. Tomem boa nota disto. O terrorismo hão é uma manifestação de raiva. O terrorismo é uma arma política. Remova-se a fachada de infalibilidade de um governo, e remove-se a fé do respectivo povo.

Perda de fé...

Era então essa a ra^o de tudo aquilo?, Langdon perguntou a si mesmo como reagiriam os Cristãos do mundo inteiro ao facto de quatro cardeais serem expostos em público como cães mutilados. Se a fé de um sacerdote não o protegia da maldade de Satanás, que esperança restava para as pessoas vtilgares? A cabeça latejava-lhe cada vez com mais força... vozinhas empenhadas num jogo de cabo-de-guerra, a puxar cada qual para o seu lado.

A. fé não te protege. Medicamentos e airbags... são essas as coisas que te protegem. Deus não te protege. A. inteligência protege-te. Esclareamento. Deposita a tua fé em qualquer coisa com resultados tangíveis. Quando foi a última ve^ que alguém conseguiu caminhar sobre a água? Os milagres modernos pertencem à ãênáa... computadores, vaánas, estações espaciais... até o divino milage da criação. Matéria a partir do nada... num laboratório. Quempreása de Deus? Não!A Ciência é Deus.

A voz do assassino ecoava na mente de Langdon. Meia-noite... progressão matemática da morte... sacrifici vergini nell'altare di scienza.

Então, de repente, como uma multidão dispersada por um único tiro, as vozes desapareceram.

Robert Langdon ergueu-se de um salto. A cadeira caiu para trás, embatendo no chão de mármore.

Vittoria e o camerlengo sobressaltaram-se. — Não vi — murmurou Langdon, como que em transe. — Estava

mesmo diante dos meus olhos... — Não viu o quê? — perguntou Vittoria. Langdon voltou-se para o padre. — Padre, há três anos que ando a pedir a este gabinete acesso aos

arquivos do Vaticano. Foi-me recusado sete vezes. — Peço desculpa, doutor Langdon, mas não me parece que este

seja o momento mais adequado para apresentar essas queixas. — Preciso de os consultar imediatamente. Os quatro cardeais de

saparecidos. Talvez consiga descobrir onde vão ser assassinados.

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Vittoria ficou a olhar para ele, com o ar de quem tinha a certeza de ter compreendido mal.

O camerlengo pareceu pertarbado, como se estivesse a ser alvo de uma brincadeira cruel.

— Espera que eu acredite que essa informação está nos nossos arquivos?

— Não posso prometer que consiga localizá-los a tempo, mas se me der acesso...

— Doutor Langdon, tenho de estar na Capela Sistina dentro de quatro minutos. Os Arquivos ficam do outro lado da Cidade do Vaticano.

— Está a falar a sério, não está? — interrompeu Vittoria, olhando Langdon no fundo dos olhos, parecendo sentir a ansiedade dele.

— A altura dificilmente seria para brincadeiras. — Padre — disse Vittoria, voltando-se para o camerlengo —, se hou

ver uma possibilidade... por mais remota que seja, de descobrir onde vão ocorrer os assassínios, podemos pôr os locais sob vigilância e...

— Mas os arquivos? — insistiu o camerlengo. — Como é possível que contenham qualquer indicação?

— Explicá-lo demoraria mais tempo do que aquele que podemos dar-nos ao luxo de gastar — respondeu Langdon. — Mas se eu estiver certo, poderemos usar a informação para apanhar o assassino.

O camerlengo estava com o ar de quem queria acreditar e por qualquer razão não era capaz.

— Os códices mais sagrados da Cristandade estão naquele arquivo. Tesouros que eu próprio não sou suficientemente privilegiado para contemplar.

— Tenho consciência disso. — O acesso só pode ser concedido por um decreto escrito do Di

rector da Biblioteca do Vaticano. — Ou — disse Langdon — por mandado papal. É o que diz em

todas as cartas de recusa que o vosso curador me enviou. O camerlengo assentiu. — Não pretendo ser indelicado — pressionou Langdon —, mas,

se não estou enganado, os mandados papais são emitidos por este gabinete. Tanto quanto entendo, esta noite é o senhor que detém os poderes do cargo. Considerando as circunstâncias...

O camerlengo tirou um relógio do bolso da sotaina e consultou-o.

ANJOS E DEMÓNIOS 197

— Doutor Langdon, estou preparado para dar a vida esta noite, muito literalmente, para salvar a Igreja.

Langdon viu apenas verdade nos olhos do homem. — Acredita verdadeiramente que esse documento se encontra aqui?

— continuou o camerlengo. — E que poderá ajudar-nos a localizar as quatro igrejas?

— Não teria feito incontáveis pedidos de acesso se não estivesse convencido. A Itália fica demasiado longe para vir até cá com base num palpite quando se vive com um salário de professor. O documento em causa é um antigo...

— Por favor — interrompeu-o o camerlengo —, perdoe-me. A minha cabeça não consegue processar mais pormenores neste momento. Sabe onde estão localizados os arquivos secretos?

Langdon sentiu-se invadir por uma onda de excitação. — Logo atrás da Porta de Sant'Ana. — Estou impressionado. A maior parte dos eruditos acredita que

a entrada se faz por uma porta secreta atrás do trono de São Pedro. — Não. Por aí entra-se para o Archivio delia Reverenda di Fabbri-

ca di San Pietro. Um erro comum. — A regra é que um bibliotecário acompanhe todos os consu

lentes desde que lá entram até que saem. Esta noite, nenhum deles se encontra cá. O que está a pedir é Hvre acesso. Nem sequer os nossos cardeais lá entram sozinhos.

— Tratarei os vossos tesouros com o máximo respeito e cviidado. Os vossos bibliotecários não encontrarão o mais pequeno traço da minha presença.

Os sinos de São Pedro começaram a tocar. O camerlengo voltou a consultar o relógio.

— Tenho de ir. — Fez uma curta e tensa pausa, enquanto olhava para Langdon. — Vou mandar um guarda encontrar-se consigo junto dos arquivos. Estou a dar-lhe a minha confiança, doutor Langdon. Agora vá.

Langdon estava sem palavras. O jovem padre pareceu adquirir, naquele momento, uma estranha

imponência. Estendendo a mão, apertou-lhe o ombro com inesperada força.

— Quero que encontre aquilo que procura. E que o encontre rapidamente.

CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

Os Arquivos Secretos do Vaticano situam-se no extremo mais distante do Pátio dos Bórgia, no alto de um declive, relativamente à Porta de Sant'Ana. Contêm mais de vinte mil volumes, entre os quais, diz-se, tesouros como os diários perdidos de Leonardo da Vinci e até livros inéditos da Bíblia.

Langdon subia rapidamente a deserta Via delia Fondamenta, em direcção aos arquivos, quase incapaz de aceitar o facto de lhe ter sido concedido acesso. Vittoria caminhava a seu lado, acompanhando o passo sem dificuldade. Os cabelos dela ondeavam ligeiramente, agitados pela brisa, e Langdon aspirou-lhes o leve aroma a amêndoas. Sentiu que os seus pensamentos divagavam e forçou-se a voltar à realidade.

— Vai dizer-me do que estamos à procura? — perguntou Vittoria. — De um livrinho escrito por um fulano chamado GaHleu. — Não brinca em serviço — exclamou ela, parecendo surpreen

dida. — O que é que contém? — Supostamente contém uma coisa chamada il segno. — O sinal? — Sinal, pista, símbolo... depende da tradução. — Símbolo de quê? Langdon acelerou o passo. — De um local secreto. Os llluminati de Galileu precisavam de se

proteger contra o Vaticano, de modo que arranjaram um local de encontro ultra-secreto aqui em Roma. Chamavam-lhe a Igreja da Iluminação.

— É preciso descaramento, chamar igreja IL um covil satânico. Langdon abanou a cabeça. — Os llluminati de Galileu nada tinham de satânico. Eram cientis

tas que reverenciavam o conhecimento. O local de encontro era ape-

ANJOS E DEMÓNIOS 199

nas um sítio onde podiam reunir-se em segurança e discutir tópicos proibidos pela Igreja. Embora saibamos que esse lugar existiu, até hoje ninguém conseguiu localizá-lo.

— Parece que essa gente sabia guardar um segredo. — Absolutamente. Na realidade, nunca revelaram a localização do

seu esconderijo fosse a quem fosse fora da Irmandade. Este secretismo protegia-os, mas também constituía um problema quando se tratava de recrutar novos membros.

— Não podiam crescer se não fizessem publicidade — disse Vit-toria, acompanhando tão facilmente a passada como a Unha de pensamento.

— Exacto. As noti'cias sobre a Irmandade de Galileu começaram a espalhar-se por volta de 1630, e cientistas de todo o mundo faziam viagens secretas a Roma na esperança de se juntarem à Irmandade... desejosos de espreitar o céu através do telescópio de Galileu e de ouvir as ideias do mestre. Infelizmente, no entanto, devido ao secretismo dos llluminati, os cientistas que chegavam a Roma nunca sabiam aonde dirigir-se para os encontros nem com quem podiam falar livremente. Os llluminati queriam sangue novo, mas não podiam dar-se ao luxo de prejudicar a segurança tornando conhecido o seu paradeiro.

Vittoria franziu a testa. — O que se chama uma situar^one sen^a solu^one. — Nem mais. Um autêntico nó cego. — E que fizeram eles? — Eram cientistas. Examinaram o problema e encontraram uma so

lução. Uma solução brilhante, na realidade. Criaram uma espécie de mapa extremamente engenhoso que conduzia os cientistas ao seu santuário.

Vittoria pareceu repentinamente céptica e abrandou o passo. — Um mapa? Parece imprudência. Se uma cópia caísse nas mãos

erradas... — Não podia — explicou Langdon. — Não havia cópias em parte

alguma. Não era o tipo de mapa que se desenha num papel. Era enorme. Uma espécie de roteiro espalhado pela cidade.

Vittoria abrandou ainda mais. — Setas pintadas nos passeios? — Num certo sentido, sim, mas muito mais subtil. O mapa con

sistia de uma série de marcadores simbólicos cuidadosamente disfar-

200 DAN BRONXTSI

çados espalhados por locais púbücos da cidade. Um marcador levava ao seguinte... e esse ao seguinte... um trilho que eventualmente acabava por conduzir ao esconderijo dos Illuminati.

Vittoria olhou-o de esguelha. — A mim soa-me a uma espécie de caça ao tesouro. Langdon riu-se. — E é, de certa maneira. Os Illuminati chamavam à sua série de

marcadores «O Caminho da Iluminação», e quem quisesse juntar-se à Irmandade tinha de segui-lo até ao fim. Uma espécie de teste.

— Mas se o Vaticano queria encontrar os Illuminati — objectou Vittoria —, porque não se limitava a seguir os marcadores?

— Porque não podia. O caminho estava escondido. Um quebra--cabeças, construído de tal forma que só certas pessoas teriam a capacidade de encontrar os marcadores e deduzir onde se situava o esconderijo. Os Illuminati. pretendiam que fosse uma espécie de iniciação, funcionando não só como medida de segurança mas também como um processo de selecção destinado a garantir que só as mentes mais brilhantes lhes iam bater à porta.

— Não compro essa. No século xvil, os clérigos eram os homens mais instruídos do mundo. Se esses marcadores se encontravam em locais públicos, havia sem a mínima dúvida na Igreja quem soubesse interpretá-los.

— Claro que sim — respondeu Langdon —, se soubessem da sua existência. Mas não sabiam, e nunca repararam neles porque os Illuminati os conceberam de tal modo que os clérigos nunca suspeitaram sequer do que eram. Usaram um método conhecido em simbologia como dissimulação.

— Camuflagem. Langdon estava impressionado. — Conhece o termo. — Dissimular^one — disse ela. — A melhor defesa da namreza.

Tente descobrir um peixe-trombeta a nadar verticalmente entre as algas do fundo.

— Okay. Os Illuminati usaram o mesmo conceito. Criaram marcadores que se confundiam com o pano de fundo da Roma antiga. Não podiam usar ambigramas nem simbologia científica, porque seriam demasiado conspícuos. Por isso chamaram um artista Illuminatus... o mes-

ANJOS E DEMÓNIOS 201

mo prodígio anónimo que concebera o símbolo ambigramático da Irmandade... e pediram-lhe que criasse quatro escvilturas.

— Esculturas Illuminati? — Sim, esculmras que tinham de obedecer a duas directivas estri

tas. Em primeiro lugar, tinham de parecer-se com todas as restantes obras de arte de Roma... obras de arte que o Vaticano nunca suspeitaria pertencerem aos Illuminati.

— Arte sacra? Langdon assentiu, sentindo uma pontada de excitação, falando ago

ra mais depressa. — A segunda directiva era que as quatro esculturas tinham de ter

temas muito específicos. Cada peça tinha de ser um subtil tributo a um dos quatro elementos da ciência.

—Quatro elementos — espantou-se Vittoria. — Há mais de cem! — Não havia no século XVII — recordou-lhe Langdon. — Os an

tigos alquimistas acreditavam que o Universo inteiro era composto por apenas quatro substâncias: Terra, Ar, Fogo e Água.

A cruz primitiva, sabia Langdon, era o símbolo mais comum dos quatro elementos: quatro braços que representavam a Terra, o Ar, o Fogo e a Agua. Para lá disso, no entanto, havia, ao longo da ííistória, literalmente dúzias de ocorrências simbóHcas da Terra, do Ar, do Fogo e da Água: os ciclos da vida pitagóricos, o Hong-Fan chinês, os rudimentos macho e fêmea jungianos, os quadrantes do Zodíaco, até os venerados quatro antigos elementos dos Muçulmanos... apesar de no Islão serem conhecidos como «quadrados, nuvens, raios e ondas». Para Langdon, porém, era um uso mais moderno que lhe causava sempre um arrepio de excitação — os quatro graus místicos da Iniciação Absoluta da Maçonaria: Terra, Ar, Fogo e Água.

Vittoria parecia confusa. — O tal artista criou então quatro peças de arte que pareciam re

ligiosas, mas eram na realidade tributos à Terra, ao Ar, ao Fogo e à Água?

— Exacto — respondeu Langdon, virando rapidamente para a Via Sentinella, em direcção aos Arquivos. — As peças desapareceram no mar de arte sacra que cobre Roma. Ao doar anonimamente as esculturas a determinadas igrejas, e usando a sua influência política, a Irmandade conseguiu colocá-las em pontos cuidadosamente escolhidos.

202 DAN BROWN

Cada peça era, claro, um marcador que apontava subtilmente para a igreja seguinte... onde aguardava um novo marcador. Funcionava como uma série de pistas disfarçadas de arte sacra. Se um candidato conseguia encontrar a primeira igreja e o marcador para Terra, podia segui--lo para chegar a Ar... e depois a Fogo... e depois a Água... e finalmente à Igreja da Iluminação.

Vittoria parecia cada vez mais perdida. — E isso tem alguma coisa a ver com apanhar o assassino? Langdon sorriu ao jogar o ás. — Oh, sim. Os llluminati chamavam um nome muito especial a es

tas quatro igrejas. Os Altares da Ciênda. Vittoria franziu o sobrolho. — Lamento, não significa nad... — Interrompeu-se bruscamente.

— Ualtare di sdent^a! — exclamou. — O assassino dos llluminati. Disse que os quatro cardeais seriam virgens sacrificiais nos altares de ciência!

Langdon ainda estava a sorrir. — Quatro cardeais. Quatro igrejas. Os quatro altares de ciência. Vittoria parecia estupefacta. — Está a dizer que as quatro igrejas onde os cardeais serão sacrifi

cados são as mesmas quatro igrejas do antigo Caminho da Iluminação? — É essa a minha convicção, sim! — Mas porque havia o assassino de nos dar essa pista? — Porque não? — replicou Langdon. — Muito poucos historiado

res sabem dessas esculturas. E menos ainda acreditam na sua existência. Além disso, a localização de todas elas é um segredo com quatrocentos anos. Sem dúvida os llluminati confiam em que assim continue durante mais cinco horas. Por outro lado, já não precisam do seu Caminho da Iluminação. O esconderijo secreto provavelmente há muito que desapareceu, de toda a maneira. Vivem no mundo moderno. Reú-nem-se nas salas de administração de bancos, em clubes de almoços, em clubes de golfe privados. Esta noite, querem tornar públicos os seus segredos. Este é o momento de que têm estado à espera. A grande revelação.

Langdon temia que a revelação dos llluminati tivesse uma simetria especial a que ainda não fizera referência. Os quatro ferros. O assassino jurara que cada cardeal seria marcado com um símbolo diferente. Prova de que as antigas lendas são verdadeiras, dissera. A lenda dos quatro ferros

ANJOS E DEMÓNIOS 203

ambigramáticos era tão velha como os próprios llluminati: terra, ar, fogo, água — quatro palavras gravadas em perfeita simetria. Como a palavra llluminati. Cada cardeal seria marcado com um dos antigos elementos da ciência. O rumor de que as quatro palavras estavam escritas em inglês e não em italiano continuava a ser um ponto de debate entre os historiadores. O inglês parecia um desvio injustificado à sua língua nativa... e os llluminati não faziam nada sem uma justificação.

Começou a subir o caminho de tijoleira que dava acesso ao edifício do arquivo. Imagens fantasmagóricas agitavam-se-lhe na mente. A trama geral dos llluminati começava a revelar a sua paciente grandiosidade. A Irmandade jurara permanecer silenciosa tanto tempo quanto fosse necessário, acumulando influência e poder suficientes para poder reaparecer sem perigo, afirmar a sua posição, defender a sua causa à luz do dia. Os llluminati já não queriam esconder-se. Queriam ostentar o seu poder, confirmar a factualidade dos mitos conspiracionais. Aquela noite era um golpe publicitário global.

— Aí vem a nossa escolta — disse Vittoria. Langdon ergueu os olhos e viu um guarda suíço atravessar a correr um relvado vizinho, em direcção à porta da frente.

Ao avistá-los, o guarda imobiHzou-se repentinamente. Ficou a olhar para eles, como se pensasse que estava a ter alucinações. Sem uma palavra, fez meia volta e pegou no rádio. Aparentemente incapaz de acreditar no que lhe estavam a ordenar, falou veementemente para o aparelho. O latido furioso que veio do outro lado foi indecifrável para Langdon, mas a mensagem que transmitia era claríssima. O guarda deixou descair os ombros, guardou o rádio e voltou-se para eles com uma expressão de descontentamento.

Ninguém falou enquanto o guarda avançava à frente deles até ao edifício. Passaram por quatro portas de aço e duas passagens que exigiam uma chave especial, desceram uma longa escadaria e chegaram a um átrio cuja porta estava equipada com duas fechaduras de segredo. Depois de franquearem uma série de portões controlados por sofisticados aparelhos electrónicos, chegaram ao fim de um comprido corredor e detiveram-se diante de umas enormes portas duplas de carvalho maciço. O guarda deteve-se, olhou novamente para eles e, resmungando qualquer coisa entredentes, dirigiu-se a uma caixa metálica na pa-

204 DAN BROWN

rede. Abriu-a, enfiou a mão lá dentro e teclou um código. As portas zumbiram e o ferrolho abriu-se.

O guarda voltou-se, dirigindo-lhes a palavra pela primeira vez: — Os Arquivos ficam para lá dessa porta. Recebi ordens para vos

trazer até aqui e regressar para tratar de outros assuntos. — Vai-se embora? — perguntou Vittoria. — A Guarda Suíça não tem acesso aos Arquivos Secretos. Só es

tão aqui porque o meu comandante recebeu uma ordem directa do camerlengo.

— Mas como é que voltamos a sair? — A segurança é monodireccional. Não terão problemas. — E, sem

mais, o homem fez meia volta e marchou corredor fora. Vittoria fez um comentário qualquer, mas Langdon não a ouviu.

Tinha o espírito totalmente concentrado nas duplas portas à sua frente, perguntando a si mesmo que mistérios o esperariam do outro lado.

CAPITULO QUARENTA E SETE

Apesar de saber que o tempo escasseava, o camerlengo Cario Ven-tresca caminhava lentamente. Precisava de alguns momentos de solidão para arrumar as ideias antes de enfrentar a oração de abertura. Estava tanta coisa a acontecer. Enquanto percorria os corredores silenciosos e escuros da Ala Norte, o desafio dos últimos quinze dias pesava-lhe nos ossos.

Cumprira à letra os seus deveres sagrados. Como era tradição do Vaticano, a seguir à morte do Papa confir

mara pessoalmente o óbito pousando os dedos na carótida do falecido, encostando-lhe o ouvido à boca em busca de sinais de respiração e chamando-o três vezes pelo nome. Por lei, não havia autópsia. Então, selara o quarto do pontífice, destruíra o anel do pescador, quebrara o molde usado para fazer sinetes de chumbo e tratara do funeral. Feito isto, iniciara os preparativos para o Conclave.

O Conclave, pensou. O último obstáculo a passar. Era uma das tradições mais antigas da Cristandade. Nos tempos modernos, porque o resultado era regra geral antecipadamente conhecido, o processo passara a ser criticado como obsoleto — mais teatro do que uma verdadeira eleição. Mas ele sabia que as críticas decorriam apenas de falta de compreensão. O Conclave não era uma eleição. Era uma antiga e mística transferência de poder. A tradição era imemorial... o secretismo, os pedaços de papel dobrados, a queima dos votos, a mistura de antigos produtos químicos, os sinais de fumo.

Enquanto atravessava as loggias de Gregório XIII, o camerlengo perguntava a si mesmo se o cardeal Mortati já teria entrado em pânico. Mortati notara certamente a ausência dos preferiti. Sem eles, a votação arrastar-se-ia por toda a noite. A nomeação de Mortati como Grande Eleitor fora, assegurou a si mesmo, uma boa escolha. O homem era

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um livre-pensador e não tinha medo de dizer o que pensava. Naquela noite, mais do que nunca, o Conclave ia precisar de um Hder.

Quando chegou ao alto da Escadaria Real, sentiu-se como se estivesse à beira do precipício da sua vida. Mesmo daü, conseguia ouvir a azáfama de actividade na Capela Sistina, lá em baixo... os murmúrios preocupados de cento e sessenta e cinco cardeais.

Cento e sessenta e um cardeais, emendou. Por um instante, estava a cair, a precipitar-se no inferno, no meio

de pessoas que gritavam, as chamas a engolirem-no, pedras e sangue a choverem do céu.

E então, silêncio.

Quando a criança acordou, estava no Paraíso. Tudo à sua volta era branco. A luz era ofuscante e pura. Embora haja quem diga que, aos dez anos, é impossível compreender o Paraíso, o jovem Cario Ventres-ca compreendia-o muito bem. Estava no Paraíso naquele preciso instante. Onde mais poderia estar? Apesar de só ter ainda passado uma curta década na Terra, Cario já sentira a majestade de Deus — a música imponente do órgão, as altas cúpulas, as vozes erguidas em cânticos, os vitrais, a refulgencia do bronze e do ouro. A mãe, Maria, levava-o à missa todos os dias. A igreja era a casa dele.

— Porque vimos à missa todos os dias? — perguntara Cario, mas não porque se importasse.

— Porque eu prometi a Deus que assim faria — respondera a mãe. — E uma promessa feita a Deus é a mais importante de todas. Nunca quebres uma promessa feita a Deus.

Cario prometera que nunca quebraria uma promessa feita a Deus. Amava a mãe mais do que tudo no mundo. Era o seu anjo sagrado. Por vezes, chamava-lhe Maria Benedetta — Maria Abençoada —, apesar de ela não gostar. Ajoelhava a seu lado enquanto ela rezava, cheirando a doce fragrância da sua carne, escutando-lhe o murmúrio da voz a desfiar o rosário. Santa Maria, Mãe de Deus... orai por nós pecadores... agora e na hora da nossa morte.

— Onde está o meu pai? — perguntava Cario, embora soubesse que o pai morrera antes de ele nascer.

— Está com Deus — respondia ela sempre. — És um filho da Igreja.

ANJOS E DEMÓNIOS 207

Cario adorava ouvir aquilo. — Sempre que tiveres medo — dizia ela —, lembra-te de que Deus

é agora o teu pai. Ele há-de velar por ti e proteger-te sempre. Deus tem grandes planos para ti. Cario.

E o rapaz sabia que a mãe tinha razão. Já sentia Deus no sangue. Sangue... Sangue a chover do céu!

Silêncio. E então, o Paraíso. O seu paraíso, como Cario descobriu quando as luzes ofuscantes

se apagaram, era a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santa Clara, nos arredores de Palermo. Cario fora o único sobrevivente de um atentado terrorista que fizera derruir a capela onde ele e a mãe ouviam missa, quando estavam de férias. Tinham morrido trinta e sete pessoas, incluindo a mãe dele. Os jornais chamaram à sobrevivência de Cario O Milagre de São Francisco. Cario tinha, por qualquer razão desconhecida, momentos antes da explosão, saído de junto da mãe para se aventurar numa alcova protegida e ver de mais perto uma tapeçaria que descrevia a vida de São Francisco.

Foi Deus que me chamou para ali, decidiu Cario. Quis salvar-me.

O desgosto mergulhou-o no delírio. Continuava a ver a mãe, ajoelhada no estribo do banco, a soprar-lhe um beijo com as pontas dos dedos, e então, com um estrondo horrível, a carne dela, de cheiro tão doce, fora dilacerada. Continuava a sentir na boca o sabor da maldade do homem. Chovera sangue do céu. O sangue da mãe! Da Maria Abençoada!

Deus há-de velar por ti e proteger-te sempre, dissera-lhe a mãe. Mas onde está Deus agorad

Então, como uma manifestação terrena da verdade da mãe, um padre fora vê-lo ao hospital. Não era um padre vulgar, era um bispo. Rezara junto de Cario. O Milagre de São Francisco. Quando Cario recuperara do choque, o bispo conseguira que fosse viver para um pequeno mosteiro anexo à catedral onde pontificava. Cario vivia e estudava com os monges. Foi até acólito do seu novo protector. O bispo sugerira que entrasse para uma escola pública, mas ele recusara. Não poderia ser mais feliz no seu novo lar. Agora vivia verdadeiramente na casa de Deus.

Todas as noites. Cario rezava pela mãe. Deus salvou-mepor uma ra^^o, pensava. Que ra:(ão é essa?

208 DAN BRO^XW

Quando completou dezasseis anos, ficou obrigado, pela lei italiana, a fazer vinte e quatro meses de treino militar. O bispo disse-lhe que, se entrasse para o seminário, ficaria isento desse dever. Cario disse ao bispo que tencionava entrar para o seminário, mas que primeiro precisava de compreender o mal.

O bispo não compreendeu. Cario disse-lhe que se ia passar a sua vida na Igreja a lutar contra

o mal, tinha primeiro de compreendê-lo. E não conseguia imaginar outro sítio onde melhor pudesse conhecer o mal do que no exército. O exército usava armas e bombas. Uma bomba matou a minha abençoada mãe!

O bispo tentou dissuadi-lo, mas Cario tinha tomado uma decisão. — Tem cuidado, meu filho — disse o bispo. — E não esqueças

que a Igreja estará à tua espera quando voltares. Os dois anos de Cario no serviço militar foram terríveis. A sua ju

ventude fora de silêncio e reflexão. Mas na tropa não havia silêncio para reflectir. Um barulho constante. Grandes máquinas por todo o lado. Sem um momento de paz. Embora os soldados fossem à missa todos os domingos, no quartel. Cario não sentia a presença de Deus em qualquer dos seus camaradas. Tinham os espíritos demasiado cheios de caos para verem Deus.

Cario detestava a sua nova vida e queria ir para casa. Mas estava decidido a aguentar. Ainda não compreendia o mal. Recusou disparar uma arma, de modo que os militares ensinaram-no a pilotar um helicóptero médico. Cario detestava o barulho e o cheiro, mas ao menos permitia--Ihe voar pelo céu e estar mais perto da mãe, no paraíso. Quando lhe disseram que o seu treino como piloto incluiria aprender a saltar de pára-quedas, ficou aterrorizado. Não tinha, porém, alternativa.

Deusproteger-me-á, disse para si mesmo. O primeiro salto de pára-quedas foi a experiência física mais exal

tante de toda a sua vida. Foi como voar com Deus. Cario não se fartava... o suêncio... o flutuar... ver o rosto da mãe nas tufadas nuvens brancas enquanto caía em direcção à terra. Deus tem planos para ti, Cario. Quando regressou da tropa, entrou para o seminário.

Fora isto vinte e três anos antes.

ANJOS E DEMÓNIOS 209

Agora, enquanto descia a Escadaria Real, o camerlengo Cario Ven-tresca tentava compreender a cadeia de acontecimentos que o conduzira até àquela extraordinária encruzilhada.

Esquece o medo, disse para si mesmo, e oferece esta noite a Deus. Já avistava a grande porta de bronze da Capela Sistina, devidamen

te vigiada por quatro guardas suíços. Os guardas correram os ferrolhos e abriram a porta. Lá dentro, todas as cabeças se voltaram. O camerlengo olhou para os hábitos negros e as faixas vermelhas que tinha à sua frente. Compreendeu quais eram os planos que Deus tinha para ele. A sorte da Igreja fora colocada nas suas mãos.

Cario Ventresca benzeu-se e passou o umbral.

CAPÍTULO QUARENTA E OITO

Günther Glick estava sentado, a suar, dentro da carrinha de exteriores da BBC, no lado leste da Praça de São Pedro, e amaldiçoava o seu chefe-de-redacção. Apesar de a sua primeira avaliação mensal ter aparecido cheia de superlativos — desembaraçado, inteligente, fiável —, ali estava ele, na Cidade do Vaticano, na «Vigflia Papal». Recordou a si mesmo que trabalhar para a BBC tinha miaito mais credibuidade do que escrever palha para o British Tatler, mas, mesmo assim, não era aquela a sua ideia de grande reportagem.

A missão de Glick era simples. Insultantemente simples. Tinha de estar ali sentado e esperar que um bando de velhadas elegesse o próximo velhadas-mor, e então sairia da carrinha para gravar os quinze segundos de «directo» com o Vaticano em fundo.

Brilhante.

Glick nem queria acreditar que a BBC continuava a enviar jornalistas para o terreno para cobrir palhaçadas daquelas. Alguém vê aqui uma cadeia americana'^ Raios, não! Porque os grandes faziam as coisas como deve ser. Viam a CNN, faziam uma sinopse e filmavam os seus «directos» em frente de uma tela azul, sobrepondo vídeos de arquivo para obter um fundo realista. A MSNBC chegava inclusivamente a usar no estúdio máquinas de vento e de chuva para dar autenticidade às cenas. Os telespectadores já não queriam a verdade; queriam entretenimento.

Ficou a olhar pelo pára-brisas, sentindo-se cada vez mais deprimido. A montanha imperial da cidade do Vaticano erguia-se diante dele como uma descoroçoante recordação daquilo que os homens eram capazes de fazer quando se dispunham verdadeiramente a isso.

— Que realizei eu na minha vida? — interrogou-se em voz alta. — Nada.

ANJOS E DEMÓNIOS 211

— Então desiste — disse uma voz de mulher, atrás dele. Glick deu um salto. Quase esquecera que não estava sozinho. Vol-

tou-se para o banco traseiro, onde a operadora de câmara, Chinita Ma-cri, se sentava em silêncio, a limpar os óculos. Chinita estava sempre a limpar os óculos. Era negra, embora preferisse afro-americana, um pouco para o pesado e esperta como o diabo. E não deixava que ninguém o esquecesse. Era um bicho estranho, mas Glick gostava dela. E o certo era que bem precisava da companhia.

— Qual é o problema, Gunth? — perguntou Chinita. — Que estamos nós aqui a fazer? Ela continuou a limpar os óculos. — A testemunhar um acontecimento excitante. — Um grupo de velhos fechados numa sala às escviras é excitante? — Sabes que vais para o inferno, não sabes? —Já cá estou. — Conta-me. — Parecia a mãe dele a falar. — É que sinto que quero deixar uma marca. — Escreveste para o British Tatler. — Sim, mas nada com um mínimo de ressonância. — Oh, deixa-te disso, ouvi dizer que escreveste um artigo excep

cional sobre a vida sexual secreta da rainha com extraterrestres... — Obrigado. — Ei, as coisas estão a melhorar. Esta noite fazes os primeiros

quinze segundos da ma história na TV. Glick gemeu. Já lhe parecia ouvir o pivô do noticiário. «Obriga

do, Günther, excelente reportagem.» Após o que rolaria os olhos para cima e passaria à previsão meteorológica.

— Devia ter tentado o lugar de pivô. Macri riu-se. — Sem experiência? E com essa barba? Esquece. GHck passou a mão pelo tufo de pêlos avermelhados que lhe ador

nava o queixo. — Acho que me faz parecer mais inteligente. O telemóvel da carrinha tocou, interrompendo misericordiosa

mente mais um dos fracassos de Glick. — Talvez seja da redacção — disse ele, repentinamente cheio de

esperança. — Achas que querem um ponto da situação em directo?

212 DAN BRO^»^SI

— Nesta história? — Macri riu-se. — Vai sonhando. Glick atendeu o telefone com a sua melhor voz de pivô. — Günther Glick, BBC, em directo do Vaticano. O homem que estava em linha falava com um carregado sotaque

árabe. — Ouça com atenção — disse. — Estou prestes a mudar para

sempre a sua vida.

CAPITULO QUARENTA E NOVE

Langdon e Vittoria estavam parados diante das duplas portas que davam acesso ao Santo dos Santos dos Arquivos Secretos. A decoração do corredor era uma incongruente mistura de tapetes de parede--a-parede sobre soalhos de mármore e câmaras de vigilância a espreitar junto dos querubins de talha dourada esculpidos no tecto. Langdon chamava-lhe Renascença Estéril. Uma pequena placa de bronze, ao lado da entrada em arco, anunciava:

ARCHIVIO VATICANO

Curators, Padre Jaqui Tomaso

Padre Jaqui Tomaso. Langdon reconheceu o nome das cartas de recusa que tinha em cima da secretária, em casa. Caro Doutor Eangdon, é com muita pena que lhe escrevo a comunicar...

Pena. Tretas. Desde que começara o reinado de Jaqui Tomaso como curador, Langdon não sabia de um único estudioso não-católico americano a quem tivesse sido concedido acesso aos Arquivos Secretos do Vaticano. 11 guardiano, chamavam-lhe os historiadores. Jaqui Tomaso era o bibliotecário mais intratável do mundo.

Quando empurrou as portas e atravessou o umbral em arco para entrar no santuário, quase esperava ver o padre Tomaso, de camuflado e capacete, a montar guarda com um lança-granadas. A sala estava, no entanto, deserta.

Suêncio. Luzes suaves. Archivio Vaticano. Um dos sonhos da sua vida. Enquanto abarcava com o olhar a câmara sagrada, a sua primeira

reacção foi de embaraço. Apercebeu-se de até que ponto era um romântico inveterado. As imagens daquela sala que durante tantos anos

214 DAN BROWN

idealizara não poderiam estar mais longe da realidade. Imaginara estantes poeirentas cheias de pilhas de velhos livros, padres entregues a tarefas de catalogação à luz de velas e de vitrais, monges a examinar com infinito cuidado estaladiços rolos de pergaminho...

Nem sequer era parecido. A primeira vista, a sala parecia um escuro hangar de aviação onde

alguém tivesse construído uma dúzia de filas de courts de racquethall. Sabia, claro, o que eram aqueles espaços fechados por paredes de vidro. Não ficou surpreendido ao vê-los; a humidade e o calor corroíam os veHnos e pergaminhos antigos, e uma preservação adequada exigia compartimentos herméticos como aqueles — cubículos estanques que impediam a entrada da humidade e dos ácidos naturais do ar. Já estivera muitas vezes dentro de compartimentos herméticos, mas era sempre uma experiência perturbadora... qualquer coisa que tinha a ver com entrar num contentor à prova de ar onde o oxigénio era regulado por um bibliotecário.

Os compartimentos eram escuros, tenebrosos até, débilmente iluminados por pequenas luzes semi-esféricas colocadas nas extremidades de cada estante. Na escuridão das celas, adivinhava os fantasmá-ticos gigantes, filas atrás de filas de grandes estantes, carregadas de história. Era um raio de uma colecção.

Também Vittoria parecia deslumbrada. Estava ao lado dele, a olhar em silêncio para os enormes cubos transparentes.

O tempo escasseava, e Langdon não o desperdiçou a procurar um catálogo — uma enciclopédia encadernada em que estaria catalogada toda a colecção da biblioteca. Tudo o que viu foi o brilho baço da meia dúzia de terminais de computador espalhados pela sala.

— Parece que têm um Biblion. O índex está computadorizado. Vittoria fez um ar de esperança. — Isso vai tornar tudo mais rápido. Langdon bem gostaria de partilhar o entusiasmo dela, mas ti

nha o pressentimento de que os computadores não eram boa notícia. Aproximou-se de um terminal e começou a escrever. Os seus receios foram instantaneamente confirmados.

— O método antigo teria sido bem melhor. — Porquê?

ANJOS E DEMÓNIOS 215

— Porque os livros reais não tèvapasswords de acesso — respondeu ele, afastando-se do terminal. — Suponho que os físicos não são piratas informáticos natos, pois não?

Vittoria abanou a cabeça. — Consigo abrir ostras, e fico-me por aí. Langdon inspirou fundo e voltou-se para enfrentar a colecção de

caixas transparentes. Aproximou-se da mais próxima e espreitou para o escuro interior. Do outro lado do vidro havia sombras amorfas que reconheceu como sendo estantes, contentores de pergaminhos e mesas de leitura. Examinou as placas que brilhavam na extremidade de cada estante. Como em todas as bibliotecas, as placas indicavam o conteúdo de cada fila. Leu-as enquanto se deslocava ao longo da divisória transparente.

PIETRO L'EREMITA... LE CROCIATE... URBANO II... LEVANT...

— Estão assinaladas — disse, ainda caminhando —, mas não por ordem alfabética de autores. — Não estava surpreendido. Os arquivos antigos quase nunca eram classificados alfabeticamente porque muitos dos autores eram desconhecidos. Os tímlos também não resultavam, porque muitos documentos históricos eram cartas sem título ou fragmentos de pergaminho. A maior parte da catalogação fazia-se por ordem cronológica. Desconcertantemente, porém, ali não parecia ser esse o caso.

Sentiu que um tempo precioso estava já a fugir-lhe por entre os dedos.

— Parece que o Vaticano tem o seu próprio sistema. — Que surpresa. Voltou a examinar as placas. Os documentos abarcavam séculos,

mas todas as palavras-chaves, apercebeu-se, estavam inter-relacionadas. — Acho que a classificação é temática. — Temática? — repetiu Vittoria, num tom de reprovação científi

ca. — Parece-me muito pouco eficiente. Na realidade..., pensou Langdon, considerando a questão mais apro

fundadamente, este é bem capa^^ de ser o sistema de catalogação mais inteligente

que alguma ve^ vi. Sempre encorajara os seus alunos a compreenderem os tons e motivos gerais de um período artístico em vez de se perderem em minudências de datas e obras específicas. Os Arquivos do Va-

216 DAN BROWN

ticano estavam, ao que parecia, catalogados de acordo com uma filosofia semelhante. Pinceladas largas...

— Tudo o que está neste compartimento — disse, sentindo-se mais confiante —, centenas de anos de material, tem a ver com as cruzadas. E o tema do compartimento. — Estava tudo ali, apercebeu-se. Relatos históricos, cartas, obras de arte, dados sodopolíticos, análises modernas. Tudo

no mesmo lugar... encorajando uma compreensão mais aprofundada de um tópico.

Brilhante.

Vittoria franziu a testa. — Mas a informação pode relacionar-se com múltiplos temas simul

taneamente. — Por isso ÍTCL^va. referências cruzadas com marcadores de repre

sentação. — Langdon apontou através do vidro para as etiquetas de plástico colorido inseridas entre os documentos. — Servem para indicar documentação secundária guardada noutros locais junto dos respectivos temas primários.

— Pois sim — disse ela, abandonando aparentemente o assunto. Pôs as mãos nas ancas e estudou o enorme espaço. Olhou então para Langdon. — Muito bem, professor, qual é o nome dessa coisa de Galileu que viemos procurar?

Langdon não pôde deixar de sorrir. Ainda não conseguira habi-tuar-se à ideia de que estava naquela sala. Está aqui, pensou. Algures na escuridão, à espera.

— Siga-me — disse, e começou a caminhar rapidamente pela primeira coxia, examinando as placas indicadoras de cada compartimento. — Lembra-se do que lhe contei a respeito do Caminho da Iluminação? De como os llluminati recrutavam novos membros usando um elaborado teste?

— A caça ao tesouro — simplificou Vittoria, colada aos calcanhares dele.

— O desafio que tiveram de enfrentar foi que, depois de colocarem os marcadores, precisavam de encontrar uma maneira qualquer de dizer à comunidade científica que o caminho existia.

— Lógico — respondeu Vittoria. — De outro modo, ninguém saberia que era preciso procurá-lo.

— Sim, e mesmo que soubessem da existência do caminho, os cientistas não tinham meio de saber onde começava. Roma é enorme.

ANJOS E DEMÓNIOS 217

— Okay. Langdon meteu pela segunda coxia, lendo as placas enquanto

falava. — Há cerca de quinze anos, uns historiadores da Sorbonne e eu

próprio descobrimos uma série de cartas Illuminati cheias de referências ao segno.

— O sinal. O anúncio do caminho e de onde começava. — Sim. E, de então para cá, muitos estudiosos dos Illuminati, in

cluindo eu próprio, encontraram outras referências ao segno. A teoria agora aceite é a de que a pista existe e que GaHleu a distribuiu maciçamente à comunidade científica sem que o Vaticano soubesse.

— Como? — Não sabemos de certeza, mas muito provavelmente através de

publicações impressas. Publicou, ao longo dos anos, um grande número de Hvros e comunicados.

— Que o Vaticano sem dúvida viu. Parece perigoso. — Verdade. Seja como for, o certo é que o segno foi divulgado. — Mas ainda ninguém o encontrou. — Pois não. Estranhamente, no entanto, onde quer que apareçam

alusões ao segno... diários maçónicos, antigos jornais científicos, cartas Illuminati... é quase sempre referido por um número.

— Seiscentos e sessenta e seis? Langdon sorriu. — Não. Quinhentos e três. — Que significa? — Nunca nenhum de nós conseguiu descobri-lo. Tornei-me ob

cecado com o número 503, tentei tudo para descobrir-lhe um significado... numerologia, referências cartográficas, latitudes. — Chegou ao fim da coxia, dobrou a esquina e começou a examinar a fila seguinte de placas. — Durante muitos anos, a única pista pareceu ser o facto de 503 começar pelo número cinco... um dos algarismos sagrados dos Illuminati. — Fez uma pausa.

— Alguma coisa me diz que descobriu recentemente a solução, e que é por isso que estamos aqui.

— Correcto — respondeu ele, permitindo-se um raro momento de orgulho no seu trabalho. — Sabe alguma coisa a respeito de um livro de Galileu chamado Diálogo?

218 DAN BROWN

— Claro. Famoso entre os dentistas como o expoente máximo de traição científica.

Traição não era exactamente a palavra que Langdon teria usado, mas sabia o que Vittoria queria dizer. No início do século XVII, Galileu quisera publicar um uvro em que apoiava o modelo heliocêntrico co-pernicano do sistema solar, mas o Vaticano recusara autorizar a obra a menos que o autor incluísse provas igualmente convincentes do modelo geocêntrico da Igreja — um modelo que Galileu sabia estar errado. GaUleu não tivera alternativa senão ceder às exigências da Igreja e publicar um livro em que dava o mesmo espaço e atenção aos dois modelos, o correcto e o errado.

— Como provavelmente sabe — disse Langdon —, mau grado a cedência de Galileu, o Diálogo foi mesmo assim considerado herético e o autor colocado pelo Vaticano em prisão domiciliária.

— Nenhuma boa acção fica sem castigo. Langdon sorriu. — Grande verdade. No entanto. Galileu era persistente. Enquanto

estava preso na sua própria casa, compôs secretamente um manuscrito menos conhecido que os estudiosos confiindem muitas vezes com o Diálogo. Esse livro chama-se Discorsi.

Vittoria assentiu. — Já ouvi falar. Discursos sobre as Marés. Langdon deteve-se bruscamente, surpreendido por ela saber de

uma obscura publicação a respeito de movimentos planetários e o seu efeito nas marés.

— Eh! — exclamou ela. — Está a falar com uma física marinha italiana cujo pai venerava Galileu.

Ele riu-se. Discorsi não era, porém, o livro que procuravam. Explicou que não fora essa a única obra de Galileu durante o seu encarceramento domiciliário. Os historiadores acreditavam que redigira igualmente um obscuro opúsculo intitulado Diagramma.

— Diagramma delia Verità — especificou. — Diagrama da Verdade. — Nunca ouvi falar. — Não me espanta. Diagramma foi a obra mais secreta de Gali

leu... supostamente uma espécie de tratado sobre factos científicos que ele tinha como verdadeiros mas que não estava autorizado a partilhar. Como muitos dos seus anteriores manuscritos, foi levado às escondi-

ANJOS E DEMONIOS 219

das para fora de Roma, por um amigo, e discretamente publicado na Holanda. O opúsculo tornou-se imensamente popular entre a comunidade científica clandestina europeia. Então, o Vaticano soube da historia e lançou uma campanha de queima de livros.

Vittoria parecia agora intrigada. — E acha que é esse livro que contém a pista? O segno'^ A informa

ção a respeito do Caminho da Iluminação. — Foi através do Diagramma que Galileu fez correr a notícia. Disso

tenho a certeza. — Langdon entrou na terceira fila de compartimentos e continuou a examinar as placas indicadoras. — Há anos que os arquivistas procuram um exemplar do livro. Mas entre os autos-de-fé do Vaticano e o baixo índice de permanência do opúsculo, a obra desapareceu da face da Terra.

— índice de permanência? — Durabilidade. Os arquivistas classificam os documentos numa

escala de um a dez conforme a respectiva integridade estrutural. O Diagramma foi impresso em papiro de junca. E como papel de embrulho. Período de vida não superior a um século.

— Porque não algo mais resistente? — Por decisão de Galileu. Para proteger os seus seguidores. Deste

modo, qualquer cientista apanhado com um exemplar podia simplesmente deixá-lo cair dentro de água e o opúsculo dissolvia-se. Era óptimo para destruir provas, mas péssimo para os arquivistas. Julga-se que só um exemplar do Diagramma sobreviveu para lá do século XVIII.

— Um? — Vittoria parecia subitamente fascinada, olhando em redor para a sala. — E está aqui?

— Confiscado na Holanda pelo Vaticano, depois da morte de Galileu. Há anos que peço para o consultar. Desde que percebi o que continha.

Como que lendo-lhe os pensamentos, Vittoria passou para o outro lado da coxia e começou a escrutinar a fila de compartimentos-frontei-ra, duplicando o ritmo da busca.

— Obrigado — disse ele. — Procure placas indicadoras que tenham qualquer coisa a ver com Galileu, ciência, cientistas. Saberá, quando a vir.

— Okaj. Mas ainda não me explicou como foi que percebeu que era o Diagramma que continha a pista. Teve alguma coisa a ver com

220 DAN BROWN

o tal número que aparecia constantemente nas cartas Illuminati? Quinhentos e três?

Langdon sorriu. — Tem. Demorou algum tempo, mas finalmente percebi que 503

era um simples código. Que aponta claramente para o Diagramma. Por um instante, reviveu o seu momento de inesperada revelação:

16 de Agosto. Dois anos antes. Estava junto a um lago, no casamento do filho de um colega. O som exaltante e alegre das gaitas-de-foles derramou-se sobre a água quando os noivos fizeram a sua espectacular entrada... numa barcaça através do lago. A embarcação estava enfeitada com flores e grinaldas. No flanco, pintado em letras brancas, ostentava orgulhosamente um numeral romano: DCll.

Intrigado pela marcação, Langdon perguntou ao pai do noivo: — Porquê seiscentos e dois? — Seiscentos e dois? Langdon apontou para a barcaça. — DCII é o numeral romano 602. O amigo riu-se. — Aqtiilo não é um numeral romano. É o nome da barcaça. — DCII?

— Dick e Connie IL Langdon sentiu-se pateta. Dick e Connie eram os nomes dos noi

vos. A barcaça fora obviamente baptizada em honra deles. — Que aconteceu à DCI? — Afundou-se ontem, durante o ensaio — resmungou, embara

çado, o amigo. Langdon riu-se. — Lamento muito. — Olhou novamente para a barcaça. A DCII,

pensou. Como um QEll em miniatura. E, um segundo depois, a revelação atingiu-o como uma marretada.

De regresso ao presente, voltou-se para Vittoria. — Quinhentos e três é, como lhe disse, um código. Um truque lllu-

minatus para esconder aquilo que era na realidade um numeral romano. O número 503 em numerais romanos escreve-se...

— DIU.

Langdon olhou para ela. — Isso foi rápido. Por favor, não me diga que é uma llluminata.

ANJOS E DEMÓNIOS 221

Vittoria riu-se. — Uso numerais romanos para classificar estratos pelágicos. Claro, pensou Langdon. NÖÖ é O que toda a gente fa^ Vittoria estava a olhar para ele. — E então, qual é o significado de DIII? — Dl e Dil e DIII são abreviaturas muito especiais. Eram usadas

pelos antigos cientistas para distinguir os três documentos galileanos mais comummente confundidos.

Vittoria deteve-se. — Diálogo... Discorsi... Diagramma. — D-um. D-dois. D-três. Todos científicos. Todos controversos.

Quinhentos e três é Dlll. Diagramma. O terceiro livro. Um ar de ügeira confusão passou pelo rosto dela. — Mas há uma coisa que continua a não fazer sentido. Se esse seg

no, essa pista, esse anúncio do Caminho da Iluminação estava realmente no Diagramma, porque foi que o Vaticano não o viu quando confiscou todos os exemplares?

— Podem ter visto e não ter reparado. Lembra-se dos marcadores dos 7//«Z??/«ÖÄ7 Esconder as coisas à vista de todos? Dissimulação? O segno estava aparentemente escondido da mesma maneira... à vista de todos. Invisível para quem não andasse à procura dele. E também invisível para aqueles que não o compreendessem.

— O que significa? — O que significa que Galileu o escondeu bem escondido. De

acordo com o registo histórico, o segno era revelado num modo a que os Illuminati chamavam lingua pura.

— Língua pura? — Sim. — Matemática? — É o que penso. Parece óbvio. Galileu era um cientista, ao fim

e ao cabo, e estava a esctevetpara cientistas. A matemática seria a linguagem lógica para revelar a pista. O opúsculo chama-se Diagramma, de modo que é natural que diagramas matemáticos façam igualmente parte do código.

O tom de Vittoria foi apenas um tudo nada mais esperançoso. — Sim, suponho que Galñeu poderia ter criado uma espécie de có

digo matemático que passasse despercebido aos homens do clero.

222 DAN BROWN

— Não parece muito convencida — comentou Langdon, continuando a percorrer a coxia.

— E não estou. Sobretudo porque o Robert também não está. Se estava assim tão seguro a respeito do DIU, porque não publicou? Nessa altura, alguém que tivesse acesso aos Arquivos do Vaticano poderia ter vindo aqui e examinado o Diagramma há montes de tempo.

— Não quis pubHcar — respondeu Langdon. — Tinha trabalhado duro para encontrar a informação e... — calou-se, embaraçado.

-— Queria a glória. Langdon sentiu-se corar. — De certa maneira. É que... — Não fique tão atrapalhado. Está a falar com uma cientista. Pu

blicar ou morrer. No GERN chamamos-Ihe «Substanciar ou sufocar». — Não foi só por querer ser o primeiro. Preocupava-me também

saber que se a informação sobre o Diagramma chegasse às mãos erradas, o livro podia desaparecer.

— Sendo as mãos erradas as do Vaticano? — Não que estejam errados, j(>ír JÍ, mas a Igreja sempre desvalori

zou a ameaça que os llluminati representavam. No início do século xx, o Vaticano foi ao ponto de dizer que não passavam do produto de imaginações excessivamente activas. O clero pensava, e possivelmente com razão, que a última coisa de que os Cristãos precisavam era de saber que havia movimentos anticristãos muito poderosos infiltrados nos seus bancos, instituições políticas e universidades. — Usa apresente, disse Langdon a si mesmo. Há uma poderosa força anticristã infiltrada nos bancos, nas instituições políticas e nas universidades deles.

— Pensa então que o Vaticano teria eliminado qualquer prova que corroborasse a ameaça Illuminata?

— É muito possível. Qualquer ameaça, real ou imaginada, enfraquece a fé no poder da Igreja.

— Só mais uma pergunta. — Vittoria deteve-se repentinamente e olhou para ele como se fosse um extraterrestre. — Está a falar a sério?

Langdon deteve-se também. — Não compreendo a pergunta. — Quer dizer, é verdadeiramente este o seu plano para salvar a si

tuação?

ANJOS E DEMÓNIOS 223

Langdon não teve a certeza se o que via nos olhos dela era comiseração divertida ou puro terror.

— Está a referir-se a encontrar o Diagramma? — Não, estou a referir-me a encontrar o Diagramma, localizar um

segno velho de quatrocentos anos, decifrar úm código matemático e seguir uma pista de obras de arte que só os cientistas mais brilhantes da História conseguiram seguir... tudo isto nas próximas quatro horas.

Langdon encolheu os ombros. — Aceito sugestões.

CAPITULO CINQUENTA

Robert Langdon parou diante do Compartimento de Arquivo n.° 9 e leu as placas das estantes:

BRAKE... CLAVIUS... COPÉRNICO... KEPLER... NEWTON...

Voltou a 1er os nomes, sentindo um súbito mal-estar. Os dentistas estão aqui... mas onde está Galileu?

Voltou-se para Vittoria, que verificava o conteúdo de um compartimento próximo.

— Encontrei o tema certo, mas falta o Galileu. — Não, não falta — respondeu ela, franzindo a testa e apontando

para o compartimento ao lado. — Está aqui. Mas espero que tenha trazido os seus óculos de leimra, porque este compartimento é todo dele.

Langdon correu para ela. Vittoria tinha razão. Todas as placas indicadoras do compartimento n.° 10 tinham a mesma palavra-chave:

IL PROCESSO GALILEANO

Langdon assobiou entredentes, compreendendo agora por que motivo Galileu tinha um compartimento só para si.

— O Caso Galileu — murmurou, espreitando através do vidro para os escuros contornos das estantes. — O processo judicial mais longo e mais caro da história do Vaticano. Catorze anos e seiscentos milhões de liras. Está tudo aqui.

— Documentos legais com fartura. Pode servir-se. — Acho que os advogados não evoluíram muito ao longo dos sé

culos. — Como os tabarões. Langdon avançou até ao grande botão amarelo na parede do com

partimento. Premiu-o, e lá dentro acendeu-se uma série de lâmpadas

ANJOS E DEMÓNIOS 225

suspensas do tecto. As lâmpadas eram de um vermelho-carregado, transformando o cubo numa cela escarlate... um labirinto de estantes altas.

— Meu Deus — exclamou Vittoria, parecendo assustada. — Viemos aqui para bronzear-nos ou para trabalhar?

— Os pergaminhos e os velinos são sensíveis à luz. Por isso a iluminação dos compartimentos é sempre feita com lâmpadas de infravermelhos.

— Uma pessoa pode enlouquecer aí dentro. Ou coisa pior, pensou Langdon, avançando para a única porta. — Um rápido aviso. O oxigénio é um oxidante, pelo que os com

partimentos estanques como este contêm muito pouco. Lá dentro há um vácuo parcial. Vai ter alguma dificuldade em respirar.

— Eh, se os velhos cardeais conseguem sobreviver... Verdade, pensou Langdon. Possamos nós ter a mesma sorte. O acesso ao compartimento fazia-se por uma porta giratória elec

trónica. Langdon notou os quatro habimais botões de acesso no pilar central da porta, um em cada quarto de círculo. Quando se premia o botão, o motor eléctrico era accionado e a porta fazia meia rotação. Um procedimento padrão para preservar a integridade da atmosfera interior.

— Depois de eu ter entrado — disse —, carregue no botão e siga--me. A humidade no interior é apenas oito por cento, portanto prepa-re-se para sentir a boca um pouco seca.

Entrou no pequeno triângulo de vidro rotativo e premiu o botão. A porta zumbiu alto e começou a rodar. Enquanto lhe acompanhava o movimento, Langdon preparou o corpo para o choque físico que acompanhava sempre os primeiros segundos dentro de um compartimento estanque. Entrar num arquivo selado era como passar repentinamente do nível do mar para uma altitude de seis rml e quinhentos metros. Náuseas e tonturas eram reacções comuns. Dupla visão, dobra-te ao meio, recordou a si mesmo, citando o mantra dos arquivistas. Sentiu um estalido nos ouvidos. Houve um suvo de ar e a porta parou.

Tinha entrado. A primeira coisa em que reparou foi que o ar era mais rarefeito

do que esperara. O Vaticano, segundo parecia, levava os seus arquivos muito a sério. Lutou contra o reflexo de contracção da garganta e rela-

226 DAN BROWN

xou O peito, enquanto os capilares dos pulmões se dñatavam. O aperto passou rapidamente. Chegou o Golfinho, disse para si mesmo, satisfeito por as cinquenta piscinas diárias servirem para alguma coisa. Já a respirar normalmente, olhou em redor. Apesar das paredes exteriores transparentes, sentiu a familiar ansiedade. Ustou dentro de uma caixa, pensou. Uma caixa vermelha de sangue.

A porta zumbiu atrás dele. Voltou-se. Vittoria vinha a entrar. Quando chegou ao interior, os olhos encheram-se-lhe imediatamente de lágrimas, e começou a ofegar.

— Dê-lhe um minuto — aconselhou Langdon. — Se começar a sentir-se tonta, dobre-se para a frente.

— Sinto-me — gaguejou Vittoria — como se estivesse... a fazer mergulho... com a mistura... errada.

Langdon esperou que ela se ambientasse. Sabia que ia ficar bem. Vittoria estava obviamente em magnífica forma física, nada como os velhos antigos alunos de Radcliffe que certa vez acompanhara numa visita ao compartimento estanque da biblioteca de Widener, e que terminara com ele a fazer respiração boca-a-boca a uma velhota que quase engolira a dentadura postiça.

— Sente-se melhor? — perguntou. Vittoria assentiu com a cabeça. — Viajei no seu malfadado avião espacial, de modo que achei que

estava em dívida para consigo. Esta frase provocou um sorriso. — Touché.

Langdon meteu a mão numa caixa ao lado da porta giratória e tirou de lá um par de luvas de algodão branco.

—Jantar de gala? — perguntou Vittoria. — Ácido dos dedos. Não se pode mexer nos documentos sem elas.

Vai precisar de um par. Vittoria calçou as luvas. — Quanto tempo temos? Langdon consultou o relógio ^to Mickey. — Passa um pouco das sete. — Precisamos de encontrar essa coisa numa hora, no máximo. — Para dizer a verdade, terá de ser em muito menos tempo — dis

se Langdon, apontando para uma abermra no tecto protegida por um

ANJOS E DEMÓNIOS 227

filtro. — Normalmente, o curador acciona o sistema de reoxigenação quando está alguém no compartimento. Hoje não temos curador. Vinte minutos. Depois disso, vamos os dois parecer peixes fora de água.

Vittoria empalideceu visivelmente sob a luz avermelhada. Langdon sorriu e alisou as luvas. — Substanciar ou sufocar, doutora Vetra. O Mickey está a contar

o tempo.

CAPITULO CINQUENTA E UM

O jornalista da BBC Günther Glick ficou a olhar para o telemóvel que tinha na mão durante uns bons dez segundos antes de finalmente desligar.

Chinita Macri observava-o das traseiras da carrinha. — O que foi? Quem era? GHck voltou a sentir-se como um garoto que tivesse recebido uma

prenda no Natal e receasse que não fosse realmente para ele. — Acabo de receber uma dica. Passa-se qualquer coisa dentro do

Vaticano. — Chama-se Conclave — troçou Chinita. — Grande dica. — Não, é outra coisa. — Uma coisa grande. Perguntou a si mesmo se

a história que acabava de ouvir poderia ser verdadeira. Envergonhou--se ao dar por si a desejar que fosse. — E se eu te dissesse que foram raptados quatro cardeais que vão ser assassinados em quatro igrejas diferentes esta noite?

— Diria que alguém da central com um sentido de humor doentio está a gozar contigo.

— E se eu te dissesse que nos vai ser dada a localização exacta do primeiro assassínio?

— Quereria saber com quem estiveste a falar. — O tipo não disse. — Talvez por ser tudo uma treta? Click já contava com o cepticismo de Macri, mas o que ela estava

a esquecer era que mentirosos e lunáticos tinham sido a especialidade dele durante quase uma década, no British Tatler. O homem que lhe ligara não era uma coisa nem outra. Fora friamente racional. Lógico. Ugo-lhe um pouco antes das oito, dissera, e digo-lhe onde vai acontecer a primeira morte. As imagens que vai gravar torná-lo-ão famoso. Quando perguntara ao

ANJOS E DEMÓNIOS 229

seu interlocutor por que motivo estava a dar-lhe aquela informação, a resposta fora tão gelada como o sotaque levantino do sujeito. Os media são o braço direito da anarquia.

— E também me disse outra coisa. — O quê? Que o Elvis Presley vai ser eleito Papa? — Liga para a base de dados da BBC, está bem? — A adrenalina

corria agora a toda a força pelas veias de Glick. — Quero saber que outras histórias fizemos sobre estes tipos.

— Que tipos? — Vá lá, faz-me esse favor. Macri suspirou e começou a fazer a ligação à base de dados da BBC. — Okay, é só um minuto. O cérebro de GHck parecia estar a nadar. — O tipo estava muito interessado em saber se eu tinha um ope

rador de câmara. — Videógrafo. — E se podíamos transmitir em directo. — Um ponto cinco três sete megahert^ O que é que se passa?

— A base de dados emitiu um bip. — Okay, entrámos. Do que é que estamos à procura?

Glick deu-lhe a palavra-chave. Macri voltou-se e ficou a olhar para ele. — Espero mesmo que estejas a brincar.

CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS

A organização interna da Câmara de Arquivo n.° 10 não era tão intuitiva como Langdon esperara, e o manuscrito do Diagramma parecia não estar localizado junto de outras publicações semelhantes de Ga-üleu. Sem acesso ao Biblion computadorizado e a um localizador de referências, Langdon e Vittoria estavam encravados.

— Tem a certeza de que o livro está aqui? — perguntou Vittoria. — Absoluta. Confirmado por listagens tanto do Uficcio deUa Pro

paganda deUe Fede... — Está bem, está bem. Desde que tenha a certeza. — E seguiu

para a esquerda, enquanto ele voltava à direita. Langdon iniciou uma busca manual. Tinha de usar toda a capaci

dade de autocontenção que possuía para não parar a 1er todos os tesouros por que passava. A colecção era estonteante. O Contrasteador... O Mensageiro das Es/re/as... As Cartas das Manchas Solares... Carta à Grã-Du-quesa Cristina... Apologia pro Galileo... E por aí fora, e por aí fora.

Foi Vittoria quem finalmente encontrou ouro, já perto do extremo do compartimento.

— Diagramma delia Verità!— gritou, com voz rouca. Langdon atravessou a correr a penumbra avermelhada para se lhe

juntar. — Onde? Ela apontou, e Langdon compreendeu imediatamente por que ra

zão o não tinham encontrado mais cedo. O manuscrito estava num contentor de folhas, não nas prateleiras. Aqueles contentores eram uma maneira comum de guardar páginas soltas. A etiqueta na frente do contentor não deixava qualquer dúvida quanto ao seu conteúdo.

DIAGRAMMA DELLA VERITA

Galieo Galilei, 1639

ANJOS E DEMÓNIOS 231

Langdon caiu de joelhos, com o coração a martelar-lhe o peito. — Diagramma! — Fez um sorriso rasgado. — Ajude-me a tirar

o contentor. Vittoria ajoelhou-se ao lado dele, e puxaram juntos. O tabuleiro de

metal onde o contentor estava pousado deslizou para a frente sobre rodízios, revelando a parte de cima da caixa.

— Não tem fechadura? — estranhou Vittoria, parecendo surpreendida ao ver a simples lingueta.

— Nunca. Pode acontecer os documentos terem de ser evacuados à pressa. Inundações, incêndios e coisas assim.

— Vamos, abra-o. Langdon não precisava de encorajamentos. Com o sonho da sua

vida académica ali diante dos olhos e o ar rarefeito da câmara, não estava com disposição para tergiversar. Soltou a lingueta e levantou a tampa. Lá dentro, pousada no chão do contentor, estava uma bolsa de lona preta. A permeabilidade do tecido era essencial para a preservação do conteúdo. Pegando-lhe com as duas mãos e mantendo-a na horizontal, Langdon tirou-a do contentor.

— Estava à espera de uma arca do tesouro — comentou Vittoria. — Isso parece mais uma fronha de almofada.

— Venha comigo — disse ele. Levando a bolsa nas mãos estendidas como se fosse uma oferenda sagrada, dirigiu-se ao centro da câmara, onde encontrou a habitual mesa de tampo de vidro. Embora a localização central se destinasse na realidade a minimizar as deslocações dos documentos no interior da sala, os investigadores apreciavam a privacidade que as estantes à sua volta proporcionavam. Descobertas capazes de fazer uma carreira aconteciam de vez em quando nos grandes arquivos mundiais, e a maior parte dos académicos não gostava de ver rivais a espreitar do outro lado do vidro enquanto trabalhava.

Pousou a bolsa em cima da mesa e desabotoou a abermra. Vittoria estava junto dele. Procurando numa bandeja cheia de instrumentos de arquivista, encontrou um par dessas pinças com ponta de feltro a que os especialistas chamam dedos de címbalo — grandes pinças com discos achatados na ponta de cada braço. Sentindo a excitação crescer, receava acordar a qualquer momento e dar por si de novo em Cambridge, com um monte de testes para classificar. Inspirou fluido e abriu a bolsa.

232 DAN BROWN

Os dedos tremiam-lhe nas luvas de algodão quando, muito cuidadosamente, introduziu a pinça.

— Descontraia — disse Vittoria. — É papel, não é plutónio. Langdon fez desUzar os braços da pinça à volta do monte de do

cumentos que estava no interior da bolsa, tendo o cuidado de aplicar uma pressão regular. Então, em vez de puxar os documentos para fora, manteve-os no mesmo lugar e fez deslizar a bolsa — um truque de arquivista para minimizar a tracção da ferramenta. Só depois de ter retirado completamente a bolsa e de ter acendido a luz escura por baixo da mesa se permitiu voltar a respirar.

Vittoria parecia um espectro, uuminada de baixo pela lâmpada colocada sob o vidro.

— Folhas pequenas — disse ela, num tom reverente. Langdon assentiu. O monte de folhas de papiro que tinham à fren

te fazia lembrar as páginas soltas de um pequeno livro de bolso. Langdon viu que a de cima era uma capa, delicadamente decorada à pena, com o título, a data e o nome de Galileu, escrito pelo seu próprio punho.

Naquele instante, esqueceu a claustrofobia, esqueceu o cansaço, esqueceu a situação horrível que o levara a estar ali. Ficou apenas a olhar, maravilhado. Os encontros imediatos de terceiro grau com a História deixavam-no sempre aturdido de reverência... como ver a marca das pinceladas na Mona Lisa.

O papiro baço e amarelado não deixava quaisquer dúvidas no espírito de Langdon quanto à sua idade e autenticidade, mas, excluindo um inevitável esbater da escrita, o documento estava em soberbas condições. Ugeira descoloração do pigmento. O papiro encontrase um tudo nada esta-

ladiço e aderente. Mas de um modo geral... de um modo geral... em excelentes con

dições. Esmdou a ornamentada uuminura da capa, sentindo a visão um pouco turva devido à falta de humidade. Vittoria continuava calada.

— Passe-me uma espámla, por favor. — Langdon fez um gesto na direcção da bandeja de aço inoxidável cheia de instrumentos de arquivista que estava ao lado de Vittoria. Ela entregou-lha. Langdon pegou no instrumento. Era uma boa espátula. Passou os dedos pela face, para remover qualquer carga estática, e então, com infinito cuidado, fez des-Hzar a lâmina por baixo da capa. A seguir, levantando a espátula, voltou a folha.

ANJOS E DEMÓNIOS 233

A primeira página estava coberta de uma caligrafia minúscvila e estilizada quase impossível de 1er. Langdon notou imediatamente que não continha quaisquer números ou diagramas. Era um ensaio.

— Heliocentricidade — disse Vittoria, traduzindo o cabeçalho daquela primeira página. Passou os olhos pelo resto do texto. — Parece que Galileu renuncia aqui para todo o sempre ao modelo geocêntrico. Está em italiano antigo, de modo que não posso fazer promessas quanto à tradução.

— Esqueça — respondeu Langdon. — Estamos à procura de matemática. A Ungua pura. •— Usou a espátula para passar ã página seguinte. Outro ensaio. Nada de diagramas matemáticos. As mãos de Langdon começaram a transpirar dentro das luvas.

— Movimento dos Planetas — disse Vittoria, traduzindo mais uma vez o cabeçalho.

Langdon franziu a testa. Em qualquer outra ocasião, teria lido tudo aquilo, fascinado. Por incrível que parecesse, o modelo das órbitas planetárias estabelecido pela NASA, com recurso a potentíssimos telescópios, era provavelmente quase idêntico às previsões originais de Galileu.

— Nada de matemática — acrescentou Vittoria. — Está a falar de movimentos retrógrados e de órbitas elípticas, ou coisa assim.

Orbitas elípticas. Langdon recordou que grande parte dos problemas de Galileu começara quando ele descrevera o movimento planetário como elíptico. O Vaticano exaltava a perfeição do círculo e insistia em que os movimentos celestes só podiam ser circulares. Os llluminati de Galileu, porém, viam perfeição também na elipse, reverenciando a dualidade matemática dos seus dois focos. A elipse dos llluminati era ainda na época actual proeminente nos traçados e nos motivos decorativos maçónicos.

— Seguinte — disse Vittoria. Langdon voltou a página. — Fases da Lua e marés. Nada de números. Nada de diagramas. Langdon voltou mais uma página. Nada. Voltou mais cerca de uma

dúzia de páginas. Nada. Nada. Nada. — Pensei que o sujeito era um matemático — observou Vittoria.

— Isto é só texto.

234 DAN BROWN

Langdon sentiu o ar começar a rarefazer-se-lhe nos pulmões. Também as suas esperanças se desvaneciam. As folhas que restavam eram cada vez menos.

— Não há aqui nada — disse Vittoria. — Nenhuma matemática. Algumas datas, alguns números padrão, mas nada que pareça poder ser uma pista.

Langdon voltou a última página e suspirou. Era outro ensaio. — Livro pequeno — comentou Vittoria, de testa franzida. Langdon assentiu. — Merda, como dizemos em Roma. Merda é a palavra certa, pensou Langdon. O reflexo no vidro parecia

estar a troçar, como a imagem que olhara para ele naquela manhã, da janela de sacada de sua casa. Um fantasma a ficar velho.

— Tem de haver qualquer coisa — disse, e a rouqmdão de desespero na própria voz surpreendeu-o. — O segno está aqui algures. Tenho a certeza!

— Talvez se tenha enganado em relação ao Dlll? Langdon voltou-se e olhou para ela. — Okay — admitiu Vittoria. — Diil faz todo o sentido. Mas talvez

a pista não seja matemática? — Lingua pura. Que outra coisa poderia ser? — Arte? — Só que não há diagramas ou imagens no livro. — Tudo o que sei é que lingua pura se refere a qualquer coisa que

não é italiano. A matemática apenas parece ser a resposta lógica. — Concordo. Langdon recusava aceitar tão facilmente a derrota. — Os números devem estar escritos por extenso. A matemática

deve estar em palavras e não em equações. — Vai levar algum tempo a 1er todas essas páginas. — Tempo é aquilo que não temos. Vamos dividir o trabalho. —

Langdon voltou a virar o monte de folhas para a posição inicial. — Sei o suficiente de italiano para detectar números. — Usando a espátula, cortou o monte como se fosse um baralho de cartas e colocou a primeira meia dúzia de folhas diante de Vittoria. — Está aqui algures. Tenho a certeza.

Vittoria estendeu a mão e voltou a primeira folha.

ANJOS E DEMÓNIOS 235

— Espátula! — disse ele, estendendo-lhe uma que retirou da bandeja. — Use a espátula.

— Estamos de luvas — resmungou ela. — Que mal pode fazer? — Use a espátula — limitou-se ele a repetir. Vittoria pegou na espátula. — Está a sentir o mesmo que eu? — Tenso? — Não. Falta de ar. Langdon estava definitivamente a senti-la também. O ar rarefizera-

-se mais depressa do que imaginara. Sabia que tinham de se apressar. Os enigmas arquivísticos não eram novidade para ele, mas geralmente dispunha de mais do que uns poucos minutos para decifrá-los. Sem mais uma palavra, inclinou a cabeça e começou a traduzir a primeira página do seu monte.

Mostra-te, raios! Mostra-te!

CAPÍTULO CINQUENTA E TRES

Algures no subsolo de Roma, uma sombra escura descia silenciosamente uma rampa de pedra em direcção a um túnel. A antiga passagem era iluminada apenas por archotes, que tornavam o ar quente e espesso. Mais à frente, as vozes assustadas de homens adultos gritavam em vão, ecoando nos apertados espaços.

Quando dobrou a esquina e os viu, exactamente onde os tinha deixado — quatro velhos aterrorizados, encarcerados por ferrugentas barras de ferro num cubículo de pedra.

—Qui êtes-vous?— perguntou um dos homens em francês. — O que quer de nós?

— Hilfe!— disse outro em alemão. — Liberte-nos! — Sabe quem somos? — inquiriu o terceiro em inglês com um

forte sotaque espanhol. — Silêncio! — ordenou a voz áspera. E a palavra soou carregada

de determinação. O quarto prisioneiro, um italiano, silencioso e pensativo, olhou

para o negro vazio dos olhos do seu captor e jurou ter visto o próprio inferno. Deus nos ajude, pensou.

O assassino consultou o relógio e voltou a olhar para os prisioneiros. — Muito bem — disse. — Quem quer ser o primeiro?

CAPITULO CINQUENTA E QUATRO

Dentro da Câmara de Arqmvo n.° 10, Robert Langdon recitava números em italiano enquanto examinava a caligrafia à sua frente. Mille... centi... uno, duo, tre... ánquanta. Preaso de uma referenda numérica. Qualquer

coisa, raios!

Quando chegou ao fim daquela folha, pegou na espátula para voltá-la. Ao alinhar a lâmina com a página seguinte, atrapaUiou-se, tendo dificuldade em manter o utensílio estável. Minutos mais tarde, olhou para baixo e apercebeu-se de que abandonara a espátula e estava a voltar as folhas à mão. Uuups, pensou, sentindo-se vagamente criminoso. A falta de oxigénio estava a afectar-lhe as inibições. Acho que vou arder no inferno dos arquivistas.

—Já não era sem tempo — bufou Vittoria, quando o viu voltar as páginas à mão. Largou a espátula e imitou-o.

— Alguma sorte? Vittoria abanou a cabeça. — Nada que pareça puramente matemático. Estou a passar à pres

sa... mas nada disto parece uma pista. Langdon continuou a traduzir as suas folhas cada vez com maior

dificuldade. O seu conhecimento da língua italiana era fraco, para ser generoso, e a pequenez da letra e a escrita arcaica estavam a tornar as coisas duplamente difíceis. Vittoria chegou ao fim do seu monte antes de Langdon e fez um ar infeliz ao virar as folhas. Inclinou-se para a frente, disposta a iniciar novo exame.

Quando Langdon chegou ao fim do seu monte, praguejou entre-dentes e olhou para Vittoria. Ela estava de olhos franzidos, a examinar qualquer coisa numa das páginas.

— O que é? — perguntou ele. Vittoria não ergueu a cabeça. — Tinha notas de rodapé nas suas páginas?

238 DAN BROWN

— Não que eu visse. Porquê? — Esta página tem uma nota de rodapé. Está disfarçada por uma ruga. Langdon tentou ver aquilo para que ela estava a olhar, mas tudo

o que conseguiu distinguir foi o número da página no canto superior direito. Fólio 5. Demorou algum tempo a revistar a coincidência, e mesmo assim a ligação pareceu-lhe vaga. Fólio 5. Cinco, Pitágoras, pentagramas, llluminati. Teriam os llluminati escolhido a página 5 para esconder a sua pista? Sentiu um ténue raio de esperança atravessar a névoa avermelhada que os rodeava.

— A nota de rodapé é matemática? Vittoria abanou a cabeça. — Texto. Uma linha. Letra muito pequena. Quase ilegível. O raio de esperança desvaneceu-se. — Deverá ser matemática. Unguapura. — Sim, sim, já sei. — Vittoria hesitou. — De qualquer maneira,

acho que vai querer ouvir isto. Langdon detectou a excitação na voz dela. — Diga. De olhos semicerrados, Vittoria leu a linha: — O caminho de luz está traçado, a prova sagrada. As palavras não eram nada do que Langdon imaginara. — Desculpe? — O caminho de luz está traçado, a prova sagrada — repetiu Vit

toria. — Caminho de luz? — Langdon sentiu que se punha mais direito. — É o que diz aqui. Caminho de luz. A medida que as palavras assentavam, Langdon sentiu que o seu

delírio era trespassado por um instante de clareza. O caminho de lu^ está traçado, aprova sagrada. Não fazia ideia de como podia aquilo ajudá-los, mas a frase era uma referência tão directa ao Caminho da Iluminação quanto se podia imaginar. Caminho de lui^ Prova sagrada. A cabeça dele parecia um motor a trabalhar com combustível de má qualidade.

— Tem a certeza da tradução? Vittoria hesitou. — Na verdade... — lançou-Ihe um olhar de estranheza. — Tecni

camente, não é uma tradução. A linha está escrita em inglês. Por um instante, Langdon pensou que a acústica da câmara lhe es

tava a afectar a audição.

ANJOS E DEMÓNIOS 239

— Inglês^ Vittoria empurrou o documento para ele e Langdon leu as minús

culas letras impressas no fundo da página. — The path of light is laid, the sacred test. Inglês? Que está uma frase

em inglês a fazer num livro italiano? Vittoria encolheu os ombros. Também ela parecia um pouco en

tontecida. — Talvez seja ao inglês que se referem quando falam de lingua pura.

É considerado a língua internacional da ciência. No GERN é só o que falamos.

— Mas aqui estamos a falar do século xvil — argumentou Langdon. — Ninguém falava inglês em Itália, nem sequer... — Interrompeu-se, apercebendo-se do que ia dizer. — Nem sequer... o clero. — O cérebro académico de Langdon estava a funcionar a toda a velocidade. — No século XVII — disse, falando agora mais depressa —, o inglês era uma língua que a Igreja ainda não abraçara. Os padres comunicavam em italiano, latim, alemão, francês e espanhol, mas o inglês era uma língua totalmente estrangeira dentro do Vaticano. Consideravam-no uma língua poluída, de livres-pensadores, boa para homens profanos como Chaucer e Shakespeare. — Recordou num relâmpago as marcas lllu-minati da Terra, Ar, Fogo e Agua. A lenda de que estavam escritas em inglês fazia agora uma espécie de bizarro sentido.

— Está então a dizer que talvez Galileu considerasse o inglês a lingua pura por ser a única que o Vaticano não controlava?

— Sim. Ou talvez, ao escrever as pistas em inglês, estivesse subtilmente a restringir a leitura ao exterior do Vaticano.

— Mas nem sequer é uma pista! — disse Vittoria. — O caminho de luv;^ está traçado, aprova sagrada"^ Que raio é que isso significa?

Ela tem rat^ão, pensou Langdon. A linha não ajuda seja de que maneira for. Mas ao repetir mentalmente a frase, notou um estranho facto. Esta agorad Quais serão as possibilidades de uma coisa destas'?

— Temos de sair daqui — avisou Vittoria, com a voz enrou-quecida.

Langdon não estava a ouvi-la. The path of light is laid, the sacred test — E um pentámetro jámbico — disse de repente, voltando a con

tar as sflabas. — Cinco dísticos de sflabas tónicas e átonas alternadas.

240 DAN BROWN

Vittoria parecia perdida. —Jámbico quê? Por um instante, Langdon estava de volta à Phillips Exeter Aca

demy, numa aula de inglês numa manhã de sábado. O inferno na Terra. Peter Greer, a estrela de basebol da escola, estava a ter dificuldade em recordar quantos dísticos eram necessários para formar um pentámetro jámbico shakesperiano. O professor, um animado mestre-escola chamado Bissel, saltou para cima da mesa e berrou:

— Pentâ-metro, Greer! Pensa na placa do batedor! Um pentágono! Cinco lados! Penta! Penta! Penta! Jesus!

Cinco dísticos, pensou Langdon. Cada um deles formado por duas sílabas. Nem queria acreditar que, ao longo de toda a sua carreira, nunca fora capaz de fazer a ligação. O pentámetro jámbico era uma métrica baseada nos números sagrados llluminati 5 e 2!

Ustás a imaginar coisas!, disse a si mesmo, tentando afastar aquilo do espírito. Uma coinádênáa sem significado! Mas o pensamento recusava ir--se embora. Cinco... por Pitágoras e por pentagrama. Dois... pela dualidade de todas as coisas.

No momento seguinte, um outro relâmpago de compreensão dis-parou-üie uma sensação de entorpecimento pelas pernas abaixo. O pentámetro jámbico, devido à sua simplicidade, era frequentemente chamado «verso puro», ou «métrica pura». LO lingua pura? Seria esta a língua pura a que os llluminati se referiam? The path of light is laid, the sacred test...

— Oh! — exlamou Vittoria. Langdon voltou-se e viu-a rodar a folha cento e oitenta graus. Sen

tiu um nó no estômago. Outra ve:^ não. — Não há a mínima possibilidade de essa Unha ser um ambigrama! — Não, não é um ambigrama... mas é... — Vittoria continuava a

rodar a folha, noventa graus de cada vez. — Não é o quê? Ela ergueu o olhar. — Não é a única. — Há outra? — Há uma linha diferente em cada margem. Na cabeça, no pé,

à esquerda e à direita. Acho que é um poema. — Quatro linhas? — Langdon chispava de excitação. Galileu era

poeta'? — Deixe-me ver! Vittoria não largou a página. Continuava a dar-lhe quartos de volta.

ANJOS E DEMÓNIOS 241

— Não vi as linhas porque estão nas margens. — Pôs a cabeça de lado para 1er a última Unha. — Hum. Sabe uma coisa? Nem sequer foi Galileu que escreveu isto

— O quê? — O poema está assinado por John Milton. — John Milton'^ — O influente poeta inglês, autor de Paraíso Perdi

do, fora contemporâneo de Galileu e um sábio que as teorias da conspiração punham à cabeça da Usta de supostos Illuminati. A alegada fi-Uação de Milton na Irmandade de Galileu era uma lenda que Langdon suspeitava ser verdadeira. Milton não só fizera uma bem documentada peregrinação a Roma, em 1638, «para comungar com homens esclarecidos», como visitara Galileu quando o cientista se encontrava sob prisão domiciliária, encontros retratados em numerosos quadros renascentistas, incluindo o famoso Galileu e Milton, de Annibale Gatti, conservado no museu IMSS, em Florença.

— Milton conheceu GaUleu, não foi? — perguntou Vittoria, empurrando finalmente a folha para diante de Langdon. — Talvez tenha escrito o poema como um favor.

Langdon cerrou os dentes ao pegar no documento. Deixando-o em cima da mesa, leu a Unha da cabeça. Rodou-o então noventa graus e leu a Unha da margem direita. Mais uma rotação, e leu a do rodapé. Nova rotação, e a Unha da esquerda. Uma rotação final completou o círculo. Havia quatro Unhas. A primeira que Vittoria encontrara era na reaUdade a terceira do poema. Completamente boquiaberto, voltou a 1er as quatro Unhas em sequência, no sentido dos ponteiros do relógio: cabeça, direita, pé, esquerda. Quando acabou, deixou escapar o ar que estivera a reter nos pulmões. Não lhe restava a mais pequena dúvida.

— Encontrou a resposta, doutora Vetra. Ela sorriu, tensa. — Óptimo. E agora, podemos sair daqui para fora? — Tenho de copiar estas Unhas. Preciso de papel e lápis. Vittoria abanou a cabeça. — Não há tempo para brincar aos escribas. O Mickey continua a fa

zer tiquetaque. — Tirou-lhe a folha das mãos e dirigiu-se para a porta. Langdon endireitou-se. — Não pode levar isso lá para fora! É um... Vittoria, porém, já tinha saído.

CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO

Langdon e Vittoria correram para o pátio fronteiro aos Arquivos Secretos, sequiosos de ar. Para Langdon, o ar puro foi como uma droga que lhe encheu os pulmões. Os pontos vermelhos que tinham começado a aparecer-lhe diante dos olhos desvaneceram-se rapidamente. A ctilpa, no entanto, não. Acabava de roubar uma relíquia sem preço de um dos cofres mais privados do mundo. O camerlengo dissera: Estou a dar-lhe a minha confiança.

— Depressa — incitou-o Vittoria, ainda com a folha na mão e atravessando meio a correr a Via Borgia, a caminho do gabinete de Olivetti.

— Se esse papiro apanha água... — Acalme-se. Depois de termos decifrado esta coisa, poderá de-

volver-lhes o sagrado Fólio 5. Langdon acelerou para se manter a par. Além de se sentir um cri

minoso, continuava aturdido pelas fascinantes implicações do documento. ]ohn Milton era um Illuminatus. Compôs um poema para Galileu pu

blicar na página 5... longe dos olhos do Vaticano.

Quando saíram do pátio, Vittoria estendeu-lhe a folha de papiro. — Acha que consegue decifrar isto? Ou matámos todas aquelas

células cerebrais só pelo gozo? Langdon pegou cuidadosamente no documento. Sem hesitar um

instante, enfiou-o num dos bolsos interiores do seu casaco de tweed, onde estaria protegido da luz e dos perigos da humidade.

—Já o decifrei. Vittoria parou repentinamente. —Já fez o quê? Langdon continuou a andar. Vittoria correu para o alcançar.

ANJOS E DEMÓNIOS 243

— SÓ O leu uma ven;! Pensava que seria mioito difícil! Langdon sabia que ela tinha razão, mas a verdade era que tinha de

cifrado o segno numa única leimra. Uma estrofe perfeita de pentámetro jámbico, e o primeiro altar de ciência revelara-se com claríssima nitidez. Admitia que a facilidade com que levara a cabo a proeza lhe deixara uma perturbadora inquietude. Era um filho da ética de trabalho puritana. Ainda lhe parecia ouvir o pai declamar o velho aforismo da Nova Inglaterra: Se não foi dolorosamente difidl,foi malfeito. Esperava que o ditado estivesse errado.

— Decifrei-o — disse, estugando ainda mais o passo. — Sei onde vai acontecer o primeiro assassínio. Temos de avisar o Olivetti.

Vittoria alcançou-o. — Como é possível que já saiba? Deixe-me ver essa coisa outra

vez. — Com a destreza de um carteirista, enfiou a esguia mão no bolso do casaco dele e tirou de lá o papiro.

— Cuidado! — protestou Langdon. — Não pode... Vittoria ignorou-o. De folha na mão, caminhava ligeira ao lado dele,

voltando o documento para a luz vespertina, examinando as margens. Langdon fez um gesto para recuperar o papiro, mas em vez disso ficou enfeitiçado pelo som da voz dela a recitar as sflabas, num inglês com sotaque italiano, em perfeito sincronismo com o ritmo das passadas.

Por xim instante, ao ouvir os versos ditos em voz alta, sentiu-se transportado para o passado... como se fosse um dos contemporâneos de Galileu, a ouvir o poema pela primeira vez... sabendo que era uma prova, um mapa, uma pista que apontava para quatro altares de ciência... os quatro marcadores que assinalavam um caminho através de Roma. Os versos fluíam dos lábios de Vittoria como uma canção.

From Santi's earthly tomb with demon's hole, 'Cross Rome the mystic elements unfold. The path of light is laid, the sacred test, Ijet angels guide you on your lofty quest.

Vittoria leu-os duas vezes, para deixar as palavras antigas ecoarem com a sua própria ressonância.

Do túmulo terreno de Santi, repetiu Langdon mentalmente. Neste ponto, o poema era claro como água. O Caminho da Iluminação começava

244 DAN BROWN

no túmulo de Santi. A partir daí, através de Roma, os marcadores assinalavam a rota.

Do túmulo terreno de Santi com o buraco do diabo, Os místicos elementos por Roma estão espalhados.

Místicos elementos. Igualmente claro. Terra, A.r, Fogo, Agua. Elementos da ciência, os quatro marcadores disfarçados de esculturas religiosas.

— O primeiro marcador — disse Vittoria — parece estar no túmulo de Santi.

Langdon sorriu. — Eu bem lhe disse que não era assim tão difícil. — Quem é Santi? — perguntou ela, subitamente excitada. — E onde

fica o túmulo dele? Langdon riu-se para dentro. Era espantoso como poucas pessoas

conheciam Santi, o apelido de um dos mais famosos artistas da Renascença cujo primeiro nome era celebrado em todo o mundo... o menino-prodigio que aos vinte e cinco anos já trabalhava por encomenda para o Papa Júlio II e que, quando morreu, com apenas trinta e oito anos, deixou a maior colecção de frescos que o mundo jamais vira. Santi era um gigante no mundo da arte, e ser conhecido apenas pelo primeiro nome representava um nível de fama a que só muito poucos conseguiam chegar... pessoas como Napoleão, Galileu e Jesus... e, claro, os semideuses que Langdon ouvia agora ecoar nos dormitórios de Harvard — Sting, Madonna, Jewel e o artista anteriormente conhecido como Prince, que modificara o seu nome para um símbolo, «f", o que o levara a crismá-lo «A Cruz Interceptada pelo Ankh Hermafrodítico».

— Santi — explicou — é o apelido do grande mestre da Renascença, Rafael.

Vittoria fez um ar de surpresa. — Rafael? O Rafael? — Ele mesmo — respondeu Langdon, continuando a caminhar na

direcção do Gabinete da Guarda Suíça. — O caminho começa então no túmulo de Rafael? — A verdade é que faz todo o sentido. Os llluminati consideravam

frequentemente grandes artistas e escultores irmãos honorários em iluminação. E possível que tenham escolhido o túmulo de Rafael como

ANJOS E DEMÓNIOS 245

uma espécie de tributo. — Langdon sabia também que Rafael, como muitos outros artistas religiosos, era suspeito de ser secretamente ateu.

Vittoria voltou a enfiar, muito cuidadosamente, o pedaço de papiro no bolso de Langdon.

— E onde está ele enterrado? Langdon inspirou fundo. — Acredite ou não, Rafael está sepultado no Panteão. — No Panteão? — exclamou Vittoria, num tom carregado de cep

ticismo. — O Rafael no Panteão. — Langdon tinha de admitir que o Pan

teão não era o que esperara como localização do primeiro marcador. Muito mais facumente teria imaginado que o primeiro altar de ciência fosse algo subtil, uma qualquer igreja afastada e discreta. Mesmo no século XVII, o Panteão, com a sua enorme cúpula perfurada, era um dos locais mais conhecidos de Roma.

— E o Panteão é ao menos uma igreja? — A igreja catóHca mais antiga de Roma. Vittoria abanou a cabeça. — Mas acredita verdadeiramente que o primeiro cardeal vai ser

morto no Panteão? Deve ser um dos locais turísticos mais concorridos da cidade.

Langdon encolheu os ombros. — O llluminatus disse que queriam que o mundo inteiro assistisse.

Matar vim cardeal no Panteão chamaria sem dúvida as atenções. — Mas como pode alguém esperar matar uma pessoa no Panteão

e passar despercebido? Seria impossível. — Tão impossível como raptar quatro cardeais no Vaticano? O poe

ma é rigoroso. — E tem a certe^ de que Rafael está sepultado no interior do Pan

teão? — Vi o túmulo dele muitas vezes. Vittoria assentiu, com uma expressão ainda perturbada. — Que horas são? Langdon verificou. — Sete e meia. — O Panteão fica longe daqui? — Cerca de quilómetro e meio. Temos tempo.

246 DAN BROWN

— O poema fala do túmulo terreno de Santi. Diz-lhe alguma coisa? Langdon atravessava rapidamente, em diagonal, o Pátio da Sentinela. — Terreno? A verdade é que talvez não haja em Roma um lugar

mais terreno do que o Panteão. Recebeu o nome da religião original que lá se praticava... o panteísmo... o cvilto de todos os deuses, especificamente os deuses pagãos da Mãe Terra.

Como estudante de arquitectura, Langdon ficara espantado ao saber que as dimensões da câmara central do Panteão eram um tributo a Gea — a deusa da Terra. As proporções eram tão exactas que seria possível encaixar dentro do edifício uma esfera gigantesca, com uma folga inferior a um milímetro.

— Oko); — disse Vittoria, aparentemente vim pouco mais convencida. — E o bviraco do diabo? Do túmulo terreno de Santi com o buraco do Sabo?

Langdon não estava muito seguro a respeito dessa parte. — Deve ser uma referência ao óculo — disse — fazendo uma de

dução lógica. — A famosa abertura circular da cúpula. — Mas é uma igreja!— objectou Vittoria, acompanhando-lhe sem

esforço a passada. — Por que é que haviam de chamar à abertura um buraco do diabo?

Langdon estivera a fazer a si mesmo aquela mesmíssima pergunta. Nunca ouvira a expressão «buraco do diabo», mas recordava um famoso comentário sobre o Panteão, do século vi, cujas palavras pareciam agora estranhamente apropriadas. São Beda, o Venerável, escrevera certa vez que o buraco na cúpula do Panteão fora aberto pelos demónios que tentavam fugir do edifício quando este fora consagrado por Bonifácio IV.

— E — insistiu Vittoria — porque haviam os Illuminati de usar o nome Santi se o homem era verdadeiramente conhecido como Rafael?

— Faz muitas perguntas. — O meu pai costumava dizer o mesmo. — Duas razões possíveis. Em primeiro lugar, o nome Rafael tem

demasiadas sflabas. Teria destruído o pentámetro jámbico do poema. — Parece-me demasiado rebuscado. Langdon estava de acordo. — Okaj, então talvez usar Santi fosse uma maneira de tornar a pis

ta mais obscura, de modo que só os mais eruditos reconhecessem a referência a Rafael.

ANJOS E DEMÓNIOS 247

Vittoria também não parecia disposta a aceitar este raciocínio. — Tenho a certeza de que o apelido de Rafael era conhecido de

toda a gente na época em que ele viveu. — Surpreendentemente, não. O reconhecimento pelo nome pró

prio era um símbolo de status. Rafael escondia o seu apelido, aliás como fazem as estrelas pop dos nossos dias. Veja o caso da Madonna, por exemplo. Nunca usa o apelido, Ciconne.

Vittoria fez um sorriso divertido. — Conhece o apelido da Madonna? Langdon arrependeu-se de ter escolhido aquele exemplo. Era es

pantosa a quantidade de lixo que um cérebro podia apanhar quando vivia ao lado de dez mil adolescentes.

Quando ele e Vittoria passaram o último portão antes da entrada para o Gabinete da Guarda Suíça, o seu avanço foi inesperadamente travado.

— Para!— berrou uma voz atrás deles. Voltaram-se os dois e viram o cano de uma espingarda apontado

para eles. — Attentai — exclamou Vittoria, saltando para trás. — Cuidado

com... — JVo« sportarti! — ladrou o guarda, introduzindo uma bala na câ

mara. — Soldato!— gritou uma voz de comando do outro lado do pátio.

OHvetti vinha a sair do centro de segurança. — Debce-os passar! O homem pareceu confuso. — Ma, signore, è una donna...

— Para dentro! — ordenou Olivetti. — Signore, non posso...

— Já! Tem novas ordens. O capitão Rocher vai dar instruções ao corpo dentro de dois minutos. Vamos organizar uma busca.

Com um ar de total confusão, o guarda entrou a correr no centro de segurança. Olivetti avançou para Langdon, rígido e a fumegar:

— Os nossos arquivos mais secretos? Exijo uma explicação! — Temos boas noti'cias — anunciou Langdon. Olivetti semicerrou os olhos. — Para vosso bem, espero que sejam muito boas.

CAPÍTULO CINQUENTA E SEIS

Os quatro Alfa Romeo 155 T-Sparks negros, sem qualquer identificação, corriam pela Via dei Coronari como caças a jacto por uma pista. Os carros transportavam doze guardas suíços vestidos à civil e armados com semiautomáticas Cherchi-Pardini, granadas de gás de efeito localizado e armas aturdidoras de longo alcance. Os três atiradores especiais estavam equipados com espingardas de mira laser.

Sentado no banco do passageiro do primeiro carro, Olivetti voltou--se para trás, enfrentando Langdon e Vittoria. Tinha os olhos cheios de raiva.

— Prometeu-me uma explicação que fizesse sentido, e isto é o que me apresenta?

Langdon sentia-se apertado no pequeno carro. — Compreendo a sua... — Não, não compreende! — OUvetti nunca ergueu a voz, mas

a sua intensidade triplicou. — Acabo de retirar da Cidade do Vaticano doze dos meus melhores homens, na véspera de um Conclave. E fiz isto para ir vigiar o Panteão com base no testemunho de um americano que não conheço de parte nenhuma e que diz ter interpretado um poema com quatrocentos anos. Além disso, deixei a busca da arma de antimatéria nas mãos de oficiais subalternos.

Langdon resistiu ao impulso de tirar o Fólio 5 do bolso do casaco e sacudi-lo debaixo do nariz de Olivetti.

— Tudo o que sei é que a informação que encontrámos diz respeito ao túmulo de Rafael, e que o túmulo de Rafael está no Panteão.

O oficial que ia ao volante assentiu. — Ele tem razão, comandante. Eu e a minha mulher... — Conduza — rosnou Olivetti. Voltou-se novamente para Lang

don. — Como pode um assassino matar alguém num lugar daqueles e escapar sem ser visto?

ANJOS E DEMÓNIOS 249

— Não sei — respondeu Langdon. — Mas parece óbvio que os llluminati dispõem de grandes recursos. Entraram tanto no CERN como na Cidade do Vaticano. Só por pura sorte descobrimos onde ocorreria a primeira morte. O Panteão é a nossa única oportunidade de apanhar este tipo.

— Mais contradições — disse Olivetti. — IJnica oportunidade? Pa-receu-me ouvi-lo dizer que havia uma espécie de caminho. Uma série de marcadores. Se o Panteão é o lugar certo, podemos seguir a pista até aos outros três marcadores. Teremos quatro opormnidades de apanhar esse tipo.

— Tinha contado com isso — disse Langdon. — Teríamos tido... um século atrás. — A compreensão de que o Panteão era o primeiro altar de ciência fora um momento agridoce. A História tinha a sua maneira muito própria de pregar partidas àqueles que a perseguiam. Era praticamente impossível que o Caminho da Iluminação permanecesse intacto ao fim de todos aqueles anos, com todas as estátuas no mesmo lugar, mas uma parte dele fantasiara a respeito de seguir a pista até ao fim e ver-se frente-a-frente com o esconderijo sagrado dos llluminati. Compreendera que, infelizmente, não seria possível. — O Vaticano mandou retirar e destruir todas as estátuas do Panteão, no final do século XIX.

— Porquê? — perguntou Vittoria, chocada. — Porque representavam deuses pagãos do Olimpo. Infelizmente,

isso significa que o primeiro marcador desapareceu... e com ele... — Toda a esperança — completou Vittoria — de encontrar o Ca

minho da Iluminação e os outros três marcadores. Langdon abanou a cabeça. — Temos uma oportunidade. O Panteão. Daí para a frente, a pista

desaparece. OMvetti ficou a olhar para eles por um longo momento, e então

voltou-se para a frente. — Encoste — ladrou ao condutor. O homem virou o volante para o passeio e pisou o travão. Três

outros Alja Romeos travaram em derrapagem atrás deles. A coluna da Guarda Suíça deteve-se com os pneus a guinchar.

— Que está a fazer? — perguntou Vittoria. — O meu trabalho — disse Olivetti, voltando-se no assento, a voz

dura como pedra. — Senhor Langdon, quando me disse que explicaria

250 DAN BROWN

a situação pelo caminho, presumi que nos aproximaríamos do Panteão com uma ideia nítida do que os meus homens estão aqui a fazer, e uma vez que vejo muito pouca coisa que faça sentido nesta sua teoria a respeito de virgens sacrificiais e poesia antiga não posso, em boa consciência, continuar. Vou abortar esta missão imediatamente. — Pegou no rádio e premiu o botão.

Vittoria estendeu a mão por cima das costas do banco e agarrou--Ihe o braço.

— Não pode! Olivetti baixou o rádio com um gesto brusco e cravou nela um

olhar coruscante. —Já alguma vez visitou o Panteão, doutora Vetra? — Não, mas... — Deixe-me dizer-lhe uma coisa. O Panteão é uma única sala.

Uma cela circular feita de pedra e cimento. Tem uma porta. Nenhuma janela. Uma porta estreita. A porta está sempre guardada por nada menos do que quatro polícias armados que estão ali para proteger o santuário de vândalos, terroristas anticristãos e turistas de pé-descalço.

— E daí? — perguntou ela, friamente. — E daí? — Os dedos de Olivetti fincaram-se nas costas do banco.

— Daí que aquilo que acabam de me dizer que vai acontecer é completamente impossível! É capaz de dar-me um cenário plausível de como pode alguém matar um cardeal dentro do Panteão? Como é que alguém faz passar um refém pelos guardas que estão à porta, para começar? Quanto mais matá-lo e escapar? — IncHnou-se por cima das costas do banco, inundando as narinas de Langdon com o seu hálito a café. — Como, doutor Langdon? Um cenário plausível.

Langdon sentiu o pequeno carro encolher à sua volta. Não faço a mínima ideia!Não sou um assassino!Não sei como é que ele vaifai^-lol Só sei...

— Um cenário? — disse Vittoria, num tom de calma ironia. — O assassino passa por cima do Panteão num helicóptero e deixa cair um cardeal aos berros e marcado a fogo no peito pelo buraco do tecto. O cardeal bate no chão de mármore e morre.

Todas as cabeças no carro se voltaram para ela. Langdon não sabia o que pensar. Tem uma imaginação doentia, minha senhora, mas é rápida.

OHvetti franziu a testa. — Possível, admito... mas dificilmente...

ANJOS E DEMÓNIOS 251

— Ou o assassino droga o cardeal — disse Vittoria —, leva-o até ao Panteão numa cadeira de rodas, como se fosse um velho turista. Uma vez lá dentro, corta-lhe discretamente a garganta e torna a sair.

Esta pareceu despertar um pouco o comandante. Nada mau!, pensou Langdon. — Ou — continuou ela —, o assassino podia... —Já ouvi — interrompeu-a Olivetti. — Chega. — Inspirou fundo

e deixou escapar lentamente o ar. Alguém bateu com força no vidro da janela, e toda a gente deu um salto. Era um soldado de um dos outros carros. Olivetti baixou o vidro.

— Tudo bem, meu comandante? — O soldado estava à paisana. Puxou o punho da camisa de ganga, mostrando um cronógrafo militar. — Sete e quarenta, senhor. Precisamos de tempo para ocupar posições.

Olivetti assentiu vagamente, mas não disse nada durante um longo momento. Passou um dedo para a frente e para trás ao longo do painel de instrumentos, traçando uma Hnha no pó. Estudou Langdon pelo retrovisor, e Langdon sentiu-se a ser medido e avaliado. Finalmente, voltou-se para o guarda. Havia relutância na voz dele:

— Quero aproximações separadas. Carros pela Piazza delia Rotunda, a Via degli Orfani, a Piazza Sant'Ignacio e Sant'Eustachio. Parem a uma distância mínima de dois quarteirões. Quando estiverem estacionados, preparem-se e aguardem ordens. Três minutos.

— Perfeitamente, senhor. — E o guarda voltou ao seu carro. Langdon fez a Vittoria um aceno de cabeça, a expressar a sua ad

miração. Ela sorriu-lhe e, por um instante, Langdon sentiu uma inesperada ligação... um fio de magnetismo entre os dois.

O comandante voltou-se uma vez mais no banco e cravou os olhos nos de Langdon.

— Doutor Langdon, é melhor que esta coisa não nos rebente na cara.

Langdon sorriu atrapalhadamente. Como poderia rebentar?

CAPITULO CINQUENTA E SETE

Maximilian Kohler, director do CERN, abriu os olhos, sentindo a frescura da cromolina e dos leucotrienos dilatar-lhe os brônquios e os capilares pulmonares. Respirava outra vez normalmente. Soube que estava deitado no quarto particular da enfermaria. Viu a cadeira de rodas ao lado da cama.

Avaliou a situação, examinando a bata de papel que lhe tinham vestido. Viu as suas roupas cuidadosamente dobradas em cima do assento da cadeira. Ouviu lá fora uma enfermeira a fazer a sua ronda. Ficou imóvel por um longo minuto, à escuta. Então, o mais silenciosamente possível, com a ajuda dos cotovelos, puxou-se até à beira da cama e pegou nas roupas. Lutando contra as pernas mortas, vestiu-se. Em seguida, arrastando o corpo, sentou-se na cadeira de rodas.

Rolou em direcção à porta, abafando uma ugeira tosse. Movia as rodas manualmente, tendo o cuidado de não ligar o motor. Quando chegou à porta, espreitou para fora. O corredor estava deserto.

Silenciosamente, Maximilian Kohler escapuliu-se da enfermaria.

CAPITULO CINQUENTA E OITO

— Sete e quarenta e seis e trinta... marcar... — mesmo a falar pelo rádio, a voz de Olivetti parecia nunca se erguer acima de um murmúrio.

Langdon deu por si a transpirar no seu casaco Harns de tweed, no banco traseiro do A.lfa Borneo, que estava estacionado, com o motor a trabalhar, a três quarteirões de distância do Panteão. Vittoria, sentada ao lado dele, parecia fascinada por Olivetti, que transmitia as últimas ordens.

— O dispositivo será um cerco com oito pontos — dizia o comandante. — Perímetro completo com cruzamento diante da porta. E possível que o alvo os conheça de vista, portanto mantenham-se^oj-w^M. Exclusivamente força não letal. Precisamos de alguém para vigiar o telhado. O alvo é principal. O bem secundário.

Jesus, pensou Langdon, gelado pela eficiência com que Olivetti acabava de dizer aos seus homens que o cardeal era dispensável. O hem secundário.

— Repito. Captura não letal. Precisamos do alvo vivo. Sigam. — E Olivetti desügou o rádio.

Vittoria parecia estupefacta, quase furiosa. — Comandante, não vai ninguém lá para dentro? Olivetti voltou-se. — Para dentro? — Para dentro do Panteão. Onde tudo supostamente acontece. — Attento! — disse Olivetti, e os olhos dele como que se fossili

zaram. — Se as minhas fileiras foram infiltradas, os meus homens podem ser reconhecidos. O seu colega acaba de me avisar de que esta será a nossa única oportunidade de capmrar o alvo. Não faço tenção de pô--lo em fuga mandando os meus homens para o interior.

254 DAN BROWN

— E se O assassinoyö estiver lá dentro? Olivetti consultou o relógio. — O alvo foi específico. Oito em ponto. Temos quinze minutos. — Ele disse que mataria o cardeal às oito em ponto. Mas pode já

ter conseguido entrar com a vítima. E se os seus homens vêem o alvo sair mas não sabem quem ele é? É preciso mandar alguém comprovar que o interior está limpo.

— Demasiado arriscado, neste ponto. — Não, se a pessoa que entrar for irreconhecível. — Disfarçar operacionais leva tempo e... — Estava a referir-me a mim — disse Vittoria. Langdon olhou para ela, espantado. Olivetti abanou a cabeça. — Absolutamente não. — Ele matou o meu pai. — Exactamente por isso pode reconhecê-la. — Ouviu-o ao telefone. Não fazia a menor ideia de que Leonar

do Vetra tinha uma filha. Com toda a certeza não pode saber quem eu sou, nunca me viu. Posso entrar lá como se fosse uma turista. Se vir alguma coisa suspeita, volto a sair e faço sinal aos seus homens.

— Lamento, mas não posso permiti-lo. O rádio de Olivetti crepitou. — Comandante'? Temos um problema no ponto norte. A fonte cor-

ta-nos a linha de visão. Não conseguimos ver a porta a menos que nos coloquemos na praça, à vista. Como vai ser? Ficamos cegos ou vulneráveis?

Vittoria tinha, aparentemente, aguentado tudo o que podia aguentar. — Basta. Vou andando. — E, abrindo a porta, apeou-se. Olivetti largou o rádio, saltou do carro e contornou-o pela frente,

barrando-lhe o caminho. Langdon apeou-se também. Que raio está ela a father? Olivetti continuava a impedir Vittoria de avançar. — Doutora Vetra, os seus instintos são bons, mas não posso per

mitir interferências de civis. — Interferências? Está a voar às cegas. Deixe-me ajudar. — Adoraria ter um ponto de reconhecimento no interior, mas... — Mas o quê? — perguntou Vittoria. — Mas eu sou uma mulher?

ANJOS E DEMÓNIOS 255

Olivetti ficou calado. — É bom que não fosse isso que ia dizer, comandante, porque

sabe muito bem que é uma boa ideia, e se me vem com merdas machistas do tempo da outra senhora...

— Deixe-nos fa2er o nosso trabalho. — Deixe-me ajudar. — Demasiado perigoso. Não teríamos linhas de comunicação con

sigo. Não posso deixá-la levar um rádio. Denunciá-la-ia imediatamente. Vittoria enfiou a mão no bolso dos calções e tirou de lá o telemóvel. — Imensos turistas trazem telefones. Olivetti franziu a testa. Vittoria levantou a tampa do telemóvel e imitou uma chamada: — Olá, querido, estou aqui no Panteão. Só queria que visses este

lugar! — Voltou a fechar a tampa com uma palmada e olhou furiosamente para Olivetti. — Quem raio é que vai saber? É uma situação de risco nulo. Deixe-me ser os seus olhos! — Apontou para o telemóvel suspenso do cinto de Olivetti. — Qual é o seu número?

Olivetti não respondeu. O condutor tinha estado a acompanhar a cena e parecia ter as suas

próprias ideias a respeito do assunto. Apeou-se do carro e chamou o comandante à parte. Falaram em murmúrios durante cerca de dez segundos. Finalmente, Olivetti assentiu e voltou para junto deles.

— Grave este número — disse, e começou a ditar algarismos. Vittoria introduziu-os na memória do telemóvel. — Agora ligue para o número. Vittoria premiu o botão de marcação automática. O telefone no

cinto de Olivetti começou a tocar. O comandante pegou-lhe e falou para o microfone.

— Entre no edifício, doutora Vetra, olhe em redor, volte a sair e diga-me o que viu.

Vittoria desligou o telefone. — Obrigada. Langdon sentiu-se invadir por uma súbita e inesperada vaga de ins

tinto protector. — Espere aí — disse, dirigindo-se a Olivetti. — Vai mandá-la en

trar ali sozinha? Vittoria olhou para ele, de sobrolho carregado.

256 DAN BROWN

— Robert, não há problema. O condutor estava outra vez a falar com Olivetti. — É perigoso — dizia Langdon a Vittoria. — Ele tem razão — interveio Olivetti. — Nem sequer os meus me

lhores homens trabalham sozinhos. E o meu tenente acaba de fazer notar que a manobra parecerá mais convincente se forem os dois.

Os dois? Langdon hesitou. O que eu queria dii^er era... — Entrando os dois juntos — continuou Olivetti —, parecerão

um casal de férias. Além disso, podem apoiar-se um ao outro. Assim fico mais descansado.

Vittoria encolheu os ombros. — Óptimo. Mas temos de nos despachar. Langdon gemeu. Boa jogada, cowboy. Olivetti apontou para o fundo da rua. — A primeira rua à vossa esquerda é a Via degli Orfani. Sigam por

ela. Leva-vos directamente ao Panteão. Dois minutos a pé, no máximo. Eu estarei aqui, a dirigir os meus homens e à espera da vossa chamada. Gostaria que tivessem alguma protecção. — Tirou a pistola do coldre. — Algum dos dois sabe usar uma arma?

Langdon sentiu que o coração lhe falhava uma batida. Uma arma? Não precisamos de uma arma para nada!

Vittoria estendeu a mão. — Consigo marcar um golfinho aos saltos quarenta metros à fren

te da proa de um barco em andamento. — Óptimo. — Olivetti entregou-lhe a arma. — Vai ter de escon

dê-la. Vittoria olhou para os calções. E depois para Langdon. Oh, não, nem pense!, pensou ele, mas Vittoria foi demasiado rápida.

Abriu-lhe o casaco e enfiou a pistola num dos bolsos interiores. Foi como uma pedra que lhe caísse no casaco. Restou-lhe como consolação o facto de o Diagramma estar no outro bolso.

— Temos um ar perfeitamente inofensivo — declarou Vittoria. Deu o braço a Langdon e começou a descer a rua.

— De braço dado é boa ideia — gritou o condutor. — Lembrem--se, são turistas. Kecém-casados, até. Talvez se dessem as mãos?

Quando dobraram a esquina, Langdon poderia ter jurado que vira no rosto de Vittoria a sombra de um sorriso.

CAPÍTULO CINQUENTA E NOVE

A «sala de operações» da Guarda Suíça, contígua à caserna do Corpo di Vigilant^a, é habitualmente usada para planear a segurança dos aparecimentos do Papa e dos acontecimentos públicos do Vaticano. Naquela tarde, porém, servia um objectivo diferente.

O homem que se dirigia à força-tarefa reunida era o vice-coman-dante da Guarda Suíça, o capitão EHas Rocher. Rocher tinha um peito que parecia um tonel e feições suaves, pastosas. Usava o tradicional uniforme azul de capitão, mas com um toque pessoal — uma boina vermelha posta de lado na cabeça. A voz era surpreendentemente cristalina para um homem tão grande, e quando falava, o tom tinha a pureza de um instrumento musical. Como que a contrariar a clareza da entoação, os olhos eram velados, fazendo lembrar um mamífero nocturno. Os guardas chamavam-lhe il orso — o Urso. Diziam por vezes, na sua maneira de brincar, que Rocher era «o urso que caminha na sombra da víbora». O comandante Olivetti era a víbora. Rocher era tão mortífero como a víbora, mas ao menos uma pessoa via-o chegar.

Os homens de Rocher mantinham-se numa rígida posição de sentido, sem moverem um músculo que fosse, apesar de a informação que acabavam de receber lhes ter feito subir a pressão arterial.

Ao fundo da sala, o tenente Chartrand, um novMo, desejava ter-se contado entre os noventa e nove por cento de candidatos que não se tinham qualificado para estar aH. Com vinte anos, Chartrand era o membro mais jovem da força. Chegara à Cidade do Vaticano havia apenas três meses. Como todos os presentes, pertencera ao exército suíço e aguentara mais dois anos de Ausbildung em Berna antes de ter o privilégio de se submeter ã tcttWtl prova do Vaticano num aquartelamento secreto nos arredores de Roma. Nada no seu treino, no entanto, o preparara para uma crise como aquela.

258 DAN BRONXTSI

Ao princípio, pensara que o briefing era uma espécie de bizarro exercício de treino. Armas futuristas? Cultos antigos? Cardeais raptados? Então Rocher mostrara-lhes imagens em directo da arma em questão. Aparentemente, não era nenhum exercício.

— Vamos cortar a corrente em áreas seleccionadas — dizia Rocher —, para erradicar a interferência magnética exterior. Deslocar--nos-emos em equipas de quatro. Usaremos óculos de infravermelhos. O reconhecimento será feito com o equipamento tradicional de detecção electrónica, recalibrado para campos de fluxo inferiores a três ohm. Perguntas?

Nenhuma. O cérebro de Chartrand estava em sobrecarga. — E se não a encontrarmos a tempo? — perguntou, desejando no

mesmo instante não o ter feito. O Urso olhou fixamente para ele por baixo da boina vermelha. Logo

a seguir despediu o grupo com uma sombria continência. — Boa sorte, meus senhores.

CAPITULO SESSENTA

A dois quarteirões do Panteão, Langdon e Vittoria aproximavam--se, passando por uma fila de táxis cujos motoristas dormiam sentados ao volante. A sesta era eterna na Cidade Eterna — o dormitar ubíquo e público, que era uma extensão revista e aperfeiçoada da siesta nascida na antiga Espanha.

Langdon esforçava-se por concentrar os pensamentos, mas a situação era demasiado bizarra para que fosse possível apreender totalmente a realidade. Seis horas antes estava a dormir, em Cambridge. Agora estava na Europa, apanhado no meio de uma batalha surrealista entre titãs antigos, com uma semiautomática no bolso do seu casaco de tweed e de mão dada com uma mulher que mal acabara de conhecer.

Olhou para Vittoria. Ela olhava bem em frente. Havia força no aperto da mão dela — a força de uma mulher independente e determinada. Os dedos entrelaçavam os dele com o conforto da aceitação inata. Sem hesitação. Langdon sentiu uma atracção crescente. Tem mas éjmt(o, disse para si mesmo.

Vittoria pareceu detectar o desconforto dele. — Relaxe — disse, sem voltar a cabeça. — Deveríamos parecer

recém-casados. — Estou relaxado. — Está a esmagar a minha mão. Langdon corou e afrouxou a pressão. — Respire pelos olhos — aconselhou ela. — Desculpe? — Relaxa os músculos. Chãma-se pranayama. — Piranha? — Não. Pranayama. Esqueça. Quando dobraram a esquina para a Piazza delia Rotunda, o Panteão

surgiu diante deles. Langdon admirou-o, como sempre, com respeito.

260 DAN BROWN

O Panteão. O templo de todos os deuses. Deuses pagãos. Deuses da naturet(a e da Terra. A estrutura pareceu-lhe mais quadrada do que a recordava. Os pilares verticais e o frontão quase escondiam a cúpula circialar que ficava atrás deles. No entanto, a ousada e imodesta inscrição junto à porta assegurou-lhe que estavam no lugar certo. M AGRIPPA L F COS TERTIUM FECIT. Langdon traduziu-a, como sempre, com um sorriso. Construído por Marcus Agripa, Cônsul, no seu terceiro mandado.

Venham-me cá falar de humildade, pensou, percorrendo com os olhos a área circundante. Havia alguns turistas dispersos, de câmara de vídeo na mão, a passear por aH. Outros, sentados na esplanada do La Tazza di Oro, saboreavam o melhor café gelado de Roma. A porta do monumento, quatro polícias armados de pistola-metralhadora montavam guarda, como Olivetti dissera.

— Parece tudo calmo — comentou Vittoria. Langdon assentiu, mas sentia-se permrbado. Agora que estava aU,

todo o cenário lhe parecia surreal. Apesar da aparente confiança de Vittoria nos argumentos dele, apercebia-se de que estava a pôr em jogo tudo e todos. As palavras do poema não lhe saíam da cabeça. Do túmulo terreno de Santi com o huraco do diaho. SIM, disse a si mesmo, e' este o lugar. O túmulo de Santi. Estivera ali muitas outras vezes, sob o óculo do Panteão, diante da sepultura do grande Rafael.

— Que horas são? — perguntou Vittoria. Langdon consultou o relógio. — Dez para as oito. Menos de um quarto de hora para começar

o espectáculo. — Espero que estes tipos sejam bons — disse Vittoria, observan

do os turistas que entravam no Panteão. — Se acontecer alguma coisa lá dentro, seremos apanhados no fogo-cruzado.

Langdon expirou com força antes de avançarem os dois para a porta. Sentia a arma a pesar-lhe no bolso. Perguntou a si mesmo o que aconteceria se os poHcias o revistassem e encontrassem a pistola, mas os guardas nem sequer olharam para ele duas vezes.

— Alguma vez disparou uma arma sem ser de dardos tranquilizantes? — murmurou ao ouvido de Vittoria.

— Não confia em mim? — Confiar em si? Mal a conheço! Vittoria franziu a testa. — E eu para aqui a pensar que éramos recém-casados.

CAPITULO SESSENTA E UM

O ar no interior do Panteão era fresco e húmido, carregado de História. O enorme tecto pairava nas alturas, como se não tivesse peso — um vão de quarenta e três metros sem qualquer apoio, maior ainda do que a cúpula de São Pedro. Como sempre, Langdon sentiu um arrepio ao entrar na cavernosa câmara. Era uma fusão notável de engenharia e arte. Por cima deles, o famoso orifício aberto no ápice do telhado brilhava à luz do Sol poente. O óculo, pensou Langdon. O buraco do diabo.

Tinham chegado. Langdon acompanhou com o olhar o arco da abóbada que descia

até às paredes colunadas e, finalmente, até ao mármore polido do chão. O débil eco de passos e os murmúrios dos turistas ecoavam no vasto espaço. Langdon examinou as cerca de duas dúzias de visitantes que deambulavam sem rumo por entre as sombras. Estás aqui?

— Parece tudo calmo — repetiu Vittoria, ainda a apertar-lhe a mão.

Langdon assentiu. — Onde é o túmulo de Rafael? Langdon pensou por um instante, tentando orientar-se. Passou os

olhos em redor da sala. Túmulos. Altares. Pilares. Nichos. Apontou para um túmulo particularmente ornamentado, do outro lado da circunferência e para a esquerda.

— Penso que é aquele ali. Vittoria examinou os arredores. — Não vejo ninguém que me pareça um assassino preparado para

matar um cardeal. Vamos dar uma vista de olhos? — Só há aqui um lugar onde alguém possa esconder-se. É melhor

verificarmos as rientran^e. — Os recessos?

262 DAN BROWN

— Sim. — Langdon apontou. — Os recessos na parede. A toda a volta da sala, intercalados com os túmulos, havia nichos

semicirculares escavados na parede. Sem serem enormes, eram mesmo assim suficientemente grandes para que alguém pudesse ocultar-se nas suas sombras. Langdon sabia que tinham em tempos acolhido estarnas de deuses olímpicos, mas que as esculturas pagãs tinham sido destruídas quando o Vaticano transformara o Panteão em igreja cristã. Sen-tiu-se frustrado ao pensar que estava ali, no primeiro altar de ciência, e que o marcador desaparecera. Perguntou a si mesmo que estátua seria, e em que direcção apontava. Não conseguia imaginar maior excitação do que encontrar o marcador llluminatus — uma estátua que apontava sub-repticiamente o Caminho da Iluminação. Mais uma vez, perguntou a si mesmo quem teria sido o anónimo escultor llluminatus.

— Fico com o lado esquerdo — disse Vittoria, apontando a metade esquerda da circunferência. — Encarregue-se do direito. Encontra-mo-nos daqui a cento e oitenta graus.

Langdon sorriu tristemente. Viu-a afastar-se, sentindo o fantasmagórico horror da situação a in-

sinuar-se-lhe no espírito. Enquanto se voltava e começava a caminhar para a direita, a voz do assassino parecia ecoar no espaço vazio à sua volta. As oito horas. Virgens sacrificiais nos altares de ciência. Uma progressão

matemática de morte. Oito, nove, de^ on^... e à meia-noite. Consultou o reló

gio: 7.52. Oito minutos. Ao avançar para o primeiro arcossólio, passou pelo túmulo de um dos reis católicos de Itália. O sarcófago, como muitos de Roma, estava enviesado em relação à parede, numa posição estranha. O que parecia confundir um grupo de visitantes. Langdon não se deteve para explicar. Os túmulos católicos formais apresentavam-se com frequência desalinhados em relação à arquitectura de modo a poderem ficar voltados para oriente. Era uma antiga superstição que discutira com a sua turma de Simbologia 212, havia menos de um mês.

— Isso é totalmente incongruente! — declarou uma aluna da primeira fila, depois de ele ter explicado a razão dos túmulos voltados para Leste. — Porque haviam os Cristãos de querer os seus túmulos voltados para o Sol nascente? Estamos a falar de Cristianismo... não de ctilto do Sol!

Langdon sorriu, passeando diante do quadro, a mordiscar uma maçã.

ANJOS E DEMÓNIOS 263

— Senhor Hitzrot! — gritou. Um jovem que dormitava no fundo da sala levantou-se de um salto. — O quê! Eu? Langdon apontou para um cartaz de arte renascentista pregado na

parede. — Quem é o homem ajoelhado diante de Deus? — Hum... algum santo? — Brilhante. E como é que sabe que é um santo? — Porque tem um halo? — Excelente. E esse halo dourado lembra-lhe alguma coisa? O rosto de Hitzrot rasgou-se num sorriso. — Claro! Aquelas coisas egípcias que estudámos no último perío

do. Aqueles... hum... discos solares! — Obrigado, Hitzrot. Pode continuar a dormir. — Langdon vol-

tou-se para a turma. — Os halos, como grande parte da simbologia cristã, foram copiados da antiga religião egípcia do culto do Sol. O Cristianismo está cheio de exemplos de culto do Sol.

— Como? — objectou a rapariga da primeira fila. — Vou muitas vezes à igreja e nunca lá vi praticar o culto do Sol!

— Ah, sim? O que é que celebra a 25 de Dezembro? — O Natal. O nascimento de Jesus Cristo. — E no entanto, segundo a Bíblia, Cristo nasceu em Março. Por

tanto, que estamos nós a celebrar em finais de Dezembro? Silêncio. Langdon sorriu. — Vinte e cinco de Dezembro, meus amigos, é o dia da antiga fes

ta pagã do sol invictus... Sol Invicto... que coincide com o solsticio de Inverno. É essa maravilhosa altura do ano em que o Sol regressa, em que os dias começam a ficar mais compridos.

Langdon arrancou outra dentada à maçã. — As religiões conquistadoras — prosseguiu — adoptam mui

tas vezes festas já existentes para tornar a conversão menos chocante. Chama-se transmutação. Ajuda as pessoas a habituarem-se à nova fé. Os crentes mantêm os mesmos dias santos, continuam a rezar nos mesmos locais consagrados, usam uma simbologia parecida... e ümitam-se a substituir o deus que tinham por outro diferente.

Agora, a rapariga da primeira fila estava furiosa.

264 DAN BROWN

— Está a sugerir que o Cristianismo não passa de um... culto solar remodelado?

— De modo nenhum. O Cristianismo não foi buscar elementos apenas ao culto do Sol. O ritual cristão da canonização vem do antigo ritual «fazedor-de-deus» de Euhemerus. A prática de «comer-deus»... ou seja, a sagrada comunhão... existia também entre os Astecas. Até o conceito de Cristo morrer pelos nossos pecados parece não ser exclusivamente cristão; o auto-sacrifício de um jovem para absolver os pecados da comunidade aparece na primitiva tradição de Quetzalcoati.

— Haverá então alguma coisa no Cristianismo que seja original? — perguntou a rapariga, fulminando-o com o olhar.

— Muito pouca coisa em qualquer religião organizada é verdadeiramente original. As religiões não nascem do nada. Trans formam-se umas nas outras. A religião moderna é uma colagem... um registo histórico acumulado da busca do divino da Humanidade.

— Hum... espere um pouco — arriscou Hitzrot, que parecia entretanto ter acordado. — Sei de uma coisa dos Cristãos que é original. Que me diz da nossa imagem de Deus? A arte cristã nunca retrata Deus como o falcão deus do Sol, ou como um asteca, ou qualquer outra coisa esquisita. Mostra sempre Deus como um velho de barbas brancas. Portanto, a nossa imagem de Deus é original, certo?

Langdon sorriu. — Quando os primeiros conversos cristãos abandonaram as suas

antigas divindades... deuses pagãos, deuses romanos, deuses gregos, o Sol, Mitra, fosse o que fosse... perguntaram à Igreja como era o seu novo Deus cristão. Sensatamente, a Igreja escolheu o rosto mais temido, poderoso... e familiar de toda a História registada.

— Um velho de ondulantes barbas brancas? — perguntou Hitzrot, com um ar incrédulo.

Langdon apontou para uma hierarquia de antigos deuses colada na parede. No topo sentava-se um velho de longas e ondulantes barbas brancas.

— Zeus parece-lhes familiar? A aula terminou nesse instante, como que pegando na deixa.

ANJOS E DEMÓNIOS 265

— Boa tarde — disse uma voz de homem. Langdon deu um salto. Estava de novo no Panteão. Voltou-se e viu

à sua frente um senhor já de idade que envergava uma opa azul com uma cruz vermelha no peito. O homem dirigiu-lhe um sorriso de dentes cinzentos.

— É inglês, não é? — O sotaque era da Toscana, carregado. Langdon piscou os olhos, confuso. — Não, por acaso sou americano. O homem pareceu embaraçado. — Oh, céus, perdoe-me. Está tão bem-vestido que pensei... as mi

nhas desculpas. — Posso ajudá-lo? — perguntou Langdon, com o coração a bater

loucamente. — Na realidade, estava a pensar mais em termos de ajudá-lo eu a si.

Sou o cicerone aqui do Panteão. — Apontou orgulhosamente para a chapa emitida pelas autoridades municipais. — O meu trabalho é tornar a sua visita a Roma mais interessante.

Ma¿s interessante? Langdon tinha a certeza de que aquela visita já estava a ser mais do que suficientemente interessante.

— Parece um cavalheiro distinto — continuou o guia, lisonjeiro —, sem dúvida mais interessado na cultura do que a grande parte dos nossos visitantes. Talvez possa contar-lhe um pouco da história deste fascinante edifício.

Langdon sorriu delicadamente. — Muita gentileza sua, mas acontece que sou professor de Histó

ria da Arte, e... — Soberbo! — Os olhos do homem brilharam como se tivesse

acabado de acertar no jackpot. — Nesse caso, vai com certeza achar isto delicioso!

— Acho que prefiro... — O Panteão — começou o homem, desbobinando o seu dis-

curso-padrão — foi construído por Marco Agripa no ano 27 antes de Cristo...

— Sim — interrompeu-o Langdon —, e reconstruído por Adriano no ano 119 da nossa era.

— Foi a maior cúpula suspensa do mundo até 1960, ano em que foi eclipsada pela Superdome de Nova Orleães!

266 DAN BROWN

Langdon gemeu. O sujeito era imparável. — E um teólogo do século V chamou certa vez ao Panteão a Casa

do Diabo, avisando que o buraco no telhado era uma entrada para os demónios.

Langdon deixou de o ouvir. Ergueu os olhos para o óculo, e a recordação do cenário sugerido por Vittoria fez-lhe passar pelo espírito uma imagem alucinante: a de um cardeal marcado a fogo no peito a cair pelo buraco e a esmagar-se no chão de mármore. Isso sim, seria algo capa^ de atrair as atenções de todos os meios de comunicação. Deu por si a olhar

em redor, em busca de jornalistas. Nem um. Inspirou fundo. A ideia era absurda. A logística envolvida numa proeza daquelas seria ridiculamente complicada.

Quando se afastou para recomeçar a sua inspecção, o palrador guia seguiu-o como um cachorrinho sedento de carinho e atenção. £ hem verdade, pensou Langdon para consigo mesmo, que não há nada pior do que um historiador de arte excessivamente entusiasta.

Do outro lado do vasto espaço, Vittoria estava embrenhada na sua própria busca. Sozinha e entregue a si mesma pela primeira vez desde que ouvira a notícia da morte do pai, sentiu a crua realidade das últimas oito horas fechar-se à sua volta. O pai fora assassinado — cruel e abruptamente. Quase tão doloroso como esse era o facto de a grande criação dele ter sido corrompida, transformada em arma de terroristas. Sentiu-se invadir por um amargo sentimento de culpa ao pensar que fora a sua invenção que permitira o transporte da antimatéria... Era o seu contentor que continuava em contagem decrescente algures no interior do Vaticano. No seu esforço de ajudar o pai a procurar a simplicidade da verdade... tornara-se cúmplice do caos.

Estranhamente, a única coisa que parecia certa na sua vida, naquele momento, era a presença de um desconhecido. Robert Langdon. Encontrava um inexplicável refúgio nos olhos dele... como a harmonia dos oceanos que deixara para trás às primeiras horas daquela manhã. Ainda bem que ele estava ali. Não só tinha sido uma fonte de força e de esperança para ela, como usara a sua capacidade de raciocínio para criar aquela oportunidade de apanhar o assassino do pai.

ANJOS E DEMÓNIOS 267

Inspirou fundo e continuou a procurar, caminhando à volta do perímetro. Sentia-se avassalada pelas inesperadas imagens de vingança pessoal que tinham dominado os seus pensamentos durante todo o dia. Mesmo como defensora apaixonada de todas as formas de vida... queria aquele executor morto. Não havia bom karma suficiente para fa-zè-la oferecer a outra face naquele dia. Alarmada e electrizada, sentia correr-lhe no sangue italiano algo que nunca antes sentira... o murmúrio dos seus antepassados sicilianos a defenderem a honra da família com brutal justiça. Vendetta, pensou Vittoria, e, pela primeira vez na sua vida, compreendeu.

Era acometida por ideias de vingança. Aproximou-se do túmulo de Rafael Santi. Mesmo à distância, percebia-se que se tratava de alguém especial. O sarcófago, ao contrário dos outros, estava protegido por uma placa àe plexiglas e recolhido num arcossólio. Através da barreira, viu a parte da frente do túmulo.

RAFAEL SANTI, 1483-1520

Estudou a sepultura e então leu a placa descritiva com uma única frase colocada ao lado do monumento.

E voltou a lê-la. E... leu-a uma vez mais. No instante seguinte, corria loucamente para o outro lado da sala. — Robert! ^hert!

CAPITULO SESSENTA E DOIS

O progresso de Langdon ao longo do seu lado do Panteão estava a ser um tanto estorvado pelo guia que se lhe colava aos calcanhares e prosseguia a incansável narrativa.

— Parece apreciar esses nichos — dizia o homem, deliciado, enquanto Langdon se preparava para examinar a última alcova. — Sabia que o facto de a parede ir diminuindo de espessura à medida que sobe é a razão de a cúpula parecer não ter peso?

Langdon assentiu, sem ouvir uma palavra do que ele dizia. Subitamente, alguém o agarrou por trás. Era Vittoria. Estava ofegante, a puxá--lo por vim braço. Pela expressão de terror que lhe via no rosto, Langdon só podia assumir uma coisa. Encontrou um cadáver. Sentiu-se invadir por uma vaga de horror.

— Ah, a sua esposa! — exclamou o guia, claramente encantado por ter dois ouvintes. Fez um gesto na direcção dos calções curtos e das botas de campanha. — Sim, no caso dela, vê-se bem que é americana!

Vittoria semicerrou os olhos. — Sou italiana. O sorriso do guia desvaneceu-se. — Oh, céus. — Robert — murmurou Vittoria, tentando voltar as costas ao ho

mem. — O Diagramma de Galileu. Preciso de vê-lo. — O Diagramma! — exclamou o guia, recuando um passo. — Je

sus, vejo que são os dois conhecedores de História! Infelizmente, o documento não pode ser visto. Está guardado nos Arquivos do Va...

— Importa-se de nos dar um instante? — pediu Langdon. O pânico de Vittoria confundia-o. Afastou-se um pouco com ela e meteu a mão no bolso interior do casaco, tirando de lá, com extremo cuidado, a folha do Diagramma. — Que se passa?

ANJOS E DEMÓNIOS 269

— Qual é a data desta coisa? — perguntou Vittoria, passando os olhos pelo papiro.

O guia estava outra vez em cima deles, a olhar para a folha de boca muito aberta.

— Isso não é... o verdadeiro... — Uma reprodução para turistas — disse Langdon. — Obrigado

pela sua ajuda. Por favor, eu e a minha mulher gostaríamos de ter um momento a sós.

O guia recuou, sem tirar os olhos do papiro. — Data — repetiu Vittoria. — Quando foi que Galileu publicou... Langdon apontou para o numeral romano na última linha. — É a data de publicação. Que se passa? Vittoria decifrou a indicação, — Mu seiscentos e trinta e nove? — Sim. Que se passa? Os olhos de Vittoria encheram-se de apreensão. — Temos um problema, Robert. Um grande problema. As datas

não coincidem. — Que datas é que não coincidem? — A do túmulo de Rafael. Só foi aqvii sepultado em 1759. Mais de

um século depois de o Diagramma ter sido publicado. Langdon ficou a olhar para ela, a tentar perceber as palavras. — Não. Rafael morreu em 1520, muito antes de o Diagramma ter

sido escrito. — Sim, mas só foi aqui sepultado muito mais tarde. Langdon estava completamente perdido. — Que está a dizer? — Acabo de o 1er. O corpo de Rafael foi trasladado para o Panteão

em 1759. No âmbito de um tributo qualquer a italianos eminentes. A medida que as palavras assentavam, Langdon sentiu como se lhe

estivessem a tirar um tapete de baixo dos pés. — Quando esse poema foi escrito — continuou Vittoria —, o tú

mulo de Rafael estava noutro sítio qualquer. Nessa almra, o Panteão não tinha nada a ver com Rafael!

Langdon estava quase incapaz de respirar. — Mas isso... significa... — Sim! Significa que estamos no lugar errado!

270 DAN BROWN

Langdon sentiu-se vacüar. Impossível... eu tinha a certet^a... Vittoria afastou-se a correr e agarrou o guia por um braço, puxan-

do-o para trás. — Signore, desculpe. Onde estava o corpo de Rafael no século

XVII?

— Em Ur... Urbino — gaguejou o homem, confuso. — A sua terra natal.

— Impossível! — Langdon amaldiçoou-se a si mesmo. — Os altares de ciência dos llluminati situavam-se aqui em Roma. Disso tenho a certeza!

— Os llluminati?— O guia arfou, olhando novamente para o papiro na mão de Langdon. — Quem são vocês?

Vittoria chamou a si o comando das operações. — Andamos à procura de uma coisa chamada o túmulo terreno de

Santi. Em Roma. Sabe dizer-nos o que poderá ser? O homem parecia profundamente perturbado. — Esta foi a única sepultura de Rafael em Roma. Langdon tentou pensar, mas o cérebro recusava-se a funcionar. Se

Rafael não estava sepultado em Roma em 1639, então a que se referiria o poema? O túmulo terreno de Santi com o buraco do diabo?Que raio poderá ser? Pensa!

— Houve algum outro artista chamado Santi? — perguntou Vittoria.

O guia encolheu os ombros. — Que eu saiba, não. — E outra pessoa famosa? Talvez um cientista ou um poeta ou um

astrónomo chamado Santi? O guia estava agora com o ar de quem só desejava fugir dali para

fora. — Não, minha senhora. O único Santi de que tenho conhecimento

é Rafael, o arquitecto. — Arquitecto? — estranhou Vittoria. — Pensava que tinha sido

pintor! — Era ambas as coisas, claro. Todos eles eram. Miguel Angelo, da

Vinci, Rafael. Langdon não soube se tinham sido as palavras do guia ou os orna

mentados túmulos à sua volta que lhe provocaram o relâmpago de re-

ANJOS E DEMONIOS 271

velação. Nem quis saber. O pensamento ocorreu. Santi era arquitecto. A partir daí, a sequência foi como uma fila de pedras de dominó a cair. Os arqmtectos da Renascença tinham apenas dois objectivos na vida: glorificar Deus com grandes igrejas, e glorificar grandes dignitários com túmulos magm'ficos. O túmulo de Santi.' Será possível? KÍ, imagens su-cediam-se agora mais depressa...

A Mona Usa de da Vinci. Os Nenúfares de Monet. O David de Miguel Angelo. O túmulo terreno de Santi... — Santi desenhou o túmulo — disse. Vittoria voltou-se para ele. — O quê? — Não é uma referência ao local onde Rafael está sepultado, é uma

referência a um túmulo que ele desenhou. — De que está a falar? — Entendi mal a pista. Não é da sepultura de Rafael que andamos

à procura, é de um túmulo que Rafael desenhou para outra pessoa. Nem posso crer que não percebi logo. Metade das esculturas feitas na Roma renascentista e barroca destinava-se a monumentos funerários. — Sorriu à revelação. — Rafael deve ter desenhado centenas de túmulos!

Vittoria não pareceu ficar feliz. — Centenas? O sorriso de Langdon desvaneceu-se. — Algum deles era terreno, professor? Langdon sentiu-se subitamente inadequado. Para sua vergonha, co

nhecia muito mal a obra de Rafael. Se fosse Miguel Angelo, poderia ajudar, mas Rafael nunca o cativara. Sabia o nome de alguns dos túmulos mais famosos do artista, mas não tinha mais do que uma ideia vaga sobre o seu aspecto.

Parecendo detectar o bloqueio dele, Vittoria voltou-se para o guia, que estava a tentar escapuür-se sem dar nas vistas. Agarrou-o por um braço e puxou-o.

— Preciso de um túmulo. Desenhado por Rafael. Um túmulo que possa ser considerado terreno.

O homem estava com um ar cada vez mais atrapalhado.

272 DAN BROWN

— Um túmulo desenhado por Rafael? Não sei. Desenhou tantos. E provavelmente estão a falar de uma capela desenhada por Rafael, e não de um túmulo. Os arquitectos desenhavam sempre as capelas em conjunto com os túmulos.

Langdon apercebeu-se de que o homem tinha razão. — Alguns dos túmulos ou capelas de Rafael são considerados

terrenos^ O guia encolheu os ombros. — Lamento. Não compreendo o que quer dizer. Terreno não des

creve qualquer coisa que eu conheça. Tenho de ir... Sem lhe largar o braço, Vittoria leu a primeira linha do papiro: — Do túmulo terreno de Santi com o huraco do diabo. Significa alguma

coisa para si? — Nada. Langdon ergueu de repente os olhos. Esquecera momentaneamen

te a segunda parte do verso, buraco do diabo? — Sim! — disse, dirigindo-se ao guia. — E isso! Alguma das cape

las de Rafael tem um óculo? O homem abanou a cabeça. — Que eu saiba, o Panteão é único. — Fez uma pausa. — Mas... — Mas o quê? — perguntaram Langdon e Vittoria em um'ssono. O guia inclinou a cabeça para um lado, voltando a aproximar-se

deles. — Um buraco do diabo? — Murmurou qualquer coisa para si mes

mo, raspando os dentes com uma unha. — Buraco do diabo... isso é... buco diàvolo?

Vittoria assentiu. — Literalmente, sim. O guia esboçou um débil sorriso. — Ora aí está um termo que não ouvia há algum tempo. Se não es

tou enganado, um buco diàvolo refere-se a uma câmara subterrânea. — Uma câmara subterrânea? — peiguntou Langdon. — Uma cripta? — Sim, mas um tipo específico de cripta. Jvilgo que buraco do dia

bo é a designação antiga de uma grande câmara funerária localizada numa capela... por baixo de outro túmulo.

— Um ossário anexo? — perguntou Langdon, reconhecendo imediatamente o que o homem estava a descrever.

O guia ficou impressionado.

ANJOS E DEMÓNIOS 273

— Sim! Era esse o nome de que estava à procura! Langdon considerou a questão. Os ossários anexos eram uma ma

neira eclesiástica barata de resolver um embaraçoso problema. Quando as igrejas honravam os seus membros mais distintos com ornamentados túmulos no interior do santuário, os parentes sobrevivos exigiam com frequência que toda a família ficasse sepultada junta... garantindo assim que também eles teriam um cobiçado local de repouso eterno dentro do templo. No entanto, se a igreja não dispunha de espaço ou de fundos para oferecer túmulos à família inteira, o recurso era por vezes escavar um ossário anexo — um buraco no chão, onde eram sepultados os parentes menos proeminentes do homenageado. O buraco era então tapado com o equivalente renascentista de uma tampa de esgoto. Apesar de conveniente, o ossário anexo depressa passou de moda devido ao fedor que com frequência invadia o templo. Buraco do diabo, pensou Langdon. Nunca ouvira a expressão. Soava estranhamente adequada.

Tinha agora o coração a bater furiosamente. Do túmulo terreno de Santi com o huraco do diabo. Parecia haver apenas uma pergunta mais a fazer.

— Rafael desenhou alguns túmulos que tivessem esses buracos do diabo?

O guia coçou a cabeça. — Lamento... só consigo lembrar-me de um. Só um^ Langdon não poderia ter desejado melhor resposta. — Onde? — quase gritou Vittoria. O guia olhou para eles com uma expressão de estranheza. — Chama-se a Capela Chigi. O túmulo de Agostino Chigi e do ir

mão, ricos patronos das artes e das ciências. — Ciências? — repetiu Langdon, trocando um olhar com Vittoria. — Onde? — voltou ela a perguntar. O homem ignorou a pergunta, parecendo outra vez enmsiasmado

com a oportunidade de ser útil. — Quanto ao túmulo ser ou não terreno, não sei, mas é com toda

a certeza... digamos, différente. — Diferente? — traduziu Langdon. — Em que sentido? — Incoerente com a arquitectura. Rafael foi apenas o arquitecto.

Foi um outro escultor qualquer que se encarregou dos adornos interiores. Não recordo o nome.

274 DAN BROWN

Langdon era todo ouvidos. O mestre Illuminatus anónimo, talvef(? — Seja como for, quem fez os monumentos interiores tinha péssi

mo gosto — continuou o guia. — Dio miolAtroátàl Quem quereria ser sepultado por baixo át pirámides?

Langdon mal podia crer no que ouvia. — Pirâmides? A capela contém pirâmides? — Eu sei. — O guia bufou desdenhosamente. — Horrível, não é? Vittoria agarrou-o por um braço. — Signore, onde fica a Capela Chigi? — A cerca de quilómetro e meio para norte. Na igreja de Santa

Maria dei Popólo. Vittoria expirou com força. — Obrigada. Vamos... — Eh! — exclamou o guia. — Acabo de lembrar-me de uma coisa.

Que tolice a minha. Vittoria deteve-se bruscamente. — Por favor, não me diga que se enganou. — Não, mas devia ter-me lembrado mais cedo. A Capela Chigi nem

sempre foi conhecida por esse nome. Costumava chamar-se Capella delia Terra.

— Capela do povoado? — perguntou Langdon. — Não — disse Vittoria, dirigindo-se para a porta. — Capela da

Terra.

Vittoria Vetra tirou o telemóvel do bolso enquanto corria para a Piazza delia Rotunda.

— Comandante Olivetti — disse. — Estamos no lugar errado! A voz de Olivetti soou confusa. — Errado? Errado como? — O primeiro altar de ciência é na Capela Chigi! — Onde? — Olivetti parecia agora furioso. — Mas o doutor Lang

don disse... — Santa Maria dei Popólo! Quilómetro e meio a norte daqui. Man

de imediatamente os seus homens para lá! Temos quatro minutos! — Mas os meus homens estão em posição aqui! Não posso... — Despache-se! — gritou Vittoria, e desligou o telemóvel.

ANJOS E DEMÓNIOS 275

Atrás dela, Langdon saía do Panteão, aturdido. Vittoria agarrou-Ihe uma mão e puxou-o para a fila de táxis aparen

temente sem motorista que esperavam junto ao passeio. Deu um murro na capota do primeiro. O motorista acordou sobressaltado, com um grito de susto. Vittoria abriu a porta traseira e empurrou Langdon lá para dentro, entrando logo a seguir.

— Santa Maria dei Popólo — ordenou. — Presto! Com um ar delirante e meio aterrorizado, o motorista pisou o ace

lerador, deixando um rasto de borracha queimada no asfalto.

CAPITULO SESSENTA E TRES

Günther Glick retirara o controlo do computador a Chinita Macri, que, no acanhado espaço da carrinha de exteriores da BBC, se debruçava sobre as costas do banco da frente, a espreitar por cima do ombro dele.

— Como te disse — observou Glick, teclando mais algumas pala-vras-chave. — O British Tatkrnão é o único jornal que publica histórias a respeito destes tipos.

Chinita olhou para o visor. Glick tinha razão. A base de dados da BBC mostrava que a distinta cadeia tinha passado, nos últimos dez anos, seis documentários sobre a Irmandade chamada llluminati. Macacos me mordam, pensou.

— Quem foram os jornalistas que fizeram as peças? — perguntou. — Aldrabões sensacionalistas?

— A BBC não contrata aldrabões sensacionalistas. — Contratou-te a ti. Glick fez uma careta. — Não percebo porque é que estás tão céptica. Os llluminati estão

bem documentados ao longo da História. — Também as bruxas, os OVNI e o monstro de Loch Ness. Glick leu a lista de programas. —Já ouviste falar de um tipo chamado Winston Churchill? — O nome diz-me qualquer coisa. — A BBC fez, há pouco tempo, um documentário histórico sobre

a vida dele. Um católico ferrenho, a propósito. Sabias que, em 1920, ChurchiU publicou uma declaração em que condenava os llluminati t. alertava os Britânicos para a existência de uma conspiração mundial contra a moralidade?

Macri parecia pouco convencida.

ANJOS E DEMÓNIOS 277

— Quem a publicou? O British Tatler? Glick sorriu. — O Ijondon Herald. Oito de Fevereiro de 1920. — Estás a gozar. — Olha e pasma. Macri olhou com mais atenção. Ijondon Herald, 8 de Fev, 1920. Não

fa:(ia ideia. — Bem, Churchill era paranóico. — Então não era o único — disse Glick, continuando a 1er. — Pa

rece que Woodrow Wilson fez, em 1921, três discursos difundidos pela rádio a chamar a atenção para o crescente domínio dos llluminati sobre o sistema bancário americano. Queres uma citação directa do texto transcrito?

— Nem por isso. GHck deu-lha, de toda a maneira. —• Disse: «Há um poder tão organizado, tão subtil, tão completo, tão

omnipresente, que é melhor que ninguém erga a voz acima do murmúrio quando falar para condená-lo.»

— Nunca ouvi nada a esse respeito. — Talvez porque em 1921 eras ainda uma miúda. — Encantador. — Macri não se ofendeu. Sabia que a idade co

meçava a transparecer. Aos quarenta e três anos, os espessos cabelos negros e encaracolados mostravam salpicos de cinza. Era demasiado orgulhosa para os pintar. A mãe, uma baptista do Sul, ensinara-lhe aceitação e respeito por si mesma. Quando se é uma mulher negra, dizia-lhe, não épossível escondê-lo. O dia em que o tentares, será o dia em que morres. Mantém a cabeça erguida, sorri, e deixa-os na dúvida sobre que segredos te fatiem rir.

—Já ouviste falar de Cecil Rhodes? — perguntou Glick. Macri ergueu os olhos do visor. — O financeiro britânico? — Ele mesmo. Fundador das Bolsas de Estudo Rhodes. — Não me digas... — llluminatus. — BS.

— BBC. Dezasseis de Novembro de 1984. — JVöV escrevemos que Cecü Rhodes era um llluminatus^

278 DAN BROWN

— Nem mais. E, segundo a nossa cadeia, as Bolsas de Estudo Rhodes eram o prolongamento dos fundos criados há séculos para recrutar os jovens mais brilhantes para os llluminati.

— Isso é ridícvilo! O meu tio teve uma dessas bolsas de estudo. Glick piscou-lhe um olho. — Também o Bill Clinton. Macri começava a ficar furiosa. Nunca suportara jornalismo falso

e alarmista. No entanto, conhecia o suficiente da BBC para saber que tudo o que a cadeia passava era cuidadosamente investigado e confirmado.

— Aqui está um de que vais lembrar-te — disse Glick. — BBC, 5 de Março de 1958. O presidente da Comissão do Parlamento, Chris MuUin, pediu a todos os membros do Parlamento Britânico que fossem maçons que declarassem a sua filiação.

Macri lembrava-se. O decreto acabara por ser alargado de modo a incltiir também polícias e juízes.

— E isso foi porquê? — «... receio» — leu GHck —, «de que facções secretas dentro da

Maçonaria exercessem um considerável controlo sobre os sistemas político e financeiro».

— Isso mesmo. — Causou uma enorme agitação. Os maçons do Parlamento fica

ram furiosos. E com razão. Eram, na sua esmagadora maioria, homens inocentes que tinham aderido à Maçonaria para estabelecer redes de solidariedade e com intuitos beneficentes. Não faziam a mínima ideia das antigas filiações da Irmandade.

— Alegadas filiações. — Como queiras. — Click continuou a passar os artigos. — Olha

para isto. Há relatos que Hgam os llluminati a Galileu, aos Guerenets franceses, aos Alumbrados espanhóis. Inclusivamente a Karl Marx e à revolução russa.

— A História tem o hábito de reescrever-se a si mesma. — Optimo. Queres uma coisa mais actual? Vê esta. Uma referência

aos llluminati feita recentemente no Wall Street Journal Esta despertou a atenção de Macri. — No Journal?

ANJOS E DEMÓNIOS 279

— Adivinha qual é, neste momento, o jogo de computador mais popular na internet, nos Estados Unidos.

— Seguir o rasto da Pamela Anderson? — Andaste lá perto. Chama-se llluminati: a Nova Ordem Mundial. Macri voltou a espreitar por cima do ombro dele. A Steve Jackson

Games tem um novo êxito... uma aventura pseudo-histórica em que uma antiga

Irmandade satânica da Baviera se propõe dominar o mundo. Pode encontrá-lo on-

-line em... Endireitou-se, sentindo-se indisposta. — O que é que esses llluminati têm contra o Cristianismo? — Não é só contra o Cristianismo. Contra a religião em geral. —

Guck pôs a cabeça de lado e sorriu. — Ainda que, a julgar pelo telefonema que acabamos de receber, pareça terem reservado no coração um lugar especial para o Vaticano.

— Oh, deixa-te disso. Não acreditas verdadeiramente que aquele tipo que telefonou seja quem afirma ser, pois não?

— Um mensageiro dos llluminati'^ Preparado para assassinar quatro cardeais? — Glick sorriu. — Espero bem que sim.

CAPÍTULO SESSENTA E QUATRO

O táxi completou o percurso de quilómetro e meio pela ampla Via delia Scrofa em pouco mais de um minuto. Travaram em derrapagem no lado sul da Piazza del Popólo ainda não eram oito, e Langdon, que não tinha uma única lira, pagou exorbitantemente ao motorista em dólares americanos. Ele e Vittoria apearam-se rapidamente. A praça estava silenciosa, exceptuando as gargalhadas de um grupo sentado na esplanada do popular Café Rosati — ponto de encontro habitual dos literati romanos. A brisa cheirava a café espresso e a bolos.

Langdon ainda estava em choque por causa do erro que cometera relativamente ao Panteão. Com um olhar apressado à praça, no entanto, o seu sexto sentido pareceu voltar à vida. O lugar afigurou-se-lhe subtilmente cheio de significado llluminatus. Não só tinha a forma de uma elipse perfeita, como, bem no centro, ostentava um alto obelisco egípcio — um puar quadrado de pedra com uma pirâmide no topo. Despojos do saque imperial de Roma, havia obeliscos espalhados por toda a cidade. Os simbologistas chamavam-lhes «pirâmides altas» — extensões da sagrada forma piramidal alongadas para o céu.

Enquanto percorria com o olhar o monóKto de pedra, a atenção foi-lhe de súbito atraída por algo que se situava em segundo plano. Algo ainda mais notável.

— Estamos no lugar certo — disse em voz baixa, com uma repentina sensação de alerta. — Olhe para ali. — E apontou a imponente Porta dei Popólo — o grande arco de pedra no extremo oposto da praça. Havia séculos que aquela estrutura dominava o espaço à sua frente. Mesmo no centro do ponto mais alto do arco havia uma gravura simbólica. — Parece-lhe familiar?

Vittoria olhou para o motivo gravado.

ANJOS E DEMÓNIOS 281

— Uma estrela a brilhar sobre um monte de pedras triangular? Langdon abanou a cabeça. — Uma fonte de Iluminação sobre uma pirâmide. Vittoria voltou-se para ele, de olhos muito abertos. — Como... o Grande Selo dos Estados Unidos. — Exactamente. O símbolo maçónico que aparece na nota de um

dólar. Vittoria inspirou fundo e olhou em redor. — Então onde está o raio da igreja?

A igreja de Santa Maria dei Popólo erguia-se, como um cruzador fora do seu lugar, de viés, na base de uma colina junto ao canto sueste da praça. A construção de pedra, do século XI, parecia ainda mais bizarra devido aos andaimes que lhe cobriam a fachada.

Os pensamentos de Langdon atropelavam-se confusamente na sua cabeça enquanto ele e Vittoria corriam para o edifício. Olhava para a igreja, aturdido. Seria possível que no seu interior estivesse verdadeiramente a ocorrer um assassínio? Desejou que Olivetti se apressasse. A arma fazia-lhe um peso estranho no bolso.

A escadaria fronteira da igreja era em ventaglio — um acolhedor leque em curva —, irónica naquele caso, por estar bloqueada por andaimes, material de construção e um placa com os dizeres: COSTRUZIONE.

NON ENTRARE.

Langdon apercebeu-se de que uma igreja fechada para restauro significava privacidade total para o assassino. Ao contrário do Panteão. Ali não seriam necessários truques rebuscados. Apenas descobrir maneira de entrar.

Vittoria passou sem hesitação por entre as barreiras e começou a subir os degraus.

— Vittoria — acautelou Langdon. — Se ele ainda está lá dentro... Vittoria pareceu nem o ouvir. Subiu até ao pórtico que abriga

va a única porta do edifício, de madeira. Langdon seguiu-a, a correr. Antes que pudesse dizer uma palavra, ela agarrou a maçaneta e puxou. Langdon conteve a respiração. A porta não se moveu.

— Deve haver outra entrada — disse Vittoria.

282 DAN BROWN

— Provavelmente — concordou Langdon, ofegante — mas o Olivetti vai chegar aqui dentro de um minuto. E demasiado perigoso entrar. Devíamos ficar a vigiar a igreja cá de fora enquanto...

Vittoria voltou-se, com os olhos a chispar. — Se há outra entrada, há outra saída. Se este tipo desaparece. Es

tamos «¿¿/o. Langdon sabia italiano suficiente para saber que ela rinha razão. A viela do lado direito da igreja era estreita e escura, com altas pa

redes de ambos os lados. Cheirava a urina — um cheiro comum numa cidade onde os bares excediam os urinóis públicos numa proporção de vinte para um.

Langdon e Vittoria correram pela fétida escuridão. Não tinham percorrido mais de quinze metros quando Vittoria puxou pela manga do casaco dele e apontou.

Também Langdon a viu. Um pouco mais à frente, havia uma discreta porta de madeira com pesados gonzos. Langdon reconheceu-a como sendo a Yn\g2xpotfa sacra — uma entrada privada para os padres. A maior parte destas portas deixara de ser usada anos antes, quando o aumento da construção e a escassez de espaço relegara as entradas laterais para inconvenientes vielas.

Vittoria correu para a porta. Chegou e ficou a olhar para a maçaneta, com um ar perplexo. Langdon chegou atrás dela e olhou para a estranha argola suspensa do lugar onde deveria estar o puxador.

— Um anulo — murmurou. Estendeu a mão e levantou silenciosamente o aro. Puxou-o para si. O mecanismo fez um clique. Vittoria agitou-se, parecendo subitamente inquieta. Sem ruído, Langdon rodou a argola no sentido dos ponteiros do relógio. Girou livremente trezentos e sessenta graus, sem qualquer prisão. Langdon franziu a testa e tentou no sentido oposto, com igual resultado.

Vittoria olhou para o que restava da viela. — Acha que há outra entrada? Langdon duvidava. Quase todas as catedrais renascentistas serviam

como fortalezas improvisadas, para o caso de a cidade ser tomada de assalto. Tinham a menor quantidade possível de portas.

— Se há outra porta — disse —, está provavelmente escondida no bastião das traseiras... e será mais um caminho de fuga do que uma entrada.

ANJOS E DEMÓNIOS 283

Vittofia já estava em movimento. Langdon seguiu-a, internando-se na escuridão da viela. As paredes

erguiam-se para o céu dos dois lados. Algures, um sino começou a bater as oito horas...

Robert Langdon não ouviu da primeira vez que Vittoria o chamou. Tinha-se detido diante de uma janela de vitral protegida por grades de ferro e estava a tentar espreitar para o interior.

— Robert! — A voz de Vittoria foi um murmúrio alto. Langdon ergueu o olhar. Vittoria estava no extremo da viela, a apon

tar para as traseiras da igreja e a fazer-lhe sinal. Correu relutantemente na direcção dela. Na base do paredão posterior, um bastião de pedra saliente escondia uma apertada gruta — uma espécie de estreita passagem que penetrava directamente nos alicerces do templo.

— Uma entrada? — perguntou Vittoria. Langdon assentiu. Mais exactamente uma saída, mas não vamos agora

prender-nos com pormenores. Vittoria ajoelhou-se e espreitou para dentro do túnel. — Vamos experimentar a porta. Ver se está aberta. Langdon abriu a boca para objectar, mas Vittoria pegou-üie na mão

e puxou-o para a abermra. — Espere — disse ele. Ela voltou-se, impaciente. Langdon suspirou. — Eu vou à frente. Vittoria pareceu surpreendida. — Mais cavalheirismo? — A idade antes da beleza. — Isso foi um elogio? Langdon sorriu e passou por ela na escuridão. — Cuidado com os degraus. Avançou cautelosamente pelo escuro, mantendo uma mão na pa

rede. Sentia a pedra áspera sob os dedos. Por um instante, recordou o antigo mito de Dédalo, como o jovem mantivera uma mão na parede enquanto se deslocava pelo labirinto do Minotauro, sabendo que tinha a garantia de encontrar o fim se nunca perdesse o contacto com

284 DAN BROWN

a parede. Continuou a avançar, não muito seguro de querer encontrar o fim.

O túnel estreitava ligeiramente, e Langdon abrandou o passo. Sentia Vittoria muito perto. Quando a parede virou para a esquerda, o túnel desembocou numa alcova semicircular. Estranhamente, havia ali um pouco de luz. Na penumbra, Langdon distinguiu os contornos de uma porta de madeira.

— Oh, oh — murmurou. — Fechada? — Estava. — Estava? — Vittoria chegou junto dele. Langdon apontou. Iluminada por um feixe de luz vindo do inte

rior, a porta estava completamente aberta, arrancada dos gonzos por um pé-de-cabra ainda cravado na madeira.

Ficaram ali imóveis por um momento, em silêncio. Então, na escuridão, Langdon sentiu as mãos de Vittoria no peito, à procura, a deslizarem por baixo do casaco.

— Descontraia, professor — disse ela. — Estou só à procura da pistola.

Entretanto, no interior do Museu do Vaticano, um pelotão de guardas suíços dispersava-se em todas as direcções. O museu estava às escuras e os guardas usavam óculos de visão nocturna iguais aos utilizados pelos marines norte-americanos. Todos tinham na cabeça auscultadores Hgados a uma espécie de detector em forma de antena que faziam oscilar lentamente à sua frente — os mesmos aparelhos que usavam duas vezes por semana para procurar equipamento de escuta electrónica no interior do Vaticano. Deslocavam-se sistematicamente, procurando atrás das estátuas, dentro dos nichos e armários, debaixo dos móveis. As antenas dariam sinal se detectassem o mais ínfimo campo magnético.

Naquela noite, porém, não estavam a obter qualquer leitura.

CAPITULO SESSENTA E CINCO

O interior de Santa Maria del Popólo era uma gruta sombria, mais parecendo uma estação de metro inacabada do que uma catedral. O corpo principal do santuário fora transformado num autêntico percurso de obstáculos, com partes do piso levantadas, paletes de tijolos, montes de terra e até uma ferrugenta enxada. Grandes colunas erguiam-se do chão, suportando o tecto abobadado. Grãos de pó dançavam preguiçosamente no ar, à claridade velada dos vitrais. Langdon deteve-se, com Vittoria, junto de um comprido fresco de Pinturicchio e passou os olhos pelo templo esventrado à sua volta.

Nada se movia. Silêncio total. Vittoria mantinha a arma apontada em frente, segurando-a com as

mãos. Langdon consultou o relógio: 8.04. E uma loucura estarmos aqui, pensou. Demasiado perigoso. Sabia, no entanto, que se o assassino estivesse dentro da igreja, poderia sair por qualquer das portas, tornando totalmente inútil a vigia no exterior com apenas uma arma. A única maneira era apanhá-lo no interior... se ainda lá estivesse, claro. Sen-tia-se culpado pelo erro que os fizera perder tanto tempo no Panteão. Não estava em posição para insistir em cautelas, agora; fora ele que os encurralara naquele canto.

Vittoria parecia preocupada enquanto perscrutava a igreja que as sombras invadiam.

— Então — perguntou —, isto é que é a Capela Chigi? Langdon olhou através da fantasmagórica penumbra para o fundo

da catedral e estudou as paredes exteriores. Contrariamente ao que a maioria das pessoas pensava, as catedrais incluíam, regra geral, várias capelas. As maiores, como Notre Dame, em Paris, tinham dúzias. As capelas eram mais concavidades do que salas: nichos semicirculares espalhados ao longo das paredes, contendo quase sempre um túmulo.

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Más notíáas, pensou Langdon, vendo as quatro reentrâncias em cada uma das paredes laterais. Havia, ao todo, oito capelas. Embora não fosse um número esmagador, as oito aberturas estavam tapadas por grandes folhas de plástico transparente, aparentemente destinadas a preservar do pó das obras os túmulos dentro das alcovas.

— Pode ser qualquer uma daquelas reentrâncias tapadas — disse. — Não há maneira de saber qual delas é a Chigi sem espreitar para dentro de todas. Talvez seja uma boa razão para esperar pelo Oli...

— Qual é a absidíola esquerda? — perguntou Vittoria. Langdon ficou a olhar para ela, surpreendido pelo conhecimento

que demonstrava da terminologia arquitectónica. — Absidíola esquerda? Vittoria apontou para a parede atrás dele. Langdon voltou-se e viu

um azulejo decorativo encastoado na pedra. Tinha gravado o mesmo símbolo que já tinham encontrado no exterior: uma pirâmide encimada por uma estrela brilhante. Ao lado, uma placa coberta de sujidade dizia:

ESCUDO DE ARJMAS DE ALEXANDRE CHIGI

CUJO TÚMULO ESTÁ LOCALIZADO NA

ABSIDÍOLA ESQUERDA DESTA CATEDRAL

Langdon assentiu. O brasão dos Chigi era uma pirâmide e uma estrela? Subitamente, deu por si a interrogar-se sobre se o rico patrono das artes e das ciências não teria sido também um llluminatus.

— Bom trabalho, Nancy Drew. — O quê? — Não Hgue. Estava... Uma peça de metal caiu no chão a poucos metros de distância.

O clangor ecoou por toda a igreja. Langdon puxou Vittoria para trás de um pilar enquanto ela apontava a arma na direcção do som. Silêncio. Esperaram. Novo som, desta vez um restolhar. Langdon conteve a respiração. Nunca devia ter concordado em entrarmos aqui! O som aproxima-va-se, um arrastar intermitente, como alguém a coxear. Subitamente, junto à base do pilar, apareceu um objecto.

— Figlio ãiputtanal—praguejou Vittoria entredentes, saltando para trás. Langdon recuou com ela.

ANJOS E DEMÓNIOS 287

Ao lado do puar, arrastando uma sanduíche meio comida embrulhada em papel, estava uma enorme ratazana. A criatura deteve-se quando os viu, ficando um longo momento a olhar para o cano da arma de Vittoria, e então, impávida, continuou a arrastar o seu prémio para os negros recônditos da igreja.

— Filha da... — ofegou Langdon, com o coração a galopar. Vittoria baixou a arma, recuperando a compostora. Langdon es

preitou para lá da coluna e viu uma lancheira de operário caída no chão, derrubada de um cavalete, tudo o indicava, pelo astuto roedor. Perscrutou a basílica, tentando detectar qualquer movimento, e murmurou:

— Se o tipo ainda cá está, ouviu com certeza isto. Tem a certeza de que não quer esperar pelo Olivetti?

— Absidíola esquerda — repetiu ela. — Onde é? Relutantemente, Langdon voltou-se e tentou orientar-se. A termi

nologia das catedrais era como as indicações de palco: totalmente contra-intuitiva. Pôs-se de frente para o altar-mor. Boca de cena. Apontou então com o polegar para trás, por cima do ombro.

Voltaram-se ambos e viram para onde estava a apontar. Aparentemente, a Capela Chigi localizava-se na terceira ou quar

ta alcova à direita deles. A boa notícia era que se encontravam no lado certo da igreja. A má notícia era que estavam no extremo errado. Iam ter de percorrer todo o comprimento do templo, passando por três outras capelas, todas elas tapadas, como a de Chigi, por translúcidas cortinas de plástico.

— Espere aqui — disse Langdon. — Eu vou primeiro. — Nem pense. — Fui eu que lixei tudo no Panteão. — Mas sou eu que tenho a arma. Langdon leu-lhe nos olhos o que ela estava verdadeiramente a pen

sar... ¥ui eu que perdi o meupaL Fui eu que ajudei a construir uma arma de des

truição maciça. Este gajo é meu...

Sentiu a inutilidade de insistir e desistiu. Começou a caminhar ao lado dela, cautelosamente, seguindo a parede leste da basílica. Quando passaram em frente da primeira alcova tapada, sentiu-se tenso, como um concorrente num qualquer concurso televisivo. Escolho a cortina número três, pensou. A igreja estava silenciosa. As grossas paredes de pedra

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bloqueavam todos os ruídos vindos do mundo exterior. A medida que passavam por uma capela após outra, pálidas figuras humanóides pareciam pairar como fantasmas do outro lado das cortinas de plástico que uma ligeira corrente de ar agitava. Estátuas de mármore, disse Langdon para si mesmo, esperando ter razão. Eram 8.06. Teria o assassino sido pontual e saído antes de eles chegarem? Ou ainda ali estaria? Langdon não sabia muito bem qual dos cenários preferia.

Passaram pela segunda absidíola, sinistra na catedral que escurecia. A noite parecia descer agora mais depressa, acentuada pelas cores esbatidas dos vitrais. Quando passaram, a cortina de plástico enfunou-se repentinamente, como que apanhada por uma corrente de ar. Langdon perguntou a si mesmo se alguém algures teria aberto uma porta.

Vittoria abrandou o passo quando o terceiro nicho surgiu diante deles. Manteve a arma apontada, indicando com um gesto de cabeça a estela ao lado da reentrância. Havia duas palavras gravadas no bloco de granito:

CAPELLA CHIGI

Langdon assentiu. Movendo-se sem ruído, avançaram até à esquina da abertura, colocando-se atrás de uma grossa coluna. Vittoria apontou a arma para o plástico e fez sinal a Langdon para que puxasse a cortina.

Uma boa altura para começar a re^r, pensou ele. Relutante, esticou o braço por cima do ombro dela. Com o máximo cuidado, começou a puxar o plástico para um lado. A cortina deslizou dois ou três centímetros e então enrugou-se ruidosamente. Imobüizaram-se ambos. Silêncio. Ao cabo de alguns instantes, movendo-se como que em câmara lenta, Vittoria inclinou-se para a frente e espreitou pela estreita abertura. Langdon olhava por cima do ombro dela.

Por um momento, nenhum dos dois respirou. — Vazia — disse finalmente Vittoria, baixando a arma. — Chegá

mos demasiado tarde. Langdon não a ouviu. Estava em êxtase, momentaneamente trans

portado para outro mundo. Nunca na sua vida imaginara uma coisa assim. Inteiramente forrada a mármore castanho, a Capela Chigi era arrebatadora. Os olhos treinados de Langdon devoravam-na a grandes

ANJOS E DEMÓNIOS 289

tragos. Era a capela mais terrena que se poderia imaginar, quase como se tivesse sido concebida pelo próprio Galileu e pelos Illuminati.

No tecto abobadado brilhava um campo de estrelas iluminadas e os sete planetas astronómicos. Mais abaixo, os doze signos do zodíaco — símbolos pagãos, terrenos, enraizados na astronomia. O zodíaco estava também directamente Hgado à Terra, ao Ar, ao Fogo e à Água... os quadrantes que representavam o poder, o intelecto, o ardor e a emoção, yi Terra é o poder, recordou Langdon.

Na parede, viu tributos às quatro estações da Terra... primavera, estate, autunno, inverno. Mas, mais incrível do que tudo isto, eram as duas enormes estruturas que dominavam o espaço. Langdon ficou a olhar para elas em maravilhado silêncio. Não pode ser, pensou. Não pode pura e simplesmente ser! Mas era. De cada lado da capela, em perfeita simetria, havia duas pirâmides de mármore com três metros de altura.

— Não vejo nenhum cardeal — sussurrou Vittoria. — Nem nenhum assassino. — Puxou o plástico completamente para o lado e entrou.

Os olhos de Langdon estavam presos às pirâmides, ^ue estão duas pirâmides a father dentro de uma capela católica? E, espantosamente, havia mais. Bem no centro de cada pirâmide, incrustado na face anterior, havia um medalhão de ouro... um medalhão como Langdon vira poucas vezes... e/^JíJ perfeitas. Refulgiam, magm'ficos, à escassa luz que entrava através da abóbada. Elipses de Galileu? Pirâmides? Uma cúpula estrelada? A capela tinha mais significado Illuminatus do que qualquer espaço que Langdon tivesse podido conceber na sua imaginação.

— Robert — exclamou Vittoria, com a voz a tremer. — Veja! Langdon voltou-se, brutalmente chamado à realidade quando bai

xou os olhos para o lugar que ela apontava. — Raios! — gritou, saltando para trás. Do chão, a imagem de um esqueleto ria sarcasticamente para eles

— um mosaico de mármore cheio de minucioso pormenor, representando «a Morte em fuga». O esqueleto transportava nas mãos uma tábua com o mesmo símbolo da pirâmide e das estrelas que tinham visto no exterior. Não fora, porém, a imagem que gelara o sangue de Langdon. Fora o facto de o mosaico estar montado numa pedra circular — um cupermento — que fora levantada do chão como a tampa

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de um esgoto e estava agora pousada ao lado de uma negra abertura no soalho.

— O buraco do diabo — murmurou Langdon. Ficara tão fascinado com o tecto que nem sequer o vira. Avançou, hesitante, para a fossa. O cheiro que dela emanava era avassalador.

Vittoria tapara a boca com uma mão. — Cheput^i^a. — 'Effluvium — disse Langdon. — Vapores de ossos em decom

posição. Com a manga do casaco a tapar a boca e o nariz, inclinou-se e espreitou para dentro do buraco. Escuridão. — Não vejo nada.

— Acha que está alguém lá em baixo? — Não tenho maneira de saber. Vittoria apontou para o lado oposto da abertura, onde uma escada

de madeira apodrecida descia para as profundezas. Langdon abanou a cabeça. — Nem pensar. — Talvez haja uma lanterna, no meio daquelas ferramentas. — Pa

recia ansiosa por uma desculpa para se afastar daquele cheiro. — Vou ver.

— Cuidado! — avisou Langdon. — Não sabemos com certeza se o assassino...

Vittoria, porém, já se tinha afastado. Mulher deddida, pensou Langdon. Ao voltar-se novamente para a fossa, sentiu-se entontecido pelos

vapores. Deitou-se de bruços e, retendo a respiração, enfiou a cabeça no buraco, tentando ver qualquer coisa na escuridão. Lentamente, à medida que os olhos se adaptavam, começou a distinguir formas esbatidas lá em baixo. Estava a olhar para o que parecia ser uma pequena câmara. O buraco do diabo. Perguntou a si mesmo quantas gerações de Chigi teriam sido para ali atiradas sem grandes cerimónias. Fechou os olhos e aguardou, forçando as pupüas a dilatarem-se de modo a ver melhor no escuro. Quando voltou a abri-los, uma figura páHda e indistinta destacou-se lá em baixo, no negrume. Estremeceu, mas controlou o instinto de retirar a cabeça. Estarei a ver coisas? Aquilo é um corpo? K figura desapareceu. Langdon voltou a fechar os olhos e a esperar, desta vez mais tempo, para que as pupñas pudessem captar a mais pequena réstia de luminosidade.

ANJOS E DEMÓNIOS 291

Começou a sentir-se tonto, e os pensamentos dispersaram-se-lhe pela escuridão. Só mais uns segundos. Não sabia se era de estar a respirar aqueles vapores ou de manter a cabeça inclinada para baixo, mas o certo era que se sentia muito maldisposto. Quando tornou a abrir os olhos, a imagem que tinha à sua frente era totalmente inexplicável.

Estava a olhar para uma cripta banhada por uma fantasmagórica luz azulada. Um leve som sibilante ecoava-lhe nos ouvidos. A luz re-flectia-se, bruxuleante, nas paredes do poço. De súbito, uma comprida sombra materializou-se por cima dele. Sobressaltado, pôs-se precipitadamente de pé.

— Cuidado! — exclamou uma voz nas suas costas. Antes que pudesse voltar-se, sentiu uma dor aguda na parte de trás

do pescoço. Girou sobre os calcanhares e viu Vittoria a desviar dele um maçarico aceso, a chama sibilante a espalhar um clarão azulado pela capela.

Levou a mão ao pescoço. — Que raio está a fazer? — Estava a dar-lhe um pouco de luz — respondeu ela. — Recuou

mesmo para cima de mim. Langdon lançou um olhar furioso ao maçarico portátil que ela ti

nha na mão. — Foi o melhor que se pôde arranjar — justificou-se Vittoria. —

Não havia lanternas. — Não a ouvi entrar — disse ele, a esfregar o pescoço. Vittoria entregou-üie o maçarico, franzindo o nariz por causa do

cheiro. — Acha que esses vapores são inflamáveis? — Esperemos que não. Pegou no maçarico e avançou lentamente para o buraco. Com ex

tremo cuidado, chegou ã beira e apontou a chama para baixo, iluminando o poço. A medida que movia a luz, seguiu a parede com os olhos, até ao fundo. A cripta era circular e tinha cerca de seis metros de diâmetro. Nove metros mais abaixo, a luz encontrou o chão. Era escuro e desigual. De terra. Foi então que viu o corpo.

O seu primeiro instinto foi recuar. — Está aqui — disse, forçando-se a não desviar os olhos. A figura

era um contorno pálido contra o fundo de terra. — Acho que está nu. — Fez passar a luz pelo corpo desnudo.

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— É um dos cardeais? Não fazia ideia, mas também não conseguia imaginar quem mais

pudesse ser. Continuou a olhar para a mancha pálida. Estava imóvel. Sem vida. E no entanto... Hesitou. Havia algo de muito estranho na forma como a figura estava posicionada. Parecia estar...

— Olá! — gritou. — Acha que está vivo? Não veio resposta lá de baixo. — Não se mexe — disse Langdon. — Mas parece... — Não, é im

possível.

— Parece o quê? — Vittoria estava agora também a espreitar para dentro do buraco.

Langdon semicerrou os olhos para a escuridão. — Parece estar de pé. Vittoria reteve a respiração e enfiou a cabeça no buraco, para ver

melhor. Passado um momento, voltou a endireitar-se. — Tem razão. Está de pé! Talvez esteja vivo e precise de ajuda!

— Gritou para dentro da cripta. — Olá!? Mipuó sentiré? Mais uma vez, não veio resposta da fétida cova. Apenas silêncio. Vittoria dirigiu-se à periclitante escada. — Vou descer. Langdon agarrou-lhe um braço. — Não. E perigoso. Vou eu. Desta vez, ela não discutiu.

CAPITULO SESSENTA E SEIS

Chinita Macri estava furiosa. Mantinha-se sentada, em silêncio, no banco do passageiro da carrinha de exteriores da BBC parada, com o motor a trabalhar, na esquina da Via TomaceUi, enquanto Günther GHck consultava o mapa de Roma, aparentemente perdido. Como ela receara, a voz misteriosa voltara a telefonar, desta vez com informação.

— Piazza del Popólo — insistia Glick. — É do que estamos à procura. Há lá uma igreja. E dentro da igreja há provas.

— Provas. — Chinita parou de Hmpar as lentes dos óculos e vol-tou-se para ele. — Provas de que um cardeal foi assassinado?

— Foi o que ele disse. — E tu acreditas em tudo o que te dizem? — Chinita desejou, como

tantas vezes fazia, ser ela a mandar. Mas os videógrafos estavam, infelizmente, sujeitos aos caprichos dos jornalistas malucos para os quais captavam imagens. Se Günther Glick queria seguir uma improvável pista telefónica, ela, Chinita Macri, tinha de acompanhá-lo como um cão pela trela.

Olhou para ele, ali sentado no lugar do condutor, e observou que GHck tinha uma expressão determinada. Os pais, decidiu Macri, deviam ser comediantes frustrados para lhe darem um nome daqueles: Günther Glick. Não admirava que o fulano sentisse que tinha alguma coisa para provar. No entanto, apesar do nome infeliz e da irritante obsessão de deixar uma marca, Glick era simpático... encantador de uma maneira melosa, sem chispa, briddish. Assim no género Hugh Grant numa de Pro:^ac.

— Não devíamos estar em São Pedro? — disse Macri, no tom mais paciente de que foi capaz. — Podemos investigar esta história da igreja mais tarde. O Conclave começou há uma hora. E se os cardeais chegam a uma decisão enquanto estamos fora?

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GHck pareceu nem sequer a ouvir. — Acho que viramos à direita, aqui. — Inclinou o mapa e voltou

a estudá-lo. — Sim... se virar à direita, e depois logo a seguir à esquerda... — começou a meter pela estreita rua que tinham à frente.

— Cuidado! — gritou Macri. Era técnica de vídeo, e tinha bons olhos. Felizmente, Glick também era rápido. Pisou o travão, evitando entrar no cruzamento uma fracção de segundo antes de quatro A.lfa Romeo surgidos de parte nenhuma lhes passarem à frente, tão depressa que mal os viu. Logo a seguir, os A^lfa travaram em derrapagem e viraram bruscamente à esquerda um quarteirão mais à frente, seguindo exactamente o caminho que Glick tencionava seguir.

— Malucos! — gritou Macri. Glick parecia abalado. — Viste aquilo? — Sim, vi aquuo! Quase nos mataram! — Não, estava a referir-me aos carros — disse GUck, subitamente

excitado. — Eram todos iguais. — E depois? Quer dizer que são malucos sem imaginação. — 7\lém disso, iam completamente cheios. — E então? — Quatro carros iguais todos eles com quatro ocupantes? — Talvez façam uma vaquinha. — Em Itália? — Glick verificou o cruzamento. — Por aqui ainda

nem sequer ouviram falar de gasolina sem chumbo. — Pisou o acelerador e arrancou a queimar borracha.

A aceleração atirou Macri contra as costas do banco. — Que raio estás tu a fazer? Glick continuou a acelerar, virando à esquerda no encalce dos Alfa. — Alguma coisa me diz que não somos só nós que vamos à igreja

esta noite.

CAPITULO SESSENTA E SETE

A descida foi lenta. Langdon desceu, degrau a degrau, a rangente escada... cada vez mais

fundo abaixo do chão da Capela Chigi. No buraco do diabo, pensou. Estava voltado para a parede, de costas para a câmara subterrânea, e perguntava a si mesmo quantos mais espaços escuros e apertados um único dia podia propiciar-lhe. A escada gemia a cada passo, o cheiro pungente a carne em decomposição e a humidade era quase asfixiante. Onde diabo estaria Olivetti?

Os contornos da figura de Vittoria eram indistintamente visíveis lá em cima, a segurar o maçarico dentro do buraco para lhe alumiar o caminho. Quanto mais se afundava na escuridão, mais fraco se tornava o clarão azulado. A única coisa que se tornava mais forte era o fedor.

Doze degraus mais abaixo, aconteceu. Pôs o pé num lugar escorregadio pela degradação e vacuou. Atirando-se para a frente, agarrou-se à escada com os antebraços, para evitar cair lá no fundo. Amaldiçoando as dores latejantes nos braços, recuperou o equilíbrio e recomeçou a descer.

Mais três degraus, e quase voltou a cair, mas desta vez não foi o degrau o causador do acidente. Foi um sobressalto de medo. Tinha passado por um nicho escavado na parede e, de repente, dera por si face-a--face com uma colecção de caveiras. Quando normalizou a respiração e olhou em redor, apercebeu-se de que toda a parede do poço estava, àquele mVel, perfurada por uma série de aberturas —- nichos funerários — todas elas cheias de esqueletos. A luz fosforescente, formavam uma fantasmagórica colecção de órbitas vazias e costelas em decomposição a tremeluzir à sua volta.

Esqueletos à lu^ da fogueira. Fez uma careta, recordando que, por uma curiosa coincidência, tivera de suportar uma noite semelhante havia ape-

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nas um mês. Uma noite de ossos e chamas. O jantar de beneficência, à luz de velas, no Museu de Arqueologia de Nova Iorque — ?,2kn2LO flambé À sombra de um esqueleto de brontossauro. Fora a convite de Rebecca Strauss — ex-modelo e actualmente crítica de arte no The Times, um turbilhão de veludo preto, cigarros e seios não-tão-subtilmente-como--isso «melhorados». Depois dessa noite, ela tinha-lhe telefonado duas vezes. Langdon não retribuíra os telefonemas. Muito pouco cavalheiresco, pensou, num acto de autocrítica, perguntando a si mesmo quanto tempo resistiria Rebecca Strauss numa fossa como aquela.

Ficou aliviado quando o último degrau deu lugar à terra esponjosa do fundo. O chão debaixo dos pés dele parecia húmido. Depois de se ter assegurado de que as paredes não estavam a fechar-se para o prender, voltou-se para a cripta. Novamente com a manga do casaco a tapar a boca e o nariz, olhou para o corpo. Naquela penumbra, a imagem era vaga. Um contorno esbranquiçado. De costas para ele. Imóvel. Silencioso.

Enquanto avançava passo-a-passo pela escuridão, tentava perceber o que via. O homem estava de costas voltadas, e não conseguia ver-lhe o rosto, mas parecia, de facto, estar de pé.

— Olá! — A voz soou abafada através da manga. Nada. Quando se aproximou, apercebeu-se de que o homem era muito baixo. Demasiado baixo...

— O que é que está a acontecer? — perguntou Vittoria lá de cima, movendo o maçarico de um lado para o outro.

Langdon não respondeu. Estava agora suficientemente perto para ver tudo. Com um tremor de repulsa, compreendeu. A câmara pareceu contrair-se à volta dele. Um homem — ou pelo menos metade de um homem — emergia, como um demónio, do chão de terra. Estava enterrado até à cintura, na vertical. Completamente nu. Tinha as mãos amarradas atrás das costas com uma faixa vermelha de cardeal. Man-tinha-se débilmente apoiado, com a espinha arqueada para trás como um horrível saco de treino para pugilistas. A cabeça dobrava-se pela nuca, com os olhos voltados para cima, para o céu, como que a suplicar a ajuda do próprio Deus.

— Está morto? — perguntou Vittoria. Langdon avançou para o corpo. Espero que sim, por ele. Quando che

gou a poucos passos, olhou para os olhos, virados para cima, esbuga-

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Ihados quase ao ponto de saírem das órbitas, azuis e raiados de sangue. Inclinou-se, numa tentativa de detectar um sopro de vida, mas recuou vivamente no mesmo instante.

— Pelo amor de Deus! — O que foi? Langdon quase sufocou. — Está morto. E acabo de ver a causa da morte. — O espectáculo

era horrível. A boca do homem fora aberta à força e enchida de terra. — Alguém lhe enfiou uma porção de terra pela boca abaixo. Morreu asfixiado.

— Terra? — perguntou Vittoria. — Como em... Terra} Foi então que Langdon percebeu. Terra. Tinha quase esquecido.

As marcas. Terra, Ar, Fogo, Agua. Earth, Air Fire, Water, na lingua pura. O assassino ameaçara marcar cada uma das suas vítimas com um dos quatro antigos elementos da ciência. O primeiro elemento era Terra. Do túmulo terreno de Santi. Entontecido pelos eflúvios, contornou o corpo. Ao fazê-lo, o simbologista que havia nele reafirmou bem alto o desafio arü'stico de criar o mítico ambigrama. Earth? Como? E no entanto, um instante mais tarde, ali estava, diante dele. Séculos de lenda Illuminata rodopiaram-lhe no cérebro. A marca gravada a fogo no peito do cardeal gotejava sangue. A carne calcinada estava negra. Ta lingua pura...

Langdon olhou para a marca e sentiu que a câmara começava a rodar.

— Earth — murmurou, inclinando a cabeça para ver o símbolo de pernas para o ar. — Terra.

Então, numa vaga de horror, apercebeu-se de uma última coisa. Havia mais três.

CAPITULO SESSENTA E OITO

Apesar do suave brilho das velas no interior da Capela Sistina, o cardeal Mortati estava tenso. O Conclave tinha oficialmente começado. E tinha começado da maneira menos auspiciosa possível.

Trinta minutos antes, à hora marcada, o camerlengo Cario Ventresca entrara na capela. Dirigira-se ao altar-mor e conduzira a prece de abertura. Então, abrira as mãos e falara à assembleia de cardeais no tom mais directo que Mortati alguma vez ouvira vindo do altar da Capela Sistina.

— Estais todos conscientes — dissera o camerlengo — de que os nossos quatro preferiti não se encontram, de momento, presentes no Conclave. Peço-vos, em nome de Sua falecida Santidade, que prossigais como deveis... com fé e determinação. Possais vós todos ter Deus presente diante dos olhos. — E voltara-se para sair.

— Mas — perguntara um dos cardeais —, onde estão eles? O camerlengo detivera-se. — Não posso, em consciência, dizê-lo. — Quando voltam? — Não posso, em consciência, dizê-lo. — Estão bem? — Não posso, em consciência, dizê-lo. — Vão voltar? Seguira-se uma longa pausa. — Tende fé — dissera o camerlengo. E saíra.

As portas da Capela Sistina tinham sido seladas, como era de tradição, com duas pesadas correntes, pelo lado de fora. Quatro guardas suíços faziam sentinela no exterior. Mortati sabia que a única maneira de aquelas portas poderem ser abertas, até que fosse eleito um novo

ANJOS E DEMÓNIOS 299

Papa, seria algum dos que ali estavam se sentir mortalmente doente, ou a chegada dos quatro preferiíi. Pedira a Deus que fosse pela segunda razão, mas o nó que se lhe formara no estômago dizia-lhe que não tinha verdadeiramente grande esperança de que isso acontecesse.

Prossigamos como devemos, pensara, inspirando-se na determinação que sentira na voz do camerlengo. Chamara, pois, os cardeais a votar. Que outra coisa podia fazer?

Completar os rituais preparatórios para a primeira votação ocupa-ra-lhes meia hora. Mortati aguardara pacientemente, junto do altar-mor, que cada um dos cardeais, por ordem de antiguidade, se aproximasse e observasse os procedimentos específicos da votação.

Agora, finalmente, o último cardeal chegara junto do altar e estava ajoelhado diante dele.

— Chamo como minha testemunha — declarou o cardeal, exactamente como os que o tinham precedido —Jesus Cristo Nosso Senhor, que será juiz de que o meu voto é dado àquele que, perante Deus, julgo dever ser o escolhido.

O cardeal pôs-se de pé. Ergueu o voto bem acima da cabeça, para que todos pudessem vê-lo. Baixou então a mão para o altar, em cima do qual estava um grande cálice tapado por uma patena. Depositou o voto na patena. Em seguida, pegou na patena e usou-a para fazer deslizar o voto para dentro do cálice. O uso da patena visava assegurar que ninguém deixava secretamente cair mais do que um voto.

Depois de ter votado, o cardeal voltou a colocar a patena em cima do cálice, inclinou-se diante da cruz e regressou ao seu lugar.

O último voto fora emitido. Era agora a vez de Mortati fazer o seu trabalho. Sem retirar a patena, agitou o cálice, para misturar os votos. Levan

tou então a patena e tirou um voto ao acaso. Desdobrou-o. O papel tinha exactamente cinco centímetros de largura. Leu em voz alta, para que todos ouvissem.

— Enligo in summumpontíficem... — recitou, lendo o texto impresso na parte superior de todos os votos. Elejo como Sumo Pontífice... E anunciou o nome escrito por baixo. Depois de 1er o nome, pegou numa agulha com linha e furou o papel na palavra Eligo, fazendo-o deslizar cuidadosamente ao longo da linha. Em seguida, anotou o voto num livro de registo.

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Feito isto, repetiu todo o procedimento. Tirou um voto do cálice, leu-o em voz alta, enfiou o papel na linha e anotou o nome no livro. Quase no mesmo instante, teve o pressentimento de que a primeira votação ia falhar. Não havia consenso. Ao cabo de apenas sete votos emitidos, havia já sete cardeais nomeados. Como era norma, a caligrafia usada em cada voto fora disfarçada pelo uso de letra de imprensa ou de complexos floreados. O artifício era, naquele caso, inútil e irónico, porque os cardeais estavam obviamente a votar em si mesmos. Esta aparente presunção, Mortati bem o sabia, nada tinha a ver com ambição egoísta. Era um padrão de espera. Uma manobra defensiva. Uma táctica dilatória destinada a garantir que nenhum cardeal obteria os votos suficientes para ganhar... e a forçar nova votação.

Os cardeais estavam à espera dos seus prefend...

Depois de o último voto ter sido contado, Mortati declarou a votação «falhada».

Pegou na linha com todos os votos e atou as pontas, para formar uma argola. Pousou então a argola de papéis numa salva de prata. Adicionou os produtos químicos adequados e levou a salva até uma pequena fornalha situada atrás dele. Despejou nela o aro de votos e pegou-lhe fogo. Ao arderem, os produtos químicos que adicionara criaram fumo preto. O fumo subiu por um tubo até um orifício no telhado, erguen-do-se acima da capela para que todos pudessem ver. O cardeal Mortati acabava de enviar a sua primeira comunicação para o mundo exterior.

Uma votação. Nenhum Papa.

CAPITULO SESSENTA E NOVE

Quase asfixiado pelos fumos, Langdon subiu penosamente a escada em direcção à luz e ao exterior da fossa. Ouvia vozes lá em cima, mas nada fazia sentido. Tinha o cérebro cheio da imagem do cardeal marcado a fogo.

Earth... Terra... A medida que subia, sentia a visão estreitar-se e receou perder os

sentidos. A dois degraus do topo, deseqtûlibrou-se. Esticou-se para cima, numa tentativa de alcançar a beira do poço, mas estava demasiado longe. Largou a escada e quase mergulhou de costas na escuridão. Sentiu uma dor aguda debaixo dos braços e subitamente estava a subir, agitando desesperadamente as pernas sobre o abismo.

As mãos fortes de dois guardas suíços agarraram-no pelas axilas e puxaram-no. Um instante mais tarde, a cabeça dele emergiu do buraco do diabo, a tossir, com a boca muito aberta no esforço de encher os pulmões de ar. Os guardas arrastaram-no para fora e pousaram-no, estendido de costas, no mármore frio do chão.

Por um momento, não soube muito bem onde estava. Via estrelas... planetas. Figuras difusas passavam por ele a correr. Havia pessoas a gritar. Tentou sentar-se. Estava deitado junto à base de uma pirâmide de pedra. A chicotada familiar de uma língua furiosa ecoou dentro da capela, e então soube.

Olivetti estava a gritar com Vittoria. — Por que diabo não perceberam logo da primeira vez? Vittoria tentava explicar a situação. Olivetti interrompeu-a a meio da frase e voltou-se para gritar or

dens aos seus homens: — Tirem esse corpo daí! Revistem o resto do edifício! Langdon continuava a tentar sentar-se.

302 DAN BROWN

A Capela Chigi estava apinhada de guardas suíços. A cortina de plástico que tapava a entrada fora arrancada e o ar fresco inundou-lhe os pulmões. Enquanto recuperava lentamente os sentidos, viu Vittoria aproximar-se. Ajoelhou-se ao lado dele, e o rosto dela era como o de um anjo.

— Está bem? — Vittoria pegou-lhe no braço e começou a procu-rar-lhe o pulso. Tinha umas mãos tão, tão macias...

— Obrigado. — Langdon conseguiu finalmente sentar-se. — O Olivetti está furioso.

Vittoria assentiu. — E com razão. Estragámos tudo. — Eu estraguei tudo, quer dizer. — Nesse caso, redima-se. Apanhe-o da próxima vez. Próxima vet(^ Langdon achou o comentário cruel. Vittoria consultou o relógio dele. — O Mickey diz que temos quarenta minutos. Trate de arrumar

a cabeça e ajude-me a encontrar o próximo marcador. — Já lhe disse, Vittoria, as esculturas desapareceram. O caminho

da Iluminação... — calou-se. Vittoria sorriu-lhe docemente. De súbito, Langdon estava de pé, cambaleante. Começou a rodar

sobre si mesmo, a estudar as obras de arte que o rodeavam. Pirâmides, estrelas, planetas, elipses. Então, sem aviso, recordou tudo. É este o primeiro altar de áênáa! Não o Panteão! Apercebeu-se então de como a capela era perfeitamente Wuminata, muito mais subtil e selectiva do que o mundialmente famoso Panteão. A Capela Chigi era uma alcova discreta, literalmente um buraco na parede, um tributo a um grande patrono das ciências, decorado com simbologia terrena. Perfeito.

Apoiou as costas à parede e olhou para as enormes pirâmides. Vittoria tinha toda a razão. Se aquela capela era o primeiro altar de ciência, era possível que ainda contivesse a escultura Illuminata que servia de primeiro marcador. Sentiu uma electrizante vaga de esperança ao aperceber-se de que ainda havia uma hipótese. Se o marcador ainda ali estivesse, e se conseguissem segui-lo até ao próximo altar de ciência, podiam ter outra oportunidade de apanhar o assassino.

Vittoria aproximou-se dele. — Descobri quem foi o escultor llluminatus desconhecido.

ANJOS E DEMÓNIOS 303

Langdon voltou vivamente a cabeça. — Descobriu o quê? — Agora só precisamos de descobrir qual destas esculturas é o... — Espere um pouco! Sabe quem foi o escultor Illuminatus? — Ti

nha passado anos a tentar desenterrar aquela informação. Vittoria sorriu. — Foi Bernini. — Fez uma pausa. — O Bernini. Langdon soube imediatamente que ela estava enganada. Bernini

era uma impossibilidade. Gianlorenzo Bernini era o segundo escultor mais famoso de todos os tempos, ofuscado apenas pelo fulgor de Miguel Angelo. Durante o século XVII, Bernini criara mais esculturas do que qualquer outro artista. Infelizmente, o homem que procuravam era supostamente um desconhecido, um zé-ninguém.

Vittoria franziu a testa. — Não parece muito excitado. — Bernini é impossível. — Porquê? Foi contemporâneo de Galileu. E era um escultor bri

lhante. — Era um homem mmto famoso. E um católico. — Sim. Exactamente como Galileu. — Não — argumentou ele. — Nada como Galileu. Galileu era um

espinho cravado na carne do Vaticano. Bernini era o ai-Jesus do Papa. A Igreja adorava Bernini. Foi escolhido como autoridade artística máxima do Vaticano. Viveu praticamente toda a sua vida na Cidade do Vaticano!

— O disfarce perfeito. Infiltração llluminata. Langdon já não sabia o que dizer. — Vittoria, os llluminati referiam-se ao seu artista secreto como il

maestro ignoto... o mestre desconhecido. — Sim, desconhecido para eles. Lembre-se do secretismo dos Ma

çons... só os membros do escalão superior sabiam toda a verdade. É possível que Galileu tenha ocultado a verdadeira identidade de Bernini à maior parte dos membros da Irmandade... até para garantir a segurança do próprio Bernini. Desse modo, o Vaticano nunca conseguiria descobrir.

Langdon não estava convencido, mas tinha de admitir que a lógica de Vittoria acabava por fazer um estranho sentido. Os llluminati eram

304 DAN BROWN

famosos por compartimentarem as suas informações secretas, revelando a verdade exclusivamente aos escalões mais elevados. Era a pedra angular da sua capacidade de se manterem secretos... muito poucos sabiam a história toda.

— E a filiação de Bernini nos llluminati— continuou Vittoria, com um sorriso —, explica a razão por que ele desenhou estas duas pirâmides.

Langdon voltou-se para as duas pirâmides esculpidas e abanou a cabeça.

— Bernini era um escultor religioso. Nunca teria esculpido essas pirâmides.

Vittoria encolheu os ombros. — Diga isso à placa que está atrás de si. Langdon voltou-se para a placa:

ARTE DA CAPELA CHIGI

Embora a arquitectura seja de Rafael,

todos os ornamentos interiores são de Gianlorem^o Bernini.

Leu aquilo duas vezes, mas nem mesmo assim se convenceu. Gianlo-renzo Bernini era célebre pelas suas intricadas esculturas da Virgem Maria, de anjos, de profetas, de Papas. Porque haveria de c?,aA^kpirâmides?

Olhou para os altos monumentos e sentiu-se completamente desorientado. Duas pirâmides, cada uma delas com um refulgente medalhão elíptico. Eram o menos cristão que uma escultura poderia ser. As pirâmides, as estrelas, os símbolos do Zodíaco. Todos os ornamentos interiores são de Gianloren:^ Bernini. Se aquilo era verdade, compreen

deu Langdon, significava que Vittoria devia ter razão. E que Bernini era de facto o mestre desconhecido dos llluminati; não havia trabalho de nenhum outro artista naquela capela! As implicações chegaram quase demasiado rápidas para que Langdon conseguisse processá-las.

Bernini era um Illuminatus. Bernini desenhou os ambigramas llluminati.

Bernini traçou o Caminho da Iluminação.

Langdon estava quase sem fala. Seria possível que, naquela pequena capela, o famosíssimo Bernini tivesse colocado uma escultura que apontava, através de Roma, na direcção do próximo altar de ciência?

— Bernini — murmurou. — Nunca me teria passado pela cabeça.

ANJOS E DEMÓNIOS 305

— Quem senão o celebérrimo artista do Vaticano teria poder suficiente para colocar obras suas em capelas específicas espalhadas por Roma e criar o Caminho da Iluminação? Certamente não um desconhecido.

Langdon pensou nisto. Examinou as pirâmides, perguntando a si mesmo se uma delas poderia ser o marcador. Talve^ ambas'?

— As pirâmides estão voltadas em direcções opostas — disse, sem saber muito bem o que deduzir do facto. — São iguais, de modo que não sei qual...

— Não creio que as pirâmides sejam o que procuramos. — Mas são as únicas esculturas que aqui estão. Vittoria interrompeu-o apontando para o lugar, perto da abertura

do buraco do diabo, onde Olivetti e alguns dos seus guardas se tinham reunido.

Langdon seguiu a linha da mão dela até à parede oposta. De início, não viu nada. Então, alguém se mexeu e ele teve um vislumbre. Mármore branco. Um braço. Um tronco. E, de súbito, um rosto esculpido. Parcialmente escondido no seu nicho. Duas figuras humanas em tamanho natural entrelaçadas. Langdon sentiu o pvilso acelerar. Estivera tão obcecado pelas pirâmides e pelo buraco do diabo que nem sequer vira aquela escultura. Atravessou a capela, passando pelo meio do grupo. Quando se aproximou, reconheceu o trabalho como puro Bernini — a intensidade da composição artística, os rostos intricados e as roupagens drapej antes, tudo no mais puro mármore branco que o dinheiro do Vaticano podia comprar. Só quando estava quase mesmo em frente dela reconheceu a escultura propriamente dita. Ficou a olhar para os dois rostos e teve uma inspiração curta e seca.

— Quem são? — perguntou Vittoria, que se aproximara por detrás dele.

Langdon estava estupefacto. — Hahacuc e o Anjo — disse, numa voz quase inaudível. A peça era

uma obra de Bernini relativamente bem conhecida, referenciada em alguns textos de História da Arte. Esquecera-se de todo que se encontrava ali.

— Habacuc? — Sim. O profeta que previu a aniquilação da Terra. — Acha que pode ser o marcador? — Vittoria parecia perturbada.

306 DAN BROWN

Langdon assentiu, espantado. Nunca em toda a sua vida tivera tanto a certeza de uma coisa. Estavam perante o primeiro marcador lllu-minatus. Sem a mínima dúvida. Apesar de estar completamente à espera de que a escultura apontasse de um modo ou de outro para o marcador seguinte, não contara que fosse tão literal. Tanto o anjo como Habacuc tinham os braços estendidos e apontavam para a distância.

De repente, Langdon deu por si a sorrir. — Não é particularmente subtil, pois não? Vittoria parecia excitada, mas confusa. — Vejo-os a apontar, mas contradizem-se um ao outro. O anjo

aponta numa direcção, e o profeta na direcção oposta. Langdon riu-se. Era verdade. Embora as duas figuras apontassem

para a distância, apontavam em direcções perfeitamente opostas. Mas ele já resolvera o problema. Com uma explosão de energia, dirigiu-se para a porta.

— Aonde vai? — perguntou Vittoria. — Sair do edifício! — Langdon parecia ter recuperado completa

mente. — Preciso de ver em que direcção essa escviltura está a apontar! — Espere! Como é que sabe que dedo seguir? — O poema — gritou ele, por cima do ombro. — A última linha! — «Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada»? — Vittoria

olhou para o braço estendido do anjo. Inesperadamente, os olhos dela humedeceram-se. — Macacos me mordam!

CAPITULO SETENTA

Günther GHck e Chinita Macri estavam sentados dentro da carrinha da BBC estacionada nas sombras do lado oposto da Piazza del Popólo. Tinham chegado pouco depois dos quatro Alfa, mesmo a tempo de testemunhar uma incrível cadeia de acontecimentos. Chinita não fazia a mínima ideia do que tudo aquilo significava, mas certificou-se de que a câmara estava a gravar.

Assim que chegaram, viram um autêntico exército de homens muito jovens saltar dos carros e cercar a igreja. Alguns empunhavam armas. Um deles, mais velho e de movimentos rígidos, subira à frente de uma equipa a escadaria do templo. Os soldados puxaram de armas e rebentaram a tiro a fechadura das portas principais. Macri não ouvira qualquer detonação, deduzindo que estavam a usar silenciadores. Então, os soldados entraram.

Chinita recomendara que se deixassem ficar ali sentados, a filmar das sombras. Ao fim e ao cabo, armas eram armas, e da carrinha tinham uma excelente linha de visão. Glick não discutira. Agora, do outro lado da praça, havia homens a entrar e a sair da igreja. Gritavam uns com os outros. Chinita ajustou a câmara para seguir um grupo que revistava a área circundante. Todos eles, apesar de vestirem roupas civis, pareciam mover-se com uma precisão militar.

— Quem achas que são? — perguntou ela. — Raios me partam se sei. — Glick parecia hipnotizado. — Estás

a apanhar mdo? — E mais alguma coisa. — Continuas a achar que devíamos voltar para a «vigília papal»? — es

picaçou ele, com o ar de quem estava muito satisfeito consigo mesmo. Chinita não sabia bem o que responder. Estava obviamente a acon

tecer qualquer coisa, mas ela já tinha anos de jornalismo mais do que

308 DAN BROWN

suficientes para saber que havia muitas vezes uma explicação perfeitamente banal para acontecimentos excitantes.

— Isto pode não ser nada — disse. — Talvez esses tipos tenham recebido a mesma dica que tu e estejam só a investigar. Pode ser um falso alarme.

Glick agarrou-lhe um braço, apontando para a igreja. — Ali! Foca! Chinita voltou a apontar a câmara para o alto da escadaria. — Olá — disse entredentes, acompanhando com a objectiva o ho

mem que acabava de sair. — Quem é o fulano? Chinita accionou o í^om para um grande plano. — Nunca o vi. — Enquadrou a cara do homem e sorriu. •— Mas

não me importava de voltar a vê-lo.

Robert Langdon desceu a correr os degraus da igreja e foi colocar--se no meio da praça. Estava a ficar escuro, com um poente primaveril tardio a incendiar o céu de Roma. O Sol já desaparecera atrás das casas circundantes, projectando longas sombras no empedrado do largo.

— Okay, Bernini — disse em voz alta para si mesmo. — Para onde diabo está o teu anjo a apontar?

Olhou para trás e verificou a orientação da igreja de onde acabava de sair. Imaginou a Capela Chigi lá dentro, e a estáma do anjo dentro da capela. Sem hesitação, voltou-se para oeste, enfrentando a luz carminada do Sol poente. O tempo evaporava-se.

— Sudoeste — disse, franzindo o sobrolho às lojas e casas que lhe bloqueavam a visão. — O próximo marcador está para aquele lado.

Forçando o cérebro, imaginou-se a folhear páginas de história de arte italiana. Apesar de relativamente bem familiarizado com a obra de Bernini, sabia que o escultor fora de longe demasiado proh'fico para que qualquer não-especialista a conhecesse toda. Mesmo assim, considerando a relativa fama do primeiro marcador — Habacuc e o Anjo — esperava que o segundo fosse uma peça que pudesse conhecer de memória.

Terra, Ar, Fogo, Agua, pensou. Terra tinham encontrado, dentro da capela da Terra. Habacuc, o profeta que previra a aniquilação da Terra.

ANJOS E DEMÓNIOS 309

A seguir vem o A.r. Langdon exortou-se a pensar. Uma escultura de Bernini que tenha alguma coisa a ver com o Ari Não se lembrava de nenhuma. Mesmo assim, sentia-se cheio de energia. Ustou no Caminho da Iluminação! Continua intacto!

Voltado para sudoeste, esforçava-se por ver uma agulha ou uma torre de catedral a erguer-se acima dos obstáculos. Não viu nada. Precisava de um mapa. Se conseguissem descobrir que igrejas ficavam a sudoeste daH, talvez uma delas fizesse faísca, despertasse uma recordação. Ar, insistiu. Ar. Bernini Escultura. Ar. Pensa!

Fez meia voltou e regressou à escadaria da catedral. Olivetti e Vit-toria juntaram-se-lhe debaixo dos andaimes.

— Sudoeste — disse Langdon, ofegante. — A próxima igreja fica a sudoeste daqui.

O murmúrio de Olivetti foi gelado. — Desta vez tem a certeza? Langdon não mordeu o isco. — Precisamos de um mapa. Um que mostre todas as igrejas de

Roma. O comandante estudou-o por instantes, sem que a sua expressão

se alterasse. Langdon consultou o relógio. — Só temos meia hora. Olivetti passou por ele e desceu os degraus até ao carro estaciona

do mesmo em frente da catedral. Langdon ficou na esperança de que tivesse ido buscar um mapa.

— O anjo aponta para sudoeste? — perguntou Vittoria, excitada. -— Faz alguma ideia de que igrejas ficam para esse lado?

— Não consigo ver para lá das malditas casas. — Langdon voltou--se de novo para a praça. — E não conheço as igrejas de Roma sufi-cien... — Calou-se.

— O que foi? — sobressaltou-se Vittoria. Langdon voltou a olhar para a praça. Tendo subido a escadaria da

igreja, estava agora numa posição mais elevada, e a visão dali alcançava mais longe. Continuava a não conseguir ver fosse o que fosse, mas compreendeu que tinha dado um passo na direcção certa. Ergueu os olhos para os andaimes que cingiam a fachada da igreja. Tinham uma altura de cerca de seis andares, chegando quase até ao rebordo superior

310 DAN BROWN

da rosácea, muito acima de qualquer outro edifício da praça. Soube num instante o que tinha de fazer.

Do outro lado da praça, Chinita Macri e Günther Glick estavam colados ao pára-brisas da carrinha da BBC.

— Estás a apanhar isto? — perguntou Günther. Macri fechou o plano do homem que trepava pelos andaimes. — Está um pouco bem-vestido de mais para andar a brincar ao

Homem Aranha, se queres que te diga. — E quem é a senhora Aranha? Chinita lançou um olhar à bonita mulher que continuava junto

à base do andaime. — Aposto que bem gostarias de saber. — Achas que deva ligar para a redacção? — Ainda não. Observemos. É melhor ter qualquer coisa na manga

antes de admitirmos que abandonámos o Conclave. — Achas que alguém matou mesmo um dos velhadas ali dentro? Chinita riu-se. — Vais mesmo para o inferno. — Pois vou, mas levo o PuHtzer comigo.

CAPITULO SETENTA E UM

Quanto mais Langdon subia, menos estável lhe parecia o andaime. A sua vista de Roma, em contrapartida, melhorava a cada passo. Continuou para cima.

Estava a respirar mais ofegantemente do que esperara quando chegou ao fim. Içou-se para a última plataforma, sacudiu o gesso das roupas e pôs-se de pé. A altura não o incomodava minimamente. Achava--a, até, revigorante.

A vista era de cortar a respiração. Como um mar de fogo, os telhados vermelhos de Roma estendiam-se à sua frente, a refulgir à luz escarlate do poente. Daquele lugar, pela primeira vez na sua vida, Lang-don olhou para lá da poluição e do trânsito e viu as antigas raízes de Roma, Città di Dio. A Cidade de Deus.

Semicerrando os olhos, procurou naquele oceano de telhados um coruchéu de igreja ou uma torre sineira. Mas, à medida que alongava o olhar cada vez mais para o horizonte, nada via. Hâ centenas de igrejas em Koma, pensou. Tem de haver uma a sudoeste daqui! Se é que é visível, recordou a si mesmo. Kaios, se é que ainda está de pé!

Voltou a tentar, forçando os olhos a seguir mais lentamente a Unha. Sabia, evidentemente, que nem todas as igrejas teriam coruchéus visíveis, sobretudo os pequenos santuários, pouco conhecidos. Isto para não falar das grandes mudanças que a cidade sofrera desde o século XVII, quando as igrejas eram, por lei, os edifícios mais altos autorizados. Agora, para onde quer que olhasse, via blocos de apartamentos, arranha-céus e retransmissores de TV.

Pela segunda vez, o olhar de Langdon chegou ao horizonte sem ter visto fosse o que fosse. Nem uma única torre de igreja. Ao longe, no limite da cidade, a cúpula maciça de Miguel Angelo tapava o Sol poente. A Basílica de São Pedro. A Cidade do Vaticano. Langdon deu por

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si a interrogar-se sobre o que estariam os cardeais a fazer, e se a busca dos guardas suíços teria descoberto a antimatéria. Algo lhe dizia que não descobrira... nem ia descobrir.

O poema estava outra vez a agitar-se-lhe na cabeça. Considerou-o cuidadosamente, linha a linha. Do túmulo terreno de Santi com o buraco do diabo. Tinham encontrado o túmulo de Santi. Por Roma os místicos elementos estão espalhados. Os elementos místicos eram a Terra, o Ar, o Fogo e a Água. O caminho de lu^i está traçado, aprova sagrada. O Caminho da Iluminação, formado pelas esculturas de Bernini. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada.

O anjo apontava para sudoeste...

— Escadaria dianteira! — exclamou Glick, apontando freneticamente através do pára-brisas da carrinha. — Está a acontecer qualquer coisa!

Macri voltou a objectiva para a porta principal. Estava definitivamente a acontecer qualquer coisa. Ao fundo da escadaria, o homem de ar marcial levara um dos Alfa para junto dos degraus e abrira a bagageira. Estava agora a examinar a praça, como que à procura de espectadores. Por um momento, Macri julgou que os tinha visto, mas os olhos do homem continuaram a sua inspecção. Aparentemente satisfeito, pegou num rádio e disse qualquer coisa.

Quase no mesmo instante, emergiu da igreja o que parecia ser um exército. Como uma equipa de futebol americano a preparar um lançamento, os soldados formaram uma linha no primeiro degrau. Então, movendo-se como uma parede humana, começaram a descer. Atrás deles, quase completamente escondidos, quatro homens transportavam qualquer coisa. Qualquer coisa pesada. Flácida.

GHck inclinou-se para a frente. — Estarão a roubar alguma coisa da igreja? Chinita fechou ainda mais o plano, usando a teleobjectiva para per

correr a linha de corpos, em busca de uma abertora. Uma fracção de segundo, pediu. Só uma imagem. Não predso de mais. Mas os homens mo-viam-se como um só. Vá lá! Macri não os largou, e foi recompensada. Quando os soldados tentaram levantar o objecto para o enfiar na bagageira, conseguiu ter uma abertura. Ironicamente, foi o homem mais

ANJOS E DEMÓNIOS 313

velho que falhou. Apenas um instante, mas foi o suficiente. Macri tinha o seu fotograma. Na realidade, seriam mais uns dez fotogramas.

— Liga para a redacção — disse a Glick. — Temos um cadáver.

Muito longe dali, no CERN, Maximilian Kohler conduziu a sua cadeira de rodas até ao gabinete de Leonardo Vetra. Com uma eficiência mecânica, começou a revistar os arquivos do cientista assassinado. Não encontrando o que procurava, passou para o quarto de dormir. A gaveta superior da mesa-de-cabeceira estava fechada à chave. Köhler arrombou-a com uma faca de cozinha.

Lá dentro, encontrou exactamente o que procurava.

CAPITULO SETENTA E DOIS

Langdon desceu do andaime e saltou para o chão. Sacudiu o pó das roupas. Vittoria estava lá para o receber.

— Não teve sorte? — perguntou. Ele abanou a cabeça. — Já meteram o cardeal na bagageira. Olharam para o carro estacionado. Olivetti e um grupo dos seus

homens estudavam um mapa aberto em cima da capota. — Estão a procurar para sudoeste? Vittoria assentiu. — Nem uma igreja. Nessa direcção, a primeira é São Pedro. Langdon resmungou. Pelo menos, estavam os dois de acordo. Avan

çou para Olivetti. Os soldados abriram alas para o deixar passar. Olivetti ergueu os olhos. — Nada. Mas este mapa não mostra todas as igrejas. Só as maiores.

Cerca de cinquenta. — Onde estamos agora? Olivetti apontou a Piazza del Popólo e traçou uma linha recta em

direcção a sudoeste. A linha falhava, por uma larga margem, a aglomeração de quadrados negros que indicavam as principais igrejas de Roma. Infelizmente, as principais igrejas de Roma eram também as mais antigas... as que já existiriam no século XVII.

— Tenho algumas decisões a tomar — disse Olivetti. — Tem a certeza da direcção?

Langdon recordou o dedo esticado do anjo, sentindo a urgência voltar a crescer-lhe no peito.

— Sim. Absoluta. Olivetti encolheu os ombros e voltou a traçar a Unha recta. Inter

ceptava a ponte Margherita, a Via Cola di Riezo e atravessava a Piazza

ANJOS E DEMÓNIOS 315

del Risorgimento, sem encontrar uma única igreja até terminar bruscamente no meio da Praça de São Pedro.

— Então e São Pedro? — disse um dos soldados. Tinha uma profunda cicatriz por baixo do olho esquerdo. — É uma igreja.

Langdon abanou a cabeça. — Tem de ser um lugar público. São Pedro não me parece assim

muito público, de momento. — Mas a linha atravessa a Praça de São Pedro — interveio Vittoria,

espreitando por cima do ombro de Langdon. — A praça é pública. Langdon já tinha pensado nisso. — Mas não tem estarnas. — Não há um monóHto, mesmo no meio? Vittoria tinha razão. Havia um monolito egípcio na Praça de São

Pedro. Langdon olhou para o monólito na praça diante deles. A alta pirâmide. Uma estranha coinddênría, pensou. Afastou a ideia.

— O monólito de São Pedro não é de Bernini. Foi trazido por Calígula. E não tem nada a ver com Ar. — E havia ainda outro problema. — Além disso, o poema diz que os elementos estão espalhados por Koma. A Praça de São Pedro fica na Cidade do Vaticano, não em Roma.

— Depende das opiniões — disse o mesmo guarda. Langdon olhou para ele. — Como? — Sempre foi um ponto controverso. A maior parte dos mapas

mostra a Praça de São Pedro como fazendo parte da Cidade do Vaticano, mas, uma vez que ñca. fora da cidadela murada, há séculos que as autoridades romanas reclamam que pertence a Roma.

— Está a brincar — disse Langdon. Nunca ouvira falar daqtiilo. — Só mencionei isto — continuou o homem —, porque o coman

dante Olivetti e a doutora Vetra estavam a perguntar por uma escultura que tivesse qualquer coisa a ver com Ar.

Langdon estava de olhos esbugalhados. — E conhece alguma na Praça de São Pedro? — Não exactamente. E nem sequer é uma verdadeira escultura. Se

calhar não é relevante. — Vamos lá ouvir — disse Olivetti.

316 DAN BROWN

O guarda encolheu os ombros. — Só sei disto porque faço geralmente serviço na praça. Conheço

todos os recantos daquele lugar. — A escultura! — pressionou Langdon. — Como é? — Começa

va a perguntar a si mesmo se os llluminati teriam tido o descaramento de colocar o seu segundo marcador mesmo à porta da Basílica de São Pedro.

— PatruÜio-a todos os dias — continuou o guarda. — Fica mesmo no centro, para onde essa linha aponta. Foi o que me fez pensar nela. Como disse, não é verdadeiramente uma escultura. É mais assim um... um bloco.

— Um bloco? — Olivetti parecia furioso. — Sim, meu comandante, um bloco de mármore embebido no

chão da praça. Junto à base do monolito. Só que o bloco não é um rectângulo, é uma elipse. E tem gravada a imagem de uma cara com as bochechas inchadas, a soprar. — Fez uma pausa. — Ar, suponho, se quisermos ser científicos.

Langdon estava a olhar para o jovem soldado, estupefacto. — Um relevo! — exclamou, finalmente. Todas as cabeças se voltaram para ele. — O relevo — explicou Langdon — é a outra metade da escultura!

— A escultura é a arte de formar figuras em redondo e também em relevo. Escre

vera a definição em dezenas de quadros, ao longo de anos. Os relevos eram, essencialmente, esculturas a duas dimensões, como a efígie de Abraham Lincoln nas moedas de cêntimo. Os medalhões de Bernini na Capela Chigi eram outro exemplo perfeito.

— Bassorelievo? — perguntou o guarda, usando um termo de arte italiano.

— Sim! Baixo-relevo! — Langdon bateu com os nós dos dedos na capota do carro. — Não estava a pensar nesses termos! Essa laje de que está a falar na Praça de São Pedro chama-se o Vento Ponente... o Vento de Oeste. É também conhecida como Respiro di Dio.

— O sopro de Deus? — Sim! Ar! E foi esculpida e posta naquele lugar pelo arquitecto

original! Vittoria fez uma expressão confusa.

ANJOS E DEMONIOS 317

— Mas eu pensava que a Praça de São Pedro tinha sido traçada por Miguel Angelo.

— Sim, a Basílica!— exclamou Langdon, com uma nota de triunfo na voz. — Mas a praça foi desenhada por Bernini!

Quando a caravana de Alfa Romeos saiu a alta velocidade da YÍUZZÍL

dei Popólo, estava toda a gente demasiado apressada para reparar na carrinha da BBC que arrancou logo atrás.

CAPITULO SETENTA E TRES

Günther GMck carregop a fundo no acelerador da carrinha de exteriores da BBC e serpenteou pelo meio do trânsito, tentando seguir os quatro Alfa que atravessavam o Tibre a toda a velocidade pela ponte Margherita. Em condições normais, Glick ter-se-ia esforçado por manter uma distância inconspícua, mas naquela circunstância estava a ter dificuldade em não os perder de vista. Aqueles tipos voavam.

Macri ia sentada na sua área de trabalho, nas traseiras da carrinha, a terminar a chamada para Londres. Desligou e gritou a Glick, para se fazer ouvir acima do ruído do tráfego.

— Queres as boas notícias, ou as más notícias? Glick franziu a testa. Nunca nada era fácil nos contactos com

a base. — As más notícias. — A redacção está furiosa por termos abandonado o nosso posto. — Surpresa. — Também acham que o teu informador é uma fraude. — Claro. — E o chefe acaba de avisar-me de que estás assim a esta distância

de levar uma chazada. Glick fez uma careta. — E as boas notícias? — Querem dar uma vista de olhos às imagens que gravámos. A careta de Glick dissolveu-se num sorriso. ]á vamos ver quem é que

está assim a esta distância de levar uma chagada.

— De que é que estás à espera? Envia-as. — Não posso transmitir enquanto não pararmos e obtivermos uma

leitura fixa do satélite. Glick acelerou como uma bala pela Via Cola di Rienzo.

ANJOS E DEMÓNIOS 319

— Não posso parar agora — disse, seguindo os Alfa, que contornavam a Piazza del Risorgimento. Nas traseiras, Macri agarrou-se ao computador, enquanto tudo o mais deslizava.

— Parte o meu transmissor — avisou —, e vamos ter de levar a fita até Londres a pé.

— Aguenta-te aí atrás, querida. Qualquer coisa me diz que estamos quase a chegar.

Macri ergueu a cabeça. — A chegar onde? Glick olhou para a familiar cúpula que surgia agora à frente deles.

Sorriu. — Ao lugar de onde partimos.

Os quatro Alfa Romeos escapuHam-se habilmente por entre o tráfego que rodeava a Praça de São Pedro. Separaram-se e distribuíram-se ao longo do perímetro da praça, deixando discretamente homens em pontos escolhidos. Os guardas misturaram-se com a multidão de turistas e carrinhas dos media e tornaram-se instantaneamente invisíveis. Alguns internaram-se na floresta de pilares da colunata. Também eles pareceram desvanecer-se no meio que os rodeava. Observando a cena através do pára-brisas do Alfa, Langdon teve a sensação de um nó a apertar-se à volta de São Pedro.

Além dos homens que tinha consigo, Olivetti contactara o Vaticano e enviara outros guardas à civil para o centro da praça, onde se situava o Vento Ponente de Bernini. Enquanto observava o vasto espaço aberto, Langdon sentiu uma pergunta familiar espicaçar-lhe o espírito. Como planeia o assassino Illuminatus safar-se com uma destas? Como é que vai

fa^er passar um cardeal pelo meio de toda aquela gente e matá-lo à vista de todos?

Consultou o relógio Rato Mickey. Eram 8.54. Seis minutos

No banco da frente, Olivetti voltou-se para ele e para Vittoria. — Quero-os aos dois mesmo em cima daquele tijolo, ou bloco, ou

lá que diabo é, de Bernini. Mesmo esquema. São turistas. Usem o telefone se virem alguma coisa.

Antes que Langdon pudesse responder, Vittoria pegara-lhe na mão e estava a puxá-lo para fora do carro.

320 DAN BROWN

O Sol primiaveril punha-se atrás da Basílica, projectando uma sombra enorme que englobava a praça. Langdon sentiu um arrepio premonitório enquanto entrava com Vittoria na zona mais fresca da penumbra. Serpenteando pelo meio da multidão, deu por si a examinar os rostos das pessoas com que se cruzava, interrogando-se se o assassino estaria entre elas. Sentia a mão de Vittoria agradavelmente quente na mão dele.

Ao atravessar a imensidão da Praça de São Pedro, sentiu o lugar exercer nele o efeito exacto que fora pedido ao artista que criasse: «tornar hurmldes todos os que nela entrarem». Quanto a ele, sentia-se sem a mínima dúvida humilde. Humilde e com fome, apercebeu-se, surpreendido por um pensamento tão mundano ter podido entrar-lhe na cabeça num momento como aquele.

— Para o obelisco? — perguntou Vittoria. Langdon assentiu, inflectindo para a esquerda através da praça. — Horas? — disse Vittoria, caminhando rapidamente mas com um

ar descontraído. Cinco para as nove. Vittoria não disse nada, mas Langdon sentiu a mão dela apertar

a sua com mais força. Continuava a levar a arma no bolso do casaco. Esperou que Vittoria não decidisse que precisava de a usar. Não estava a vê-la a sacar uma arma em plena Praça de São Pedro e estourar a cabeça de um assassino qualquer sob os olhares dos media mundiais. No entanto, pensando bem, o que seria um incidente desse tipo comparado com a marcação com um ferro em brasa e o assassínio de um cardeal?

Ar, pensou Langdon. O segundo elemento da áênáa. Tentou imaginar a marca. O método do assassínio. Examinou mais uma vez a vasta extensão de granito que tinha debaixo dos pés, a Praça de São Pedro, um deserto aberto rodeado por guardas suíços. Se o assassino tentasse realmente fazer aquilo, não estava a ver como conseguiria escapar.

No centro da praça, erguia-se o obelisco de Calígula. Trezentas e cinquenta toneladas de pedra, vinte quatro metros até ao ápice piramidal, no qual fora afixada uma cruz de ferro oca. Colocada suficientemente alto para captar os últimos raios do Sol poente, a cruz bruhava como se fosse mágica... contendo alegadamente ReKquias do madeiro em que Cristo fora crucificado.

ANJOS E DEMÓNIOS 321

Duas fontes flanqueavam o obelisco em perfeita simetria. Os historiadores de arte sabiam que aquelas fontes marcavam os pontos focais exactos da praça elíptica de Bernini, mas tratava-se de uma curiosidade arquitectural a que, até então, Langdon nunca dera verdadeira importância. Agora, de repente, Roma parecia-lhe cheia de eHpses, pirâmides e geometrias surpreendentes.

A medida que se aproximavam do obelisco, Vittoria abrandou o passo. Expirou longamente, como que a incitar Langdon a relaxar com ela. Langdon tentou, deixando descair os ombros e descontraindo os maxilares cerrados.

Algures à volta daquele obelisco ousadamente posicionado à frente da maior igreja do mundo, estava o segundo altar de ciência — o Vento Ponente de Bernini —, uma laje elíptica na Praça de São Pedro.

Günther GUck observava escondido na sombra da colunata que envolvia a praça. Noutro dia qualquer, o homem de casaco de tweed e a mulher de calções de caqui não lhe teriam despertado o mínimo interesse. Pareciam ser apenas turistas a apreciar a praça. Mas aquele não era um dia vulgar. Aquele fora um dia de dicas telefónicas, cadáveres, carros anónimos a acelerar pelas ruas de Roma, homens de casaco de tweed a trepar andaimes à procura de sabe Deus o quê. Glick não ia perdê-los de vista.

Olhou para o lado oposto da praça e viu Macri. Estava exactamente onde ele lhe dissera que fosse posicionar-se, do outro lado do casal, a cobrir-lhes o flanco. Transportava a câmara de vídeo com um ar descontraído, mas, a despeito da sua imitação de uma jornalista farta daquele trabalho, dava mais nas vistas do que Glick teria preferido. Não havia mais jornalistas naquele extremo da praça, e as letras «BBC» estampadas na câmara estavam a atrair a atenção de alguns turistas.

As imagens que Macri gravara do corpo nu a ser escondido na bagageira de nmAlfa preto estavam naquele preciso instante a passar no transmissor de vídeo da carrinha. GHck sabia que já iam a voar por cima da cabeça dele, a caminho de Londres. Perguntou a si mesmo o que diria a redacção.

Desejou que ele e Macri tivessem conseguido chegar junto do corpo mais cedo, antes de o exército de soldados à paisana ter feito a sua

322 DAN BROWN

aparição. Aquele mesmo exército, sabia-o, tinha-se agora espalhado e cercado a praça. Qualquer coisa em grande estava para acontecer.

Os media são o braço direito da anarquia, dissera o homem que tinha telefonado. Guck perguntou a si mesmo se teria perdido a sua oportunidade de conseguir um grande furo. Olhou para as carrinhas dos outros órgãos de informação, ao longe, e observou Macri a seguir o misterioso casal. Alguma coisa lhe dizia que continuava em jogo...

CAPITULO SETENTA E QUATRO

Langdon viu o que procuravam uns bons dez metros antes de lá chegarem. Através dos grupos dispersos de turistas, a elipse de mármore branco do Vento Ponente de Bernini destacava-se contra o fundo de cubos de granito cinzento que formavam o chão do resto da praça. Vittoria, aparentemente, também a viu. A mão dela ficou tensa.

— Relaxe — sussurrou-lhe Langdon. — Faça aquela coisa da piranha.

Vittoria afrouxou o aperto. Enquanto se aproximavam, tudo parecia assustadoramente nor

mal. Turistas deambulavam, freiras conversavam ao longo do perímetro da praça, uma rapariguinha dava milho aos pombos junto à base do obelisco.

Langdon coibiu-se, com esforço, de consultar o relógio. Sabia que estava quase na hora.

A pedra eHptica encontrava-se debaixo dos pés deles, e Langdon e Vittoria detiveram-se — sem demonstrarem qualquer excesso de ansiedade, apenas como um casal de turistas a parar, como seria de esperar, num ponto de relativo interesse.

— Vento Ponente — disse Vittoria, lendo a inscrição na pedra. Langdon baixou os olhos para o baixo-relevo de mármore e sen-

tiu-se repentinamente estúpido. Nem nos seus livros de arte, nem nas suas muitas viagens a Roma, nunca, fosse em que circunstâncias fosse, o significado de Vento Ponente lhe saltara aos olhos.

Até àquele instante. A laje era elíptica, com cerca de noventa centímetros de compri

mento, e tinha gravada uma face rudimentar — uma representação do Vento Oeste com cara de anjo. Saindo da boca do anjo, Bernini desenhara uma poderosa rajada de vento que soprava para fora a partir do

324 DAN BROWN

Vaticano... o sopro de Deus. Era aquele o tributo de Bernini ao segundo elemento... o Ar... um zéfiro etéreo soprado pelos lábios de um anjo. A medida que o estudava, Langdon percebeu que o significado do relevo ia ainda mais fundo. Bernini desenhara o ar em dnco exalações separadas... cinco! Mas havia mais. Em cada extremo do medalhão, via-se uma estrela a refulgir. Pensou em GaHleu. Duas estrelas, dnco rajadas de vento, elipses, simetria... Sentiu-se vazio. Doía-lhe a cabeça. Vittoria recomeçou a andar quase imediatamente, afastando-o do relevo.

— Parece-me que está alguém a seguir-nos — disse. Langdon ergueu a cabeça. — Onde? Vittoria percorreu uns bons trinta metros antes de responder. Apon

tou para o Vaticano, como se estivesse a mostrar-lhe qualquer coisa na cúpula.

— A mesma pessoa tem-se mantido atrás de nós desde que começámos a atravessar a praça. — Voltou a cabeça, como que por acaso. — E continua. Não pare.

— Acha que é o assassino? Vittoria abanou a cabeça. — Não, a menos que os lUuminati contratem mulheres com câma

ras de vídeo da BBC.

Quando os sinos de São Pedro começaram o seu ensurdecedor badalar, Vittoria e Langdon quase deram um salto. Chegara o momento. Tinham-se afastado do Vento Ponente, descrevendo um círculo, numa tentativa de despistar a jornalista, mas estavam agora a caminhar de novo em direcção ao relevo.

A despeito do clamor dos sinos, a área parecia perfeitamente calma. Os turistas deambulavam. Um vagabundo embriagado dormitava de qualquer maneira encostado à base do obelisco. A menina continuava a dar rmlho aos pombos. Langdon perguntou a si mesmo se a jornalista teria afugentado o assassino. Duvidoso, pensou, recordando a promessa do executor. Varei dos vossos cardeais estrelas dos media.

Quando o eco da nona badalada se desvaneceu, uma paz silenciosa desceu sobre a praça.

Então... a rapariguinha começou a gritar.

CAPITULO SETENTA E CINCO

Langdon foi o primeiro a chegar junto da rapariguinha que gritava. A aterrorizada menina parecia petrificada, apontando para a base

do obelisco, onde um bêbedo sujo e decrépito estava molemente sentado. O homem era um triste espectáculo... tudo indicava que era um dos sem-abrigo de Roma. Os cabelos grisalhos caíam-lhe em sebentas madeixas para a cara, e tinha todo o corpo envolto numa espécie de trapo imundo. A rapariguinha continuou a gritar enquanto fugia, desaparecendo no meio da multidão.

Langdon correu para o inválido, sentindo-se invadir por uma súbita vaga de horror. Uma mancha escura alastrava pelos andrajos do homem. Sangue fresco, vermelho-vivo.

Então, foi como se tudo acontecesse ao mesmo tempo. O velho pareceu dobrar-se ao meio, caindo para a frente. Langdon

saltou, mas chegou demasiado tarde. O homem tombou, rolou pelos degraus e ficou estendido no chão da praça, de cara para baixo. Imóvel.

Langdon ajoelhou-se. Vittoria chegou junto dele. Começava a for-mar-se uma pequena multidão.

Vittoria estendeu uma mão e pôs os dedos na carótida do homem.

— Tem pulsação — disse. — Volte-o. Langdon já estava em acção. Agarrando o homem pelos ombros,

rolou o corpo. Quando o fez, os farrapos pareceram desprender-se, como pele morta. O homem caiu nacidamente de costas. Bem no meio do peito nu, havia uma vasta área de carne calcinada.

Vittoria engoliu em seco e recuou. Langdon ficou paralisado, preso algures entre a náusea e a admira

ção. O símbolo tinha uma espécie de simplicidade aterradora.

326 DAN BROWN

— Air— engasgou-se Vittoria. — É... ele. Apareceram guardas suíços como que saídos do nada, a gritar or

dens, a correr atrás de um assassino invisível. Ali perto, um mrista explicava que ainda minutos antes um homem

de pele escura tivera a bondade de ajudar aquele pobre e arquejante sem-abrigo a atravessar a praça... ficando até sentado com ele nos degraus do obelisco durante alguns minutos antes de desaparecer no meio da multidão.

Vittoria rasgou os farrapos que cobriam o abdómen do homem. Tinha duas feridas perfurantes, uma de cada lado da marca, logo abaixo da caixa torácica. Inchnou um pouco para trás a cabeça da vítima e começou a ministrar-lhe respiração boca-a-boca. Langdon não estava preparado para o que aconteceu a seguir. Quando Vittoria soprou, as feridas de ambos os lados do abdómen do homem silvaram e expeliram sangue para o ar, como o espiráculo de uma baleia. O h'quido salgado salpicou-lhe o rosto.

Vittoria parou o que estava a fazer, com uma expressão horrorizada.

— Os pulmões... — gaguejou. — Estão... perfurados. Langdon Hmpou os olhos e estudou as duas perfurações. Os ori

fícios gorgolejavam. O cardeal tinha os pulmões destruídos. Estava morto.

Vittoria cobriu o corpo enquanto os guardas suíços se aproximavam.

Langdon pôs-se de pé, desorientado. Ao fazê-lo, viu-a. A mulheir que andara a segui-los estava au perto, meio agachada. Com a câmara de vídeo da BBC ao ombro, apontada, a gravar. Os olhos de ambos encontraram-se, e Langdon soube que ela tinha registado tudo. Então, como um gato, a mulher fugiu.

CAPITULO SETENTA E SEIS

Chinita Macri fugia. Tinha ali a história da sua vida. A câmara de vídeo pesava-lhe como uma âncora enquanto atra

vessava a Praça de São Pedro, abrindo caminho pelo meio da multidão cada vez mais compacta. Toda a gente parecia deslocar-se em sentido contrário... para o centro da agitação, de onde ela procurava afastar-se o mais rapidamente possível. O homem do casaco de tweed tinha-a visto, e sentia agora que outros homens, que não conseguia ver, se aproximavam, apertando o cerco à sua volta.

Continuava horrorizada pelas imagens que acabava de gravar. Perguntou a si mesma se o morto seria realmente quem ela temia que fosse. De repente, o misterioso contacto telefónico de Glick pareceu-lhe um pouco menos louco.

Quando corria para a carrinha da BBC, um jovem de aspecto decididamente militar emergiu da multidão à frente dela. Os olhos de ambos encontraram-se, e ambos estacaram. Com um gesto rapidíssimo, ele levantou o rádio e começou a falar, ao mesmo tempo que avançava. Macri fez meia volta e correu para o meio da multidão, com o coração a bater loucamente.

Enquanto abria caminho por entre a floresta de braços e pernas, retirou da câmara a cassete gravada. Ouro celulósico, pensou, enfiando a cassete no cós da parte de trás das calças, onde ficou coberta pelo casaco. Por uma vez, ficou contente por carregar um pouco de peso extra. Glick, onde raio te meteste tu?

Outro soldado aproximava-se do lado esquerdo. Macri soube que tinha muito pouco tempo. Voltou a mergulhar na multidão. Tirando uma cassete virgem da sacola, enfiou-a na câmara. Então rezou.

Estava a trinta metros da carrinha da BBC quando os dois homens se materializaram à sua frente, de braços dobrados sobre o peito. Estava encurralada.

328 DAN BROWN

— Fume — disse um deles. —Já. Macri recuou um passo, fechando protectoramente os braços à volta

da câmara. — Nem pensar. Um dos homens abriu o casaco, mostrando a arma que usava

à cinta. — Okay, matem-me — disse Macri, espantada com a ousadia da

sua própria voz. — Filme — repetiu o primeiro. Onde diabo estará o Glick? Macri bateu com o pé no chão e gritou

o mais alto que pôde: — Sou uma videógrafa profissional da BBc! Nos termos do artigo

12 da Lei da Liberdade de Imprensa, este filme é propriedade da British Broadcasting Corporation!

O homem nem pestanejou. O que tinha a arma deu um passo em frente.

— Sou tenente da Guarda Suíça, e pela Sagrada Doutrina que governa o chão que neste momento pisa, está sujeita a captura e revista.

Entretanto, começara a formar-se uma multidão à volta deles. — Nunca, em circunstância alguma, lhes entregarei o filme que está

nesta câmara sem falar primeiro com o meu chefe-de-redacção em Londres — gritou Macri. — Sugiro...

Os guardas puseram fim à cena. Um deles arrancou-lhe a câmara das mãos. O outro agarrou-a por um braço e começou a puxá-la na direcção do Vaticano.

— Grat^ie — disse, guiando-a pelo meio da agitada multidão. Macri pediu aos deuses que não a revistassem e encontrassem a cas

sete. Se conseguisse arranjar maneira de proteger a fita até que... Subitamente, o impensável aconteceu. Alguém enfiara uma mão

debaixo do casaco dela. Macri sentiu a cassete ser-lhe arrancada. Voltou a cabeça, mas engoliu as palavras que se preparava para gritar. Atrás dela, um ofegante Glick piscou-lhe um olho e desapareceu no mar de gente.

CAPITULO SETENTA E SETE

Robert Langdon entrou a cambalear na casa de banho privada contígua ao gabinete do Papa. Lavou o sangue da cara e dos lábios. Não era sangue dele. Era do cardeal Lamassé, que acabava de sofrer uma morte horrível na praça apinhada de gente diante do Vaticano. Virgens sacrifiáais nos altares de áênáa. Até ao momento, o assassino cumprira a sua ameaça.

Langdon olhava para o espelho, abalado por uma sensação de impotência. Tinha os olhos encovados, e a barba começava a escurecer-lhe a face. A divisão onde se encontrava era imaculada e luxuosa — mármore negro com aplicações douradas, toalhas de algodão e sabonetes perfumados.

Esforçou-se por afastar do pensamento a marca ensanguentada que acabara de ver. Ar. A imagem agarrava-se-lhe ao cérebro. Tinha visto três ambigramas desde que acordara naquela manhã... e sabia que havia mais dois.

Do outro lado da porta, o camerlengo, Olivetti e o capitão Rocher discutiam o que fazer a seguir. Segundo parecia, a busca da antimatéria não dera por enquanto quaisquer resultados. Ou os guardas tinham passado pelo contentor sem dar por ele, ou o intruso penetrara mais fundo no interior do Vaticano do que o comandante Olivetti estivera disposto a admitir.

Langdon secou as mãos e a cara. Em seguida, voltou-se e procurou um urinol. Não havia nenhum. Apenas a sanita. Levantou a tampa.

Ali de pé, com a tensão a esvair-se-lhe do corpo, sentiu uma onda de exaustão trespassá-lo até ao âmago. As emoções que se lhe enovelavam no peito eram tantas, tão incongruentes. Estava cansado, com sono e com fome, a percorrer o Caminho da Iluminação, traumatizado

330 DAN BROWN

por dois assassínios brutais. Encarava com um horror crescente o possível desfecho daquele drama.

Pensa, ordenou a si mesmo. Mas tinha o cérebro vazio. Quando accionou o autoclismo, foi atingido por uma súbita com

preensão. Isto é a sanita do Papa, pensou. Acabo defat^r uma mija na sanita do Papa. Teve de rir. O Santo Trono.

CAPITULO SETENTA E OITO

Em Londres, uma técnica da BBC ejectou a cassete da unidade receptora de satélite e saiu disparada da sala de controlo. Entrou de rompante no gabinete do editor, enfiou a cassete no VCR e premiu a tecla PLAY.

Enquanto a fita passava, falou-Uie da conversa telefónica que tivera minutos antes com Günther Glick, na Cidade do Vaticano. Além disso, os arquivos fotográficos da BBC acabavam de dar-lhe uma identificação positiva da vítima na Praça de São Pedro.

Quando o editor saiu do seu gabinete, agitava um chocalho de vaca. Na redacção, tudo parou.

— Directo em cinco! — berrou o homem. — Locutores para preparação! Coordenadores de media, quero os vossos contactos em linha. E temos filme!

Os coordenadores de mercado pegaram nos respectivos Rolodexes. — Especificações do filme! — gritou um deles. — Corte de trinta segundos. — Conteúdo? — Homicídio em directo. Os coordenadores pareceram encorajados. — Preço de uso e licenciamento? — Um milhão de dólares americanos. Ergueram-se cabeças. — O quê? — Ouviram o que eu disse! Quero o topo da cadeia alimentar.

CNN, MSNBC e as três grandes! Ofereçam um pré-visionamento a pedido. Dêem-lhes cinco minutos para conferenciar antes de a BBC passar a peça.

332 DAN BROWN

— Que raio aconteceu? — perguntou alguém. — O primeiro-mi-nistro foi esfolado vivo?

O editor abanou a cabeça. — Melhor.

Naquele preciso instante, algures em Roma, o Hashashin gozava um fugaz momento de repouso numa confortável cadeira. Contemplava a lendária câmara onde se encontrava. Estou sentado na Igreja da Iluminação, pensou. O esconderijo dos Illuminati. Mal queria acreditar que ainda existia, ao fim de tantos séculos.

Pegou no telemóvel e ligou para o jornalista da BBC com quem já falara. Era tempo. O mundo ia agora conhecer a mais chocante de todas as notícias.

CAPITULO SETENTA E NOVE

Vittoria beberricou do copo de água e mordiscou distraidamente o scone que tirara da bandeja que um dos guardas pousara em cima da mesa. Sabia que devia comer, mas não tinha apetite. O gabinete do Papa estava transformado numa colmeia de actividade, cheio de conversas tensas. O comandante Olivetti, o capitão Rocher e meia dúzia de guardas avaliavam os estragos e debatiam a próxima jogada.

Robert Langdon estava de pé ali perto, a olhar pela janela para a Praça de São Pedro, com um ar desanimado. Vittoria aproximou-se dele.

— Ideias? Robert abanou a cabeça. — U m scone'^

O rosto dele animou-se à vista de comida. — Céus, sim. Obrigado. — E começou a comer vorazmente. Todas as conversas na sala cessaram quando Cario Ventresca en

trou, escoltado por dois guardas sxoíços. Se antes o camerlengo parecera esgotado, pensou Vittoria, agora parecia vazio.

— Que aconteceu? — perguntou o jovem padre, dirigindo-se a Olivetti. Pela expressão do rosto, dava a impressão de já ter sido informado da pior parte.

A comunicação oficial de Olivetti soou como um relatório de baixas em combate. Expôs os factos com fria e seca eficácia.

— O cardeal Ebner foi encontrado morto na igreja de Santa Maria dei Popólo, minutos depois das oito. Tinha sido asfixiado e marcado a fogo com a palavra ambigramática Earth, Terra. O cardeal Lamassé foi assassinado na Praça de São Pedro, há dez minutos. A morte foi causada por duas feridas perfurantes no peito. Tinha sido marcado com a palavra Air, Ar, também ambigramática. Em ambos os casos, o assassino conseguiu fugir.

334 DAN BROWN

O camerlengo atravessou a sala e deixou-se cair pesadamente na cadeira atrás da secretária. Deixou pender a cabeça para a frente.

— Os cardeais Guidera e Baggia, no entanto, ainda estão vivos. O camerlengo ergueu vivamente a cabeça, com uma expressão de

dor no rosto. — E essa a nossa consolação? Foram assassinados dois cardeais,

comandante. E os outros não permanecerão obviamente vivos por muito mais tempo, a menos que os encontre.

— Havemos de encontrá-los — afirmou OHvetti. — Sinto-me encorajado.

— Encorajado? Até agora, tivemos apenas derrotas. — Não é verdade. Perdemos duas batalhas, mas estamos a ganhar

a guerra. A intenção dos llluminati era transformar esta noite num circo mediático. Até agora, conseguimos contrariar-lhes os planos. Ambos os cadáveres foram recuperados sem incidentes. Além disso — continuou Olivetti —, diz-me o capitão Rocher que estamos a fazer excelentes progressos na busca da antimatéria.

O capitão Rocher adiantou-se, com a sua boina vermelha. Vittoria pensou que, de certo modo, parecia mais humano do que os outros guardas. Firme, mas não tão rígido. Tinha uma voz emotiva e cristalina, como um violino.

— Confio que teremos o contentor para lhe apresentar dentro de uma hora, signare.

— Perdoar-me-á, capitão — respondeu o camerlengo —, se não pareço tão confiante, mas estava com a impressão de que uma busca ao Vaticano demoraria muito mais tempo do que aquele de que dispomos.

— Uma busca completa, sim. No entanto, depois de ter avaliado a situação, estou convencido de que o contentor com a antimatéria se encontra numa das nossas zonas brancas... os sectores do Vaticano normalmente acessíveis ao público... como os museus e a Basílica de São Pedro, por exemplo. Já cortámos a electricidade nessas áreas e estamos a conduzir a nossa busca.

— Tenciona revistar apenas uma pequena parte da Cidade do Vaticano?

— Sim, signare. É altamente improvável que um intruso conseguisse acesso às zonas restritas da Cidade do Vaticano. O facto de a câmara desaparecida ter sido roubada de uma área de acesso público... a escada de um dos museus... indica claramente que o intruso teve um acesso li-

ANJOS E DEMÓNIOS 335

mirado. Portanto, só pode ter recolocado a câmara e a antimatéria noutra área de acesso púbuco. É nessas zonas que estamos a concentrar os nossos esforços.

— Mas o intruso raptou quatro cardeais. O que com toda a certeza indica uma infiltração mais profunda do qúe julgávamos.

— Não necessariamente. Temos de ter presente que os cardeais passaram a maior parte do dia de hoje nos museus ou na Basílica de São Pedro, para poderem desfrutar dessas áreas sem a presença de turistas. É possível que tenham sido capturados num desses locais.

— Mas como foram levados para o exterior? — Estamos ainda a tentar descobri-lo. — Compreendo. — O camerlengo suspirou e pôs-se de pé. Diri-

giu-se a Olivetti. — Comandante, gostaria de saber qual é o seu plano para uma evacuação de emergência.

— Estamos ainda a formalizar esse ponto, signore. Tenho a esperança de que, entretanto, o capitão Rocher encontre o contentor.

Rocher bateu os calcanhares, como que a agradecer o voto de confiança.

— Os meus homens já revistaram dois terços das zonas brancas — informou. — O nível de confiança é elevado.

O camerlengo não parecia partilhar aquela confiança. Nesse momento, o guarda que tinha a cicatriz por baixo do olho

esquerdo entrou na sala, trazendo na mão uma prancheta e um mapa. Dirigiu-se a Langdon.

— Doutor Langdon, tenho a informação que pediu a respeito do Vento Ponente.

Langdon engoliu à pressa o resto do scone. — Óptimo. Vamos lá ver. Os outros continuaram a falar enquanto Vittoria se juntava a Robert

e ao guarda, que tinham aberto o mapa em cima da secretária do Papa. O soldado apontou para a Praça de São Pedro. — Estamos aqui. A linha central do sopro do Vento Ponente aponta

para leste, na direcção oposta à Cidade do Vaticano. — O guarda traçou com o dedo uma linha que, da Praça de São Pedro, galgava o Tibre e apontava ao coração da Roma antiga. — Como vê, esta linha atravessa praticamente toda a cidade. Há cerca de vinte igrejas católicas próximas do seu traçado.

336 DAN BROWN

Os ombros de Langdon descaíram. — Vinte? — Talvez mais. — Alguma delas fica exactamente no traçado da linha? — Umas parecem mais próximas do que outras — disse o guar

da —, mas transferir a orientação exacta do Vento Ponente para um mapa comporta inevitavelmente uma margem de erro.

Langdon olhou por instantes para a Praça de São Pedro. Então franziu a testa, coçando o queixo.

— E quanto zo fogo? Alguma delas contém uma obra de Bernini que esteja de algum modo relacionada com o fogo?

Silêncio. — E obeliscos? Há alguma outra igreja que tenha perto um obelisco? O guarda começou a examinar o mapa. Vittoria viu o lampejo de esperança nos olhos de Langdon e sou

be o que ele estava a pensar. Tem raí^ão! Os dois primeiros marcadores tinham sido encontrados em praças, ou perto delas, onde se erguiam obeliscos! Talvez os obeliscos fossem o tema? Altas pirâmides a assinalar o caminho dos llluminati? Quanto mais pensava nisso, mais perfeito lhe parecia... quatro altos faróis erguendo-se acima de Roma para marcar os altares de ciência.

— É uma hipótese remota — disse Langdon —, mas por acaso sei que muitos dos obeliscos de Roma foram erguidos ou mudados de lugar durante o reinado de Bernini. Que esteve sem dúvida envolvido na sua colocação.

— Ou — acrescentou Vittoria —, Bernini pode ter situado os seus marcadores perto de obeliscos já existentes.

— Verdade — concordou Langdon. — Más notícias — disse o guarda. — Não há quaisquer obeliscos

ao longo da linha. — Passou o dedo pelo mapa. — Nem pouco mais ou menos. Nenhum.

Langdon suspirou. Vittoria fez um ar de desânimo. Achara a ideia tão promissora.

Aparentemente, aquilo não ia ser tão fácil como tinham esperado. Tentou ser positiva.

— Pense, Robert. Deve conhecer uma obra de Bernini relacionada com o fogo. Qualquer coisa.

ANJOS E DEMÓNIOS 337

— Tenho estado a pensar, acredite. Bernini era incrivelmente prolífico. Centenas de obras. Estava na esperança de que o Vento Ponente apontasse para uma única igreja. Qualquer coisa que acendesse uma luz.

— Fuòco — insistiu ela. — Fogo. Não se lembra de nada? Langdon encolheu os ombros. — Há os famosos esboços do Fogo-de-artifiäo, mas não são uma es

cultura, e estão em Leipzig, na Alemanha. Vittoria franziu a testa. — Tem a certeza de que é o sopro que indica a direcção? — Viu o relevo, Vittoria. O desenho é perfeitamente simétrico.

A única indicação de direcção é o sopro. Vittoria soube que ele tinha razão. — 7\lém disso, uma vez que Vento Ponente significa yír, seguir o so

pro parece simbolicamente apropriado. Vittoria assentiu. Sigamos então o sopro. Mas até onde? Olivetti aproximou-se do grupo. — O que é que têm? — Demasiadas igrejas — respondeu o guarda. — Duas dúzias, por

volta disso. Suponho que podíamos pôr quatro homens em cada uma... — Esqueça — disse Olivetti. — Falhámos a captura esse tipo duas

vezes quando sabíamos exactamente onde ia estar. Uma vigilância maciça significaria deixar a Cidade do Vaticano sem protecção e cancelar a busca.

— Precisamos de um Hvro de referência — interveio Vittoria. — Um índice de todas as obras de Bernini. Se pudermos 1er os nomes, talvez qualquer coisa nos salte à vista.

— Não sei — objectou Langdon. — Trata-se de uma obra que Bernini criou especificamente para os llluminati, é possível que seja muito obscura. Provavelmente, não virá listada num livro.

Vittoria não estava disposta a desistir da sua ideia. — As outras duas esculturas eram razoavelmente conhecidas. O Ro

bert sabia de qualquer delas. Langdon encolheu os ombros. — É verdade. — Se pudermos procurar nos títulos referências à palavra «fogo»,

talvez encontremos uma estátua que esteja listada como encontrando--se na direcção certa.

Langdon pareceu convencido de que valia a pena tentar. Voltou-se para Olivetti.

338 DAN BROWN

— Preciso de uma üsta de todas as obras de Bernini. Não terão por acaso por ai à mão um álbum sobre o Bernini, pois não?

— Um álbum? — Aparentemente, Olivetti não estava a perceber a ironia.

— Não interessa. Qualquer lista. Que tal o Museu do Vaticano? Devem ter referências sobre Bernini.

O guarda da cicatriz franziu a testa. — Neste momento não há electricidade no museu, e a sala de re

gistos é enorme. Sem o pessoal de lá para nos ajudar... — A obra de Bernini em questão — interrompeu Olivetti — te

ria de ser qualquer coisa que ele criou enquanto estava ao serviço do Vaticano?

— Quase de certeza — respondeu Langdon. — Fez aqui praticamente toda a sua carreira. E seguramente durante a época do caso Galileu.

Olivetti assentiu. — Nesse caso, há outra referência. Vittoria sentiu um lampejo de optimismo. — Onde? O comandante não respondeu. Afastou-se um pouco com o guar

da e falou-lhe em voz baixa. O homem parecia hesitante, mas assentiu obedientemente. Quando Olivetti acabou de falar, o guarda voltou-se para Langdon.

— Venha comigo, por favor, doutor Langdon. São nove e um quarto. Temos de nos apressar.

Langdon e o guarda dirigiram-se para a porta. — Eu ajudo — disse Vittoria, começando a segui-los. Olivetti agarrou-a por um braço. — Não, doutora Vetra. Preciso de falar consigo — disse, num tom

autoritário. Langdon e o guarda saíram. O rosto de OHvetti tinha uma expres

são de pedra quando puxou Vittoria um pouco para o lado. Mas, fosse o que fosse que tencionava dizer-lhe, não chegou a ter oportunidade. O rádio crepitou e uma voz disse:

— Comandante? Todos os presentes na sala se voltaram. — Acho que é melhor ligar a televisão — continuou a voz, num

tom lúgubre.

CAPITULO OITENTA

Nunca, quando saíra dos Arquivos Secretos do Vaticano, tiavia apenas duas horas, Langdon imaginara que tornaria a vê-los. Agora, quase sem fôlego por ter feito todo o caminho a correr com a sua escolta da Guarda Suíça, estava de volta àquele fascinante lugar.

O guarda da cicatriz guiou-o por entre as filas de cubículos translúcidos. O silêncio pareceu-lhe, nesta segunda visita, ainda mais intimidante do que da primeira vez, e sentiu-se grato quando o guarda o quebrou.

— É aqui, parece-me — disse, conduzindo Langdon em direcção a uma enfiada de compartimentos mais pequenos alinhados contra a parede. Examinou as placas com os títulos e apontou para um deles. — Sim, cá está. Exactamente onde o comandante disse que estaria.

Langdon leu a placa, ATTIVI VATICANI. Bens do Vaticano? Esmdou a lista de conteúdos. Propriedades... divisas... Banco do Vaticano... antiguidades... O rol não acabava.

— Papelada de todos os bens do Vaticano — disse o guarda. Langdon olhou para o cubículo. Jesus. Mesmo no escuro, conseguiu

ver que estava cheio a abarrotar. — O meu comandante disse que tudo o que Bernini criou enquan

to esteve sob o patrocínio do Vaticano há-de estar aqui listado como fazendo parte do activo.

Langdon assentiu, apercebendo-se de que o instinto de Olivetti era bem capaz de estar certo. No tempo de Bernini, tudo o que um artista criasse estando sob o patrocínio do Papa tornava-se, por lei, propriedade da Igreja. Era mais feudalismo do que patrocínio, mas os artistas de topo viviam bem e raramente se queixavam.

— Incluindo as obras colocadas em igrejas^ra da Cidade do Vaticano?

340 DAN BROWN

O soldado lançou-lhe um olhar surpreendido. — Claro. Todas as igrejas católicas de Roma são propriedade do

Vaticano. Langdon olhou para a lista que tinha na mão. Continha os nomes

das cerca de vinte igrejas que se situavam directamente na linha definida pelo sopro do Vento Ponente. O terceiro altar de ciência era uma delas, e Langdon esperava ter tempo para descobrir qual. Noutras circunstâncias, teria de bom grado explorado pessoalmente todas elas. Naquele dia, porém, tinha cerca de vinte minutos para encontrar o que procurava — a igreja que continha o tributo de Bernini 2iofogo.

Avançou para a porta giratória electrónica do compartimento. O guarda não o seguiu. Langdon detectou uma certa hesitação. Sorriu.

— O ar é bom. Rarefeito, mas respirável. — As minhas ordens foram escoltá-lo até aqui e regressar imedia

tamente ao centro de segurança. — Vai-se embora? — Sim. A Guarda Suíça não está autorizada a entrar nos Arquivos.

Já violei o protocolo ao vir até aqui. O meu comandante deixou isso bem claro.

— Violar o protocolo? — Fat^ alguma ideia do que está a acontecer aqui esta noite?— De que lado está o raio do seu comandante?

Toda a afabilidade desapareceu no mesmo instante do rosto do guarda. A cicatriz por baixo do olho estremeceu. O olhar do homem tornou-se fixo, parecendo-se de repente muito com o de Olivetti.

— Peço desculpa — disse Langdon, lamentando o comentário. — É que... dava-me jeito uma ajuda.

O guarda nem pestanejou. — Fui treinado para obedecer a ordens, não para discuti-las. Quan

do encontrar aquilo que procura, contacte imediatamente o comandante.

— Como? — perguntou Langdon, confuso. O guarda tirou o rádio do cinto e pousou-o em cima de uma mesa

próxima. — Canal um — disse, e desapareceu na escuridão.

CAPITULO OITENTA E UM

O televisor do gabinete do Papa era um gigantesco Hitachi escondido num armario embutido na parede em frente da secretária. As portas do armário estavam abertas e os presentes tinham-se juntado à volta do aparelho. Vittoria aproximou-se. O rosto de uma jovem jornalista, uma morena com olhos de corça, encheu o ecrã.

— Kelly Horan-Jones, para a MSNBC, em directo da Cidade do Vaticano — anunciou. A imagem por detrás dela era uma vista nocturna da Basílica de São Pedro, refulgente de luzes.

— Não estás nada em directo — protestou o capitão Rocher. — São imagens de arquivo! As luzes da Basílica estão apagadas!

Olivetti silenciou-o com um silvo. — Há desenvolvimentos chocantes nas eleições que decorrem esta

noite no Vaticano — continuou a jornalista, num tom tenso. — Temos notícias de que dois membros do Colégio Cardinalício foram brutalmente assassinados em Roma.

Olivetti praguejou entredentes. Um guarda, ofegante, apareceu à porta. — Meu comandante, a central telefónica comunica que tem todas

as Unhas a piscar. Querem a nossa posição oficial sobre... — DesHguem-na — ordenou Ouvetti, sem desviar os olhos do te

levisor. — Mas, meu comandante... — Vai! O guarda afastou-se a correr. Vittoria sentiu que o camerlengo quisera dizer qualquer coisa, mas

desistira no último instante. Em vez disso, lançou um longo e duro olhar a Olivetti, antes de se voltar de novo para o aparelho.

342 DAN BROWN

A MSNBC estava a passar a gravação. Os guardas suíços desciam a escadaria da igreja de Santa Maria dei Popólo transportando o corpo do cardeal Ebner em direcção a um Alfa Romeo preto. A imagem imo-bilizou-se e mergulhou para um grande plano quando o cadáver nu se tornou visível um instante antes de ser depositado na bagageira do carro.

— Quem raio filmou isto? — perguntou Olivetti, furioso. A jornalista da MSNBC continuava a falar: — Trata-se aparentemente do corpo do cardeal Ebner, de Frank

furt. Os homens que retiraram o cadáver da igreja são, segundo se crê, membros da Guarda Suíça do Vaticano. — Kelly Horan-Jones tinha todo o ar de quem estava a esforçar-se ao máximo por parecer adequadamente consternada. A objectiva enquadrou-lhe o rosto, que se tornou ainda mais sombrio. — Neste ponto, a MSNBC gostaria de avisar os seus telespectadores de que as imagens que se seguem são excepcionalmente fortes e poderão chocar as pessoas mais impressionáveis.

A fingida preocupação da MSNBC com a susceptibilidade dos espectadores mais sensíveis irritou Vittoria, que reconheceu no aviso exactamente aquuo que ele era, o engodo máximo de qualquer estação televisiva: não havia em todo o mundo alguém capaz de mudar de canal depois de uma promessa daquelas.

— Mais uma vez, as imagens que se seguem podem chocar alguns telespectadores — insistiu a jornalista, reforçando o efeito.

— Que imagens? — perguntou Olivetti. — Acabam de mostrar... A cena que encheu o ecrã mostrava um casal na Praça de São Pe

dro, a caminhar pelo meio da multidão. Vittoria reconheceu instantaneamente aquelas duas pessoas como sendo ela própria e Robert Langdon. No canto do ecrã, uma legenda a branco anunciava: CORTESIA DA BBC. Ouvia-se o badalar de um sino.

— Oh, não — disse Vittoria, em voz alta. — Oh... não. O camerlengo parecia confuso. Voltou-se para Olivetti. — Pensei que tinham confiscado a fita! De súbito, na televisão, uma criança gritava. A imagem rodou e pas

sou a mostrar uma rapariguinha que apontava para o que parecia ser o corpo coberto de sangue de um sem-abrigo. Robert Langdon entrou abruptamente no enquadramento, a tentar ajudar a menina. O plano cen-trou-se e fechou.

ANJOS E DEMÓNIOS 343

Todos os presentes no gabinete ficaram a ver em horrorizado silêncio o desenrolar do drama. O corpo do cardeal tombou para a frente. Vittoria apareceu, a gritar ordens. Havia sangue. Uma marca feita com um ferro em brasa. Uma horrível tentativa falhada de administrar RCP.

— Estas surpreendentes imagens — dizia a jornalista — foram gravadas há poucos minutos no exterior do Vaticano. As nossas fontes dizem-nos que se trata do corpo do cardeal francês Lamassé. Como apareceu vestido de farrapos e por que razão estava ausente do Conclave é um mistério ainda não esclarecido. Até ao momento, o Vaticano tem recusado comentar. — As imagens estavam a passar pela segunda vez.

— Recusado comentar? — exclamou Rocher. — Dêem-nos um raio de um minuto!

— Apesar de a MSNBC não ter por enquanto conseguido confirmar o motivo do ataque — dizia a jornalista, com as sobrancelhas franzidas numa expressão de intensidade dramática —, as nossas fontes dizem--nos que a responsabilidade pelos assassínios foi reclamada por um grupo que se auto-intitula os llluminati.

Olivetti explodiu. — O quê?l — ... saiba mais sobre os llluminati YÍút2.nâLO o nosso website em... — Non èposibile!— declarou Ouvetti. Mudou de canal. A nova estação tinha um jornalista de ar hispânico. — ... um culto satânico conhecido como os llluminati, que alguns

historiadores acreditam... Olivetti começou a premir freneticamente os botões do controlo

remoto. Todos os canais estavam a meio de uma informação em directo. A maioria era em inglês.

— ... guardas suíços a retirar um corpo de uma igreja. Julga-se que o corpo é o do cardeal...

— ... as luzes dos Museus e da Basílica estão apagadas, dando origem a especulações de...

— ... conversará com o teórico da conspiração Tyler Tingley a respeito deste chocante ressurgimento...

— ... rumores a respeito de mais dois assassínios planeados para esta mesma noite...

— ... interrogam-se sobre se um dos principais candidatos ao trono papal, o cardeal Baggia, se contará entre os desaparecidos...

344 DAN BROWN

Vittoria voltou as costas ao televisor. Estava a acontecer tudo tão depressa! Do outro lado da janela, na escuridão que se adensava, o puro magnetismo da tragédia humana parecia estar a sugar as pessoas para a Cidade do Vaticano. A multidão que enchia a praça adensava-se de instante a instante. Um rio de gente avançava para lá, enquanto uma nova vaga de jornalistas desembarcava das respectivas carrinhas e reclamava o seu espaço no chão de granito cinzento.

Olivetti pousou o controlo remoto e voltou-se para o camerlengo. — Signare, não consigo imaginar como uma coisa destas pôde acon

tecer. Confiscámos a cassete que estava na câmara! O camerlengo pareceu por instantes demasiado aturdido para falar. Ninguém disse uma palavra. Os guardas suíços mantinham-se rigi

damente de pé, em sentido. — Parece — disse finalmente o camerlengo, no tom de quem está

demasiado devastado para se zangar — que não conseguimos conter esta crise tão bem como fui levado a acreditar. — Olhou pela janela para a multidão que engrossava. — Tenho de fazer uma declaração.

Olivetti abanou a cabeça. — Não, signare. Isso é exactamente o que os ïlluminati querem que

faça... que os reconheça, que confirme o poder deles. Temos de permanecer silenciosos.

— E essas pessoas? — perguntou Ventresca, apontando para a janela. — Muito em breve serão dezenas de milhares. E depois centenas de milhares. Manter esta charada só serve para colocá-las em perigo. Tenho de avisá-las. E, depois, temos de evacuar o Colégio Cardinalício.

— Ainda há tempo. Deixe o capitão Rocher encontrar a antimatéria.

O camerlengo voltou-se. — Está a tentar dar-me uma ordem? — Não, estou a dar-lhe um conselho. Se está preocupado com as

pessoas lá fora, pode anunciar uma fuga de gás e Hmpar a área, mas admitir que somos reféns é perigoso.

— Comandante, vou dizer isto apenas uma vez. Não usarei este gabinete como um púlpito para mentir ao mundo. Se anunciar alguma coisa, será a verdade.

— A verdade? Que a Cidade do Vaticano está ameaçada de destruição por terroristas satânicos? Isso só enfraquece a nossa posição.

ANJOS E DEMÓNIOS 345

O camerlengo dirigiu-lhe um olhar furioso. — E acha que a nossa posição pode tornar-se ainda mais fraca do

que já é? De súbito. Rocher deu um grito, pegou no controlo remoto e au

mentou o volume do som. No ecrã, a jornausta da MSNBC parecia agora genuinamente agita

da. Sobreposta ao lado do rosto dela, havia uma fotografia do falecido Papa.

— ... informação de última hora, que acabamos de receber da BBC... — desviou os olhos da câmara, como que a confirmar que devia mesmo 1er aquela notícia. Tendo, ao que pareceu, recebido confirmação, voltou-se e enfrentou sombriamente os telespectadores. — Os llluminati acabam de reclamar responsabilidade por... — Hesitou. — Reclamam responsabilidade pela morte do Papa, há quinze dias.

O queixo do camerlengo descaiu. Rocher largou o controlo remoto, como se o queimasse. Vittoria mal conseguia processar a informação. — De acordo com a lei do Vaticano — continuou a jornalista —,

nenhum Papa é formalmente autopsiado, pelo que as afirmações dos llluminati não podem ser confirmadas. No entanto, o grupo mantém que a causa da morte do falecido Papa não foi uma síncope, como o Vaticano anunciou, e sim envenenamento.

A sala voltou a ficar totalmente silenciosa. — Loucura! — explodiu Olivetti. — Uma mentira descarada! Rocher começou mais uma vez a mudar de canal. A noü'cia parecia

alastrar como uma praga de estação para estação. Todas tinham a mesma história. Os cabeçalhos competiam por um máximo de sensacionalismo.

ASSASSÍNIO NO VATICANO

PAPA ENVENENADO

SATANÁS TOCA NA CASA DE DEUS

O camerlengo desviou o olhar. — Deus nos ajude — murmurou. Na sua frenética mudança de canal, Rocher passou pela BBC. — ... avisou-me do assassínio em Santa Maria dei Popólo... — Espere! — disse o camerlengo. — Volte atrás.

346 DAN BROWN

Rocher obedeceu. No ecrã, um jovem de ar afectado apresentava o noticiário da BBC. Sobreimpressa junto ao seu ombro direito via-se a fotografia de um outro jovem de ar estranho, com uma barbicha avermelhada. Por baixo da foto, uma legenda dizia: GÜNTHER GLICK — EM DIIŒCTO DO VATICANO. O jornalista GHck estava aparentemente a falar por telefone, e a ligação não era muito boa.

—... a minha videógrafa captou as imagens do corpo a ser retirado da Capela Chigi.

— Deixa-me resumir a situação para os nossos espectadores — dizia o pivô, em Londres. — O jornalista da BBC Günther GHck foi o primeiro a dar esta notícia. Já esteve por duas vezes em contacto telefónico com o alegado assassino llluminatus. Günther, dizes que o assassino telefonou há momentos para transmitir uma mensagem dos Illuminati?

— Exacto. — E a mensagem é que foram eles os responsáveis pela morte do

Papa? — O pivô parecia incrédulo. — Correcto. O homem que me ligou disse-me que o Papa não mor

reu de uma síncope, como o Vaticano pensava, e sim envenenado pelos Illuminati.

No gabinete do Papa, o tempo pareceu parar. — Envenenado? — perguntou o pivô. — Mas... mas como? — O homem não deu pormenores — respondeu GHck —, excep

to para dizer que o mataram com uma droga chamada... — houve um restolhar de papéis — uma coisa chamada heparina.

O camerlengo, OUvetti e Rocher trocaram olhares confusos. — Heparina? — disse o capitão. — Mas isso não era... — O medicamento que o Papa tomava — completou o camerlen

go, Uvido. Vittoria estava esmpefacta. — O Papa estava a tomar heparina? — Tinha uma tromboflebite — expHcou o camerlengo. — Apa

nhava uma injecção todos os dias. — Mas a heparina não é um veneno — objectou Rocher, confuso.

— Como podem os Illuminati 'i.'àixrvAX... — A heparina é mortal na dose errada — esclareceu Vittoria. —

E um potente anticoagulante. Uma dose excessiva provocaria hemorragias internas maciças e a rotura dos vasos cerebrais.

ANJOS E DEMÓNIOS 347

Olivetti estava a olhar para ela, desconfiado. — Como é que sabe disso? — Os biólogos marinhos usam a droga em mamíferos marinhos

em cativeiro, para impedir a formação de coágulos de sangue devido à redução do nível de actividade. Tem havido casos de animais mortos por erro de dosagem. — Fez uma pausa. — Uma dose excessiva de he-parina num ser humano provocaria sintomas facilmente confundíveis com os de uma síncope... sobretudo na ausência de uma autópsia.

Cario Ventresca parecia agora profundamente perturbado. — Signare — interveio Olivetti —, trata-se claramente de uma ma

nobra dos llluminati para conseguir publicidade. Seria impossível alguém administrar uma dose excessiva ao Papa. Ninguém tinha acesso. E mesmo que mordêssemos o isco e tentássemos refutar o que afirmam, como poderíamos fazê-lo? A lei papal proíbe a autópsia. E mesmo com uma autópsia, nada descobriríamos. Encontraríamos vestígios de heparina no corpo, das injecções diárias.

— Verdade. — A voz do camerlengo endureceu. — No entanto, há uma outra coisa que me perturba. Ninguém no exterior sahia que Sua Santidade tomava aquela medicação.

Seguiu-se um silêncio. — Se a causa da morte foi uma dose excessiva de heparina — disse

Vittoria —, haverá sinais visíveis no corpo. Olivetti voltou-se vivamente para ela. — Doutora Vetra, caso não me tenha ouvido bem, a lei do Vatica

no proíbe que se faça uma autópsia a um Papa. Não vamos profanar o corpo de Sua Santidade retalhando-o só porque um inimigo faz uma afirmação absurda!

Vittoria sentiu-se envergonhada. — Não estava a dizer... — Não tivera a mínima intenção de ser me

nos respeitosa. — Claro que não ia a sugerir que exumassem o Papa... — Hesitou. Algo que Robert lhe dissera na Capela Chigi passou-lhe pela cabeça, como um fantasma. Referira que os sarcófagos papais ficavam sempre acima do nível do solo e nunca eram selados, uma reminiscência do tempo dos faraós, quando se acreditava que selar e enterrar um sarcófago aprisionava a alma do falecido lá dentro. A gravidade tornara-se a argamassa preferida, e as tampas dos sarcófagos pesavam com frequência centenas de quilos. Tecnicamente, apercebeu-se, seria possível...

348 DAN BROWN

— Que espécie de sinais? — perguntou repentinamente o camer-lengo.

Vittoria sentiu o coração estremecer de medo. — Hemorragia da mucosa oral, por exemplo. — Da quê? — As gengivas da vítima sangrariam. Depois da morte, o sangue

coagula e o interior da boca torna-se negro. — Tinha visto certa vez a foto, tirada num oceanário de Londres, de duas orcas a que o treinador ministrara por engano uma dose excessiva de heparina. As baleias flutuavam sem vida no tanque, de boca aberta e a Hngua negra como carvão.

O camerlengo não disse mais nada. Voltou a cabeça e ficou a olhar pela janela.

A voz do capitão Rocher tinha perdido todo o optimismo. — Signare, se esta afirmação a respeito do envenenamento for ver

dadeira... — Não é verdadeira — interrompeu-o Olivetti. — É absoluta

mente impossível alguém de fora chegar junto do Papa. — Sez afirmação for verdadeira — repetiu Rocher — e o Santo Pa

dreco/ envenenado, o facto tem profundas repercussões na nossa busca da antimatéria. O alegado assassínio implica uma infiltração no Vaticano muito mais profunda do que imaginávamos. Revistar só as zonas brancas pode ser inadequado. Se estamos comprometidos a esse ponto, é possível que não encontremos o contentor a tempo.

Olivetti cravou no capitão um olhar gelado. — Capitão, eu digo-lhe o que vai acontecer. — Não — disse o camerlengo, voltando-se repentinamente para

ele. — Eu digo-lhe a si o que vai acontecer. — Estava a olhar bem de frente para os olhos do comandante. — Esta situação já foi demasiado longe. Dentro de vinte minutos, decidirei se devo ou não cancelar o Conclave e evacuar a Cidade do Vaticano. A minha decisão será definitiva. Fui suficientemente claro?

Olivetti não pestanejou. Mas também não respondeu. O camerlengo falava agora com grande veemência, como se esti

vesse a alimentar-se de uma reserva secreta de energia. — Capitão Rocher, vai completar a revista às zonas brancas e apre-

sentar-me-á pessoalmente o seu relatório quando tiver terminado.

ANJOS E DEMÓNIOS 349

Rocher assentiu, lançando a OUvetti um olhar embaraçado. O camerlengo escolheu então dois guardas. — Quero o jornalista da BBC, o senhor Glick, neste gabinete, ime

diatamente. Se os Illuminati thm. estado em contacto com ele, é possível que possa ajudar-nos. Vão.

Os dois soldados desapareceram. Cario Ventresca voltou-se e dirigiu-se aos restantes guardas. — Meus senhores, não consentirei que se percam mais vidas esta

noite. Até às dez horas, localizarão os dois cardeais que faltam e capturarão o monstro responsável por estes crimes. Fiz-me entender?

— Mas, signore — argumentou Olivetti —, não fazemos a mínima ideia onde...

— O doutor Langdon está a trabalhar nisso. Parece competente. Tenho fé.

E com isto, o camerlengo, com uma nova determinação, dirigiu-se à porta. Pelo caminho, apontou para três guardas.

— Vocês os três, venham comigo. Agora. Os guardas seguiram-no. Já junto da porta, o camerlengo deteve-se. Voltou-se para Vittoria. — Doutora Vetra, a senhora também. Acompanhe-me, por favor. Vittoria hesitou. — Aonde vamos? O camerlengo já estava a sair. — Ver um velho amigo.

CAPITULO OITENTA E DOIS

No CERN, a secretária Sylvie Baudeloque estava cheia de fome e morta por ir para casa. Para seu grande desgosto. Kohler tinha aparentemente sobrevivido à passagem pela enfermaria; telefonara-lhe a exigir — não a pedir, a exigir — que, naquela noite, ficasse até mais tarde. Sem qualquer explicação.

Ao longo dos anos, Sylvie programara-se de modo a ignorar as súbitas e estranhas mudanças de humor e as excentricidades do director — os seus silêncios, a sua tendência para gravar secretamente as reuniões que tinha com a câmara de vídeo da cadeira de rodas. Muitas ve2es alimentara a secreta esperança de que ele se matasse a si mesmo durante uma das visitas semanais à carreira de tiro existente no CERN, mas Kohler era, ao que parecia, um excelente atirador.

Agora, sentada sozinha à secretária, Sylvie ouvia os protestos do seu próprio estômago. O director ainda não regressara, nem the dera qualquer tarefa adicional. Ule que vápara o diabo, estou farta de estar aqui sentada sem nada quefa^r e cheia de fome, decidiu. Deixou uma nota e diri-giu-se à cantina do pessoal, para comer qualquer coisa.

Não chegou lá. Ao passar diante das «suites de loisir» do CERN — uma comprida en

fiada de salas com televisão —, reparou que todas elas estavam cheias de pessoal que aparentemente abandonara o jantar para ouvir as notícias. Tinha acontecido qualquer coisa importante. Sylvie entrou na primeira sala. Estava a abarrotar de «cabeças-de-/^/i?» — jovens programadores. Quando viu o título em grandes letras no ecrã do televisor, ficou quase sem respiração.

TERROR NO VATICANO

ANJOS E DEMÓNIOS 351

Ouviu a notícia, sem querer acreditar no que ouvia. Uma antiga Irmandade a assassinar cardeais? O que era que provavam com aquilo? O seu ódio? O seu domínio? A sua ignorância?

E no entanto, a atmosfera na sala parecia tudo menos sombria. Dois jovens técnicos passaram por ela a agitar 'T-shirts que ostenta

vam uma fotografia de Bui Gates e a mensagem: AND THE GEEKSHKLL INHERIT THE EARTH. E OS Tansos Herdarão a Terra, traduziu Sylvie automaticamente. O trocadilho pareceu-lhe de extremo mau gosto.

— Os llluminatil— gritava um deles. — Eu bem te disse que esses tipos existiam de verdade!

— Incrível! Pensava que era só um jogo! — Mataram o Papa, pá! O Vapal — Caraças! Quantos pontos valerá uma dessas? E afastaram-se, a rir. Sylvie deteve-se, petrificada pelo espanto. Sendo uma católica a tra

balhar no meio de cientistas, tinha por vezes de suportar os resmungos anti-religiosos, mas a festa que aqueles garotos estavam a fazer parecia uma euforia absurda com a perda da Igreja. Como era possível que fossem tão insensíveis? Porquê tanto ódio?

Para Sylvie, a Igreja sempre fora uma entidade inócua... um lugar de companheirismo e introspecção... por vezes apenas um lugar onde podia cantar em voz alta sem que as pessoas se pusessem a olhar para ela. A Igreja marcava as grandes etapas da sua vida — funerais, casamentos, baptizados, dias santos — e nada lhe pedia em troca. Até os donativos em dinheiro eram voluntários. Os filhos saíam da catequese, todas as semanas, como que renovados, cheios de ideias a respeito de ajudar os outros e serem mais generosos. Que mal podia isso ter?

Nunca deixava de espantá-la o facto de tantas das célebres «mentes brilhantes» do CERN não conseguirem compreender a importância da Igreja. Acreditariam sinceramente que eram os quarks e os mesões que inspiravam o ser humano comum? Ou que as equações podiam substituir a necessidade que as pessoas tinham de fé no divino?

Aturdida, percorreu o resto do corredor, passando em frente das outras salas. Estavam todas cheias. Começou a pensar no telefonema que Köhler recebera do Vaticano. Coincidência? Talvez. O Vaticano ligava para o CERN de vez em quando, por uma questão de «corte-

352 DAN BROWN

sia», antes de emitir algum comunicado mais contondente a condenar as pesquisas que lá se faziam — o caso mais recente tivera a ver com os progressos da nanotecnologia, uma área que a Igreja condenava devido às suas apHcações em engenharia genética. O CERN nunca fazia caso. Invariavelmente, minutos depois do ataque do Vaticano, Köhler começava a atender telefonemas de empresas de investimento-tecno-lógico desejosas de licenciar a nova descoberta. «Não há nada como a publicidade negativa para fazer avançar os negócios», costumava o director dizer.

Sylvie perguntou a si mesma se devia ou não ligar a Köhler, lá onde diabo estivesse, e dizer-lhe para ouvir as notícias. Mas... estaria ele interessado? Já teria ouvido? Claro que já tinha ouvido. Estava provavelmente a gravar o noticiário com a sua maldita camarazinha portátil, a sorrir pela primeira vez num ano.

Só mais à frente encontrou uma sala onde o ambiente era de sobriedade... quase de tristeza. Os cientistas que ali assistiam ao noticiário eram dos mais antigos e respeitados do CERN. Nem sequer olharam quando Sylvie entrou e ocupou uma cadeira.

No outro extremo do CERN, no apartamento gelado de Leonardo Vetra, Maximilian Kohler acabara de 1er o diário encadernado a couro que tirara da gaveta da mesa-de-cabeceira. Estava agora a ouvir as notícias na TV. Alguns minutos mais tarde, voltou a guardar o diário na gaveta, desligou o televisor e saiu do apartamento.

Muito longe dali, na Cidade do Vaticano, o cardeal Mortati levou outra bandeja de votos até à fornalha da Capela Sistina. Queimou os papéis, e o fumo foi negro.

Duas votações. Nada de Papa.

CAPITULO OITENTA E TRES

Lanternas eléctricas não eram adversário à altura da assombrosa escuridão da Basílica de São Pedro. O negrume oprimia como uma noite sem estrelas e Vittoria sentiu o vazio espalhar-se à sua volta num desolado oceano de coisa nenhuma. Manteve-se muito perto dos dois guardas suíços e do camerlengo, que abria a marcha. Muito lá no alto, um pombo arrulhou e levantou voo com um bater de asas.

Como que adivinhando-lhe o desconforto, o camerlengo abrandou o passo para que ela o alcançasse e pousou-lhe uma mão no ombro. O contacto transmitiu-lhe uma força palpável, como se o homem estivesse a infundir-lhe magicamente a calma necessária para fazer o que se preparavam para fazer.

O que é que nos preparamos para fa^er?, pensou Vittoria. Isto é loucura.

E no entanto, bem o sabia, apesar da sua impiedade e do seu inevitável horror, a tarefa que a esperava era incontornável. As graves decisões que o camerlengo enfrentava exigiam informação... uma informação que se encontrava escondida num sarcófago nas Grutas do Vaticano. Perguntou a si mesma o que iriam encontrar. Será verdade que os Illuminati assassinaram o Papa? Será possível que o poder deles chegue tão longe?

E estarei eu realmente a preparar-me para fa^er a primeira autópsia papal?

Achou irónico o facto de se sentir mais apreensiva naquela igreja às escuras do que se sentiria se estivesse a nadar à noite num mar cheio de barracudas. A natureza era o seu refiigio. A natureza era uma coisa que compreendia. Eram as coisas do homem e do espírito que a debcavam confusa. A imagem de peixes assassinos a juntarem-se no escuro fê-la pensar na imprensa que esperava lá fora. Os corpos marcados com ferros em brasa recordaram-lhe o cadáver do pai... e a rouca gargalhada do assassino. O assassino que continuava por ali, algures. Vittoria sentiu a raiva subir-lhe no peito e sufocar o medo.

354 DAN BROWN

Quando contornaram a última coluna — mais grossa do que qualquer árvore que conseguisse imaginar — Vittoria viu, lá à frente, um clarão alaranjado. A luz parecia vir de baixo do chão, no centro da Basílica. Mais perto, soube o que estava a ver. Era o famoso santuário simado sob o altar-mor — a sumpmosa câmara subterrânea onde eram guardadas as mais Sagradas Relíquias do Vaticano. Ao chegarem junto do gradeamento que protegia a abertura, Vittoria olhou para baixo e viu o cofre dourado rodeado por dezenas de lâmpadas de azeite acesas.

— Os ossos de São Pedro? — perguntou, sabendo muito bem que sim. Todos os que chegavam a São Pedro sabiam o que continha o cofre de ouro.

— Na verdade, não — respondeu o camerlengo. — Trata-se de um erro muito comum. Aquele cofre não é um relicário. Contém pálios... as faixas escarlate que o Papa oferece aos novos cardeais.

— Mas eu pensava... — Como toda a gente. Os guias de viagens chamam a este cofre o

túmulo de São Pedro, mas a verdadeira sepultura do apóstolo encon-tra-se dois pisos abaixo de nós, no subsolo. O Vaticano mandou escavar a cripta nos anos 1940. Ninguém lá pode entrar.

Vittoria estava chocada. Enquanto se afastavam daquela poça de luz e voltavam a mergulhar na escuridão, pensou nas histórias que ouvira a respeito dos peregrinos que viajavam milhares de quilómetros para olhar para aquele cofre, convencidos de estarem na presença de São Pedro.

— Não acha que o Vaticano tinha a obrigação de esclarecer as pessoas?

— Todos beneficiamos com a sensação de contacto com a divindade... ainda que seja apenas imaginário.

Como cientista, Vittoria não podia discutir a lógica da afirmação. Lera incontáveis estudos sobre o efeito de placebos — aspirinas que curavam cancros em pessoas que acreditavam estar a tomar um medicamento milagroso. O que era a^', ao fim e ao cabo?

— Aqui no Vaticano, Hdar com a mudança não é o que fazemos melhor — continuou o camerlengo. — Admitir os nossos erros passados, modernizar, são coisas a que historicamente fugimos. Sua Santidade estava a tentar mudar tudo isso. — Fez uma pausa. — Estender a mão ao mundo moderno. Encontrar novos caminhos para Deus.

ANJOS E DEMÓNIOS 355

Vittoria assentiu, no escuro. — Como a ciência? — Para ser franco, a ciência parece irrelevante. — Irrelevante? — Vittoria seria capaz de pensar numa grande quan

tidade de palavras para definir a ciência, mas, no mundo moderno, «irrelevante» não lhe parecia ser uma delas.

— A ciência pode curar, ou a ciência pode matar. Depende da alma do homem que a usa. É a akna que me interessa.

— Quando foi que sentiu despertar a sua vocação? — Antes de nascer. Vittoria olhou para ele. — Peço desculpa, acho sempre estranha essa pergunta. O que que

ro dizer é que sempre soube que iria servir Deus. A partir do momento em que fui capaz de formular o meu primeiro pensamento. No entanto, foi só quando já era um jovem, no serviço militar, que compreendi verdadeiramente o meu objectivo.

— Fez o serviço muitar? — perguntou Vittoria, surpreendida. — Dois anos. Recusei-me a disparar armas, de modo que, em vez

disso, obrigaram-me a voar. Helicópteros de evacuação médica. Na realidade, ainda voo de vez em quando.

Vittoria tentou imaginar aquele jovem padre a pilotar um helicóptero. Estranhamente, não tinha a mínima dificuldade em vê-lo aos comandos. O camerlengo Ventresca era muito determinado, o que parecia acentuar-lhe a convicção.

— Alguma vez transportou o Papa? — Céus, não. Deixávamos essa preciosa carga nas mãos dos pro

fissionais. Por vezes. Sua Santidade deixava-me levar o helicóptero para o nosso retiro em Gandolfo. — Fez uma pausa, a olhar para ela. — Doutora Vetra, obrigado por me ajudar hoje. Lamento muito o que aconteceu ao seu pai. Sinceramente.

— Obrigada. — Nunca conheci o meu. Morreu antes de eu nascer. Perdi a mi

nha mãe quando tinha dez anos. Vittoria ergueu o olhar. — Também é órfão? — exclamou, sentindo uma súbita afinidade. — Sobrevivi a um acidente. Um acidente que me levou a minha

mãe.

356 DAN BROWN

— Quem cuidou de si? — Deus — respondeu o camerlengo. — Muito literalmente, en-

viou-me outro pai. Um bispo de Palermo apareceu junto à minha cama de hospital e acolheu-me. Na altura, nem sequer fiquei surpreendido. Desde muito novo que sentia a mão atenta de Deus sobre a minha cabeça. O aparecimento do bispo apenas confirmou aquuo que eu já suspeitava: Por qualquer razão, Deus tinha-me escolhido para o servir.

— Acreditou que Deus o tinha escolhido? — Acreditei. E acredito. — Não havia a mais pequena ponta de

vaidade na voz dele, apenas gratidão. — Trabalhei sob a tutela do bispo durante muitos anos. A seu tempo, ele foi feito cardeal. Mas nunca me esqueceu. É o pai de que me lembro. — O feixe de luz de uma lanterna passou de relance pelo rosto do camerlengo e Vittoria sentiu a solidão que lhe enchia os olhos.

O grupo chegou junto de um enorme puar, e todas as luzes das lanternas convergiram para uma abertura no chão. Vittoria olhou para os degraus que desapareciam no vazio e foi subitamente assaltada pelo desejo de voltar atrás. Os guardas já estavam a ajudar o camerlengo a iniciar a descida. A seguir, ajudaram-na a ela.

— O que foi feito dele? — perguntou enquanto descia, esforçan-do-se por manter a voz firme. — O cardeal que o acolheu?

— Deixou o Colégio Cardinalício para assumir outro cargo. Vittoria estava surpreendida. — E então, lamento muito dizê-lo, faleceu. — Le mie condoglian^e — disse Vittoria. — Recentemente? O camerlengo voltou-se, e as sombras acentuaram a dor que se lhe

reflectia no rosto. — Há exactamente quinze dias. Vamos agora vê-lo.

CAPITULO OITENTA E QUATRO

As lâmpadas de infravermelhos enchiam de uma luz quente o interior do compartimento de arquivo, este muito mais pequeno do que o outro onde Langdon tinha estado. Menos ar. Menos tempo. Desejou ter-se lembrado de pedir a Olivetti que ligasse as ventoinhas de recir-culação.

Localizou rapidamente a secção onde estavam guardados os livros de registo referentes a Belle Arti. Teria, aHás, sido impossível não a ver. Ocupava quase oito estantes inteiras. A Igreja Católica era proprietária de milhões de obras de arte espalhadas por todo o mundo.

Examinou as estantes, à procura de Gianlorenzo Bernini. Iniciou a sua busca a cerca de metade da primeira estante, mais ou menos no ponto onde calculou que começariam os JB. Depois de um instante de pânico em que receou que o livro tivesse desaparecido, apercebeu-se, consternado, que os volumes não estavam dispostos por ordem alfabética. Vor que é que não estou surpreendido?

Foi só depois de ter voltado ao início da colecção e trepado a um escadote com rodas para chegar à última prateleira que compreendeu a organização do compartimento. Precariamente empoleirados nas prateleiras superiores, encontrou os registos mais grossos de todos — os correspondentes aos mestres da Renascença — Miguel Angelo, Rafael, Da Vinci, Botticelli. Como bem se adequava a um compartimento chamado «Bens do Vaticano», compreendeu Langdon, os livros de registo estavam dispostos por ordem do valor Yoow&xáxio global da obra de cada artista. Encontrou Bernini ensanduichado entre Rafael e Miguel Angelo. Era um volume com mais de doze centímetros e meio de espessura.

Já com dificuldade em respirar e debatendo-se com o grosso volume, desceu o escadote. Então, como um garoto com um livro de banda desenhada, estendeu-se de bruços no chão e abriu-o.

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Era um volume encadernado a pano, muito sólido. As anotações-eram manuscritas, em italiano. Cada página catalogava uma única obra, incluindo uma descrição sucinta, localização, custo dos materiais e, em alguns casos, um tosco esboço da peça. Langdon passou um dedo pelas páginas... mais de oitocentas no total. Bernini fora sem dúvida um sujeito muito ocupado.

Quando era ainda um jovem estudante de arte, Langdon perguntara muitas vezes a si mesmo como conseguiam artistas isolados criar tantas obras no espaço de uma vida. Mais tarde descobrira, com uma boa dose de desapontamento, que os grandes mestres só eram responsáveis pela criação de uma pequena parte das suas obras. Dirigiam estúdios onde ensinavam jovens artistas a executar desenhos seus. Os escultores como Bernini criavam miniaturas em gesso e contratavam terceiros para transpô-las para o mármore no tamanho pretendido. Langdon sabia que se Bernini tivesse sido obrigado a executar pessoalmente todas as encomendas que lhe faziam, ainda estaria a trabalhar naquele momento.

— índice — disse em voz alta, tentando desembaraçar-se das teias de aranha mentais. Passou para o fim do livro, com a intenção de procurar na letra F títulos que contivessem a palavra^ò^-o — fogo —, mas os F não estavam todos juntos. Praguejou entredentes. ^ue raio é que esta gente tem contra a ordem alfabética^

As entradas tinham, ao que parecia, sido registadas cronologicamente, uma a uma, à medida que Bernini criava cada nova obra. Estava mdo listado por datas. DaU não lhe viria ajuda.

Enquanto olhava para a lista, ocorreu-lhe um outro pensamento decoroçoante. O título da escultura que procurava podia nem sequer incluir a palavra fogo. As duas primeiras obras — Habacuc e o Anjo e Vento Ponente — não continham qualquer referência específica a Terra ou a Ar.

Passou um ou dois minutos a folhear as páginas ao acaso, na esperança de que uma ilustração lhe saltasse aos olhos. Nenhuma saltou. Viu dúzias de obras obscuras de que nunca ouvira falar, mas viu também mmtas que reconheceu... Daniel e o Leão, Apolo e Dafne, além de meia dúzia de fontes. Quando viu as fontes, os seus pensamentos saltaram momentaneamente em frente. Água. O quarto altar de ciência seria uma fonte? Uma fonte parecia um tributo perfeito à água. Espe-

ANJOS E DEMÓNIOS 359

rava que conseguissem apanhar o assassino antes de ter de pensar em água... Bernini tinha dezenas de fontes em Roma, a maior parte delas diante de igrejas.

Voltou ao assunto do momento: fogo. Enquanto continuava a folhear o livro, as palavras de Vittoria encorajavam-no. Conhecia as duas primeiras esculturas... provavelmente também conhece esta. Regressando ao índice, procurou títulos que conhecesse. Alguns eram familiares, mas nenhum se destacava. Apercebeu-se de que nunca conseguiria completar a sua tarefa antes de desmaiar por falta de oxigénio, de modo que decidiu, ainda que a contragosto, que teria de levar o livro para fora do compartimento. H apenas um livro de contabilidade, disse a si mesmo. 'Não é o mesmo que levar uma folha original de Galileu. Lembrou-se do pedaço de papiro que tinha no bolso do casaco e tomou mentalmente nota para não se esquecer de o devolver antes de partir.

Agora cheio de pressa, estendeu as mãos para pegar no livro, mas, ao fazê-lo, viu qualquer coisa que lhe deteve o gesto. Apesar de haver numerosas anotações ao longo de todo o índice, a que lhe atraiu o olhar pareceu-lhe estranha.

A nota indicava que a famosa escultura de Bernini O Êxtase de Santa Teresa tinha, pouco depois de concluída, sido transferida da sua localização original dentro do Vaticano. Mas não fora isto que lhe despertara a atenção. Já conhecia o atribulado passado da escultura. Embora houvesse quem a considerasse uma obra-prima, o Papa Urbano VIII rejeitara-a, julgando-a sexualmente demasiado expHcita para o Vaticano e banindo-a para uma capela obscura qualquer do outro lado da cidade. O que chamara a atenção de Langdon fora o facto de a obra ter sido aparentemente colocada numa das igrejas que constavam da sua lista. Mais, a nota indicava que a escultura fora para lá transferida per suggerimento dei artista.

Vor sugestão do artista'? Langdon estava confuso. Não fazia o menor sentido Bernini ter sugerido que a sua obra-prima fosse escondida num lugar obscuro. Todos os artistas desejavam ver as suas obras em locais de destaque, não numa remota...

Hesitou. A menos que... Estava com medo de considerar sequer a ideia. Seria possível? Te

ria Bernini criado deliberadamente uma obra tão expHcita que obrigasse o Vaticano a escondê-la algures fora das vistas? Num local que

360 DAN BROWN

talvez ele próprio tivesse sugerido? Talvez uma remota igreja directa

mente em linha com o sopro do Vento Ponente?

A medida que a excitação crescia nele, o seu vago conhecimento da

estátua intrometeu-se, insistindo em que a obra não tinha nada a ver

com fogo. A escultura, como qualquer pessoa que a tivesse visto pode

ria testemunhar, era tudo menos científica —pornográfica, talvez, mas

científica com certeza que não. U m crítico inglês condenara certa vez

O Extase de Santa Teresa como sendo «o ornamento mais inadequado

para ser colocado numa igreja cristã». E Langdon compreendia a con

trovérsia. Ainda que brilhantemente executada, a estátua mostrava

Santa Teresa deitada de costas, no meio de um daqueles orgasmos

únicos na vida. Nada do género Vaticano.

Procurou apressadamente no Uvro a descrição da obra. Quando

viu o esboço, sentiu um súbito e inesperado assomo de esperança. N o

esboço. Santa Teresa parecia sem dúvida estar a divertir-se imenso,

mas havia na composição uma outra figura cuja presença Langdon ti

nha esquecido.

Um anjo.

A sórdida lenda voltou-lhe repentinamente à memória...

Santa Teresa era uma monja tornada santa depois de ter afirmado

que um anjo a visitara durante o seu sono. Mais tarde, os críticos deci

diram que o encontro fora provavelmente mais sexual do que espiritual.

Rabiscado no fundo da página, Langdon encontrou um excerto co

nhecido. As palavras da própria Santa Teresa eram bastante explícitas:

... a sua grande lança dourada... cheia de fogo... mergulhou em

mim várias vezes... penetrou-me até às entranhas... uma doçura tão

extrema que não era possível desejar que acabasse.

Langdon sorriu. Se isto não é uma metáfora para sexo do melhor, não sei

o que será. Estava a sorrir também por causa da descrição que o livro fa

zia da obra. Apesar de escrita em italiano, a palavra^ÒÍTO aparecia meia

dúzia de vezes:

... lança do anjo com ponta áe.fogo...

... cabeça do anjo emana raios de fogo...

... mulher inflamada pelo fogo da paixão...

ANJOS E DEMÓNIOS 361

SÓ ficou totalmente convencido depois de olhar outra vez para o esboço. A lança flamejante do anjo estava erguida como um farol, apontando o caminho. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada. Até o tipo de anjo que Bernini escolhera parecia significativo. B um serafim, percebeu Langdon. Serafim significa literalmente «o ardente».

Robert Langdon não era pessoa que tivesse alguma vez procurado uma confirmação vinda do alto, mas quando leu o nome da igreja onde a escultura actualmente residia, decidiu que era bem capaz de tornar-se um crente, ao fim e ao cabo.

Santa Maria delia Vittoria. Vittoria, pensou, sorrindo. Petfeito. Ao pôr-se de pé, titubeante, sentiu uma tontura. Olhou para a es

cada, perguntando a si mesmo se não deveria voltar a colocar o Kvro no seu lugar. Que se dane, pensou. O padre Jaqui que trate disso. Fechou o livro e deixou-o ao pé da estante.

Avançou para o botão que brilhava no puar central da porta electrónica do compartimento, com a respiração ofegante. Apesar disso, sentia-se rejuvenescido pela sua boa sorte.

A boa sorte, no entanto, esgotou-se antes de ter conseguido chegar à saída.

Sem aviso, o compartimento deixou escapar como que um suspiro dolorido. As luzes diminuíram de intensidade e o botão da porta de saída apagou-se. Então, como um enorme animal moribundo, toda a zona dos arquivos mergulhou na mais absoluta escuridão. Alguém tinha cortado a electricidade.

CAPITULO OITENTA E CINCO

As Sagradas Grutas do Vaticano situam-se sob a nave principal da BasíUca de São Pedro. É lá que são sepultados os Papas.

Vittoria chegou ao fundo da escada em caracol e entrou na gruta. O escuro túnel recordou-lhe o Grande Coüsionador de Hadrões do CERN — negro e frio. Iluminado apenas pelas lanternas dos guardas suíços, transmitia uma sensação claramente incorpórea. Havia, de ambos os lados, nichos escavados na parede. No interior destas alcovas, tão longe quanto a luz das lanternas permitia ver, avultavam os contornos mais escuros de sarcófagos.

Havia ali uma frialdade que lhe arrepiava a pele. E do frio, disse Vittoria a si mesma, sabendo que só em parte era verdade. Tinha a sensação de estarem a ser vigiados, não por alguém vivo, mas por espectros na escuridão. Em cima de cada sarcófago, envergando as vestes pontifícias, havia efígies em tamanho natural de cada Papa, mostrado na morte, com as mãos cruzadas sobre o peito. Os corpos prostrados pareciam emergir dos túmulos, fazendo força contra as tampas de mármore como que a tentar fugir aos seus Hames mortais. Alumiado pelas lanternas, o pequeno cortejo seguiu em frente, e as silhuetas Papais er-guiam-se e voltavam a descer ao longo das paredes, esticando-se e desaparecendo numa macabra dança de sombras.

Um silêncio pesado descera sobre o grupo, e Vittoria não saberia dizer se era de respeito ou de apreensão. Sentia ambos. O camerlengo caminhava de olhos fechados, como se soubesse de cor cada passo. Vittoria suspeitava que ele tinha feito aquele fantasmagórico passeio muitas vezes desde a morte do Papa... talvez para rezar junto do túmulo dele, a pedir orientação.

Trabalhei sob a tutela do bispo durante muitos anos, dissera o camerlengo. Yoi como um pai para mim. Vittoria lembrava-se o ter ouvido dizer

ANJOS E DEMÓNIOS 363

estas palavras referindo-se ao bispo que o «salvara» do serviço miutar. Agora, porém, compreendia o resto da história. O mesmo bispo que tomara Cario Ventresca sob a sua protecção ascendera ao cardinalato e depois ao papado e levara consigo o seu jovem protegido, para lhe servir de camerlengo.

O que explica muita coisa, pensou Vittoria. Sempre tivera uma intuição muito afinada para as emoções mais íntimas dos outros, e havia algo no camerlengo que andara a escapar-lhe durante todo o dia. Logo que o vira, detectara nele uma angústia mais profunda e pessoal do que a esmagadora crise que agora enfrentava. Por detrás da sua piedosa calma, via um homem atormentado por demónios privados. Via agora que os seus instintos estavam correctos. O jovem sacerdote não só enfrentava a mais devastadora ameaça da história do Vaticano, como tinha de fazê-lo sem o seu mentor e amigo... a solo.

Os guardas abrandaram o passo, como se não soubessem muito bem onde se encontrava, naquela escuridão, o corpo do último Papa. O camerlengo seguiu em frente sem hesitar, detendo-se diante de um túmulo de mármore que parecia brilhar com vima luz mais clara do que os outros. Quando reconheceu o rosto do jacente, dos noticiários que vira na televisão, Vittoria sentiu-se apertada pela garra do medo. O que é que estamos afazer?

— Compreendo que não nos resta muito tempo — disse o camerlengo. — Mesmo assim, peço um momento para rezar.

Os guardas suíços inclinaram a cabeça. Vittoria imitou-os, sentindo o coração a bater no silêncio. O camerlengo ajoelhou-se diante do túmulo e rezou em italiano. Ao ouvir as palavras, uma dor inesperada subiu no peito de Vittoria e transbordou em lágrimas... lágrimas pelo seu próprio mentor... o seu próprio Santo Padre. O que o camerlengo dizia parecia tão apropriado para o pai dela como para o Papa.

— Pai supremo, conselheiro, amigo. — As palavras ecoaram abafadas na escuridão do túnel. — Disseste-me, quando eu era jovem, que a voz no meu coração era a voz de Deus. Disseste-me que devia segui--la, por muito dolorosos que fossem os lugares aonde ela me conduzisse. Ouço essa voz agora, a pedir-me que realize tarefas impossíveis. Dá-me força. Concede-me o perdão. O que faço... faço-o em nome de tudo aquilo em que acreditas. Amen.

364 DAN BROWN

— Amen — murmuraram os guardas. O camerlengo pôs-se lentamente de pé e afastou-se do sarcófago. — Retirem a tampa — ordenou. Os guardas suíços hesitaram. — Signare — disse um deles —, pela lei, estamos sob as suas or

dens. — Fez uma pausa. — Faremos o que diz... O camerlengo pareceu 1er os pensamentos do jovem. — Um dia, hei-de pedir-lhes perdão por tê-los colocado nesta sima-

ção. Hoje, peço-lhes que me obedeçam. As leis do Vaticano foram estabelecidas para proteger esta Igreja. É nesse mesmo espírito que lhes ordeno que agora as infrinjam.

Houve um momento de suêncio, e então o guarda mais graduado deu a ordem. Os três homens pousaram as lanternas no chão, e as suas sombras ergueram-se. Iluminados de baixo, avançaram para o túmulo. Agarrando com as mãos a tampa de mármore perto da cabeceira do sarcófago, retesaram os músculos e prepararam-se. Ao sinal do chefe, fizeram força ao mesmo tempo, empurrando o enorme bloco de mármore. Quando a tampa não se moveu um milímetro, Vittoria deu por si quase a desejar que fosse demasiado pesada. De repente, sentiu medo do que fossem encontrar lá dentro.

Os homens empurraram com mais força, mas nem mesmo assim a pedra se moveu.

— A.ncora — disse o camerlengo, arregaçando as mangas da sotaina e preparando-se para empurrar com eles. — Oral— E empurraram.

Vittoria preparava-se para oferecer a sua própria ajuda, mas nesse instante a tampa começou a deslizar. Os homens redobraram os esforços e, com um som quase primitivo de pedra a raspar contra pedra, a tampa deslizou até formar um ângulo com a caixa do sarcófago, ficando a cabeça esculpida do Papa voltada para o interior do nicho e os pés a apontar para fora.

Todos recuaram. Lentamente, um dos guardas babcou-se e apanhou a lanterna do

chão. Então, apontou-a para o túmulo. O feixe de luz pareceu tremer por um instante, mas logo o guarda o manteve firme. Os dois outros soldados recompuseram-se. Mesmo na escuridão, Vittoria sentiu-os como que encolherem-se. Um após o outro, benzeram-se.

ANJOS E DEMONIOS 365

O camerlengo estremeceu ao olhar para dentro do sarcófago, e os ombros penderam-lhe como pesos mortos. Ficou ali imóvel por um longo instante antes de se voltar.

Vittoria temera que a boca do cadáver estivesse cerrada pelo rigor mortis, e que tivesse de sugerir que partissem o maxilar para poderem observar a Ungua. Viu então que não seria necessário. Na flacidez da morte, o queixo descaíra, e o Papa tinha a boca aberta.

A língua estava negra como a noite.

CAPITULO OITENTA E SEIS

Nenhuma luz. Nenhum som. Os Arquivos Secretos estavam imersos em escuridão. O medo, apercebeu-se Langdon, era um potente motivador. A ofe

gar, tropeçou no escuro em direcção à porta giratória. Encontrou o botão do puar e esmagou-o com a palma da mão. Nada aconteceu. Tentou outra vez. A porta não se moveu.

Gritou, rodando às cegas, mas a voz saiu-lhe estrangulada. Pela primeira vez, teve subitamente consciência do perigo da situação. Os pulmões exigiam oxigénio, ao mesmo tempo que a adrenalina lhe duplicava o ritmo cardíaco. Sentiu-se como se lhe tivessem dado um murro no estômago.

Quando atirou o peso do corpo contra a porta, pareceu-lhe por um instante senti-la começar a girar. Voltou a empurrar, vendo pontos luminosos diante dos olhos. Percebeu então que era a sala inteira que girava, não a porta. Afastou-se a cambalear, tropeçou no escadote com rodas e caiu. Bateu com o joelho na esquina de uma estante. A praguejar, pôs-se de pé e procurou o escadote.

Encontrou-o. Esperara que fosse de madeira pesada ou de ferro, mas era de alumínio. Pegou nele e segurou-o como se fosse um aríete. Então, correu no escuro em direcção à parede de vidro. Estava mais perto do que pensara. O escadote bateu-Ihe em cheio e ressaltou. Pelo débil som da coHsão, Langdon soube que ia precisar de muito mais do que um escadote de alumínio para partir aquele vidro.

Quando se lembrou da semiautomática, teve um fugaz lampejo de esperança, que se desvaneceu no momento seguinte. A arma desaparecera. Olivetti tinha-lha tirado no gabinete do Papa, dizendo que não queria armas carregadas à solta estando o camerlengo presente. Na altura, fizera todo o sentido.

ANJOS E DEMÓNIOS 367

Voltou a gritar, fazendo ainda menos ruído do que da última vez. Lembrou-se então do rádio que o guarda deixara em cima da mesa,

fora do compartimento. Porque raio não o trouxe comigo? Quando as estrelas cor de púrpura começaram a dançar-lhe diante dos olhos, obrigou--se a pensar. Não é a primeira pe^ que te vês encurralado, disse a si mesmo. ]â sobreviveste a pior. Uras apenas um miúdo e descobriste a solução. A escuridão, esmagadora, abateu-se sobre ele. Pensa!

Estendeu-se no chão, deitado de costas, com os braços pousados ao longo do corpo. O primeiro passo era controlar-se.

B^laxa. Conserva. Não tendo já de combater a gravidade para bombear o sangue,

o coração começou a abrandar. Era um truque que os nadadores usavam para reoxigenar o sangue entre provas consecutivas.

Há aqui muito ar, disse a si mesmo. Muito. Agora pensa. Aguardou, quase à espera de ver as luzes acenderem-se de um momento para o outro. Mas não se acenderam. 7\li estendido, agora a respirar um pouco melhor, sentiu uma estranha resignação invadi-lo. Sentiu-se em paz. Lutou contra aquilo.

Vais mexer-te, raios! Mas para onde... No pulso dele, o relógio do Rato Mickey brilhava alegremente, como

que a gostar do escuro. 9.33. Meia hora para o Fogo. Pensou que parecia ser muito mais tarde. E o seu cérebro, em vez de engendrar um plano de fuga, pôs-se a exigir explicações. Quem cortou a corrente? Terá sido o Rocher, a alargar a sua busca? O Olivetti não lhe terá dito que eu estava aqui? Sabia que, naquela situação, não fazia a mais pequena diferença.

Abrindo muito a boca e dobrando a cabeça para trás, começou a inspirar o mais fundo que conseguia. Cada inspiração ardia um pouco menos do que a anterior. A mente aclarou-se-lhe. Concentrou o pensamento e forçou as engrenagens a rodar.

Paredes de vidro, pensou. Mas vidro grosso como um raio. Estariam alguns dos livros guardados em armários de aço, pesados,

à prova de fogo? Encontrava-os de vez em quando noutros arquivos, mas au não vira nenhum. Além disso, procurar um no escuro consumiria demasiado tempo. E nem conseguiria levantá-lo do chão, mesmo que o encontrasse, muito menos nas acmais condições.

£ a mesa de exame? Sabia que aquele compartimento, como o outro onde estivera, tinha uma mesa de exame no meio das estantes. £ depois? Sabia que não conseguiria levantá-la. Para não referir que, mesmo que

368 DAN BROWN

conseguisse arrastá-la, não chegaria muito longe. As estantes estavam demasiado juntas umas das outras, as coxias entre elas eram demasiado estreitas.

As coxias eram demasiado estreitas... Subitamente, soube. Com uma explosão de energia, levantou-se depressa de mais. A cam

balear na névoa de um súbito afluxo de sangue ao cérebro, estendeu as mãos no escuro, em busca de um ponto de apoio. Encontrou uma estante. Aguardando um instante, obrigou-se a ficar quieto. Ia precisar de todas as suas forças para aquilo.

Colocou-se de costas para a estante, como um jogador de futebol americano contra uma prancha de treino, fincou os pés no chão e empurrou. Se conseguir derrubar a estante... Mas a estante mal se mexeu. Langdon voltou a pôr-se em posição e empurrou novamente. Os pés escorregaram-lhe no chão. A estante rangeu, mas ficou onde estava.

Precisava de uma alavanca. Encontrou outra vez a parede de vidro, pousou nela uma mão para

se guiar e correu no escuro em direcção ao extremo oposto do compartimento. A parede do fundo apareceu-lhe subitamente à frente e Langdon chocou com ela, magoando um ombro. A praguejar, contornou a primeira estante e agarrou uma prateleira ã altura dos olhos. Então, apoiando um pé no vidro e o outro nas prateleiras, começou a trepar. Os livros caíam à volta dele, como que adejando na escuridão. Não quis saber. Havia muito que o instinto de sobrevivência relegara para muito longe o decoro arquivístico. Sentiu que o seu equilíbrio estava a ser prejudicado pela escuridão total e fechou os olhos, ordenando ao cérebro que ignorasse as impressões visuais. Movia-se agora mais depressa. Quanto mais subia, mais rarefeito lhe parecia o ar. Trepou até ãs últimas prateleiras, pisando livros, procurando pontos de apoio, empurrando-se para cima. Então, como um alpinista a escalar o último metro de uma parede de rocha, agarrou o topo da estante. Esticando as pernas para trás, subiu pelo vidro até ficar quase na horizontal.

£ agora ou nunca, Robert, incitou-o uma voz. FÖ^ de conta que estás no ginásio, lá em Harvard.

Com um esforço que o deixou tonto, fincou os pés no vidro, encostou os braços e o peito à estante, e empurrou. Nada aconteceu.

De boca muito aberta para inspirar, retomou a posição e tentou outra vez, esticando as pernas. A estante moveu-se quase impercepti-

ANJOS E DEMÓNIOS 369

velmente. Empurrou mais uma vez, e a estante balouçou dois ou três centímetros para um lado e para o outro. Langdon aproveitou o movimento, aspirou uma golfada de ar que parecia já não conter qualquer oxigénio, e voltou a empurrar. A oscuação foi um pouco maior.

Como um baloiço, disse a si mesmo. Mantém o ritmo. Não pares. Continuou a balouçar a estante, esticando um pouco mais as per

nas a cada empurrão. Tinha os músculos a arder. Bloqueou a dor. O pêndulo estava em movimento. Mais três empurrões, disse a si mesmo.

Bastaram dois. Houve um instante de incerta ausência de peso. Então, com um

trovejar de livros a caírem das prateleiras, ele e a estante começaram a tombar para a frente.

A meio caminho do chão, a estante bateu na seguinte. Langdon agarrou-se, atirando o peso do corpo para a frente, pedindo aos deuses que a segunda estante caísse. Houve um instante de pânico imóvel, e então, gemendo sob o peso, a segunda estante começou a incUnar-se. Langdon estava outra vez a cair.

Como gigantescas peças de dominó, as estantes derrubavam-se umas às outras. Metal contra metal, livros espalhados por todo o lado. Langdon agarrou-se com toda a força que lhe restava enquanto a sua estante continuava a cair para a frente. Perguntou a si mesmo quantas haveria ao todo. E quanto pesariam? O vidro daquelas paredes era grosso...

A estante a que estava agarrado tinha quase chegado à horizontal quando ouviu o que esperava — um tipo diferente de colisão. Lá muito longe. No outro extremo do compartimento. O bater seco de metal contra vidro. O compartimento estremeceu, e Langdon soube que a última estante, sobrecarregada com o peso de todas as outras, tinha colidido violentamente contra o vidro. O som que se seguiu foi o mais terrível que alguma vez ouvira.

Silêncio. Não houve o estilhaçar do vidro, só a pancada ressoante da parede

a suportar o peso das estantes empilhadas contra ela. Ficou deitado em cima do monte de livros, de olhos muito abertos. Algures lá de longe chegou-lhe o som de um estalido. Langdon teria retido a respiração, se lhe restasse alguma respiração para reter.

Um segundo. Dois... Então, quando já vacilava à beira da inconsciência, ouviu o ruído

distante de qualquer coisa a ceder... um rachar que alastrava como uma

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teia de aranha pela parede de vidro. De repente, como um canhão, o vidro explodiu. A estante debaixo de Langdon bateu no chão.

Como uma abençoada chuvada no deserto, lascas de vidro começaram a cair do escuro. Com um sibilante ruído de sucção, o ar entrou numa enorme golfada.

Trinta segundos mais tarde, nas Sagradas Grutas do Vaticano, Vit-toria estava de pé diante de um cadáver quando o crepitar electrónico de um rádio quebrou o suêncio. A voz que irrompeu do aparelho parecia ofegante.

— Aqui Robert Langdon! Alguém me ouve? Vittoria ergueu a cabeça. Kobert! Nem queria acreditar em como de

repente desejava tanto que ele estivesse ali. Os guardas trocaram olhares confusos. Um deles tirou o rádio do

cinto. — Doutor Langdon? Está no canal três. O nosso comandante es

pera notícias suas no canal um. — Sei muito bem que ele está no canal um, raios! Não quero falar

com ele. Quero o camerlengo! Já. Procurem-no!

Na escuridão dos Arquivos Secretos, Langdon estava de pé no meio do mar de vidros estilhaçados, a tentar normalizar a respiração. Sentiu um líquido quente escorrer-lhe pela mão esquerda e soube que estava a sangrar. A voz do camerlengo respondeu imediatamente, sobressal-tando-o.

— Fala o camerlengo Ventresca. Que se passa? Langdon premiu o botão, com o coração ainda a bater descompas

sadamente. — Acho que alguém acaba de tentar matar-me! Fez-se silêncio na linha. Langdon tentou acalmar-se. — 7\lém disso, sei onde vai acontecer o próximo assassínio. A voz que ouviu a seguir não foi a do camerlengo. Foi a do coman

dante Olivetti. — Doutor Langdon, não diga nem mais uma palavra.

CAPITULO OITENTA E SETE

O relógio Rato Mickey, agora sujo de sangue, marcava 9.41 quando Langdon atravessou a correr o pátio do Belvedere e se aproximou da fonte fronteira ao centro de segurança da Guarda Suíça. A mão, que parara de sangrar, doía-lhe mtoito, apesar de a ferida não parecer particularmente grave. Quando chegou, foi como se estivessem todos combinados: Olivetti, Rocher, o camerlengo, Vittoria e um punhado de guardas apareceram ao mesmo tempo.

Vittoria correu imediatamente para ele. — Robert, está ferido. Antes que Langdon pudesse responder, Olivetti estava diante dele. — Doutor Langdon, ainda bem que está okaj. Lamento a confusão

nos Arquivos. — Confusão? — perguntou Langdon. — Sabia muito bem... — A culpa foi minha — disse Rocher, avançando um passo, com

um ar contrito. — Não fazia a mínima ideia de que estava nos Arquivos. Partes das nossas zonas brancas estão ligadas à mesma rede que esse edifício. Estávamos a alargar a busca. Fui eu que cortei a corrente. Se soubesse...

— Robert — disse Vittoria, pegando-lhe na mão ferida e exami-nando-a —, o Papa foi envenenado. Os llluminati mataram-no.

Langdon ouviu as palavras, mas quase não as registou. Estava saturado. Tudo o que conseguia sentir era o calor das mãos de Vittoria.

O camerlengo tirou um lenço de seda do bolso da sotaina e esten-deu-o a Robert, para que pudesse Umpar-se. Não disse uma palavra. Os seus olhos verdes pareciam cheios de um novo fogo.

— Robert — pressionou Vittoria —, disse que sabe onde vai ser assassinado o próximo cardeal?

Langdon sentia-se como que a voar.

372 DAN BROWN

— Sim, é... — Não — interrompeu-o Olivetti. — Doutor Langdon, quando

lhe pedi que não dissesse nem mais uma palavra pelo rádio, foi por uma razão. — Voltou-se para a meia dúzia de guardas suíços que os rodeavam. — Deixem-nos sós, meus senhores.

Os soldados desapareceram no centro de comando. Nenhuma indignidade. Apenas obediência.

Olivetti voltou-se de novo para o resto do grupo. — Por muito que me custe dizer isto, a morte do nosso Papa foi

um acto que só podia ser levado a cabo com cumplicidades no interior destas paredes. Para bem de todos nós, não podemos confiar seja em quem for. Incluindo os nossos guardas. — Parecia sofrer ao dizer estas palavras.

— Cumplicidades internas significa... — murmurou Rocher, ansioso.

— Sim — disse Olivetti. — A integridade da sua busca está comprometida. E, no entanto, é um risco que temos de correr. Continue a procurar.

Rocher pareceu estar a preparar-se para dizer qualquer coisa, mas mudou de ideias e saiu.

O camerlengo inspirou profundamente. Ainda não dissera uma palavra, e Langdon sentiu nele um novo rigor, como se tivesse chegado a um ponto de viragem.

— Comandante. — O tom da voz foi imperscrutável. — Vou interromper o Conclave.

Olivetti franziu os lábios, numa expressão azeda. — Aconselho-o a não o fazer. Ainda temos duas horas e vinte mi

nutos. — Um instante. — O que é que pretende fazer? — Havia agora desafio na voz de

Olivetti. — Evacuar os cardeais sem ajuda? — Tenciono salvar esta Igreja com todos os poderes que Deus me

deu. Como vou fazê-lo já não Lhe diz respeito. Olivetti pôs-se rígido. — Seja o que for que tenciona fazer... — Fez uma pausa. — Não

tenho autoridade para impedi-lo. Sobretudo à luz do meu aparente fracasso como responsável pela segurança. Peço-lhe apenas que espere.

ANJOS E DEMÓNIOS 373

Vinte minutos, até depois das dez horas. Se a informação do doutor Langdon está correcta, talvez ainda consiga apanhar o assassino. Ainda há uma possibilidade de preservar o protocolo e o decoro.

— O decoro? — O camerlengo abafou uma gargalhada. — Há muito que passámos essa fase, comandante. Caso não tenha dado por isso, estamos em guerra.

Um guarda apareceu à porta do centro de segurança e dirigiu-se ao camerlengo.

— Signore, acabo de s.er informado de que detivemos o jornalista da BBC, o senhor GHck.

O camerlengo assentiu com a cabeça. — Quero encontrar-me com ele, e com a operadora de câmara,

à porta da Capela Sistina. Olivetti abriu muito os olhos. — Que vai fazer? — Vinte minutos, comandante. É tudo o que lhe dou. E saiu.

Quando o Alfa Komeo de Olivetti saiu da Cidade do Vaticano, não havia qualquer fila de carros negros a segui-lo. No banco traseiro, Vit-toria Hgava a mão de Langdon com o material de um estojo de primei-ros-socorros que encontrara no porta-luvas.

Olivetti olhava fixamente em frente. — Muito bem, doutor Langdon. Para onde é que vamos?

CAPITULO OITENTA E OITO

Mesmo com a sirene a uivar e a luz rotativa no tejadilho, o Alfa de Olivetti pareceu passar despercebido enquanto atravessava velozmente a ponte, a caminho do coração da cidade velha. Todo o tráfego se fazia no sentido oposto, em direcção ao Vaticano, como se a Santa Sé se tivesse repentinamente tornado a grande atracção nocturna de Roma.

Langdon viajava no banco traseiro, com um turbilhão de perguntas a encher-lhe o cérebro. Estava a pensar no assassino, perguntando a si mesmo se desta vez o apanhariam, se ele lhes diria o que precisavam de saber, se seria já demasiado tarde. Quanto tempo lhes restaria até que o camerlengo dissesse à multidão que enchia a Praça de São Pedro que estava em perigo? O incidente no compartimento de arquivo continuava a preocupá-lo. Um engano.

Olivetti nem sequer tocou no travão enquanto fazia o uivante Alfa Romeo contornar Santa Maria dei Popólo. Langdon sabia que, em qualquer outra ocasião, teria os nós dos dedos brancos de tensão. Naquele momento, porém, sentia-se anestesiado. Só o latejar na mão esquerda lhe recordava onde estava.

A luz azul rodopiava, a sirene uivava. Nada como avisá-lo de que vamos a caminho, pensou Langdon. Por outro lado, estavam a fazer um tempo incrível. Calculou que Olivetti desligaria a sirene quando estivessem mais perto.

Agora, com um pouco de tempo para ficar sentado a pensar, sentiu uma pontada de esmpefacção quando o seu cérebro registou finalmente a notícia do assassínio do Papa. A ideia era inconcebível, e, no entanto, parecia um acontecimento perfeitamente lógico. A capacidade de infiltração sempre fora a grande força dos Illuminati— rearranjar o poder a partir de dentro. E o assassínio de um Papa não era, nem pouco mais ou menos, caso inédito. Abundavam na História rumores de trai-

ANJOS E DEMÓNIOS 375

ção e morte violenta, ainda que, na impossibilidade de se fazer uma au

tópsia, nenhum deles tivesse sido confirmado. Até muito recentemen

te. Havia bem pouco tempo, os estudiosos tinham obtido autorização

para radiografar o túmulo de Celestino V, que alegadamente morrera

às mãos do seu demasiado impaciente sucessor, Bonifácio VIIL Os in

vestigadores tinham alimentado a esperança de que os raios-X revelas

sem qualquer indício de violência, como um osso partido, por exem

plo. Incrivelmente, o que tinham descoberto fora uma cavilha de ferro

com vinte e cinco centímetros cravada no crânio do pontífice.

Langdon recordou uma série de recortes de jornais que um grupo

de «maluquinhos» dos llluminati lhe enviara anos antes. Ao princípio,

julgara que os recortes faziam parte de uma brincadeira, de modo que

resolvera consultar a colecção de microfichas de Harvard para verificar

se eram autênticos. Espantosamente, eram. Passara a conservá-los no

seu painel de trabalho como exemplos de como até os órgãos de infor

mação mais respeitáveis se deixavam arrastar pela paranóia llluminata.

De repente, as suspeitas da imprensa pareciam-lhe bastante menos pa

ranóicas. Recordava claramente os artigos...

THE BRITISH BROADCASTING CORPORATION

14 de Junho de 1998

O Papa João Paulo I, falecido em 1978, foi vítima de uma conju

ra urdida pela Loja Maçónica P2 (...). A sociedade secreta P2 decidiu

assassinar João Paulo I ao saber que ele estava decidido a demitir

o arcebispo americano Paul Marcinkus do cargo de presidente do

Banco do Vaticano. O banco estivera implicado em negócios pouco

claros com a Loja Maçónica (...).

THE NEW YORK TIMES

24 de Agosto de 1998

Por que razão o falecido Papa João Paulo I vestia na cama a sua

camisa de dia? E porque estava esta camisa rasgada? As perguntas não

ficam por aqui. Não foram feitas quaisquer investigações médicas.

O cardeal ViUot proibiu uma autópsia, alegando que nunca nenhum

Papa fora autopsiado. E os medicamentos de João Paulo desaparece-

^'^^ DAN BROWN

ram misteriosamente da mesa-de-cabeceira, tal como desapareceram os seus óculos, os seus chinelos de quarto e o seu testamento.

LONDON DAILY MAIL

27 de Agosto de 1998

(...) uma conjura que incluiu uma poderosa, implacável e ilegal Loja maçónica cujos tentáculos se estendiam até ao Vaticano.

O telemóvel no bolso de Vittoria começou a tocar, arrancando misericordiosamente Langdon às suas recordações.

Vittoria atendeu, parecendo confusa, incapaz de adivinhar quem estaria a ligar-lhe. Mesmo à distância a que se encontrava, Langdon reconheceu a voz, cortante e precisa como um laser.

Vittoria? Fala Maximilian Kohler. Já encontraram a antimatéria? — Max? Está bem?

Vi as notícias. Não houve referências ao CERN nem à antimatéria. O que é bom. Que se está a passar?

Ainda não conseguimos localizar o contentor. A situação é complexa. O Robert Langdon tem sido uma grande ajuda. Temos uma pista para capturar o homem que anda a assassinar os cardeais. Neste preciso instante, vamos a caminho de...

Doutora Vetra — interrompeu-a Olivetti —, já disse o suficiente. Ela tapou o microfone, claramente irritada.

Comandante, estou a falar com o director do CERN. Com certeza ele tem direito a...

— Tem o direito — replicou Olivetti — de estar aqui a tratar desta sitiiação. Está a falar por uma linha aberta. Já disse o suficiente.

Vittoria inspirou fiindo. — Max?

E possível que tenha informações para si. — disse Köhler. A respeito do seu pai... Talvez saiba com quem ele falou a respeito

da antimatéria.

A expressão de Vittoria ensombreceu.

Max, o meu pai disse-me que não tinha contado a ninguém. — Receio, Vittoria, que o seu pai tenha de facto contado a alguém.

Preciso de consultar uns registos de segurança. Volto a contactar em breve. — E a Unha ficou muda.

ANJOS E DEMÓNIOS 377

Vittoria estava cor de cera quando voltou a guardar o telefone no bolso.

— Está bem? — perguntou Langdon. Ela assentiu, mas os dedos trémulos denunciaram a mentira.

— A igreja fica na Piazza Barberini — disse Olivetti, desligando a sirene e consultando o relógio. — Temos nove minutos.

Quando Langdon percebera onde se encontrava o terceiro marcador, a localização da igreja evocara no seu espírito uma recordação longínqua. Pia^^^a Barberini. Havia no nome algo de familiar... algo que não conseguia situar. Agora, de repente, soube o que era. A praça era o local de uma controversa estação de metropolitano. Há vinte anos, a construção da estação provocara enorme agitação entre os historiadores de arte, receosos de que as obras de escavação fizessem tombar o obelisco que ocupava o centro do largo. Os planeadores municipais tinham removido o obeHsco, substítuindo-o por uma pequena fonte chamada o Tritão.

No tempo de Bernini, apercebia-se agora Langdon, havia um obelisco na Pia^t^a Barberini!hs suas dúvidas, se algumas tivesse, a respeito da localização do terceiro marcador dissiparam-se por completo.

A um quarteirão da praça, Olivetti meteu por uma viela, percorreu--a até cerca de metade do seu comprimento e travou o carro. Despiu o casaco, enrolou as mangas e verificou o carregador da arma.

— Não podemos correr o risco de serem reconhecidos — disse. — Apareceram os dois na televisão. Quero-os do outro lado da praça, a vigiar a porta principal. Eu vou entrar pelas traseiras. — Tirou do cinto uma segunda arma e estendeu-a a Langdon. — Por uma questão de segurança.

Langdon franziu o sobrolho. Era a segunda vez naquele dia que lhe entregavam uma arma. Enfiou-a no bolso interior do casaco. Ao fazê-lo, lembrou-se de que ainda tinha consigo a folha do Diagramma. Nem queria acreditar que se esquecera de deixá-la em segurança. Imaginou o curador do Vaticano a ter um ataque à ideia de aquela peça sem preço andar a ser passeada por Roma como um vulgar mapa turístico. Pensou então na confusão de vidros partidos e documentos espalhados que deixara atrás de si nos Arquivos. O curador ia ter ou-

378 DAN BROWN

tros problemas com que se ocupar. Isto supondo que os Arquivos sobrevivem a esta noite...

Olivetti saiu do carro e apontou para o extremo da viela. — A praça fica para aquele lado. Conservem os olhos bem abertos

e não se deixem ver. — Bateu com a mão no telefone que tinha preso ao cinto. — Doutora Vetra, verifiquemos mais uma vez a marcação automática.

Vittoria tirou o telemóvel do bolso e premiu o dígito de memória que programara no Panteão. O telefone de Olivetti começou a vibrar, em modo de chamada silenciosa.

O comandante assentiu com a cabeça. — Óptimo. Se virem alguma coisa, quero saber. — Puxou atrás

a corrediça da arma, introduzindo uma bala na câmara. — Vou estar lá dentro, à espera. Esse herege é meu.

Nesse preciso instante, muito perto dali, um outro telemóvel estava a tocar.

O Hashashin atendeu. — Fale. — Sou eu — disse a voz. —Janus. O Hashashin sorriu. — Olá, mestre. — É possível que a sua posição seja conhecida. Vai alguém a cami

nho para tentar detê-lo. — Vão chegar demasiado tarde. Já tratei das coisas aqui. — Óptimo. Certifique-se de que escapa com vida. Há ainda traba

lho a fazer. — Os que se atravessarem no meu caminho morrerão. — Os que se lhe atravessam no caminho são pessoas conhecedoras. — Está a referir-se ao professor americano? — Sabe da existência dele? O Hashashin riu-se. — Esperto, mas ingénuo. Falou comigo ao telefone, há pouco. Es

tá com uma mulher que parece ser exactamente o oposto. — Sentiu uma onda de excitação ao recordar o temperamento fogoso da filha de Leonardo Vetra.

ANJOS E DEMÓNIOS 379

Houve um momentâneo silêncio na linha, o primeiro sinal de hesitação que o Hashashin notava no mestre llluminatus. Finalmente, Janus falou:

— Elimine-os, se necessário. O Hashashin voltou a sorrir. — Considere-o feito. Sentiu um agradável calor de expectativa espalhar-se-lhe pelo corpo.

Se hem que a mulher, talve^ a conserve como prémio.

CAPITULO OITENTA E NOVE

Tinha rebentado a guerra diante de São Pedro. A praça explodira num frenesi de agressividade. As carrinhas dos

media chegavam ao local como veículos de assalto a estabelecer uma testa-de-ponte. Os jornalistas dispunham a sua aparelhagem electrónica de alta tecnologia como soldados em preparativos para a batalha. À volta de todo o perímetro da praça, as estações de televisão disputavam os melhores lugares enquanto se apressavam a montar a mais recente arma na guerra da informação: os grandes ecrãs planos.

Os ecrãs planos eram enormes monitores de vídeo que se podiam montar em cima de carrinhas ou de armações portáteis. Serviam como uma espécie de painel publicitário, mostrando a reportagem que estava a ser feita e o logótipo da estação, como um cinema ao ar uvre. Se o ecrã ficasse bem situado — em frente do local da acção, por exemplo — as outras estações não podiam filmar a história sem incluir um anúncio à concorrência.

A praça estava a transformar-se rapidamente não só numa extravaganza multimédia, mas também numa frenética atracção púbuca. Chegava gente vinda de todas as direcções. Um lugar vago naquele espaço normalmente ilimitado estava a tornar-se um bem vaHoso. As pessoas aglomeravam-se à volta dos grandes ecrãs planos, escutando as reportagens em directo com aturdida excitação.

A uma escassa centena de metros de distância, no interior das grossas paredes da Basílica, o mundo mantinha-se sereno. O tenente Char-tran e outros três guardas avançavam por entre as trevas. Equipados com óculos de visão nocturna, espalharam-se pela nave, fazendo balouçar os detectores à sua frente. Até ao momento, a revista aos luga-

ANJOS E DEMÓNIOS 381

res de acesso público da Cidade do Vaticano não produzira quaisquer resultados.

— Aqui é melhor tirar os óculos — disse o guarda mais experiente. Chartrand já começara a fazê-lo. Aproximavam-se do Nicho dos

Pálios — a zona rebaixada no centro da Basíuca. Ardiam ali noventa e nove lâmpadas de azeite, cuja luz, amplificada pelo equipamento de visão nocturna, lhes teria magoado os olhos.

Chartrand ficou satisfeito por se ver livre dos pesados óculos, quanto mais não fosse por alguns instantes, e esticou o pescoço para trás enquanto desciam ao fundo do nicho para revistar a área. O espaço era muito belo... dourado e brilhante. Nunca au tinha estado.

Parecia a Chartrand que todos os dias, desde que chegara ao Vaticano, descobria um novo mistério. Aquelas candeias de azeite eram um deles. Estavam sempre acesas exactamente noventa e nove candeias. Era a tradição. Padres atentos enchiam-nas com óleos sagrados de modo a que nunca se apagassem. Dizia-se que haviam de arder até ao fim dos tempos.

Ou pelo menos até à meia-noite de hoje, pensou Chartrand, sentindo outra vez a boca seca.

Fez passar o detector por cima das candeias. Não havia nada aH escondido. Não se surpreendeu. O contentor, a dar crédito às imagens emitidas pela câmara, estava escondido num lugar escuro.

Ao avançar pelo nicho, chegou junto a uma grade que tapava uma abermra no chão. A abertura dava acesso a uma íngreme e estreita escada que descia para as profundezas. Chartrand já ouvira histórias a respeito do que havia lá em baixo. Felizmente, não iam ter de descer. As ordens de Rocher tinham sido explícitas. Revistem apenas as tronas de acesso público. Ignorem as áreas restritas.

— Que cheiro é este? — perguntou, afastando-se da grade. O nicho estava cheio de um aroma inebriantemente adocicado.

— É do fumo das candeias — explicou um dos outros guardas. Chartrand ficou surpreendido. — Cheira mais a colónia do que a querosene. — Não é querosene. Essas candeias estão perto do altar papal, e por

isso queimam uma mistura especial: etanol, açúcar, butano e perfume. — Butano?— Chartrand olhou para as lâmpadas, desconfiado. O guarda assentiu.

382 DAN BROWN

— Não entornes nem um bocadinho. Cheira a paraíso, mas arde como o inferno.

Os guardas tinham acabado de revistar o Nicho dos Pálios e deslo-cavam-se uma vez mais ao longo da nave da Basílica quando os rádios de todos eles começaram a apitar.

O capitão Rocher fazia um ponto de situação. Os homens escutaram, estupefactos.

Aparentemente, tinham surgido novos dados, que não podiam ser divulgados por aquele meio, mas o camerlengo decidira quebrar a tradição e interromper o Conclave para se dirigir aos cardeais. Nunca antes, em toda a História, fora feita uma coisa daquelas. Mas também, pensou Chartrand, nunca antes, em toda a História, o Vaticano se vira ameaçado

por aquilo que parecia ser uma espéde de ogiva nuclear de última geração.

Chartrand sentiu-se confortado por saber que o camerlengo assumira o controlo da situação. Era ele a pessoa por quem, em toda a Cidade do Vaticano, nutria mais respeito. Alguns dos guardas achavam--no um beato, um zelota religioso cujo amor a Deus raiava a obsessão, mas mesmo esses admitiam que... em se tratando de dar batalha aos inimigos de Deus, Cario Ventresca era o homem com quem se podia contar para erguer os punhos e jogar duro.

Os guardas suíços tinham estado em estreito contacto com o camerlengo durante aquela semana de preparação para o Conclave, e todos estavam de acordo em que se mostrara mais áspero e que os seus olhos esverdeados tinham um brilho mais intenso do que de costume. Como era natural, todos tinham comentado o facto; o camerlengo era não só responsável por organizar o Sagrado Conclave, como tinha, além disso, de fazê-lo imediatamente após ter perdido o seu amigo e mentor, o Papa.

Chartrand estava no Vaticano havia muito pouco tempo quando ouvira a história da bomba que esfacelara a mãe do camerlengo diante dos olhos do filho. Uma bomba numa igreja... e agora está a acontecer outra

ve^ Infelizmente, as autoridades nunca tinham conseguido capturar os bandalhos autores do atentado... provavelmente um qualquer grupo anticristão, dissera-se na almra, e o caso acabara por cair no esquecimento. Não admirava que o camerlengo desprezasse a apatia.

ANJOS E DEMÓNIOS 383

Uns meses antes, numa tarde tranqioila na Cidade do Vaticano, Chartrand dera de caras com ele ao atravessar um jardim. Tendo-o aparentemente reconhecido como um guarda recém-entrado ao serviço, o jovem padre convidara-o para o acompanhar num passeio. Não tinham falado a respeito de coisa nenhuma em especial, mas o camer-lengo fizera Chartrand sentir-se imediatamente à-vontade.

— Padre — dissera Chartrand —, posso fazer-lhe uma pergunta estranha?

— Só se eu puder dar-lhe uma resposta estranha — respondera o camerlengo, com um sorriso.

Chartrand rira-se. — Tenho feito esta pergunta a todos os padres que conheço, e con

tinuo sem compreender. — O que é que o perturba? O camerlengo caminhava com passos curtos e rápidos, agitando

a sotaina à sua frente a cada passada. Os sapatos pretos, de sola de crepe, condiziam com o homem, pensara Chartrand, eram como que o reflexo da sua essência... modernos mas simples, a mostrar sinais de uso.

Chartrand inspirara fundo. — Não entendo essa coisa de omnipotencia-benevolencia. O camerlengo voltara a sorrir. — Andou a 1er as Escrimras. — A tentar. — Está confuso porque a Bíblia descreve Deus como uma divin

dade omnipotente e benévola. — Exacto. — Omnipotente-benévolo significa apenas que Deus é Todo-Po-

deroso e nos ama. — Compreendo o conceito. É que... parece haver uma contradição. — Sim. A contradição é a dor. A fome, a guerra, a doença. — Exactamente! — Chartrand sabia que o camerlengo havia de

compreender. — Acontecem coisas terríveis neste mundo. A tragédia humana parece prova de que Deus não pode ser Todo-Poderoso e amar-nos. Se Deus nos amasse e tivesse o poder de alterar a nossa situação, impediria a nossa dor, não é verdade?

O camerlengo franzira a testa. — Será?

384 DAN BROWN

Chartrand sentira-se pouco à-vontade. Tena passado os umites? Seria aquela uma das tais perguntas religiosas que pura e simplesmente não se faz?

— Bem... se Deus nos amasse, e tivesse poder para nos ajudar, teria de fazê-lo. Por isso parece que ou é Todo-Poderoso e indiferente, ou nos ama mas não pode ajudar-nos.

— Tem filhos, tenente? Chartrand corara. — Não, signore. — Imagine que tinha um filho de oito anos... Amá-lo-ia? — Com certeza. — Deixá-lo-ia andar de skateboard'^ Chartrand hesitara. O camerlengo parecia sempre estranhamente

«sintonizado», para padre. — Sim, acho que sim — acabara por dizer. — Sim, deixá-lo-ia an

dar de skateboard, mas dir-lhe-ia para ter cuidado. — Portanto, como pai desse rapaz, dar-Ihe-ia alguns conselhos bá

sicos e deixá-lo-ia cometer os seus próprios erros? — Não ia pôr-me a correr atrás dele a apaparicá-lo, se é a isso que

se refere. — Mas... e se ele caísse e esfolasse um joelho? — Aprenderia a ter mais cuidado. O camerlengo sorrira. — Portanto, embora tivesse o poder de interferir e evitar a dor do

seu filho, optaria por mostrar-lhe o seu amor deixando-o aprender à própria custa?

— Claro. A dor faz parte do crescimento. É assim que aprendemos. O camerlengo assentira. — Exactamente.

CAPITULO NOVENTA

Langdon e Vittoria vigiavam a Piazza Barberini das sombras de um pequeno beco no canto oriental. A igreja erguia-se no lado oposto da praça, uma cúpula indistinta a sobressair de um pequeno grupo de casas. A noite trouxera consigo uma frescura agradável e Langdon ficou surpreendido ao encontrar o local deserto. Por cima deles, saindo pelas janelas abertas, a balbúrdia dos televisores ligados lembrou-lhe o lugar para onde toda a gente tinha ido.

— ... não há ainda comentários da parte do Vaticano... os lllumina-Ä'assassinam dois cardeais... presença satânica em Roma... especula-se sobre outras infiltrações...

A notícia alastrara como o incêndio de Nero. Roma estava colada à televisão, como aliás, o resto do mundo. Langdon perguntou a si mesmo se conseguiriam realmente fazer parar aquele comboio desgovernado. Enquanto examinava os arredores e esperava, apercebeu-se de que, a despeito da intrusão de edifícios modernos, a traça do largo continuava a ser notavelmente elíptica. Lá muito em cima, como uma espécie de santuário moderno a um herói do passado, um enorme letreiro de néon brilhava no telhado de um hotel de luxo. As duas palavras pareciam misteriosamente apropriadas.

HOTEL BERNINI

— Cinco para as dez — disse Vittoria, os olhos de gato a escrutinar os arredores. Mal disse estas palavras, agarrou Langdon por um braço e puxou-o para as sombras. Apontou para o centro da praça.

Langdon seguiu a direcção do dedo dela. Quando viu, pôs-se rígido. Passando em frente deles, por baixo de um candeeiro, apareceram duas figuras escuras. Ambas envoltas em capas, as cabeças tapadas por

386 DAN BROWN

mantilhas, o tradicional xaile negro das viúvas católicas. Langdon diria que eram mulheres, mas naquela escuridão não podia ter a certeza. Uma parecia mais velha e movia-se como se tivesse dores. A outra, mais alta e mais forte, ajudava-a.

— Dê-me a arma — pediu Vittoria. — Não pode... Com um movimento fluido, felino, Vittoria enfiou-lhe a mão no

casaco e tirou-lhe a pistola. Então, no mais absoluto silêncio, como se os pés mal tocassem as pedras da calçada, começou a deslocar-se para a esquerda, entre as sombras, descrevendo um círculo de modo a apro-ximar-se do par por trás. Langdon ficou como que hipnotizado, a vê-la desaparecer. Então, praguejando para dentro, seguiu-a.

As duas figuras avançavam lentamente, e numa questão de meio minuto Vittoria e Langdon colocaram-se atrás delas, aproximando-se. Vittoria escondeu a arma na dobra dos braços despreocupadamente cruzados sobre o peito, dissimulada mas acessível numa fracção de segundo. Parecia flutuar cada vez mais depressa à medida que a distância encurtava, e Langdon esforçou-se para não ficar para trás. Quando bateu com o pé numa pedra, fazendo-a rolar, Vittoria lançou-lhe um olhar de esguelha. Mas as duas figuras pareceram não ter ouvido. Estavam a falar.

A cerca de nove metros de distância, Langdon começou a ouvir as vozes. Não as palavras. Apenas murmúrios. Ao lado dele, Vittoria avançava mais depressa a cada passo. Distendeu os braços, com a arma a começar a espreitar. Seis metros. As vozes eram agora mais ciaras, uma muito mais alta do que a outra. Zangada. A ralhar. Langdon sentiu que era a voz de uma velha. Rouca. Andrógina. Fez um esforço para ouvir o que dizia, mas uma outra voz cortou a noite.

— Mi scusi!— O tom amistoso de Vittoria iluminou a praça como um archote.

Langdon pôs-se tenso quando as duas figuras encapotadas se detiveram e começaram a voltar-se. Vittoria continuava a caminhar para elas, cada vez mais depressa, numa rota de coHsão. Não iam ter tempo para reagir. Langdon apercebeu-se de que os seus próprios pés se tinham imobilizado. De trás, viu Vittoria abrir os braços, a mão über-tar-se, a arma baloiçar. Então, por cima do ombro dela, viu um rosto, agora iluminado pela luz do candeeiro. Saltou para a frente, como se o pânico lhe tivesse posto molas nas pernas.

ANJOS E DEMÓNIOS 387

— Vittoria, não! Vittoria, porém, parecia agir uma fracção de segundo à frente dele.

Num movimento tão rápido como natural, ergueu novamente os braços e a arma desapareceu quando se abraçou a si mesma, como se estivesse com frio. Langdon tropeçou até junto dela, quase chocando contra as duas figuras encapotadas.

— Buona sera — disse Vittoria, a voz sobressaltada pela retracção. Langdon suspirou de aHvio. Duas mulheres idosas olhavam para

eles por debaixo dos xailes. Uma era tão velha que mal conseguia man-ter-se de pé. A outra ajudava-a. Ambas seguravam rosários e pareciam confundidas pela súbita interrupção.

Vittoria sorriu, apesar de parecer abalada. — Dov'è la chiesa Santa Maria delia Vittoria'^ Onde fica a igreja... As duas mulheres apontaram para a volumosa silhueta de um edifí

cio situado numa rua em declive na direcção de onde tinham vindo. — È là. — Gra^e —- disse Langdon, pousando as mãos nos ombros de Vit

toria e puxando-a suavemente para trás. Nem queria acreditar que quase tinham atacado um par de velhotas.

— Non sipuó entrare — avisou uma delas. — È chiusa temprano. — Fechou cedo — Vittoria fez um ar surpreendido. — Perche? As duas mulheres começaram a explicar ao mesmo tempo. Pare

ciam zangadas. Langdon percebeu apenas partes do enrolado italiano. Aparentemente, estavam ambas na igreja, um quarto de hora antes, a rezar pelo Vaticano naquela sua hora de necessidade, quando aparecera um homem e lhes dissera que a igreja ia fechar mais cedo.

— Hanno conosáuto l'uomo? — perguntou Vittoria, tensa. — Reconheceram o homem?

As mulheres abanaram a cabeça. O homem era um straniero crudo, expHcaram, e obrigara todos os que estavam na igreja a sair, até o jovem padre e o sacristão, que dissera que ia chamar a poUcia. Mas o intruso limitara-se a rir, dizendo-lhes que pedissem aos polícias para levarem câmaras.

Câmaras?, estranhou Langdon. As duas mulheres protestavam iradamente, chamando ao homem

um bar-àrabo. Então, resmungando, seguiram o seu caminho. — Bar-àrabo?— perguntou Langdon a Vittoria. — Um bárbaro?

388 DAN BROWN

Não exactamente — respondeu Vittoria, tensa. — Bar-àrabo é um jogo de palavras pejorativo. Signiñca. Arabo... Árabe.

Langdon sentiu um arrepio e voltou-se para a silhueta da igreja. Ao fazê-lo, viu de relance qualquer coisa num dos vitrais. A imagem disparou uma onda de medo que lhe percorreu o corpo.

Ignorante do que se passava, Vittoria pegou no telemóvel e premiu o botão de marcação automática.

— Vou avisar o Olivetti. Incapaz de falar, Langdon tocou-lhe num braço. Com uma mão

que tremia, apontou para a igreja. Vittoria ofegou. Dentro do edifício, refulgindo como olhos demoníacos através dos

vidros coloridos dos vitrais... brilhava o clarão cada vez mais intenso de labaredas.

CAPITULO NOVENTA E UM

Langdon e Vittoria correram para a porta principal da igreja de Santa Maria délia Vittoria e encontraram-na trancada. Vittoria apontou a semiautomática de Olivetti e disparou três tiros contra a velha fechadura, estilhaçando-a.

Não havia nártex, de modo que, ao empurrarem as portas arrombadas, puderam abarcar num único relance a totalidade do santuário. A cena que tinham à sua frente era tão inesperada, tão bizarra, que Langdon teve de fechar os olhos e voltar a abri-los para que o cérebro aceitasse registá-la.

A igreja era sumptuosamente barroca, com paredes e altares de talha dourada. Os bancos de madeira tinham sido empilhados num grande monte no meio da coxia central, por baixo da cúpula, e ardiam como uma espécie de épica pira fúnebre. Uma fogueira cujas línguas de fogo subiam em direcção à abóbada. Quando Langdon ergueu os olhos até ao topo daquele inferno, todo o horror da cena desceu sobre ele como uma ave de rapina.

Lá do alto, dos lados esquerdo e direito do tecto, pendiam duas correntes de incensório — usadas para fazer balançar os turíbulos com incenso por cima da congregação. Não eram, porém, turíbulos o que aquelas duas correntes agora suportavam. Fora-lhes dado outro uso...

Suspenso delas estava um ser humano. Um homem nu. Com um pulso amarrado à extremidade de cada corrente, fora içado ao ponto de o corpo quase se rasgar ao meio. De braços estendidos como se estivesse pregado num crucifixo invisível, parecia pairar dentro da casa de Deus.

Langdon sentiu-se paralisado ao olhar para cima. Um momento mais tarde, assistiu à abominação final. O homem, um ancião, estava vivo, e ergueu a cabeça. Dois olhos aterrorizados voltaram-se para bai-

390 DAN BROWN

xo, numa súplica silenciosa. No peito, tinha gravado a fogo uma marca. Fora marcado com um ferro em brasa. Langdon não conseguia ver claramente, mas não tinha dúvidas sobre o que a marca dizia. Quando as chamas subiram mais alto, lambendo os pés do homem, a vítima gritou de dor, e todo o seu corpo estremeceu.

Como que empurrado por uma força invisível, Langdon sentiu subitamente que se movia, correndo pela nave principal em direcção à fogueira. Os pulmões encheram-se-lhe de fumo quando se aproximou. A três metros do braseiro, chocou contra uma parede de calor. Com a pele do rosto chamuscada, caiu para trás, protegendo os olhos com o braço levantado, e embateu violentamente no mármore do chão. Pôs-se de pé, cambaleante, e voltou a avançar, com as mãos erguidas num gesto de protecção instintivo.

Soube no mesmo instante que o calor era demasiado intenso. Retrocedeu e começou a examinar as paredes da igreja. Uma tape

çaria pesada, pensou. Se conseguisse abafar as chamas... Mas sabia que não ia encontrar qualquer tapeçaria. Isto é uma igreja barroca, Robert, não é um raio de um castelo alemão! Vensa! Obrigou-se a erguer novamente os olhos para o homem suspenso.

Lá muito em cima, o fumo e as chamas revoluteavam na abóbada. As correntes dos incensórios estendiam-se obliquamente a partir dos braços do homem até ao tecto, onde passavam por roldanas e voltavam a descer para dois grampos de metal cravados em paredes opostas da igreja. Langdon olhou para um dos ganchos. Estava situado muito alto na parede, mas soube que se conseguisse chegar até ele e soltar a corrente, o homem suspenso balouçaria para longe das chamas.

Numa investida súbita, as chamas estralejaram mais alto, e Langdon ouviu um grito de agonia vindo do tecto. A pele dos pés do homem começava a formar bolhas. O cardeal estava a ser assado vivo. Langdon cravou os olhos no gancho e correu para ele.

Ao fundo da igreja, Vittoria apoiou-se nas costas de um banco, procurando recompor-se do choque. A imagem do homem suspenso do tecto era horrível. Obrigou-se a desviar os olhos. Fa^ qualquer coisa! Perguntou a si mesma onde se teria Olivetti metido. Teria visto o assassino? Tê-lo-ia capmrado? Onde estariam naquele momento? Avançou com a intenção de ajudar Langdon, mas, ao fazê-lo, um som deteve-a.

ANJOS E DEMÓNIOS 391

O crepitar das chamas era cada vez mais intenso, mas havia também um segundo som. Uma vibração. Ali perto. Parecia vir do fim da fila de bancos, do lado esquerdo. Era um matraquear seco, como o toque da campainha de um telefone, mas pétreo e duro. Vittoria apertou com mais força a coronha da pistola e começou a caminhar ao longo da fila de bancos. O som tornou-se mais forte. Intermitente. Uma vibração que se repetia a intervalos regulares.

Quando se aproximou do fim da coxia, sentiu que o som vinha do outro lado da esquina, onde terminavam os bancos. Ao avançar, com a arma na mão direita, apercebeu-se de que também segurava qualquer coisa com a mão esquerda — o telemóvel. Com o pânico, esquecera--se de que lá fora o usara para contactar o comandante... accionando o dispositivo de vibração silenciosa do dele, no intuito de avisá-lo. Levou o telefone ao ouvido. Continuava a chamar. O comandante não chegara a atender. De súbito, com um medo crescente, Vittoria soube o que estava a fazer aquele ruído. Continuou a avançar, trémula.

A igreja inteira pareceu ftigir-lhe de baixo dos pés ao ver a forma sem vida estendida no chão. Não havia sangue a escorrer do corpo. Nem marcas de violência na pele. Havia apenas a horrível geometria da cabeça do comandante... torcida para trás, rodada cento e oitenta graus na direcção errada. Vittoria esforçou-se por afastar do espírito imagens do corpo mutilado do pai.

O telemóvel preso ao cinto do comandante estava encostado ao chão, a vibrar sincopadamente contra o frio mármore. Vittoria desligou o seu telefone, e a vibração cessou. Foi então que, no silêncio, ouviu outro som. Uma respiração no escuro, imediatamente atrás dela.

Começou a voltar-se, de arma levantada, mas soube que era demasiado tarde. Uma linha de calor, como um raio laser, desceu-lhe do crânio até às plantas dos pés quando o cotovelo do assassino lhe embateu na base da nuca.

— Agora és minha — disse uma voz. No instante seguinte, a escuridão fechou-se.

Do outro lado da igreja, junto à parede lateral esquerda, Langdon, equilibrado em cima das costas de um banco, esticava os braços, a tentar chegar ao gancho. A corrente ficava, mesmo assim, quase um metro

392 DAN BROWN

e oitenta acima da cabeça dele. Ganchos como aquele eram comuns nas igrejas, geralmente colocados bem alto para evitar que alguém lhes mexesse. Langdon sabia que os padres usavam escadas de madeira, chamadas /»ò//, para lhes chegar. O assassino tinha obviamente usado a escada da igreja para içar a sua vítima. Então onde raios está agora a escada? Olhou para baixo, procurando no chão à sua volta. Recordava-se vagamente de ter visto uma escada ali algures. Mas onde? No instante seguinte, o coração afundou-se-lhe no peito. Lembrou-se onde a vira. Voltou-se para a fogueira. Lá estava ela, bem no alto da pira, envolta em chamas.

Desesperado, examinou toda a igreja do alto da sua plataforma, à procura de qualquer objecto que pudesse ajudá-lo a chegar ao gancho. E enquanto o fazia, apercebeu-se subitamente de uma coisa.

Onde diabo está Vittoria? Tinha desaparecido. Terá ido chamar ajuda?

Gritou o nome dela, mas não obteve resposta. iS onde estará o Olivetti? Ouviu um uivo de dor, vindo de cima, e sentiu que era já demasia

do tarde. Enquanto voltava a erguer os olhos para o tecto e via a vítima que assava lentamente, só conseguia pensar numa coisa. Agua. Montes de água. Apagar o fogo. Velo menos, baixar as chamas.

— Preciso de água! — gritou em voz alta. — Isso é a seguir — rosnou uma voz, do fundo da igreja. Langdon voltou-se, quase caindo das costas do banco. Viu, a caminhar em direcção a ele pela coxia lateral, um homem

enorme e escuro. Mesmo à luz das labaredas, ardia nos olhos dele um fogo negro. Reconheceu a arma que o homem empunhava. Era a que tivera no bolso do casaco... a que Vittoria trazia consigo quando ali tinham entrado.

A súbita onda de pânico que lhe subiu no peito foi um frenesi de vários medos. O seu primeiro pensamento foi para Vittoria. O que lhe teria aquele animal feito? Estaria ferida? Ou pior? Ao mesmo tempo, apercebeu-se de que o homem suspenso do tecto gritava mais alto. O cardeal ia morrer. Ajudá-lo era agora impossível. Então, quando o assassino lhe apontou a arma ao peito, o pânico de Langdon voltou-se para dentro, e os seus sentidos entraram em sobrecarga. Reagiu instintivamente ao ouvir o tiro. Saltando para a frente, voou de braços abertos por cima do mar de bancos da igreja.

ANJOS E DEMÓNIOS 393

Quando em.bateu neles, foi com mais força do que esperara. Rolou pelo chão. O mármore amorteceu-lhe a queda com toda a macieza de uma placa de aço. Ouviu passos a aproximarem-se pela direita. Torceu o corpo na direcção da frente da igreja e começou a rastejar por baixo dos bancos.

Bem alto acima do chão da igreja, o cardeal Guidera suportava os últimos e torturantes momentos de consciência. Ao olhar para o seu próprio corpo nu, viu a pele das pernas empolar e desprender-se. Estou no inferno, decidiu. Deus, por que me abandonaste? Soube que aquilo tinha de ser o inferno porque estava a ver invertida a marca que o ferro em brasa lhe fizera no peito... e mesmo assim, como que por diabólica magia, a palavra fazia perfeito sentido.

CAPITULO NOVENTA E DOIS

Três votações. Nada de Papa. Dentro da Capela Sistina, o cardeal Mortati começara a rezar por

um milagre. Envia-nos os candidatos! A demora já se arrastara por tempo mais do que suficiente. Um candidato em falta podia Mortati compreender. Mas OS quatro? Não deixava quaisquer alternativas. Naquelas condições, conseguir uma maioria de dois terços exigiria um acto do próprio Deus.

Quando os ferrolhos exteriores rangeram e começaram a correr, Mortati e todo o Colégio Cardinalício voltaram-se ao mesmo tempo para a porta. Mortati sabia que aquilo só podia significar uma coisa. Por lei, duas razões apenas permitiam que aquela porta fosse aberta: evacuar alguém que estivesse muito doente, ou deixar entrar cardeais atrasados.

Vêm aí os preferiti! O coração de Mortati desanuviou-se. O Conclave estava salvo.

Quando, porém, a porta se abriu, o som que ecoou na capela não foi de alegria. Mortati ficou a olhar, incrédulo de choque, para o homem que entrava. Pela primeira vez em toda a história do Vaticano, um camerkngo atravessava o umbral sagrado do Conclave depois de as portas terem sido seladas.

Que lhe terá passado pela cabeça?

O camerkngo avançou até ao altar e voltou-se para falar à estupefacta audiência.

— Signori — disse —, esperei o mais que pude. Há uma coisa que todos têm o direito de saber.

CAPITULO NOVENTA E TRES

Langdon não fazia ideia para onde ia. Os reflexos eram a sua única bússola, empurrando-o na direcção contrária à do perigo. Sentia os cotovelos e os joelhos a arder enquanto rastejava por baixo dos bancos. Mas não parava. Algures, uma voz dizia-Ihe que fosse para a esquerda. Se conseguires chegar à coxia central, poderás correr para a saída. Sabia que era impossível. Há uma parede de chamas a bloquear a coxia central! Com o cérebro a procurar desesperadamente respostas, continuou a avançar às cegas. O ruído de passos aproximava-se agora mais rapidamente, vindo da direita.

Quando aconteceu, Langdon não estava à espera. Calculara ter mais três metros de bancos antes de chegar à parte da frente da igreja. Calculara mal. Sem aviso, a cobertura por cima dele desapareceu. Imobi-Hzou-se por um instante, meio exposto no chão de mármore. Num recesso à sua esquerda, parecendo gargantuesco da posição em que se encontrava, viu aquilo que o levara até ali. Tinha-se esquecido completamente. O Êxtase de Santa Teresa de Bernini erguia-se como uma espécie de natureza-morta pornográfica... a santa deitada de costas, arqueada de prazer, a boca aberta num gemido, e, de pé diante dela, o anjo, a apontar a sua lança de fogo.

Uma bala cravou-se na madeira do banco por cima da cabeça dele. Langdon sentiu-se saltar para a frente como um corredor de cem metros a arrancar dos blocos. Impulsionado pela adrenalina, quase inconsciente das suas próprias acções, estava de súbito a correr, de cabeça baixa, a atravessar a nave para a direita. Com as balas a ricochetear à sua volta, mergulhou mais uma vez, desHzando descontroladamente pelo chão de mármore até embater na vedação de um nicho na parede do lado direito.

396 DAN BRO\X/N

Foi então que a viu. Um monte inerte caído no chão, ao fundo da igreja. Vittoria! Tinha as pernas nuas dobradas debaixo do corpo, mas Langdon percebeu, sem poder dizer porquê, que estava viva. Não tinha tempo para ajudá-la.

No mesmo instante, o assassino dobrou a esquina da fila de bancos, no extremo esquerdo da nave, e correu para ele. Numa fracção de segundo, Langdon soube que estava tudo acabado. O assassino ergueu a arma e Langdon fez a única coisa que podia fazer: rolou o corpo por cima do topo do parapeito e deixou-se cair dentro do nicho. Quando bateu no chão do outro lado, uma chuva de balas arrancou lascas ao mármore dos balaústres.

Langdon sentiu-se como um animal encurralado enquanto rastejava para o fundo do nicho semicircular. Erguendo-se à sua frente, o único conteúdo do nicho parecia ironicamente apropriado: um sarcófago. O meu, take:(¡ pensou Langdon. Até o túmulo em si condizia com a situação: era uma scàtola, uma pequena caixa de mármore, sem adornos. Um funeral de tarifa económica. A urna assentava em dois blocos de mármore, e Langdon olhou para o espaço entre o fundo e o chão, perguntando a si mesmo se conseguiria enfiar-se ali.

Ouviu o som de passos que se aproximavam. Sem outra alternativa à vista, atirou-se para o chão e rastejou para

o ataúde. Agarrando os dois apoios de mármore, um com cada mão, puxou-se como um nadador de bruços, arrastando o tronco para a abertura por baixo da urna. A arma disparou.

A acompanhar o estampido, Langdon sentiu algo que nunca sentira em toda a sua vida... uma bala a roçar-lhe a carne. Houve um suvo, como o estalar de um chicote, e o projéctil falhou-o por milímetros, arrancando uma chuva de lascas ao bloco de mármore. Com o coração a bater loucamente, Langdon enfiou o resto do corpo debaixo da urna, continuou a rastejar e saiu do outro lado.

Beco sem saída. Estava agora face-a-face com a parede traseira do nicho. Não teve

a mínima dúvida de que aquele pequeno espaço atrás do túmulo seria a sua sepultura. E em breve, compreendeu, ao ver o cano da arma aparecer na abertura por baixo do sarcófago. O assassino mantinha a pistola paralela ao chão, apontando directamente para ele.

Impossível falhar.

ANJOS E DEMÓNIOS 397

Sentiu um vestígio de autopreservação dominar-lhe o inconsciente. Torceu o corpo, rodando sobre o estômago, até ficar paralelo à urna. Estendido de bruços, apoiou as mãos no chão e fez força. O corte que fizera nos Arquivos abriu, com uma punhalada de dor. Ignorou-a. Erguendo o corpo numa estranha flexão, arqueou o estômago para cima no momento em que a arma disparou. Sentiu as ondas de choque das balas a passarem por baixo dele e pulverizarem o calcário poroso da parede. De olhos fechados, lutando contra o cansaço, pediu a Deus que fizesse parar aquele barulho.

E então, de repente, parou. O estrépito dos disparos foi substituído pelo ruído frio do percu

tor a bater em seco. Langdon abriu lentamente os olhos, quase com medo de que as pál

pebras fizessem barulho. Lutando contra a dor, manteve a posição, arqueado como um gato. Nem sequer se atrevia a respirar. Ensurdecido pelas detonações, esforçou-se por ouvir qualquer indicação de que o assassino se fora embora. Silêncio. Pensou em Vittoria, desejando ajudá-la.

O som que se seguiu foi arrepiante. Quase inumano. Um bramido gutural de esforço.

O sarcófago pareceu subitamente erguer-se sobre o lado. Langdon deixou-se cair no chão, enquanto várias centenas de quilos de pedra se inclinavam para ele. A gravidade acabou por vencer o atrito, e a tampa foi a primeira a cair, deslizando de cima da urna e estilhaçando-se no chão. Seguiu-se o sarcófago, que escorregou para fora dos apoios e começou a descrever uma cambalhota na direcção dele.

Ao ver a urna rolar, Langdon soube que ou ficaria encurralado no seu interior, ou seria esmagado por um dos bordos. Encolhendo as pernas e a cabeça, fez-se o mais pequeno possível, apertando os braços contra o corpo. Então, de olhos fechados, esperou a morte.

Quando a urna caiu, o chão estremeceu. O rebordo superior bateu a escassos milímetros do topo da cabeça dele, obrigando-o a ranger os dentes. O braço direito, que Langdon tivera a certeza de que seria esmagado, parecia miraculosamente intacto. Abriu os olhos e viu um raio de luz. O rebordo direito da urna não chegara ao chão, ficando parcialmente apoiado nos dois blocos de mármore. Ao rodar a cabeça, porém, Langdon deu por si a olhar, no sentido mais literal possível, para o rosto da morte.

398 DAN BROWN

O ocupante original do túmulo estava suspenso por cima dele, ten-do aderido, como tantas vezes acontece aos corpos em decomposição, ao fundo do féretro. O esqueleto ficou ali a pairar por um instante, como um amante hesitante, e então, com o ruído de uma coisa pegajosa a soltar-se, sucumbiu à gravidade e caiu.

Antes que pudesse reagir à carcaça que descera para abraçá-lo e à chuva de ossos pútridos e de pó que lhe caíra sobre os olhos e a boca, um braço insinuou-se pela abertura que a urna deixara e começou a deslizar por entre os ossos como uma pitão esfomeada. A mão procurou até encontrar-lhe o pescoço, e então fechou-se. Langdon tentou lutar contra os dedos de aço que lhe esmagavam a laringe, mas descobriu que tinha a manga esquerda presa sob o rebordo do sarcófago. Apenas com uma mão livre, aquela era uma batalha que não podia ganhar.

Dobrou as pernas no único espaço aberto de que dispunha e procurou com os pés o fundo da urna. Encontrou-o. Encolhendo-se como uma mola, fincou os pés. Então, enquanto a mão que lhe rodeava o pescoço apertava cada vez com mais força, fechou os olhos e esticou as pernas. O sarcófago moveu-se. Muito pouco, mas o suficiente.

Com um raspar de pedra, a pesada urna escorregou dos suportes e caiu no chão. O rebordo atingiu o braço do assassino, e houve um grito abafado de dor. A mão largou o pescoço de Langdon, contor-cendo-se na escuridão. Quando o assassino conseguiu finalmente libertar o braço, o sarcófago bateu com um baque definitivo no chão de mármore.

Escuridão absoluta. Outra vez. E silêncio. Não houve pancadas frustradas no exterior do sarcófago voltado.

Nem tentativas de levantá-lo. Nada. Ali deitado no escuro, no meio da püha de ossos, Langdon lutou contra o negrume que se fechava sobre ele e voltou os pensamentos para Vittoria.

Vittoria. Estás viva? Se soubesse a verdade, se adivinhasse o horror para o qual Vittoria ia

em breve despertar, teria desejado, para bem dela, que estivesse morta.

CAPÍTULO NOVENTA E QUATRO

Sentado na Capela Sistina entre os seus aturdidos colegas, o cardeal Mortati tentava compreender as palavras que ouvia. Diante dele, alumiado apenas pela luz das velas, o camerlengo contava uma tal história de ódio e traição que Mortati dera por si a tremer. Falara de cardeais raptados, de cardeais marcados com ferros em brasa, de cardeais assassinados. Falara dos llluminati — um nome que desenterrava medos esquecidos — e da sua ressurgência e voto de vingança contra a Igreja. Com dor na voz, o camerlengo falara do falecido Papa... vítima de um envenenamento perpetrado pelos llluminati. E finalmente, com uma voz que fora quase só um murmúrio, falara de uma nova e mortífera tecnologia, a antimatéria, que ameaçava, dentro de menos de duas horas, destruir toda a Cidade do Vaticano.

Quando acabou, foi como se Satanás em pessoa tivesse sugado o ar de dentro da sala. Ninguém se mexeu. As palavras dele ficaram como que suspensas na escuridão.

O único som que Mortati ouvia agora era o zumbido anómalo de uma câmara de televisão vindo do fundo da capela — uma presença electrónica que nenhum Conclave em toda a História jamais conhecera, mas uma presença exigida pelo camerlengo. Para indizível espanto dos cardeais, Cario Ventresca entrara na Capela Sistina acompanhado por dois jornalistas da BBC — um homem e uma mulher — e anunciara que a missão deles seria transmitir ao mundo, em directo, a sua solene comunicação.

Agora, falando directamente para a câmara, o camerlengo deu um passo em frente.

— Aos llluminati — disse, e a voz tornou-se-lhe mais profunda — e aos homens e mulheres de ciência, deixai-me dizer o seguinte. — Fez uma pausa. — Ganhastes a guerra.

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O silêncio alastrou até aos mais recônditos recessos da capela. Mor-tati ouvia o desesperado bater do seu próprio coração.

— Há muito, muito tempo que as engrenagens começaram a rodar — continuou o camerlengo. — A vossa vitória sempre foi inevitável. Nunca isto foi tão óbvio como neste momento. A Ciência é o novo Deus.

Que está ele a di^er?, pensou Mortati. Terá enlouqueddo? O mundo inteiro está a ouvir estas palavras!

— A medicina, as comunicações electrónicas, as viagens espaciais, a manipulação genética... são estes os muagres que hoje contamos aos nossos filhos. São estes os milagres que apresentamos como prova de que a ciência nos trará as respostas. As antigas histórias de imaculadas conceições, de sarças ardentes e de mares a abrirem-se debcaram de ser relevantes. Deus tornou-se obsoleto. A ciência venceu a batalha. Admitimo-lo.

Um rumorejar de confusão e espanto percorreu a capela. — Mas a vitória da ciência — prosseguiu o camerlengo, num tom

de voz mais intenso — custou-nos a todos. E custou-nos caro. Silêncio. — A ciência pode ter aliviado as misérias da doença e do trabalho

penoso e criado uma panóplia de artefactos para nosso entretenimento e conveniência, mas deixou-nos num mundo sem encanto. O pôr do Sol foi reduzido a comprimentos de onda e a frequências. As complexidades do Universo foram dissecadas em equações matemáticas. Até o nosso valor como seres humanos foi destruído. A ciência proclama que o planeta Terra e os seus habitantes são apenas um ponto insignificante num grandioso esquema. Um acidente cósmico. — Fez uma pausa. — Até a tecnologia que promete unir-nos nos divide. Cada um de nós está agora electronicamente ligado ao mundo inteiro, e, no entanto, sentimo-nos irremediavelmente sozinhos. Somos bombardeados com violência, divisão, fractura e traição. O cepticismo tornou-se uma virtude. O cinismo e a exigência de prova tornaram-se pensamento esclarecido. Será de espantar que os seres humanos se sintam hoje mais deprimidos e derrotados do que em qualquer outro momento da sua história? Haverá algo, seja o que for, que a ciência considere sagrado? A ciência procura respostas investigando os nossos fetos ainda não nascidos. A ciência presume, até, rearranjar o nosso próprio ADN.

ANJOS E DEMONIOS 401

Retalha o mundo de Deus em peças cada vez mais pequenas em busca de significados... e tudo o que encontra é mais perguntas.

Mortati olhava, fascinado. O camerlengo tornara-se quase hipnótico. Tinha, nos movimentos e na voz, uma força física que Mortati nunca vira num altar do Vaticano. As suas palavras estavam impregnadas de convicção e tristeza.

— A guerra antiga entre ciência e religião terminou — disse o camerlengo. — E vós ganhastes. Mas não ganhastes lealmente. Não ganhastes trazendo respostas. Ganhastes reorientando tão drasticamente a nossa sociedade que as verdades que antigamente víamos como sinais indicadores parecem agora inaplicáveis. A religião não conseguiu manter-se a par. O crescimento da ciência é exponencial. AJimenta-se de si mesma, como um vírus. Cada descoberta abre a porta a novas descobertas. A Humanidade demorou milhares de anos a progredir da roda até ao automóvel, e umas escassas décadas para chegar do automóvel à nave espacial. Hoje, medimos os progressos científicos em termos de semanas. Rolamos em roda livre. O abismo que nos separa alarga-se cada vez mais, e à medida que a religião vai ficando para trás, as pessoas dão por si num vazio espiritual. Gritamos por um significado. E, acreditem no que vos digo, gritamos mesmo. Vemos OVNIS, praticamos o channeling, o contacto com os espíritos, as experiências extra-corporais, sondamos a mente... e todas estas ideias excêntricas têm um verniz científico, mas são despudoradamente irracionais. São o grito desesperado da alma moderna, solitária e atormentada, estropiada pelo seu próprio esclarecimento e pela sua incapacidade de aceitar significado em qualquer coisa que se afaste da tecnologia.

Mortati deu por si a inclinar-se para a frente no banco. Ele e os outros cardeais e milhões de pessoas em todo o mundo estavam pendentes de cada palavra daquele padre. O camerlengo falava sem retórica nem azedume. Sem referências a Jesus ou às escrituras. Falava em termos modernos, puros, sem adornos. De certo modo, como se as palavras viessem da boca do próprio Deus, usava a linguagem moderna... para transmitir a antiga mensagem. Naquele momento, Mortati compreendeu uma das razões por que o falecido Papa tinha aquele jovem em tão alta estima. Num mundo de apatia, cinismo e endeusamento tecnológico, homens como o camerlengo, realistas capazes de falar à alma

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dos outros homens como ele estava a fazer, eram a única esperança da Igreja.

O camerlengo falava agora com mais veemência. — A ciência, dizeis vós, salvar-nos-á. A ciência, digo eu, já nos des

truiu. Desde os tempos de Galileu que a Igreja tem tentado abrandar o inexorável avanço da ciência, por vezes recorrendo a meios errados, mas sempre com uma intenção benévola. Mesmo assim, as tentações são demasiado grandes para que o homem possa resistir-lhes. Digo--vos, olhai à vossa volta. A ciência não cumpriu as suas promessas. Onde prometia eficiência e simplicidade, criou a poluição e o caos. Somos uma espécie dividida e assustada... e o caminho que seguimos conduz à destruição.

Cario Ventresca fez uma longa pausa, e então olhou duramente para a câmara.

— Quem é este Deus-ciência? Quem é este Deus que oferece ao seu povo poder mas nenhum enquadramento moral que lhe diga como usar esse poder? Que espécie de Deus akfogo a uma criança mas não a avisa dos seus perigos? A Linguagem da ciência não traz instruções a respeito do bem e do mal. Os compêndios da ciência dizem-nos como criar uma reacção nuclear, mas não incluem qualquer capítulo a perguntar-nos se é uma boa ou uma má ideia.

»A ciência, digo o seguinte: A Igreja está cansada. Estamos exaustos de tentarmos ser os vossos sinais indicadores. Os nossos recursos esgotam-se no esforço de ser a voz do equilíbrio enquanto vós avançais às cegas na vossa procura de chips mais pequenos e lucros maiores. Não perguntamos por que não vos governais a vós mesmos, e sim como poderíeis fazê-lo. O vosso mundo move-se tão depressa que se um de vós parar, por um instante que seja, para ponderar as consequências das suas acções, um outro mais eficiente ultrapassá-lo-á num ápice. Espalhais por todo o lado as vossas armas de destruição maciça, mas é o Papa que percorre o mundo a pedir aos líderes que usem de prudência. Clonáis criaturas vivas, mas é a Igreja que nos recorda que devemos considerar as implicações morais das nossas acções. Encorajais as pessoas a interagir através de telefones, ecrãs e monitores de computadores, mas é a Igreja que nos abre as suas portas e nos lembra que devemos comungar pessoalmente, como fomos destinados a fazer. Chegais até a matar crianças ainda não nascidas em nome da pes-

ANJOS E DEMÓNIOS 403

quisa que há-de salvar vidas. Mais uma vez, é a Igreja que denuncia a falácia deste argumento.

»E no meio de tudo isto, não vos cansais de proclamar que a Igreja é ignorante. Mas, quai é mais ignorante? O homem que não é capaz de definir o relâmpago, ou aquele que não respeita o seu terrível poder? Esta Igreja estende-vos a mão. Estende a mão a toda a gente. E no entanto, quanto mais estendemos as nossas mãos, mais nos repelis. Mostrai-nos provas de que Deus existe, dizeis vós. E eu digo-vos: usai os vossos telescópios para olhar para o céu e dizei-me como pode não existir um Deus! — Havia agora lágrimas nos olhos do camerlengo. — Perguntais como é Deus? E eu digo, de onde veio essa pergunta? A resposta a ambas as perguntas é a mesma. Não vedes Deus na vossa ciência? Como é possível que não O vejais? Afirmais que a mais ínfima mudança na força de gravidade ou no peso de um átomo teria feito que o Universo fosse uma névoa sem vida em vez do nosso magnífico mar de corpos celestes, e mesmo assim não sois capazes de ver a mão de Deus nisto? Será verdadeiramente assim tão mais fácil acreditar que escolhemos a carta certa de um baralho de buiões? Estaremos na realidade tão es-pirimalmente falidos que preferimos acreditar numa impossibilidade matemática a acreditar num poder maior do que nós?

»Quer acrediteis ou não em Deus — continuou o camerlengo, com uma voz carregada de determinação —, tendes de acreditar nisto. Quando nós, como espécie, abandonamos a crença num poder superior, abandonamos também a nossa noção de responsabilidade... Com a fé, respondemos uns perante os outros, perante nós mesmos e perante uma verdade mais alta. A religião é imperfeita, mas só porque a Humanidade é imperfeita. Se o mundo exterior pudesse ver esta Igreja como eu a vejo... olhando para lá do ritual destas paredes... assistiria a um milagre moderno... uma Irmandade de almas simples e imperfeitas que desejam apenas ser a voz da compaixão num mundo que perdeu o controlo de si mesmo.

Fez um gesto na direcção do Colégio Cardinalício, e a operadora de câmara da BBC seguiu-o instintivamente, focando o grupo.

— Somos obsoletos? — perguntou o camerlengo. — Estes homens são dinossauros? Eu sou um dinossauro? Precisará verdadeiramente o mundo de uma voz que fale em nome dos pobres, dos fracos, dos oprimidos, das crianças que ainda não nasceram? Precisaremos

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nós verdadeiramente de almas como estas que, apesar de imperfeitas, passam a vida a implorar a todos nós que atentemos nos sinais indicadores da moralidade e não nos extraviemos no nosso caminho?

Mortati compreendeu que o camerlengo, conscientemente ou não, estava a fazer uma jogada brilhante. Ao mostrar os cardeais, personalizava a Igreja. A Cidade do Vaticano já não era apenas edifícios, era pessoas... pessoas que eram como o camerlengo, que dedicavam a vida ao serviço do bem.

— Esta noite, encontramo-nos à beira de um precipício. Nenhum de nós pode dar-se ao luxo de ficar à margem. Quer vejamos este mal como Satanás, corrupção ou imoralidade... as forças da escuridão estão vivas e crescem de dia para dia. Não as ignoremos. — O camerlengo baixou a voz para um murmúrio e a câmara fechou o plano. — Essas forças, apesar de poderosas, não são invencíveis. O bem pode prevalecer. Escutai o vosso coração. Escutai Deus. Juntos, podemos recuar, afastarmo-nos do abismo.

Mortati compreendeu. Era aquela a razão. O Conclave fora violado, mas era a única maneira. Era um dramático e desesperado pedido de ajuda. O camerlengo dirigia-se agora tanto a inimigos como a amigos. Exortava todos a ver a Luz e a pôr fim àquela loucura. Certamente alguém que estivesse a ouvir compreenderia a demência daquela conjura e faria qualquer coisa.

O camerlengo ajoelhou diante do altar. — Rezai comigo. O Colégio Cardinalício caiu de joelhos e juntou-se-lhe em oração.

Lá fora, na Praça de São Pedro e por todo o globo... um mundo aturdido ajoelhou-se com eles.

CAPITULO NOVENTA E CINCO

O Hashashin pousou o seu inconsciente troféu na parte de trás da carrinha e demorou-se um instante a contemplar o corpo inerte. Não era tão bonita como as mulheres que comprava, mas tinha uma força animal que o excitava. A pele brilhava, orvalhada de transpiração. Cheirava a almíscar.

Ali de pé, a saborear o seu prémio, ignorou a dor latejante no braço. A contusão provocada pelo sarcófago ao cair, apesar de dolorosa, era insignificante... valia bem a compensação que tinha à sua frente. Con-solou-se pensando que o americano que lhe fizera aquilo estava provavelmente morto.

De olhos postos na presa indefesa, imaginou os prazeres que o aguardavam. Passou uma mão por baixo da camisola. Os seios pareciam perfeitos sob o soutien. Sim, sorriu. Vales bem apena. Controlando o impulso de possm'-la aH mesmo, naquele momento, fechou a porta traseira da carrinha, sentou-se ao volante e desapareceu na noite.

Não havia necessidade de alertar a imprensa para aquela morte... As chamas encarregar-se-iam de o fazer por ele.

No CERN, Sylvie continuava sentada, aturdida pelas palavras do ca-merlengo. Nunca antes se sentira tão orgulhosa de ser católica, e tão envergonhada por trabalhar naquele lugar. Saiu para o corredor. O ambiente em todas as salas onde havia televisores era silencioso e sombrio. Quando chegou ao gabinete de Köhler, as sete linhas telefónicas tocavam todas ao mesmo tempo. As perguntas dos media nunca eram encaminhadas para o gabinete do director, de modo que aquelas chamadas só podiam significar uma coisa.

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Geld. Dinheiro. A tecnologia da antimatéria já tinha interessados.

Dentro do Vaticano, Günther Glick caminhava nas nuvens enquanto seguia o camerlengo. Ele e Macri acabavam de fazer a transmissão em directo da década. E que transmissão. O camerlengo fora absolutamente fascinante.

Agora, no corredor. Cario Ventresca voltou-se para eles. — Pedi à Guarda Suíça que reúna fotografias para vos entregar —

disse. — Fotos dos cardeais marcados a fogo e fotos de Sua Santidade. Devo avisá-los, não são imagens agradáveis. Queimaduras horríveis, línguas enegrecidas. Mas quero que as transmitam ao mundo.

Glick decidiu que devia ser sempre Natal na Cidade do Vaticano. Quer que transmitamos uma foto exclusiva de um Papa morto?

— Tem a certeza? — perguntou, esforçando-se por dissimular a excitação da voz.

O camerlengo assentiu com a cabeça. — A Guarda Suíça vai também fornecer-lhes imagens do conten

tor de antimatéria com o relógio em contagem decrescente. Glick ficou a olhar para ele. Natal Natal Natal! — Os Illuminati estão prestes a descobrir — declarou o camerlengo

— que a jogada que fizeram foi um grosseiro erro de cálculo.

CAPITULO NOVENTA E SEIS

Como um tema recorrente numa sinfonia demoníaca, a escuridão sufocante tinha voltado.

Sem luf^ Sem ar. Sem saída.

Langdon jazia encurralado debaixo da arca funerária voltada e sentia o cérebro a vacilar perigosamente perto do abismo. Tentando encaminhar os pensamentos em qualquer direcção que não fosse o espaço opressivo que o rodeava, incitou a mente a empenhar-se num qualquer processo lógico... matemática, música, fosse o que fosse. Mas não havia espaço para pensamentos calmantes. ISlão consigo mexer-mel Não consigo respirar!

A manga presa do casaco soltara-se, por um feliz acaso, quando a urna caíra dos apoios, deixando-o com dois braços utilizáveis. Mesmo assim, ao empurrar o tecto da sua minúscula cela, descobriu-a inamovível. Estranhamente, desejou que a manga continuasse presa. Pelo menos, podia criar uma fresta por onde entrasse um pouco de ar.

Quando voltou a fazer força contra o fundo da arca, a manga direita deslizou para baixo, revelando a fraca luminosidade de um velho amigo. Mickey. A cara esverdeada do boneco pareceu-lhe trocista.

Perscrutou a escuridão em busca de qualquer outro sinal de luz, mas a urna estava como que colada ao chão. Malditos perfeccionistas italianos, praguejou Langdon, agora ameaçado pela mesmíssima excelência artística que ensinava os seus alunos a reverenciar... arestas impecáveis, paralelas perfeitas, e, claro, o uso exclusivo do mais Uso e resistente mármore de Carrara.

A precisão pode ser sufocante. — Levanta esta maldita coisa! — disse em voz alta, empurrando

com mais força por entre o emaranhado de ossos. A arca moveu-se muito ligeiramente. Cerrando os dentes, voltou a empurrar. A arca pa-

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recia um rochedo, mas desta vez suhiu meio centímetro. Um fugaz lampejo de luz, e a urna voltou a cair. Tentou usar as pernas para levantá-la, como fizera antes, mas agora, com o sarcófago bem apoiado no chão, não tinha espaço nem para endireitar os joelhos.

A medida que o pânico claustrofóbico se apossava dele, foi invadido por imagens do sarcófago a encolher à sua volta. Acossado pelo delírio, combateu a uusão com todos os fragmentos de pensamento lógico que lhe restavam.

— Sarcófago — disse em voz alta, no tom mais estérilmente académico de que foi capaz. Mas até a erudição parecia ter-se tornado sua inimiga. Do grego «sarx», que significa «carne», e «phagein»^ que significa «co

mer». Estou encurralado numa caixa literalmente concebida para «comer carne».

Imagens de carne roída até aos ossos só serviram para lhe lembrar que estava coberto de despojos humanos. O pensamento provocou--Ihe náuseas e arrepios. Mas também fez nascer uma ideia.

Procurou às cegas, em redor, até encontrar um pedaço de osso. Uma costela, talvez? Não quis saber. Tudo o que queria era uma cunha. Se conseguisse levantar a urna, nem que fosse só um bocadinho, e enfiar aquele pedaço de osso debaixo do rebordo, talvez entrasse ar suficiente.

Cruzando o braço esquerdo por cima do peito e fazendo pressão com a ponta mais estreita do osso contra a ranhura entre a urna e o chão, levantou o braço direito e empurrou para cima. A urna não se mexeu. Nem uma fracção de milímetro. Voltou a tentar. Por um instante, pareceu tremer muito ao de leve, mas foi tudo.

Com o cheiro fétido do túmulo e a falta de oxigénio a sugarem-Ihe as forças do corpo, Langdon compreendeu que só tinha tempo para mais uma tentativa. E também sabia que ia precisar dos dois braços.

Com um esforço para se controlar, colocou a ponta afiada do osso contra a ranhura e, mudando a posição do corpo, travou-o com o ombro. Muito cuidadosamente, para não o deslocar, ergueu as mãos. Com a opressiva sensação de encarceramento a começar a sufocá-lo, sentiu uma vaga de pânico intenso subir-lhe no peito. Era a segunda vez naquele dia que se via encurralado e sem ar. Gritando de raiva e medo, empurrou para cima numa súbita explosão de movimento. A urna le-vantou-se por um brevíssimo instante. Mas foi o suficiente. A lasca de osso que tinha presa contra o ombro desHzou para fora, entrando na

ANJOS E DEMONIOS 409

fresta. Quando a urna voltou a cair, o osso partiu-se. Mas, desta vez, Langdon viu que a arca ficara inclinada. Um fino traço de luz delineava o rebordo.

Exausto, deixou-se cair. Aguardou, esperando que a sensação de estrangulamento que tinha na garganta desaparecesse. Mas só piorou à medida que os segundos se arrastavam. Se algum ar passava através da fresta, parecia imperceptível. Seria o suficiente para mantê-lo vivo? E se sim, durante quanto tempo? Se desmaiasse, quem saberia que estava ali debaixo?

Voltou a levantar um braço que parecia de chumbo e consultou o relógio: 10.12. Esforçando-se por controlar os dedos que tremiam, tacteou o relógio e fez a sua última jogada. Regulou um dos minúsculos mostradores e premiu um botão.

Enquanto a consciência lhe fugia e as paredes da urna se fechavam para o esmagar, sentiu-se invadir por antigos medos. Tentou imaginar, como tantas vezes fizera, que estava num campo aberto. A imagem que conjurou não foi, porém, de grande ajuda. O pesadelo que o perseguia desde a infância voltou em todo o seu horror...

As flores aqui parecem pintadas, pensou a criança, rindo enquanto corria

pelo prado. Bem desejava que os pais tivessem ido com ele. Mas os pais estavam

ocupados a montar o acampamento.

— NíÍo vás muito longe — dissera a mãe.

Fingira não ter ouvido, enquanto corria para o bosque.

j\gora, ao atravessar aquele maravilhoso campo, avistara um monte de pedras

rústicas. Calculou que fossem os alicerces de uma antiga casa. Não ia aproximar

se. Era um rapazinho com muito jutî^o. Além disso, a sua atenção fora atraída

por outra coisa: uma esplendorosa orquídea silvestre, a flor mais rara e mais bela

de New Hampshire. Nunca vira uma se não em livros.

Exatado, avançou para a flor Ajoelhou-se. O chão debaixo dele era húmido

e macio. Percebeu que aquela flor tinha encontrado um sítio espeáalmente fértil

Cresáa num pedaço de madeira apodrecida.

Animado pela ideia de levar para casa o seu troféu, estendeu a mão... esticando

os dedos para o caule.

Nunca o alcançou.

Com um estalido terrível, o chão cedeu.

410 DAN BROWN

Nos três segundos de estonteante terror que durou a queda, o rapa^ soube que

ia morrer. Preparou-se para o embate que lhe esmagaria os ossos. Quando aconte

ceu, não houve dor. Apenas suavidade.

Efrio. Entrou na água de cabeça, mergulhou num estreito poço de escuridão. Rodando

sobre si mesmo em desorientadas reviravoltas, tocou as paredes que o rodeavam por

todos os lados. Sem saber como, talvet^por instinto, chegou à superfíáe.

Lui(.

Fraca. IM muito em cima. Quilómetros lá em ama, pareceu-lhe.

Esbracejou na água, procurando nas paredes do buraco qualquer coisa a que

pudesse agarrar-se. Encontrou apenas pedra lisa. Caíra através da cobertura aban

donada de um poço. Gritou a pedir socorro, mas os seus gritos ecoavam no apertado

espaço. Chamou uma e outra ve^ Lá em ama, a lu^ era cada ve^ mais fraca.

Anoiteceu.

O tempo pareceu contorcerse na escuridão. Invadiu-o uma espécie de entorpeci

mento enquanto agitava os braços para se manter à tona da água nas profúndelas

do abismo, chamando, gritando. Era atormentado por visões das paredes a desmo-

ronarem-se, enterrando-o vivo. Por várias ve^es pareceu-lhe ouvir vo^es. Gritou,

mas os seus gritos eram silenáosos, como num sonho.

A medida que a noite avançava, o poço tornou-se mais fundo, as paredes mais

estreitas. O rapat^fa^^iaforça contra elas, empurrando-as para fora. Exausto, quis

desistir. E no entanto, sentia a água suportá-lo, arrefecendo-lhe os medos escaldan

tes até estar demasiado entorpeádo para querer saber.

Quando a equipa de salvamento chegou, encontrou-o quase inconsãente. Estivera

ánco horas dentro de água. Dois dias mais tarde, o Boston Globe publicou uma

notída de primeira página que intitulou «O Pequeno Nadador que Conseguiu».

CAPITULO NOVENTA E SETE

O Hashashin sorria enquanto entrava com a carrinha na gigantesca estrutura de pedra sobranceira ao Tibre. Carregou o seu troféu escadas acima, subindo pelo estreito túnel em espiral, grato por o fardo não ser demasiado pesado.

Chegou diante da porta. A Igreja da Iluminação, pensou, cheio de íntima satisfação. O antigo

local de encontro dos lUuminati. Quem imaginaria que era aqui?

Uma vez no interior, deitou-a num felpudo divã. Em seguida, atou--Ihe habilmente os braços atrás das costas e amarrou-Uie os tornozelos. Sabia que aquilo que tanto desejava teria de esperar até ter terminado o seu trabalho. Agua.

Hm todo o caso, pensou, ^OÍ/M conceder a mim mesmo um momento de gra

tificação. Ajoelhando ao lado dela, passou-lhe uma mão pela coxa. Era suave. Mais alto. Os dedos escuros insinuaram-se por baixo da perna do calção. Mais alto.

Parou. Paciênda, disse a si mesmo, sentindo-se excitado. Há trabalho afai^er.

Saiu por um momento para a varanda de pedra da câmara. A brisa nocturna arrefeceu-lhe lentamente o ardor. Lá muito em baixo, o Tibre continuava a correr. O Hashashin ergueu os olhos para a cúpula de São Pedro, a mil e duzentos metros de distância, nua sob a luz de centenas de projectores.

— A tua última hora — disse em voz alta, imaginando os milhares de muçulmanos chacinados durante as cruzadas. — A meia-noite, vais encontrar-te com o teu Deus.

Atrás dele, a mulher agitou-se. O Hashashin voltou-se. Considerou a hipótese de deixá-la acordar. Ver o terror nos olhos de uma mulher era para ele o afrodisíaco supremo.

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Optou pela prudencia. Era melhor que ela continuasse inconsciente durante a ausência dele. Embora amarrada e sem possibilidades de escapar, não queria voltar e encontrá-la exausta de tanto se ter debatido. Quero que conserves a tua força... para mim.

Levantando-lhe Ligeiramente a cabeça, enfiou a palma da mão por baixo do pescoço e encontrou a concavidade logo abaixo do crânio. O ponto de pressão coroa/meridiano que usara vezes sem conta. Com uma força terrível, espetou o polegar na cartilagem macia e sentiu-a deprimir. A mulher ficou instantaneamente flácida. Vinte minutos, pensou ele. Em breve teria um fim delicioso para um dia perfeito. Depois de ela o ter servido e morrido a fazê-lo, iria para a varanda assistir ao fogo-de-artifício do Vaticano.

Deixando a sua presa inconsciente no divã, desceu até à masmorra alumiada por um archote. A tarefa final. Dirigiu-se à mesa e fez uma reverência às sagradas formas de metal espalhadas à sua frente.

A^gua. Era a última. Tirando o archote da parede como já fizera por três vezes naquele

dia, começou a aquecer a extremidade do ferro. Quando ficou ao rubro, levou-o até à cela.

Lá dentro, de pé, encontrava-se um único homem, em silêncio. Velho e sozinho.

— Cardeal Baggia — sibilou o Hashashin. —Já rezou? O italiano voltou para ele uns olhos onde não havia medo. — Só pela tua alma — respondeu.

CAPITULO NOVENTA E OITO

Os ^ús,pompieri o^& acorreram ao incendio na igreja de Santa Maria delia Vittoria apagaram as chamas com extintores de halons. A água era mais barata, mas o vapor causado pelo calor teria arruinado os frescos da capela, e o Vaticano pagava aos pompieri de Roma um generoso estipêndio para assegurar um rápido e prudente serviço em todos os edificios que Uie pertenciam.

0% pompieri, pela própria natureza do seu trabalho, testemunhavam tragédias quase todos os dias, mas a execução naquela igreja era algo que nenhum deles conseguiria esquecer. Parte crucificação, parte enforcamento, parte auto-de-fé, parecia uma cena tirada de um pesadelo gótico.

Infelizmente, a imprensa, como sempre, chegara primeiro do que o Departamento de Incêndios, e muitos metros de fita de vídeo tinham sido gravados antes de os pompieri evacuarem a igreja. Quando, finalmente, conseguiram baixar a vítima e estenderam o corpo no chão, não havia dúvida quanto à identidade do homem.

— Cardinal Guidera — murmurou um deles. — Di Barcellona. A metade inferior do cadáver nu apresentava um tom vermelho-es-

curo, quase preto, e escorria sangue das gretas que a carne abrira nas coxas. Os ossos das canelas estavam expostos. Um dos bombeiros vomitou. Outro teve de sair para respirar.

O verdadeiro horror era, no entanto, o símbolo gravado a fogo no peito do cardeal. O chefe da equipa de pompieri contornou o corpo, dominado por um estupefacto pavor. Lavoro dei diavolo, disse para si mesmo. Foi Satanás em pessoa quefet^^ isto. E benzeu-se pela primeira vez desde os seus tempos de menino.

— Un'altro corpo!— gritou alguém. Um dos bombeiros encontrara outro cadáver.

414 DAN BRO\XTSl

A segunda vítima era um homem que o chefe da equipa reconheceu imediatamente. O austero comandante da Guarda Suíça era um homem por quem os membros das forças de ordem pública tinham escasso afecto. O chefe ligou para o Vaticano, mas todas as linhas estavam ocupadas. Sabia que não fazia diferença. A Guarda Suíça ficaria a saber do sucedido pela televisão numa questão de minutos.

Enquanto inspeccionava os estragos, tentando visualizar o que poderia ter acontecido au, o chefe dos bombeiros viu o nicho crivado de buracos de bala. Uma arca funerária rolara de cima dos respectivos suportes e caíra de boca para baixo durante o que tudo indicava ter sido uma luta. O caos total. A polida e a Santa Sé que tratem disto, pensou o homem, voltando costas.

A meio do gesto, no entanto, algo o fez parar. Estava a ouvir um som, vindo da urna voltada. Era um som que nenhum bombeiro gostava de ouvir.

— Bomba! — gritou. — Tuttifuori! Quando a equipa de minas e armadilhas repôs a urna de boca para

cima, descobriu-se a origem do bip electrónico. Os homens ficaram a olhar, confusos.

Medico!— gritou finalmente um deles. — Medico!

CAPITULO NOVENTA E NOVE

— Noticias de Olivetti? — perguntou o camerlengo a Rocher, que o escoltava da Capela Sistina de regresso ao gabinete do Papa. Parecia completamente esgotado.

— Nada, signare. Começo a temer o pior. Quando chegaram ao gabinete, o camerlengo disse, com uma voz

pesada: — Capitão, nada mais posso fazer aqui esta noite. Receio até ter já

feito demasiado. Vou entrar neste gabinete para rezar. Não desejo ser interrompido. O resto está nas mãos de Deus.

— Sim, signare.

— A hora aproxima-se, capitão. Descubra o contentor. — Continuamos a procurar. — Rocher hesitou. — A arma está

demasiado bem escondida. O camerlengo estremeceu, como se não conseguisse sequer pen

sar nisso. — Sim. Exactamente às onze e um quarto, se a Igreja continuar em

perigo, quero que evacue os cardeais. Deixo a segurança deles nas suas mãos. Peço-Ihe apenas uma coisa. Que aqueles homens saiam daqui com dignidade. Que saiam para a Praça de São Pedro e fiquem lado-a-lado com o resto do mundo. Que a última imagem desta Igreja não seja um bando de velhos aterrorizados a escapulirem-se pela porta das traseiras.

— Muito bem, signore. E quanto a si? Venho buscá-lo também às onze e um quarto?

— Não será necessário. — Signore^

— Sairei quando o espírito mo indicar. Rocher perguntou a si mesmo se o camerlengo tencionaria afun-

dar-se com o navio.

416 DAN BROWN

Carlo Ventresca abriu a porta do gabinete do Papa e entrou. — Há — disse, voltando-se — ... há só mais uma coisa. — Signare?

— Parece estar frio aqui dentro, esta noite. Estou a tremer. — O aquecimento eléctrico foi desligado. Deixe-me acender-lhe

a lareira. O camerlengo esboçou um sorriso cansado. — Obrigado. Muito obrigado.

Rocher saiu do gabinete do Papa, onde deixara o camerlengo a rezar à luz da lareira diante de uma pequena imagem da Sagrada Virgem Maria. Era uma visão estranha. Uma figura escura de joelhos, banhada pelo clarão dançante das labaredas. Quando começou a percorrer o corredor, apareceu um guarda a correr na sua direcção. Mesmo à luz das velas, reconheceu o tenente Chartrand. Jovem, cheio de vitalidade, entusiasta.

— Meu capitão! — gritava Chartrand, estendendo um telemóvel. — Penso que a comunicação do camerlengo pode ter resultado. Tenho aqui um homem a dizer que tem informações que podem ajudar-nos. Ligou para uma das extensões privadas do Vaticano. Não faço ideia de como conseguiu o número.

Rocher deteve-se. — Diz que só fala com o oficial mais graduado. — Notícias do comandante OHvetti? — Nada. Rocher pegou no telefone. — Fala o capitão Rocher. Sou, neste momento, o oficial mais gra

duado. — Rocher — disse a voz —, vou explicar-lhe quem sou. E depois

vou dizer-lhe o que vai fazer a seguir. Quando o homem parou de falar e desligou. Rocher parecia atur

dido. Sabia agora de quem estava a receber ordens.

No CERN, Sylvie Baudeloque tentava freneticamente manter um registo de todos os telefonemas com perguntas sobre condições de

ANJOS E DEMÓNIOS 417

licenciamento que estavam a chegar pelo correio de voz de Köhler. Quando a linha particular na secretária do director começou a tocar, Sylvie deu um salto. Ninguém tinha aquele número. Atendeu.

— Sim? — Senhora Baudeloque. Fala o director. Contacte o meu piloto.

Quero o jacto pronto dentro de cinco minutos.

CAPITULO CEM

Robert Langdon não fazia a mínima ideia de onde se encontrava nem de quanto tempo estivera inconsciente. Ao abrir os olhos, dera por si a olhar para uma abóbada barroca, coberta de frescos. Havia volutas de fumo no ar. Tinha qualquer coisa a cobrir-lhe a boca e o nariz. Uma máscara de oxigénio. Arrancou-a. Um cheiro horrível invadiu-lhe as narinas... um cheiro a carne queimada.

A cabeça latejava-lhe furiosamente, como se alguém lhe martelasse o crânio do lado de dentro. Tentou sentar-se.

— ^posait!— disse o homem de branco que estava ajoelhado junto dele e o forçou a deitar novamente. — Sono il paramédico.

Langdon sucumbiu, sentindo a cabeça revolutear como o fumo lá em cima.Que raio aconteceu'^ Fiapos de um sentimento de pânico agita-vam-se-lhe na mente.

— Sóráo salvatore — disse o enfermeiro. — Rato... salvador. Langdon sentiu-se ainda mais perdido. Rato salvador? O homem apontou para o relógio Rato Mickey no pulso dele. As

ideias de Langdon começaram a aclarar. Lembrou-se de ter marcado o despertador. Ao olhar com uma expressão ausente para o mostrador do relógio, reparou também na hora: 10.28.

Sentou-se direito. Recordou-se de tudo.

Langdon estava de pé junto do altar-mor, com o chefe da equipa de bombeiros e alguns outros homens. Tinham estado a bombardeá-lo com perguntas. Não os ouvia. Tinha as suas próprias perguntas a fazer. Doía-lhe o corpo todo, mas sabia que tinha de agir imediatamente.

ANJOS E DEMÓNIOS 419

Umpompiero aproximou-se do grupo, vindo do outro lado da igreja. — Voltei a procurar. Os únicos corpos que encontrámos foram os

do cardeal Guidera e do comandante da Guarda Suíça. Não há quaisquer sinais de uma mulher.

— Gracie — disse Langdon, sem saber muito bem se estava aliviado ou horrorizado. Sabia que tinha visto Vittoria caída no chão, inconsciente. Agora, desaparecera. A única explicação que lhe ocorria não era nada reconfortante. O assassino fora bem claro ao telefone. Uma mulher de coragem. Estou excitado. Take^ antes que esta noite acabe, eu te encontre.

E quando te encontrar...

Olhou em redor. — Onde está a Guarda Smça? — Continuamos sem contacto. As linhas do Vaticano estão entu

pidas. Langdon sentiu-se esmagado e sozinho. Olivetti estava morto. O car

deal estava morto. Vittoria desaparecera. Meia hora da sua vida sumira--se num abrir e fechar de olhos.

Ouvia lá fora a mrba da imprensa. Suspeitava de que as imagens da horrível morte do terceiro cardeal não tardariam a ir para o ar, se era que não tinham já ido. Esperava que o camerlengo tivesse há muito assumido o pior e tomado medidas. Evacuar o raio do Vaticano! Basta de

jogos! Perdemos!

De súbito, apercebeu-se de que todos os catalisadores que o tinham empurrado para a acção — ajudar a salvar o Vaticano, resgatar os quatro cardeais, encontrar-se face-a-face com a Irmandade que estudara durante anos — todas estas coisas tinham-se-lhe evaporado do espírito. A guerra estava perdida. Uma nova compulsão nascera dentro dele. Simples. Crua. Primária.

Encontrar Vittoria. Sentiu um inesperado vazio interior. Ouvira muitas vezes dizer que

situações intensas podiam unir duas pessoas com uma intensidade que décadas de convívio frequente não geravam. Agora acreditava que era verdade. Na ausência de Vittoria, sentia uma coisa que não sentia havia anos. Solidão. A dor deu-lhe força.

Expulsou mdo o mais do espírito e tentou concentrar-se. Pediu a Deus que o assassino fosse do género de tratar do trabalho antes do prazer. Caso contrário, sabia-o, seria já demasiado tarde. Não, disse

420 DAN BROWN

a si mesmo, tens tempo. O captor de Vittoria tinha ainda trabalho a fazer. Tinha de vir à superfície uma última vez antes de desaparecer para sempre.

O último altar de ciência. O assassino tinha uma última tarefa a cumprir. Terra. Ar. Fogo. Água.

Langdon olhou para o relógio. Trinta minutos. Passando pelos bombeiros, aproximou-se de O Êxtase de Santa Teresa. Desta vez, ao olhar para o marcador de Bernini, não teve a mínima dúvida sobre o que procurava.

Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada... O anjo estava de pé diante da santa recostada, contra um fundo

de chamas douradas. Segurava na mão uma lança de fogo. Langdon seguiu com os olhos a direcção da haste, num arco até ao lado direito da igreja. Encontrou a parede. Examinou o ponto para onde a lança apontava. Não havia aH nada. Sabia, claro, que a lança estava a apontar muito para lá da parede, para a noite, algures em Roma.

— Que direcção é aquela? — perguntou ao chefe da equipa de bombeiros, com renovada determinação.

— Direcção? — O homem olhou para o lado que Langdon indicava. Parecia confuso. — Não sei... oeste, parece-me.

— Que igrejas ficam naquela direcção? A confusão do bombeiro tornou-se ainda maior. — Dúzias delas. Porquê? Langdon franziu o sobrolho. Claro que havia dúzias de igrejas na

quela direcção. — Preciso de um mapa da cidade. Imediatamente. O chefe mandou um dos homens à autobomba buscar um mapa.

Langdon voltou-se novamente para a estátua. Terra... Ar... Fogo... VIT-T0RL4.

O último marcador é água, disse a si mesmo. A^gua de Bernini. Estava numa igreja, algures lá fora. Uma agulha num palheiro. Reviu mentalmente todas as obras de Bernini de que conseguia lembrar-se. Preciso de um tributo à Agua!

Viu num relance a estátua de Tritão, a divindade marinha grega. E então apercebeu-se de que se encontrava diante daquela mesmíssima igreja, e numa direcção completamente errada. Obrigou-se a pensar. Que figura esculpiu Bernini como glorificação da água? Neptuno e Apolo?

ANJOS E DEMÓNIOS 421

Infelizmente, essa escultura estava em Londres, no Victoria & Albert Museum.

— S ignore — disse um bombeiro aparecendo a correr com um mapa na mão.

Langdon agradeceu-lhe e abriu-o em cima do altar. Percebeu imediatamente que tinha pedido às pessoas certas; o mapa de Roma do Departamento de Incêndios era o mais pormenorizado que alguma vez vira.

— Onde estamos agora? O homem apontou. — Aqui, junto à Piazza Barberini. Langdon voltou a olhar para a lança do anjo, para se orientar. O che

fe acertara. De acordo com o mapa, a lança apontava para oeste. A partir da sua actual posição, traçou no mapa uma linha nessa direcção. Quase instintivamente, as suas esperanças começaram a soçobrar. Parecia que a cada centímetro que o seu dedo percorria passava por mais um edifício assinalado com uma pequena cruz negra. Igrejas. A cidade estava cheia delas. Finalmente, o dedo deixou de encontrar igrejas e entrou nos subúrbios de Roma. Langdon suspirou e recuou um passo. Raios!

Ao abarcarem o conjunto da cidade, os olhos dele pousaram nas três igrejas onde os três primeiros cardeais tinham sido assassinados. A^ Capela Chigi... São Pedro... aqui..

Vendo-as pela primeira vez dispostas à sua frente, notou uma singularidade nas respectivas localizações. Por qualquer razão, imaginara que estariam espalhadas ao acaso por Roma. Mas não era definitivamente esse o caso. Na realidade, pareciam dispostas de uma maneira muito sistemática, num enorme triângulo que abarcava toda a cidade. Voltou a verificar. Não, não estava a imaginar coisas.

— Penna! — disse de repente, sem erguer os olhos. Alguém lhe entregou uma esferográfica. Fez um círculo à volta de cada uma das três igrejas. Sentiu o cora

ção bater mais depressa. Verificou novamente as marcações. Um triângulo isósceles!

O seu primeiro pensamento foi para o Grande Selo na nota de um dólar — o triângulo contendo o olho que tudo vê. Mas não fazia sentido. Tinha marcado apenas três pontos. Deveriam ser quatro, no total.

422 DAN BRO\XTSI

Então onde diabo está a A^gua? Sabia que onde quer que colocasse o quarto ponto, destruiria o triângulo. A única opção, para manter a simetria, era situar o quarto marcador dentro do triângulo, no centro. Olhou para o lugar correspondente no mapa. Nada. A ideia desagra-dava-lhe, de todos os modos. Os quatro elementos da ciência eram considerados iguais. A água não era especial; não estaria colocada no centro dos restantes.

Mesmo assim, o instinto dÍ2Ía-lhe que a disposição sistemática não podia ser acidental. Ainda não estou a ver a imagem completa. Havia apenas uma alternativa. Os quatro pontos não formavam um triângulo; formavam outra figura qualquer.

Olhou para o mapa. Um quadrado, talve:^ Embora um quadrado não fizesse simbolicamente qualquer espécie de sentido, era pelo menos simétrico. Pousou o dedo no mapa num dos pontos que transformariam o triângulo num quadrado. Viu imediatamente que um quadrado perfeito era impossível. Dois dos ângulos do triângulo original eram oblíquos, o que só permitia formar um quadrilátero irregular.

Enquanto estudava os outros pontos possíveis à volta do triângulo, algo de inesperado aconteceu. Reparou que a linha que traçara antes para marcar a direcção em que apontava a lança do anjo passava exactamente por uma das possibilidades. Estupefacto, desenhou um círculo à volta do ponto. Estava agora a olhar para quatro marcas a tinta no mapa, quatro marcas que definiam os vértices de um losango distorcido, que fazia lembrar um papagaio de papel.

Franziu a testa. Podia ser a forma estilizada de um diamante, mas os diamantes também não faziam parte da simbologia dos llluminati. Hesitou. Vor outro lado...

Por um instante, pensou no famoso Diamante llluminatus. A ideia era, claro, ridícula. Pô-la imediatamente de parte. Além disso, aquele losango era oblongo — como um papagaio de papel. Muito dificilmente se poderia considerá-lo um exemplo da impecável simetria pela qual o Diamante llluminatus era exaltado.

Ao inclinar-se para examinar o ponto onde fizera a quarta marca, ficou surpreendido ao verificar que se situava em pleno centro da famosa Piazza Navona. Sabia que havia na praça uma grande igreja, mas já por lá passara com o dedo e considerara o templo. Que soubesse, não continha quaisquer obras de Bernini. Chamava-se Sant'Agnese in

ANJOS E DEMÓNIOS 423

Agone e fora consagrada a Santa Inês, uma bela virgem condenada a uma vida de escravatura sexual por ter recusado renunciar à sua fé.

Tem de haver qualquer coisa naquela igreja! Espremeu os miolos, visua

lizando o interior do templo. Não se lembrava de quaisquer obras de Bernini lá dentro, e muito menos de qualquer coisa que tivesse a ver com água. Além disso, também a disposição no mapa estava a incomodá-lo. Um losango. Demasiado exacto para ser coincidência, mas não suficientemente exacto para fazer sentido. Um papagaio de papel? T&àz escolhido o ponto errado? O que é que me está a escapar?

A resposta demorou mais trinta segundos, mas quando percebeu, Langdon sentiu uma excitação que não se comparava a nada que tivesse experimentado em toda a sua vida académica.

O génio dos Illuminati era, segundo parecia, inesgotável. A forma que tinha diante dos olhos não tencionava de modo algum

ser um losango. O losango só aparecia porque ele unira pontos adjacentes. Os Illuminati acreditam em opostos! Os dedos tremiam-lhe enquanto unia com a caneta os vértices opostos, dois a dois. Ali à sua frente, no mapa, estava uma enorme cruz. B uma cru^ Os quatro elementos da ciência expostos diante dos seus olhos... espalhados por Roma numa gigantesca cruz que abarcava toda a cidade.

Enquanto olhava, maravilhado, recordou o verso de Milton que aparecia em inglês no Diagramma de Galueu:

'Cross Rome the mystic elements unfold...

'Cross Rome...

A névoa começava a dissipar-se. Compreendeu que a resposta estivera toda a noite à sua frente! O poema illuminatus dizia-lhe como estavam dispostos os altares. A cross. Uma cruz!

'Cross Rome the mystic elements unfold!

Era um hábil jogo de palavras. Tinha interpretado a palavra 'Cross como uma abreviatura de Across. Através, por. Assumira tratar-se de uma liberdade poética destinada a manter a métrica. Mas era muito mais do que isso! Era uma pista escondida.

A cruz traçada no mapa, apercebeu-se, era a prova derradeira da dualidade dos Illuminati. Um símbolo religioso formado pelos elementos da ciência. O Caminho da Iluminação de Galileu era um tributo simultaneamente à ciência e a Deus!

O resto do puí^le encaixou quase instantaneamente.

424 DAN BROWN

Plasia Navona. Bern no centro da Piazza Navona, diante da igreja de Sant'Agnese

in Agone, erguia-se uma das mais célebres esculturas de Bernini. Não havia visitante de Roma que não fosse vê-la.

A Fonte dos Quatro Rios! Inegável tributo à água, a Fonte dos Quatro Rios glorificava os qua

tro rios da Terra: o Nüo, o Ganges, o Danúbio e o La Plata. Agua, pensou Langdon. O último marcador. Era perfeito. £ ainda mais perfeito, pensou, a cereja em áma do bolo, era o facto de, acima

da fonte de Bernini, se erguer um imponente obelisco.

Deixando os perplexos bombeiros para trás, Langdon atravessou a igreja a correu em direcção ao corpo sem vida de Olivetti.

De^ e trinta e um, pensou. Há tempo de sobra. Era a primeira vez em todo o dia em que sentia ir à frente no jogo.

Ajoelhado junto ao corpo de Olivetti, escondido pelos bancos, apo-derou-se discretamente da semiautomática e do rádio do comandante. Sabia que ia pedir ajuda, mas não era aquele o lugar para fazê-lo. O último altar tinha de continuar a ser um segredo, por enquanto. Ter os media e os bombeiros a correrem de sirenes a uivar para a Piazza Navona não o ajudaria nada.

Sem uma palavra, escap\aliu-se pela porta principal, cruzando-se com os jornalistas, que entravam na igreja aos magotes. Atravessou a Piazza Barberini. Protegido pelas sombras, Hgou o rádio. Tentou contactar o Vaticano, mas ouviu apenas estática. Ou estava fora do alcance, ou o transmissor precisava de um código de autorização qualquer. Rodou vários dos complexos botões e mostradores, sem resultado. Subitamente, percebeu que o seu plano de conseguir ajuda não ia funcionar. Girou sobre os calcanhares, à procura de uma cabina telefónica. Nem uma à vista. De qualquer modo, as linhas do Vaticano deviam continuar congestionadas.

Estava sozinho. Sentindo a vaga inicial de confiança esvair-se, ficou ali imóvel por

um instante, a avaliar a sua lamentável situação — coberto de fragmentos de ossos, cortado, delirantemente exausto, e faminto.

ANJOS E DEMÓNIOS 425

Olhou para trás, para a igreja. Havia uma espiral de fumo a revolutear por cima da cúpula, iluminada pelos projectores dos media e do carro dos bombeiros. Considerou a hipótese de voltar lá e pedir ajuda. O instinto dizia-lhe, no entanto, que qualquer ajuda, em especial uma ajuda inexperiente, traria mais inconvenientes do que vantagens. Se o assassino nos vê chegar... Pensou em Vittoria e soube que aquela seria a sua última oportutiidade de apanhar o homem que a levara.

Pia^a Navona, pensou, sabendo que chegaria lá mais do que a tempo. Olhou em redor, à procura de um táxi, mas as ruas estavam praticamente desertas. Até os motoristas de táxi, parecia, tinham largado tudo para procurar uma televisão. A Piazza Navona ficava a pouco mais de quilómetro e meio de distância, mas Langdon não fazia tenção de desperdiçar tempo e energia fazendo o percurso a pé. Voltou a olhar para a igreja. Talvez pudesse levar um veículo emprestado?

Um carro dos bombeiros? Uma carrinha da imprensa? Temjuít(ol Sentindo que as opções e os minutos lhe fugiam, tomou uma deci

são. Empunhando a arma de Olivetti, cometeu um acto tão contrário à sua natureza que pensou que devia estar possesso. Correu para um Citroen parado num semáforo, enfiou a pistola pela janela aberta do condutor e gritou:

— Fuori! O homem, a tremer, saiu do carro. Langdon saltou para o lugar dele e pisou o acelerador.

CAPITULO CENTO E UM

Günther Glick estava sentado numa cela de detenção no interior do centro de segurança da Guarda Suíça. Rezava a todos os deuses de que conseguia lembrar-se. Por favor, que isto NÃO seja um sonho. Tinha sido o furo da sua vida. O furo da vida de qualquer pessoa. Não havia em todo o mundo um jornalista que, naquele momento, não desejasse estar no lugar dele. Ustás acordado, disse a si mesmo. E és uma estrela. O Dan Rather está a roerse de inveja.

Macri, sentada junto dele, parecia ligeiramente aturdida. Glick não a censurava. Além de terem transmitido em exclusivo o discurso do camerlengo, tinham-lhes sido fornecidas fotografias horripilantes dos cardeais e do Papa — aquela lingua!—, bem como imagens de vídeo do contentor de antimatéria, com o contador digital a funcionar. Incrível!

Claro que tudo isto fora feito por ordem do camerlengo, portanto não era por essa razão que Glick e Macri se encontravam naquele instante sentados numa cela de detenção no centro de segurança da Guarda Suíça. Fora a ousada adenda de Glick à cobertura televisiva autorizada que os guardas não tinham apreciado. Glick sabia que a conversa que acabava de relatar não se destinava aos seus ouvidos, mas aquele era o seu momento de glória. Mais um grande furo Glick!

— O Samaritano da Vigésima Terceira Hora? — gemeu Macri sentada no banco ao lado dele, claramente muito pouco impressionada.

Glick sorriu. — Brilhante, não foi? — Brilhantemente estúpido. E só inveja, pensou Glick. Pouco depois do comunicado do camer

lengo, encontrara-se mais uma vez, por puro acaso, no lugar certo à hora certa. Ouvira o capitão Rocher dar novas ordens aos seus homens. Aparentemente, Rocher recebera um telefonema de um miste-

ANJOS E DEMÓNIOS 427

rioso indivíduo que, segundo ele, tinha informações cruciais sobre a presente crise. Rocher falava como se o homem pudesse ajudá-los e ordenava aos guardas que se preparassem para a sua chegada.

Apesar de a informação ser claramente privada, Glick agira como qualquer jornalista dedicado do mundo teria agido: sem honra. Encontrara um canto escuro, dissera a Macri que accionasse a câmara de controlo remoto e transmitira a notícia.

«Novidades chocantes da Cidade de Deus», anunciara, semicerran-do os olhos para dar mais intensidade à frase. E então continuara, dizendo que um misterioso visitante estava a chegar à Cidade do Vaticano para salvar a situação. O Samaritano da Vigésima Terceira Hora, fora como lhe chamara — o nome perfeito para o homem sem rosto que surgia no último instante para praticar uma boa acção. As outras estações tinham pegado na frase, e Glick fora uma vez mais imortalizado.

Sou brilhante, pensou. O Peter Jennings deve estar a atirar-se de uma ponte. Claro que não se ficara por ali. Já que tinha as atenções do mundo,

aproveitara a oportunidade para expor a sua teoria pessoal da conspiração.

Brilhante. Jibsolutamente brilhante. — Lixaste-nos — acusou Macri. — Estragaste tudo. — Que queres dizer com isso? Fui fantástico! Macri olhou para ele, incrédula. — O ex-presidente George Bush? Um Illuminatus? Glick sorriu. Mas haveria coisa mais óbvia? George Bush, o facto

estava bem documentado, era um maçon de grau 33, e era o chefe da CIA quando a agência arquivara a investigação sobre os llluminati por falta de indícios. E todos aqueles discursos sobre «rml luzes» e «uma Nova Ordem Mundial»... Bush era obviamente um Illuminatus.

— E aquele pedaço a respeito do CERN? — insistiu Macri. — Vais ter uma grande fila de advogados a bater-te à porta, amanhã de manhã.

— O CERN? Ora vamos, é tão óbvio! Pensa um pouco! Os 7//«^/-«Ä/Z desaparecem da face da Terra nos anos 1950, mais ou menos na mesma altura em que foi criado o CERN, onde se reúnem algumas das mentes mais brilhantes do mundo. Montes de financiamento privado. Constroem uma arma capaz de destruir a Igreja e... uuups, per-dem-na!

428 DAN BROWN

— E, com base nisso, tu dizes ao mundo que o CERN é o novo quartel-genetal dos llluminati.

— Obviamente! As Irmandades não desaparecem assim. Os llluminati tiveram de ir para qualquer parte. O CERN é o esconderijo perfeito. Não estou a dizer que todos no CERN são llluminati. Provavelmente, é como uma grande Loja maçónica, em que a maior parte das pessoas é inocente, mas os escalões mais altos...

—Já ouviste falar de difamação, Glick? Responsabilidade criminal? — E m, já ouviste falar de verdadeiro jornalismo? — Jornalismo? Estavas a inventar tretas com base em coisa ne

nhuma! Devia era ter desligado a câmara! E que trampa foi aquela a respeito do logo do CERN? Simbologia satânica? Estás completamente louco?

Glick sorriu. A inveja de Macri era bem evidente. O logótipo do CERN fora o seu golpe mais brilhante. Desde o comunicado do camer-lengo, todas as estações falavam do CERN e de antimatéria. E algumas mostravam em fundo o logótipo do CERN. Que parecia perfeitamente vulgar — dois círculos que se interceptavam, representando dois aceleradores de partículas, e cinco linhas tangenciais, que representavam tubos de injecção de partículas. O mundo inteiro estivera a olhar para aquele logótipo, mas fora ele, Glick, simbologista nas horas vagas, o único a ver o que escondia.

— Não és nenhum simbologista — atirou-lhe Macri —, és apenas um jornalista com sorte. Devias ter debcado a simbologia lá para o fulano de Harvard.

— O fulano de Harvard não viu nada — declarou Glick. O significado lUuminatus do logo é tão óbvio!

Estava a sorrir para si mesmo. Apesar de o CERN ter montes de aceleradores, o logo mostrava apenas dois. Dois é o número lUuminatus da dualidade. E apesar de a maior parte dos aceleradores ter apenas um tubo de injecção, o logo mostrava cinco. Cinco é o número do pentagrama lUuminatus. Então viera o remate — o mais brUhante de tudo. GUck fizera notar que o logo continha um grande número «6» — claramente formado por uma das Unhas e um dos círculos — e que, quando se rodava o logo, aparecia outro seis... e depois outro. O logo continha três seis! 666! A marca do diabo! O número da besta!

GUck era um gemo.

ANJOS E DEMÓNIOS 429

Macri olhou para ele, com vontade de lhe dar um murro. A inveja há-depassar, pensou Guck, com a mente já a derivar para

outra ideia. Se o CERN era o quartel-general dos llluminati, seria lá que guardavam o famoso Diamante Illuminatus'? Lera a respeito do assunto na internet — «um diamante sem defeitos, nasádo dos antigos elementos com

uma tal perfeição que todos os que o viam ficavam maravilhados».

Talvez o esconderijo secreto do Diamante Illuminatus fosse outro mistério que ele pudesse desvendar naquela noite.

CAPITULO CENTO E DOIS

Piazza Navona. Foníe dos Quatro Rios. As noites romanas, como as do deserto, podem ser surpreenden

temente frias, mesmo depois de um dia de calor. Langdon estava escondido entre as sombras que envolviam a praça, a tentar embrulhar--se no casaco. Como o barulho de fundo do tráfego, uma cacofonia de noticiários ecoava pela cidade. Consultou o relógio. Quinze minutos. Ficou grato por aqueles momentos de repouso.

A praça estava deserta. A magistral fonte de Bernini cantava diante dele como uma feiticeira. Do lago borbulhante evolava-se uma bruma mágica, iluminada de baixo pelos projectores submersos. Langdon sentiu uma electricidade fria no ar.

A característica mais impressionante da fonte era a sua altura. Só o corpo central tinha mais de seis metros — uma rugosa montanha de calcário poroso trespassada por cavidades e grutas de onde a água jorrava. Todo o conjunto estava rodeado de figuras pagãs. Acima de tudo isto, um esguio obelisco projectava-se mais doze metros para cima. Langdon olhou para cima. Mesmo no topo, uma sombra difusa recortava-se contra o céu. Um pombo solitário, que ali fora empoleirar-se.

Uma crut(¡ pensou Langdon, ainda espantado pela disposição dos marcadores através de Roma. A Fonte dos Quatro Rios era o último altar de ciência. Apenas algumas horas antes, ele, Langdon, estivera no Panteão, convencido de que o Caminho da Iluminação fora interrompido e de que nunca conseguiria chegar até tão longe. Enganava-se. Na realidade, o caminho continuava intacto. Terra, Ar, Fogo, Agua. E ele se-guira-o... do princípio até ao fim.

Não exactamente até ao fim, recordou a si mesmo. O caminho tinha cinco etapas, não apenas quatro. Aquele quarto marcador, a fonte, apontava o destino último — o esconderijo secreto dos Illuminati— a Igreja

ANJOS E DEMÓNIOS 431

da Iluminação. Estaria ainda de pé? Teria sido para lá que o assassino levara Vittoria?

Deu por si a examinar as figuras da fonte, em busca de uma pista que lhe desse a direcção do esconderijo. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada. Quase no mesmo instante, porém, foi invadido por uma perturbadora apreensão. Naquela fonte não havia anjos de qualquer espécie. Com toda a certeza, nenhum que pudesse ver do sítio onde estava... e nenhum que tivesse visto no passado. A Fonte dos Quatro Rios era uma obra pagã. As esculturas eram todas profanas — seres humanos, animais, até um bizarro tatu. Ali, um anjo saltaria imediatamente à vista.

listarei no sítio errado"^, lembrou-se da disposição cruciforme dos outros obeliscos. Cerrou os punhos. Não, esta fonte éperfeita.

Eram 10.46 quando uma carrinha preta emergiu de uma viela no extremo oposto da praça. Langdon não teria olhado para ela duas vezes não fora o facto de trazer as luzes apagadas. Como um tubarão a patrulhar uma baía iluminada pelo luar, o veículo contornou o perímetro da praça.

Langdon encolheu-se ainda mais, agachado entre as sombras junto à grande escadaria que dava acesso à igreja de Sant'Agnese in Agone. Espreitou para a praça, com o pulso a acelerar.

Depois de ter completado duas voltas, a carrinha desviou-se para o passeio do lado da fonte, manobrando ao longo da bacia até ficar com o flanco junto e à altura do rebordo. Então parou, com a porta lateral deslizante posicionada escassos centímetros acima da água.

A névoa revoluteava. Langdon teve uma sombria premonição. Teria o assassino chegado

mais cedo? Estaria na carrinha? Imaginara-o a escoltar a sua última vítima a pé através da praça, como fizera em São Pedro, oferecendo-lhe uma linha de fogo desimpedida. Mas se o assassino tinha chegado na carrinha, as regras acabavam de mudar.

Inesperadamente, a porta lateral da carrinha deslizou para trás. No chão do veículo, a contorcer-se com dores, jazia um homem

nu. Tinha o corpo envolto em metros de pesada corrente. Debateu-se contra os liames de ferro, mas as correntes eram demasiado pesadas. Uma das voltas passava-lhe pela boca, como o bridão de um cavalo, sufocando-lhe os gritos de socorro. Foi então que Langdon viu a se-

432 DAN BROWN

gunda figura, a mover-se atrás do prisioneiro, no escuro, como que a fazer os últimos preparativos.

Langdon soube que tinha apenas segundos para agir. Empunhou a arma e despiu o casaco, debcando-o no chão. Não que

ria o estorvo acrescido de um casaco de tweed, nem tinha a mínima intenção de levar o Diagramma de Galileu para qualquer lugar próximo de água. O documento ficaria ali onde estava, seguro e a seco.

Deslizou para a direita. Contornando o perímetro da fonte, foi co-locar-se num ponto diametralmente oposto à carrinha. O grande bloco central da fonte tapava-lhe a vista. Endireitando-se, correu directamente para a bacia, esperando que o estrondear da água lhe abafasse o ruído dos passos. Quando chegou à fonte, passou por cima do bordo e deixou-se cair no lago espumejante.

A água chegava-lhe à cintura e estava fria como gelo. Cerrou os dentes e começou a avançar. O fundo era escorregadio, tornado duplamente traiçoeiro pela camada de moedas que os turistas para lá atiravam, formulando desejos. Langdon sentiu que ia precisar de mais do que simples boa sorte. Enquanto a bruma se elevava à sua volta, perguntou a si mesmo se seria o frio ou o medo que fazia tremer a mão que empunhava a arma.

Chegou ao centro da fonte e contornou-o pela esquerda. Avançava o mais depressa que podia, agarrando-se à cobertura de figuras de mármore. Escondendo-se atrás da enorme forma esculpida de um cavalo, espreitou para o outro lado. A carrinha estava a quatro metros e meio de distância. O Hashashin acocorava-se no chão, com as mãos pousadas no peito envolto em correntes do cardeal, preparado para fazê-lo rolar da beira para dentro da fonte.

Com água pela cintura, Robert Langdon ergueu a arma e emergiu do meio da bruma, sentindo-se como uma espécie de cowhcy aquático no seu duelo final.

— Não se mexa! — A voz estava mais firme do que a pistola. O Hashashin ergueu os olhos. Por um instante, pareceu confuso,

como se estivesse a ver um fantasma. Então, encurvou os lábios num sorriso mau. Ergueu submissamente os braços.

— E assim a vida — comentou. — Saia da carrinha. — Está todo molhado. — E você está adiantado.

ANJOS E DEMÓNIOS 433

— Estou desejoso de ir reclamar o meu prémio. Langdon firmou melhor a arma. — Não hesitarei em disparar. —Já hesitou. Langdon sentiu o dedo começar a apertar o gatilho. O cardeal jazia

imóvel. Parecia exausto, moribundo. — Desamarre-o. — Esqueça-o. Veio por causa da mulher. Não finja que não. Langdon lutou contra o impulso de acabar com aquilo au mesmo. — Onde está ela? — Algures em segurança. A espera do meu regresso. Está viva. Langdon sentiu uma luz de esperança. — Na Igreja da Iluminação? O assassino voltou a sorrir. — Nunca conseguirá descobrir onde fica. Langdon nem queria acreditar. O esconderijo ainda existe. Apontou

a arma. — Onde? — A localização é um segredo que vem de há sécxilos. Mesmo a mim,

só me foi revelada muito recentemente. Mais depressa morreria do que trairia essa confiança.

— Posso encontrá-la sozinho. — Um pensamento arrogante. Langdon fez um gesto na direcção da fonte. — Consegui chegar até aqui. — Como muitos outros. O último passo é o mais difícil. Langdon avançou um passo, tacteando com o pé debabco de água.

O Hashashin parecia notavelmente calmo, acocorado nas traseiras da carrinha com os braços erguidos acima da cabeça. Langdon apontava--Ihe a pistola ao peito, perguntando a si mesmo se não seria melhor disparar e acabar com aquilo. Não. Ele sabe onde está Vittoria. Sabe onde está a antimatéria. Preríso de informação!

Da escuridão da carrinha, o Hashashin olhava para o seu adversário e não conseguia impedir-se de sentir uma piedade divertida. O americano era corajoso, isso já o tinha provado. Mas era inexperiente. Tam-

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bém isso já fora provado. Coragem sem perícia equivalia a suicídio. Havia regras de sobrevivência. Regras antigas. E o americano estava a violá-las todas.

Tinhas a vantagem, o elemento de surpresa. E desperdiçaste-o.

O americano estava indeciso... muito provavelmente à espera de reforços... ou talvez de um deslize que revelasse informação crucial.

'Nunca interrogar sem primeiro incapacitar a presa. Um inimigo encurralado

é um inimigo mortal.

O americano estava outra vez a falar. A sondar. A manobrar. O Hashashin quase riu alto. Isto não é um dos teus filmes de Hollywood...

não vai haver grandes conversas de arma na mão antes do tiroteio final Isto é o fim.

Agora.

Sem quebrar o contacto visual, o Hashashin fez deslizar as mãos pelo tecto da carrinha até encontrar o que procurava. Olhando sempre em frente, agarrou-se.

E fez a sua jogada.

O movimento foi totalmente inesperado. Por um instante, Langdon pensou que as leis da Física tinham deixado de vigorar. O Hashashin pareceu ficar suspenso sem peso em pleno ar enquanto atirava as pernas para a frente, atingindo com as botas o flanco do cardeal envolto em correntes e projectando o corpo pela porta fora. O cardeal caiu na bacia, levantando um enorme cachão.

Com a água a saltar-lhe para a cara, Langdon compreendeu demasiado tarde o que tinha acontecido. O Hashashin encontrara uma das calhas da porta da carrinha e servira-se dela para se balouçar para fora. Agora voava para ele, de pés para a frente, através da poalha de água.

Langdon apertou o gatilho, e o silenciador cuspiu. A bala atravessou a parte da frente da bota esquerda do Hashashin. No mesmo instante, Langdon sentiu as solas das botas do homem baterem-lhe no peito, atirando-o para trás com um violento pontapé.

Caíram os dois, levantando uma cortina de água suja de sangue. Quando o Hquido gelado o envolveu, a primeira sensação de Lang

don foi de dor. O instinto de sobrevivência veio a seguir. Compreendeu que já não empunhava a arma. Fora-lhe arrancada da mão. Mergulhando, tacteou o fundo lodoso. Uma das suas mãos encontrou metal.

ANJOS E DEMÓNIOS 435

Um punhado de moedas. Largou-as. Abriu os olhos e perscrutou a bacia iluminada. A água borbulhava à volta dele como vtrajacut^i gelado.

Apesar do instinto para respirar, o medo mantinha-o no fundo. Sempre em movimento. Não sabia de onde viria o próximo ataque. Tinha de encontrar a arma! Procurou, com as mãos desesperadamente esticadas para a frente.

Tens a vantagem, disse para si mesmo. TLstás no teu elemento. Mesmo com uma camisola de gola alta ensopada, Langdon era um ágü nadador. A água é o teu elemento.

Quando os seus dedos encontraram metal pela segunda vez, teve a certeza de que a sua sorte mudara. O objecto que tinha na mão não era um punhado de moedas. Agarrou-o e tentou puxá-lo para si, mas, em vez disso, sentiu-se escorregar para a frente. O objecto não se movia.

Compreendeu, mesmo antes de chegar junto do corpo do cardeal, que agarrara uma ponta das correntes de ferro que o afundavam. Hesitou um instante, imobilizado pela visão do rosto aterrorizado que olhava para ele do fiindo da fonte.

Impressionado pela vida que via nos olhos do homem, estendeu as mãos para baixo e agarrou as correntes, tentando içá-lo para a superfície. O corpo começou a subir lentamente... como uma âncora. Langdon puxou com mais força. Quando a cabeça do cardeal rompeu a superfície, o velho inspirou dois ou três haustos desesperados. Então, violentamente, o corpo rolou para um lado, obrigando Langdon a largar a escorregadia corrente. Como uma pedra, o cardeal Baggia voltou a descer e desapareceu na água que borbulhava.

Langdon mergulhou, de olhos abertos na água turva e agitada. Encontrou o cardeal. Desta vez, quando as agarrou, as correntes que cobriam o peito de Baggia deslocaram-se para um lado, revelando outra barbaridade... uma palavra gravada na carne queimada.

Instantes depois, surgiram duas botas no seu campo de visão. Uma delas esguichava sangue.

CAPÍTULO CENTO E TRES

Como praticante de pólo aquático, Robert Langdon tivera mais do que a sua conta de batalhas subaquáticas. A selvajaria competitiva abaixo da superfície da piscina, longe dos olhos dos árbitros, pedia meças até ao mais furioso combate de luta-üvre. Langdon já fora pontapeado, arranhado, agarrado e até, certa vez, mordido por um frustrado defesa a quem estava constantemente a escapar.

Agora, porém, enquanto se debatia na água gelada da fonte de Bernini, sabia que estava muito longe da piscina de Harvard. Lutava não por um jogo, mas pela vida. Era a segunda vez que enfrentava aquele adversário. Não havia ali árbitros. Nem segundas partidas. Os braços que lhe empurravam a cabeça para o fundo da bacia faziam-no com uma força que não deixava dúvidas quanto à sua intenção de matar. Langdon rolou instintivamente sobre si mesmo, como um torpedo. U-berta-te da prisão! MSLS as mãos voltaram a torcê-lo para a posição inicial. O seu inimigo desfrutava de uma vantagem com que nenhuma defesa de pólo aquático podia contar: dois pés apoiados no chão. Contorceu--se, tentando colocar os seus próprios pés debaixo do corpo. O Hasha-shin parecia estar a proteger um braço... mas nem por isso o seu aperto era menos firme.

Foi então que Langdon compreendeu que não ia conseguir subir à superfície. Fez a única coisa de que conseguiu lembrar-se. Desistiu de tentar. Se não podes ir para norte, vai para leste. Fazendo apelo às forças que lhe restavam, dobrou e esticou as pernas num golpe de cauda de golfinho e puxou os braços para baixo do corpo, numa espécie de braçada de estilo mariposa. O corpo saltou para a frente.

A súbita mudança de direcção pareceu apanhar o Hashashin desprevenido. O movimento de Langdon arrastou os braços do seu inimigo para o lado, desequüibrando-O. A pressão das mãos afrouxou, e

ANJOS E DEMÓNIOS 437

Langdon voltou a esticar as pernas. Foi como se um cabo de reboque se tivesse partido. De repente, estava livre. Expulsando dos pulmões o ar viciado, subiu desesperadamente à tona. Um único hausto foi tudo o que conseguiu. Com uma força esmagadora, o Hashashin estava de novo em cima dele, a carregar-lhe nos ombros com as palmas das mãos, usando o peso do corpo para empurrá-lo para baixo. Langdon esperneou, num esforço para apoiar os pés no chão, mas uma das pernas do Hashashin rasteirou-o, derrubando-o.

Voltou para o fundo. Os músculos ardiam-lhe enquanto se contorcia debabco de água.

Desta vez, as suas manobras foram inúteis. Examinou o fundo, através da água que borbulhava, procurando a pistola. Quase não conseguia ver. As bolhas eram mais densas no lugar onde estavam. Uma luz ofuscante bateu-lhe nos olhos quando o Hashashin o empurrou mais para baixo, em direcção a um dos projectores presos ao fundo da bacia. Estendeu as mãos, agarrando a caixa metálica. Estava quente. Puxou, tentando Hbertar-se, mas o projector, montado sobre dobradiças, rodou, privando-o do seu momentâneo ponto de apoio.

O Hashashin empurrou-o ainda mais para baixo. Foi então que Langdon o viu. A espreitar do meio das moedas,

mesmo à sua frente. Um cilindro fino e negro. O siknáador da arma do 0//VÍ/A7 Estendeu a mão, mas quando os seus dedos se fecharam à volta do cuindro, não sentiram metal, e sim plástico. Puxou, e o tubo de borracha flexível subiu a contorcer-se na direcção dele, como uma fina cobra. Tinha cerca de sessenta centímetros de comprimento e da extremidade saía um jacto de bolhas de ar. Não fora a arma que encontrara. Era um dos muitos spumanti da fonte... tubos de ar para fazer bolhas.

A poucos passos de distância, o cardeal Baggia sentia a alma es-forçar-se por abandonar-lhe o corpo. Apesar de ter passado toda a sua vida a preparar-se para aquele momento, nunca imaginara que o fim seria assim. O seu invólucro físico sofria horrivelmente... queimado, magoado, mantido debaixo de água por um peso inamovível. Lembrou a si mesmo que aquele sofrimento não era nada comparado com o que Jesus suportara.

Ê/í morreu pelos meus pecados...

438 DAN BROWN

Ouvia O rmdo da luta que continuava ali perto. Não suportava a ideia. O seu captor preparava-se para extinguir mais uma vida... o homem de olhos bondosos, o homem que tentara ajudá-lo.

Deitado de costas no fundo da bacia, Baggia sentiu a dor aumentar enquanto olhava através da água para o negrume do céu lá em cima. Por um instante, pareceu-Ihe ver as estrelas.

Era tempo. Libertando-se do medo e da dúvida, abriu a boca e expeliu o que

sabia ser o seu último sopro. Ficou a ver o seu próprio espírito gorgolejar em direcção ao céu num jorro de bolhas transparentes. Então, deliberadamente, engoliu. A água entrou-lhe nos pulmões como adagas afiadas. A dor durou apenas uns segundos.

Então... paz.

O Hashashin ignorou a dor no pé e concentrou-se no esforço de afogar o americano, que mantinha preso debaixo de si na água agitada. Acaba com ele. Aumentou a pressão dos dedos, sabendo que, desta vez, Robert Langdon não sobreviveria. Como previra, as contorções da sua vítima tornaram-se gradualmente mais fracas.

De repente, o corpo de Langdon tornou-se rígido. Começou a estremecer violentamente.

Sim, pensou o Hashashin. Os estertores. Quando a água chega aos pulmões. Aqueles estertores, sabia-o, durariam cerca de cinco segundos.

Duraram seis. Então, exactamente como o Hashashin esperava que acontecesse,

o corpo de Robert Langdon tornou-se flácido, mole como um balão esvaziado. Acabara-se. O Hashashin manteve-o debabco de água durante mais trinta segundos, para que o líquido inundasse todo o tecido pulmonar. Pouco a pouco, sentiu o corpo descer para o fundo. Largou-o. Os media iam encontrar uma dupla surpresa na Fonte dos Quatro Rios.

— Tabban! — praguejou, saindo da bacia e examinando o pé que sangrava. A biqueira da bota estava rasgada e a ponta do dedo grande fora levada pela bala. Furioso com a sua própria negligência, rasgou a parte inferior de uma das pernas das calças e enfiou o tecido pela frente da bota. A dor subiu-lhe pela perna.

— Ibn al-kalb!

ANJOS E DEMÓNIOS 439

Cerrou os dentes e continuou a pressionar com o pedaço de calça rasgada. O jorro de sangue diminuiu até ficar redu2Ído a um pequeno fio.

Desviando os pensamentos da dor para o prazer, dirigiu-se à carrinha. O seu trabalho em Roma estava feito. Sabia exactamente o que lhe acalmaria o desconforto. Vittoria Vetra, amarrada, esperava-o. Apesar de encharcado e enregelado, sentiu uma erecção.

Mered a minha recompensa.

Do outro lado da cidade, Vittoria despertou para um mundo de dor. Estava deitada de costas. Todos os seus músculos estavam duros como pedra. Tensos. Quase em rotura. Doíam-lhe os braços. Quando tentou mover-se, sentiu espasmos nos ombros. Demorou um instante a compreender que tinha as mãos amarradas atrás das costas. A sua reacção inicial foi de confusão. Estarei a sonhar? Mas quando tentou endireitar a cabeça, a dor na base da nuca informou-a de que estava bem acordada.

Com a confusão a transformar-se em medo, olhou em redor. Estava numa sala de pedra nua — espaçosa e bem mobuada, alumiada por archotes. Uma qualquer espécie de antiga sala de reuniões. AJi perto, viu um círculo de velhos bancos de madeira.

Sentiu uma brisa, agora fria, arrepiar-lhe a pele. Viu uma dupla portada aberta, e, para lá dela, uma varanda. Teria sido capaz de jurar que, através da balaustrada, se avistava o Vaticano.

CAPÍTULO CENTO E QUATRO

Robert Langdon jazia estendido numa cama de moedas, no fundo da Fonte dos Quatro Rios. Tinha ainda a boca fechada à volta do mbo de plástico. O ar bombeado através daquele mbo para fazer espumejar a água sabia mal, depois de ter passado pela bomba, e Langdon sentia a garganta a arder. Mas não se queixava. Estava vivo.

Não sabia muito bem até que ponto fora exacta a sua imitação de alguém a afogar-se, mas tendo vivido perto da água uma grande parte da sua vida, ouvira dúzias de relatos. Fizera o melhor de que fora capaz. Perto do fim, expulsara inclusivamente todo o ar que tinha nos pulmões e contivera a respiração, de modo a que o corpo fosse arrastado para baixo pelo seu próprio peso.

Felizmente, o Hashashin acreditara e largara-o. Agora, estendido no fundo da bacia, Langdon esperara o mais que

pudera. Começava a sufocar. O Hashashin ainda estaria por ali? Inspirando um longo e acre hausto do tubo, largou-o e nadou debaixo de água até encontrar o arranque do corpo central da fonte. Seguiu-o silenciosamente para cima, surgindo à tona fora das vistas, nas sombras por baixo das enormes figuras de mármore.

A carrinha tinha desaparecido. Era tudo o que precisava de ver. Voltando a encher os pulmões

de ar fresco, voltou ao lugar onde o cardeal Baggia se tinha afundado. Sabia que o homem estaria inconsciente, e que as hipóteses de reanimação eram muito escassas, mas tinha de tentar. Encontrou o corpo, plantou firmemente os pés de ambos os lados, inclinou-se para a frente e agarrou com as mãos as correntes que o envolviam. Então, puxou. Quando Baggia apareceu à superfície, Langdon viu que os olhos estavam já revirados para cima, esbugalhados. Não era bom sinal. Não havia respiração nem pulso.

ANJOS E DEMÓNIOS 441

Sabendo que nunca conseguiria levantar o corpo e fazê-lo passar por cima da beira da bacia, arrastou-o até ao espaço por baixo do corpo central da fonte. AU, a água era menos profunda e havia uma plataforma inclinada. Puxou o corpo nu para essa plataforma, o mais acima que pôde. Não foi muito.

Começou então a trabalhar. Depois de fazer pressão com as duas mãos no peito envolto em correntes, para expulsar a água dos pulmões, começou a fazer RCP. Contando cuidadosamente. Com determinação. Resistindo ao impulso de soprar com demasiada força ou demasiado depressa. Durante três minutos, tentou ressuscitar o velho cardeal. Ao fim de cinco, soube que era impossível.

Ilpreferito. O homem que seria o novo Papa. Ali estendido, morto, à sua frente.

Fosse pelo que fosse, mesmo naquele instante, prostrado na sombra da plataforma meio submersa, o cardeal Baggia mantinha um ar de calma dignidade. A água lambia-lhe suavemente o peito, parecendo quase cheia de remorsos... como se pedisse perdão por ter sido ela, em última análise, a assassiná-lo... como se tentasse limpar a ferida calcinada que dizia o seu nome.

Muito ao de leve, Langdon passou a palma da mão pelo rosto do cardeal e fechou os olhos revirados. Ao fazê-lo, exausto, sentiu as lágrimas subirem-Ihe no peito. Então, pela primeira vez em muitos anos, chorou.

CAPITULO CENTO E CINCO

A névoa de emoção e cansaço dissipou-se pouco a pouco enquanto se afastava a chapinhar do corpo do cardeal e voltava à parte mais funda da bacia. Esgotado e sozinho ali na fonte, estava meio à espera de cair de exaustão a qualquer momento. Mas, em vez disso, sentiu uma nova compulsão crescer dentro dele. Imperiosa. Frenética. Sentiu os músculos enrijecerem com um inesperado vigor. O cérebro, como se ignorasse a dor que lhe enchia o coração, afastou o passado e con-centrou-se na única e desesperada tarefa que tinha pela frente.

Encontra o esconderijo dos lUuminati. Ajuda a Vittoria. Voltando-se para o montanhoso corpo central da fonte de Berni

ni, chamou a si todos restos de esperança e lançou-se na procura do último marcador dos lUuminati. Sabia que, algures naquela emaranhada massa de figuras, havia uma pista que apontava para o esconderijo. Enquanto examinava a fonte, no entanto, as suas esperanças depressa esmoreceram. As palavras do segno pareciam gorgolejar, trocistas, à volta dele. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada. Lançou um olhar furioso às formas esculpidas que tinha à sua frente. A fonte épagã! Não há aqui porcaria nenhuma de anjo!

Quando terminou o infrutífero exame do grupo central, os seus olhos subiram instintivamente pelo alto puar de pedra. Quatro marcadores, pensou, distribuídos por Roma de modo a formar uma gigantesca crui^

Estudou os hieróglifos que cobriam o obelisco. Talvez houvesse au uma pista escondida entre a simbologia egípcia. Pôs imediatamente a ideia de parte. O obeHsco fora esculpido e gravado muitos séculos antes de Bernini ter nascido e, de toda a maneira, os hieróglifos só tinham passado a ser decifráveis depois da descoberta da Pedra de Rosetta. Mesmo assim, argumentou consigo mesmo, talvez Bernini tivesse gra-

ANJOS E DEMÓNIOS 443

vado um símbolo adicional? Um símbolo que passasse despercebido entre os hieróglifos?

Animado por um fio de esperança, voltou a contornar a fonte e examinou as quatro fachadas do obelisco. Demorou dois minutos, e quando chegou ao fim da última face a esperança sumiu-se. Nada nos hieróglifos parecia ter sido acrescentado. De certeza, pelo menos, nada que se parecesse com um anjo.

Consultou o relógio. Onze em ponto. Não saberia dizer se o tempo voava ou se se arrastava. Imagens de Vittoria e do Hashashin começaram a encher-lhe a cabeça enquanto continuava a dar a volta à fonte, sentindo a frustração crescer quando completou mais um circuito sem nada ter encontrado. Derrotado e exausto, estava à beira de ceder. Dobrou a cabeça para trás, preparando-se para gritar à noite.

O som prendeu-se-lhe na garganta. Estava a olhar para o topo do obelisco. Já tinha visto o objecto lá

pousado, mas ignorara-o. Agora, no entanto, prendeu-lhe toda a atenção. Não era um anjo. Muito longe disso. Na realidade, nem pensara que fizesse parte da fonte de Bernini. Julgara tratar-se de uma criatura viva, mais um dos poluidores de Roma que escolhera um poleiro bem alto.

Um pombo. Franziu os olhos, fixando o objecto, com a visão nublada pela poa

lha de água que se levantava à sua volta. Era um pombo, não era? Distinguia claramente a cabeça e o bico recortados contra o fundo de estrelas. E no entanto, a ave não se movera durante todo aquele tempo, nem sequer com a agitação da luta lá em baÍKO. Estava exactamente onde Langdon o vira ao entrar na praça. Empoleirada no alto do obelisco, a contemplar calmamente a lonjura, para oeste.

Langdon ficou a olhar para ele por um instante, e então mergulhou a mão na bacia e pegou num punhado de moedas. Atirou-as na direcção do céu e ouviu-as ressaltar no granito do obelisco, lá para cima. A ave não se mexeu. Voltou a tentar. Desta vez, uma das moedas acertou no alvo. Um leve tinido de metal contra metal ecoou na praça.

O raio do pombo era de bronze. Andas à procura de um anjo, não de um pombo, recordou-lhe uma voz.

Mas era demasiado tarde. Langdon já tinha feito a ligação. Compreendeu que a ave não era exactamente um pombo.

Era uma pomba.

444 DAN BROWN

Quase sem se aperceber do que fazia, chapinhou em direcção ao centro da fonte e começou a escalar a montanha de calcário, agarran-do-se a grandes braços e cabeças, içando-se cada ve2 mais alto. A meio caminho da base do obelisco, emergiu da poalha de água e conseguiu ver claramente a cabeça da ave.

Não havia a mínima dúvida. Era uma pomba. A enganadora cor pardacenta era consequência da poluição romana, que escurecera o bronze original. E então o significado daquilo atingiu-o como uma marretada. Vira um par de pombas brancas horas antes, no Panteão. Um par de pombas brancas não tinha qualquer significado. Aquela pomba, porém, estava sozinha.

A. pomba branca so^nha é o símbolo pagão do Anjo da Pa;^ A verdade atirou-o para cima. Bernini usara o símbolo pagão de

anjo para poder disfarçá-lo numa fonte pagã. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada. A pomba é o anjo! Não podia imaginar poleiro mais alto do que o topo daquele obelisco para o último marcador dos llluminati.

A ave voltava-se para oeste. Langdon tentou seguir-lhe a direcção do olhar, mas não conseguia ver para lá dos edifícios. Uma frase de São Gregório de Nisso inundou-lhe inesperadamente a memória. A medida que a alma se ilumina... assume a bela forma da pomba.

Continuou a trepar. Em direcção à pomba. Ia quase a voar. Chegou à plataforma onde se erguia o obelisco. Não podia subir mais. Bastou--Ihe, no entanto, um olhar em redor para saber que não era preciso. Roma inteira espraiava-se à sua frente. A vista era de cortar a respiração.

A esquerda, as caóticas luzes dos media a rodear São Pedro. A direita, a cúpula ainda fumegante da igreja de Santa Maria delia Vittoria. Em frente dele, ao longe, a Piazza del Popólo. Por baixo dos seus pés, o quarto e último ponto. Uma gigantesca cruz de obeliscos.

A tremer, olhou para cima, para a pomba. Voltou-se na direcção correcta e baixou os olhos para a linha de telhados.

Viu-o imediatamente. Tão óbvio. Tão claro. Tão tortuosamente simples. Ao olhar para ele, Langdon teve dificuldade em acreditar que o es

conderijo dos 7//«OT«fltó'tivesse podido manter-se secreto durante tanto tempo. A cidade inteira pareceu desvanecer-se enquanto fixava o olhar na monstruosa estrutura de pedra, do outro lado do rio, à sua frente. O edifício era dos mais famosos de Roma. Erguia-se na margem do

ANJOS E DEMÓNIOS 445

Tibre, adjacente ao Vaticano, na diagonal. A arquitectura era austera — um torreão circular dentro de uma fortaleza quadrada e, no exterior das muralhas, a rodear todo o conjunto, um parque em forma de pentagrama.

Os antigos baluartes de pedra eram espectacularmente iluminados de baixo por projectores. No alto do torreão erguia-se um enorme anjo de bronze. O anjo apontava uma espada para baixo, para o centro exacto da torre. E como se isso não fosse o bastante, conduzindo exclusiva e directamente à porta principal do castelo, a famosa Ponte dos Anjos... uma espectacular via de acesso adornada por doze grandes anjos esculpidos pelo próprio Bernini.

Numa última e avassaladora revelação, Langdon compreendeu que a cruz de obeliscos traçada por Bernini através da cidade assinalava a fortaleza de uma forma perfeitamente llluminata; o braço central da cruz passava exactamente pelo centro da ponte do castelo, dividindo-a em duas metades iguais.

Langdon foi apanhar o casaco de tweed, mantendo-o afastado do corpo que escorria água. Em seguida, saltou para dentro do Citroen roubado, calcou com um sapato ensopado o pedal do acelerador e arrancou.

CAPITULO CENTO E SEIS

Eram 11.07. O Citroën corria a toda a velocidade pela noite romana. Enquanto descia a Lungotovere Tor Di Nona, paralela ao rio, Langdon via o seu objectivo erguer-se como uma montanha, do lado direito.

CastelSant'Angelo. Castelo do Anjo. O desvio para a Ponte dos Anjos — Ponte Sant'Angelo — surgiu

de repente, sem aviso. Langdon travou bruscamente e virou. Virou a tempo, mas a ponte estava vedada. O carro derrapou três metros e foi embater numa série de pequenos puares de cimento que bloqueavam a passagem. Langdon dobrou-se para a frente, a ofegar e a tremer, quando o carro se deteve. Tinha-se esquecido que a ponte passara, por uma questão de preservação, a ser exclusivamente reservada a peões.

Abalado, saiu do carro, cuja frente ficara destruída, desejando ter escolhido um dos outros acessos. Estava gelado, a tiritar depois do banho forçado na fonte. Vestiu o casaco de tweed por cima da camisola molhada, grato pelo duplo forro característico dos Harris. A folha do Diagramma permaneceria a seco. Em frente dele, do outro lado da ponte, a fortaleza de pedra erguia-se como uma montanha. Dorido e cansado, começou a correr.

De ambos os lados, imóveis como um guarda de honra, os anjos de Bernini iam ficando para trás, encaminhando-o para o seu destino final. Que a tua alta demanda seja pelos anjos guiada. O castelo parecia aumentar de tamanho à medida que avançava, um cume inexpugnável, mais intimidante aos olhos de Langdon do que a própria Basílica de São Pedro. Correu para o bastião, como um avião com os depósitos vazios a voar a vapores de gasolina, erguendo os olhos para o núcleo circular da cidadela e para o garganmesco anjo pousado no topo, de espada na mão.

O castelo parecia deserto.

ANJOS E DEMÓNIOS 447

Langdon sabia que, ao longo dos séculos, o edifício fora usado pelo Vaticano como túmulo, fortaleza, esconderijo papal, prisão para os inimigos da Igreja e museu. Aparentemente, tivera também outros ocupantes: os Illuminati. De certa maneira, fazia um estranho sentido. Embora propriedade do Vaticano, era usado só muito esporadicamente, e Bernini fizera-lhe numerosos restauros ao longo dos anos. Dizia-se que era agora um labirinto de entradas secretas, passagens e câmaras escondidas. Langdon tinha poucas dúvidas de que o anjo e o parque pentagonal circundante fossem igualmente obra de Bernini.

Ao chegar diante das gigantescas portas duplas do castelo, empur-rou-as com força. Muito pouco surpreendentemente, não se moveram um milímetro. Duas grandes aldrabas de ferro pendiam da madeira, à altura dos olhos. Langdon ignorou-as. Recuou alguns passos e olhou para a alta muralha de pedra. Aquele bastião resistira a exércitos de berberes, pagãos e mouros. Sabia que as suas hipóteses de lá entrar eram muito escassas.

Vittoria, pensou. Estás aí dentro? Correu à volta da muralha exterior. Tem de haver outra entrada! Ao contornar o segundo baluarte para oeste, chegou, ofegante, a

um pequeno parque de estacionamento contíguo a Lungotere Angelo. Nesta muralha, encontrou uma segunda entrada, uma ponte levadiça, subida e trancada. Voltou a olhar para cima.

As únicas luzes eram os holofotes exteriores que iluminavam a fachada. Todas as pequenas janelas estavam às escuras. Os olhos de Langdon continuaram a subir. Mesmo no alto do torreão central, trinta metros acima do chão, exactamente por baixo da ponta da espada do anjo, havia uma pequena varanda saliente. O parapeito de mármore parecia brilhar débilmente, como se a sala que ficava para lá dela estivesse uuminada por archotes. Langdon deteve-se, com o corpo encharcado subitamente a tremer. Uma sombra? Esperou, forçando a vista. Então, voltou a vê-la. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Está alguém lá em áma!

— Vittoria! — chamou, incapaz de conter-se, mas o grito foi engolido pelo rugir do Tibre que corria atrás dele. Pôs-se a andar às voltas, perguntando-se onde diabo estaria a Guarda Suíça. Teriam ouvido a sua transmissão?

Do outro lado do parque de estacionamento estava parada uma carrinha de exteriores. Langdon correu para ela. Sentado na cabina, um homem barrigudo, de auscultadores nos ouvidos, ajustava botões.

448 DAN BROWN

Langdon bateu com força na porta. O homem sobressaltou-se, reparou nas roupas que escorriam água e tirou os auscultadores da cabeça.

— Qual é a pressa, pá? — O sotaque era australiano. — Preciso do seu telefone — respondeu Langdon, frenético. O homem encolheu os ombros. — Não se consegue fazer uma chamada. Tenho estado a tentar

a noite toda. As linhas estão entupidas. Langdon praguejou em voz alta. — Viu alguém entrar ali? — perguntou, apontando para a ponte

levadiça. — Na verdade vi. Um tipo escuro, que passou a noite a entrar e a

sair. Langdon sentiu um baque no estômago. — Sacana com sorte — continuou o australiano, olhando para a tor

re e franzindo o sobrolho à perspectiva meio obstruída do Vaticano que ele próprio tinha dali. — Aposto que a vista lá de cima é perfeita. Não consegui passar pelo tráfego em São Pedro, de modo que vim filmar para aqui.

Langdon não estava a ouvi-lo. Estava à procura de alternativas. — O que é que acha? — perguntava o australiano. — O tal Sama

ritano da Vigésima Terceira Hora é a sério? — O quê? — perguntou Langdon, voltando-se. — Não ouviu? O capitão da Guarda Suíça recebeu uma chama

da de alguém que diz ter informações importantes. O tal tipo vem de avião para cá. Tudo o que sei é que se ele salva a situação... lá se vão as audiências! — E riu-se.

Langdon estava subitamente confuso. Um bom samaritano que vinha de avião para ajudar? Saberia essa tal pessoa onde estava a antimatéria? Se assim era, porque não se limitara a dizê-lo à Guarda Siuça? Porque vinha pessoalmente? Havia aH algo de estranho, mas naquela altura não tinha tempo para tentar perceber o quê.

— Eh! — exclamou o australiano, olhando para ele com mais atenção. — Você não é o tipo que vi na televisão? O que tentou salvar o cardeal na Praça de São Pedro?

Langdon não respondeu. Acabava de descobrir o que havia em cima do tejadilho da carrinha: uma antena de satélite ligada a um braço extensível. Voltou a olhar para o castelo. A muralha exterior tinha quinze metros de almra. O torreão erguia-se ainda mais alto. Um bas-

ANJOS E DEMÓNIOS 449

tião inexpugnável, impossível de alcançar do sítio onde estava. Mas se conseguisse passar a primeira muralha...

Voltou-se para o homem e apontou para o braço da antena. — A que altura chega aquela coisa? — Hum? — O homem parecia confuso. ^— Quinze metros. Porquê? — Leve a carrinha para junto da muralha. Preciso de ajuda. — De que está você a falar? Langdon explicou-lhe. O australiano abriu muito os olhos. — Enlouqueceu? Aquilo é um braço telescópico que custa duzen

tos mu dólares, não é uma escada! — Quer audiências? Tenho informações que farão a sua fortuna.

— Langdon estava desesperado. — Informações que valem duzentos mil dele? Langdon dis se-lhe o que lhe revelaria em troca do favor. Noventa segundos depois, Robert Langdon estava agarrado ao ex

tremo do braço telescópico, a oscuar ao vento quinze metros acima do chão. Inclinando-se para fora, agarrou-se ao topo da primeira muralha, passou por cima do rebordo e saltou para o adarve.

— Agora cumpra a sua promessa! — gritou o australiano. — Onde está ele?

Langdon sentiu-se cheio de remorsos por revelar aquela informação, mas um acordo era um acordo. Além disso, o mais provável era o Hashashin alertar a imprensa, de toda a maneira.

— Piazza Navona — gritou. — Está na fonte. O australiano baixou o braço telescópico e arrancou a toda a velo

cidade, ao encontro da reportagem da sua vida.

Numa câmara de pedra, muito acima da cidade, o Hashashin descalçou as botas encharcadas e prensou o dedo ferido. Houve dor, mas não tanta que não pudesse sentir o prazer.

Voltou-se para o seu prémio. Estava num canto da sala, deitada de costas em cima de um divã,

as mãos amarradas, a boca amordaçada. Avançou para ela. Estava bem acordada. O Hashashin ficou satisfeito. Surpreendentemente, viu-üie fogo nos olhos, em vez de medo.

O medo há-de vir.

CAPITULO CENTO E SETE

Robert Langdon correu pelo adarve, circulando a muralha exterior, grato pelo clarão reflectido dos projectores. Lá em baixo, o pátio parecia um museu de máquinas de guerra antigas: catapultas, pirâmides de balas de canhão de mármore e todo vim arsenal de engenhos com um ar assustador. Partes do castelo estavam abertas aos turistas durante o dia, e o pátio fora parcialmente restaurado e devolvido à sua condição original.

Os olhos de Langdon atravessaram o espaço aberto até ao torreão central. A cidadela circular tinha trinta e dois metros de almra até à cabeça do anjo que a encimava. A varanda perto do topo continuava a brilhar do interior. Langdon queria chamar, gritar, mas controlou-se. Tinha de arranjar maneira de entrar ali.

Consultou o relógio. n.22. Desceu a correr a rampa de pedra que cingia o interior da muralha

e chegou ao pátio. De novo ao mVel do solo, continuou a correr na sombra, em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, contornando a base da torre. Passou por três portas, mas todas elas estavam permanentemente seladas. Como é que o Hashashin entrou? Seguiu em frente. Passou por duas portas modernas, fechadas a cadeado pelo lado de fora. Vor aqui não foi. Continuou a correr.

Tinha quase completado a volta quando viu um caminho de saibro atravessar o pátio à sua frente. Num dos extremos, na muralha exterior, viu a face interior da ponte levadiça que já vira do lado de fora. No extremo oposto, o caminho desaparecia no torreão. Parecia entrar numa espécie de túnel, uma abertura feita no núcleo central. II traforo! Já tinha lido a respeito do traforo daquele castelo, uma gigantesca rampa em espiral que circulava pelo interior da torre e que os cavaleiros usavam para chegar rapidamente do topo ao fundo. O Hashashin levou

ANJOS E DEMONIOS 451

a carrinha lá para ema! K cancela que vedava o túnel estava levantada, a convidá-lo. Sentiu-se quase exuberante enquanto corria para o túnel. Mas quando chegou à entrada, a excitação desvaneceu-se.

Havia uma rampa em espiral, mas para baixo. Na direcção errada. Aquela secção do traforo conduzia aparente

mente às masmorras, não ao cimo da torre. Parado na boca de um buraco escuro que parecia mergulhar sem

fim nas profundezas da terra, Langdon hesitou, voltando o olhar para a varanda. Seria capaz de jurar que tinha visto movimento lá em cima. Decide-te! Sem alternativa, começou a correr rampa abaixo.

Lá muito em cima, o Hashashin contemplava a sua presa. Passou uma mão pelo braço dela. A pele parecia veludo. A expectativa de explorar os tesouros que aquele corpo tinha para oferecer era inebriante. De quantas maneiras podia violá-la?

Sabia que merecia aquela miolher. Servira bem Janus. Era um despojo de guerra, e quando tivesse acabado com ela arrancá-la-ia do divã e obrigá-la-ia a ajoelhar. E ela voltaria a servi-lo. Jí humilhação definitiva. Então, no momento do seu próprio clímax, cortar-lhe-ia a garganta.

Ghajat assa'adah, como lhe chamavam. Oprat^er absoluto. Depois, rejubilando na sua glória, iria para a varanda saborear o cul

minar do triunfo dos Jlluminati... uma vingança desejada por muitos durante tanto tempo.

O túnel era cada vez mais escuro. Langdon continuou a descer. Depois de uma volta completa nas entranhas da terra, a luz tinha pra

ticamente desaparecido. Quando o piso se tornou plano, abrandou, sentindo, pelo eco dos seus próprios passos, que tinha entrado numa vasta câmara. Pareceu-lhe ver à sua frente, na escuridão, minúsculos lampejos de claridade... fugazes reflexos de uma luz distante. Continuou a avançar, de mão estendida. Encontrou superfícies lisas. Metal e vidro. Era um veículo. Procurou às apalpadelas, encontrou uma porta, abriu-a.

A luz de tejadilho do veículo acendeu-se. Langdon retrocedeu e reconheceu imediatamente a carrinha preta. Sentindo-se invadir por uma

452 DAN BROWN

vaga de ódio, ficou a olhar por um instante, e então saltou para o interior e começou a revistar tudo na esperança de encontrar uma arma para substituir a que perdera na fonte. Não encontrou nenhuma. Encontrou, em contrapartida, o telemóvel de Vittoria. Partido e inútil. Vê--lo assim encheu-o de medo. Pediu aos deuses que não tivesse chegado demasiado tarde.

Acendeu os faróis da carrinha. O espaço que o rodeava ganhou existência, sombras duras numa simples câmara. Calculou que tivesse servido em tempos de cavalariça ou como depósito de munições. E era, também, um beco sem saída.

Vim pelo caminho errado!

Quase de cabeça perdida, saltou da carrinha e começou a examinar as paredes à sua volta. Nenhuma porta. Nenhuma cancela. Pensou no anjo por cima da entrada do túnel e perguntou a si mesmo se não passaria de uma simples coincidência. Nãol Recordou as palavras do Hashashin, na fonte. Está na Igreja da Iluminação... a aguardar o meu regresso.

Chegara demasiado longe para falhar agora. O coração batia-lhe loucamente no peito. A frustração e a raiva começavam a embotar-lhe os sentidos.

Quando viu o sangue no chão, a sua primeira reacção foi pensar em Vittoria. Mas quando seguiu as manchas com o olhar, apercebeu--se de que eram pegadas. De passadas largas. As manchas de sangue só apareciam no pé esquerdo. O Hashashin!

Seguiu as pegadas até ao canto da sala, vendo a sua própria sombra projectada pelos faróis da carrinha diminuir de tamanho. Sentia-se mais confuso a cada passo que dava. As marcas de sangue pareciam avançar directamente para o canto da sala, e então desaparecerem.

Quando chegou à esquina, nem queria acreditar no que os seus olhos viam. A laje de granito do chão que pisava naquele momento não era quadrada, como as outras. Estava a olhar para outro indicador. A laje fora cortada em forma de pentagrama, disposto de tal modo que um dos vértices apontava para o canto. Engenhosamente escondida pelas paredes que se sobrepunham, uma estreita fresta na pedra servia de porta. Langdon esgueirou-se por ela. Estava numa passagem. Viu, à sua frente, os restos da barreira de madeira que outrora bloqueara o túnel.

Ao fundo, havia luz.

ANJOS E DEMÓNIOS 453

Começou a correr. Saltou por cima da madeira a caminho da luz. Pouco mais adiante, a passagem desembocava numa outra câmara, esta maior. Ali, um único archote ardia na parede. Aquela secção do castelo não tinha electricidade... uma secção que os turistas nunca veriam. A câmara seria assustadora à luz do dia, mas o archote tornava-a ainda mais sinistra.

Ilprigione.

Havia uma dúzia de minúsculas celas, cujas grades de ferro tinham, na sua maioria, sido roídas pela ferrugem. Uma das maiores, no entanto, permanecia intacta e, no chão, Langdon viu qualquer coisa que quase lhe fez parar o coração. Vestes negras e faixas vermelhas. Foi aqui que ele prendeu os cardeais!

Perto da cela, havia uma porta de ferro na parede. Estava aberta, e do outro lado estendia-se uma espécie de passagem. Correu para ela. Mas deteve-se antes de lá chegar. O rastro de sangue não entrava na passagem. Quando viu as palavras gravadas sobre o arco da entrada, percebeu porquê.

llPassetto.

Ficou espantado. Ouvira muitas vezes falar daquele túnel, sem nunca ter percebido onde ficava exactamente a entrada. llPassetto era um estreito túnel com seiscentos metros cavado entre o castelo de Sant'Angelo e o Vaticano. Fora usado por vários Papas para se porem a salvo durante cercos ao Vaticano... e também por pontífices menos piedosos para visitar secretamente amantes ou assistir à tortura de prisioneiros. Nos tempos modernos, ambas as extremidades da passagem estavam supostamente fechadas por portas equipadas com fechaduras impenetráveis cujas chaves se encontravam guardadas algures num cofre do Vaticano. Langdon receou subitamente ter descoberto como tinham os llluminati conseguido entrar e sair do Vaticano. Deu por si a pergun-tar-se quem no interior traíra a Igreja e fornecera as chaves. Olivetti'? Um dos guardas'? Nada disso interessava agora.

O sangue no chão conduzia ao extremo oposto da masmorra, onde havia uma grade de ferro ferrugenta pendurada em correntes. A fechadura fora removida e a grade estava aberta. Para lá dela via-se os primeiros degraus de uma íngreme escada em espiral. Também ali o chão estava marcado por uma laje pentagonal. Langdon olhou para a laje, a tremer, perguntando a si mesmo se fora o próprio Bernini que

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segurara o cinzel que talhara aquelas pedras. Por cima do arco de entrada, estava gravado um pequeno querubim. Era ali.

O rastro de sangue serpenteava escada acima. Langdon sabia que, antes de subir, precisava de uma arma, qualquer

arma. Encontrou um pedaço de barra de ferro com um metro e vinte de comprimento junto de uma das celas. Tinha uma ponta aguçada, partida em viés. Apesar de absurdamente pesada, foi o melhor que conseguiu arranjar. Esperava que o elemento surpresa, combinado com a ferida do Hashashin, fosse o suficiente para fazer pender a balança a seu favor. Acima de tudo, porém, esperava não chegar tarde de mais.

Os degraus da escada, muito desgastados, descreviam uma íngreme curva para cima. Langdon começou a subir, atento a todos os sons. Nada. A medida que subia, a luz proveniente da zona das masmorras foi-se desvanecendo. Pouco depois, a escuridão tornou-se total. Continuou a subir, com uma mão apoiada na parede. Cada vez mais para cima. Na escuridão, sentiu o fantasma de Galileu a subir aquelas mesmas escadas, desejoso de partilhar a sua visão dos céus com outros homens de ciência e de fé.

Ainda estava em choque com a localização do esconderijo. O lugar de encontro dos llluminati era um edifício que pertencia ao Vaticano. Sem dúvida enquanto os guardas desse mesmo Vaticano andavam pela cidade a revistar as caves e as casas de cientistas conhecidos, os llluminati reuniam-se ali... mesmo nas barbas do Papa. De repente, parecia tudo tão perfeito... Bernini, como arquitecto-chefe encarregado das restaurações, teria acesso ilimitado àquele edifício... remodelando-o de acordo com as suas próprias conveniências sem que alguém pensasse em fazer-lhe perguntas. Quantas entradas secretas teria acrescentado? Quantos outros adornos apontavam subtilmente o caminho?

A Igreja da Iluminação. Langdon sabia que estava perto. Quando os degraus começaram a tornar-se mais estreitos, sentiu

a passagem fechar-se à sua volta. Os fantasmas da História murmuravam no escuro, mas ele seguiu em frente. Quando viu o feixe de luz horizontal, apercebeu-se de que se encontrava apenas alguns degraus abaixo do patamar, por onde jorrava a luz que saía por baixo da porta que já avistava. Silenciosamente, continuou a subir.

Não fazia a mínima ideia em que parte do castelo estava naquele momento, mas calculou que subira o suficiente para ser perto do topo.

ANJOS E DEMONIOS 455

Imaginou o grande anjo no alto da torre, e suspeitou de que estava exactamente por baixo dele.

Vela por mim, anjo, pensou, agarrando com mais força a barra de ferro. Então, sem fazer ruído, estendeu a rnão para a porta.

Deitada de costas no divã, Vittoria tinha os braços doridos e dormentes. Quando acordara e descobrira que os tinha amarrados atrás das costas, pensara que talvez conseguisse relaxar os músculos e libertar as mãos. Mas não tivera tempo. A besta tinha voltado. Estava agora de pé diante dela, o peito nu e poderoso marcado pelas batalhas que travara. Os olhos do homem pareciam duas frestas negras enquanto percorriam o corpo dela. Vittoria adivinhou que estava a imaginar as coisas que se preparava para fazer. Lentamente, como que para provocá-la, o Hashashin tirou o cinto encharcado e deixou-o cair no chão.

Vittoria sentiu uma vaga de horror e ódio. Fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, o homem empunhava uma navalha de ponta-e--mola. Abriu-a com um estalido bem em frente dos olhos dela.

Vittoria viu o seu próprio rosto, aterrorizado, reflectido no aço. O Hashashin voltou a lâmina ao contrário e passou o lado contrário

ao gume pelo ventre da sua vítima. O metal gelado fê-la estremecer. Com um olhar de desprezo, ele fez passar a lâmina por baixo do cós dos calções. Vittoria arquejou. O Hashashin moveu a lâmina para trás e para a frente, lentamente, perigosamente.... cada vez mais baixo. Então inclinou-se, e o seu hálito quente murmurou-lhe ao ouvido:

— Foi esta lâmina que cortou o olho do teu pai. Vittoria soube naquele instante que era capaz de matar. O Hashashin tornou a voltar a lâmina e começou a cortar para cima

através do tecido dos calções. Subitamente, parou, erguendo a cabeça. Estava mais alguém na sala.

— Afasta-te dela — rosnou uma voz cava, vinda da porta. Vittoria não conseguia ver quem tinha falado, mas reconheceu a voz.

Robert! Está vivo! O Hashashin deu a impressão de estar a ver um fantasma. — Senhor Langdon, deve ter um anjo-da-guarda.

CAPITULO CENTO E OITO

Na fracção de segundo que demorou a examinar o que o rodeava, Langdon apercebeu-se de que estava num lugar sagrado. Os adornos da sala oblonga, apesar de velhos e descoloridos, estavam cheios de simbologia famüiar. Azulejos pentagonals. Frescos que mostravam os planetas. Pombas. Pirâmides.

A Igreja da Iluminação. Nem mais nem menos. Tinha chegado. Directamente em frente dele, enquadrado pela abertura da janela,

estava o Hashashin, de peito nu, de pé ao lado de Vittoria, que jazia deitada de costas num divã e amarrada, mas viva e bem viva. Sentiu uma onda de alívio ao vê-la. Por um instante, os olhos de ambos encontra-ram-se, e uma torrente de emoções passou entre eles — gratidão, desespero e remorso.

— Voltamos então a encontrar-nos — disse o Hashashin. Olhou para a barra de ferro na mão de Langdon e soltou uma gargalhada. — E desta vez vem procurar-me com isso?

— Desamarre-a. O Hashashin encostou a lâmina à garganta de Vittoria. — Mato-a. Langdon não duvidou que aquele homem fosse capaz de fazê-lo.

Forçou-se a falar num tom calmo. — Imagino que ela até agradeceria... considerando a alternativa. O Hashashin sorriu ao insulto. — Tem razão. Tem muito para oferecer. Seria um desperdício. Langdon deu um passo em frente, erguendo a barra de ferro, e apon

tou a ponta lascada ao peito do homem. O golpe na mão doeu-lhe vivamente.

— Solte-a. O Hashashin pareceu por um instante estar a considerar a hipótese.

Suspirando, deixou descair os ombros. Era um claro gesto de rendição,

ANJOS E DEMÓNIOS 457

e no entanto, nesse preciso instante, a mão que empunhava a navalha pareceu mexer-se bruscamente. Houve uma mancha de movimento, e uma lâmina voou pelos ares em direcção ao peito de Langdon.

Se foi o instinto ou a exaustão que o fizeram dobrar os joelhos naquele exacto momento, Robert nunca o soube, mas a navalha pas-sou-lhe a silvar junto ao ouvido esquerdo e foi cair no chão atrás dele. O Hashashin não pareceu preocupado. Sorriu a Langdon, que estava agora de joelhos, a segurar a barra de ferro, e afastou-se de Vittoria, avançando para ele, como um leão a preparar-se para saltar sobre a sua presa.

Langdon pôs-se laboriosamente de pé. A camisola de gola alta e as calças encharcadas pareceram, de repente, um estorvo maior do que antes. O Hashashin, seminu, movia-se muito mais depressa, aparentemente indiferente à ferida no pé. Langdon adivinhou que era um homem habituado à dor. Pela primeira vez na sua vida, desejou ter na mão uma pistola bem grande.

O Hashashin descrevia um lento círculo à volta dele, como que a saborear a situação, sempre fora do alcance, aproximando-se pouco a pouco da faca caída no chão. Langdon cortou-lhe o caminho. O Hashashin retrocedeu na direcção de Vittoria. Langdon voltou a interpor-se.

— Ainda há tempo — tentou. — Diga-me onde está o contentor. O Vaticano pagar-lhe-á muito mais do que os lUuminati podem pagar.

— Não seja ingénuo. Langdon atacou com a barra de ferro. O Hashashin esquivou-se. Lang

don contornou um banco, mantendo a barra de ferro à sua frente, tentan-c o encurralar o Hashashin naquela sala oval. A^porcaria da sala não tem cantos! Estranhamente, o Hashashin não parecia interessado em atacar nem em fugir. Estava simplesmente a fazer o jogo de Langdon. Frio, à espera.

A espera de quê? O Hashashin continuava a descrever círculos, impassível, mantendo a distância. Era como um infindável jogo de xadrez. A barra de ferro nas mãos de Langdon começava a tornar-se pesada, e foi então que ele soube o que esperava o Hashashin. Está a tentar can-sar-me. E a conseguir. Langdon sentiu-se invadir por uma súbita vaga de cansaço. A adrenalina já não era o suficiente para mantê-lo alerta. Sabia que tinha de fazer a sua jogada.

O Hashashin pareceu ler-lhe os pensamentos, mudando outra vez de posição, conduzindo Langdon, como que intencionalmente, em di-

458 DAN BROWN

recção a uma mesa no meio da sala. Langdon viu, pelo canto do olho, que havia qualquer coisa em cima da mesa. Qualquer coisa que brilhava à luz do archote. Uma arma? Manteve os olhos fixos no Hashashin e manobrou de maneira a aproximar-se da mesa. Quando o homem lançou um longo e cobiçoso olhar à mesa, Langdon tentou combater o óbvio engodo. Mas o instinto impôs-se. Deitou-lhe um rápido olhar. O mal estava feito.

Não era uma arma. O que viu paralisou-o momentaneamente. Em cima da mesa estava uma rudimentar caixa de cobre, coberta

por uma pátina antiga. A caixa tinha a forma de um pentágono. A tampa estava aberta. Dispostos no seu interior, em cinco compartimentos almofadados, havia cinco ferros de dourar — cinco pesadas ferramentas de encadernador com sólidas pegas de madeira. Langdon não teve a mínima dúvida sobre o que diziam.

llluminati, EARTH, AIR, FIRE, WATER.

Ergueu vivamente a cabeça, receando que o Hashashin atacasse. Mas não. Estava à espera, quase como se o jogo o repousasse. Langdon es-forçou-se por recuperar a concentração, voltando a fixar os olhos do seu inimigo, esboçando uma estocada com a barra de ferro. Mas a imagem da caixa não lhe saía da cabeça. Apesar dos ferros em si mesmos serem fascinantes — artefactos que poucos estudiosos dos llluminati acreditavam sequer que existissem —, apercebeu-se repentinamente de que havia mais qualquer coisa na caixa que despertara nele um pressentimento. Quando o Hashashin voltou a mover-se, arriscou um novo olhar à caixa.

Meu Deus! Os ferros ocupavam cinco compartimentos dispostos ao longo da

orla exterior da caixa. Mas, no centro, havia outro compartimento, vazio, mas claramente destinado a alojar um sexto ferro... um ferro muito maior do que os outros, e perfeitamente quadrado.

O ataque foi rapidíssimo. O Hashashin voou para ele como uma ave de rapina. Langdon, cuja

atenção fora magistralmente desviada, tentou ripostar, mas a barra de ferro era como um tronco de árvore nas suas mãos. O ataque foi demasiado lento. O Hashashin esquivou-se. Quando Langdon tentou recuar a barra, as mãos do homem voaram para cima e agarraram-na. Tinha uma força terrível, como se o braço magoado não o incomodasse

ANJOS E DEMÓNIOS 459

minimamente. Lutaram os dois, com violência. Langdon sentiu a barra de ferro ser-Uie arrancada e uma dor escaldante rasgou-lhe a palma da mão. No instante seguinte, estava a oUiar para a ponta lascada da arma. O caçador tornara-se a presa.

Sentiu-se como se tivesse sido atingido por um ciclone. O Hashashin continuava a girar em torno dele, agora a sorrir, obrigando-o a recuar para a parede.

— Como é o vosso adágio americano? Qualquer coisa a respeito da curiosidade e do gato?

Langdon mal conseguia focar os olhos. Amaldiçoou a sua própria desatenção, vendo o assassino avançar. Já nada fazia sentido. Um sexto ferro Illuminatus? A frustração levou-o a dizer:

— Nunca tinha ouvido falar de um sexto ferro Illuminatus'. — Acho que deve ter ouvido. — O Hashashin riu-se enquanto ma

nobrava Langdon, obrigando-o a deslocar-se ao longo da parede. Langdon estava perdido. Tinha quase a certeza de que não tinha ou

vido falar do sexto ferro. Havia anco ferros llluminati. Continuou a recuar, procurando desesperadamente com os olhos uma arma.

— Uma união perfeita dos antigos elementos — disse o Hashashin. — O último ferro é o mais brilhante de todos. Receio, no entanto, que nunca chegue a vê-lo.

Langdon pressentiu que dentro de momentos deixaria de ver fosse o que fosse. Continuou a procurar, olhando em redor em busca de uma alternativa.

— E você, já viu esse ferro? — perguntou, numa tentativa de ganhar tempo.

— Talvez um dia me seja concedida essa honra. Se provar o meu valor. — Lançou um ataque fingido, como se o jogo o divertisse.

Langdon recuou uma vez mais. Teve a sensação de que o Hashashin estava a conduzi-lo ao longo da parede em direcção a um destino que desconhecia. l'ara onde? Não podia dar-se ao luxo de olhar para trás.

— E o ferro? — perguntou. — Onde está? — Não aqui. Janus é, segundo parece, o único que pode mexer-lhe. —Janus? — Langdon não estava a reconhecer o nome. — O Uder dos llluminati. Vai chegar em breve. — O Hder dos llluminati vem para cá?

460 DAN BROWN

— Marcar a última vítima. Langdon lançou um olhar assustado na direcção de Vittoria. Que

parecia estranhamente calma, de olhos fechados para o mundo exterior, a respirar lentamente... profundamente. Seria ela a última vítima? Ou ele?

— Tanta vaidade — troçou o Hashashin, estudando-lhe os olhos. — Vocês os dois não são nada. Vão morrer, claro, isso é certo. Mas a última vítima de que falo é um inimigo verdadeiramente perigoso.

Langdon tentou compreender o sentido das palavras do assassino. Um inimigo perigoso? Os quatro principais cardeais estavam mortos. O Papa estava morto. Os llluminati tinham-nos eliminado a todos. Descobriu a resposta no vazio dos olhos do algoz.

O camerkngo. O camarlengo Ventresca era o homem que fora um farol de espe

rança para o mundo durante toda aquela crise. Fizera mais para condenar os llluminati naquela noite do que décadas de teorias da conspiração. Aparentemente, ia pagar o preço. Era ele o alvo final.

— Nunca conseguirá chegar até ele — desafiou Langdon. — Eu não — respondeu o Hashashin, obrigando-o a continuar a re

cuar ao longo da parede. — Essa honra está reservada ao próprio Janus. — O líder dos llluminati t&aàoaíL m2itc2iTpessoalmente o camerlengo? — O poder tem os seus privilégios. — Mas neste momento é impossível seja a quem for entrar no Va

ticano! O Hashashin parecia muito satisfeito consigo mesmo. — Pois é, a menos que se tenha encontro marcado. Langdon estava confuso. A única pessoa esperada no Vaticano era

o indivíduo a que imprensa chamava o Samaritano da Vigésima Terceira Hora... o indivíduo que Rocher afirmara ter informações que podiam salvar...

Deteve-se abruptamente. Santo Deus! O Hashashin sorriu, irónico, saboreando claramente a angustiante

percepção de Langdon. — Também eu perguntei a mim mesmo como conseguiria Janus

lá entrar. Então, na carrinha, ouvi o rádio... uma reportagem a respeito do Samaritano da Vigésima Terceira Hora. — Alargou o sorriso. — O Vaticano vai receber Janus de braços abertos.

ANJOS E DEMÓNIOS 461

Langdon quase caiu para trás. Janus é o Samaritano! ta. um embuste impensável. O Hder dos llluminati teria direito a uma escolta real directamente até ao gabinete do camerlengo. Mas como conseguira Janus enganar Rocher? Ou estaria Rocher de algum modo envolvido? Sentiu um arrepio. Desde que quase sufocara nos Arquivos Secretos, deixara de confiar inteiramente em Rocher.

O Hashashin atacou de repente, ferindo-o ao de leve no flanco. Langdon saltou para trás, sentindo a raiva dominá-lo. — Janus nunca sairá vivo do Vaticano! — gritou. O Hashashin encolheu os ombros. — Há causas pelas quais vale a pena morrer. Langdon sentiu que o homem estava a falar a sério. Janus ia à Cida

de do Vaticano numa missão suicida? Uma questão de honra? Por um instante, o cérebro dele abarcou todo o terrível ciclo. O plano dos llluminati chegara à sua conclusão. O padre que tinham inadvertidamente levado ao poder ao matar o Papa acabara por revelar-se um adversário temível. Num derradeiro gesto de desafio, o líder dos llluminati ia destruí-lo.

Subitamente, sentiu a parede atrás dele desaparecer. Houve uma lufada de ar fresco, e retrocedeu para a noite. A varanda! Compreendeu, naquele instante, a intenção do Hashashin.

Sentiu o abismo que se abria nas suas costas. Uma queda de trinta metros até ao pátio lá em baixo. O Hashashin não perdeu tempo. Atacou, numa violenta arremetida. A ponta afiada da barra de ferro saltou para o ventre de Langdon. Langdon recuou ainda mais, e a ponta não o alcançou, roçando apenas a camisola. Novo ataque. Novo recuo. Desta vez, Langdon sentiu a balaustrada bater-lhe nas costas. Certo de que o próximo ataque o mataria, tentou o impossível. Rodando para um lado, estendeu as mãos e agarrou a barra. Uma guinada de dor subiu-lhe da mão ferida pelo braço. Não largou.

O Hashashin não pareceu preocupado. Lutaram por instantes, um contra o outro, face-a-face, o hálito fétido do homem a encher as narinas de Langdon. A barra de ferro começou a escorregar. O Hashashin era demasiado forte. Num acto de desespero, Langdon estendeu uma perna, comprometendo perigosamente o seu equilíbrio, e tentou calcar o pé ferido do inimigo. Mas o Hashashin era um profissional e modificou a posição do corpo de modo a proteger o seu ponto fraco.

462 DAN BROWN

Langdon tinha jogado a sua última carta. E soube que perdera o jogo.

Os braços do Hashashin elevaram-se, empurrando-o contra o parapeito. Langdon sentiu apenas espaço vazio atrás de si. O Hashashin manteve a barra atravessada e empurrou-a contra o peito dele. As costas de Langdon dobraram-se para trás.

— Ma'assalamah — troçou o Hashashin. — Adeus. Com um olhar implacável, deu o último empurrão. Langdon dese-

quilibrou-se e caiu para trás. Com uma única esperança de sobrevivência, tentou agarrar o parapeito ao passar por cima dele. A mão esquerda escorregou, mas a direita manteve-se. Acabou suspenso de cabeça para baixo, preso pelas pernas e por uma mão... a tentar aguentar-se.

O Hashashin ergueu a barra de ferro acima da cabeça, preparando--se para o golpe final. Quando a barra começou a descer, Langdon teve uma visão. Talvez fosse a iminência da morte, ou apenas medo puro e simples, mas, naquele momento, pareceu-lhe ver uma aura rodear o Hashashin. Um clarão que surgia do nada por detrás dele... como uma bola de fogo a aproximar-se.

A meio do gesto, o Hashashin largou a barra e uivou de dor. A barra ressaltou no parapeito e desapareceu na noite. O Hashashin

voltou-se para o interior da sala, e Langdon viu uma queimadura horrível nas costas do homem. Conseguiu içar-se o suficiente para ver Vit-toria, de olhos a chamejar, face-a-face com o assassino.

Vittoria agitava o archote à sua frente, com o fogo da vingança a ar-der-lhe no rosto. Como conseguira libertar-se era coisa que Langdon não sabia, nem queria saber. Começou a trepar para o lado de dentro da varanda.

A batalha seria curta. O Hashashin era um adversário mortífero. Com um grito de raiva, saltou para ela. Vittoria tentou esquivar-se, mas o homem já a tinha alcançado, agarrando o archote e preparando-se para lho arrancar das mãos. Langdon não esperou. Saltando do parapeito, cravou o punho fechado na carne queimada das costas do Hashashin.

O grito do homem pareceu ecoar até ao Vaticano. O Hashashin imobiüzou-se por um instante, com as costas arquea

das pela dor. Largou o archote, e Vittoria espetou-lho com toda a força na cara. Houve um suvo, e então o olho esquerdo do homem crepitou. O Hashashin voltou a gritar, levando as mãos ao rosto.

ANJOS E DEMÓNIOS 463

— Olho por olho — sibilou Vittoria. Desta vez, fez rodar o archote como se fosse um taco, e quando bateu, o Hashashin recuou aos tropeções até à balaustrada. Langdon e Vittoria saltaram para ele no mesmo instante, empurrando. O corpo do homem passou por cima do parapeito e mergulhou na noite. Não gritou. O único som que se ouviu foi o estalar dos ossos da coluna quando caiu, de braços e pernas abertos, em cima de uma pilha de balas de canhão, muito lá em baixo.

Langdon voltou-se para Vittoria, estupefacto. As cordas que a tinham prendido pendiam-lhe, soltas, da cintura e dos ombros. Os olhos dela brilhavam como um inferno.

— O Houdini praticava ioga.

CAPITULO CENTO E NOVE

Entretanto, na Praça de São Pedro, o muro de guardas suíços gritava ordens e abria em leque, tentando empurrar as pessoas para uma distancia mais segura. Inútil. A multidão era demasiado densa e parecia muito mais interessada na iminente destruição do Vaticano do que na sua própria segurança. Os grandes ecrãs planos dos media erguidos na praça mostravam o contentor de antimatéria com o seu relógio em contagem decrescente — uma transmissão em directo do centro de segurança da Guarda Suíça, com os cumprimentos do camerlengo. Infelizmente, as imagens do contentor e da contagem decrescente não eram o bastante para afastar a multidão. Ao que parecia, as pessoas que enchiam a praça tinham olhado para a pequena gota de líquido suspensa no contentor e decidido que não era tão ameaçadora como tinham pensado. Viam também o relógio digital: faltavam pouco mais de quarenta e cinco minutos para a detonação. Havia tempo mais do que suficiente para ficar aH a ver.

Apesar de tudo, os guardas suíços estavam unanimemente de acordo em que a ousada decisão do camerlengo de se dirigir ao mundo e fornecer aos meios de comunicação imagens que provavam a traição dos llluminati fora uma manobra inteligente. Os llluminati tinham sem dúvida esperado que o Vaticano mostrasse a habitual reticência face à adversidade. Não naquela noite. O camerlengo Ventresca provara ser um adversário à altura.

Dentro da Capela Sistina, o cardeal Mortati começava a ficar inquieto. Já passava das onze e um quarto. Muitos dos cardeais continuavam a rezar, mas outros tinham-se agrupado junto da porta, claramente preo-

ANJOS E DEMÓNIOS 465

cupados com as horas. Alguns deles começaram a bater na madeira com os punhos fechados.

Do outro lado da porta, o tenente Chartrand ouvia as pancadas e não sabia o que fazer. Consultou o relógio. Eram horas. As ordens do capitão Rocher tinham sido muito claras: os cardeais só poderiam sair quando ele dissesse. Os murros na porta redobraram, e Chartrand estava a sentir-se muito pouco à-vontade. Perguntou a si mesmo se o capitão se teria pura e simplesmente esquecido. Estava a ter um comportamento muito estranho desde que recebera aquele misterioso telefonema.

Chartrand pegou no rádio. — Meu capitão? Aqui Chartrand. Já passa da hora. Abro a Sistina? — A porta continua fechada. Julgo que já lhe dei essa ordem. — Sim, senhor, é que... — O nosso visitante está a chegar. Leve alguns homens para cima e

guarde a porta do gabinete do Papa. O camerlengo não pode sair de lá. — Desculpe, senhor? — O que foi que não compreendeu, tenente? — Nada, meu capitão. Já vou a caminho.

No gabinete do Papa, o camerlengo tinha os olhos presos às chamas da lareira, em tranquila meditação. Deus, dá-meforça. Tra^i-nos um milagre. Mexeu as brasas com um espevitador, perguntando a si mesmo se sobreviveria àquela noite.

CAPITULO CENTO E DEZ

Onze e vinte e três. Na varanda do castelo de Sant'Angelo, com os olhos húmidos de

lágrimas perdidos nas lonjuras de Roma, Vittoria tremia. Desejava ardentemente abraçar Robert Langdon, mas não era capaz. Tinha o corpo como que anestesiado. A reajustar-se. A avaliar a situação. O homem que lhe assassinara o pai e que quase a matara jazia no chão lá em babeo, morto.

Quando a mão de Langdon lhe tocou o ombro, a infusão de calor humano pareceu fazer estalar magicamente o gelo. Com um estremeção, o corpo dela voltou à vida. A névoa dissipou-se, e Vittoria olhou para ele. Robert estava com um aspecto horrível, encharcado e exausto. Passara muito claramente por um inferno para ir salvá-la.

— Obrigada... — murmurou. Langdon esboçou um sorriso cansado e recordou-lhe que era ela

quem merecia agradecimentos: a sua capacidade de praticamente deslocar os ombros salvara a vida a ambos. Vittoria limpou os olhos. De boa vontade teria ficado ali para sempre com ele, mas a trégua foi de curta duração.

— Temos de sair daqui — disse Langdon. O pensamento de Vittoria divagava por outras paragens. Estava

a olhar para o Vaticano. O país mais pequeno do mundo parecia per-turbadoramente próximo, a refulgir sob os projectores da imprensa. Verificou, espantada, que a maior parte da Praça de São Pedro continuava cheia de gente! A Guarda Suíça só conseguira, aparentemente, limpar cerca de cinquenta metros — a área imediatamente em frente da Basílica — menos de um terço da praça, agora cercada por um mar cada vez mais compacto de pessoas, enquanto os que estavam a uma distância mais segura faziam pressão para chegar a um lugar de onde

ANJOS E DEMÓNIOS 467

pudessem ver melhor, encurralando os que estavam mais à frente. Estão demasiado perto!, pensou Vittoria. Demasiado perto!

— Vou voltar lá — anunciou Langdon, simplesmente. Vittoria voltou-se, incrédula. — Ao Vaticano? Langdon contou-lhe do Samaritano, explicou-lhe a conjura. O Hder

dos llluminati, um homem chamado Janus, ia marcar pessoalmente o camerlengo. Um derradeiro acto de domínio dos llluminati.

— Ninguém na Cidade do Vaticano sabe — acrescentou. — Não tenho modo de contactar com eles e o tal fulano vai chegar a qualquer momento. Tenho de avisar os guardas antes que o deixem entrar.

— Mas nunca conseguirá passar por aquela multidão! A voz de Langdon soou confiante: — Há uma maneira. Confie em mim. Vittoria sentiu mais uma vez que o historiador sabia qualquer coisa

que ela ignorava. — Vou consigo. — Não. Não há necessidade de nos arriscarmos ambos... Tenho de

arranjar uma maneira de tirar aquelas pessoas dali! Correm um perigo incrí...

Nesse preciso instante, a varanda onde se encontravam começou a tremer. Um rugido ensurdecedor abalou todo o castelo. Então, uma luz branca vinda da direcção de São Pedro cegou-os. Vittoria teve um único pensamento. Oh, meu Deus! A. antimatéria aniquilou mais cedo!

Em vez de uma explosão, porém, o que ouviram foi uma enorme aclamação que se ergueu da praça. Vittoria semicerrou os olhos para enfrentar a luz. Eram os projectores das televisões, agora apontados, segundo parecia, para eles! A multidão inteira voltara-se para aquele lado, gritando e apontando. O rugido tornou-se mais forte. A atmosfera na praça era subitamente de alegria.

Langdon estava esmpefacto. — Que raio... O céu por cima deles trovejou. Surgindo de trás da torre, sem aviso, apareceu o helicóptero papal.

Rugia quinze metros acima das cabeças deles, voando em Hnha recta para o Vaticano. Quando passou, refulgente sob a luz dos projectores.

468 DAN BROWN

O castelo estremeceu. As luzes seguiram-no no seu caminho, e Lang-don e Vittoria ficaram de novo na escuridão.

Vittoria teve a desagradável sensação de que era já demasiado tarde enquanto via a enorme máquina pairar sobre a Praça de São Pedro. Levantando uma nuvem de pó, o helicóptero desceu para a área desimpedida entre a multidão e a Basílica, pousando quase junto à base da escadaria.

— Uma entrada em grande estilo — comentoju. Viu, recortado contra a vastidão de mármore branco, um pequeno ponto escuro, uma pessoa, sair do Vaticano e dirigir-se ao helicóptero. Nunca teria reconhecido aquela figura não fora a boina vermelha que usava na cabeça. — Recepção de passadeira vermelha. Aquele é o Rocher.

— Alguém tem de avisá-los! — exclamou Langdon, batendo com o punho cerrado no parapeito.

Vittoria agarrou-lhe o braço. — Espere! — Acabava de ver outra coisa, e os seus olhos recusa

vam acreditar naquilo que viam. Apontou para o helicóptero um dedo que tremia. Mesmo àquela distância, não havia engano possível. Uma outra figura descia a rampa entretanto encostada ao helicóptero, uma figura que se movia de uma maneira tão única que só podia ser uma pessoa. Apesar de sentada, atravessou o espaço aberto com uma precisão absoluta e a uma velocidade surpreendente.

Um rei sentado num trono eléctrico. Era Maximilian Kohler.

CAPITULO CENTO E ONZE

Kohler sentiu-se enojado pela opulência do corredor do Belvedere. Só a folha de ouro do tecto daria provavelmente para financiar a pesquisa do cancro durante um ano. Rocher guiou-o, seguindo uma série de rampas destinadas aos deficientes motores e que alongavam inevitavelmente o caminho, pelo interior do Palácio Apostólico.

— Não há elevador? — perguntou Köhler. — Não há corrente. — Rocher apontou para as velas que ardiam

no escurecido edifício. — Faz parte da nossa táctica de busca. — Uma táctica que sem dúvida falhou. Rocher assentiu. Köhler foi sacudido por novo acesso de tosse, e soube que podia

bem ser o último. Não era um pensamento totalmente desagradável. Quando chegaram ao último piso e meteram pelo corredor que con

duzia ao gabinete do Papa, quatro guardas suíços correram para eles, parecendo perturbados.

— Meu capitão, que faz aqui? Pensei que este homem tinha informações que...

— Diz que só fala com o camerlengo. Os guardas retrocederam, desconfiados. — Diga ao camerlengo — ordenou Rocher, num tom firme —,

que o director do CERN, Maximilian Kohler, está aqui para lhe falar. Imediatamente.

— Sim, senhor! — Um dos homens afastou-se a correr na direcção do gabinete do camerlengo. Os outros continuaram onde estavam. Estudaram Rocher, pouco à-vontade. — Só um momento, meu capitão. Vamos anunciar o seu convidado.

Köhler, no entanto, não parou. Com uma manobra rápida, contornou os guardas.

470 DAN BROWN

As sentinelas giraram sobre os calcanhares e correram atrás dele. — Fermañ! Senhor! Pare! Köhler sentiu repugnancia por eles. Nem mesmo a força de seguran

ça mais elitista do mundo era imune à piedade que toda a gente sente pelos aleijados. Fosse ele um homem saudável, e os guardas tê-lo-iam derrubado. Os aleijados são impotentes, pensou Köhler. Ou, pelo menos, é o que as pessoas julgam.

Sabia que tinha muito pouco tempo para cumprir a tarefa que o levara até ali. Sabia também que podia morrer naquela noite. Surpreen-deu-o descobrir quão pouco isso lhe importava. A morte era um preço que estava disposto a pagar. Suportara demasiadas coisas na vida para ver o seu trabalho destruído por alguém como o camerlengo Cario Ventresca.

— Signorel — gritaram os guardas, correndo à frente dele e formando uma linha à largura do corredor. — Tem deparar'. — Um deles empunhou uma pistola e apontou-lha.

Köhler parou. Rocher alcançou-o, com um ar contrito. — Doutor Köhler, por favor. É só um instante. Ninguém entra no

gabinete do Papa sem ser anunciado. Köhler viu nos olhos de Rocher que não tinha alternativa senão

esperar. Óptimo, pensou. Esperamos. Os guardas, com o que lhe pareceu ter sido uma crueldade delibe

rada, tinham-no detido diante de um grande espelho de moldura dourada. A visão do seu próprio e contorcido corpo repugnou-o. A velha raiva borbulhou mais uma vez à superfície. Deu-lhe força. Encontra-va-se agora entre o inimigo. Aquelas eram as pessoas que lhe tinham roubado a sua dignidade. Aquelas pessoas. Por causa delas, nunca sentira o toque de uma mulher... nunca se erguera orgulhosamente para aceitar um prémio. Que verdade possui esta gente? Que provas, malditos sejam! Um livro cheio de velhas fábulas? Promessas de milagres futuros? A. dênria cria milagres todos os dias!

Olhou por um instante para os seus olhos de pedra. E possível que esta noite morra às mãos da religião, pensou. Mas não será a primeira ve^

De repente, tinha outra vez onze anos e estava deitado na sua cama, na casa dos pais, em Frankfurt. Os lençóis eram do mais fino Hnho europeu, mas estavam ensopados em suor. O jovem Max sentia-se como

ANJOS E DEMÓNIOS 471

se estivesse a arder, a dor que lhe torturava o corpo era inimaginável. De joelhos ao lado da cama, como tinham estado durante os últimos dois dias, o pai e a mãe rezavam.

Nas sombras do quarto, três dos melhores médicos de Frankfurt aguardavam.

— Peço-lhe que reconsidere! — disse um deles. — Olhe para o rapaz! A febre está a subir. Tem dores terríveis. E corre perigo de vida!

Max, porém, soube qual seria a resposta da mãe mesmo antes de ela falar:

— Gott wird ihn beschuet^en. Sim, pensou Max. Deus proteger-me-á. A convicção na voz da mãe

deu-lhe forças. Deus proteger-me-á. Uma hora mais tarde, sentiu-se como se todo o seu corpo estivesse

a ser esmagado por um carro. Não tinha sequer forças para gritar. — O seu filho está em grande sofrimento — disse outro dos médi

cos. — Deixe-me ao menos aliviar a dor. Tenho na minha maleta uma simples injecção de...

— Kuhe, bitte! — O pai silenciara o médico sem sequer abrir os olhos. Continuou simplesmente a rezar.

«Pai, por favor!», queria Max gritar. «Deixe-os parar a dor!» Mas as suas palavras perderam-se num ataque de tosse.

Uma hora mais tarde, a dor tinha piorado. — O vosso filho pode ficar paralisado — protestou um dos médi

cos. — Ou até morrer! Temos medicamentos que podem ajudá-lo! Frau e Herr Kohler não o permitiram. Não acreditavam na medici

na. Quem eram eles para interferir com o grande plano de Deus? Rezaram com mais fervor ainda. Ao fim e ao cabo. Deus abençoara-os com aquele filho. Porque haveria de lho levar agora? A mãe murmu-rou-lhe ao ouvido que fosse forte. Explicou-lhe que Deus estava a pô-lo à prova... como a história da Bíblia a respeito de Abraão... um teste à sua fé.

Max tentou ter fé, mas a dor era demasiado terrível. — Não posso assistir a isto! — disse finalmente um dos médicos,

e correu para fora do quarto. Quando a aurora chegou, Max estava quase inconsciente. Todos

os músculos do corpo contorciam-se em espasmos de dor. Onde está Jesus?, perguntou. Por que é que não me ama? Sentia a vida fugir-lhe.

472 DAN BROWN

A mãe adormecera ao lado da cama, com as mãos ainda entrelaçadas pousadas nos lençóis. O pai estava de pé à janela, a ver o dia nascer. Parecia ter entrado em transe. Max ouvia o murmúrio da voz dele em intermináveis súplicas de misericórdia.

Foi então que sentiu a figura inclinada para ele. Um anjo? Quase não conseguia abrir os olhos, tão inchados estavam. A figura sussurrou-lhe ao ouvido, mas não era a voz de um anjo. Era um dos médicos, o que estivera sentado num canto dois dias seguidos, recusando ir-se embora, suplicando aos pais de Max que o deixassem administrar uma nova droga vinda de Inglaterra.

— Nunca perdoarei a mim mesmo — sussurrou o médico — se não fizer isto. — E então, docemente, o médico pegou-lhe num frágu braço. — Só me arrependo de não o ter feito mais cedo.

Max sentiu uma leve picada no braço... quase impossível de distinguir no meio de tanta dor.

Então, o médico arrumou silenciosamente as suas coisas. Antes de sair, pousou uma mão na testa de Max.

— Isto vai salvar-te a vida. Tenho uma grande fé no poder da Medicina.

Minutos depois, foi como se um espírito mágico lhe corresse nas veias. O calor espalhou-se-Ihe pelo corpo, aplacando a dor. Finalmente, pela primeira vez havia muitos dias, Max dormiu.

Quando a febre cedeu, a mãe e o pai evocaram um milagre de Deus. Mas quando se tornou evidente que o filho era um inválido, ficaram desesperados. Levaram-no à igreja e pediram conselho ao padre.

— Foi só pela graça de Deus — disse-lhes o padre —, que este rapaz sobreviveu.

Max ouviu, sem dizer palavra. — Mas o nosso filho não pode andar! — disse Frau Kohler, a chorar. O padre assentiu tristemente. — E verdade. Parece que Deus o castigou por não ter tido fé su

ficiente.

— Doutor Köhler? — Era o guarda que correra à frente. — O ca-merlengo diz que lhe concede audiência.

ANJOS E DEMÓNIOS 473

Kohler resmungou qualquer coisa, acelerando a cadeira corredor fora.

— Está surpreendido com a sua visita — disse o guarda. — Acredito que sim — respondeu Köhler, seguindo em frente.

— Gostaria de falar com ele a sós. — Impossível — protestou o guarda. — Ninguém... — Tenente — ladrou Rocher. — A entrevista será como o doutor

Köhler deseja. O guarda ficou a olhar para ele, claramente incrédulo.

Diante da porta do gabinete. Rocher permitiu que os seus guardas tomassem algumas precauções elementares antes de deixarem Köhler entrar. A panóplia de aparelhagem electrónica que equipava a cadeira tornava inutilizável o detector de metais manual. Os guardas revista-ram-no, mas estavam obviamente demasiado envergonhados para o fazer correctamente. Não encontraram o revólver preso por baixo do assento. E também não encontraram o outro objecto... aquele que, Köhler bem o sabia, traria um inesquecível epílogo à cadeia de acontecimentos daquela noite.

Quando Köhler entrou no gabinete do Papa, o camerlengo Ven-tresca estava sozinho, ajoelhado a rezar diante da lareira moribunda. Não abriu os olhos.

— Doutor Köhler — disse. — Veio fazer de mim um mártir?

CAPITULO CENTO E DOZE

Enquanto isto, o estreito túnel conhecido como IlPassetto estendia--se diante de Langdon e de Vittoria. O archote que Langdon levava na mão dava apenas luz suficiente para ver uns poucos metros à frente. As paredes apertavam-se de ambos os lados, e o tecto era baixo. O ar cheirava a humidade. Robert corria, com Vittoria colada aos calcanhares.

O túnel subia íngreme à saída do castelo de Sant'Angelo, entrando na parte inferior de uma estrutura de pedra que fazia lembrar um aqueduto romano. Aí, voltava a nivelar e prosseguia o seu caminho secreto em direcção à Cidade do Vaticano.

Enquanto Langdon corria, os pensamentos turbilhonavam-lhe na cabeça, num caleidoscópio de imagens confusas — Köhler, Janus, o assassino. Rocher... um sexto ferro? Tenho a certera de queja ouviu falar do sexto ferro, dissera o Hashashin. O mais brilhante de todos. Langdon tinha a certeza de que não ouvira. Nem mesmo no legendário da teoria da conspiração havia, que se lembrasse, qualquer referência a um sexto ferro. Real ou imaginário. Havia rumores a respeito de barras de ouro e de um diamante sem mácula, mas nenhuma referência a um sexto ferro.

— O Köhler não pode ser Janus! — declarou Vittoria, enquanto corriam. — É impossível!

Impossível era uma palavra que Langdon deixara de usar naquela noite.

-— Não sei — gritou. — O Köhler alimenta um ressentimento muito grande, e dispõe de uma enorme influência.

•— Esta crise fez com que todos no CERN pareçam monstros! O Max nunca faria nada que prejudicasse a reputação do CERN!

Por um lado, Langdon sabia que o CERN fora publicamente visado naquela noite, tudo por causa da insistência dos llluminati em fazer daquilo um espectáculo público. No entanto, perguntava a si mesmo até

ANJOS E DEMÓNIOS 475

que ponto os estragos tinham sido reais. Críticas da Igreja não eram novidade para o CERN. Na realidade, quanto mais pensava naquüo, mais se perguntava se a organização não ficaria até a ganhar. Se o jogo era a publicidade, então a antimatéria era a vencedora áo jackpot da noite. O planeta inteiro não falava de outra coisa.

— Sabe o que o empresário P. T. Barnum costumava dizer? — gritou, por cima do ombro. — «Não me interessa se dizem bem ou mal de mim, desde que não se enganem ao escrever o meu nome!» Aposto que já há interessados a fazer fila para licenciar a tecnologia da antimatéria. Depois de verem o seu verdadeiro poder quando chegar a meia--noite...

— Ilógico — argumentou Vittoria. — Publicitar descobertas cien-ti'ficas não tem nada a ver com demonstrações de capacidade destrutiva! Isto é terrípe/pata a antimatéria, pode crer no que lhe digo!

O archote começava a apagar-se. — Então talvez seja tudo muito mais simples do que isso. Talvez

o Köhler tenha jogado na possibilidade de a Igreja manter secreta a questão da antimatéria... recusando reconhecer o poder dos llluminati ao confirmar a existência da arma. O Köhler esperava que o Vaticano seguisse a sua habitual poiïtica de boca fechada a respeito da ameaça, mas o camerlengo alterou as regras.

Vittoria manteve-se silenciosa enquanto continuavam a correr pelo túnel.

De repente, o cenário fazia cada vez mais sentido para Langdon. — Sim! O Köhler não contava que o camerlengo reagisse como

reagiu, quebrando a tradição do Vaticano e tornando a crise pública. Mostrou tudo. Até pôs a antimatéria na televisão, pelo amor de Deus. Foi uma resposta brilhante, de que o Köhler não estava à espera. E a ironia de tudo isto é que o ataque dos llluminati lhes saiu pela culatra. Produziu, sem o querer, um novo Uder da Igreja na pessoa do camerlengo. E agora o Köhler veio matá-lo!

— O Max é um filho da mãe — admitiu Vittoria —, mas não é um assassino. E nunca se teria envolvido na morte do meu pai.

Na cabeça de Langdon, foi a voz de Köhler que respondeu. O Leo-nardo era considerado perigoso por muitos puristas do CERN. Fundir a ciênaa e Deus

é a derradeira blasfémia dentifica.

476 DAN BROWN

— Talve2 ele tenha sabido do vosso projecto já há semanas e não tenha gostado das implicações religiosas.

— E então matou o meu pai por causa disso? Ridículo! Além disso, o Max Köhler não poderia saber que o projecto existia.

— Talvez, enquanto a Vittoria esteve fora, o seu pai se tenha ido abaixo e consultado o Köhler a respeito do assunto, para lhe pedir conselho. Lembro-me de a própria Vittoria ter dito que o seu pai estava preocupado com as implicações morais de criar uma substância tão mortífera.

— Pedir orientação moral ao Maximilian Kohler? — Vittoria bufou. — Não me parece!

O túnel inflectia ligeiramente para a esquerda. Quando mais depressa corriam, mais fraco ia ficando o archote. Langdon começou a pensar com receio em como pareceria aquele lugar se a luz se apagasse. Negro.

— Além disso — argumentou Vittoria —, porque se daria o Köhler ao trabalho de ligar para si a pedir ajuda se estivesse por detrás do esquema todo?

Langdon já considerara aquela questão. — Chamou-me para garantir cobertura. Para que ninguém pudes

se acusá-lo de ter ficado inactivo face a uma crise. Provavelmente, nunca esperou que chegássemos tão longe.

A ideia de ter sido usado por Köhler enfurecia-o. O seu envolvimento dera aos llluminati um alto nível de credibilidade. As suas credenciais e publicações tinham estado a ser referidas toda a noite nos meios de comunicação, e, por muito ridículo que fosse, a presença de um professor de Harvard na Cidade do Vaticano elevara de certo modo toda aquela história acima do âmbito de uma uusão paranóica e convencera os cépticos de todo o mundo de que a Irmandade dos llluminati era não só um facto histórico, mas também uma força a ter em conta.

— O tal jornalista da BBC — disse — acha que o GERN é o novo esconderijo dos llluminati.

— O quê? — Vittoria quase tropeçou. Recuperou o equilíbrio e continuou a correr — Ele disse isso?

— No ar. Comparou o GERN às Lojas maçónicas... uma organização inocente que alberga no seu seio, sem o saber, a Irmandade dos llluminati.

ANJOS E DEMÓNIOS 477

— Meu Deus, esta coisa vai destrviir o CERN. Langdon não estava tão certo disso. Fosse como fosse, a teoria pa-

recia-lhe de repente muito menos forçada. O CERN era o refugio científico absoluto. Reunia cientistas de mais de sessenta países. Parecia dispor de fundos privados inesgotáveis. E Maximilian Kohler era o seu director.

O Kohler é Janus. — Se o Kohler não está envolvido — desafiou —, que veio cá fa

zer? — Provavelmente, tentar pôr cobro a esta loucura. Talvez esteja na

verdade a agir como o bom samaritano! Pode ter descoberto quem sabia do projecto da antimatéria e venha partilhar a informação.

— O assassino disse que vinha para marcar a fogo o camerlengo. — Repare bem no que está a dizer. Seria uma missão suicida. Nun

ca conseguiria sair daqui vivo. Langdon considerou a questão. Ta/pe^ sejapreäsamente essa a ideia.

Um pouco mais à frente, avistaram os contornos de uma grade de ferro que bloqueava a passagem pelo túnel. O coração de Langdon quase parou. Quando se aproximaram, porém, descobriram que a velha fechadura estava aberta, e a grade rodou sem resistência.

Langdon suspirou de aHvio, comprovando que, como aliás suspeitava, o antigo túnel continuava a ser usado. E fora até usado muito recentemente. Naquele mesmo dia. Não lhe restavam agora grandes dúvidas de que os quatro aterrorizados cardeais tinham sido levados por ali.

Continuaram a correr. Robert ouvia o som de gritos à sua esquerda. Era a Praça de São Pedro. Estavam a aproximar-se.

Chegaram a outra porta, esta mais pesada. Também ela aberta. A algazarra de São Pedro ficara para trás, e Langdon adivinhou que acabavam de passar por baixo da muralha exterior da Cidade do Vaticano. Perguntou a si mesmo aonde, dentro do Vaticano, conduziria aquela passagem. A.os jardins? A. Basílica? A. residênáa do Papa?

Então, sem aviso, o túnel acabou. A alta porta que lhes impedia a passagem era uma grossa parede

de ferro. Mesmo nos últimos lampejos de luz do archote moribundo,

478 DAN BROWN

Langdon pôde verificar que era perfeitamente Usa: nem puxador, nem aldraba, nem olho-de-boi, nem gonzos. Nada.

Sentiu uma vaga de pânico. Em calão arquitectural, aquele raro tipo de porta chamava-se sentia chiave — uma porta de sentido único, usada por questões de segurança, que só se podia abrir ou fechar de um lado — do outro lado. As esperanças de Langdon apagaram-se... tal como o archote que tinha na mão.

Olhou para o relógio. O Mickey brilhava. n.29. Com um grito de frustração, ergueu o archote apagado e começou

a bater com ele na porta.

CAPITULO CENTO E TREZE

Havia ali qualquer coisa que não estava bem. O tenente Chartrand, de guarda à porta do gabinete do Papa, adi

vinhou pela postura tensa do soldado postado a seu lado que ambos partilhavam a mesma ansiedade. A reunião privada que protegiam, dissera Rocher, podia salvar o Vaticano da destruição. Se assim é, perguntou Chartrand a si mesmo, por que rat^ão estão os meus instintos protectores tão alertados? Epor que ra^ão anda Rocher a comportarse de um modo tão estranho?

Não, havia ali, decididamente, qualquer coisa que não estava certa. O capitão Rocher mantinha-se de pé à direita de Chartrand, olhan

do fixamente em frente, com uma expressão dura e distante que não era nada dele. Chartrand mal o reconhecia. Naquela última hora, o capitão não parecia o mesmo. As decisões que tomava não faziam qualquer espécie de sentido.

Devia estar alguém presente lá dentro, a assistir à reunião!, pensou Chartrand. Ouvira Maximilian Kohler fechar a porta à chave depois de ter entrado, forque permitiu o Kocher uma coisa destas?

Havia, porém, muitas outras coisas estranhas. Os cardeais. Os cardeais continuavam trancados na Capela Sistina. Aquilo era pura loucura. O camerlengo dera ordens para que fossem libertados às onze e um quarto! Rocher anulara essa decisão sem o informar. E quando ele, Chartrand, mostrara preocupação com o facto, o capitão quase lhe arrancara a cabeça. A cadeia de comando nunca era posta em causa na Guarda Suíça, e Rocher era agora o chefe.

Meia hora, pensou Rocher, consultando discretamente o seu cronometro suíço à luz páHda dos candelabros que iluminavam o corredor. Despáchese, por favor!

480 DAN BROWN

Chartrand bem gostaria de poder ouvir que se passava do outro lado daquelas portas. Em todo o caso, sabia que não havia outra pessoa que mais gostasse de ver a resolver aquela crise do que o camerlen-go. O homem fora testado para lá de tudo o que era razoável, naquela noite, e não fraquejara. Confrontara o problema sem vacilar... com verdade, com honestidade, brilhando como um exemplo para todos eles. Chartrand sentia-se orgulhoso por ser católico. Os Illuminati tinham cometido um grande erro ao desafiar o camerlengo Cario Ventresca.

Naquele momento, porém, os seus pensamentos foram interrompidos por um som inesperado. O rmdo de pancadas. E vinha do fundo do corredor. Distante e abafado, mas contínuo. Rocher ergueu a cabeça. Voltou-se para Chartrand e apontou para o corredor. Chartrand compreendeu. Acendeu a lanterna e afastou-se para investigar.

As pancadas eram agora mais desesperadas. Chartrand correu trinta metros pelo corredor até uma intersecção. O barulho parecia vir do outro lado da esquina, para lá da Sala Clementina. O tenente estava perplexo. Só havia aU uma divisão: a biblioteca privada do Papa. Que permanecia fechada à chave desde o falecimento de Sua Santidade. Não podia lá estar ninguém!

Correu pelo segundo corredor, dobrou outra esquina e avançou para a porta da biblioteca. Era uma pequena porta de madeira, mas destacava-se na escuridão como uma sombria sentinela. As pancadas vinham algures do interior. Chartrand hesitou. Nunca tinha entrado na biblioteca privada. Poucos tinham. Ninguém lá era admitido sem ser acompanhado pelo próprio Papa.

Relutante, estendeu a mão para o puxador e girou-o. Como imaginara, a porta estava fechada à chave. Encostou um ouvido à madeira. As pancadas soaram mais altas. E então ouviu outra coisa. Vo's^sl Está alguém a chamar!

Não conseguia distinguir as palavras, mas detectava o pânico nos gritos. Estaria alguém fechado na biblioteca? Seria possível que a Guarda Suíça não tivesse evacuado devidamente o edifício? Hesitou, perguntando a si mesmo se não seria melhor voltar atrás e consultar Rocher. Rocher que fosse para o diabo. Chartrand fora treinado para tomar decisões, e naquele momento tomou uma. Pegou na pistola e disparou um único tiro contra a fechadura. A madeira estilhaçou-se e a porta abriu-se.

ANJOS E DEMÓNIOS 481

Para lá do umbral, Chartrand viu apenas escuridão. Apontou a lanterna para o interior. A sala era rectangular — tapetes orientais, altas estantes de carvalho carregadas de livros, um cadeirão de couro pespontado, uma lareira de mármore. Ouvira histórias a respeito daquele lugar: três mil livros antigos lado-a-lado 'com centenas de revistas e jornais actuais, tudo o que Sua Santidade pedisse. A pequena mesa em frente do cadeirão estava coberta de publicações poHticas e científicas.

As pancadas eram agora mais nítidas. Chartrand apontou a luz da lanterna na direcção do som. Na parede mais distante, para lá da área de leitura, havia uma enorme porta de ferro, que parecia tão impenetrável como um cofre. E que tinha três enormes fechaduras. As pequenas letras gravadas bem no meio da porta quase cortaram a respiração ao tenente Chartrand.

ILPASSETTO

Chartrand ficou a olhar. O caminho secreto de fuga do Papaninha., evidentemente, ouvido falar do Passeio, e ouvira até rumores de que em tempos tivera uma porta aU naquela sala, mas o túnel não era usado havia séculos! Como é que pode esiar alguém a baier do ouiro lado?

Pegou na lanterna e bateu na porta. Ouviu abafados gritos de exul-tação vindos do outro lado. As pancadas cessaram e as vozes gritaram mais alto. Chartrand mal conseguia distinguir as palavras através da barreira.

— ... Köhler... mentira... camerlengo... — Quem está aí? — gritou Chartrand. — ... ert Langdon... Vittoria Ve... Chartrand compreendeu o suficiente para ficar confuso. Pensava que

tinham morrido! -— ... a porta — gritavam as vozes. — Abra... Chartrand olhou para a barreira de aço e soube que precisaria de

dinamite para passar por ali. — Impossível! — gritou. — Demasiado grossa! — ... reunião... impeça... erlengo... perigo... Mau grado o treino que recebera sobre os perigos de entrar em

pânico, Chartrand sentiu uma súbita vaga de medo ao ouvir as últimas palavras. Teria compreendido correctamente? Com o coração aos

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saltos, voltou-se para regressar ao gabinete. Nesse instante, porém, algo o fez parar. Os seus olhos tinham pousado em qualquer coisa na porta... qualquer coisa ainda mais chocante do que a mensagem que viera do outro lado. Sobressaindo de cada uma das maciças fechaduras da porta, havia chaves. Chartrand ficou a olhar. As chaves estavam au? Piscou os olhos, incrédulo. As chaves daquela porta supostamente deveriam estar guardadas num cofre, algures! Aquela passagem não era usada... havia séculos!

Deixou cair a lanterna no chão. Agarrou a primeira chave e rodou--a. O mecanismo estava enferrujado e preso, mas funcionou. Alguém abrira recentemente aquela fechadura. Abriu a outra. E a outra. Quando o último ferrolho correu, Chartrand puxou. A placa de ferro abriu--se com um rangido. O tenente apanhou a lanterna do chão e apontou-a para a abermra.

Robert Langdon e Vittoria Vetra pareciam fantasmas quando entraram a cambalear na biblioteca. Ambos esfarrapados e exaustos, mas vivos e bem vivos.

— O que é isto? — perguntou Chartrand. — Que se passa? De onde vieram vocês os dois?

— Onde está o Max Köhler? — interrompeu-o Langdon. Chartrand apontou. — Numa reunião privada com o ca... Langdon e Vittoria passaram por ele e correram para a porta da bi

blioteca. Chartrand voltou-se e apontou-lhes instintivamente a arma. Baixou-a no mesmo instante, e correu atrás deles. Aparentemente, Rocher ouvira-os chegar, pois, quando se aproximaram da porta do gabinete, o capitão estava plantado no meio do corredor, de pernas afastadas numa posição de defesa, e apontava-lhes uma arma.

— Alt! — O camerlengo está em perigo! — gritou Langdon, parando de

braços erguidos num gesto de rendição. — Abram a porta! O Max Kohler vai matar o camerlengo!

Rocher tinha uma expressão furiosa. — Abra a porta! — gritou Vittoria. — Depressa! Era, porém, demasiado tarde. De dentro do gabinete, chegou-lhes aos ouvidos um grito de dor

de fazer gelar o sangue. Era a voz do camerlengo.

CAPITULO CENTO E CATORZE

A confrontação durou apenas segundos. O camerlengo Ventresca ainda gritava quando Chartrand passou

por Rocher e rebentou a tiro a fechadura da porta. Os guardas precipi-taram-se para o interior. Langdon e Vittoria correram atrás deles.

Entraram num cenário de horror. A única luz que atenuava a escuridão da sala vinha das velas e de

um fogo já moribundo. Kholer estava perto da lareira, periclitante-mente de pé diante da sua cadeira de rodas. Empunhava uma pistola, apontada ao camerlengo, que, estendido aos pés dele, se contorcia de dor. A sotaina do padre fora aberta e no peito nu destacava-se uma mancha negra. Langdon não conseguia distinguir o símbolo à distância a que se encontrava, mas um grande ferro de dourar, quadrado, estava caído no chão, perto de Köhler. O metal ainda brilhava, rubro.

Dois dos guardas suíços agiram sem hesitação. Abriram fogo. As balas embateram no peito de Köhler, atirando-o para trás. Tombou sentado na cadeira de rodas, com o sangue a jorrar das feridas. A pistola que empunhava caiu no chão e deslizou pelas lajes de mármore.

Langdon continuava aturdido, à porta. Vittoria parecia paralisada. — Max... — murmurou. O camerlengo, ainda a contorcer-se no chão, voltou-se para Ro

cher e, com o terror transido dos antigos caçadores de bruxas estampado no rosto, apontou o dedo e gritou uma única palavra:

ILLUMINATUS!

— Filho da mãe — rosnou Rocher, correndo para ele. — Seu hipócrita fi...

Desta vez, foi Chartrand que reagiu por instinto, enfiando três balas nas costas de Rocher. O capitão caiu para a frente no chão de mármore e escorregou, já morto, no seu próprio sangue. Chartrand e os

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outros guardas correram imediatamente para o camerlengo, que apertava os braços à frente do peito, a contorcer-se de dor.

Ambos os soldados deixaram escapar exclamações de horror ao verem o símbolo gravado a fogo no peito do camerlengo. O segundo viu a marca em posição invertida, e no mesmo instante recuou a cambalear, com medo nos olhos. Chartrand, parecendo igualmente avassalado pelo símbolo, puxou a sotaina rasgada do camerlengo para cima da ferida, escondendo-a.

Langdon sentia-se como que em delírio enquanto atravessava a sala. Tentava, através da névoa de loucura e violência, extrair algum sentido do que estava a ver. Um cientista inválido, num derradeiro gesto de domínio simbólico, voara até à Cidade do Vaticano e marcara com um ferro em brasa o mais alto representante da Igreja. Há causas por que vale apena morrer, dissera o Hashashin. Langdon perguntava a si mesmo como pudera um velho com uma deficiência física tão acentuada dominar o camerlengo. Era certo que Köhler tinha uma arma. Como ofe^ não importa! Köhler cumpriu a sua missão!

Aproximou-se da terrível cena. O camerlengo estava a ser tratado, e Langdon deu por si a ser atraído para o fumegante ferro de dourar caído no chão perto da cadeira de rodas. O sexto ferro? Quanto mais se aproximava, mais confuso ficava. O ferro parecia ser um quadrado perfeito, bastante grande, e viera obviamente do compartimento central da caixa que tinha visto no esconderijo dos llluminati. Um sexto e último ferro, dissera o Hashashin. O mais brilhante de todos.

Ajoelhou ao lado de Köhler e estendeu a mão para o objecto. O metal ainda irradiava calor. Segurando-o pelo cabo de madeira, Langdon pegou nele. Não estava muito seguro do que esperava ver, mas não era com certeza aquilo.

1 ^ ^ ( Í ^ ^

Ficou a olhar por um longo e confuso momento. Nada fazia sentido. Porque tinham os guardas gritado de horror ao ver a marca? Era

ANJOS E DEMÓNIOS 485

um quadrado com arabescos sem significado. O mais brilhante de todos? Era simétrico, verificou Langdon, fazendo-o rodar, mas não queria dizer nada.

Quando sentiu uma mão pousar-lhe no ombro, ergueu a cabeça, à espera de ver Vittoria. A mão estava, porém, coberta de sangue. Pertencia a Maximilian Kohler, que, tombado na cadeira de rodas, tinha estendido o braço.

Langdon deixou cair o ferro e ergueu-se de um salto. O Köhler ainda está vivo!

Molemente caído na cadeira de rodas, o director moribundo ainda respirava, se bem que de uma forma quase imperceptível, com inspirações curtas e rápidas. Os olhos dele encontraram os de Langdon, e era o mesmo olhar pétreo que o recebera no CERN naquela manhã. Pareciam ainda mais duros na morte, com o ódio e o rancor a subirem à superfície.

O corpo do cientista estremeceu, e Langdon sentiu que estava a tentar mover-se. Todas as atenções se concentravam no camerlengo, e Langdon quis chamar alguém, mas não conseguiu reagir. Estava fascinado pela intensidade que irradiava de Köhler naqueles derradeiros segundos de vida. Com um trémulo esforço, o director levantou a mão e tirou um pequeno aparelho preso sob o braço da cadeira de rodas. Tinha o tamanho de uma caixa de fósforos. Estendeu-o, a tremer. Por um instante, Langdon receou que Köhler tivesse uma arma. Mas era outra coisa qualquer.

— En... entregue... — as últimas palavras de Köhler foram um murmúrio gorgolejante — ... en... tregüe... isto... aos m... media.

O corpo abateu-se e ficou imóvel. O aparelho caiu-lhe no colo. Chocado, Langdon olhou para ele. Era electrónico e tinha as pa

lavras SONY RUVI impressas na frente. Langdon reconheceu uma das ultramodernas câmaras de vídeo miniaturizadas. A lata deste tipo!, pensou. Aparentemente, Köhler tinha gravado uma espécie de mensagem final e queria que os meios de comunicação a transmitissem... sem dúvida um sermão a respeito da importância da ciência e os malefícios da religião. Decidiu que já fizera mais do que o suficiente pela causa do homem, naquela noite. Antes que Chartrand visse a câmara, enfiou-a no bolso mais escondido do casaco. A última mensagem de Köhler que fique a apodrecer no inferno!

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Foi a VOZ do camerlengo que quebrou o silêncio. Estava a tentar sentar-se.

— Os cardeais — rouquejou, dirigindo-se a Chartrand. — Ainda estão na Capela Sistina! — exclamou o tenente. — O ca

pitão Rocher ordenou... — Evacuem... já. Toda a gente. Chartrand mandou um dos outros guardas correr para libertar os

cardeais. O camerlengo fez um esgar de dor. — Helicóptero... na praça... levem-me para o hospital.

CAPITULO CENTO E QUINZE

Na praça de São Pedro, sentado na cabina do helicóptero, o piloto da Guarda Sm'ça esfregava as têmporas. O caos na praça à volta dele era tão ruidoso que abafava até o ruído dos rotores a girar em ponto morto. Aquño não era nenhuma vigília solene à luz de velas. Estava até espantado por não ter ainda rebentado um motim.

A menos de vinte e cinco minutos para a meia-noite, a praça continuava cheia de pessoas, algumas a rezar, outras a chorar pela Igreja, outras a gritar obscenidades e a proclamar que aqiiilo^ra o que a Igreja merecia, outras ainda a recitar versículos apocalípticos da Bíblia.

O piloto sentia a cabeça a latejar, quase cego pelos projectores das televisões. Semicerrou os olhos, observando a turba tumultuosa. Aqui e ali, tinham surgido faixas com dizeres:

A ANTIMATÉRIA É O ANTICRISTO!

CIENTISTA=SATANISTA

ONDE ESTÁ DEUS AGORA?

Gemeu, com a cabeça a doer-lhe cada vez mais. Ainda pensou em pegar na pala de vinil e colocá-la no pára-brisas, para não ser obrigado a ver, mas sabia que teria de voltar a levantar voo numa questão de minutos. O tenente Chartrand acabava de contactar via rádio, com notícias terríveis. O camerlengo tinha sido atacado por Maximilian Kohler e estava gravemente ferido. Chartrand, o americano e a mulher iam transportá-lo até ao helicóptero para que pudesse ser evacuado para um hospital.

Sentia-se pessoalmente responsável pelo ataque. Admoestou-se por não ter dado ouvidos aos seus instintos. Quando, minutos antes, fora buscar Köhler no aeroporto, detectara qualquer coisa nos olhos mortos

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do cientista. Não saberia dizer o quê, exactamente, mas não gostara. Não que tivesse feito qualquer diferença. Rocher era agora quem mandava, e Rocher insistia em que aquele era o homem. Aparentemente, estava enganado.

Um novo clamor ergueu-se da multidão. O piloto olhou e viu uma longa fila de cardeais a sair em solene procissão do Vaticano para a Praça de São Pedro. O alívio dos cardeais por estarem a afastar-se da zona de morte foi rapidamente substimído por expressões de confusão perante o espectáculo que se desenrolava no exterior da igreja.

O rugido da multidão subiu novamente de volume. A cabeça do pñoto latejava. Precisava de uma aspirina. Talvez até de três. Não gostava de voar sob a influência de medicamentos, mas uma aspirina seria com toda a certeza menos incapacitante do que aquela furiosa dor de cabeça. Estendeu a mão para a caixa de primeiros-socorros, que guardava, com um sortido de mapas e manuais diversos, numa caixa de metal aparafusada entre os dois bancos da frente. Quando tentou abri-la, porém, descobriu que estava trancada. Olhou em volta, à procura da chave, mas acabou por desistir. Aquela não era, decididamente, a sua noite de sorte. Voltou a massajar as têmporas.

Dentro da Basílica mergulhada em trevas, Langdon, Vittoria e dois guardas avançavam ofegantes em direcção à porta principal. Não tendo encontrado outra coisa mais adequada, os quatro transportavam o camerlengo ferido em cima de uma estreita mesa, balouçando o corpo inerte entre eles como se o levassem numa maca. Lá fora, o rugido ainda distante do caos humano era agora audível. O camerlengo vacñava à beira da inconsciência.

O tempo estava a esgotar-se.

CAPITULO CENTO E DEZASSEIS

Eram 11.39 quando Langdon e os outros saíram da Basílica de São Pedro. O clarão que lhe atingiu os olhos foi quase doloroso. Os projectores das televisões reflectiam-se no mármore branco como o Sol numa mndra coberta de neve. Semicerrou as pálpebras, tentando encontrar refugio atrás das enormes colunas da fachada, mas a luz vinha de todas as direcções. Em frente dele, uma parede de grandes monitores de vídeo erguia-se acima da multidão.

Ali de pé no alto da magnífica escadaria que descia para a praça, sentiu-se como um relutante actor no maior palco do mundo. Algures para lá das luzes ofuscantes, ouviu o ruído do rotor de um helicóptero e o clamor de centenas de milhares de vozes. A sua esquerda, uma procissão de cardeais saía do Vaticano. Todos eles se detiveram, evidentemente consternados pela cena que decorria no alto da escadaria.

— Cuidado agora — exortou Chartrand, num tom concentrado, enquanto o grupo começava a descer os degraus em direcção ao helicóptero.

Langdon sentiu-se como se estivessem a andar debaixo de água. Doíam-lhe os braços devido ao peso do camerlengo e da mesa. Perguntou a si mesmo como seria possível aquele momento tornar-se ainda menos digno. Foi então que viu a resposta. Os dois jornalistas da BBC iam aparentemente a atravessar o espaço aberto em direcção à área onde se reunia a imprensa. Mas agora, com o rugido da multidão, ti-nham-se voltado. Glick e Macri corriam na direcção deles. Macri trazia a câmara ao ombro, a gravar. Aí vêm os abutres, pensou Langdon.

— Alt!— gritou Chartrand. — Voltem para trás! Os jornalistas ignoraram-no e continuaram a correr. Langdon cal

culou que as outras cadeias demorariam cerca de seis segundos a apanhar aquela nova transmissão em directo da BBC. Como que Hgados

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por uma espécie de consciência universal, todos os ecrãs planos da praça tiraram do ar os seus relógios em contagem decrescente e os seus peritos em assuntos do Vaticano e começaram a transmitir a mesma imagem — uma vista sacudida e oscilante da escadaria de São Pedro. Agora, para onde quer que olhasse, Langdon via o corpo inerte do camerlengo num grande plano technicolor.

Isto é errado!, pensou. Queria correr escadas abaixo e interferir, mas não podia. E não teria servido de nada, de qualquer forma. Se a causa foi o rugido da multidão ou a frescura do ar nocturno, nunca o soube, mas, naquele preciso instante, o inconcebível aconteceu.

Como um homem a despertar de um pesadelo, o camerlengo abriu os olhos e sentou-se direito. Apanhados completamente de surpresa, Langdon e os outros esforçaram-se por compensar a mudança de peso. A frente da mesa descaiu. O camerlengo começou a escorregar. Tentaram recuperar pousando a mesa, mas era demasiado tarde. O camerlengo escorregou da mesa para o chão. Incrivelmente, não caiu. Os seus pés tocaram o mármore e ele endireitou-se. Ficou assim por um instante, parecendo desorientado, e então, antes que alguém pudesse impedi-lo, saltou para a frente, descendo cambaleante em direcção a Macri.

— Não! — gritou Langdon. Chartrand correu, tentando detê-lo, mas o camerlengo voltou-se

para ele com os olhos esbugalhados, enlouquecidos. — Largue-me! Chartrand recuou de um salto. A cena foi de mal a pior. A sotaina rasgada, que Chartrand se li

mitara a pousar em cima do peito do camerlengo, começou a deslizar. Por um instante, Langdon pensou que talvez se aguentasse, mas esse momento passou. A sotaina caiu, escorregando dos ombros e ficando suspensa na cintura.

O arquejo de espanto que se elevou da multidão pareceu dar a volta ao mundo e regressar aH numa fracção de segundo. As câmaras filmavam, os flashes explodiam. Em todos os ecrãs planos da praça, surgiu, enorme, em arrepiante pormenor, a imagem do peito queimado do camerlengo. Alguns operadores tinham até congelado o plano e estavam a fazê-lo rodar cento e oitenta graus.

A vitória total dos lUuminati.

ANJOS E DEMÓNIOS 491

Langdon ficou a ver a marca nos ecrãs. Apesar de ser a marca do ferro quadrado que momentos antes tivera nas mãos, agora fazia sentido. Todo o sentido. O terrível poder da marca atingiu-o como uma marretada.

Orientação. Tinha esquecido a primeira regra da simbologia. Quando é que um quadrado deixa de ser um quadrado'? Esquecera também que os ferros de marcar, como os carimbos, nunca são iguais à impressão que deixam. São o seu inverso. Estivera a olhar para o negativo da marcai

A medida que o caos crescia, uma antiga referência illuminata ecoou--Ihe na memória com um novo significado: «Um diamante sem defeitos, nasädo dos antigos elementos com uma tal perfeição que todos os que o viam tinham de ficar maravilhados».

Langdon sabia agora que o mito era verdadeiro. Terra, Ar, Fogo, Água. Um diamante. Um losango. O Diamante llluminatus.

CAPITULO CENTO E DEZASSETE

Robert Langdon tinha poucas dúvidas de que o caos e a histeria que agitavam a Praça de São Pedro naquele preciso instante excediam tudo o que a Colina do Vaticano pudesse alguma vez ter testemunhado. Nenhuma batalha, nenhuma crucifixão, nenhuma peregrinação, nenhuma visão mística... nada, nos dois mil anos da história do santuário, podia igualar a magnitude e o drama daquele momento.

Enquanto a tragédia se desenrolava, Langdon sentia-se estranhamente distante, como que a pairar ali ao lado de Vittoria no alto da escadaria. A acção parecia arrastar-se, apanhada numa deformação temporal, a loucura a perder velocidade, quase a parar...

O camerlengo marcado a fogo... a comportarse como um louco aos olhos do mundo inteiro...

O Diamante lUuminatus... revelado na sua diabólica genialidade...

O relógio digital que marcava os últimos vinte minutos da História do Vaticano...

O dl ima, no entanto, ainda mal começara. O camerlengo, como que dominado por uma espécie de transe

pós-traumático, parecia subitamente poderoso, possuído pelos demónios. Começou a balbuciar, murmurando palavras dirigidas a espíritos invisíveis, olhando para o céu e erguendo os braços para Deus.

— Fala!... — gritou para o alto. — Sim, ouço-te! Nesse instante, Langdon compreendeu. O coração afundou-se-lhe

no peito, como uma pedra. Vittoria, aparentemente, compreendeu também. Pôs-se muito pálida. — Está em choque — disse. — Com alucinações. Pensa que está

a falar com Deus! Alguém tem de pôr fim a isto, pensou Langdon. Era um fim triste e em

baraçoso. Ixvem esse homem para um hospital!

Abaixo deles, na escadaria, Chinita Macri filmava, tendo aparentemente encontrado a posição ideal. As imagens que gravava apareciam

ANJOS E DEMÓNIOS 493

no mesmo instante em toda a praça nos grandes ecrãs planos... como uma sucessão interminável de cinemas ao ar livre, todos a passar a mesma sinistra tragédia.

Toda a cena tinha um tom épico. O camerlengo, com a sua sotaina rasgada, a marca gravada a fogo no peito, parecia uma espécie de esmurrado campeão que tivesse sobrevivido às arenas do inferno para aquele momento único de revelação. Gritava aos céus:

— Ti sento, Dio! Ouço-te, Deus! Chartrand recuou, com uma expressão de temerosa reverência no

rosto. O silêncio que desceu sobre a multidão foi instantâneo e absoluto.

Por um momento, foi como se aquele mesmo silêncio tivesse alastrado ao mundo inteiro... todos os que estavam diante dos seus televisores ficaram imóveis, num reter de respiração universal.

O camerlengo estava de pé na escadaria, perante o mundo, de braços abertos. Parecia quase um Cristo, nu e ferido diante de todos. Ergueu os braços para o céu e, olhando para cima, exclamou:

— Grat^ie! Gra^e, Dio! A praça continuava silenciosa. — Grazie, Dio!— voltou o camerlengo a gritar. Como o Sol a rom

per num céu de nuvens tempestuosas, uma expressão de alegria espa-Ihou-se-lhe pelo rosto. — Grazie, Dio!

Obrigado, Deus?, Langdon começou a duvidar. O camerlengo estava agora radiante, completada a sua fantástica

transformação. Olhou para o céu, ainda a assentir furiosamente com a cabeça. Gritou:

— Sobre esta rocha edificarei a minha Igreja! Langdon conhecia as palavras, mas não imaginava que razão pode

ria o camerlengo ter para as gritar naquele momento. O camerlengo voltou costas à multidão e gritou novamente para

a noite: — Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja! — E então ergueu as

mãos para o céu e riu alto. — Graf^ie, Dio! Gracie! O homem tinha obviamente enlouquecido. O mundo assistia, fascinado. O culminar foi, no entanto, algo que ninguém esperava. Com um último brado de exultação. Cario Ventresca subiu a esca

daria e correu para dentro da Basílica de São Pedro.

CAPITULO CENTO E DEZOITO

Onze e quarenta e dois. O frenético grupo que voltou a mergulhar na Basílica para ir bus

car o camerlengo não era do tipo em que Langdon se tivesse alguma vez imaginado a participar... quanto mais liderar. Mas era ele que estava mais perto da porta, e reagira por instinto.

]/ai morrer aqui dentro, pensou, atravessando o portal a correr e a gritar:

— Camerlengo! Pare! Chocou com uma parede de escuridão absoluta. Com as pupilas con

traídas pelo clarão dos projectores, o seu campo de visão reduzia-se, muito literalmente, a uns poucos palmos à frente do nariz. Deteve-se. Ouviu, algures nas trevas, o rocegar da sotaina do padre que corria às cegas pela vasta nave.

Vittoria e os guardas chegaram logo a seguir. Acenderam-se lanternas, mas, gastas as pilhas, as luzes eram demasiado fracas e mal penetravam as profundezas da Basílica. Os débeis feixes de claridade, oscilando de um lado para o outro, mostravam apenas grandes colunas e chão vazio. O camerlengo tinha desaparecido.

— Camerlengo! — chamou Chartrand, com medo na voz. — Espere! Signare!

Uma agitação na porta, atrás deles, fê-los voltar a cabeça. A volumosa figura de Chinita Macri vinha a entrar, de câmara ao ombro. A pequena luz vermelha na parte de cima da máqviina indicava que continuava a transmitir. Glick corria atrás dela, de microfone na mão, a gritar-lhe que esperasse.

Langdon nem queria acreditar na ousadia daqueles dois. Não é o momento!

— Fora! — ladrou Chartrand. — Isto não é para os vossos olhos! Macri e Glick, porém, continuaram em frente.

ANJOS E DEMÓNIOS 495

— Chinita! — A voz de GUck tinha agora uma nota de medo. — Isto é suicídio! Não vou para aí!

Macri ignorou-o. Baixou um interruptor na câmara. O projector incorporado acendeu-se, cegando-os a todos.

Langdon levantou a mão para proteger a cara e voltou a cabeça, com os olhos a arder. Raios! Quando tornou a olhar, no entanto, a igreja à volta deles estava iluminada a uma distância de trinta metros.

Nesse instante, a voz do camerlengo ecoou algures ao longe: — Sobre esta pedra edificarei a minha igreja! Macri apontou a câmara na direcção do som. Na zona de penum

bra cinzenta que marcava o ponto extremo do alcance do projector ondulou um pano negro, revelando uma figura familiar que corria pelo meio da nave principal da Basílica.

Houve um curtíssimo instante de hesitação enquanto todos observavam a bizarra imagem. Então, a represa rompeu-se. Chartrand passou por Langdon e correu atrás do camerlengo. Langdon seguiu-o. Logo depois, os guardas e Vittoria fizeram o mesmo.

Macri fechava a retaguarda, iluminando o caminho dos outros e transmitindo para o mundo a sepulcral perseguição. Um relutante Glick, a praguejar em voz alta, acabou por segui-los, debitando para o microfone um ofegante e aterrorizado comentário.

A nave central da Basílica de São Pedro, calculara certa vez Chartrand, era mais comprida do que um campo de futebol. Naquela noite, porém, parecia-lhe ter o dobro do comprimento. Enquanto corria atrás do camerlengo, perguntava a si mesmo aonde se dirigiria ele. O jovem padre estava nitidamente em estado de choque, delirante sem dúvida devido ao trauma físico provocado pelo que lhe acontecera no gabinete do Papa.

Algures lá à frente, fora do alcance do projector da BBC, a voz do camerlengo gritou alegremente:

— Sobre esta pedra edificarei a minha igreja! Chartrand sabia que o camerlengo estava a citar a Bíblia: Mateus

16:18, se não se enganava. Sobre esta rocha edificarei a minha igreja. Era uma inspiração quase cruelmente inepta — a Igreja estava prestes a ser destruída. O camerlengo tinha com toda a certeza enlouquecido.

496 DAN BRO>3Casl

Ou não teria? Por um fugaz instante, a alma de Chartrand alvoroçou-se. Sempre

considerara as visões sagradas e as mensagens divinas como simples formas de auto-uusão, o produto de mentes apaixonadas que ouviam aquilo que queriam ouvir. Deus não interagia directamente!

Um momento mais tarde, no entanto, como se o próprio Espírito Santo tivesse descido sobre ele para o persuadir do Seu poder, Chartrand teve uma visão.

A cinquenta metros de distância, no centro da igreja, apareceu um fantasma... um contorno diáfano e brilhante. A forma pálida era a do seminu camerlengo. O espectro parecia transparente, a irradiar luz. Chartrand parou de correr, sentindo um nó apertar-se-lhe no peito. O camerlengo está a brilhar! O corpo pareceu reluzir ainda mais intensamente. Então, começou a afundar-se... cada vez mais, até desaparecer como que por magia no negrume do chão.

Também Langdon vira o fantasma. Por um instante, pensara estar a testemunhar uma visão mágica. Mas quando passou pelo atordido Chartrand e correu para o lugar onde o camerlengo tinha desaparecido, compreendeu o que acabava de acontecer. O camerlengo chegara ao Nicho dos Pálios — a câmara escavada no chão da nave e alumiada por noventa e nove candeias. A luz do nicho, vinda de baixo, iluminara--o com aquele clarão fantasmagórico. Depois, quando começara a descer os degraus, dera a impressão de desaparecer afundando-se.

Langdon chegou ofegante à beira da câmara e espreitou para baixo. Ao fundo das escadas, iluminado pelo resplendor dourado das candeias, o camerlengo corria em direcção às portas de vidro que davam acesso ao espaço onde se encontrava a famosa caixa dourada.

Que está ele afa:(er?, interrogou-se Langdon. Com toda a certeza não pensa que a caixa...

O camerlengo abriu as portas e correu para dentro. Estranhamente, no entanto, ignorou a caixa, passando por ela sem se deter. Metro e meio mais à frente, caiu de joelhos e começou a tentar levantar uma grade de ferro embutida no chão.

Langdon observava, horrorizado, compreendendo finalmente aonde se dingia o camerlengo. Santo Deus, não! Saltou escadas abaixo, atrás dele.

ANJOS E DEMÓNIOS 497

— Padre! Não faça isso! Quando abriu as portas de vidro e correu para o camerlengo, viu-o

levantar a grade, que rodou nos gonzos e acabou por cair aberta, batendo no chão com um estrépito ensurdecedor, revelando um estreito poço e uma íngreme escada que descia para o nada. Quando o camerlengo avançou para o buraco, Langdon agarrou-lhe os ombros nus e pu-xou-o para trás. A pele do homem estava escorregadia de suor, mas Langdon conseguiu segurá-lo.

O camerlengo voltou-se, obviamente sobressaltado. — Que está a fazer? Langdon ficou surpreendido quando os olhos de ambos se encon

traram. Os do camerlengo já não tinham a expressão vítrea de um homem em transe. Estavam alerta, brilhantes de lúcida determinação. A marca no peito tinha um aspecto horrível.

— Padre — disse Langdon, o mais calmamente possível —, não pode ir aí abaixo. Temos de fugir.

A voz de Cario Ventresca soou estranhamente serena. — Meu filho, recebi uma mensagem. Sei... — Camerlengo! — Era Chartrand, seguido por todos os outros.

Correram escada abaixo até à câmara, iluminada pelo projector da câmara de Macri.

Quando viu a grade aberta no chão, o rosto de Chartrand encheu--se de horror. Benzeu-se e lançou a Langdon um olhar de gratidão por ter detido o camerlengo. Langdon compreendeu; lera o suficiente sobre a arquitectura do Vaticano para saber o que havia por baixo daquela grade. Aquele era o lugar mais sagrado de toda a Cristandade. Terra Santa. Chão Sagrado. Havia quem lhe chamasse Necrópole. Havia quem lhe chamasse Catacumbas. Segundo os relatos dos poucos clérigos que lá tinham descido ao longo dos anos, a Necrópole era um negro labirinto de criptas subterrâneas capaz de tragar inteiro o visitante que se perdesse. Não era o tipo de lugar pelo qual quisessem perseguir o camerlengo.

— Signore — suplicou Chartrand. — Está em choque. Temos de sair daqui. Não pode ir lá abaixo. É suicídio.

O camerlengo pareceu subitamente muito calmo. Estendeu o braço e pousou a mão no ombro de Chartrand.

498 DAN BROXXTSI

— Agradeço-lhe a sua preocupação e o seu serviço. Não sei dizer--Ihe como. Não sei explicar-lhe. Mas tive uma revelação. Sei onde está a antimatéria.

Ficaram todos a olhar para ele. O camerlengo voltou-se para o grupo. — Sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Foi essa a mensagem.

O significado é claro. Langdon continuava incapaz de compreender a convicção do ca

merlengo de que falara com Deus, e muito menos de que decifrara a mensagem. Sobre esta pedra edificarei a minha igreja? Eram as palavras que Jesus dissera ao escolher Pedro como seu primeiro apóstolo. Que tinham elas a ver com tudo aquño?

Macri aproximou-se para um grande plano. Guck estava silencioso, como que em choque.

O camerlengo falava agora rapidamente: — Os llluminati colocaram a sua arma de destruição sobre a pedra

angular desta Igreja. Na fundação. — Apontou para as escadas. — Na rocha sobre a qual esta Igreja foi construída. E eu sei onde está essa pedra.

Langdon tinha a certeza de que chegara a altura de dominar o camerlengo e levá-lo à força para cima. Por muito lúcido que parecesse, o padre estava a dizer disparates. Uma pedra? A. pedra angular na fundação? Os degraus que tinha à sua frente não conduziam aos alicerces do edifício, conduziam à Nécropole!

— A frase é uma metáfora, padre! Não existe verdadeiramente uma pedra!

O camerlengo fez um ar estranhamente triste. — Hâ uma pedra, meu filho. — Apontou para o buraco. — Fietro

è lapietra. Langdon imobiHzou-se. Numa fracção de segundo, tudo se tornou

claro. A simplicidade austera da verdade fez-lhe arrepios. Enquanto olhava,

com os outros, para os primeiros degraus da escada, compreendeu que havia de facto uma pedra enterrada na escuridão por baixo daquela igreja.

Pietro è lapietra. Pedro é a pedra. Pedro tinha uma fé tão inquebrantável em Deus que Jesus lhe

chamava Pedro, a Pedra — o inabalável discípulo sobre cujos ombros

ANJOS E DEMÓNIOS 499

construiria a sua Igreja. Fora naquele preciso lugar — a Colina do Vaticano —, recordou Langdon, que Pedro tinha sido crucificado e sepultado. Os primeiros Cristãos construíram um pequeno sanmário sobre o seu túmulo. A medida que o Cristianismo alastrava, o santuário fora crescendo, camada após camada, até culminar naquela colossal Basílica. Toda a Igreja Católica fora construída, muito literalmente, sobre São Pedro. A pedra.

— A antimatéria está no túmulo de São Pedro — disse o camer-lengo, numa vo2 cristalina.

Mau grado a origem aparentemente sobrenatural da informação, Langdon sentiu que tinha uma crua lógica. Colocar a antimatéria no túmulo de Pedro parecia-lhe agora dolorosamente óbvio. Os llluminati, num gesto de desafio simbólico, tinham posto a antimatéria junto ao cerne da Cristandade, tanto literal como figurativamente. A infiltração absoluta.

— E se precisam de provas terrenas — continuou o camerlengo, num tom que se tornara impaciente —, acabo de encontrar aquela grade destrancada. — Apontou para a grade de ferro tombada no chão. — Nunca está destrancada. Alguém esteve aqui em babeo... recentemente.

Olharam todos para o buraco. No instante seguinte, com surpreendente agilidade, o camerlengo

voltou-se, pegou numa das candeias e avançou para a abertura.

CAPITULO CENTO E DEZANOVE

Os degraus de pedra desciam, íngremes, para as entranhas da terra. A/ou morrer aqui em baixo, pensou Vittoria, agarrada ao corrimão de

corda enquanto mergulhava, atrás dos outros, na estreita passagem. Apesar de Langdon não ter feito qualquer gesto para impedir o camer-lengo de entrar no poço, Chartrand sentira a necessidade de intervir, agarrando-lhe um braço. Aparentemente, o jovem guarda estava agora convencido de que o camerlengo sabia o que estava a fazer.

Com uma seca sacudidela, Langdon libertara-se e seguira Ventres-ca, com Chartrand colado aos calcanhares. Instintivamente, Vittoria fora atrás deles.

Descia agora a toda velocidade a perigosa escada, onde um passo em falso podia significar uma queda mortal. Via, muito lá em baixo, o clarão dourado da candeia do camerlengo. E ouvia, nas suas costas, os jornalistas da BBC a esforçarem-se por não ficar para trás. A luz da câmara projectava sombras distorcidas para o fundo do poço, iluminando Chartrand e Langdon. Mal queria acreditar que o mundo inteiro testemunhava aquela loucura. Desliga o raio da câmara! Por outro lado, sabia que só a luz do projector lhes permitia ver onde punham os pés.

Enquanto o bizarro grupo prosseguia o seu caminho, os pensamentos de Vittoria rodopiavam num turbuhão. Que podia o camerkngo fa^er ali em baixo?Mesmo que encontrasse a antimatéria'? Não havia tempo!

Ficou surpreendida ao descobrir que a intuição lhe dizia que o camerlengo tinha provavelmente razão. Colocar a antimatéria dez metros abaixo do chão parecia uma escolha quase nobre e misericordiosa. Aquela profundidade, a aniquilação seria parcialmente contida. Não haveria onda de calor, nem destroços a voar para ferir as pessoas. Apenas um rasgar bíblico da terra e uma imponente BasíKca a desaparecer na cratera.

ANJOS E DEMÓNIOS 501

Teria sido aquele o único acto de decência de Köhler? Poupar vidas? Vittoria tinha ainda dificuldade em aceitar o envolvimento do director. Admitia o ódio dele contra a religião... mas aquela terrível conspiração parecia uma coisa que o excedia. Seria a raiva de Köhler verdadeiramente assim tão profunda? Destruir o Vaticano? Contratar um assassino? Assassinar o pai dela, o Papa e quatro cardeais? Parecia impensável. E como conseguira Köhler tanta traição dentro do próprio Vaticano? O Kocher era o sequa;^ de Kohler no interior, disse a si mesma. Era um Illuminatus. Tinha sem dúvida acesso a todas as chaves — dos aposentos do Papa, do Passeito, da Necrópole, do túmulo de São Pedro, de tudo. Podia ter colocado o contentor de antimatéria na sepultura do apóstolo — um local de acesso altamente restrito — e depois ordenado aos seus homens que não perdessem tempo a procurar fora das áreas públicas. Rocher sabia que ninguém ia encontrar o contentor.

Mas Rocher nunca contara com a mensagem que o camerlengo recebera lá de áma. A mensagem. Era esse o salto de fé que Vittoria estava ainda relu

tante em dar. Teria Deus verdadeiramente comunicado com o camerlengo? O sentimento visceral dizia-lhe que não, e, no entanto, a sua área de especialização científica era a imbricação dos fenómenos físicos — o estudo da interconectividade. Assistia a comunicações miraculosas todos os dias — ovos gémeos de tartarugas marinhas separados e colocados em laboratórios situados a milhares de quilómetros de distância que eclodiam no mesmo instante... quilómetros quadrados de medusas que pulsavam num sincronismo perfeito, como que comandadas por um único cérebro. Há linhas invisíveis de comunicação por todo o lado, pensou.

Mas... entre Deus e o homem? Desejou que o pai estivesse ali para lhe dar fé. Certa vez, Leonardo

Vetra explicara-lhe a comunicação divina em termos científicos, e fizera--a acreditar. Ainda recordava o dia em que o vira a rezar e lhe perguntara:

— Pai, porque é que te dás ao trabalho de rezar? Deus não pode responder-te.

Leonardo interrompera a sua meditação com um sorriso paternal. — A minha filha é uma céptica. Não acreditas então que Deus

pode falar às pessoas? Deixa-me pôr a questão na tua própria Linguagem. — Tirara de uma prateleira um modelo de cérebro humano e pou-

502 DAN BRO\XTSI

sara-o à frente dela. — Como provavelmente sabes, Vittoria, os seres humanos usam, de um modo geral, apenas uma pequena percentagem da sua capacidade cerebral. No entanto, quando os colocamos em situações emocionalmente carregadas... como trauma físico, alegria ou medo extremo, meditação profunda... de repente os neurónios começam a trabalhar como loucos, tendo como resultado uma clareza mental extraordinariamente aumentada.

— E depois? — argumentara Vittoria. — Lá porque uma pessoa pensa mais claramente, não quer dizer que fale com Deus.

— Aha! — exclamara o pai. — E no entanto, soluções notáveis para problemas aparentemente impossíveis ocorrem com muita frequência durante esses instantes de clarividência. É aquilo a que os gurus chamam um nível de consciência mais elevado. Os biólogos preferem chamar-lhe estados alterados. Os psicólogos chamam-lhe super-sen-ciência. — Fizera uma pausa. — E os Cristãos chamam-lhe preces que foram atendidas. E, com um sorriso rasgado, acrescentara: — Por vezes, a revelação divina significa simplesmente sintonizar o teu cérebro para ouvir o que o teu coração já sabe.

Agora, enquanto descia apressadamente aquela escada, mergulhando na escuridão, Vittoria sentiu que talvez o pai tivesse razão. Seria assim tão difícil acreditar que o trauma que o camerlengo sofrera lhe colocara a mente num estado em que ele simplesmente «compreendera» a localização da antimatéria?

Cada um de nós éum Deus, dissera Buda. Cada um de nós sabe tudo. Tudo o que temos defa^r é abrir a nossa mente para ouvir a nossa própria sabedoria.

Foi naquele momento de claridade, enquanto descia cada vez mais fundo nas trevas, que sentiu a sua própria mente abrir-se... e a sua própria sabedoria subir à superfície. Soube, sem a mais pequena sombra de dúvida, o que o camerlengo queria fazer. Esta consciência trouxe consigo um medo como nunca conhecera em toda a sua vida.

— Camerlengo, não! — gritou para o fundo da passagem. — Não está a compreender! — Visualizou as multidões que cercavam a Cidade do Vaticano, e o sangue gelou-lhe nas veias. — Se levar a antimatéria para cima... morre toda a gente!

ANJOS E DEMÓNIOS 503

Langdon descia os degraus aos três de cada vez, ganhando terreno. A passagem era apertada, mas não sentia claustrofobia. O seu outrora debilitante medo era agora sobrepujado por um medo muito maior.

— Camerlengo! — Langdon sentiu que estava a encurtar a distância que o separava da luz da candeia. — Tem de deixar a antimatéria onde está! Não há alternativa!

Mesmo enquanto pronunciava as palavras, mal conseguia acreditar no que estava a dizer. Não só aceitara a revelação divina sobre a localização da antimatéria, como agora pedia a destruição da Basílica de São Pedro — uma das grandes proezas arquitectónicas do mundo — e de toda a arte que continha.

Mas as pessoas lá fora... é a única maneira.

Parecia uma cruel ironia o facto de a única maneira de salvar as pessoas ser agora destruir a igreja. Calculou que os llluminati achariam graça ao simbolismo.

O ar que vinha do fundo do túmulo era frio e húmido. Algures lá em baixo ficava a sagrada necropolis... o lugar onde repousava São Pedro e incontáveis outros cristãos primitivos. Langdon sentiu um arrepio, esperando que aquilo não fosse uma missão suicida.

De súbito, a candeia do camerlengo pareceu deter-se. Langdon aproximou-se rapidamente.

O fim da escada surgiu das sombras sem aviso. Uma grade de ferro forjado, com três caveiras em relevo, bloqueava a passagem. O camerlengo estava a abri-la. Langdon saltou para a frente, voltando a fechar a grade, colocando-se no caminho do padre. Os outros vinham a descer a escada, todos eles fantasmagóricamente brancos à luz do projector da câmara... sobretudo Glick, que parecia mais lívido a cada passo.

Chartrand agarrou Langdon por um braço e puxou-o. — Deixe o camerlengo passar! — ordenou. — Não! — gritou Vittoria lá de cima, ofegante. — Temos de sair da

qui imediatamente! Não pode levar a antimatéria lá para cima! Se o fizer, todos os que estão lá fora morrerão!

A voz do camerlengo soou extraordinariamente calma: — Todos vocês... têm de confiar. Não nos resta muito tempo. — Não está a compreender — disse Vittoria. — Uma explosão ao

nível do solo será muito pior do que aqui em baixo!

504 DAN BROWN

O camerlengo pousou nela os olhos verdes e resplandecentemente lúcidos.

— Quem falou de uma explosão ao nível do solo? Vittoria olhou para ele, estupefacta. — Quer dizer que vai deixá-la aqui? A certeza do camerlengo era hipnótica. — Não haverá mais mortes esta noite. — Mas, padre... — Por favor... um pouco de^'. — O camerlengo falava agora qua

se num murmúrio. — Não peço a ninguém que me acompanhe. Todos vocês podem ir. Só peço que não interfiram com as ordens d'Ele. Deixem-me fazer o que fui chamado a fazer. — O olhar tornou-se-lhe mais intenso. — Foi-me ordenado que salvasse esta Igreja. E posso fa-zê-lo. Juro pela minha vida.

O silêncio que se seguiu ribombou como um trovão.

CAPITULO CENTO E VINTE

Onze e cinquenta e um. Nécropole significa literalmente Cidade dos Mortos. Nada do que Robert Langdon lera a respeito daquele lugar o pre

parara para o que estava a ver. A colossal escavação subterrânea estava cheia de decrépitos mausoléus, como casas de brincar no chão de uma cave. O ar cheirava a estagnado. Uma estranha rede de estreitos caminhos contorcia-se à volta dos memoriais meio derruídos, na sua maioria feitos de tijolos partidos forrados a mármore. Como colunas de pó, inúmeros pilares de terra erguiam-se do chão de terra para suportar um tecto de terra, que pesava baixo sobre a tenebrosa urbe.

Cidade dos mortos, pensou Langdon, encurralado entre a admiração académica e o medo puro e simples. Ele e os outros seguiam as tortuosas passagens, mergulhando cada vez mais fundo na escuridão. Terei

feito a escolha certa?

Chartrand fora o primeiro a sucumbir ao sortilégio, abrindo a porta de grade e proclamando a sua fé no camerlengo. Glick e Macri, por sugestão do padre, tinham aceitado proporcionar luz à demanda, ainda que, considerando os louros que os aguardavam se saíssem dali vivos, os seus motivos pudessem sem dúvida ser suspeitos. Vittoria fora a menos entusiasta de todos, e Langdon lera-lhe nos olhos um receio que lhe pareceu muito preocupantemente parecido com intuição feminina.

A.gora é demasiado tarde, pensou, enquanto ele e Vittoria corriam atrás dos outros. Estamos metidos nisto.

Vittoria não dizia palavra, mas Langdon sabia que estavam os dois a pensar a mesma coisa. Nove minutos não dá tempo sufiáente para sair da

Cidade do Vaticano, se o camerlengo estiver enganado.

Enquanto corriam pelo meio dos mausoléus, Langdon sentiu as pernas começarem a ressentir-se do cansaço, notando, para sua surpresa.

506 DAN BROWN

que O grupo começara a subir um ligeiro declive. A explicação, quando lhe ocorreu, fê-lo estremecer até ao íntimo. A topografia que tinha debaixo dos pés era a do tempo de Cristo. Estava a subir a Colina do Vaticano original! Sempre ouvira os estudiosos afirmar que o túmulo de São Pedro se situava perto do cume da Colina do Vaticano, e sempre perguntara a si mesmo como diabo sabiam. Agora compreendia. A colina ainda cá estai

Era como correr através das páginas da História. Algures à frente dele ficava o túmulo de São Pedro — a mais sagrada das ReHquias Cristãs. Era difícil imaginar que a sepultura original fora assinalada apenas por um modesto santuário. Tudo isso mudara. A medida que a eminência de Pedro crescia, novos santuários tinham sido construídos sobre o antigo, e, agora, a homenagem erguia-se cento e trinta e dois metros para o céu até ao topo da cúpula de Miguel Angelo, situando-se o ápice exactamente sobre o túmulo original, com uma diferença inferior a um centímetro.

Continuaram a subir pelos sinuosos caminhos. Langdon consultou o relógio. Oito minutos. Começou a perguntar a si mesmo se ele e Vit-toria não iriam juntar-se definitivamente aos mortos que ali se encontravam.

— Cuidado! — gritou Glick, que os seguia. — Buracos de cobra! Langdon viu-os a tempo. Uma série de pequenos orifícios perfura

vam o caminho à sua frente. Saltou por cima deles. Vittoria saltou também, evitando por pouco as estreitas aberturas. — Buracos de cobra? — perguntou, com uma expressão de espan

to, enquanto continuavam a correr. — Não Hgue — respondeu Langdon. — Acredite em mim, não

quer saber. Os buracos, acabava de se aperceber, eram na realidade tubos de li

bação. Os primeiros cristãos acreditavam na ressurreição da carne, e usavam aqueles orifícios para, muito Literalmente, «dar de comer aos mortos», vertendo leite e mel para o interior das criptas subterrâneas.

O camerlengo sentia-se fraco. Continuava a correr, arranjando forças do seu dever para com Deus

e os homens. Quase lá. Tinha dores horríveis. A mente pode causar muito

ANJOS E DEMÓNIOS 507

mais dor do que o corpo. Fosse como fosse, estava cansado. Sabia que lhe restava muito pouco tempo.

— Hei-de salvar a tua Igreja, Pai. Juro. Apesar da luz do projector da câmara da BBC, pela qual estava gra

to, mantinha erguida bem alto a candeia de azeite. Sou um farol na escuridão. Sou a lui^ A candeia balouçava ao ritmo da corrida e, por um instante. Cario receou que a mistura inflamável se derramasse e o queimasse. Já tivera experiência de carne queimada mais do que suficiente para uma noite.

Quando se aproximou do alto da colina, estava encharcado em suor, quase incapaz de respirar. Mas quando pisou o cume, sentiu-se renascer. Avançou, cambaleante, para o pedaço de terreno aplanado onde estivera tantas vezes. Era aH que o caminho terminava. A necrópole esbarrava abruptamente numa parede de terra. Uma pequena lápide indicava: Mausoleum S.

Lí7 tomba di San Pietro. Diante dele, ao nível da cintura, havia uma abertura feita na pare

de. Nada de mármores e dourados. Nenhuma ostentação. Apenas um simples buraco na parede, para lá do qual ficava uma pequena gruta e um velho e arruinado sarcófago. O camerlengo olhou para o buraco e sorriu de exaustão. Ouvia os outros a subir a colina atrás dele. Pousou a candeia e ajoelhou-se para orar.

Obrigado, meu Deus. Está quase a acabar.

Lá fora na praça, rodeado pelos restantes cardeais, Mortati olhava para os ecrãs das cadeias de televisão e acompanhava o drama que se desenrolava na cripta sob os seus pés. Já não sabia no que acreditar. Teria o mundo inteiro testemunhado a mesma coisa que ele vira? Teria Titus falado verdadeiramente ao camerlengo? Iria a antimatéria aparecer em São Pedro...?

— Olhem! — E um arquejo imenso ergueu-se da multidão. — Ali! — De repente, estavam todos a olhar para o ecrã. — É um

milagre! Mortati olhou. O plano estava um pouco instável, mas a imagem

era suficientemente clara. E inesquecível.

508 DAN BROWN

Filmado de trás, o camerlengo estava ajoelhado em oração no chão de terra. A frente dele havia um buraco toscamente aberto numa parede. Dentro do buraco, no meio de restos de pedra antiga, havia um sarcófago de terracota.

Apesar de só ter visto aquele sarcófago uma única vez em toda a sua vida, o cardeal Mortati sabia mviito bem o que ele continha.

San Pietro. Mortati não era suficientemente ingénuo para pensar que os gritos

de alegria e espanto que ecoavam através da multidão se deviam à exaltação de contemplar uma das mais sagradas Relíquias da Cristandade. Não era o túmulo de São Pedro que fazia as pessoas caírem espontaneamente de joelhos a rezar e a dar graças. Era o objecto pousado em cima do túmulo.

O contentor de antimatéria. Estava aU... onde estivera todo o dia, escondido na escuridão da necrópole. Esguio. Implacável. Mortífero. A revelação do camerlengo estava certa.

Mortati olhava, aturdido, para o cilindro transparente. O glóbulo de líquido continuava a pairar no seu centro. Uma reverberação avermelhada tingia as paredes da gruta enquanto o contador digital marcava os seus cinco últimos minutos de vida.

Também pousada em cima do túmulo, a centímetros de distância do contentor, a câmara de segurança da Guarda Suíça continuava apontada para o objecto e a transmitir.

Mortati benzeu-se, seguro de que aquela era a imagem mais aterradora que vira em toda a sua vida. No instante seguinte compreendeu, porém, que as coisas podiam ainda tornar-se bem piores.

O camerlengo pôs-se subitamente de pé. Agarrou no contentor com as mãos e voltou-se para os outros. Tinha no rosto uma expressão de concentração total. Passou pelo meio do grupo e começou a descer a colina do mesmo modo que a subira, a correr.

A câmara apanhou Vittoria Vetra, paralisada pelo terror. — Aonde vai, camerlengo? Pensei que tinha dito... — Tenha fé! — gritou ele, sem se deter. Vittoria voltou-se para Langdon. — O que é que fazemos? Langdon tentou deter o camerlengo, mas Chartrand interceptou-o,

aparentemente confiando sem reservas na convicção do padre.

ANJOS E DEMÓNIOS 509

A imagem que a câmara da BBC agora transmitia era como uma viagem na montanha russa, subindo e descendo, contorcendo-se. Planos entrecortados de confusão e terror enquanto o caótico grupo tropeçava nas sombras de regresso à entrada da Necrópole.

Na praça, Mortati abafou uma exclamação de medo. — Vai tra2ê-la cá para cima? Nos ecrãs de televisores espalhados pelo mundo inteiro, grande

como um titã, o camerlengo subia a correr a escada da Necrópole, com o contentor de antimatéria estendido à sua frente.

— Não haverá mais mortes esta noite! Estava, porém, enganado.

CAPITULO CENTO E VINTE E UM

Eram exactamente 11.56 quando o camerlengo irrompeu na Praça de São Pedro, saindo da Basílica. Cambaleou sob o clarão ofuscante dos projectores, segurando o contentor de antimatéria nos braços estendidos à sua frente, como uma oferenda destinada aos deuses. Com olhos que a intensidade da luz fazia arder, viu-se a si mesmo, seminu e ferido, enorme como um gigante, nos grandes ecrãs que rodeavam a praça. O rugido que se ergueu da multidão foi diferente de tudo o que tinha alguma vez ouvido — um bramido imenso feito de choros, gritos, cânticos, orações... uma mistura de veneração e terror.

Uvra-nos do mal, murmurou. Estava totalmente exausto depois da corrida para sair da Nécropo

le. Que quase terminara em desastre. Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham tentado interceptá-lo, voltar a atirar o contentor para o seu esconderijo subterrâneo, fugir, procurar abrigo. 1J)UCOS cegos!

Sabia agora, com uma terrível certeza, que em qualquer outra noite teria perdido a corrida. Naquela, porém. Deus estivera uma vez mais com ele. Robert Langdon, quase a alcançá-lo, fora agarrado por Chartrand, inabalavelmente confiante e obediente aos seus pedidos de fé. Os jornalistas, claro, estavam demasiado aterrorizados e carregados de material para intervir.

Insondáveis são os desígnios do Senhor.

Ouviu os outros atrás dele... viu-os nos ecrãs, a aproximar-se. Reunindo os últimos vestígios de força física que lhe restavam, ergueu o contentor acima da cabeça. Então, puxando para trás os ombros nus, num gesto de desafio à marca dos llluminati que tinha gravada a fogo no peito, precipitou-se escadas abaixo.

Havia ainda um último acto. Deus esteja contigo, pensou. Deus esteja contigo.

ANJOS E DEMÓNIOS 511

Quatro minutos... Langdon ficou quase cego ao sair da Basílica. Mais uma vez, os pro

jectores dos media feriram-lhe os olhos. Tudo o que conseguia ver era a forma indistinta do camerlengo, directamente em frente dele, a correr escadas abaixo. Por um momento, refulgente no seu halo de luz, o padre pareceu celestial, como uma divindade moderna. A sotaina pendia-lhe da cintura, como um sudário. O seu corpo fora marcado e ferido por mãos inimigas, mas a tudo ele resistira. O camerlengo corria, direito, gritando ao mundo que tivesse fé, avançando para as pessoas, levando nas mãos aquela arma de destruição.

Langdon foi-lhe na peugada. Que está ele afa;^er? Vai matá-los todos! — A obra de Satanás — gritava o camerlengo — não tem lugar na

Casa de Deus! — E continuava a correr direito à multidão aterrorizada. — Padre! — gritou Langdon, atrás dele. — Não há sítio para

onde ir! — Olhe para os céus! Esquecemo-nos sempre de oUiar para os

céus! Nesse instante, quando Langdon viu para onde o camerlengo se

dirigia, a gloriosa verdade inundou-o como uma onda. Embora não pudesse vê-la por causa dos projectores, sabia que a salvação de todos estava directamente por cima das suas cabeças.

O céu italiano cravejado de estrelas. O caminho de fuga. O helicóptero que o camerlengo retivera para transportá-lo ao hos

pital estava au, com o piloto já na cabina, os rotores já a rodar. Quando o camerlengo correu para ele, Langdon sentiu uma súbita e avassaladora exaltação.

Os pensamentos que lhe assaltaram o espírito foram como uma torrente.

Primeiro, visualizou a vasta extensão do Mediterrâneo. A que distância ficava? Oito quilómetros? Dezasseis? Sabia que a praia de Fiu-mocino ficava a apenas sete minutos de comboio. Mas de helicóptero, a 300 quilómetros por hora, sem paragens... Se conseguissem levar o contentor até suficientemente longe e largá-lo no mar... Havia ainda outras opções, compreendeu, sentindo-se quase sem peso enquanto corria, ha Cava emanai As pedreiras de mármore a norte da cidade.

512 DAN BROWN

a menos de quatro quilómetros e meio de distância. De que tamanho eram? Cinco quilómetros quadrados? Estavam com certeza desertas àquela hora! Largar lá o contentor...

— Todos para trás! — gritou o camerlengo, com o peito a arder devido ao esforço da corrida. — Afastem-se! Já!

Os guardas suíços que rodeavam o helicóptero ficaram a ver, de queixo caído, o camerlengo correr para eles.

— Para trás! — gritou o padre. Os guardas recuaram. Com o mundo inteiro a assistir, espantado, o camerlengo contor

nou o helicóptero até ã porta do lado do puoto e abriu-a. — Fora, rapaz! Já! O homem saltou para o chão. O camerlengo olhou para o alto assento do piloto e soube que,

no seu estado de exaustão, ia precisar de ambas as mãos para se içar até lá. Voltou-se para o piloto, que tremia a seu lado, e entregou-lhe o contentor.

— Segura nisto. Devolve-mo depois de eu me sentar. Enquanto subia para a cabina, ouviu Robert Langdon gritar exci

tadamente, a correr para o aparelho. Agora compreendes, pensou. Agora tens fé.

Instalou-se no banco, ajustou algumas alavancas e então voltou-se para a janela, para receber o contentor.

O guarda a quem o entregara estava, porém, de mãos vazias. — Ele tirou-mo! — gritou o homem. O camerlengo sentiu o coração afundar-se-lhe no peito. — Quem? O guarda apontou. — Ele!

Robert Langdon ficou surpreendido com o peso do contentor. Correu para o outro lado do helicóptero e saltou para o banco traseiro, onde ele e Vittoria se tinham sentado escassas horas antes. Deixando a porta aberta, prendeu o cinto. Então gritou ao camerlengo, sentado aos comandos:

ANJOS E DEMÓNIOS 513

— Voe, padre! O camerlengo torceu o pescoço para olhar para ele, com o rosto

branco de medo. — Que está a fazer? — O senhor conduz, eu atiro! — gritou Langdon. — Não há tem

po para discutir! Limite-se a pilotar o bendito helicóptero! O camerlengo pareceu momentaneamente paralisado. As luzes dos

projectores que inundavam a cabina escureciam as fundas rugas que lhe sulcavam o rosto.

— Posso fazer isto sozinho — murmurou. — Tenho de fazer isto sozinho.

Langdon nem sequer o escutava. — Voe! — ouviu-se a si mesmo gritar. — Estou aqui para o ajudar!

— Olhou para a base do contentor e a respiração prendeu-se-lhe na garganta quando viu os números. — Três minutos, padre! Três!

O número pareceu sacudir o camerlengo, trazendo-o de volta à realidade. Sem hesitar, voltou-se para os controlos e, com um rugido ensurdecedor, o helicóptero descolou.

Através do turbilhão de pó, Langdon viu Vittoria correr para o aparelho. Os olhos dos dois encontraram-se, e então ela pareceu cair como uma pedra num lago, cada vez mais pequena.

CAPITULO CENTO E VINTE E DOIS

Dentro do helicóptero, o uivo dos motores e o vendaval que entrava pela porta aberta assaltaram os sentidos de Langdon como um caos ensurdecedor. Endireitou o corpo para enfrentar a crescente força da gravidade quando o camerlengo elevou o aparelho numa subida vertiginosa. O clarão da Praça de São Pedro foi diminuindo por baixo deles até se transformar numa refulgente elipse amorfa no meio do mar de luzes da cidade.

O contentor de antimatéria era como um peso morto nas mãos de Langdon. Agarrou-o com mais força, sentiAdo as palmas húmidas de suor e de sangue. Dentro do recipiente, o glóbulo de antimatéria flutuava calmamente, tingido de vermelho pela luz intermitente do contador digital.

— Dois minutos! — gritou Langdon, perguntando a si mesmo onde tencionaria o camerlengo largar o contentor.

Por baÍKO deles, as luzes da cidade estendiam-se em todas as direcções. Ao longe, para oeste, Langdon viu a linha cintilante da costa mediterrânica — uma recortada orla de luminescência para lá da qual se alongava uma infindável e negra imensidão de nada. O mar pareceu-lhe mais longe do que imaginara. Além, disso, a concentração de luzes ao longo da costa recordou-lhe que uma explosão no mar, mesmo distante, podia ter efeitos devastadores. Não lhe ocorrera sequer pensar nos estragos que uma vaga provocada pela deflagração de cinco quilotone-ladas causaria no litoral.

Quando se voltou e olhou em frente, pela janela da cabina, sentiu--se mais esperançado. As sombras arredondadas das colinas à volta de Roma estendiam-se diante do nariz do aparelho, recortadas contra o céu estrelado. As mais próximas estavam salpicadas de luzes — as villas dos muito ricos —, mas, dois quilómetros para norte, escureciam. Não havia quaisquer luzes, apenas um enorme vácuo de escuridão. Nada.

ANJOS E DEMÓNIOS 515

Jíspedreiras!, pensou Langdon. LO Cava Romana! Ao olhar para a enorme bolsa de terreno estéril, Langdon sentia

que era suficientemente grande. E parecia próxima. Muito mais próxima do que o oceano. Uma vaga de excitação percorreu-lhe o corpo. Era obviamente para ali que o camerlengo tencionava levar a antimatéria! O helicóptero apontava naquela direcção! As pedreiras! Estranhamente, no entanto, apesar de os rotores rugirem no máximo da potência e o aparelho voar pelos ares, as pedreiras não pareciam estar a aproxi-mar-se. Confuso, lançou um olhar pela porta aberta, para se orientar. O que viu afogou a excitação que sentira numa onda de pânico. Exactamente por baixo deles, a milhares de metros de distância, brilhavam as luzes dos projectores da imprensa na Praça de São Pedro.

Continuamos por ama do Vaticano! — Camerlengo! — Langdon quase se engasgou. — Vá em fren

te! Já estamos suficientemente alto! Tem de começar a voar em frente! Não podemos largar o contentor em cima da Cidade do Vaticano!

O camerlengo não respondeu. Parecia estar concentrado na pilotagem do helicóptero.

— Temos menos de dois minutos! — gritou Langdon, levantando o contentor. — Vejo-as daqui! lut Cava Romana! Très quilómetros para norte! Não temos...

— Não — respondeu o camerlengo. — É demasiado perigoso. Lamento. — Enquanto o helicóptero continuava a subir na vertical. Cario Ventresca voltou-se e sorriu tristemente a Langdon. — Quem me dera que não tivesse vindo, meu amigo. Fez o último sacrifício.

Langdon olhou para os olhos exaustos do padre e subitamente compreendeu. O sangue gelou-lhe nas veias.

— Mas... deve haver algum lugar para onde possamos ir! — Para cima — disse o camerlengo. — É a única garantia. Langdon estava praticamente incapaz de pensar. A sua interpreta

ção dos planos do camerlengo fora totalmente errada. Olhe para o céu! O céu, compreendeu Langdon, era literalmente para onde ele se di

rigia. Nunca tivera a intenção de largar a antimatéria. Queria apenas levá--la para tão longe da Cidade do Vaticano quanto fosse humanamente possível.

Aquela era uma viagem só de ida.

CAPITULO CENTO E VINTE E TRES

Na Praça de São Pedro, Vittoria olhava para cima. O helicóptero era agora um ponto minúsculo, os projectores já não o alcançavam. Até o bater das pás dos rotores se transformara num zumbido distante. Foi como se, naquele instante, o mundo inteiro tivesse os olhos voltados para o alto, as cabeça dobradas para trás, viradas para o céu... todos os povos, todas as fés... todos os corações a bater em uníssono.

Os sentimentos de Vittoria eram um furacão de agonias turbüho-nantes. Enquanto o helicóptero deixava de ser visível, recordou o rosto de Langdon, a subir diante dela. E.m que estava ele c/pensarí Será possível que não tenha compreendido?

A volta da praça, as câmaras de televisão sondavam a escuridão, à espera. Um mar de rostos olhava para o céu, unido numa sñenciosa contagem decrescente. Todos os grandes ecrãs mostravam a mesma tranquila imagem... um céu romano salpicado de estrelas brühantes. Vittoria sentiu as lágrimas começarem a subir-lhe nos olhos.

Atrás dela, na escadaria de mármore, cento e sessenta e um cardeais olhavam para o céu, em silenciosa reverência. Alguns estavam de mãos postas, em oração. A maioria permanecia imóvel, hipnotizada. Alguns choravam. Os segundos passavam.

Em casas, bares, empresas, hospitais, aeroportos do mundo inteiro, milhões de almas juntavam-se num testemunho universal. Homens e mulheres deram as mãos. Outros abraçaram os filhos. O tempo pareceu pairar num limbo, as almas suspensas na mesma angústia.

Então, cruelmente, os sinos de São Pedro começaram a tocar. Vittoria deixou as lágrimas correr. Então... com o mundo inteiro a assistir... o tempo esgotou-se.

ANJ OSE DEMONIOS 517

O suénelo mortal do acontecimento foi o mais aterrador de tudo. Muito alto por cima da Cidade do Vaticano, surgiu um ponto de

luz. Por um fugaz instante, tinha nascido um novo corpo celeste... o ponto de luz mais puro e mais branco que alguém jamais vira.

E então aconteceu. Um relâmpago. O ponto cresceu, como que alimentando-se de si

mesmo, derramando-se pelo céu numa esfera cada vez maior de ofuscante brancura. Expandiu-se em todas as direcções, acelerando a uma velocidade incrível, devorando a escuridão. A medida que a esfera de luz crescia, tornava-se mais intensa, como um demónio a preparar-se para consumir o céu inteiro. Desceu para a terra, em direcção a eles, cada vez mais depressa.

Cegas, as multidões cruamente iluminadas encolheram-se em uníssono, protegendo os olhos, gritando o mesmo medo.

E quando a luz alastrava em todas as direcções, o inimaginável aconteceu. Como que travada pela vontade de Deus, a esfera refulgente pareceu embater numa parede. Foi como se a explosão tivesse de algum modo sido contida numa gigantesca bola de vidro. A luz ressaltou para dentro, endurecendo, dobrando-se sobre si mesma. A vaga pareceu atingir um diâmetro predeterminado e parar aí. Por um instante, uma esfera de luz perfeita e silenciosa brilhou sobre Roma. A noite tornou--se dia.

E então bateu. A concussão foi cava e profunda — uma tonitruante onda de cho

que vinda de cima. Desceu sobre eles como a fúria dos infernos, abalando os alicerces de granito da Cidade do Vaticano, expulsando o ar dos pulmões das pessoas, empurrando algumas para trás. A reverberação circulou pela colunata, seguida por uma súbita corrente de ar quente. O vento atravessou a praça num longo gemido sepulcral que perpassou por entre as colunas e ressaltou nas paredes. Nuvens de pó rodopiaram por cima das cabeças das pessoas amontoadas... testemunhas do Armagedão.

Então, tão repentinamente, como tinha aparecido, a esfera implodiu, sugando-se a si mesma, regressando ao minúsculo ponto de luz de onde tinha saído.

CAPITULO CENTO E VINTE E QUATRO

Nunca antes tantos tinham estado tão silenciosos. Na Praça de São Pedro, os rostos, um a um, desviaram os olhos do

céu que escurecera e voltaram-nos para baixo, cada um embrenhado no seu próprio momento de espanto. Os projectores dos media imita-ram-nos, baixando os seus feixes de luz para a terra, como que em reverência para com a escuridão restabelecida. Foi como se, por um instante, o mundo inteiro inclinasse a cabeça ao mesmo tempo.

O cardeal Mortati ajoelhou-se para rezar, e os outros juntaram-se--Ihe. Os guardas suíços baixaram as alabardas e permaneceram imóveis e aturdidos. Ninguém falou. Ninguém se moveu. Em todo o lado, os corações estremeciam de emoção espontânea. De confusão. De medo. De espanto. De fé. E de um respeito cheio de horror pela nova e terrível força que acabavam de testemunhar.

Vittoria Vetra, de pé junto à base da ampla escadaria da Basílica, tremia. Fechou os olhos. No meio da tempestade de emoções que lhe galopava no sangue, uma palavra soava como um sino distante. Nítida. Cruel. Tentou afastá-la. Mas a palavra continuava a ecoar. Voltou a afastá-la. A dor era demasiado grande. Vittoria tentou perder-se nas imagens que queimavam outros espíritos... o poder horripilante da antimatéria... a salvação do Vaticano... o camerlengo... actos de coragem... milagres... altruísmo. E mesmo assim a palavra teimava em ecoar... como um dobre de finados no meio do caos, com uma dilacerante solidão.

^hert.

Ele fora procurá-la ao castelo de Sant'Angelo. Salvara-a. E agora fora destruído por aquilo que ela criara.

ANJOS \l DEMONIOS 519

Enquanto rezava, o cardeal Mortati perguntava a si mesmo se também ele ouviria a voz de Deus, como o camerlengo ouvira. Será preciso acreditar em milagres para os experimentar? Mortati era um homem moderno numa fé antiga. Os milagres nunca tinham feito parte das coisas em que acreditava. Sem dúvida que a sua fé falava de milagres... mãos que sangravam, ressurreições, marcas em sudários... e no entanto, a mente racional de Mortati sempre justificara esses relatos como pertencendo ao mito. Eram apenas o resultado da maior das fraquezas do homem — a sua necessidade de provas. Os milagres eram apenas coisas a que todos se agarravam porque todos queriam que fossem verdade.

E no entanto... Serei tão moderno que não consigo aceitar o que os meus olhos acabam de tes

temunhar'? Era um milagre, não era? Sim! Deus, com umas poucas palavras murmuradas ao ouvido do camerlengo, interviera para salvar a sua Igreja. Porque seria tão difícil acreditar naquilo? Se Deus não tivesse intervindo, o que teriam as pessoas o direito de pensar? Que o Todo--Poderoso não se importava? Que era impotente para o impedir? Um milagre era a única resposta possível!

O cardeal Mortati continuou ajoelhado, a rezar pela alma do camerlengo. Deu graças ao jovem padre por, apesar dos seus poucos anos, ter aberto os olhos daquele velho para os milagres da fé incondicional.

Incrivelmente, porém, Mortati não suspeitava sequer de até que ponto a sua fé ia ser posta à prova...

O silêncio que descera sobre a Praça de São Pedro foi perturbado, ao princípio, por uma ligeira ondulação. A ondulação transformou-se num murmúrio. E então, de repente, num rugido. Sem aviso, a multidão pôs-se a gritar em uníssono:

— Olhem! Olhem! Mortati abriu os olhos e voltou-se para a multidão. Todos os dedos

apontavam para um ponto situado atrás dele, na fachada da Basílica. Os rostos estavam brancos. Muitas pessoas caíram de joelhos. Algumas desmaiaram. Outras começaram a soluçar incontrolavelmente.

— Olhem! Olhem! Mortati voltou-se, confuso, olhando na direcção das mãos trému

las. Apontavam para o nível mais alto da Basílica, de onde as enormes estátuas de Cristo e dos seus apóstolos observavam a multidão.

Ali, de pé à direita de Jesus, de braços abertos para o mundo... estava o camerlengo Charlo Ventresca.

CAPITULO CENTO E VINTE E CINCO

Robert Langdon já não estava a cair. Já não havia terror. Nem dor. Nem sequer o uivo ululante do ven

to. Havia apenas o suave marulhar de água, como se estivesse a dormir comodamente numa praia.

Num paradoxo de autoconsciência, sentiu que aquilo era a morte. E ficou contente. Deixou que aquela sensação de entorpecimento se apoderasse completamente dele. Deixou que o transportasse para onde quer que fosse levá-lo. A dor e o medo tinham sido anestesiados, e ele não queria que regressassem, fosse por que motivo fosse. A sua última recordação era tão horrível que só podia ter sido conjurada no inferno.

l^va-me. Por favor... No entanto, o marulhar que o embalava numa distante sensação de

paz estava também a puxá-lo para trás. Estava a tentar acordá-lo de um sonho. Não! Deixa-me! Não queria acordar. Adivinhava os demónios a juntarem-se na orla da sua beatitude, batendo nas paredes para quebrar o seu êxtase. Imagens confusas rodopiavam. Vozes gritavam. O vento uivava. Não, por favor! Quanto mais ele lutava, no entanto, mais a fúria se infiltrava.

Então, bruscamente, estava outra vez vivo...

O helicóptero prosseguia a sua estonteante subida. E ele estava encurralado lá dentro. Lá em baixo, as luzes de Roma pareciam afastar-se mais a cada segundo que passava. O instinto de sobrevivência gritava--Ihe que deitasse o contentor de antimatéria pela porta fora, já! Lang-don sabia que a bomba demoraria vinte segundos a cair oitocentos metros. Mas cairia em direcção a uma cidade cheia de pessoas.

Mais alto! Mais alto!

ANJOS E DEMÓNIOS 521

A que altitude estariam naquele momento? Os pequenos aviões a hélice voavam, sabia-o, a cerca de seis mil metros. Aquele helicóptero devia ter já percorrido, na sua corrida para o céu, uma boa parte dessa distância. Três mil metros. Quatro mil e quinhentos? Aitida havia uma liipótese. Se calculasse bem a largada, o contentor explodiria no ar, a uma distância segura do solo e suficientemente longe do helicóptero. Olhou para a cidade que se espalhava por baixo deles.

— E se se enganar nos cálculos? — perguntou o camerlengo. Langdon voltou-se, sobressaltado. O camerlengo não estava se

quer a olhar para ele, tendo-lhe aparentemente lido os pensamentos na expressão do rosto fantasmagórico que se reflectia no pára-brisas. Já não parecia concentrado nos controlos. Nem sequer estava a segurar a manche. O helicóptero devia estar a voar em piloto-automático, continuando a subir. O camerlengo levantou a mão direita e começou a procurar atrás de uma caixa de derivação aparafiísada ao tejadilho da cabina, tirando uma chave que ali estava escondida, presa por fita-cola.

Langdon, perplexo, viu-o abrir rapidamente a caixa de metal colocada entre os dois bancos dianteiros e retirar de lá uma grande bolsa de nylon preta, que pousou no banco, a seu lado. Os pensamentos de Langdon fervilhavam. Os gestos do camerlengo eram precisos, determinados, como se tivessem um objectivo. Talvez tivesse encontrado uma solução?

— Dê-me o contentor — pediu o camerlengo, num tom de voz muito calmo.

Langdon já não sabia o que pensar. Passou o contentor para a frente. — Noventa segundos — disse. O que o camerlengo fez com a antimatéria apanhou-o totalmente

de surpresa. Segurando o contentor com ambas as mãos, colocou-o dentro da caixa metálica. Então fechou a pesada tampa e usou a chave para trancá-la.

— Que está a fazer? — perguntou Langdon? — A afastar de nós a tentação — respondeu o camerlengo, e atirou

a chave pela janela aberta. Enquanto a chave revoluteava no ar, Langdon sentiu a alma cair

com ela. O camerlengo pegou então na bolsa de nylon e passou os braços

pelas correias. Em seguida apertou a fivela de um cinto sobre o esto-

522 DAN BRC)\XT J

mago e ajustou a bolsa como se fosse uma mochila. Voltou-se para um petrificado Robert Langdon.

— Lamento — disse. — Não devia acontecer assim. — E, abrindo a porta, saltou para a noite.

A imagem ardeu no inconsciente de Langdon, e com ela veio a dor. Dor real. Dor física. Insuportável. Dilacerante. Suplicou que o levassem, que aquilo acabasse, mas enquanto a água marulhava mais perto dos ouvidos dele, novas imagens começaram a desfilar-lhe pelo espírito, O seu inferno ainda mal começara. Viu fragmentos, pedaços. Fotogramas dispersos de puro pânico. Estava a meio caminho entre a morte e o pesadelo, a pedir que o libertassem, mas as imagens eram cada vez mais vívidas.

O contentor com a antimatéria estava fechado à chave e fora do seu alcance. Prosseguia a sua implacável contagem decrescente, enquanto o helicóptero continuava a subir. Cinquenta segundos. Mais alto. Mais alto. Langdon voltou-se vivamente na cabina, tentando compreender o que acabava de ver. Quarenta e anco segundos. Tacteou debaixo dos bancos, à procura de um segundo pára-quedas. Quarenta segundos. Nada! Tinha de haver uma opção! Trinta e cinco segundos! Correu para a porta aberta do helicóptero e ficou ali, chicoteado pelo vento, a olhar para as luzes de Roma, lá muito em baixo. Trinta e dois segundos.

E então fez a escolha. A incrível escolha...

Sem pára-quedas, Robert Langdon saltara do helicóptero. Quando a noite lhe engoliu o corpo que rodopiava sobre si mesmo, o aparelho pareceu saltar para cima, o rugido dos rotores a evaporar-se no suvo ensurdecedor do vento da queda Hvre.

Enquanto caía em direcção à terra, Robert Langdon sentiu algo que não experimentava desde os seus tempos de mergulhador da prancha mais alta — a inexorável atracção da gravidade. Quanto mais depressa caía, com mais força a terra parecia puxá-lo, sugá-lo para baixo. Desta vez, a queda não era de quinze metros para dentro de uma pis-

ANJOS E DEMÓNIOS 523

cina. Era de milhares de metros para cima de uma cidade — uma extensão infindável de asfalto e cimento.

Algures no meio da torrente de vento e desespero, a voz de Köhler ecoou da tumba... palavras que tinha dito naquela manhã, junto do poço de queda livre do CERN. O efeito de resistênda de um metro quadrado

de teddo é o bastante para redut^ir em quase vinte por cento a veloddade de queda

de um corpo. Vinte por cento, Langdon bem o sabia, não andava sequer perto do que ele precisaria para sobreviver a uma queda daquelas. No entanto, mais por paralisia do que por esperança, agarrava com as duas mãos o único objecto que retirara do helicóptero ao saltar para a porta. Uma recordação estranha, mas que por um fugaz momento lhe dera um lampejo de esperança.

A pala reflectora do pára-brisas estava caída na traseira do helicóptero. Era um rectângulo côncavo, com cerca de três metros e sessenta por um e oitenta... uma espécie de grande folha de cantos arredondados, a aproximação mais tosca a um pára-quedas que se poderia imaginar. Não tinha correias, apenas uma pega em cada extremo, para a prender à curvatura da cabina. Langdon agarrara nela, passara as mãos pelas pegas, segurara-se o melhor que pudera e saltara para o vazio.

O seu último gesto de desafio juvenil. Não tinha ilusões de vida para lá daquele momento. Caiu como uma pedra. De pés para a frente. Os braços esticados

para cima. As mãos enlaçadas nas pegas. A pala de plástico enfunou-se como um cogumelo, por cima dele. O vento assobiava-lhe violentamente aos ouvidos.

Enquanto mergulhava em direcção à terra, ouviu lá em cima uma enorme explosão. Pareceu-lhe mais distante do que esperara. Quase no mesmo instante, a onda de choque atingiu-o. Sentiu o ar ser-lhe arrancado dos pulmões. Houve uma súbita sensação de calor à sua volta. Esforçou-se por não soltar as mãos. Uma parede de calor desceu do alto. A parte superior do vinil começou a enrugar... mas aguentou.

Langdon continuava a cair, como que empurrado pela bola de fogo que se expandia, sentindo-se como um surfista a tentar cavalgar um tsunami com trezentos metros de altara. Então, repentinamente, o calor desapareceu.

Estava novamente a cair através da fria escuridão.

524 DAN BROWN

Por um instante, sentiu um raio de esperança, mas logo essa esperança se desvaneceu como o calor que momentos antes o atingiu. Apesar de a tensão dos braços lhe dizer que a pala de plástico estava a abrandar a queda, o vento continuava a passar por ele a uma velocidade vertiginosa. Não tinha a mínima dúvida de que continuava a des-locar-se demasiado depressa para sobreviver à queda. Esmagar-se-ia quando chocasse com o chão.

Valores matemáticos rodopiavam-lhe pelo cérebro, mas estava demasiado aturdido para retirar deles qualquer espécie de significado... o efeito de resistênáa de um metro quadrado... vinte por cento de redução da velo

cidade. O máximo que conseguia calcular era que a pala que tinha por cima da cabeça era suficientemente grande para lhe travar a queda mais do que vinte por cento. Infelizmente, porém, também percebia, pelo modo como o vento lhe fiístigava o corpo, que fosse o que fosse que a pala estivesse a fazer, não era o bastante. Continuava a cair demasiado depressa... nunca sobreviveria ao impacte no mar de asfalto que o aguardava.

Por baixo dele, as luzes de Roma estendiam-se em todas as direcções. A cidade parecia um enorme céu cheio de estrelas em direcção ao qual estivesse a cair. Uma imensidão de estrelas riscada por uma fita escura que dividia a cidade em duas — uma larga fita negra que colea-va por entre os pontos luminosos como uma gorda cobra. Langdon olhou para aquela contorcida tira de negrume.

Subitamente, como a crista alterosa de uma onda inesperada, a esperança voltou a invadi-lo.

Com uma força quase maníaca, puxou para baixo a extremidade direita da canópia. A pala de plástico estralejou mais alto, enfunando-se, virando para a direita em busca da linha de menor resistência. Langdon sentiu que deslizava de lado. Voltou a puxar, com mais força, ignorando a dor na mão. A pala estralejou de novo e Langdon sentiu o corpo deslizar lateralmente. Não muito. Mas alguma coisa! Olhou outra vez para baixo, para a sinuosa serpente de escuridão. Encontrava-se à sua direita, mas ele estava ainda bastante alto. Teria esperado demasiado? Puxou com todas as suas forças e aceitou de algum modo que estava nas mãos de Deus. Concentrou-se na parte mais larga da serpente e... pela primeira vez na sua vida, rezou a pedir um milagre.

ANJOS E DEMÓNIOS 525

O resto foi uma mancha de confusão. A escuridão a subir ao encontro dele... os gestos reflexos do mer

gulho... o endireitar a espinha e esticar as pernas e os pés... o encher os pulmões de ar para proteger os órgãos internos... a gratidão por o sinuoso Tibre correr agitado... tornando as "suas águas espumejantes e cheias de bolhas de ar... três vezes menos duras do que águas paradas.

E então houve o impacte... e a escuridão.

Fora o ruído trovejante da canópia a drapejar que desviara as atenções do grupo da bola de luz que enchia o céu. O céu de Roma estivera cheio de luzes naquela noite... Um helicóptero que subia como um foguete, uma enorme explosão, e agora aquele objecto que caía como uma pedra nas agitadas águas do Tibre, directamente em frente à costa da pequena ilha do rio, a Isola Tiberina.

Desde que servira de lugar de quarentena aos doentes de Roma durante a grande peste de 1656, a ilha ganhara fama de possuir propriedades curativas místicas. Por essa razão, fora lá construído, mais tarde, o Hospital Tiberina.

O corpo estava muito maltratado quando o puxaram para terra. O coração ainda batia, débilmente, o que todos acharam espantoso. Talvez fosse a reputação mítica da Isola Tiberina que mantinha aquele coração a bater? Minutos mais tarde, quando o homem começou a tossir e a recuperar lentamente a consciência, o grupo decidiu que a ilha devia de facto ser mágica.

CAPÍTULO CENTO E VINTE E SEIS

O cardeal Mortati sabia que não havia, em língua nenhuma, palavras que conseguissem descrever o mistério daquele momento. O silêncio da figura que dominava a Praça de São Pedro cantava mais alto do que qualquer coro de anjos.

Ao erguer os olhos para o camerlengo Ventresca, Mortati sentiu--se paralisado quando o seu coração e o seu espírito se confrontaram. A visão parecia real, tangível. E no entanto... como podia ser? Todos tinham visto o camerlengo entrar no helicóptero. Todos tinham testemunhado a bola de luz no céu. E agora, sem explicação possível, o camerlengo aparecia no telhado do terraço. Transportado pelos anjos? Reincarnado pela mão de Deus?

Isto é impossível...

O que o coração de Mortati mais desejava era acreditar, mas o seu espírito gritava a exigir uma razão. E no entanto, à sua volta, os cardeais olhavam para cima, vendo obviamente o que ele via, paralisados pelo espanto.

Era o camerlengo. Não havia dúvida. Mas parecia de certa maneira diferente. Divino. Como se tivesse sido purificado. Um espírito? Um homem? A carne branca de Cario Ventresca brilhava sob a luz dos projectores, etéreamente incorpórea.

Na praça havia choros, gritos, aplausos espontâneos. Um grupo de freiras caiu de joelhos, a entoar saeías. Uma pulsação começou a percorrer a enorme massa de gente. De repente, a praça inteira entoava o nome do camerlengo. Os cardeais, alguns deles com lágrimas a cor-rerem-lhes pelas faces, juntaram-se ao coro. Mortati olhou em redor e tentou compreender. Estará isto verdadeiramente a acontecer?

ANJOS E DEMÓNIOS 527

De pé no telhado do terraço da Basílica de São Pedro, o camer-lengo Cario Ventresca contemplou a multidão que, da praça, erguia os olhos para ele. Estava acordado ou a sonhar? Sentia-se transformado, sobrenatural. Perguntou a si mesmo se fora o seu corpo ou apenas o seu espírito que descera dos céus a flutuar até à macia escuridão dos Jardins do Vaticano... aterrando como um anjo silencioso nos relvados desertos, o seu pára-quedas negro oculto aos olhos da loucura pela enorme sombra da Basílica. Perguntou a si mesmo se fora o seu corpo ou o seu espírito que encontrara a força para subir a antiga Escadaria dos Medalhões até ao telhado do terraço, onde naquele momento se encontrava.

Sentia-se leve como um fantasma. Apesar de as pessoas lá em baixo cantarem em coro o seu nome, sa

bia que não era a ele que aclamavam. Aclamavam por alegria impulsiva, o mesmo tipo de alegria que ele sentia todos os dias da sua vida quando pensava no Todo-Poderoso. Estavam a experimentar aquilo que cada um deles sempre ansiara... a garantia de um Além... uma substanciação do poder do Criador.

O camerlengo Ventresca rezara toda a sua vida por aquele momento, e, mesmo assim, nem ele queria acreditar que Deus tivesse encontrado maneira de torná-lo manifesto. Queria gritar-lhes: O vosso Deus é um Deus vivo! Contemplai os milagres que vos rodeiam!

Ficou ali por um momento, amrdido e todavia sentindo mais do que alguma vez sentira. Finalmente, inclinou a cabeça e afastou-se da beira.

Agora sozinho, ajoelhou-se no telhado e rezou.

CAPITULO CENTO E VINTE E SETE

As imagens que o rodeavam eram confusas, esbatidas, entrando e saindo do seu campo de visão. Pouco a pouco, os olhos de Langdon começaram a focar. Doíam-lhe as pernas, e sentia-se como se tivesse sido atropelado por um camião. Estava deitado de lado, no chão. Havia qualquer coisa que cheirava horrivelmente mal, como bíHs. Continuava a ouvir o som incessante de água a correr. Já não lhe parecia calmo e pacífico. Havia também outros sons — pessoas a falar, à sua volta. Viu formas brancas, esbatidas. Porque estariam todos vestidos de branco? Decidiu que ou estava num asilo, ou no Paraíso. Pelo ardor que tinha na garganta, percebeu que não podia ser o Paraíso.

— Já acabou de vomitar — disse um homem, em italiano. — Vol-tem-no. — A voz era firme, profissional.

Sentiu mãos rolarem-no até ficar deitado de costas. Tinha a cabeça a andar à roda. Tentou sentar-se, mas mãos gentis obrigaram-no a continuar deitado. O corpo submeteu-se sem resistência. Sentiu então alguém revistar-lhe os bolsos, retirando objectos.

Logo a seguir, voltou a desmaiar.

O Dr. Jacobus não era um homem religioso; havia muito que a Medicina lhe extirpara da alma essa extravagância. E no entanto, os acontecimentos daquela noite, na Cidade do Vaticano, tinham submetido a uma rude prova a sua lógica sistemática. Agora caem corpos do céu?

Tacteou o pulso do homem que acabavam de tirar do Tibre. E decidiu que fora Deus quem pessoalmente o conduzira pela mão até um lugar onde podia ser salvo. O impacte na água deixara-o inconsciente, e não fora o facto de Jacobus e a sua equipa se encontrarem na mar-

ANJOS E DEMÓNIOS 529

gem a contemplar o espectáculo no céu, aquela alma caída teria inevitavelmente passado despercebida e sido arrastada pelas águas.

— E americano — disse uma enfermeira, revistando a carteira do homem, depois de o terem arrastado para terra firme.

Americano? Os Romanos costumavam dizer que os americanos se tinham tornado tão abundantes em Roma que os hambúrgueres deviam tornar-se o prato nacional italiano. Mas, americanos a cair do céu? O Dr. Jacobus apontou o feixe de luz de uma pequena lanterna de bolso aos olhos do homem, verificando a dilatação das pupilas.

— Eh! Consegue ouvir-me? Sabe onde está? O homem tinha perdido novamente os sentidos. O médico não fi

cou surpreendido. Aquele sujeito vomitara uma grande porção de água depois de ele lhe ter ministrado RCP.

— Si chiama Robert l^ngdon — anunciou a enfermeira, lendo o nome inscrito na carta de condução.

Todos os membros do grupo reunido no pequeno cais pararam o que estavam a fazer e ficaram a olhar uns para os outros.

— Impossibik! — declarou Jacobus. Robert Langdon era o homem da televisão, o professor americano que estivera a ajudar o Vaticano. O médico vira-o minutos antes, a entrar para um helicóptero na Praça de São Pedro e a voar em direcção ao céu. Jacobus e os outros tinham corrido para o cais para assistir à explosão da antimatéria — uma tremenda esfera de luz sem comparação com qualquer coisa que nenhum deles tivesse alguma vez visto. Como pode ser o mesmo homem?

— É ele! — exclamou a enfermeira, aHsando-lhe para trás os cabelos encharcados. — E estou a reconhecer o casaco de tweed!

De repente, estava alguém a gritar da porta do hospital. Era uma das pacientes. Gritava como uma louca, apontando o pequeno rádio a pilhas para o céu e louvando a Deus. Segundo parecia, o camerlen-go Ventresca acabava de aparecer miraculosamente no telhado do Vaticano.

O Dr. Jacobus decidiu que quando o seu turno terminasse, às oito da manhã, iria directamente para uma igreja.

As luzes por cima da cabeça de Langdon eram agora mais brilhantes, frias. Estava estendido numa espécie de marquesa. Detectou os

530 DAN BROWN

cheiros adstringentes de produtos químicos estranhos. Alguém acabava de lhe dar uma injecção, e tinham-lhe tirado toda a roupa.

Não, dganos não são, decidiu, no seu deHrio semiconsciente. Extraterrestres, talve^? Sim, já ouvira falar de coisas assim. Felizmente, aqueles seres não lhe fariam mal. Tudo o que queriam era o seu...

— Nem pensem nisso! — sentou-se muito direito, de olhos bem abertos.

— Attente! — gritou uma das criaturas, segurando-o. Uma etiqueta no peito da bata branca dizia «Dr. Jacobus». Parecia notavelmente humano.

— Pen... pensei... — gaguejou Langdon. — Calma, senhor Langdon. Está num hospital. A névoa começava a dissipar-se. Langdon sentiu uma onda de alí

vio. Detestava hospitais, mas preferia-os de longe a extraterrestres a re-tirarem-lhe os testículos.

— Sou o doutor Jacobus — continuou o homem, e explicou o que tinha acontecido. — Tem muita sorte em estar vivo.

Langdon não se sentia com sorte. Quase não conseguia destrinçar as suas próprias recordações... o helicóptero... o camerlengo. Doía-lhe o corpo todo. Deram-lhe um pouco de água, com que lavou a boca. Puseram-lhe uma gaze nova na palma da mão.

— Onde está a minha roupa? — perguntou. Estava a usar uma bata de papel.

Uma das enfermeiras apontou para um esfarrapado e encharcado monte de caqui e tweed em cima do balcão.

— Estavam ensopadas. Tivemos de cortá-las para lhas despir. Langdon olhou para o escortanhado casaco de tweed e franziu

a testa. — Tinha alguns Kleenex no bolso — acrescentou a enfermeira. Foi então que Langdon viu os restos de papiro agarrados ao forro

do casaco. A folha do Diagramma de Galileu. O último exemplar existente à face da Terra acabava de se dissolver. Ficou demasiado aturdido para saber como reagir. Limitou-se a olhar.

— Salvámos os seus objectos pessoais. — A enfermeira estava a mostrar-lhe uma caixa de plástico. — Carteira, câmara de vídeo e caneta. Sequei a câmara o melhor que pude.

— Não tenho nenhuma câmara de vídeo.

ANJOS E DEMÓNIOS 531

A enfermeira franziu a testa e mostrou-lhe a caixa. Langdon examinou o conteúdo. Juntamente com a sua carteira e caneta, viu uma minúscula câmara de vídeo Sony. Então lembrou-se. Era a que Köhler lhe dera, pedindo-lhe que a entregasse aos media.

— Encontrámo-la no seu bolso. Mas acho que vai precisar de uma nova. — A enfermeira levantou o visor de duas polegadas na parte de trás da máquina. — O visor rachou. — O rosto animou-se-lhe num sorriso. — O som ainda funciona, mas muito mal. — Levou o aparelho ao ouvido. — Toca sempre a mesma coisa. — Escutou por instantes, de testa franzida, e então entregou-a a Langdon. — Dois homens a discutir, parece-me.

Intrigado, Langdon pegou na câmara e levou-a ao ouvido. As vozes eram secas e metálicas, mas discerníveis. Uma próxima. A outra distante. Reconheceu ambas.

Ali sentado com a sua bata de papel, escutou a conversa, estupefacto. Apesar de não poder ver o que estava a acontecer, quando ouviu o chocante desfecho, ficou grato por lhe terem sido poupadas as imagens.

Meu Deus! Quando a máquina começou a passar a conversa pela segunda vez,

desde o início, Langdon baixou-a e ficou imóvel, em estupefacta confusão. A antimatéria... o helicóptero... Inesperadamente, o cérebro dele começou a funcionar.

Mas isso significa... Teve vontade de vomitar outra vez. Com uma crescente fúria de

desorientação e raiva, desceu da marquesa e ficou cambaleantemente de pé.

— Senhor Langdon! — gritou o médico, tentando impedi-lo. — Preciso de roupa — exigiu Langdon, sentindo a corrente de ar

nas costas, onde a bata era presa por simples atuhos. — Mas precisa de repousar. — Vou sair. Já. Preciso de roupa. — Mas... - J á ! Todos os presentes trocaram olhares de confusão. — Não temos roupas — disse o médico. — Talvez amanhã um

amigo seu possa trazer-lhe algumas.

532 DAN BROWN

Langdon inspirou fundo, como que a encher-se de paciência, e olhou para o Dr. Jacobus a direito nos olhos.

— Doutor Jacobus, vou sair daqui imediatamente. Preciso de roupa. Vou à Cidade do Vaticano. Não posso aparecer na Cidade do Vaticano com o traseiro à mostra. Fui suficientemente claro?

O Dr. Jacobus engoliu em seco. — Arranjem-lhe qualquer coisa para vestir — disse.

Quando saiu, a coxear, do Hospital Tiberina, Langdon sentia-se ligeiramente ridículo. Vestia um macacão azul de paramédico fechado à frente por um fecho de correr e adornado com etiquetas de pano que aparentemente descreviam as suas inúmeras competências.

A mulher que o acompanhava era para o pesado e vestia um macacão semelhante. O médico assegurara-lhe que ela o levaria até ao Vaticano em tempo recorde.

— Molto traffico — disse-lhe Langdon, recordando-lhe que a área à volta do Vaticano estava cheia de carros e de pessoas.

A mulher não pareceu preocupada. Apontou orgulhosamente para uma das suas próprias etiquetas.

— Sono conducente di ambulanf^a.

yi»íbulan^?lista.va. tudo explicado. Langdon sentiu que estava mesmo a precisar de um passeio de ambulância.

A mulher, caminhando à frente dele, dobrou a esquina do edifício. Numa saliência de rocha sobranceira à água havia uma placa de betão onde o veículo dela aguardava. Quando Langdon o viu, deteve-se bruscamente. Era um velho helicóptero de evacuação médica. As letras pintadas a vermelho na carlinga anunciavam: Aero-A.mbulan^a.

Langdon deixou pender a cabeça. A mulher sorriu. — Voar Cidade do Vaticano. Muito rápido.

CAPITULO CENTO E VINTE E OITO

O Colégio Cardinalício fervilhava de eléctrica efervescência enquanto regressava à Capela Sistina. Mortati, em contrapartida, sentia crescer dentro do peito uma confusão que parecia ameaçar levantá-lo do chão e arrastá-lo para longe. Acreditava nos antigos milagres das escrituras, mas aquuo que acabava de testemunhar com os seus próprios olhos era algo que não conseguia compreender. Ao cabo de uma vida inteira de devoção, setenta e nove anos, sabia que aqueles acontecimentos deviam incendiar nele uma piedosa exuberância... uma fé fervorosa e viva. E no entanto, tudo o que sentia era um crescente e espectral mal-estar. Havia qualquer coisa que não batia certo.

— Signore Mortati! — gritou um guarda suíço, correndo pelo corredor.

— Fomos ao telhado, como ordenou. O camerlengo é... de carne e osso! É um homem real! Não é um espírito! Está exactamente como o conhecíamos!

— Falou convosco? — Está de joelhos, a rezar! Tivemos medo de lhe tocar! Mortati estava completamente à deriva. — Diga-lhe... que os seus cardeais o esperam. — Signore, sendo um homem... — o guarda hesitou. — Que se passa? — O peito... está queimado. Não devíamos tratar-lhe das feridas?

Deve ter dores horríveis. Mortati ponderou a sugestão. Nada na sua vida ao serviço da Igreja

o preparara para uma situação daquelas. — É um homem, portanto sirvam-no como um homem. Dêem-

-Ihe banho. Tratem-lhe das feridas. Vistam-lhe roupas lavadas. Esperaremos por ele na Capela Sistina.

534 DAN BROWN

O guarda afastou-se a correr. Mortati dirigiu-se à capela. Os outros cardeais já lá se encontra

vam. Enquanto percorria o corredor, viu Vittoria Vetra sentada sozinha num banco junto ao início da Escadaria Real. Adivinhou a dor e a solidão que haviam nela e quis ir falar-Ihe, mas sabia que isso teria de esperar. Tinha trabalho a fazer... apesar de não conseguir imaginar sequer em que consistiria esse trabalho.

Entrou na capela. Houve uma excitação alvoroçada. Fechou a porta. Deus me ajude.

A Aero-Ambulan^a do Hospital Tiberina descreveu um círculo, fazendo a aproximação à Cidade do Vaticano pelo lado de trás, e Robert Langdon cerrou os dentes, jurando a si mesmo que aquela seria a última viagem de helicóptero da sua vida.

Depois de ter convencido a piloto de que as leis que regulamentavam o espaço aéreo do Vaticano eram, naquele momento, a menor das preocupações das autoridades eclesiásticas, guiou-a por cima da muralha traseira, fazendo-a pousar, sem ter sido detectada, no pequeno heliporto.

— Graí^íe — disse, descendo penosamente para o chão. Ela atirou--Ihe um beijo e levantou imediatamente voo, transpondo de novo a muralha e desaparecendo na noite.

Langdon expirou com força, tentando aclarar as ideias, na esperança de perceber bem o que se preparava para fazer. Com a câmara de vídeo na mão, subiu para o mesmo carrinho de golfe eléctrico que já usara horas antes. Não fora recarregado e o indicador da bateria mostrava que estava praticamente esgotada. Langdon conduziu sem luzes, para poupar energia.

7\lém disso, preferia que ninguém o visse chegar.

Do fundo da Capela Sistina, o cardeal Mortati observava, entontecido, o pandemonio que tinha à sua frente.

— Foi um milagre! — gritava um dos cardeais. — Obra de Deus! — Sim! — exclamaram outros. — Deus tornou manifesta a Sua

vontade!

ANJOS E DEMÓNIOS 535

— O camerlengo será o nosso Papa! — gritou outro. — Não é um dos elegíveis, mas Deus enviou-nos um sinal miraculoso!

— Sim! — concordou alguém. — As leis do Conclave foram feitas por homens. A vontade de Deus está perante nós! Convoco uma votação imediata!

— Uma votação? — perguntou Mortati, avançando para eles. — Julgo que esse é o meu papel.

Voltaram-se todos. Mortati sentiu-os estudarem-no. Pareciam distantes, desconfiados,

ofendidos pela sua sobriedade. Mortati ansiava sentir o coração arrebatado pela mesma exultação miraculosa que via nos rostos que o rodeavam. Mas não sentia. O que sentia era uma estranha dor na alma... uma tristeza dolorida que não sabia explicar. Jurara conduzir aquele processo com pureza de espírito, e aquela hesitação era algo que não podia ignorar.

— Meus amigos — disse, aproximando-se do altar. A voz não parecia a dele. — Suspeito de que me debaterei pelo resto dos meus dias com o significado do que testemunhei esta noite. E no entanto, aquilo que sugerem em relação ao camerlengo... não pode de modo algum ser a vontade de Deus.

A capela ficou silenciosa. — Como... como pode dizer uma coisa dessas? — perguntou final

mente um dos cardeais. — O camerlengo salvou a Igreja. Deus falou--Ihe directamente! O homem sobreviveu à própria morte! De que mais sinais precisamos?

— O camerlengo virá em breve juntar-se a nós — respondeu Mortati. — Aguardemos. Ouçamo-lo antes de votarmos. Pode haver uma explicação.

— Uma explicação? — Como vosso Grande Eleitor, jurei respeitar as leis do Conclave.

Sabem sem dúvida que, pela Lei Sagrada, o camerlengo não é elegível para o papado. Não é um cardeal. É um padre... um camareiro. Há ainda a questão da idade, que é inadequada. — Mortati sentíu que os olhares endureciam. — Ao autorizar uma votação, estaria a pedir-vos que indicásseis um homem que a lei do Vaticano proclama inelegível. Estaria a pedir a cada um de vós que violasse um voto sagrado.

536 DAN BRO\XTSI

— Mas aquilo que aconteceu aqui esta noite — tartamudeou alguém — transcende sem dúvida as nossas leis!

— Transcenderá? — perguntou Mortati, sem saber sequer de onde lhe vinham as palavras. — Será vontade de Deus que ponhamos de lado as leis da Igreja? Será vontade de Deus que abandonemos a razão e nos entreguemos a um frenesi?

— Mas não viu o que todos vimos? — argumentou furiosamente outro cardeal. — Como pode ter a pretensão de questionar um tal poder?

A voz de Mortati ecoou com uma ressonância que ele nunca lhe conhecera:

— Não estou a questionar o poder de Deus! Foi Deus que nos deu razão e discrição. E a Deus que servimos ao agir com prudência!

CAPITULO CENTO E VINTE E NOVE

No corredor fora da Capela Sistina, Vittoria Vetra sentava-se, entorpecida, num banco junto à base da Escadaria Real. Quando reparou na figura que acabava de entrar pela porta das traseiras, perguntou a si mesma se estaria a ver outro espírito. Estava cheio de ligaduras, coxeava, e vestia uma espécie de uniforme...

Pôs-se de pé, incapaz de acreditar na visão. — Ro... bert? Ele não respondeu. Avançou directamente para ela e estreitou-a

nos braços. Quando a beijou, foi um beijo longo, impulsivo, cheio de gratidão.

Vittoria sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. — ... Oh, Deus... oh, obrigada. Deus... Robert voltou a beijá-la, agora mais apaixonadamente, e ela aper-

tou-se contra ele, perdendo-se no abraço. Os dois corpos colaram-se, como se se conhecessem de há muitos anos. Vittoria esqueceu o medo e a dor. Fechou os olhos, imponderável na eternidade do momento.

— É a vontade de Deus! — gritava alguém, cuja voz ecoava na Capela Sistina. — Quem senão o escolhido poderia sobreviver àquela diabólica explosão?

— Eu — disse uma voz, vinda do fundo da capela. Mortati e os outros voltaram-se, contemplando, estupefactos, a mal

tratada figura humana que avançava pela coxia central. — Doutor... l^ngdon? Sem mais uma palavra, Langdon caminhou lentamente até à parte

da frente da capela. Vittoria Vetra entrou atrás dele, seguida por dois guardas que empurravam uma mesa de rodas sobre a qual estava um

538 DAN BROWN

televisor de grande dimensão. Langdon esperou enquanto os homens o ligavam e o colocavam de frente para os cardeais, após o que indicou aos guardas que saíssem; o que eles fizeram, fechando a porta.

Langdon, Vittoria e os cardeais estavam sozinhos. Robert ligou o cabo da câmara de vídeo ao televisor e premiu a tecla PLAY.

O ecrã iluminou-se. A cena que se materializou diante dos olhos dos cardeais mostra

va o gabinete do Papa. A gravação era tecnicamente defeituosa, como se fosse feita por uma câmara escondida. De um dos lados do ecrã, o camerlengo sentava-se na penumbra, diante de uma lareira acesa. Embora parecesse falar directamente para a câmara, depressa se tornou evidente que se dirigia a outra pessoa — a pessoa que estava a gravar as imagens. Langdon explicou que o vídeo fora feito por Maximilian Kohler, director do CERN. Apenas uma hora antes, Köhler gravara o seu encontro com o camerlengo usando uma minúscula câmara disfarçadamente montada por baixo do braço da cadeira de rodas.

Mortatí e os outros cardeais observavam, fascinados. Apesar de a conversa estar já em curso, Robert Langdon não se deu ao trabalho de rebobinât Aparentemente, o que queria que os cardeais vissem vinha a seguir...

— Leonardo Vetra mantinha um diário? — dizia o camerlengo. — Suponho que isso é uma boa notícia para o CERN. Se o diário contém a descrição do processo de criação de antimatéria...

— Não contém — interrompeu-o Köhler. — Ficará aliviado ao saber que esse processo morreu com Leonardo. Em contrapartida, o diário fala de outra coisa. De si.

O camerlengo pareceu perturbado. — Não compreendo. — Vem lá descrita uma reunião que Leonardo teve o mês passado.

Consigo.

O camerlengo hesitou, e então olhou para a porta. — O capitão Rocher não devia ter-lhe permitido o acesso sem me

consultar primeiro. Como entrou aqui? — O capitão sabe a verdade. Telefonei-lhe esta tarde e disse-lhe

o que o senhor fez.

ANJOS E DEMÓNIOS 539

— O que eu fiz? Seja qual for a história que lhe contou, o capitão Rocher é vim guarda suíço e demasiado fiel à sua Igreja para acreditar na palavra de um cientista cheio de azedume contra a do seu camerlengo.

— Na realidade, é demasiado yíí/para não acreditar. É tão fiel que mau grado as provas irrefutáveis de que um dos seus guardas traiu a Igreja, recusou acreditar. Passou o dia inteiro à procura de outra explicação.

— E o senhor deu-lha. — Disse-lhe a verdade. Apesar de chocante. — Se o capitão Rocher tivesse acreditado em si, ter-me-ia prendido. — Não. Não o permiti. Ofereci-lhe o meu silêncio em troca deste

encontro. O camerlengo soltou uma gargalhada. — Está a planear ^ í r chantagem sobre a Igreja com uma história

em que ninguém acreditará? — Não preciso de fazer chantagem. Quero simplesmente ouvir

a verdade dos seus lábios. Leonardo Vetra era meu amigo. O camerlengo não respondeu. Limitou-se a sustentar o olhar de

Köhler. — Ouça isto — continuou Köhler, duramente. — Há cerca de um

mês, Leonardo Vetra contactou-o a pedir uma audiência urgente com o Papa... uma audiência que o senhor concedeu porque o Papa era um admirador do trabalho dele e porque Leonardo lhe disse que se tratava de uma emergência.

O camerlengo voltou-se para a lareira. Continuou a não dizer palavra.

— Leonardo veio ao Vaticano no maior segredo. Estava a trair a confiança da filha ao vir aqui, uma coisa que o perturbava profundamente, mas sentia que não tinha alternativa. As suas pesquisas tinham-no deixado em conflito consigo mesmo e desesperadamente necessitado de orientação espiritual por parte da Igreja. Num encontro privado, revelou-lhe a si e ao Papa que fizera uma descoberta científica com profundas implicações religiosas. Provara que o Génesis era fisicamente possível e que dispondo de fontes de energia extremamente intensas... aquilo a que ele chamava Deus... se podia duplicar o momento da Criação.

Silêncio.

540 DAN BROWN

— O Papa ficou estupefacto — continuou Köhler. — Queria que Leonardo tornasse pública a sua descoberta. Pensou que poderia ajudar a estreitar o fosso entre ciência e religião... um dos sonhos de toda a sua vida. Então Leonardo expHcou-lhe a si os aspectos negativos... a razão por que precisava da orientação da Igreja. Aparentemente, a experiência dele com a Criação tinha, tal como a vossa Bíblia afirma, produzido tudo aos pares. Contrários. Luz e escuridão. O doutor Vetra descobriu que, além de criar matéria, tinha criado também antimatéria. Continuo?

O camerlengo permaneceu silencioso. Inclinou-se para a frente e espevitou as brasas.

— Depois de Leonardo Vetra ter vindo aqui — prosseguiu Köhler —, foi o senhor ao CERN, observar o trabalho dele. O diário diz que fez uma visita pessoal ao laboratório.

O camerlengo ergueu a cabeça. — O Papa não podia viajar sem atrair a atenção dos media — con

tinuou Köhler. — Por isso mandou-o a si. Leonardo mostrou-lhe, em segredo, o seu laboratório. Mostrou-lhe uma aniquilação de antimatéria... o Big Bang... o poder da Criação. Também lhe mostrou uma amostra de grandes dimensões que mantinha escondida como prova de que o seu processo permitia produzir antimatéria em grande escala. O senhor ficou deslumbrado. Regressou ao Vaticano para contar ao Papa o que tinha visto.

O camerlengo suspirou. — E o que é que o perturba? O facto de eu ter respeitado a confi

dencialidade que o doutor Vetra me pediu fingindo perante o mundo que nada sabia a respeito da antimatéria?

— Não! O que me perturba é o facto de Leonardo Vetra ter praticamente roy^ /o a existência do seu Deus e de o senhor o ter mandado assassinar!

O camerlengo voltou-se para ele. Mantinha o rosto totalmente inexpressivo.

O único som que se ouvia era o crepitar do fogo na lareira. Subitamente, a câmara tremeu, e o braço de Köhler apareceu na ima

gem. O director estava incHnado para a frente, aparentemente a tentar tirar qualquer coisa presa sob o assento da cadeira. Quando voltou a recostar-se, empunhava um revólver. O ângulo da câmara era arre-

ANJOS E DEMÓNIOS 541

piante... uma vista de trás... ao longo do braço estendido e da arma... que apontava directamente para o peito do camerlengo.

— Confesse os seus pecados, padre! — intimou Köhler. — Agora! O camerlengo pareceu sobressaltado. — Nunca sairá daqui vivo. — A morte será um alívio bem-vindo para a tortura que a sua fé

me obrigou a suportar desde criança. — Köhler segurava agora a arma com ambas as mãos. — Estou a oferecer-lhe uma escolha. Confesse os seus pecados... ou morre neste instante.

O camerlengo olhou para a porta. — O Rocher está lá fora — avisou Köhler. — Também ele está

mais do que preparado para matá-lo. — O capitão Rocher é um protector jurado da... — O capitão Rocher deixou-me entrar aqui. Armado. Está enojado

com as suas mentiras. Só tem uma opção. Confesse-se a mim. Preciso de ouvi-lo dos seus lábios.

O camerlengo hesitou. Köhler engatilhou a arma. — Duvida realmente de que sou capaz de matá-lo? — Seja o que for que eu lhe disser — disse o camerlengo —, um

homem como o senhor nunca o compreenderá. — Experimente. O camerlengo ficou imóvel por um instante, uma figura domina

dora à débu luz da lareira. Quando falou, as palavras que disse ecoaram com uma dignidade mais adequada a um glorioso relato de altruísmo do que a uma confissão.

— Desde o princípio dos tempos que esta Igreja luta contra os inimigos de Deus. Por vezes com palavras. Por vezes com espadas. E sempre sobrevivemos.

Enquanto falava, parecia irradiar convicção. — Mas os demónios do passado — continuou — eram demónios

de fogo e abominação... eram inimigos contra os quais podíamos lutar, inimigos que inspiravam medo. No entanto, Satanás é astuto. A medida que o tempo passava, deu ao seu diabólico aspecto um novo rosto... o rosto da razão pura. Transparente e insidiosa, mas igualmente desprovida de alma. — A voz cresceu-lhe, num súbito lampejo de fúria, uma transição quase maníaca. — Diga-me, doutor Köhler! Como

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pode a Igreja condenar aquilo que fa2 perfeito sentido aos olhos do nosso espírito? Como podemos atacar aquilo que se tornou a própria base da nossa sociedade? Sempre que a Igreja ergue a voz para avisar, vocês gritam, chamam-nos ignorantes. Paranóicos! Controladores! E assim cresce o vosso mal. Escondido sob um véu de hipócrita intelectualidade. E alastra como um cancro. Santificado pelos milagres da sua própria tecnologia. Endeusando-se a si mesmo! Até que nós nos convencemos de que vocês são a pura expressão da bondade. A ciência veio para nos salvar da doença, da fome e da dor! Contemplai a ciência... o novo Deus dos milagres infindáveis, omnipotente e benevolente! Ignorem as armas e o caos. Esqueçam a solidão e o perigo constante. A ciência chegou! — Pòs-se de pé e avançou para a arma. — Mas eu vi o rosto de Satanás a espreitar... vi o perigo...

— Que está a dizer? A ciência de Leonardo Vetra praticamente provou a existência do vosso Deus! Ele era vosso aliado!

— Aliado? A ciência e a religião não estão nisto juntas! Não procuramos o mesmo Deus, o senhor e eu! Quem é o seu Deus? Um Deus de protões, massas e cargas de partículas? Como é que o seu Deus inspira? Como é que o seu Deus chega ao coração do homem e lhe recorda que tem contas a prestar a um poder mais forte do que ele? Como é que lhe recorda que tem contas a dar aos seus semelhantes? Leonardo Vetra tinha perdido o rumo. O trabalho dele não era religioso, era sacrílego! O homem não pode meter a Criação de Deus num mbo de ensaio e andar por aí a agitá-lo para que o mundo o veja! Isso não glorifica Deus, diminui Deus!

O camerlengo arranhava agora o próprio corpo, a voz tinha uma intensidade mam'aca.

— E por isso mandou assassinar Leonardo Vetra! — Pela Igreja! Pela Humanidade! A loucura de tudo aquilo! O ho

mem não está preparado para deter nas mãos o poder da Criação. Será Deus um tubo de ensaio? Uma gota de líquido capaz de vaporizar uma cidade? Era preciso travá-lo! — Calou-se abruptamente. Olhou de novo para o fogo. Parecia estar a ponderar as suas opções.

As mãos de Köhler ergueram a arma. — Confessou. Não tem escapatória. O camerlengo teve um risinho triste.

ANJOS E DEMÓNIOS 543

— Não compreende? Confessar os nossos pecados í'a escapatória. — Olhou para a porta. — Quando Deus está do nosso lado, temos opções que um homem como o senhor nunca será capaz de compreender. — Com estas palavras ainda a pairarem no ar, levou as m ãos à gola da sotaina e, com um puxão violento, rasgou-a, desnudando o peito.

Köhler estremeceu, evidentemente sobressaltado. — Que está a fazer? O camerlengo não respondeu. Recuou até à lareira e retirou um

objecto de entre as brasas. — Pare! — exigiu Köhler, com a arma ainda apontada. — Que

está a fazer? Quando o camerlengo se voltou, tinha na mão um ferro ao rubro.

O Diamante llluminatus. De súbito, os olhos do homem tiveram um brilho de loucura.

— Tinha planeado fazer isto sozinho. — A voz fervia de feroz intensidade. — Mas agora... vejo que Deus teve uma razão para a sua presença aqui. E você a minha salvação.

Antes que Köhler pudesse reagir, o camerlengo fechou os olhos, arqueou as costas e cravou o ferro em brasa no centro do seu próprio peito. A carne silvou.

— Maña, Mãe Abençoada... Vê o teu filho!— gritou, em agonia. Köhler surgiu na imagem... equilibrando-se periclitantemente de pé,

a agitar a arma à sua frente. O camerlengo gritou mais alto, à beira do choque. Atirou o ferro

para os pés de Köhler. Depois tombou no chão, a contorcer-se de dores. O que aconteceu a seguir foi uma mancha confusa. Houve uma grande agitação no ecrã quando os guardas suíços en

traram na sala. Ouviu-se o estrépito de tiros. Köhler agarrou-se ao peito, atirado para trás pelos projécteis, a sangrar, caindo na cadeira de rodas.

— Não! — gritou Rocher, tentando impedir que os guardas disparassem contra Köhler.

O camerlengo, ainda a contorcer-se no chão, rolou sobre si mesmo e apontou freneticamente para Rocher.

— llluminatus! — Filho da mãe — gritou Rocher, correndo para ele. — Seu hi

pócrita fi...

544 DAN BROWN

Chartrand abateu-o com três tiros. Rocher deslizou pelo chão, morto.

Os guardas correram para o camerlengo ferido, juntando-se à volta dele. A objectiva apanhou o rosto confuso de Langdon, que ajoelhara junto da cadeira de rodas para examinar o ferro. Então, a imagem começara a agitar-se loucamente. Köhler recuperara a consciência e estava a soltar a pequena câmara do seu encaixe por baixo do braço da cadeira. Tentou então entregá-la a Langdon.

— En... entregue... — arquejou Köhler — ... en... tregüe... isto... aos m... media.

E o ecrã ficou branco.

CAPITULO CENTO E TRINTA

O camerlengo começou a sentir a névoa de maravilha e adrenalina dissipar-se. Enquanto os guardas suíços o ajudavam a descer a Escadaria Real em direcção à Capela Sistina, ouviu os cânticos na Praça de São Pedro, e soube que tinham sido movidas montanhas.

Gracie, Dio.

Rezara a pedir força, e Deus dera-lhe força. Nos momentos em que duvidara, Deus falara com ele. A. tua missão é sagrada, dissera-lhe Deus. Eu dar-te-ei força. Mesmo com a força de Deus, houvera alturas em que tivera medo, em que questionara a justeza do caminho escolhido.

Se não tu, perguntara Deus, então QUEM?

Se não agora, então QUANDO?

Se não desta maneira, então COMO?

Jesus, recordara-lhe Deus, salvara todos... salvara-os da sua própria apatia. Com dois gestos, abrira-lhes os olhos. Horror e Esperança. A crucifixão e a ressurreição. Com elas, mudara o mundo.

Isso acontecera, porém, milénios antes. O tempo corroerá o milagre. As pessoas tinham esquecido. Tinham-se voltado para falsos ídolos — tecno-divindades e milagres da mente. Então e os milagres do coração?

O camerlengo pedira muitas vezes a Deus que lhe mostrasse como conseguir que as pessoas voltassem a acreditar. Mas Deus nada dissera. Só no seu momento de mais negro desespero Deus fora ter com ele. Oh, o horror daquela noite!

Ainda se lembrava de estar caído no chão com a camisa de dormir rasgada, a esgatanhar a própria carne, a tentar purgar a alma da dor trazida pela sórdida verdade que acabava de descobrir. Não pode ser!, gritara. E no entanto, sabia que era. A mentira dilacerara-o como o fogo do inferno. O bispo que o acolhera, o homem que fora como um pai para

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ele, o clérigo que acompanhara passo-a-passo na ascensão até ao papado... era uma fraude. Um vulgar pecador. A mentir ao mundo a respeito de uma acção tão vil que o camerlengo duvidava que o próprio Deus pudesse perdoá-la. «O seu votoh, gritara o camerlengo ao Papa. «Quebrou o seu voto para com Deus! O senhor! Nunca o esperaria!!»

O Papa tentara explicar, mas o camerlengo não conseguira ouvi-lo. Fugira, tropeçando às cegas pelos corredores, vomitando, rasgando a própria pele, até que dera por si, ensanguentado e sozinho, estendido na terra fria diante do túmulo de São Pedro. Mãe de Jesus, que devofa^erí Fora nesse momento de dor e traição, quando jazia destruído na Nécropole, a pedir a Deus que o levasse deste mundo sem fé, que Deus viera.

A voz na cabeça dele ressoara como um imenso trovão. — Juraste servir o teu Deus?

— Sim! — gritara o camerlengo. — Morrerias pelo teu Deus?

— Sim! Leva-me agora! — Morrerias pela tua Igreja?

— Sim! Por favor, liberta-me! — Mas morrerias pela... Humanidade?

Fora no silêncio que se seguira que o camerlengo se sentira cair no abismo. Caíra a rodopiar, mais para longe, mais depressa, descontrolado. E, no entanto, sabia a resposta. Sempre a soubera.

— Sim! — gritara à loucura. — Morreria pelo homem! Como o teu filho, morreria por eles!

Horas mais tarde, estava ainda caído no chão, a tremer. Vira o rosto da mãe. Deus tem planos para ti, dizia ela. O camerlengo mergulhara mais fundo na loucura. Fora então que Deus voltara a falar. Desta vez com suêncio. Mas ele compreendera. Devolve-lhes a fé.

Se não eu... então quem?

Se não agora... então quando?

Enquanto os guardas destrancavam as portas da Capela Sistina, o camerlengo Cario Ventresca sentiu o poder correr-lhe nas veias... exactamente como quando era rapaz. Deus tinha-o escolhido. Havia muito tempo.

Seja feita a Sua vontade.

ANJOS E DEMÓNIOS 547

Sentiu-se renascido. Os guardas suíços tinham-lhe ligado o peito, tinham-no banhado, tinham-lhe vestido um hábito branco e fresco. E tinham-lhe também dado uma injecção de morfina, por causa da queimadura. Teria preferido que não lhe dessem anslgésicos. Jesus suportou a sua dor durante três dias antes de subir aos céus!]á sentia a droga embo-tar-lhe os sentidos... uma corrente profunda que o entontecia.

Quando entrou na capela, não ficou minimamente surpreendido ao ver todos os cardeais a olhar para ele com expressões de espanto. E Deus que os deslumhra, não eu, recordou a si mesmo. Mas dgora Deus age ATRAVÉS de mim. Enquanto avançava pela coxia, viu confusão em todos os rostos. E no entanto, em cada nova face por que passava, sentia algo mais nos olhos deles. O que era? Tentara imaginar como o receberiam naquela noite. Alegremente? Reverentemente? Tentara ler-Ihes os olhos, e não encontrara nenhuma destas emoções.

Foi então que olhou para o altar e viu Robert Langdon.

CAPITULO CENTO E TRINTA E UM

O camerlengo Cario Ventresca deteve-se na coxia central da Capela Sistina. Os cardeais estavam todos reunidos na parte dianteira da igreja, a olhar para ele. Robert Langdon estava diante do altar, junto de um televisor que repetia incessantemente imagens que reconhecia, mas que não era capaz de perceber como tinham aH aparecido. Ao lado de Langdon, Vittoria Vetra tinha uma expressão tensa.

Fechou os olhos por um instante, na esperança de que a morfina estivesse a provocar-lhe alucinações e de que quando voltasse a abri--los a cena fosse diferente. Mas não foi.

Eles sabiam. Estranhamente, não teve medo. Mostra-me o caminho, Vai. Dá-me as

palavras que me permitam fa^ê-los ver a Tua visão.

Deus, porém, não lhe respondeu. Vai, filemos juntos um caminho demasiado longo para falharmos agora.

Silêncio. Ules não compreendem o que Nós fi;(emos. Não soube de quem era a voz que lhe ecoou na mente, mas a men

sagem foi clara e crua. A verdade lihertar-te-á...

E foi assim que o camerlengo Cario Ventresca ergueu a cabeça e caminhou de costas bem direitas para o altar da Capela Sistina. Enquanto avançava para os cardeais, nem a luz difusa das velas conseguia suavizar a dureza dos olhares cravados nele. Explique-se, diziam aqueles rostos. Esclareça esta loucura. Diga-nos que os nossos medos não têm rar^o de ser!

A verdade, disse o camerlengo a si mesmo. Só a verdade. Havia demasiados segredos dentro daquelas paredes... um deles tão negro que o levara à loucura. Mas da loucura nascera a lu^

ANJOS E DEMÓNIOS 549

-— Se pudésseis dar a vossa alma para salvar milhões — disse, enquanto caminhava pela coxia —, acaso não o faríeis?

Os rostos limitaram-se a continuar a olhar fixamente para ele. Ninguém se mexeu. Ninguém falou. Lá de fora, da praça, chegava até ali o som dos cânticos de júbuo.

O camerlengo avançou para eles. — Qual é o maior pecado? Matar o nosso inimigo? Ou ficar de bra

ços cruzados enquanto o nosso grande amor é estrangulado? — Estão a cantar na Praça de São Pedro! Deteve-se por um momento e ergueu os olhos para o tecto da Sistina. O Deus, de Miguel Angelo, olhava para ele lá da abóbada envolta em sombras... e parecia satisfeito.

— Não podia ficar de braços cruzados — prosseguiu. Mas continuou a não ver, enquanto avançava, o mais pequeno lampejo de compreensão nos olhos de qualquer deles. Seria que não viam a radiante simplicidade das suas acções? Não viam como tinham sido necessárias?

Fora tão puro. Os llluminati. Ciência e Satanás como um só. Ressuscitar o antigo medo. E então esmagá-lo. Horror e Esperança. Fa^ê-los acreditar outra ve^

Naquela noite, o poder dos llluminati fora uma vez mais desencadeado... e com consequências gloriosas. A apatia evaporara-se. O medo percorrera o mundo como um raio, unindo as pessoas. E então a majestade de Deus vencera a escuridão.

Não podia ficar de braços cruzados!

A inspiração viera do próprio Deus... aparecendo-lhe como um farol na sua noite de agonia. Oh, este mundo sem fé! Alguém tem de libertá-los.

Tu. Se não tu, quem? Foste salvo por uma ra^ao. Mostra-lhes os velhos demónios.

Recorda-lhes os velhos medos. A apatia é morte. Sem escuridão não há lu^. Sem

mal não há bem. Ohriga-os a escolher. L»^ ou escuridão. Onde está o medo? Onde

estão os heróis? Se não agora, quando?

O camerlengo avançou pela coxia central direito ao grupo de cardeais. Sentiu-se como Moisés quando o mar de faixas e barretes escarlates se fendeu para lhe dar passagem. No altar, Robert Langdon desligou o televisor, pegou na mão de Vittoria e desceu o degrau. O facto de Robert Langdon ter sobrevivido, o camerlengo bem o sabia, só podia ter sido uma expressão da vontade de Deus. Deus salvara Robert Langdon. Carlo Ventresca perguntou a si mesmo porquê.

550 DAN BROWN

A VOZ que quebrou o silencio foi a da única mulher presente na Capela Sistina.

— Matou o meu pai? — perguntou ela, avançando para ele. Quando o camerlengo se voltou para Vittoria Vetra, não compreen

deu a expressão no rosto dela. Dor, sim. M.2iS... fúria? Como era possível que ela não percebesse? O génio do pai era mortal. Tinha de ser travado. Pelo bem da Humanidade.

— Ele fazia o trabalho de Deus — disse Vittoria. — O trabalho de Deus não se faz num laboratório. Faz-se nos co

rações. — O coração do meu pai era puro! E a investigação dele provou... — A investigação dele provou uma vez mais que o cérebro do ho

mem progride mais depressa do que a alma! — A voz soou-lhe mais dura do que pretendera. Baixou o tom. — Se um homem tão espirimal como o seu pai pôde criar uma arma como a que vimos esta noite, imagine o que um homem vulgar fará com essa tecnologia.

— Um homem como o senhor? O camerlengo inspirou fundo. Seria que ela não via? A moralidade

do homem não avançava à mesma velocidade que a ciência. A Humanidade não atingira o estádio de desenvolvimento espiritual suficiente para os poderes que possuía. Nunca criámos uma arma que não tenhamos usado! E, no entanto, ele sabia que a antimatéria não era nada — apenas mais uma arma num arsenal já imenso. O homem era já capaz de destruir. Aprendera a matar havia muito, muito tempo. £ o sangue da mãe dele chovera do tecto. O génio de Leonardo Vetra era perigoso por uma outra razão.

— Durante séculos — disse —, a Igreja manteve-se qviieta e calada enquanto a ciência destruía a religião pedaço a pedaço. Troçando dos milagres. Ensinando a mente a dominar o coração. Chamando à religião o ópio do povo. Denunciando Deus como uma ilusão, uma muleta a que se agarram os demasiado fracos para aceitar que a vida não tem qualquer significado. Não podia ficar de braços cruzados enquanto a ciência presumia ter dominado o poder do próprio Deus! Provas, dizeis? Sim, provas da ignorância da ciência! O que é que tem de errado admitir que existe qualquer coisa para lá da nossa compreensão? O dia em que a ciência substanciar Deus num laboratório será o dia em que as pessoas deixarão de precisar da fé!

ANJOS E DEMÓNIOS 551

— Quer dizer o dia em que deixarão de precisar da Igreja — desa-fiou-o Vittoria, avançando mais um passo. — A dúvida é tudo o que vos resta como forma de controlo. É a dúvida que leva as almas até vós. A nossa necessidade de saber que a vida tem um significado. A insegurança do homem e a necessidade de uma alma esclarecida que lhe garanta que faz parte de um grande plano. Mas a Igreja não é a única akna esclarecida que existe no mundo! Todos nós procuramos Deus de maneiras diferentes. De que é que têm medo? Que Deus se mostre noutro lugar que não estas paredes? Que as pessoas o encontrem nas suas próprias vidas e deixem para trás os vossos antiquados rituais? As religiões evoluem! A mente encontra respostas, o coração enfrenta novas verdades. O meu pai procurava o mesmo que procuram! Por um caminho paralelo! Porque é que não compreende isto? Deus não é uma autoridade omnipotente que nos vigia lá de cima, ameaçando-nos com o fogo do inferno se desobedecermos. Deus é a energia que flui pelas sinapses do nosso sistema nervoso e pelas cavidades dos nossos corações! Deus está em todas as coisas!

— Excepto na ciência — ripostou o camerlengo, e nos olhos dele havia apenas piedade. — A ciência, por definição, não possui akna. Divorciou-se do coração. Os rmlagres intelectuais como a antimatéria chegam a este mundo sem manual de instruções éticas. O que é por si só perigoso! Mas quando a ciência proclama os seus objectivos desprovidos de alma como um caminho de iluminação? Prometendo respostas para perguntas cuja beleza reside precisamente no facto de não terem resposta? — Abanou a cabeça. — Não.

Houve um momento de suêncio. O camerlengo sentiu-se de repente muito cansado enquanto enfrentava o olhar inflexível de Vittoria. Não era assim que devia ser. Será esta aprova final de Deus?

Foi Mortati quem quebrou o feitiço. — O^preferiti— disse, num murmúrio horrorizado. — Baggia e os

outros. Por favor, diga-me que não... O camerlengo voltou-se para ele, surpreendido pela dor que lhe

notava na voz. Mortati, entre todos, tinha a obrigação de compreender. Todos os dias os cabeçalhos da comunicação social falavam dos milagres da ciência. Há quanto tempo nem uma palavra sobre os da religião? Séculos? A religião precisava de um milagre! Qualquer coisa que acordasse um mundo adormecido. Que o trouxesse de volta ao cami-

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nho do bem. Que restaurasse a fé. E, de toda a maneira, os preferitl nío eram líderes, eram transformadores, liberais preparados para abraçar o mundo novo e abandonar as antigas maneiras! Aquela era a única maneira. Um novo líder. Jovem. Poderoso. Vibrante. Milagroso. Osprefe-riti serviam muito mais eficazmente a Igreja mortos do que alguma vez conseguiriam servi-la vivos. Horror e Esperança. Oferecer quatro almas para salvar milhões. O mundo recordá-los-ia para sempre como mártires. A Igreja ergueria gloriosos tributos aos seus nomes. Quantos milhares morreram para glória de Deus? Eles são apenas quatro.

— Os preferiti — repetiu Mortati. — Partilho a dor deles — defendeu-se o camerlengo, apontando

para o seu próprio peito. — E também eu teria morrido por Deus, mas o meu trabalho ainda mal começou. Estão a cantar na Praça de São Pedro!

Viu o horror nos olhos de Mortati e, mais uma vez, sentiu-se confuso. Seria da morfina? Mortati estava a olhar para ele como se pensasse que tinha matado aqueles homens com as suas próprias mãos. j\té isso teria feito, por Deus, pensou. Mas não fizera. As mortes tinham sido obra do Hashashin, o pagão enganado, levado a pensar que estava a fazer o trabalho dos llluminati. Sou Janus, dissera-lhe o camerlengo. Vou provar o meu poder. E provara. O ódio do Hashashin fizera dele um peão de Deus.

— Ouçam os cânticos — disse, sorrindo, sentindo que o seu coração exultava. — Nada une os corações como a presença do mal. Quei-me-se uma igreja e a comunidade erguer-se-á, entoando hinos de desafio enquanto a reconstrói. Vejam como eles se reagrupam esta noite. O medo trouxe-os para casa. Há que forjar demónios modernos para o homem moderno. A apatia é morte. Mostremos-lhes a face do mal... Satanistas escondidos no nosso seio, a dirigir os nossos governos, os nossos bancos, as nossas escolas, ameaçando obliterar a própria Casa de Deus com a sua ciência maldita. A depravação está profundamente enraizada. A Humanidade deve manter-se vigilante. Procurar o bem. Tornar-se o bem!

No suêncio que se seguiu, o camerlengo esperou que tivessem finalmente compreendido. Os llluminati não tinham ressurgido. Havia muito que os llluminati tinham desaparecido. Só o mito deles permanecia. O camerlengo ressuscitara-os para lhe servir de azorrague. Os que

ANJOS E DEMÓNIOS 553

conheciam a história da Irmandade tinham revivido a sua maldade. Os que a não conheciam, tinham ficado a saber, e tinham perguntado a si mesmos como podiam ter sido tão cegos. Os antigos demónios tinham sido ressuscitados para acordar um mundo indiferente.

— Mas... as marcas? — A voz de Mortati estava rígida de ultrajada incredulidade.

O camerlengo não respondeu. Mortati não tinha modo de o saber, mas o Vaticano confiscara os ferros havia mais de um século. Tinham permanecido guardados, esquecidos e cobertos de pó, no cofre papal, o relicário privado do pontífice, nos aposentos Bórgia. O cofre papal continha todas as coisas que a Igreja considerava demasiado perigosas para serem vistas fosse por quem fosse, excepto o Papa.

Porque tinham escondido as coisas que inspiravam medo? O medo trairia as pessoas para Deus!

A chave do cofre papal era passada de Papa para Papa. O camerlengo Cario Ventresca apoderara-se dela e avenmrara-se no interior do cofre; o mito do que aquele cofre continha era fascinante... incluindo os manuscritos originais dos catorze livros inéditos da Bíblia conhecidos como Apócrifos e a localização do túmulo da Virgem Maria. Além destas coisas, encontrara a Colecção llluminatus, todos os segredos que a Igreja descobrira depois de ter banido a Irmandade de Roma... o seu desprezível Caminho da Iluminação... a ardilosa traição do principal artista do Vaticano, Bernini... o modo como os grandes cientistas europeus troçavam da religião reunindo-se secretamente no castelo de Sant'Angelo, propriedade do Vaticano. A colecção incluía o cofre pentagonal que continha os ferros, um deles o mítico Diamante llluminatus. Esta era a parte da história do Vaticano que os antigos preferiam ver esquecida. Ele, no entanto, discordara.

— Mas a antimatéria... — perguntou Vittoria. — Correu o risco de destruir o Vaticano!

— Não existe risco quando Deus está connosco — respondeu o camerlengo. — Esta é a causa d'Ele.

— Está louco! — acusou ela. — Foram salvos milhões. — Morreram pessoas! — Salvaram-se almas. — Diga isso ao meu pai e a Max Köhler!

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— A arrogância do CERN tinha de ser denunciada. Uma gotícula de líquido capaz de vaporizar tudo num raio de oitocentos metros? E cha-ma-me louco a mim'^— O camerlengo sentiu a raiva crescer-lhe no peito. Pensariam acaso que era uma tarefa fácu? — São aqueles que acreditam que Deus escolhe pata os submeter às mais duras provas! Deus pediu a Abraão que sacrificasse o filho! Deus ordenou a Jesus Cristo que suportasse a crucifixão! Por isso trazemos o símbolo do crucifixo sempre diante dos nossos olhos... sangrento, doloroso, agonizante... p;3ra nos cordar o poder do mal! Para manter os nossos corações vigilantes! i-s cicatrizes no corpo de Jesus são recordações vivas dos poderes da escuridão! As minhas cicatrizes são recordações vivas! O mal vive, mas o poder de Deus prevalecerá!

Os gritos dele ecoaram nas paredes da Capela Sistina, e então desceu sobre todos um profundo silêncio. O tempo pareceu parar. O /w^o Finaláe. Miguel Angelo erguia-se ominosamente atrás do louco... Jesus a condenar os pecadores ao inferno. Os olhos de Mortati encheram-se de lágrimas.

— O que foi que fez. Cario? — perguntou o velho cardeal, num murmúrio. Fechou os olhos, e as lágrimas caíram. — Sua Santidade?

Um suspiro colectivo de dor ergueu-se do grupo de cardeais, como se todos eles tivessem esquecido, até àquele momento, o que acontecera. O Papa. Envenenado.

— Um vil mentiroso — disse o camerlengo. Mortati parecia destroçado. — Que diz? Era um homem honesto! Ele... amava-o. Cario. — E eu amava-o a ele. — Oh, como o amava! Mas a mentira! A que

bra dos votos feitos a Deus! Sabia que eles não compreendiam naquele momento, mas haviam

de compreender. Quando lhes dissesse, haviam de ver! Sua Santidade fora o mais torpe mentiroso que a Igreja alguma vez conhecera. Ainda recordava aquela terrível noite. Acabava de regressar da viagem ao CERN com a notícia do Génesis de Vetra e do terrível poder da antimatéria. Tinha a certeza de que o Papa veria os perigos, mas o Santo Padre vira apenas esperança na descoberta. Chegara a sugerir que o Vaticano finançasse o trabalho de Leonardo Vetra, como um gesto de boa vontade para com uma investigação científica de base espirimal.

ANJOS E DEMÓNIOS 555

loucura! A Igreja a investir numa pesquisa que ameaçava torná-la obsoleta? Num trabalho que gerava armas de destruição maáça? A bomba que lhe matara a mãe...

— Mas... não pode! — exclamara o camerlengo. — Tenho uma grande dívida para com a ciência — responde

ra o Papa. — Algo que escondi durante toda a minha vida. A ciência trouxe-me uma dádiva quando eu era jovem. Uma dádiva que nunca esqueci.

— Não compreendo. Que pode a ciência oferecer a um homem de Deus}

— É complicado — dissera o Papa. — Vou precisar de tempo para te fazer compreender. Mas, primeiro, há um simples facto a meu respeito que precisas de saber. Mantive o segredo todos estes anos. Julgo que é tempo de te contar.

E então o Papa contara-lhe a espantosa verdade.

CAPITULO CENTO E TRINTA E DOIS

O camerlengo jazia, com o corpo enrolado numa bola, no chão de terra diante do túmulo de São Pedro. Fazia muito frio na Necrópole, mas isso ajudava a coagular o sangue das feridas com que dilacerara a própria carne. Sua Santidade não o encontraria ali. Ninguém o encontraria aH.

— É complicado. — A voz do Papa ecoava-lhe na cabeça. — Preciso de tempo para te fazer compreender...

O camerlengo sabia, porém, que não havia na eternidade tempo suficiente para que ele compreendesse.

Mentiroso! Acreditei em si! DEUS acreditou em si! Com uma simples frase, o Papa fizera desabar o mundo de Cario

Ventresca. Tudo aquilo em que acreditara a respeito do seu mentor se estilhaçara como uma frágil construção de vidro. A verdade trespassa-ra-lhe o peito com tal violência que saíra a recuar do gabinete do Papa e vomitara no corredor.

— Espera! — gritara o Papa, correndo atrás dele. — Deixa-me explicar!

Mas ele fugira. Como podia o Santo Padre esperar que aguentasse mais? Oh, a sórdida depravação de tudo aquilo! E se mais alguém descobrisse? O mal que isso faria à Igreja? Não teriam os votos sagrados do Papa o mínimo valor?

A loucura chegara depressa, gritando-lhe aos ouvidos, até que acordara junto do túmulo de São Pedro. Fora então que Deus descera até ele, cheio de terrível ira.

o TEU DEUS É UM DEUS VINGATIVO!

Juntos, fizeram planos. Juntos, salvariam a Igreja. Juntos, devolveriam a fé a um mundo descrente. O mal estava por todo o lado. E, apesar disso, o mundo tornara-se indiferente! Juntos, revelariam a escuri-

ANJOS E DEMÓNIOS 557

dão para que o mundo inteiro a visse... e Deus prevaleceria! Horror e Esperança. E então o mundo acreditaria!

A primeira prova de Deus fora menos horrível do que o camer-lengo imaginara. Entrar no quarto do Papa... encher a seringa... tapar a boca do mentiroso enquanto o corpo se contorcia nos espasmos da morte. A luz da Lua que entrava pelas janelas, vira nos olhos do Papa que havia qualquer coisa que ele queria dizer.

Mas era demasiado tarde. O Papa já dissera o suficiente.

CAPITULO CENTO E TRINTA E TRES

— O Papa gerou um filho. Na Capela Sistina, o camerlengo permanecia de pé e imtncl en

quanto falava. Cinco palavras solitárias de surpreendente revelação. Todo o grupo de cardeais pareceu recuar em simultâneo. Os olhares acusadores transformaram-se em expressões de horror, como se todos rezassem para que o camerlengo estivesse a mentir.

O Papa gerou um filho. Langdon sentiu a onda de choque atingi-lo como aos outros. A mão

de Vittoria, agarrada à dele, estremeceu. Aturdido pela infinidade de perguntas sem resposta que lhe enchiam a cabeça, tentou desesperadamente encontrar uin centro de gravidade.

As palavras do camerlengo pareceram ficar eternamente suspensas no ar por cima deles. Até nos olhos tresloucados de Cario Yentresca, Langdon viu pura convicção. Queria libertar-se daquilo, dizer a si mesmo que estava perdido no meio de um qualquer grotesco pesadelo, que não tardaria a acordar num mundo que faria sentido.

— Isso tem de ser mentira! — gritou um dos cardeais. — Recuso-me a acreditar numa coisa dessas! — protestou outro.

— Sua Santidade era o homem mais devoto que conheci! Foi Mortati quem falou a seguir, numa voz quebrada pelo desgosto. — Meus amigos, o que o camerlengo diz é verdade. — Todos os

cardeais presentes na capela se voltaram, como se Mortati acabasse de gritar uma obscenidade. — O Papa gerou efectivamente um filho.

Os cardeais empalideceram de horror. O camerlengo parecia estupefacto. — Sabia? l\i?iS... como? Mortati suspirou. — Quando Sua Santidade foi eleita... fui eu o Advogado do Diabo.

ANJOSE DEMONIOS 559

Um murmúrio de espanto percorreu o grupo. Langdon compreendeu. Aquilo significava que a informação era

verdadeira. O famoso «Advogado do Diabo» era a autoridade máxima no que respeitava a informações escandalosas no interior do Vaticano. Um Papa com rabos-de-palha era perigoso, e, antes de cada eleição, a vida dos principais candidatos era passada a pente-fino por um cardeal, o Advogado do Diabo, responsável por desenterrar razões que impedissem qualquer deles de subir ao trono de São Pedro. O Advogado do Diabo era antecipadamente escolhido pelo Papa reinante, na previsão da sua própria morte, e supostamente nunca, em circunstância alguma, revelaria a sua identidade.

— Fui eu o Advogado do Diabo — repetiu Mortati. — E por isso que sei.

Descaíram queixos atónitos. Pelos vistos, aquela era a noite em que todas as regras estavam a ser atiradas janela fora.

O camerlengo sentiu o coração encher-se de raiva. — E não disse a ninguém'^ — Confrontei Sua Santidade — respondeu Mortati. — E ele con

fessou. Explicou todo o caso e pediu-me apenas que me deixasse guiar pelo coração ao decidir sobre revelar ou não o seu segredo.

— E o seu coração disse-lhe que enterrasse a informação? — Ele era o principal candidato ao papado. As pessoas amavam-

-no. C) escândalo teria ferido profundamente a Igreja. — Mas ele gerou um filho! Quebrou o voto sagrado de castidade!

— O camerlengo estava a gritar. Ouvia a voz da mãe ressoar-lhe na cabeça. Uma promessa feita a Deus é a mais importante de todas as promessas. Nunca quebres uma promessa feita a Deus. — O Papa quebrou o seu voto!

Mortati parecia cada vez mais angustiado. — Cario, o amor dele... foi casto. Não quebrou nenhum voto. Não

lho explicou? — Explicar o quê? — O camerlengo reviu-se a sair a correr do ga

binete enquanto o Papa lhe gritava. Deixa-me explicar! Lentamente, tristemente, Mortati contou a história. Muitos anos

antes, o Papa, quando era ainda um simples padre, apaixonara-se por uma jovem freira. Ambos tinham feito voto de castidade e nenhum dos

560 DAN BROWN

dois considerou sequer a hipótese de quebrar a promessa feita a Deus. No entanto, à medida que o amor entre eles se tornava cada vez mais forte, embora conseguissem resistir às tentações da carne, ambos descobriram que desejavam ardentemente algo que nunca tinham esperado: participar no milagre último da criação divina. Um filho. Um filho deles. Este desejo, sobretudo nela, tornara-se avassalador. Mesmo assim. Deus estava em primeiro lugar. Um ano mais tarde, quando a frustração atingira mVeis quase insuportáveis, ela procurara-o num torvelinho de excitação. Acabava de 1er a respeito de um novo milagre da ciência — um processo graças ao qual duas pessoas, sem chegarem a ter relações carnais, podiam ter um filho. Sentira que aquilo era um sinal de Deus. O padre vira a felicidade nos olhos dela, e acedera. Passado um ano, ela tivera um filho graças ao milagre da inseminação artificial...

— Isso não pode... ser verdade — disse o camerlengo, em pânico, na esperança de que fosse a morfina a alterar-lhe os sentidos. Estava com certeza a ouvir coisas.

Mortati tinha agora lágrimas nos olhos. — Cario, foi por esta razão que Sua Santidade sempre mostrou

tanto apreço pela ciência. Sentia que estava em dívida para com ela. A ciência permitira-Uie experimentar a alegria da paternidade sem ter de quebrar o seu voto de castidade. Disse-me que lamentava apenas uma coisa... que os seus altos cargos na Igreja o impedissem de estar com a mulher que amava e ver crescer o filho de ambos.

O camerlengo Cario Ventresca sentiu que a loucura voltava a invadi-lo. Queria rasgar a própria carne. Como podia eu saber?

— O Papa não cometeu qualquer pecado, Cario. Era casto. — Mas... — O cérebro angustiado do camerlengo procurava de

sesperadamente uma razão. — Pense nos perigos... do que ele fez. — A voz enfraqueceu-lhe. — E se a prostituta o denunciasse? Ou, não o permita Deus, o filho aparecesse? Imagine a vergonha para a Igreja!

— O ñüiojá apareceu — disse Mortati, e a voz tremeu-lhe. O tempo parou. — Cario... — Mortati como que se abateu sobre si mesmo. — É você

o filho de Sua Santidade. Naquele instante, o camerlengo sentiu a chama da fé esmorecer-lhe

no coração. Ficou de pé junto do altar, a tremer, enquadrado pelo gi-

ANJOS E DEMÓNIOS 561

giLtitesco Jui\o Fina/de Miguel Angelo. Sabia que acabava de ter um vislumbre do inferno. Abriu a boca para falar, mas os lábios agitaram-se sem emitirem qualquer som.

— Não compreende? — Mortati quase sufocava. — Por isso Sua Santidade foi procurá-lo naquele hospital de Palermo, quando o Cario era um rapazinho. Por isso o acolheu e o criou. A freira que ele amava era Maria... a sua mãe. Abandonou o hábito para poder criá-lo, mas nunca esqueceu a sua devoção a Deus. Quando o Papa soube que ela tinha morrido numa explosão e que o Cario, seu filho, sobrevivera miraculosamente... jurou a Deus que nunca mais voltaria a deixá-lo sozinho. Cario, os seus pais eram ambos virgens. Cumpriram os votos feitos a Deus. E conseguiram mesmo assim arranjar maneira de trazê-lo ao mundo. O Cario era o filho miraculoso que tanto desejavam.

O camerlengo tapou os ouvidos, a tentar bloquear as palavras. Ficou paralisado, junto ao altar. Então, sentindo que lhe arrancavam o mundo de baixo dos pés, caiu violentamente de joelhos e soltou um longo uivo de agonia.

Segundos. Minutos. Horas. O tempo parecia ter perdido todo o significado dentro das quatro

paredes da capela. Vittoria sentiu que se libertava lentamente da paralisia que parecia tê-los dominado a todos. Largou a mão de Langdon e começou a avançar por entre a multidão de cardeais. A porta da capela pareceu-lhe a quilómetros de distância, e tinha a sensação de caminhar debaixo de água... em câmara lenta.

Por onde passava, o seu movimento como que arrancava outros ao transe. Alguns cardeais começaram a rezar. Outros choravam. Outros voltaram-se para vê-la afastar-se, os seus rostos vazios a adquirirem lentamente uma expressão de assustada premonição enquanto ela avançava para a porta. Tinha quase atravessado o grupo inteiro quando uma mão lhe agarrou o braço. Sem força, mas com determinação. Vittoria voltou-se e ficou frente-a-frente com um mirrado cardeal. O rosto dele estava ensombrecido pelo medo.

— Não — murmurou o homem. — Não pode. Vittoria olhou para ele, incrédula. Outro cardeal chegou junto dela.

562 DAN BROWN

— Temos de pensar antes de agir. E outro. — A dor que isto pode causar... Vittoria estava cercada. Olhou para todos eles, espantada. — Mas o que aqui aconteceu hoje, esta noite... certamente o mun

do tem direito a saber a verdade. — O meu coração concorda — disse o primeiro cardeal, ainda

a agarrar-lhe o braço. — E no entanto... é um caminho sem regresso. Temos de ter em conta as esperanças destroçadas. O cinismo. Como poderiam as pessoas voltar a confiar em nós?

Subitamente, havia mais cardeais a barrar-lhe o caminho. Uma parede de hábitos negros erguia-se diante dela.

— Ouça as pessoas na praça — disse um deles. — O que vai uma coisa destas fazer àqueles corações? Temos de ser prudentes.

— Precisamos de tempo para pensar e rezar — acrescentou outro. — Temos de ver as implicações. As consequências...

— Ele matou o meu pai! — exclamou Vittoria. — Matou o próprio pai!

— Estou certo de que pagará pelos seus pecados — disse tristemente o cardeal que lhe agarrava o braço.

Também Vittoria estava certa disso, e tencionava garantir que aconteceria. Tentou continuar a avançar para a porta, mas os cardeais cerraram fileiras, de rostos assustados.

— Que vão fazer? — perguntou ela. — Matar-me? Os velhos cardeais empalideceram, e Vittoria arrependeu-se no

mesmo instante do que dissera. Via que eram homens bons. Todos eles tinham já visto violência mais do que suficiente naquela noite. Não representavam qualquer ameaça. Estavam apenas encurralados. Assustados. A tentar orientar-se.

— Quero... — disse o primeiro cardeal — ... fazer o que está certo. — Então deixem-na sair — declarou uma voz profunda atrás de

Vittoria. As palavras foram calmas, mas resolutas. Robert Langdon chegou junto dela e pegou-lhe numa mão. — Eu e a doutora Vetra vamos sair desta capela. Agora mesmo.

Lentamente, hesitantes, os cardeais começaram a recuar. — Esperem! — Era Mortati. Avançava para eles pela coxia central,

deixando o camerlengo sozinho e derrotado no altar. O cardeal parecia

ANJOS E DEMÓNIOS 563

repentinamente muito mais velho, cansado para lá do imaginável, cada um dos seus gestos pesado de vergonha. Chegou, pousando uma mão no ombro de Langdon e outra no de Vittoria, que sentiu a sinceridade do contacto. Os olhos de Mortati estavam cheios de lágrimas.

— Claro que podem ir quando quiserem. Claro. — Fez uma pausa, e a dor que o atormentava era quase tangível. — Só peço... — Olhou para baixo durante um longo momento, e depois de novo para Vittoria e Langdon. — Deixem-me ser eu a fazê-lo. Vou lá fora à praça e digo--Ihes. Conto tudo. Não sei como... mas hei-de encontrar uma maneira. A confissão da Igreja deve vir de dentro. Temos de ser nós a denunciar os nossos fracassos. — Voltou-se e olhou tristemente para o altar. — Cario, colocou esta Igreja numa situação desastrosa.

Olhou em redor. O altar estava deserto. Houve um restolhar de roupas na coxia lateral, e a porta fechou-se

com um estalido. O camerlengo tinha desaparecido.

CAPÍTULO CENTO E TRINTA E QUATRO

O camerlengo Ventresca caminhava pelo corredor, afastando-se da Capela Sistina, e os seus passos faziam ondular o hábito branco que vestia. Os guardas suíços tinham ficado surpreendidos quando ele saíra sozinho e lhes dissera que precisava de alguns instantes de solidão. Mas obedeceram, deixando-o passar.

Agora, tendo dobrado a esquina e já fora das vistas deles. Cario sentiu um torvelinho de emoções como nunca julgara possível na experiência humana. Envenenara o homem a quem chamava Santo Padre, o homem que o tratava por «meu filho». Sempre acreditara que as palavras «pai» e «filho» eram expressões da tradição religiosa, mas agora sabia a diabólica verdade: eram literais.

Como naquela fatídica noite semanas antes, sentiu-se rodopiar loucamente pela escuridão.

Chovia na manhã em que o pessoal do Vaticano bateu à porta do camerlengo, arrancando-o a um sono agitado. O Santo Padre, disseram, não respondia à porta nem ao telefone. Estavam assustados. O camerlengo era o único que podia entrar nos aposentos do Papa sem se fazer anunciar.

Entrou sozinho, e encontrou o pontífice como o deixara na noite anterior, contorcido e morto na cama. O rosto de Sua Santidade parecia o de Satanás. Tinha a língua negra como a morte. O diabo em pessoa dormira na cama do Papa.

Não sentiu qualquer remorso. Deus tinha falado. Era preciso que ninguém visse a traição... por enquanto. Isso viria

mais tarde. Anunciou a terrível notícia: Sua Santidade falecera, vítima de uma

síncope. Começou então a tratar dos preparativos para o Conclave.

ANJOS E DEMÓNIOS 565

A voz de Maria murmurava-lhe ao ouvido: — Nunca quebres uma promessa feita a Deus. — Ouço-te, Mãe — respondeu. — É um mundo sem fé. É preciso

trazê-los de volta aos caminhos do bem. Horror e Esperança. É a única maneira.

— Sim — disse ela. — Se não tu... então quem? Quem guiará a Igreja para fora da escuridão?

Com certeza não um dos preferíti. Esses eram velhos... mortos que ainda andavam... liberais que seguiriam o caminho traçado pelo Papa, apoiando a ciência em sua memória, procurando seguidores no mundo moderno, esquecendo as antigas maneiras. Velhos inapelavelmente ultrapassados, a fingir, patéticos, que não eram. Fracassariam, claro. A força da Igreja estava na tradição, não na mudança. O mundo inteiro era transitório. A Igreja não precisava de mudar, precisava apenas de recordar ao mundo que era relevante! O mal vive! Deus prevalecerá!

A Igreja precisava de um h'der. Os velhos não eram carismáticos! Jesus inspirava. Jovem, vibrante, poderoso... MIRACULOSO.

— Saboreiem o vosso chá — disse o camerlengo aos quntto preferia, deixando-os sozinhos na biblioteca privada do Papa antes do Conclave. — O vosso guia chegará em breve.

Os preferiti agradeceram-lhe, excitados por lhes ter sido oferecida ui ia oportunidade de conhecer o famoso Passetto. Extremamente invulgar! Antes de deixá-los, o camerlengo destrancara a passagem secreta e, exactamente à hora marcada, a porta abriu-se e um padre de ar estrangeiro, empunhando um archote, convidou-os a entrar.

Nunca mais voltaram a sair. Eles serão o Horror. Eu serei a Esperança.

Não... eu sou o horror.

O camerlengo cambaleava agora pela escuridão da Basílica de São Pedro. Sem que soubesse explicar como, no meio da loucura e da cul-

566 DAN BRC:)\X^

pa, no meio das imagens do pai, no meio da dor e da revelação, no

meio até da influencia da morfina... encontrara uma brilhante clarivi

dência. Um sentido de destino. Conheço o meu propósito, pensou, maravi

lhado pela lucidez do pensamento.

Desde o início, nada correra exactamente como dnha planeado. Ti

nham surgido obstáculos imprevistos, mas ele adaptara-se, fazendo ou

sados ajustamentos. Mesmo assim, nunca esperara que a noite acabas

se daquele modo, ainda que agora visse a majestade predeterminada

de tudo aquilo.

Não podia acabar de outra maneira.

Oh , o horror que sentira na Capela Sistina, ao pensar que Deus

o tinha abandonado! Oh, as coisas que ele ordenou! Czit^i de joelhos, esma

gado pela dúvida, apurando o ouvido para ouvir a voz de Deus, mas

escutando apenas silêncio. Suplicara um sinal. Oientação. Ordens. Seria

aquela a vontade de Deus? A Igreja destruída pelo escândalo e pela abo

minaçào? Não! Fora a vontade de Deus que o levara a agir. Não fora?

E então vira-o. E m cima do altar. Um sinal, (x)municação di\ina

— qualquer coisa vulgar vista a uma luz extraordinária. O crucifixo.

Humilde, de madeira. Cristo na cruz. Naquele momento, tudo se tor

nara claro... Não estava sozinho. Nunca estaria sozinho.

Aquela era a Sua vontade... O Seu significado.

Deus sempre pedira grandes sacrifícios àqueles que mais ama\a.

Como pudera demorar tanto tempo a compreender? Seria demasiado

timorato? Demasiado humUde? Não fazia diferença. .Vgora até já com

preendia por que razão Robert Langdon fora saKo. Para trazer a \'er

dade. Para forçar aquele desfecho.

Era o único caminho para a salvação da lgre|a.

Senüu-se como que a flutuar enquanto descia para o Nicho dos

Pálios. A morfina corria-lhe loucamente nas veias, mas ele sabia que

Deus o guiava.

Ouviu, ao longe, o clamor confuso dos cardeais, que saíam da ca

pela a gritar ordens aos guardas suíços. Mas nunca o encontrariam.

Pelo menos, nunca o encontrariam a tempo.

Sentiu que estava a ser puxado... cada vez mais depressa... descen

do os degraus de acesso à área rebaixada onde brilhavam as noventa

e nove candeias. Deus fazia-o voltar a (^hão Sagrado. Avançou para

a grade que tapava a entrada da Necrópole. l'.ra na Necr(')pole que

ANJOS E DEMÓNIOS 567

aquela noite ia acabar. Na escuridão sagrada lá em baixo. Pegou numa candeia, preparando-se para descer.

Ao atravessar o Nicho, porém, deteve-se. Sentia que havia qualquer coisa que não estava bem. De que maneira iria aquilo servir Deus? Um fim solitário e silencioso? Jesus sofrera diante dos olhos do mundo inteiro. Aquilo não podia seguramente ser a vontade de Deus! Esforçou--se por ouvir a Voz Divina, mas ouviu apenas o zumbido entorpecedor da droga.

Cark. Era a mãe. Deus tem planos para ti. Confuso, continuou a avançar. Então, sem aviso, Deus chegou. O camerlengo deteve-se bruscamente e ficou a olhar. A luz das no

venta e nove candeias projectava-lhe a sombra na parede de mármore a seu lado. Gigantesca e temerosa. Uma forma enevoada rodeada por uma luz dourada. Com chamas a tremeluzir a toda a sua volta, parecia um anjo a subir ao céu. Por um instante, ergueu os braços à altura dos ombros e contemplou a sua própria imagem. Então voltou-se de novo para os degraus.

A intenção de Deus era clara.

Três minutos volvidos nos caóticos corredores à volta da Capela Sistina, ninguém conseguira ainda encontrar o camerlengo. Era como se o homem tivesse sido engolido pela noite. Mortati preparava-se para ordenar uma busca em grande escala à Cidade do Vaticano quando um rugido de júbilo se ergueu da Praça de São Pedro. A alegria espontânea da multidão era tumultuosa. Os cardeais trocaram olhares sobressaltados.

Mortati fechou os olhos. — Deus nos ajude. Pela segunda vez naquela noite, o Colégio Cardinalício saiu para

a Praça de São Pedro. Langdon e Vittoria foram arrastados pelo agitado grupo. 0% projectores e as câmaras dos media continuavam apontados para a Basílica. E ali, de pé na sagrada varanda papal, no centro exacto da grandiosa fachada, estava o camerlengo Cario Ventresca, de braços erguidos para o céu. Mesmo de longe, parecia a encarnação da pureza. L'ma imagem. Vestido de branco. Banhado em luz.

568 DAN BRONXTM

Na praça, a energia pareceu crescer como uma onda encapelada, e, repentinamente, a barreira da Guarda Suíça cedeu. A multidão correu para a Basílica numa eufórica torrente de humanidade. A vaga avançou — pessoas a chorar, a cantar, o?, flashes da imprensa a disparar. Pandemonio. Quando a maré de gente inundou o espaço fronteiro à Basílica, o caos aumentou, até parecer que nada seria capaz de lhe pôr fim.

E então alguma coisa o conseguiu. Lá em cima, na varanda, o camerlengo fez um pequeníssimo gesto.

Juntou as mãos diante do peito. Então, inclinou a cabeça numa prece silenciosa. Uma a uma, e depois às dúzias, e depois às centenas, as pessoas inclinaram a cabeça e rezaram com ele.

A praça ficou silenciosa, como que sob um feitiço.

Na mente de Cario Ventresca, agora rodopiante e longínqua, as orações eram uma torrente de esperanças e lamentos... perdoa-me, l'ai... Mãe... cheia de graça... tu és a Igreja... possas compreender este sacrifiáo do teu

único filho.

Oh, meu Jesus... salva-nos do fogo do infirno... leva todas as almas para o céu,

especialmente aquelas que maispreásam da tua misericórdia...

Não abriu os olhos para ver a multidão lá em baixo, as câmaras da televisão, o mundo inteiro a assistir. Sentia-o na alma. Mesmo na sua angústia, a unidade do momento era inebriante. Era como se uma rede de ligações tivesse alastrado em todas as direcções à volta do globo. Diante de televisores, em casa, nos carros, o mundo rezava como um só homem. Como sinapses de um coração imenso a flamejar ao mesmo tempo, as pessoas voltavam-se para Deus, em dúzias de línguas, em centenas de países. As palavras que murmuravam eram recém-nascidas para elas, e todavia tão familiares como as suas próprias vozes... verdades antigas... gravadas na alma.

A consonância pareceu eternizar-se. Então, o som de cânticos de alegria que voltavam a elevar-se que

brou o silêncio. O camerlengo soube que chegara o momento. Santíssima Trindade, ofereço-Te o mais precioso Corpo, Sangue, Alma... como

reparação pelas ofinsas, sacrilégios e indiferenças...

ANJOS E DEMÓNIOS 569

Já sentia a dor física apoderar-se dele. Alastrava-lhe pela pele como uma praga, fazendo-o querer arranhar a própria carne como fizera semanas antes, quando Deus o visitara pela primeira vez. Não esqueças a dor que Jesus suportou. Sentia o fumo na garganta. Nem sequer a morfina conseguia atenuar aquela dor.

O meu trabalho aqui está feito.

O Horror era seu. A Esperança era deles. No Nicho dos Pálios, o camerlengo obedecera à vontade de Deus

e ungira o corpo. Os cabelos. A face. O hábito de Hnho. A carne. En-charcara-se com os óleos vítreos e sagrados das candeias. Tinham um cheiro doce, como a mãe, mas queimavam. A sua ascensão seria misericordiosa. Miraculosa e rápida. E em vez de escândalo... deixaria atrás de si uma nova força e uma nova maravilha.

Meteu a mão no bolso do hábito e tocou com os dedos o pequeno isqueiro dourado que trouxera do incendiario do Nicho.

Murmurou um versículo de Juízos. -E quando a chama subiu para o céu, o anjo do Senhor subiu na chama.

Posicionou o polegar. Na Praça de São Pedro, a multidão cantava...

O espectáculo a que o mundo assistiu foi algo que nunca ninguém conseguiria esquecer.

Lá em cima na varanda, como uma alma a libertar-se da sua prisão corpórea, uma chama luminosa irrompeu do peito do camerlengo. O fogo saltou, engolfando instantaneamente o corpo inteiro. O camerlengo não gritou. Ergueu os braços acima da cabeça e olhou para o céu. As labaredas rugiam à volta dele, envolvendo-lhe o corpo numa coluna de lu2. Arderam pelo que pareceu uma eternidade, enquanto o mundo inteiro assistia, mais brilhantes, cada vez mais brilhantes. Então, lentamente, apagaram-se. O camerlengo desaparecera. Se caíra atrás do parapeito ou se se evaporara em pleno ar, ninguém saberia dizer. Tudo o que restava era uma nuvem de fumo, erguendo-se numa espiral revoluteante por cima da Cidade do Vaticano.

CAPITULO CENTO E TRINTA E CINCO

A aurora despontou tardia no céu de Roma. A chuva que caíra de madrugada varrera de gente a Praça de São

Pedro. Só os jornalistas aguentaram a pé firme, agrupados debaixo de chapéus-de-chuva e nas carrinhas, a comentar os acontecimentos da noite. Por todo o mundo, as igrejas encheram-se. O tempo era de reflexão e discussão... em todas as religiões. Abundavam as perguntas... mas as respostas pareciam só trazer novas perguntas ainda mais profundas. Até ao momento, o Vaticano mantivera-se silencioso. Não emitira qualquer comunicado, fosse de que tipo fosse.

Nas profundezas das Sagradas Grutas do Vaticano, o cardeal Mor-tati ajoelhava sozinho diante do sarcófago aberto. Estendeu a mão e fechou a boca enegrecida do velho homem. Sua Santidade parecia agora em paz. Num calmo repouso para a Ií,ternidade.

Junto aos pés de Mortati havia uma urna dourada, pesada de cinzas. Mortati juntara com as próprias mãos aquelas cinzas e levara-as até ali.

— Uma oportunidade para perdoar — disse a Sua Santidade, depondo a urna dentro do sarcófago, ao lado do Papa. — Não há amor maior do que o de um pai pelo seu filho. — Escondeu a urna fora das vistas, debaixo das vestes pontifícias. Sabia que aquela gruta sagrada era exclusivamente reservada aos despojos de Papas, mas, fosse pelo que fosse, o gesto parecera-lhe adequado.

— S ignore — disse alguém, entrando nas grutas. Era o tenente C^hartrand, acompanhado por três guardas. — Esperam-no no (Conclave.

Mortari assentiu.

ANJOS I-. OlíMONIO.s 571

— \'ou já. — Lançou um último olhar ao sarcófago e pôs-se de

pé. Voltou-se para os guardas. — É tempo de Sua Sanddade ter a paz

que tanto mereceu.

Os guardas avançaram e, com um esforço enorme, fizeram deslizar

a tampa do sarcófago para o seu lugar. O pesado bloco de pedra assen

tou, com um som definitivo.

Mortati atravessava sozinho o Pátio dos Bórgia a caminho da Ca

pela Sistina. Uma brisa húmida agitava-lhe a veste. Um outro cardeal

saiu do Palácio Apostólico e começou a caminhar ao lado dele.

— Posso ter a honra de acompanhá-lo até ao Conclave, signorei

— A honra é minha.

— S ignore — disse o cardeal, parecendo perturbado —, o (x)légio

deve-lhe uma desculpa pelo que aconteceu ontem à noite, listávamos

cegos pelo...

— Por favor — respondeu Mortati. — C) nosso cérebro v ê por ve

zes o que o nosso coração gostaria que fosse verdade.

O cardeal manteve-se silencioso durante um longo momento. Quan

do finalmente falou, foi para perguntar:

— Já lhe disseram? já não é o nosso Grande Eleitor.

Mortati sorriu.

— Sim. Agradeço a Deus as pequenas bênçãos.

— O (Colégio insiste em que seja elegível.

— Parece que a caridade não morreu na Igreja.

— É um homem sábio. Guiar-nos-ia bem.

— Sou um homem velho. Guiá-los-ia por pouco tempo.

Riram-se ambos.

Quando chegaram ao extremo do Pátío dos Bórgia, o cardeal hesi

tou. Voltou-se para Mortati com um ar de perturbada confusão, como

se os precários prodígios da ncjite se lhe tivessem insinuado no coração.

— Sabia — murmurou — que não encontrámos quaisquer restos

na varanda?

Mortati sorriu.

— Talvez a chuva os tenha levado.

O cardeal ergueu os olhos para o céu tempestuoso.

— Sim, talvez...

CAPITULO CENTO E TRINTA E SEIS

O céu do meio da manhã estava ainda carregado de nuvens escuras quando a chaminé da Capela Sistina deixou escapar os primeiros fiapos de fumo. As brancas volutas ergueram-se para o firmamento e dis-siparam-se lentamente.

Muito lá em baixo, na Praça de São Pedro, Günther Glick contem-plou-as em pensativo silêncio. O último capítulo...

Chinita Macri aproximou-se dele, vinda de trás, e levou a câmara ao ombro.

— Chegou o momento — disse. Günther assentiu tristemente. Voltou-se para ela, alisou os cabe

los e inspirou fundo. A minha última transmissão, pensou. Uma pequena multidão juntara-se à volta deles, para ver.

— Directo em sessenta segundos — anunciou Macri. Glick olhou por cima do ombro, para o telhado da Capela Sistina. — Consegues apanhar o fumo? Macri assentiu, pacientemente. — Sei enquadrar um plano, Günther. Glick sentiu-se estúpido. Claro que sabia. O desempenho de Macri

com a câmara na noite anterior valera-lhe possivelmente um PuKtzer. O desempenho dele, em contrapartida... nem sequer queria pensar nisso. Tinha a certeza de que a BBC ia despedi-lo; iam com toda a certeza ter problemas legais com montes de entidades poderosas... entre elas o CFRN e George Bush.

— Estás com bom, aspecto — disse Chinita, para o animar, olhan-do-o de trás da câmara com uma ponta de preocupação. — Será que posso dar-te... — Hesitou, deixando a frase em suspenso.

— Dar-me um conselho^ Macri suspirou.

ANJOS E DEMÓNIOS 573

— Só ia dizer que não há necessidade de acabar com um estouro. — Eu sei. Quero um fecho sério. — O mais sério da história. Estou a contar contigo. GHck sorriu. Um fecho sério? Estará maluca? Uma história como a da

noite anterior merecia muito mais. Uma reviravolta. Uma bomba. Uma revelação imprevista de chocante verdade.

Por sorte, tinha na manga exactamente o que lhe fazia falta...

— Vais para o ar em... cinco... quatro... três... Ao olhar através do visor da câmara, Chinita Macri detectou um bri

lho malicioso nos olhos de Glick. Foi parvoíce deixá-lo fa^er isto, pensou. Que raio estará ele a preparar?

Mas o momento para hesitações já passara. Estavam no ar. — Günther Glick, directamente do Vaticano — anunciou Glick.

Olhou com um ar solene para a câmara, enquanto, atrás dele, o fumo branco se elevava da chaminé da Capela Sistina. — Senhoras e senhores, a notícia é oficial. O cardeal Saverio Mortati, um progressista de setenta e nove anos, acaba de ser eleito Papa. Apesar de considerado à partida um vencedor improvável, o cardeal Mortati foi escolhido, facto sem precedentes, pelo voto unânime do Colégio Cardinalício.

Macri começou a respirar mais à-vontade. Glick mostrava-se surpreendentemente profissional naquela manhã. Austero, mesmo. Pela primeira vez na vida, parecia e falava como um jornalista.

— E como já tínhamos anunciado — continuou Glick, num tom de voz perfeitamente adequado —, o Vaticano não emitiu ainda qualquer comunicado sobre os miraculosos acontecimentos de ontem à noite.

Óptimo. O nervosismo de Chinita dissipou-se um pouco mais. Até agora, tudo hem.

A expressão de GUck tornou-se um pouco mais triste. — E se a noite passada foi uma noite de maravilhas, foi também

uma noite de tristezas. Morreram quatro cardeais no conflito de ontem, além do comandante Olivetti e do capitão Rocher, da Guarda Suíça, estes últimos no cumprimento do dever. Entre as baixas con-tam-se ainda Leonardo Vetra, famoso cientista do CERN e pioneiro da tecnologia da antimatéria, e Maximuian Köhler, director do CERN, que aparentemente veio ao Vaticano numa tentativa de ajudar mas acabou

S-4 HAN BROWN

por Falecer durante o processo. Não foi ainda emitido qualquer relató

rio oficial sobre a morte do doutor Köhler, mas especula-se que terá

falecido em consequência de complicações provocadas por uma doen

ça de que sofria há muito.

Macri assentiu. A reportagem estava a decorrer perfeitamente. Tal

como dnham combinado.

— E, na esteira da explosão no céu sobre a Cidade do Vaticano,

ontem à noite, a tecnologia da antimatéria, desenvolvida no CiiRN, tor-

nou-se o ponto quente de todas as discussões entre cientistas, susci

tando excitação e controvérsia. Um comunicado Hdo pela assistente do

doutor Köhler em Genebra, Sylvie Baudeloque, anunciava esta manhã

que a comissão de directores do CERN, ainda que entusiasmada com

o potencial da antimatéria, resolveu suspender toda a investigação e as

possibilidades de licenciamento da nova tecnologia até que possa ser

examinado o resultado de novos e mais aprofundados estudos sobre

aspectos relacionados com a segurança.

Excelente, pensou Macri. Agora, a recta final.

— A ausência mais notada nos nossos ecrãs, esta manhã — con

tinuou Glick —, é a de Robert Eangdon, o professor de Harvard que

chegou ontem ao Vaticano para ajudar a resolver a crise dos Uluminati.

Apesar de ter sido originariamente dado como morto na explosão de

antimatéria, temos agora notícias de que terá sido visto na Praça de São

Pedro depois da detonação. Só podemos especular quanto ao modo

como lá terá chegado, ainda que um porta-voz do Hospital Tiberina

afirme que o doutor í.angdon caiu do céu nas águas no Tibre, pouco

depois da meia-noite, recebeu tratamento e teve alta. — Glick arqueou

as sobrancelhas. — E se isso é verdade... a noite passada foi sem dúvida

uma noite de milagres.

Um final perfeito! Macri deu por si a sorrir de orelha a orelha. Vecho

impecável. Agora despede-te!

Glick, porém, não se despediu. E m vez disso, fez uma pequena pau

sa e então deu um passo em direcção à câmara. Ostentava nos lábios

um sorriso misterioso.

— Mas, antes de nos despedirmos...

Nãol

— ... gostaria de pedir a um convidado especial que viesse aqui fa

lar comigo.

\NI()SI ;DI:M(>NI()S 575

As mãos de (^hinita crisparam-se na câmara. Um convidado espeäaR

Que convidado^ Hncerral Sabin, no entanto, que era demasiado tarde. Gli-

ck já tinha começado.

— O homem que vou apresentar — disse Glick — é um america

no... um erudito de grande renome.

Chinita hesitou. Conteve a respiração enquanto Glick se voltava

para a pequena multidão que os rodeava e fazia sinal ao seu convida

do para avançar. Por favor, rezou Macri silenciosamente, digam-me que ele

conseguiu encontrar o Kobert iMngdon... e não um taradinho qualquer da conspi

ração dos llluminati.

Quando, porém, o convidado especial de Glick avançou, Macri

sentiu o coração cair-lhe aos pés. Não era Robert Langdon. Era um

sujeito careca, àç. jeans e camisa de flanela. Usava bengala e óculos de

grossas lentes. Macri estava aterrorizada. Um taradinho!

— Permitam que lhes apresente — disse Glick — o doutor Joseph

Vanek, famoso erudito e especialista em assuntos do Vaticano da De

Paul University, em Chicago.

Macri hesitou, enquanto o homem se juntava a Cilick. Não era iie

nhum maluquinho. Macri já ouvira inclusivamente falar do sujeito.

— Doutor Vanek — dizia Glick —, tem, segundo sei, uma intor

mação surpreendente a respeito do que se passou ontem à noite e que

deseja partilhar connosco.

— E verdade — respondeu Vanek. — Depois de uma nmte dt

tantas surpresas, custa imaginar que ainda restem algumas... c no en

tanto... — Fez uma pausa.

Glick sorriu.

— E no entanto, há uma estranha volta em tudo isto.

Vanek assentiu.

— Sim. Por muito espantoso que possa parecer, penso que < > (,( >lc

gio CardinaUcio elegeu este fim-de-semana, sem o saber, dois Papas.

Macri quase deixou cair a câmara.

Os lábios de Glick abriram-se num sorriso deliciado.

— Dois Papas, diz?

O erudito assentiu.

— Sim. Devo talvez começar por dizer que dediquei toda a minha

vida ao estudo das leis eleitorais do Vaticano. A judicatura do (Concla

ve é extremamente complexa, e grande parte dela está hoje esquecida

576 DAN BROWN

OU é ignorada como obsoleta. É possível que nem mesmo o Grande Eleitor tenha conhecimento do que me preparo para revelar. No entanto... segundo as antigas e esquecidas leis expostas no Romano Pontifia Eligendo Numero 63... a votação não é o único método de eleição do Papa. Há um outro, mais divino. Chama-se «Aclamação por Adoração». — Fez uma pausa. — E aconteceu ontem à noite.

Glick dirigiu ao seu convidado um olhar intenso. — Continue, por favor. — Como talvez recorde — prosseguiu Vanek —, quando, ontem

à noite, o camerlengo Cario Ventresca apareceu no telhado da Basílica, todos os cardeais começaram a gritar em coro o nome dele.

— Sim, lembro-me. — Com esta imagem em mente, permita-me que leia o que está

escrito na antiga lei eleitoral. — O homem tirou uns papéis do bolso, pigarreou para limpar a garganta e começou a 1er. — «A Eleição por Adoração acontece quando... todos os cardeais, como que por inspiração do Espírito Santo, livre e espontaneamente, proclamam unanimemente em voz alta o nome de um indivíduo.»

GUck sorriu. — O que está a dizer é que ontem à noite, quando os cardeais en

toaram em coro o nome de Cario Ventresca, o elegeram Papa? — Sem dúvida. Além disso, a lei estipula que a Eleição por Ado

ração tem precedência sobre o requisito cardinalício e permite que qualquer cléúgo... padre ordenado, bispo ou cardeal... seja eleito Papa. Portanto, como pode ver, o camerlengo era perfeitamente elegível por este processo. — O doutor Vanek olhou directamente para a câmara. — O facto é incontroverso... Cario Ventresca foi eleito Papa ontem à noite. O seu pontificado durou um pouco menos de dezassete minutos. Se não tivesse ascendido miraculosamente numa coluna de fogo, estaria neste momento sepultado nas Grutas do Vaticano, juntamente com os outros Papas.

— Muito obrigado, doutor Vanek. — Glick voltou-se para Macri, com um piscar de olho malicioso. — Uma nova iluminação...

CAPITULO CENTO E TRINTA E SETE

Lá bem alto nos degraus do Coliseu de Roma, Vittoria ria e cha-mava-o:

— Robert, despacha-te! Eu bem sabia que devia ter casado com um homem mais novo!

E o sorriso dela era mágico. Ele esforçava-se por subir, mas sentia as pernas como se fossem de

chumbo. — Espera — pediu. — Por favor... Sentia um latejar na cabeça. Langdon acordou, sobressaltado. Escuridão. Ficou deitado, imóvel, por um longo momento, na macieza des

conhecida da cama, sem saber onde estava. As almofadas eram de penugem de ganso, enormes e maravilhosas. O ar cheirava a flores. Do outro lado do quarto, duas grandes portadas abriam para uma luxuosa varanda para lá da qual uma grande lua brilhava num céu nocturno, intermitentemente velada por pequenas nuvens que uma ligeira brisa arrastava. Langdon tentou recordar como fora ali parar... e onde estava.

Fiapos surrealistas de memória perpassavam-lhe pela consciência... Uma pira de fogo místico... um anjo a surgir do meio da multidão... a suave

mão dela apegar na dele e a condu^-lo para a noite... a guiar o seu corpo exaus

to e maltratado pelas ruas... levando-o até ali... até àquela suite... a enfiá-lo, meio

a dormir, debaixo de um duche escaldante... a levá-lo para aquela cama... a velar

junto à cabeceira enquanto ele mergulhava num sono de pedra.

Agora, na penumbra, Langdon via uma segunda cama. Os lençóis estavam revolvidos, mas a cama vazia. Ouviu, vindo ali de perto, o correr leve e regular de um duche.

57í< OAN BR( )\X'N

Ao olhar para a cama de Vittoria, viu um nome bordado em grandes letras na fronha da almofada: HOTIÍI. BiiRNiNl. Teve de sorrir. Vittoria escolhera bem. O luxo do Velho Mundo sobranceiro ã fonte do Tritão de Bernini... não havia hotel mais adequado em toda a cidade de Roma.

Deitado na cama, ouviu o som de pancadas, e soube o que o tinha acordado. PLstava alguém a bater à porta. O barulho era cada vez mais forte.

(Confuso, saiu da cama. Ninguém sabe que estamos aqui, pensou, sentin-do-se levemente apreensivo. Enfiou o luxuoso roupão do Hotel Bernini e dirigiu-se à porta da suite. Após um instante de hesitação, abriu-a.

Um homem poderosamente constituído, envergando um vistoso uniforme púrpura e amarelo, olhou de cima para ele.

— Sou o tenente Chartrand — disse o visitante. — Da Cjuarda Suíça do Vaticano.

Langdon sabia muito bem quem ele era. — Como... como conseguiu encontrar-nos? — Vi-os abandonar a praça ontem ã noite. Segui-os até aqui. Ainda

bem que ainda cá estàc >.

Langdon sentiu uma súbita ansiedade, perguntando a si mesmo se os cardeais teriam enviado C^hartrand para os escoltar, a ele e a Vittoria, de regresso à Cidade do Vaticano. Ao fim e ao cabo, eles o% dois eram as únicas pessoas, além do (Colégio Cardinalício, que sabiam a verdade. Constituíam um risco.

— Sua Santidade pediu-me para lhe entregar isto — disse C^har-trand, estendendo-lhe um sobrescrito selado com o sinete do Vaticano. Langdon abriu-o e leu a nota manuscrita.

Doutor langdon e doutora Vetra,

Hmbora seja o meu mais profundo desejo pedir a vossa discrição no respeitan

te aos aconteámentos das últimas vinte e quatro horas, não posso de modo algum

ter a presunção de pedir-lhes mais do que já deram. Por isso limito-me a esperar

humildemente que, neste assunto, se deixem guiar pelos vossos corações. O mundo

parece hoje um lugar melhor... talve^ as perguntas sejam mais poderosas do que as

re.<^ostas.

A minha porta estará sempre aberta,

S a ven o Morta ti. Papa

ANJOS E DHMÓNK )S 579

Langdon leu a mensagem duas vezes. O Colégio (Cardinalício esco

lhera obviamente um nobre e digno líder.

Antes que pudesse dizer fosse o que fosse, (Chartrand apresentou-

-Ihe um pequeno pacote.

— Um testemunho da gratidão de Sua Santidade.

1 .angdon pegou no pacote. Era pesado, embrulhado em papel cas

tanho.

— Por decreto de Sua Santidade — continuou (Chartrand —, este

artefacto, pertencente ao (Cofre Papal, é-lhe confiado a título de em

préstimo por tempo indeterminado. O Santo Padre pede apenas que,

no seu testamento, tome as medidas necessárias para que regresse a

casa.

Langdon abriu o embrulho e ficou sem fala. Era o ferro. O Dia

mante Uluminatus.

(Chartrand sorriu.

— A paz do Senhor esteja consigo — disse, e voltou-se para partir.

— O... brigado — conseguiu Langdon gaguejar, a segurar com

mãos que tremiam a preciosa oferta.

(á no corredor, o guarda hesitou.

— Doutor Langdon, posso perguntar-lhe uma coisa?

— (Com certeza.

— 1'Cu e os meus camaradas estamos cheios de curiosidade. Naque

les últimos minutos... o que foi que aconteceu no helicóptero?

Langdon sentiu-se invadir por uma vaga de ansiedade. Sabia que

aquele momento havia de chegar... o momento da verdade. Ele e Vit

re )ria tinham conversado a esse respeito na noite anterior, enquanto se

escapuliam da Praça de São Pedro. l'C tinham tomado uma decisão. An

tes mesmo da nota do Papa.

O pai de \'ittoria sonhara que a sua descoberta da antimatéria traria

consigo um despertar espiritual. Os acontecimentos da noite anterior

não tinham obviamente sido o que ele esperara, mas o facto irrecusá

vel era que... naquele momento, por todo o mundo, as pessoas pensa

vam em Deus de uma maneira diferente do que sempre tinham pen

sado. (Quanto tempo duraria a magia era algo que nem Langdon nem

\'irtoria tinham meio de saber, mas sabiam, isso sim, que nunca des-

580 DAN BROWN

truiriam a maravilha com o escândalo e a dúvida. Deus escreve direito por linhas tortas, disse para si mesmo, pensando que talvez... sim, talvez... o que acontecera no dia anterior tivesse de facto sido, ao fim e ao cabo, a vontade de Deus.

— Doutor Langdon? — repetiu Chartrand. — Estava a perguntar--Ihe a respeito do helicóptero?

Langdon esboçou um sorriso, triste. — Sim, eu sei... — Sentiu as palavras fluírem não do cérebro, mas

do coração. — Talvez tenha sido do choque da queda... mas a minha memória... parece... é como uma mancha confusa...

Os ombros de Chartrand descaíram. — Não se lembra de nada? Langdon suspirou. — Receio que mdo permaneça um mistério para sempre.

Quando Robert Langdon voltou ao quarto, a visão que o aguardava fê-lo deter-se bruscamente. Vittoria estava na varanda, com as costas apoiadas ao parapeito, os olhos profundamente cravados nos dele. Parecia uma aparição celeste... uma silhueta radiante recortada contra o luar. Poderia ser uma deusa romana, envolta num roupão de pano turco, o cinto bem apertado a realçar-lhe as esbeltas curvas do corpo. Atrás dela, uma bruma pálida pa rava como um halo sobre a fonte de Bernini.

Langdon sentiu-se loucamente atraído por ela... mais do que por qualquer outra mulher que tivesse conhecido. Sem dizer uma palavra, pousou o Diamante llluminatus e a carta no Papa na mesa-de-cabeceira. Haveria tempo para explicar tudo aquilo, mais tarde. Foi ter com ela à varanda.

Vittoria pareceu feliz por vê-lo. — Acordaste — disse, num murmúrio tímido. — Finalmente. Ele sorriu. — Foi um longo dia. Vittoria passou uma mão pelos luxuriantes cabelos, e o gesto en

treabriu muito ligeiramente a frente do roupão. — E agora... suponho que queres a tua recompensa.

ANJOS R DEMÓNIOS 581

O comentário apanhou-o desprevenido. — Quero... desculpa? — Somos adultos, Robert. Podes admiti-lo. Sentes desejo. Vejo-o

nos teus olhos. Uma profunda fome carnal. — Sorriu. — Eu sinto o mesmo. E um desejo que vai em breve ser satisfeito.

— É? — Encorajado, Robert deu um passo em frente. — Completamente. — Vittoria mostrou-lhe a ementa do serviço de

quartos. — Mandei vir tudo o que têm.

O festim foi sumptuoso. Jantaram juntos à luz da Lua... na varanda... saboreando yí j-íV, trufas e risotto. Beberam Dolcetto e conversaram pela noite dentro.

Langdon não precisava de ser simbologista para 1er os sinais que Vittoria estava a enviar-lhe. Durante a sobremesa de creme de amoras com savoiardi e fumegante romcaffé, apertou as pernas nuas contra as dele por baixo da mesa, enquanto o olhava com uma expressão mais do que sugestiva. Parecia querer que ele pousasse o garfo, a erguesse nos braços e a levasse para o quarto.

Langdon, no entanto, não fez nada disso. Manteve, imperturbável, uma atitude de irrepreensível cavalheirismo. Também sei jogar esse jogo, minha menina, pensou, disfarçando um sorriso.

Quando acabaram de comer, foi sentar-se na beira da cama, sozinho, a revirar nas mãos o Diamante lUuminatus, a fazer repetidos comentários sobre o muagre da sua simetria. Vittoria olhava para ele, e a sua perplexidade transformava-se em clara frustração.

— Achas esse ambigrama terrivelmente interessante, não achas? — perguntou.

Robert assentiu com a cabeça. — Fascinante. — Dirias que é a coisa mais interessante neste quarto? Langdon coçou a cabeça, fingindo ponderar a pergunta. — Bem, há uma coisa que me interessa mais. Ela sorriu e deu um passo em frente. — Eé? — Como foi que refutaste aquela teoria de Einstein usando atuns? Vittoria ergueu as mãos.

582 DAN BR( AX'N

— Dio mio! Basta de atuns! Não brinques comigo, estou a avisar-te! — Talvez, como próxima experiência, possas estudar as solhas e pro

var que a Terra é plana. Vittoria estava a fumegar, mas os primeiros sinais de um sorriso

exasperado começaram a surgir-lhe nos cantos da boca. — Para sua informação, professor, a minha próxima experiência

vai ficar na história da ciência. Tenciono provar que os neutrinos têm massa.

— Os neutrinos têm massa? — Robert lançou-lhe um olhar espantado. — E eu convencido de que eram uns tesos.

Num movimento fluido, Vittoria saltou-lhe em cima, derrubando--o na cama.

— Espero que acredites na vida depois da morte, Robert Langdon. — Estava rir, encavalitada em cima dele, com as mãos a prenderem--Ihe os pulsos, mantendo-o deitado de costas, e um brilho ardente nos olhos.

— A verdade — engasgou-se ele, agora a rir francamente — é que sempre tive dificuldade em imaginar fosse o que fosse para lá deste mundo.

— Palavra? Então nunca tiveste uma experiência religiosa? Um momento perfeito de glorioso êxtase?

Robert abanou a cabeça. — Não. E duvido muito sinceramente que seja o género de ho

mem capaz de ter uma experiência religiosa. \'ittoria deixou o roupão escorregar-lhe pelos ombros. — Nunca foste para a cama com uma mestra de ioga, pois não?

INDICE

Agradecimentos 9 Facto 11 Nota do autor 13

14 17 19

Mapas Prolog! Capítu Capita Capita Capita' Capita Capita Capitu Capitu Capitai Capita Capita Capita Capita Capita Capitu Capitu Capitu Capitu Capitu Capitu (Capitu! C.apitui (kpita

Urn o Dois 23 o Três 25 o Quatro 26 o Cinco 30 o Seis 33 o Sete 37 o Oito 42 o Nove 48 o Dez 53 o Onze 55 o Doze 60 o Treze 61 o Catorze 66 o Quinze 71 o Dezasseis 76 o Dezassete 78 o Dezoito 83 o Dezanove 85 o Vinte 92 o Vinte e Um 93 o Vinte e Dois 98 o Vinte e Três 101

584 DAN BROWN

Capítulo Vinte e Quatro 107 Capítulo Vinte e Cinco 108 Capítulo Vinte e Seis 114 Capítulo Vinte e Sete 115 Capítulo Vinte e Oito 119 Capítulo Vinte e Nove 121 Capítulo Trinta 123 Capítulo Trinta e Um 126 Capítulo Trinta e Dois 133 Capítulo Trinta e Três 138 Capítulo Trinta e Quatro 142 Capítulo Trinta e Cinco 144 Capítulo Trinta e Seis 148 Capítulo Trinta e Sete 158 Capítvilo Trinta e Oito 161 Capítulo Trinta e Nove 164 Capítulo Quarenta 169 Capítulo Quarenta e Um 173 Capítulo Quarenta e Dois 181 Capítulo Quarenta e Três 185 Capítulo Quarenta e Quatro 191 Capítulo Quarenta e Cinco 193 Capítulo Quarenta e Seis 198 Capítulo Quarenta e Sete 205 Capíttilo Quarenta e Oito 210 Capítulo Quarenta e Nove 213 Capítulo Cinquenta 224 Capítulo Cinquenta e Um 228 Capítulo Cinquenta e Dois 230 Capítulo Cinquenta e Três 236 Capítulo Cinquenta e Quatro 237 Capítulo Cinquenta e Cinco 242 Capítulo Cinquenta e Seis 248 Capítulo Cinquenta e Sete 252 Capítulo Cinquenta e Oito 253 Capítulo Cinquenta e Nove 257 Capítulo Sessenta 259 Capítulo Sessenta e Um 261

ANJOS E DEMÓNIOS 585

Capítulo Sessenta e Dois 268 Capítulo Sessenta e Três 276 Capítulo Sessenta e Quatro 280 Capítulo Sessenta e Cinco 285 Capítulo Sessenta e Seis 293 Capítulo Sessenta e Sete 295 Capítulo Sessenta e Oito 298 Capítulo Sessenta e Nove 301 Capítulo Setenta 307 Capítulo Setenta e Um 311 Capítulo Setenta e Dois 314 Capítulo Setenta e Três 318 Capítulo Setenta e Quatro 323 Capítulo Setenta e Cinco 325 Capítulo Setenta e Seis 327 Capítulo Setenta e Sete 329 Capítulo Setenta e Oito 331 Capítulo Setenta e Nove 333 Capítulo Oitenta 339 Capítulo Oitenta e Um 341 Capítulo Oitenta e Dois 350 Capítulo Oitenta e Três 353 Capítulo Oitenta e Quatro 357 Capítulo Oitenta e Cinco 362 Capítulo Oitenta e Seis 366 Capímlo Oitenta e Sete 371 Capítulo Oitenta e Oito 374 Capítulo Oitenta e Nove 380 Capítulo Noventa 385 Capítulo Noventa e Um 389 Capítulo Noventa e Dois 394 Capítulo Noventa e Três 395 Capítulo Noventa e Quatro 399 Capítulo Noventa e Cinco 405 Capítulo Noventa e Seis 407 Capítulo Noventa e Sete 411 Capítulo Noventa e Oito 413 Capítulo Noventa e Nove 415

S86 DAN BROWN

(Capítulo Cem 418 Capítulo Cento e Um 426

(>apítulo Cento e Dois 430 Capítulo Cento e Três 436 Capítulo Cento e Quatro 440 Capítulo Cento e Cinco 442 Capítulo Cento e Seis 446 Capítulo Cento e Sete 450 Capítulo Cento e Oito 456 Capítulo Cento e Nove 464 Capítulo Cento e De?, 466

Capítulo Cento e Onze 469 Capítulo Cento e Doze 474 Capítulo Cento e Treze 479 Capítulo Cento e Catorze 483 Capítulo Cento e Quinze 487 Capítulo Cento e Dezasseis 489 Capítulo Cento e Dezassete 492 Capítulo Cento e Dezoito 494 Capítulo Cento e Dezanove 500 Capítulo Cento e Vinte 505 Capímlo Cento e Vinte e Um 510 Capítulo Cento e Vinte e Dois 514 Capítulo Cento e Vinte e Três 516 Capítulo Cento e Vinte e Quatro 518 Capítulo Cento e Vinte e Cinco 520

Capítulo Cento e Vinte e Seis 526 Capítulo Cento e Vinte e Sete 528 Capítulo Cento e Vinte e Oito 533 Capítulo Cento e Vinte e Nove 537 Capítulo Cento e Trinta 545 Capítulo Cento e Trinta e Um 548

Capítulo Cento e Trinta e Dois 556 Capítulo Cento e Trinta e Três 558 Capítulo Cento e Trinta e Quatro 564 Capítulo Cento e Trinta e Cinco 570 Capítulo Cento e Trinta e Seis 572 Capítulo Cento e Trinta e Sete 577

Dan Brown é formado pelo

Amherst CoUege and PhiUips

Academy e durante anos deu aulas

de inglês até conseguir realizar o seu

sonho: ser escritor.

Fñho de um eminente matemático

vencedor do Presidential Award

que tinha como hobby a música

sacra, Dan Brown cresceu rodeado

de livros de filosofia, ciência e

religião, factor que contribuiu

significativamente para a sua

formação e para a elaboração das

suas obras.

O Código Da Vinci, publicado pda

Bertrand, alcançou um êxito será

precedentes de vendas em Portugal

e no mundo. Esta obra vai set

adaptada ao cinema pela Columlúa

Pictures.

alcançado nor i> LJU/JOO UÛ V incL

Bertrand apresenta

Anjos v Deu/('mios.

í/seller (Ac Dan Brown,

(.)Liando Li.m

professor de simbologia líohert

l/angtlon -é chamado para ide símbolo

avassaladora: a marca é de uma antiga Irmandatle charnad

¡luminaíli, supostamente extinta há séculos e inimiga da Igi

(Católica. ,

l'an Koma, o(]olégio dos (Cardeais éstá reunitlo para elege

um novo Papa quantlo se apercebe de que foram raptatlof

t|uatro cartleais; ao mesmo tempo a (iuarda Sui'çïi é ,

informatla de que uma perigosa arma está na íatlatle do

Vaticano com o propósito tie a destruir. Robert Langdon,

ajutlado por Victoria Vetra, cientista tio Cl'.RN, procura

deixadas pelos llluminalli, jutantlo contra o tempo para salva

o Vaticano. ,