cadernos de subjetividade n04 1995 cinema

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  • C A D E R N O S D E S U B J E T I V I D A D E

    Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologa Clnica da PUC-SP

    Cad. Subj. S. Paulo v. 3 n. 1 pp. 1-188 mar./ago. 1995

  • Catalogao na Fonte - Biblioteca Central / PUC-SP

    Cadernos de Subjetividade / Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da PUC-SP. - v. 3, n. 1 (1995) -

    .- So Paulo, 1995 -

    Semestral

    1. Psicologia - peridicos I . Instituio.

    ISSN 0104-1231 CDD 150.5

    Cadernos de Subjetividade uma publicao semestral do Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, do Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da PUC-SP.

    Revista financiada com a verba de apoio institucional da CAPES ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da PUC-SP.

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO (PUC-SP)

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica

    Coordenao Marlia Ancona Lopes Grisi

    Vice-Coordenao Lus Cludio Figueiredo

    Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade

    Coordenao Alfredo Naffah Neto

    Professores do Ncleo Alfredo Naffah Neto Lus Cludio Figueiredo Peter Pl Pelbart Suely Rolnik

    Cadernos de Subjetividade

    Conselho Editorial Cristina Helena Toda, Daisy Perelmutter, DanyAl-BehyKanaan, InsR. B. Loureiro, MarianA. L . Dias Ferrari, Maurcio Loureno Garcia, Maurcio Mangueira, Nelson Coelho Jnior. Projeto Grfico e Capa Angela Mendes Produo Grfica Plo Editor

  • A P R E S E N T A O

    NCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA SUBJETIVIDADE

    Constitumo-nos como um espao pblico de debate e pesquisa, tendo como eixo temtico os mltiplos processos de subjetivao engendrados nas coletividades humanas, em sua heterogeneidade espcio-temporal. Congregamos alunos ps-graduados em Psicologia Clnica mestrandos e doutorandos , alunos e pesquisa-dores avulsos e instituies culturais e polticas ligadas sade pblica, a grupos minoritrios, etc., de diferentes partes do Brasil. Nosso trabalho faz-se por meio de cursos, seminrios, conferncias, grupos de estudo, que, por sua vez, geram monografias, ensaios, dissertaes, teses, livros.

    Cadernos de Subjetividade nossa revista oficial destina-se publi-cao da produo cientfica/filosfica/artstica dos membros permanentes e itiner-antes do Ncleo e de quaisquer outros colaboradores que afinados com o nosso eixo temtico possam enriquecer esse trabalho, multiplicando-o, diversificando-o e aprofundando-o em diferentes direes.

    Alfredo Naffah Neto

  • M

    APRESENTAO

    EDITORIAL

    ENTREVISTA

    Raymond Bellour no Brasil por Arlindo Machado A mquina de hipnose Raymond Bellour

    DOSSI Acreditar no cinema Raymond Bellour

    Sujeito e narrao no cinema Rogrio Luz

    O primeiro cinema: consideraes sobre a temporalidade dos primeiros filmes Flvia Cesarino Costa

    O cheiro da papaia verde: a exaltao da vida numa unio dionisaca com a natureza Alfredo Naffah Neto

    Hal Hartley e a tica da confiana Suely Rolnik

    O deserto vermelho Peter Pl Pelbart

    O estranho Carmen S. de Oliveira

  • Marienbad, a ltima verso da realidade Andr Parente 94

    Uma ou outra coisa sobre o tema da liberdade no Trois Couleurs de Kieslowski Andr Queiroz 100

    Notas sobre um filme de Visconti Devanir Merengue 105

    TEXTOS Eu no sou nada, mas posso vir a ser: sobre a luminosidade e a afetao, entre a pintura e a psicanlise Joel Birman

    Era uma vez um mito: o conto de fadas revisitado na literatura e nas artes contemporneas Ktia Canton

    Notas sobre o enigma do dom artstico na psicanlise freudiana Ins Loureiro

    112

    137

    146

    COMUNICAES Atos e acasos em psicanlise. Um comentrio heideggeriano Lus Cludio Figueiredo 157

    RESENHAS Freud, a tica e a conscincia moral Daniel Delouya

    Em busca de uma audio mais completa da obra de Mozart Yara Borges Casnk

    164

    167

    INFORMES 171

  • E D I T O R I A L

    No ano em que se comemora o centenrio do cinema, Cadernos de Subjetividade traz uma entrevista com Raymond Bellour, na qual ele prope uma instigante relao entre cinema, psicanlise e hipnose. A questo do cinema retomada no Dossi alguns dos textos tratam da arte cinema-togrfica, sua historia, sua relao com a linguagem e com o sujeito; outros so dedicados ao comentrio de filmes, de modo a articul-los com o campo da subjetividade.

    Na seo Textos, reunimos ensaios que tratam desde a luminosidade em Delacroix relao da dana moderna com os contos de fada, passando pela noo de dom na obra de Freud.

    A partir deste nmero estaremos publicando os resumos de todas as dissertaes de mestrado e teses de doutorado defendidas no Ncleo desde a sua fundao em maro de 1990. Gostaramos tambm de anunciar que o prximo nmero ter como tema a Subjetividade abordada sob diferentes vrtices.

    Bom proveito e at breve!

    Conselho Editorial

    7

  • E N T R E V I S T A

    RAYMOND BELLOUR NO BRASIL

    Por Arlindo Machado

    Raymond Bellour estar no Brasil durante o ms de setembro ministrando cursos e conferncias a convite de Suely Rolnik (Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Ps-Graduao de Psicologia Clnica da PUC-SP), Arlindo Machado (Ncleo de Lingua-gens Visuais, Ps-Graduao de Comunicao e Semitica da PUC-SP) e Dora Mouro (Departamento de Cinema, Rdio e Televiso, Escola de Comunicaes e Artes da USP). Apoio Fapesp.

    Breve apresentao

    A trajetria de Raymond Bellour feita de sucessivos deslocamentos. Ela comea com os estudos literrios e teatrais nos anos de 1960 e 1970, que nos deram um elogiado ensaio sobre Henri Michaux (1965), um livro de ensaios e entrevistas (Le livre des autres, 1971), edies crticas das irms Bront (1972) e at mesmo um romance (Les rendez-vous de Copenhague, 1966). Aos poucos ele se desloca para a crtica de cinema, terreno onde se impor rapidamente como um dos maiores nomes da Frana.

    Uma anlise detalhadssima de uma sequncia de Os Pssaros de Hitchcock, publi-cada nos Cahiers du Cinma em 1969, introduz uma nova linha de pesquisa que ter grande repercusso tanto na Frana quanto fora dela: a anlise do filme, estudo minucioso, quase plano a plano, de uma obra cinematogrfica singular, de modo a resgatar o seu modo de funciona-mento como mquina de produzir afetos. Bellour dedica-se, durante todos os anos de 1970, produo de 'anlises de filmes' (exemplo: uma anlise freudiana de Intriga Internacional de Hitchcock, onde disseca os signos da ameaa de castrao que definem o Complexo de dipo do protagonista principal), a maioria delas referncia obrigatria para as pesquisas cinemato-grficas que sero produzidas na dcada seguinte. Em 1979, ele compila todas essas anlises num volume que se chama justamente L'analyse du film (1979) e dedicar ainda seu doutorado definio dessa rea de estudos dentro da teoria cinematogrfica.

    Aos poucos, as anlises de filmes o levam na direo cada vez mais deliberada da psicanlise. Em 1975, juntamente com Christian Metz e Thierry Kuntzel, ele edita um

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  • nmero especial da revista Communications dedicado s relaes entre cinema e psican-lise. Novamente aqui, Bellour redireciona os rumos dos estudos cinematogrficos apon-tando para uma via que ser frtil nos anos de 1980.0 material que colocamos disposio do leitor a seguir corresponde ao estgio do pensamento de Bellour sobre as relaes entre cinema e psicanlise nos anos de 1980.

    Vale observar, entretanto, que vinte anos depois do nmero especial de Communi-cations, o peso excessivo das abordagens freudiana ortodoxa e lacaniana em todos esses estudos parecer insuficiente a esse inquieto pesquisador e uma nova virada conceituai redicionar mais uma vez a sua viso da subjetividade no cinema. Ao retomar, nos ltimos anos, a reflexo sobre a situao do espectador na sala cinematogrfica, Bellour toma agora uma nova direo, orientando-se na perspectiva da produo de emoes pelo cinema, luz no mais da psicanlise clssica, mas dos estudos da subjetividade tal como desenvolvidos por autores como Deleuze, Guattari, Daniel Stern e outros. E este atual estgio de suas reflexes que Bellour estar apresentando no curso que PUC-SP e USP promovem em conjunto em setembro.

    Antes disso, entretanto, um interregno fundamental em suas reflexes o conduziu na direo dos novos meios audiovisuais. NaFrana, Bellour foi um dos primeiros a superar OS preconceitos Contra OS meios eletrnicos e digitais e a enfrentar o desafio colocado pelos poetas dos novos tempos, que se aventuram pelo terreno do vdeo e da informtica. Em 1988, juntamente com Anne Marie Duguet, ele lana um novo nmero da revista Commu-nications dedicado ao vdeo e s novas tecnologias da imagem, introduzindo mais uma vez uma nova rea de estudos. Essa a poca em que ele lana seu conceito de 'passagem', a circulao das imagens entre os meios (uso de fotografia fixa no cinema ou de recursos cinematogrficos na fotografia, fuso entre cinema e vdeo, relaes entre vdeo e televiso, etc.). Sobre esse tema, Bellour publicou, em 1990, uma estimulante coleo de ensaios sob o ttulo L'entre-images (a ser lanado no Brasil, ainda este ano, pela Editora da Unicamp) e organizou, no mesmo ano, juntamente com Catherine David e Christine van Assche, uma exposio no Centre Georges Pompidou de Paris sob o ttulo Passages de l'image.

    Atualmente, Bellour diretor de pesquisas no CNRS (Centre National de la Recher-che Scientifique) e professor do American Center of Cinema, escola que ajudou a fundar. Dirige tambm a importante revista Traffic, de que foi um dos fundadores juntamente com Serge Daney. Como se isso no fosse suficiente, est organizando a obra completa de Henri Michaux para a Bibliothque de la Pliade e prepara o texto de sua reflexo mais recente sobre as emoes no cinema.

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  • A MQUINA DE HIPNOSE

    Entrevista com Raymond Bellour

    A fora hipntica do cinema sempre surpreendeu seus comentadores. Mas esta

    intuio/percepo permanece difcil de circunscrever, pois a prpria hipnose aparece

    ainda como um fenmeno inexplicado. Raymond Bellour trabalha h bastante tempo com esta relao entre cinema e hipnose. Ns

    tambm preferimos, deixando de lado seus outros campos de preocupao, concentrar esta

    entrevista numa problemtica em que ele esboa, pela primeira vez, algumas modalidades

    possveis de formalizao.

    Jacques Kermabon (J.K.): Como e desde quando voc foi levado a se debruar sobre a relao cinema-hipnose, uma imagem que percorre h muito tempo os textos sobre o cinema mas que no foi jamais verdadeira-mente formalizada?

    Raymond Bellour (R.S): Desde os textos tericos da dcada de 1920, aqueles de Abel Gance, de Louis Delluc, de Jean Epstein at este pequeno e maravilhoso texto, relativa-mente recente, de Roland Barthes, En sor-tant du cinema,' a metfora da hipnose no cessou de emergir em numerosos discursos crticos sobre o cinema. Uma vez ela foi mesmo tocada mais de perto por Jean De-prun, em dois breves artigos da Revue de

    Filmologie. Se a comparao que tende a fazer do cinema uma espcie de hipnose no foi jamais verdadeiramente aprofundada, entre outras razes porque, de um ponto de vista cientfico ou mesmo terico, sabe-se sempre muito mal o que a hipnose, a meio caminho entre o psquico e o somtico, no cruzamento mais enigmtico entre psican-lise e biologia. Assim toda abordagem, por mais sria que seja, s pode permanecer am-plamente metafrica. O que no deve, contu-do, impedi-la.

    Para mim h, inicialmente, uma intui-o antiga (ela data do nmero Psychanalise et cinma da revista Communications, diri-gida com Thierry Kuntzel e Christian Metz), mas jamais desenvolvida, uma

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  • constatao ao mesmo tempo ingnua e um pouco vertiginosa: o cinema e a psicanlise nascem ao mesmo tempo. no mesmo ano, em 1895, que os irmos Lumire inventam o cinematgrafo e que Freud publica os seus Estudos sobre a histeria (e escreve o Proje-to para uma psicologia cientfica). Por ou-tro lado, trabalhando sobre textos do sculo XIX, particularmente os romances de Ale-xandre Dumas sobre a Revoluo Francesa (a srie Joseph Blsamo, etc.),4 pude cons-tatar que a hipnose ocupava ento um lugar fantasmtico extraordinariamente forte no conjunto do sistema de representao. Pare-ce assim que atravs das genealogias costu-meiras que fazem nascer a psicanlise da hipnose, e o cinema de um conjunto de procedimentos ticos e qumicos, pode-se da mesma forma dizer que a psicanlise e o cinema surgem como uma resposta gmea enorme presso exercida pela hipnose du-rante todo o sculo XIX.

    Nascida no final do sculo XVII I , inicialmente com a prtica de Mesmer, a hipnose (ento chamada de magnetismo animal) a primeira prtica que, apesar de suas conotaes religiosas e at msticas, d conta, em termos materialistas e cientficos, dos fenmenos at ento catalogados como possesses demonacas. A teoria de Mesmer uma teoria do fluido. Pelo deslocamento e pela precipitao dos fluidos no interior dos corpos humanos provoca-se crises que in-duzem efeitos teraputicos. Mas, sobretudo, elas abrem no sujeito o que Mesmer deno-

    minou de sexto sentido, um sono crtico no qual o sujeito desdobrado penetra no que a psicanlise chamar de a outra cena. a primeira representao verdadeira, ao mes-mo tempo tmida e selvagem, do incons-ciente.

    A problemtica da hipnose se desen-volve a partir disso em duas direes. No domnio mdico, as pesquisas vo desem-bocar na prtica de Charcot diante do sinto-ma histrico e conduzem diretamente inveno da psicanlise. Mas a hipnose tam-bm vai constituir um alimento fantasmti-co para a literatura. Dentro do que ele chama de sono crtico, Mesmer descreve o sujeito da hipnose como um sujeito que v tudo, por toda a parte. Atravs da viso, um sentido ao mesmo tempo parcial e que metaforiza todos os outros, o sujeito sob hipnose torna-se em possesso de elementos esquecidos de seu prprio passado, de um saber ilimitado sobre o presente e de um poder de projeo no futuro. O sujeito da hipnose um sujeito onividente que se inscreve perfeitamente no espao da viso panptica definida por M i -chel Foucault. evidente que essa figura varia segundo os autores. Em Balzac, por exemplo, no Ursule Mirouet, a viso perma-nece no domnio privado, mesmo se ela provm de um mundo mstico e religioso que faz o sujeito entrar em comunicao com um poder do alm. Dumas, ao contr-rio, constri, atravs do personagem de Bal-samo-Cagliostro, a mitologia de um sujeito que, graas ao seu poder hipntico, capaz

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  • de produzir a revoluo francesa e de fundar assim a histria do sculo XX.

    H no romance de Dumas, na ordem de uma filiao hipnose-cinema, um mo-mento bem surpreendente. Pela viso de sua vidente adormecida, Blsamo efetua um percurso visual, puramente mental e ao mes-mo tempo perfeitamente realista, que se asse-melha a um encadeamento de travellings. O olhar, seguindo o trajeto de um mensageiro, avana sobre uma estrada, penetra no parque de Versailles, caminha pelos corredores, passa por uma porta, avana at uma mesa e desliza por trs do ombro do duque de Choiseul para terminar lendo a carta que este est escrevendo, sentado em seu escritrio. O sujeito hipnotizado torna-se onividente no apenas porque tem acesso a todas as suas representaes, mas tam-bm porque ele capaz de operar, no interior delas, um sistema de selees visuais, num movimento que se pode verdadeiramente cha-mar de 'pr-cinema'.

    J.K.: Como se pode formalizar a relao cinema/hipnose?

    R.B.: Sem verdadeiramente formaliz-la, pode-se pelo menos circunscrev-la de trs maneiras conjuntas. Encontramo-nos, ento, no plano do mtodo, necessrio precis-lo, diante do seguinte paradoxo: a psican-lise nossa nica ferramenta terica para falar da hipnose; apenas ela permite escla-recer a maneira pela qual o cinema se esclarece por meio, de uma comparao

    com a hipnose; mas, nesse movimento, ela, por sua vez, se acha esclarecida,

    preciso, portanto, inicialmente, co-locar um pano de fundo histrico que per-mita deslocar a relao de aplicao entre psicanlise e cinema (a psicanlise 'aplica-da' ao cinema) para situar o seu surgimento comum a partir da hipnose e de um certo nmero de tecnologias da viso no sculo XIX.

    Em seguida, preciso comparar o cinema e a hipnose enquanto dispositivos, no sentido em que Christian Metz e Jean-Louis Baudry fazem, esclarecendo o filme ou o cinema pela viso psicanaltica do sonho.

    Enfim, a reflexo deve assentar-se sobre os filmes: de um lado, na medida em que possuem (mesmo que s se possa afir-m-lo de forma metafrica) um poder mais ou menos hipntico; de outro, na medida em que inscrevem a hipnose em sua histria e seus personagens.

    Considerando tudo isso, deve-se su-blinhar a que ponto a hipnose (como mais tarde a psicanlise) estava ligada, desde a origem, diferena sexual. So majoritaria-mente as mulheres que so os sujeitos eleitos pelo sono crtico, por meio delas que o hipnotizador v. Numa longa nota de seu Prcis pour servir l'histoire du magntis-me animal, Mesmer descreve um caso (aquele de Marie-Thrse Paradis) em que literalmente por intermdio de um corpo e dos olhos de mulher que toma essa pr-viso dos dispositivos fotogrfico e cinematogr-

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  • fico. Isso quer dizer que no h (ou que no houve, durante muito tempo, majoritaria-mente) neutralidade sexual no dispositivo, seja ele teraputico, tecnolgico ou artsti-co, mesmo quando ele desativado por tal ou qual razo de toda problemtica dessa ordem. No se pode jamais esquecer que o cinema, como a psicanlise, nascem num mo-mento em que a questo da diferena sexual se pe de uma maneira bastante aguda, nes-se final do sculo XIX, que foi o lugar de sua cristalizao e expanso. porque se pode estar to atento maneira pela qual os filmes fundam suas histrias, de Grif-fith a Godard, sobre a diferena entre os sexos. que , de fato, tambm, uma questo de dispositivo, como no estabele-cimento histrico da relao hipntica, na realidade mdica e no fantasma literrio que as reconduz.

    J.K.: O que a introduo da noo de hip-nose traz para o "dispositivo" desenvol-vido por Metz e Baudry?

    R.B.: Pode-se inicialmente, num plano mais descritivo, fenomenolgico, ver como o dis-positivo hipntico e o dispositivo-cinema se correspondem, com apoio nos trabalhos do psiquiatra e psicanalista americano Lawren-ce Kubie. Num artigo fundador, Kubie dis-tingue duas etapas no processo de hipnose:5

    o processo de induo, durante o qual o sujeito se abandona, dorme, sob o efeito de uma regresso mais ou menos radical, por

    uma fuso com o hipnotizador e uma perda de toda relao com o mundo exterior; e o estado hipntico, em que o sujeito 'adorme-cido' reencontra, por meio da pessoa do hipnotizador, uma relao parcial e muito enigmtica com o mundo exterior. A situao do cinema me parece ser, de sada, a superpo-sio dessas duas fases: o espectador, subme-tido a essa sugesto particular que o filme, encontra-se por ali mesmo imediatamente submerso em um estado comparvel ao estado hipntico, no qual ele dorme sem adormecer. Trata-se aqui, evidentemente, de uma analo-gia, no de uma equivalncia: o cinema nunca pode ser mais do que uma hipnose ligeira, pois se o sujeito adormece no h mais filme.

    Em seguida, em termos mais direta-mente metapsicolgicos, essa equivalncia entre cinema e hipnose permite conceber de forma mais global certas relaes, que j foram formuladas, entre psicanlise e cinema. Para isso, apoiamo-nos sobre os textos em que a psicanlise confronta-se ela prpria com a hipnose: certamente os de Freud, e particu-larmente o 'Psicologia coletiva e anlise do eu,' 6 mas tambm os de Ferenczi, de Lacan, etc., e de Kubie, de Leon Chertok,7 que os prolongam e problematizam. De um lado, a hipnose induz fenmenos de regresso tpica muito prximos daqueles que intervm no sono e no sonho. De outro, segundo Freud, o hipnotizador toma, na relao hipntica, o lugar do Ideal do Eu. Dir-se- portanto: o dispositivo-cinema o que vem nesse lugar do hipnotizador, ele toma o lugar do Ideal do

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  • Eu. O espectador, tomado pela hipnose-ci-nema, assim capturado por uma espcie de garra entre a regresso e a idealizao. Pode-se dizer: ele vive a regresso sob a forma da idealizao. E completar o que j foi colocado por Metz e Baudry em relao ao sonho (hiptese da regresso), e permitir uma articulao com o que foi formulado como equivalncia entre a situao do ci-nema e o estdio do espelho. Em outras palavras, se o filme, enquanto continuidade de imagens e de sons, parece mais prximo do sonho, estamos no cinema mais prxi-mos da situao hipntica, na medida em que h, tanto num caso como no outro, interveno de um elemento exterior. O ci-nema, o filme, assim como um sonho sob hipnose.

    J.K.: O que voc descreve aqui parece uma relao de indivduo a indivduo. Ou a hip-nose no permite, ao contrrio, pensar a posio espectatorial em termos de fen-meno coletivo?

    R.B.: um dos interesses dessa hiptese. Pode-se assim pensar o espectador ao mes-mo tempo como indivduo isolado e como elemento de um grupo que se identifica com os outros sujeitos do grupo. a terceira forma de identificao arrolada por Freud na 'Psicologia coletiva e anlise do eu'. Ele descreve a hipnose como uma loucura a dois para ligar bem os termos entre sua anlise da hipnose e seu estudo da psicolo-

    gia coletiva, dentro da qual ele confere ao chefe essa mesma funo de ideal que ele atribui ao hipnotizador. A situao da mul-tido do cinema est assim exatamente a meio caminho entre aquela da massa e aque-la da situao hipntica.

    J.K.: Agora, de outro lado, na vertente da imagem, em qu um filme possui virtudes hipnticas?

    R.B.: Kubie, insistindo na importncia dos fatores rtmicos no processo de induo que leva o sujeito ao estado hipntico, precisa que existe a um fator muito interessante para os estudos de esttica. evidente que parece ridculo procurar medir precisamen-te o quanto um filme seria mais hipntico que outro. Mas menos ridculo procurar precisar a maneira pela qual os grandes modos de expresso flmica tm tendido mais ou menos para uma homogeneizao rtmica de suas componentes, a partir de duas posies extremas: no cinema experi-mental, por uma ruptura da identificao com os personagens, uma insistncia na identificao com a cme-ra enquanto tal e uma insistncia nos fatores rtmicos puros; no cinema clssico, sobretudo o america-no, por uma homogeneizao narrativa que conduz a uma hierarquizao bastante forte dos elementos num conjunto. Em re-lao a esses dois extremos, pode-se definir como menos imediatamente 'hipntico' todo um setor do cinema moderno, mais

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  • crtico, mais distanciado em relao a si mesmo, mais diversificado em seus compo-nentes, e oferecendo menos recurso a essa homogeneizao rtmica.

    J.K.: Isso significa que o cinema clssico dominante, tal como se desenvolveu, cor-responde a uma necessidade quase biolgi-ca e que ele no teria podido tomar outro caminho? Isso no se ope s concepes dos pesquisadores que, debruando-se so-bre o cinema primitivo, atualizaram muitos cinemas possveis, que foram ocultados em prol de um nico por razes que eles julgam mais ou menos ideolgicas?

    R.B.: No h necessidade biolgica. H simplesmente uma histria, que ocorreu de tal ou qual maneira, seja qual for o desejo de reconstru-la, por razes utpicas ou ideol-gicas (por exemplo, um desejo propriamen-te moderno de designar [assigner] para o cinema primitivo um outro desenvolvimen-to possvel). De outra parte, muito difcil fazer, de uma maneira precisa, uma psicolo-gia histrica do espectador. Em seu livro sobre os operadores Lumire, Jacques Rit-taud-Hutinet insiste muito, retomando cer-tos elementos do texto de Baudry ('Le dispositif), na extraordinria fora fan-tasmtica do cinema dos primeiros tem-pos, no qual ele v um efeito de quase-crena na ressurreio dos mortos (bem prximo, de fato, daquele j suscita-do um sculo antes por Robertson com

    suas fantasmagorias). Podemos perfeita-mente supor que essa representao, en-quanto tal, foi suficientemente forte para sustentar o que eu chamo metaforicamen-te de efeito-hipnose, que tomou em segui-da uma outra forma no desenvolvimento do cinema clssico.

    De forma geral, dentro de tudo isso estamos bastante prximos do trabalho de

    Q

    Gilbert Rouget: em La musique et la danse, ele estuda os ritmos da possesso, as con-dies ao mesmo tempo formais e culturais da produo do transe pela msica e da dana em um certo nmero de sociedades tradicionais. No cinema, sem falar das va-riaes histricas da prpria capacidade de crena, as estruturaes rtmicas po-dem ser de natureza muito varivel, ater-se s vezes msica, voz, imagem, aos tipos de relaes que se estabelecem entre as componentes.

    J.K.: A hipnose aparece tambm como mo-tivo narrativo em certos filmes, em particu-lar na srie dos Mabuse.

    R.B.: A srie dos Mabuse constitui no cinema clssico a soma reflexiva mais im-portante produzida por um diretor no cinema (pode-se mesmo considerar que em quaren-ta anos de distncia ela a introduz e a encerra). Nos trs filmes, Dr. Mabuse, der Spieler, Inferno (1922), Das Testament von Dr. Mabuse (1933), Die lOOOAugen des Dr. Mabuse (1960), a questo a do

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  • poderdeumindivduo,umpodercentralde visoededifuso,definidopelastrsgran-desfasesdedesenvolvimentodocinema:o cinema enquanto tal (o cinema mudo), o cinema falado, o cinema confrontado com o vdeo e a televiso. Como no ficar fascina-do pelo fato de que atravs do personagem de um hipnotizador, explicitamente no primeiro filme, mais indiretamente no se-gundo, mais implicitamente no terceiro, que Lang efetua essa reflexo sobre o poder que tem uni indivduo de produzir imagens e de procurar tornar-se o senhor do mundo atravs dessa produo de imagens. Tanto que, no primeiro filme, Mabuse ao mesmo tempo psicana-l ista. Todos os termos esto l, ligados pelo prprio Lang, trabalhando o corpo concreto do filme para mostrar como as representaes nascem, se transmitem, produzem uma influncia. Na famosa sesso no final de Inferno, a imagem cinematogrfica literalmente produzi-da pelo poder do hipnotizador de Mabu-se. Uma an l i se detalhada da sr ie permite uma espcie de percurso terico em ato da relao hipnose/cinema.

    J.K.: Como voc trabalhou, concretamente, sobre esses filmes de Lang?

    R.B.: Em trs nveis. Primeiramente a or-ganizao do roteiro: estabelecer as fun-es organizadoras de Mabuse em relao a todas as redes da histria, como ele

    funciona ao colocar o material humano e tecnolgico que Lang desdobra ao redor e a partir dele, tornando-se assim ainda mais mestre do filme. O segundo nvel diz respeito s cenas particularmente for-tes em que a maquinaria do dispositivo hipntico se estabelece: a prpria sesso, como na cena citada, ou certas trocas de olhares bastante densas, que aproximam os rostos num face-a-face prximo do que se pode imaginar como a situao hipntica, implicando evidentemente por ali mesmo ainda mais o espectador. Enfim, se conduzido a assinalar atravs do filme, em ordem dispersa, um nmero insistente de figuras visuais, de enquadra-mento, de iluminao, de recorte do es-p a o , que tendem ao que podemos chamar de captura do olhar. Essa 'hipno-tizao' do espectador no existe assim simplesmente no plano do roteiro nem mesmo por meio de certos momentos in-tensos, mas por meio das figuras privile-giadas que difundem o olhar de Mabuse e atraem o olhar do espectador. Pode-se distinguir assim trs grandes conjuntos de figuras produzidas pela inscrio da luz sobre as formas materiais do cenrio: o quadrado, o retngulo, que so outras tantas reduplicaes da tela; o tringulo, o facho luminoso, com sua ponta que orien-ta o olho; o crculo, que o aperta e faz circular. V-se assim como o efeito-hipnose no se propaga apenas a partir do prprio olhar de Mabuse, mas tambm atravs de

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  • toda uma figuralidade da encenao, sub-metida a fatores rtmicos de retomada, de alternncia, de que o cinema clssico vai se apoderar.

    J.K.: No h outros filmes que pem em cena a relao hipntica?

    R.B.: Evidentemente que sim. Sem ter feito um inventrio sistemtico, nem sobretudo ter podido ver todos os filmes cujos roteiros fazem pensar numa incidncia mais ou me-nos grande da hipnose, pode-se citar alguns dos mais notveis. Em Trilby, de Maurice Tourneur (1915), o cinema verdadeira-mente concebido como hipnose, a partir de numerosos efeitos de enquadramen-tos, de olhares, na confluncia de duas artes, a pintura e a pera, atravs de uma jovem mulher hipnotizada. H Le Pira-te, de M i n e l l i , 1 0 Whirlpool, de Premin-ger (1949), em que Gene Tierney hipnotizada de maneira exemplar, e que contm tambm a nica cena de auto-hip-nose que eu conheo: o heri, mdico per-turbado, se auto-hipnotiza em seu leito de hospital para acalmar sua dor e po-der retornar incgni to ao local de seu crime. H sobretudo Curse of the De-ntn, de Jacques Tourneur, que poderia ser com os Mabuse o filme culto de toda essa q u e s t o . 1 1 Ele pe em cena dois hipnotizadores com poderes opostos:

    aquele que cr na magia (portanto no cinema) e aquele que no cr mas que dever acabar acreditando nela pela experincia ao qual o outro o submete, e o que ele lhe enuncia como verdade da sua arte, quer dizer, da arte do cinema enquanto hipnose.

    Os filmes que tomam o dispositivo hipntico como todo ou parte de sua proble-mtica permitem induzir a relao privile-giada entre cinema e hipnose muito mais do que os filmes que permitem a mesma coisa em relao ao sonho. Sempre devido ao carter de exterioridade prprio do dis-positivo, que se encontra como literal-mente figurado, enquanto que a figurao do sonho sempre mais ou menos fracas-sada. Esses filmes convidam tambm a pensar ao mesmo tempo a solidariedade entre hipnose e cinema e hipnose-filme, por assim dizer: ou seja, a visualizar o problema tanto no nvel do dispositivo enquanto tal quanto no nvel da qualidade e da potncia do estmulo. Assim se mantm em relao o que por vezes se terminou por separar, na teoria do cinema dos ltimos vinte anos: de um lado o cinema como dis-positivo, de outro o filme como texto. E de fato pelo seu dispositivo mais ou menos atualizado em cada filme que o cinema no cessa de se tornar o que Epstein chamava de 'a mquina de hipnose'.

    * Entrevista feita por Jacques Kermabon

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  • Notas

    1. Roland Barthes, En sortant du cinma, Communications, 23, 1975.

    2. Jean Deprun, Le cinma et l'identification, Revue Internationale de Filmologie, 1, 1947;

    Cinma et transfert, Revue Internationale de Filmologie, 2, 1947.

    3. Communications, op.cit.

    4. Alexandre Dumas: Joseph Balsamo, Le collier de la reine, Ange Pitou, La comtesse de Charny,

    1846-1853. Sobre esta srie, cf. Raymond Bellour, Un jour, la castration, L'arc, Alexandre Dumas,

    71, 1978.

    5. Lawrence Kubie e Sidney Margolin, The process of hypnotism and the nature of the hypnotic state,

    The American Journal of Psychiatry, 100(5), 1944.

    6. Sigmund Freud (1921), Psychologie des foules et analyse du moi (nova traduo), em Essais de

    psychanalyse, Paris, Payot, 1981.

    7. Lon Chertok, R. de Saussure, Naissance dupsychanaliste, Paris, Payot, 1973. Lon Chertok,

    Le non-savoir des psy, Paris, Payot, 1979.

    8. Jacques Rittaud-Hutinet, Le cinma des origines, Champ Vallon, 1985.

    9. Gilbert Rouget, La musique et la danse. Esquisse d'une thorie gnrale des relations de la

    musique et de la possession, Paris, Gallimard, 1980.

    10. Cf. David Rodowick, Le circuit du dsir, em R. Bellour (d.), Le cinma amricain, Paris,

    Flammarion, 1980, v. II.

    11. Cf. Raymond Bellour, Croire au cinma, Jacques Tourneur, Camra/Stylo, 6, 1986.

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  • D O S S I

    ACREDITAR NO CINEMA (Camra/Stylo, 6, 1986)

    Raymond Bellour

    Para Thomas, que com 2 anos viu esse filme refletido num espelho, quando se acreditava que ele estava

    dormindo diante da televiso sobre os joelhos de seu pai.

    Que Tourneur seja por excelncia um dos cineastas da fascinao, quer dizer, da crena e de seus avatares, isso visvel a olho nu: enquadramentos, olhares, distncias, iluminaes, jogo calculado dos atores tomados como figuras, elipses e duraes. Que ele tenha feito a 'teoria' disso na mais fictcia de suas histrias {Curse ofthe Demon, 1957) permite medir como se refletiu o poder do cinema. Para um cineasta propenso, como ele, abstrao, o fantstico um terreno privilegiado, visto que os elementos espetaculares da intriga servem ainda melhor para representar esse espetculo em si mesmo fantstico que o cinema. A situao de conjunto do filme , a esse respeito, interessante. O heri aterrissa em Londres proveniente dos Estados Unidos. Atravs de um filme situado, mas tambm rodado e produzido na Inglaterra por um diretor francs tornado pea da mquina hollywoodiana, o cinema americano observa-se ainda mais claramente a partir de um olhar interior, extralcido. O poder de que ele nos fala aparece hoje como j envelhecido; ele culmina aqui no que poderia ser uma das ltimas noites em que o cinema realmente fingiu acreditar em seu demnio. Narrando rapidamente o filme, eu gostaria simplesmente de mostrar como se modela essa crena, como se constri a fascinao. Nem mais, nem menos.

    Desde o primeiro momento, a crena est em jogo. Um homem (Harrington, mdico, psiclogo) encontra um outro (Karswell, um 'mgico' , pregador). Tomado por um terror, uma loucura [un affolement] extrema, ele lhe diz: "Eu no acreditei em t i e errei: eu v i , agora sei e creio; estou pronto a encerrar meus ataques a t i e a me retratar publicamente, mas suplico-lhe que pare com aquilo que lanou contra mim". O outro lhe responde: "No se interrompe to facilmente aquilo que se comeou. Voc me desafiou dizendo: faa o pior; eu o segui e aqui estamos ns. O que aconteceu com o papel que eu

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  • te dei?" " Ele pegou fogo", diz Harrington," eu no pude impedir"." Verei o que possvel fazer", termina por responder Karswell, "mas evidentemente no posso garantir nada".

    J sabemos que ele no pode fazer nada: o preo do contrato estabelecido entre o filme e seu espectador. Harrington esse espectador que no acreditou no poder do espetculo e que morre nele. Ele enxerga e escuta, assim que volta para casa, uma imagem e um som insustentveis. O som uma vibrao que se destaca da partitura musical, aps ser momentaneamente confundido com ela; a imagem, uma onda de luz numa bola, avana do fundo do horizonte noturno, abate-se sobre ele e o destri.

    Esta bola de fogo ao final do percurso toma a forma de um monstro: excessivo e um pouco irrisrio, como a maior parte dos monstros (sua nica vantagem de figurar um gigantesco diabo, do qual o roteiro se utilizar novamente). Tourneur no quereria isso, preferindo defrontar seu personagem com a fora pura da luz, em virtude da qual Harrington termina, de resto, por morrer igualmente: quando ele tenta fugir, seu automvel choca-se com um poste eltrico, e inicia um outro incndio, cujo claro rasga a noite nas garras do improvvel demnio. 1

    Harrington esse espectador que no acreditou na verdade da imagem. O espectador desse espectador extraviado o verdadeiro foi advertido. Sobre a imagem-crditos dos rochedos de Stonehenge, ele pde ler que desde a origem dos tempos o homem utiliza o poder mgico dos smbolos rnicos para fazer sarem da sombra os demnios, e que isso ainda acontece. Crdulo e incrdulo, o espectador sabe que est sendo levado para o cinema. O plano seguinte (o plano realmente inicial do filme) apodera-se dele como tal: uma luz aparece ao longe, esquerda, na noite, desenhando o facho de um projetor; ela avana, ofuscante, depois pisca fracamente. Nada mais, compreendemos logo, que faris de automvel e uma estrada bordeada de rvores. No automvel, um homem abatido: Harrington se rende a Karswell. Antes de todo o desenvolvimento da histria, a insistncia do plano sugere sua trama: essa luz intermitente tem um efeito de vida e morte sobre o espectador. Ela sua 'verdade'. Sem luz, no h imagem; e a luz nua produz apenas cegueira. Entre as duas, h essa pulsao: o cinema.2 A capacidade que tem o espectador de acreditar nas imagens que ele modela se traduz no roteiro pelo debate entre crena e no-crena que atormenta os personagens. Essa equivalncia tambm, claramente, uma questo de planos e enquad-ramentos. O trajeto da bola de fogo que ameaa Harrington reduplicar (pelo eixo do olhar, o corte entre preto e branco, a relao entre longe e perto) o do farol-projetor do automvel pelo qual o espectador, reconhecendo o dispositivo-cinema, entra na fico.

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  • Para que o espectador possa acreditar no na histria mas no filme que a conta, e atravs desse filme, no cinema que o permite, preciso que a presena do sobrenatural se manifeste. O melhor motivo para faz-lo persuadir algum o heri, por exemplo cuja incredulidade serve de fio vermelho para um debate que durar quase tanto quanto o filme. Esse debate pe o espectador numa dupla posio: ele est do lado de todos aqueles que acreditam no fantstico e o produzem, pois ele, como os outros, v esse fantstico invadir a histria e a imagem; mas ele tambm toma o partido do heri que, a despeito das provas que acumula, vai neg-lo at quase o final do filme, porque seu papel o de tornar evidente a clivagem provocada no espectador pelo simples fato de ele se encontrar no cinema. Holden (um segundo psiclogo) toma assim o lugar de Harrington. Ele retoma a questo onde o morto a tinha deixado; mas num crescendo, j que, como Harrington no passado da diegese, ele no cr nos poderes de Karswell. A vantagem do prlogo a de que ns podemos a partir de ento ver Holden se perder em sua no-crena que anloga nossa, s que o seu problema no acreditar no diabo, enquanto o nosso ter aceitado crer no cinema. O filme ter portanto como assunto a converso do heri. Ele terminar por atingir o ponto em que o espectador j se encontrava desde o incio: Holden ser obrigado a acreditar nas imagens e a tem-las, para nos justificar o fato de fru-las e de t-las frudo, mas tendo acreditado nelas sempre pela metade.

    Essa questo da crena pode ser enunciada assim: a cena da sombra e da luz, a cena da morte de que o espectador foi, com a vtima, a nica testemunha, 'verdadeira'? Ou assim: ela realmente ocorreu? Ou ainda: poder ela se repetir, mas dessavez diante de uma testemunha, e se tornar assim mais verdadeira, ou pelo menos parec-lo? O filme ser portanto o percurso que permite essa repetio, de modo que o espectador saiba realmente o que se espera dele, quando decide ir ao cinema.

    Tal a perspectiva em que a chegada de Holden nos engaja. Holden renomado por seus trabalhos sobre o hipnotismo; autor de um livro destinado a provar que a feitiaria desapareceu desde a Idade Mdia. Ele vai Inglaterra para participar de um colquio sobre parapsicologia. Um de seus objetivos opor a verdade da razo s teses fanticas dos partidrios de Karswell. Como Harrington, de quem ele colega e amigo, Holden um sbio; ele s acredita em fatos, visveis e tangveis. Ele resolve mais decididamente continuar a obra de Harrington quando fica sabendo de sua morte. Dana Andrews d a Holden sua largura de ombros, seu ar distante, seu rosto pouco expres-sivo, sua maneira de sempre pensar 'para dentro', e de acreditar sem acreditar (como um espectador), coisas que fazem dele um dos atores mais fortes de um certo cinema americano. A crena que o roteiro lhe nega adere, com efeito, figura que se torna o seu

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  • personagem. Dir-se-ia que, oferecendo obstculo imagem que ele recusa, ele torna-se ainda mais uma tela sobre a qual ela se projeta (ele sobressai assim nos ltimos filmes americanos de Lang, os mais abstratos).

    O filme objetiva portanto recriar, para o heri, as condies de realidade de uma cena na qual ele se torna ator e testemunha, a fim de que o espectador continue acreditando no que j viu. A arte de Tourneur a de desenvolver sua histria (em torno de Holden, que o roteiro no abandona jamais) de tal forma que cada tempo forte contribui seja para impor a rememorao da cena inicial, seja para preparar sua reiterao. Os personagens que cercam Holden tm todos a funo de permitir esse processo. Poder-se-ia ver a, como no sonho, outras tantas figuras encarnadas ao redor da pessoa do sonhador, e o representante, a ponto de que ele se define mais por sua presso do que pelas resistncias de seu ser evanescente. Cada um sua maneira, os protagonistas concorrem assim formao de um dispositivo no qual o heri dever terminar por reconhecer (como o espectador) o desejo, feito de medo, que ele tem da imagem.

    1. Holden conversa com dois participantes do colquio. O primeiro um hindu: ele cr simplesmente na verdade do sobrenatural. O segundo, Mark 0'Brien, assistente de Harrington, mostra a Holden O vestgio primitivo de um diabo: o autor Hobart, um fantico acusado de assassinato. Ele desenhou sob hipnose essa figura inteiramente similar s gravuras em madeira que representam o demnio na tradio da alta Idade Mdia e da Renascena. Portanto, talvez no seja Hobart que matou, mas o diabo; ele poderia tambm ter matado Harrington, sobre cujo corpo se encontrou estranhas marcas, que a eletrocuo no explica suficientemente. A cena inicial assim imediatamente representada duas vezes, para Holden, que se diverte com ela, e para o espectador, que a rememora.

    2. Karswell aborda Holden no British Museum. Este procura um livro antigo: The true discoveries of witches and demons, curiosamente ausente das colees. Karswell prope a Holden que ele venha consultar em sua casa esse exemplar nico, que ele possui. Depois de um vo debate sobre seus objetivos e ideais respectivos, que Holden encerra secamente ("No estou aberto persuaso"), Karswell se vai, dando a Holden o seu carto. De ambos os lados do nome impresso, Holden l as seguintes palavras, escritas mo: " I n Memorian Henry Harrington, allowed two weeks". Ele esfrega os olhos: o texto desapareceu. Ele chama um dos funcionrios: no h mais nada no carto. Mais tarde, uma anlise de laboratrio o confirmar. Holden o nico (alm do espectador) a ter lido o que leu.

    3. Joanna Harrington (a sobrinha do falecido) aconselha Holden a abandonar sua empreitada. Ela descobriu o dirio do tio. A l i ele conta que Karswell sub-repticiamente lhe

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  • deu uma espcie de pergaminho, coberto de caracteres rnicos: um papel aterrorizante, dotado de uma vida autnoma. Joanna no acredita na morte acidental de seu tio. Holden lhe responde que ela est se auto-sugestionando. A, ainda, revivemos a cena. Joanna (que trabalha com crianas) invoca a crena das crianas nos fantasmas. Apesar disso ela no quer ser tratada como criana. Como ela, quando no mais criana, o espectador esse adulto que ainda acredita em fantasmas.

    4. Joanna e Holden esto juntos na casa de Karswell no dia de Haloween. Este, disfarado de palhao, faz nmeros de magia diante de uma turma de crianas. O debate entre os dois homens retomado. Karswell reafirma sua crena na confuso entre a realidade e o imaginrio, e nos poderes da sombra, parecidos com os do esprito. Para comprovar seu argumento, ele desencadeia uma tempestade. Quando Holden lhe diz: "Eu no sabia que vocs tinham ciclones na Inglaterra", Karswell lhe responde: "Ns no os temos". Ele prediz a Holden o dia e a hora de sua morte: s dez horas da noite do dia 28 desse ms. No lhe restam portanto mais que trs dias de vida. A coisa foi decidida desde o encontro no museu. Karswell despede-se de Holden, que no pde consultar o famoso livro (o que seria de resto intil, diz o mgico a Joanna, que se interessa: ele seria incapaz de decifrar o seu cdigo).

    Karswell torna-se ento realmente o representante da encenao. Mas esse poder tem seus limites. Karswell o primeiro a ser submetido quilo de que ele parece ser o mestre: a tempestade ultrapassou as suas previses. E ele se pergunta tambm se sua me acredita realmente na magia (do cinema); ele lhe confessa, como antes a Har-rington, queele no pode deter aquilo que ele comeou. E ele lhe detalha a trama: ser sua prpria vida ou a de um outro.

    5. Segunda conversa com Mark e o hindu, a propsito de Hobart e do diabo (mesmo cenrio, no quarto de hotel de Holden). Este os acusa de ceder auto-sugesto e histeria de massa (em outros termos: eles so espectadores bons demais). Mark lhe pede permisso para olhar em sua agenda as anotaes da comunicao que ele deve pronunciar no colquio: as pginas esto rasgadas depois do dia 28 desse ms.

    6. Segunda noite com Joanna (em seu apartamento). Ela descobriu pginas arran-cadas no dirio de seu tio: depois do dia 22, data de sua morte. "Ningum escapa do medo. Tenho uma imaginao como todo mundo. fcil ver uma apario em cada canto escuro. Mas recuso-me a deixar essas impresses dominarem minha razo." "Muito bem", responde-lhe Joanna, "mas voc est certo de que Karswell no lhe deu nada?" Holden verifica os dossis que ele tinha no British Museum: o pergaminho, uma estreita tira de papel, escapa, foge atravs do quarto, detm-se contra a grelha da chamin onde um fogo

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  • crepita. Holden apanha-na e a guarda em sua carteira. Seu ceticismo transformava-se em dvida (no exprimida), sem coincidir ainda com a crena que afeta mais ou menos os outros personagens.

    7. Holden visita a famlia de Hobart. Ele pede autorizao me dele para tratar seu filho pela hipnose, a fim de que ele possa dizer o que fez e viu no dia do assassinato. Todos consideram Hobart como danado, escolhido pelo demnio. Holden abre sua carteira, deixando entrever o pergaminho que se agita. "Ele foi escolhido."

    Holden erra entre os rochedos de Stonehenge: o heri preenche a imagem-crditos. 8. Mrs. Karswell organizou uma sesso com um mdium. A roda dos espectadores

    se forma: em ambos os lados do mdium, Mrs. Karswell, uma de suas amigas, Joanna, Holden (preparado pela moa). O mdium, em transe, 'encarna' sucessivamente vrios personagens. Uma criana. Um ndio. Um escocs. E finalmente Harrington. Uma vez mais a cena inicial reencenada, mas desta vez por mmica, dramatizada. Holden interrompe a sesso: ele quebra o crculo dos espectadores, para que a cena possa recomear em outro lugar, j que ele deve terminar sendo seu objeto.

    9. Joanna e Holden vo casa de Karswell noite. Holden arromba (no lugar de Joanna, que quer fazer isso antes) a entrada da biblioteca. O livro est sobre a mesa. Ele o folheia. Um gato est sobre o corrimo. A luz se apaga. O gato transforma-se num leopardo que ataca Holden. A luz se acende. Karswell entra. O gato est dormindo num sof. Karswell diz a Holden, que o acusa outra vez de louco: "Voc que louco e possudo por entrar assim em minha casa durante a noite. De qualquer forma, voc vai morrer amanh; mas seria melhor no voltar pelo bosque". A fico gosta dessas proposies contraditrias que a fazem avanar.

    No bosque, Holden perseguido pela bola de fogo que se forma no horizonte, esgueira-se entre as folhagens, invade a imagem. A cena se reencena por uma preciso redobrada; ela torna-se novamente verdadeira, para o prprio Holden, que v e cede a um comeo de terror. Mas ela se interrompe: a mancha de luz se reabsorve quando Holden sai correndo. Foi suficiente que Holden acreditasse no poder da alucinao, e que o espectador participasse disso.

    Holden vai com Joanna ao comissariado e conta o que viu. A polcia, por um breve momento, o faz retomar seu papel: aquele do ceticismo que faz ressaltar a crena. Mas Holden o reassume rapidamente, apesar das provas que se acumulam. Ele critica Joanna por lhe comunicar sua histeria: " Eu no sou supersticioso como 99% da humanidade" (quer dizer, a multido fantasmada dos espectadores). Isso preparar ainda melhor o retorno final.

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  • 10. Uma sala. Uma cena. Espectadores. Hobart trazido para a cena. Aplicam-lhe pentotal. Ele desperta, uiva. E dominado. Holden o hipnotiza. Hobart adormece e responde s questes de Mark O'Brien, que toma sua vez. O dilogo aborda a seita dos true believers, os verdadeiros crentes, adeptos do demonio, e seu chefe, Julian Karswell. Mark obriga Hobart a reviver a cena inicial. It's the night of the demon. Ele a recria, tal como Holden acaba de viv-la. " aqui, eu a vejo, entre as rvores, uma fumaa... e um fogo, o tempo de vida que me foi concedido est quase acabado." Holden intervm: ele quer saber mais.

    O que voc quer dizer? O tempo que lhe foi concedido? Para me preparar para morrer. Por que voc deve morrer? Eu fui escolhido. Como voc morre? O pergaminho me foi passado, eu o peguei sem o saber. Hobart, abra os olhos. (Holden tira o pergaminho de sua carteira e o mostra.) No... Eu o passei ao irmo que me tinha dado. E a nica maneira. Era necessrio

    que eu o desse a ele. Eu no queria, mas era a nica maneira de me salvar. Para se salvar, voc deve d-lo quele que lhe deu... Sim, devo faz-lo, e o demnio por ele. No eu. No eu. Vocs esto tentando me

    pass-lo de novo. Eu no o pegarei, no... Hobart se levanta, agarra Holden, foge, sai pelo corredor, corre e salta pela janela.

    Holden se apressa. Ele fica sabendo pelo hindu que a me de Karswell telefonou: seu filho vai tomar o trem s 8:45h. "Ela disse que era preciso acabar com todo esse mal." Holden se apressa ainda mais: s 10:00h, nessa mesma noite, que Karswell previu sua morte.

    Enfim Holden transformou-se nesse espectador que acredita na verdade das im-agens. Evidentemente, o interessante que o relato, para poder terminar o filme ('acabar com todo esse mal'), deve ento se repetir e que a cena anunciada, ao mesmo tempo sempre diferente e constantemente reiterada, chegue finalmente. A crena de Holden (como antes a de Harrington) precipita a chegada do demnio. Isso literal e segue as regras do suspense mais estrito. Holden diz a Karswell, no trem onde ele o encontrou: " Creio que dentro de cinco minutos alguma coisa horrvel e monstruosa vai acontecer". Como Harrington, Holden confessa seu erro a Karswell; ele at lhe agradece, com todas as letras, por t-lo convencido da existncia de um mundo que ele nunca tinha acreditado ser possvel ( claro, o cinema). Ele lhe prope, nos mesmos termos, um desmentido pblico. A nica diferena que o seu pergaminho no pegou fogo e ele aprendeu a regra do jogo. Holden chega ento a d-lo a Karswell, que se torna a vtima que se esperava.

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  • H trs razes para esse desnudamento. Holden-Dana Andrews a vedete, o homem do casal que forma com Joanna (casal de resto surpreendentemente discreto, o que aumenta o mistrio do filme, liberando-o de certas convenes). Holden encarna tambm, como se viu, o espectador: a parte do espectador que no pode acreditar no espetculo e s aceita acreditar nele totalmente, enfim, porque o espetculo termina. O espectador, de fato, joga ainda mais livremente com o fato de acreditar quanto mais ele antecipa o momento em que, tendo o filme terminado, ele s poder crer menos. Enfim, Karswell o diretor, homem de iluso, do mal, da pulso. Os 'verdadeiros crentes', que ele dirige, invertem a ordem do bem e do mal; eles acreditam na virtude do mal. Karswell assim, por excelncia, aquele que no pode evitar a imagem: ele a produz, a reconhece como mortal, e s pode morrer.

    Sua morte, se excetuamos a apario do demnio, um dos momentos mais puros de cinema que eu conheo pelo menos do cinema que reconhece na imagem um poder mortal. Assim que o pergaminho volta s suas mos, Karswell no mais que movimento. Ele segue, as mos estendidas, o papel que lhe foge, numa direo inflexvel: primeiro nos corredores do trem, depois, quando o trem pra, sobre a via frrea ao longo da qual o efeito se prolonga at a vertigem. At o momento em que o pergaminho cai ao longo do trilho, e se consome. Ento, no horizonte noturno, no lugar exato onde o olhar exorbitado de Karswell v desaparecer o trem, aparece o turbilho de luz que anuncia o monstro. A imagem monstruosa parece assim nascer do ponto de fuga que segue ao longo dos trilhos o olhar de Karswell. Este se volta ento para se esquivar. Mas, do outro lado, sobre o eixo oposto, aparece um segundo trem que avana em sua direo. O extraordinrio, aqui, que jamais Karswell escapa dos trilhos (exceto no ultimssimo instante, para evitar que o trem o esmague e para permitir que o monstro o agarre). Ele fica sobre a via, seguindo a linha ao longo da qual o pergaminho lhe conduziu, e sobre a qual a luz-monstro e o trem se encontram. Nesse fim de filme, Karswell torna-se o heri da fascinao. Aquele que cr verdadeiramente no cinema. A ponto de morrer nele para nos fazer crer. Ele fascinado pela imagem, pela sombra e pela luz (encarnadas pelo trem e pela luz-monstro) como puros movimentos. Elas se confundiriam tornando-o pequenino, se as exigncias da produo no fizessem o trem passar sob o demnio que dilacera o corpo de Karswell antes de jog-lo sobre a margem da via frrea.

    O efeito do trem, por contgio, estende-se at todos os ltimos planos, para alm do olhar de Karswell. Depois de se aproximar da via onde jaz o corpo, Holden volta para a plataforma onde ele reencontra Joanna. Eles concordam, enfim, sobre uma posio comum: Holden repete o que Joanna lhe sugere: "Talvez seja melhor no saber" (deixemos intacta

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  • a parte de mistrio prpria do cinema, preservmo-la para melhor fru-la). Eles avanam sobre a plataforma, em plano mdio; depois, tendo a camera tomado o campo, eles so enquadrados no ltimo plano em plano geral. E ento que passa um trem, o terceiro. Seu apito lembra a vibrao sonora que sublinha a apario do monstro. Ele invade a imagem e, literalmente, apaga o casal. Depois da passagem do trem, no resta mais que um plano vazio. Oferecido ao puro olhar da fascinao.

    O pergaminho o que traduz mais de perto essa potncia do olhar. Por que o pergaminho, mais que a luz-monstro ou o trem que experimentam to fortemente, cada um, as propriedades do dispositivo-cinema (viso, movimento, enquadramento, enfileira-mento)? Porque ele um fragmento. Um livro est no centro do filme: ele orienta o itinerrio do heri, do British Museum (onde ele no se encontra, e onde Holden recebe por sua vez o carto de visita em que as palavras se apagam) casa de Karswell (onde Holden no o encontra [le manque], enfrentando em seu lugar um tornado, um leopardo e a luz-monstro). O livro conduz assim ao prprio fantstico: a imagem alucinada. Ele se torna o segredo do filme. Seria suposto que ele exprimisse seu sentido, se fosse decifrvel. Mas a questo, eludindo-se, mostra que o nico sentido do livro o de encarnar o poder de Karswell. 5eu poder de engendrar a crena, de criar imagens, de produzir a fascinao. Nisso, o livro a metfora do filme; volume de imagens e de signos, ele lhe exprime a

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    virtualidade. E aqui que intervm o pergaminho, tambm misterioso por seus smbolos rnicos que o livro parece deter, numa lngua indecifrvel ao no-iniciado, a chave da realidade e o sentido ltimo da vida. Mas esse sentido, se viu, no sentido: ele concerne apenas ao desenvolvimento do filme e reduz todo discurso produo da imagem, figura. A i est o que o pergaminho exprime, fracasso, fragmentao do livro. Estouro da figura. Se o livro representa o filme como corpo virtual, volume de todas as imagens, o pergaminho encarna a circulao da imagem enquanto fragmento. E preciso imaginar seu movimento, ao mesmo tempo concreto e abstrato. O pergaminho esse objeto que circula, que os heris devem se repassar, como no jogo do anel. Mas ele , tambm e sobretudo, aquilo que na prpria imagem se agita, no pode ficar no lugar, seu ponto de fuga e sua vibrao. Ele ao mesmo tempo o corao secreto de cada imagem e o que desliza entre as imagens; imagem da imagem, se assim se pode dizer, no que ela tem de perpetuamente oculto. Insgnia metafrica do filme, o pergaminho produz e reproduz nele a metonimia descon-trolada. Ele a imagem que jamais se toca. Ele sempre escapa e termina por se consumir. E morreremos com ele. Como se faz diante do objeto da fascinao.

    Mas por que, na viso desse objeto de fuga, ter feito de Holden um hipnotizador? Que necessidade essa histria tem da hipnose? Seria isso para dar corpo velha ideia que

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  • consistiu em ver no cinema uma espcie de hipnose? Sem dvida. Mas isso permite opor sobretudo dois regimes da crena e do olhar, misturados e no entanto distintos: a hipnose e a fascinao. Elas correspondem aqui s posies de dois principais personagens: tambm porque ele nos faz correr o risco de parecer grosseiros que esse filme to fino. Ele convida, com as dificuldades prprias a esse gnero de exerccio, a reprojetar o filme no cinema.

    A hipnose (a verdadeira) precisa da fascinao. Mas empurrando-a at o fim, ela a subjuga e a faz dormir, por assim dizer. O sujeito da hipnose deposita seu olhar sob a influncia do duplo movimento que o aprisiona pelas garras: regresso, idealizao. O sujeito-espectador submetido a mesma influncia, na leve hipnose que a sua, a hipnose-cinema. Mas h duas maneiras de viver o olhar que lhe resta, ele que no est realmente hipnotizado: o olhar identificante, e o olhar da fascinao, um que vai na direo da vida, e outro que vai na direo da morte (a distino de Lacan: entre o que ele chama de 'o instante de ver' e o fascinum).*

    Holden esse sujeito que acredita, como Mesmer e Freud, que a hipnose aumenta o campo da conscincia e permite ver mais do que v o olho da simples memria. algo que O Cinema tem em comum com a hipnose, e que ele realiza segundo seu modo prprio. O papel do hipnotizador apresentado a Holden designa assim por analogia essa potncia do dispositivo-cinema. Mas o personagem definido de maneira que ele seja, atravs dele, desligado da fascinao: ou porque a fasci-nao deve ser abolida na hipnose, ou porque ela permanece em suspenso no instante do ver. Inversamente, Karswell s acredita na fascinao. Ele designa esse fato de que no h viso clara e distinta que no a carregue consigo como seu avesso ameaador . Karswell detm a verdade do filme, do qual ele uma espcie de produtor delegado, obrigando Holden a tornar-se seu espectador. Um espectador completo, quer dizer, tambm um espectador fascinado. E porque Holden o nico a ter a lucinaes , alm da luz-monstro que ele compartilha com Harrington e Karswell (o carto de visita, a silhueta de Karswell que se afasta vacilante pelos corredores do British Museum, o gato-leopardo); ali onde Karswell s v apenas o real, sempre j alucinado, e de parte a parte fascinante (o monstro, no final, condensa sua imagem). Para sublinhar esse duplo jogo entre duas instncias, o relato, logo depois da sesso em que Holden hipnotiza Hobart, finalmente d a Karswell o poder da hipnose (ele fez adormecer Joanna, que Holden reencontra com ele no trem). Karswell assim assimilado a Holden, no momento em que Holden reconhece a potncia emprestada a Karswell

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  • desdeocomeodofilme.Oespectador v que o filme nasce desse debate: ele cede com um prazer misturado de medo fruio doce da fascinao contida pela hipnose.

    A sequncia da hipnose, durante a qual se produz a perturbao de Holden, tambm o momento em que os dois regimes convergem, claramente, tanto no relato como na imagem. Diante de uma multido de espectadores que evidentemente tm como funo nos designar nosso lugar, ao mesmo tempo no drama e fora dele, Holden, na cena, o encenador. Por meios qumicos (atravs do pentotal), Hobart tirado primeiro de seu estado catatnico. Ele se torna, tanto diante de ns, espectadores, como diante daqueles na sala, o puro espectador fascinado. Ele rev a viso insuportvel de que fugiu na paralisia. Close-up dos olhos (o nico do filme depois daquele de seu olho morto, nove planos antes): fixos, nos olhando, abertssimos. Quatro planos para frente, surge um close-up do rosto, os olhos saltados: Hobart uiva e se precipita em nossa direo. A hipnose agora o meio que Holden emprega para adormecer, quer dizer, subjugar a fora pura da fascinao. E abrigado na hipnose, como o espectador real, que Hobart revive a cena originria . Justo no momento em que Holden, ameaado pela verdade que nasce de sua posio de mestre e a reduz a nada, desperta Hobart e ordena-lhe ver. o f im da hipnose, tanto para o hipnotizador como para o hipnotizado, e o triunfo da fascinao. Hobart salta pela janela antes de ali sucumbir; e Holden, se v iu , ali se abandona para evitar morrer. O espectador frui ainda mais do que podem reconhecer as foras antagonistas que concorrem em sua identidade.

    Notas

    1. Aqui est, por exemplo, um excerto de uma conversa entre Chris Wicking e Tourneur (Midi-Minuit Fantastique, 12,1965): " um filme fascinante. Penso em particular no uso que se faz da identificao dos espectadores: ns vemos o demnio, depois Dana Andrews chega e diz: 'No h demnio...'" No sabemos mais em quem acreditar: no heri ou nos nossos prprios olhos. " As cenas em que verdadeiramente se v o demnio foram rodadas sem mim. Todas, menos uma. Eu rodei a sequncia no pequeno bosque onde Dana Andrews perseguida por essa espcie de nuvem.Teria sido necessrio utilizar essa tcnica nas outras sequncias. O pblico nunca estaria completamente certo de ter visto o demnio. Dever-se-ia desvel-lo apenas pouco a pouco, sem jamais realmente mostr-lo."

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  • Tourneur diz aqui duas coisas diferentes. Sobre o demnio, ele acrescenta, em outra entrevista (com Joel E. Siegel, Cinefantastique, 2 (4), 1973), que ele teria gostado de introduzir quatro imagens do demnio na cena final, para que no se saiba se ele foi visto ou no. A segunda coisa diz respeito cena com Harrington. Pode-se a, como Chris Wicking, no se estar de acordo com Tourneur.

    2. Mare Vernet," Clignotements du noir et blanc", em Thorie dufilm, Albatros, 1980.

    3. Alis, impressionante que, nessa lgica, a prpria viso dos personagens seja materialmente figurada pelos livros: o dirio de Harrington, a agenda de Holden, com suas pginas arrancadas depois da data presumida de sua morte. Poder-se-ia tambm detalhar: parece que h na realidade dois livros, mesmo que se faa tudo para que acreditemos que seja o mesmo. O primeiro conteria de preferncia imagens de bruxaria (est ligado ao demnio); o segundo seria escrito em caracteres rnicos (est ligado ao pergaminho). Sobre o filme como livro, cf. Thierry Kuntzel, " Volumen/Codex" em "Le travail du film", Communications, 25, 1975, pp. 140-141. Essa imagem foi retrabalhada em sua fita e instalao de vdeo, Nostos I e Nostos II.

    4. Jacques Lacan, Les quatre concepts fondamentauxde lapsychanalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 107.

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  • SUJEITO E NARRAO NO CINEMA

    * Rogrio Luz

    Compreender a mutao cultural que caracteriza o tempo presente inclui considerar o papel da narrativa e da multiplicidade de formas que ela assume na modernidade. Tradicionalmente, contar histrias uma forma de perpetuar a cultura de um grupo atravs de transmisso oral. A passagem para a escrita, que supera a relao face a face entre o contador e seu auditrio, implica um deslocamento que preciso reexaminar, quando o foco de interesse so narrativas difundidas em escala de massa.

    Em verdade, a elaborao de histrias relatos de acontecimentos, fabulaes frag-mentrias ou sistemticas permeia desde a comunicao cotidiana s grandes celebraes do mito e da tragdia. A funo narrativa est no centro mesmo do que se pode chamar de cultura, com sua capacidade de provocar uma experincia de tempo cuja densidade a de um presente que acolhe um passado e promete um futuro, um presente espesso, capaz de ser pensado frente ao acaso da pura sucesso cronolgica de momentos de uma vida. Esta funo, por suas inumerveis variantes, torna possvel uma modalidade de subjetivao: de um agenciamento comunicativo prvio ao discurso, sempre pressuposto por este, emerge um sujeito como instncia e como efeito de discurso. Isto , o sujeito da narrao significa, ao mesmo tempo, sujeito que narra, sujeito narrado e sujeito 'narratrio' (por analogia com o termo destinatrio). Essa tripla funo, que coloca ou posiciona um sujeito entendido como trnsito entre pontos ou momentos de concreo e determinao , retomada da tradio oral e literria pelo audiovisual. O fascnio do audiovisual no reside apenas nas imagens, sonoras e visuais, que ele apresenta percepo, mas a uma especfica modalidade de apresentao a que cedo o cinema se dedicou, atravs de um fato que marcou o sculo: a modalidade narrativa e sua expanso planetria. Ao lado do romance e do drama teatral, o cinema passa a ser o grande contador de histrias da era moderna.

    * Artista plstico, professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura da ECO-UFRJ, doutor em Comunicao pela Universidade Catlica de Lovaina, Blgica.

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  • As relaes entre cinema, literatura e teatro, sob a perspectiva narrativa, remetem a articulaes entre diferentes sries culturais, suas interconexes e snteses provisrias, que caracterizam a arte moderna. Para alm da distino entre arte erudita, arte popular e arte de massa, o cinema inscreveu-se no campo da arte moderna, manifestou a potncia de um acontecimento artstico moderno. Ele pertence, da diverso sem compromissos aos experi-mentos de vanguarda, simultaneamente a esses trs registros, em que uma tipologia simplista procurou distribuir as formas de arte na poca da indstria cultural.

    O panorama audiovisual, hoje comandado pela televiso mas que a tecnologia da imagem computadorizada revoluciona, aponta para interpolaes de gneros e formas de expresso. Creio que o cinema esteve na raiz dessa nova paisagem. A maneira de estruturar o espao aproxima o cinema da pintura e da arquitetura. Pela pura forma visvel, que se desenvolve em movimento rtmico, ele se aparenta dana; e msica, se considerarmos o desdobramento de suas formas sonoras, includos a a palavra e o rudo. As personagens, suas falas e aes, num espao e num tempo presente virtual, assemelham o cinema narrativo e ficcional ao teatro, e todo esse material lugares, tempos, aes e falas literatura, se tomamos o cinema como uma escritura em imagens. No se trata, porm, COIIlO Se afirmava nOS primeiros tempos, de uma sntese das artes. As novas articulaes que o cinema potencializa so antes sintomas da mistura de gneros e linguagens, para alm da tradicional classificao das artes. E um trao genrico da mutao cultural a que de incio nos referamos.

    De fato, o cinema foi o primeiro a responder, com uma tecnologia nova, que cedo seria atravessada pela vontade de arte dos artistas, necessidade de ruptura das fronteiras que dividiam internamente o territrio das artes. Ele leva esse experimento ao homem comum, como uma nova possibilidade de insero no mundo. Trata-se no de um processo intencional, dirigido por um pequeno grupo de inventores e empresrios, mas de um fenmeno de civilizao de dimenses inusitadas. Superposio, ecletismo, concorrncia entre linguagens, por um lado; intensificao e extenso da fabulao narrativa, por outro: eis duas das mais importantes caractersticas do cinema, que se prolongam na televiso e no vdeo e proliferam nos procedimentos multimdia.

    Antes de marcar a importncia para a recepo de um filme, do carter verdico ou fictcio do relato narrativo da mesma forma que distinguimos, quanto ao relato escrito, entre um romance e um noticirio jornalstico , preciso enfatizar o carter fabulador do audiovisual em geral. O relato de fatos fabulados traz marcas que tornam dispensvel a verificao extratextual de suas apresentaes. O fato passa a ser apresentao do fato, e essa apresentao interpretao. O fato se realiza diante de ns como fbula. Similar

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  • vida, a imagem, a pura imagem sem corpo, se anima. O relato sempre mquina de fabular, isto , processo de elaborao ficcional, de que a produo da descrio e do conhecimento verdadeiros surge como um caso, e no dos mais confiveis...

    Essa potncia de iluso, essa indistino entre fato e inveno, real e imaginrio que tantos deploram , no prpria apenas da forma audiovisual, mas da prpria forma narrativa e do tempo humano que dela pode emergir. Na medida em que o cinema de fico, ao exprimir-se atravs de maneiras especficas de dar forma ao real, se exterioriza em direo a um mundo, a uma realidade compartilhada, em que na verdade encontrou em um movimento circular seu impulso originrio, ele se torna coletivamente relevante. Fabular no afastar-se do mundo para atingir as nuvens do imaginrio ou da fantasia consciente ou inconsciente, mas retornar ao mundo, reinventando-o. O filme s se pode dar nesse movimento de exteriorizao/interiorizao, tornando impossvel o enclausura-mento a que um formalismo estetizante gostaria de reduzi-lo. O cinema, atravs da sucesso e simultaneidade rtmicas, corporificadas na materialidade das imagens visuais e sonoras, pensa e experimenta a durao. Nesse sentido, ele sempre fbula pensante e sempre cartografia realista: escritura de um mundo virtual que altera os quadros da experincia.

    Fortuito ou necessrio, o encontro do cinema com a forma narrativa fundamental para a compreenso das novas modalidades de subjetivao. As mudanas radicais por que passa o prprio exerccio narrativo na modernidade, com a referida abolio de gneros clssicos e a produo de hbridos, so um argumento a mais para a nfase terica a ser conferida funo narrativa dos produtos audiovisuais: o filme foi o primeiro dentre eles a refletir tais mutaes.

    O formalismo lingstico e semiolgico dos anos 60, que acentuou no cinema sua fora de linguagem, capaz de produzir uma infinidade discursiva, provou sua importncia para a compreenso dos processos de semiose que atravessam a sociedade urbano-indus-trial. Deve-se afirmar, contudo, sob o risco de parecer retrgrado, que a importncia de um filme no est em sua linguagem, mas no modo como essa linguagem reconfigura a realidade, torna-a visvel, apresenta-a em imagem imagem que constitutiva do esprito, como quer Francastel,1 ou, como em Susanne Langer, uma forma de pensamento simblico figurai e amplia nosso sentimento de realidade.

    provvel que o audiovisual no tenha explorado todas as suas possibilidades constitutivas. Essa contradio, de carter histrico, torna premente seu exame. Neste, os aspectos propriamente estticos e artsticos do cinema devem ganhar o primeiro plano: so eles os decisivos na compreenso de um novo regime da sensibilidade. Para tanto, preciso entender a arte no como produo secundria no domnio das linguagens, em confronto

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  • com o discurso da cincia e da poltica, pretensamente mais significativo porque re-lacionado eficcia no plano do conhecimento instrumental e da organizao da vida na cidade, mas como esquema especfico de pensamento. Arte no traduz ou reflete a realidade, no a representa: ela a apresenta e elabora historicamente. Suas variaes histricas no podem ser reduzidas a variantes de uma estrutura de base, um princpio formal ou de contedo lgica do sensvel ou coleo de arqutipos , mas resultam do processo de pensar, com um material de sensaes, o diverso da vida cultural artstica e no-artstica em sua multiplicidade e ambiguidade. Tal processo prescinde de qualquer transcendncia organizadora: ele desdobra continuamente, atravs de novas maneiras de formar, matrizes de relaes inovadoras entre elementos culturais. A inteligibilidade que a arte postula, que ela prope potencialmente a todos e que ela solicita anlise , portanto, fruto de uma condio histrica especfica e componente de seu prprio processo. E nesse sentido que se deve entender a centralidade da questo das novas subjetividades estticas e de sua emergncia sob forma artstica. Por isso, se a presente reflexo se limita a consideraes estticas de carter geral sobre cinema, essa generalidade parece indispen-svel compreenso do prprio processo.

    Gostaria de abordar brevemente trs aspectos interdependentes das relaes entre sujeito e narratividade: primeiro, o tipo de narrao que opera a cultura de massa, presente no audiovisual; segundo, a noo de narrao e sua relao com a histria e o discurso, base para distinguir caractersticas significativas da subjetividade implicada na narrativa; por fim, o audiovisual como escrita ou como fala, e a situao de comunicao a implicada. No se trata de resenhar e comentar a imensa produo que se acumulou nesse campo de reflexo desde a dcada de 60, mas de pontuar algumas questes de interesse geral. Tipologia, estrutura e modalidade de comunicao narrativa podem fornecer indicaes de estilo, porque o mundo estilo, diz-nos Merleau-Ponty.2 Ora, o estilo que configura o gesto de um novo regime de sensibilidade, de um novo paradigma esttico, como quer Guattari.3 A arte ganha um lugar central nesse processo, porque " a arte a linguagem das sensaes, passe ela pelas palavras, cores, sons ou pedras" . 4

    A narrativa, como concreo do tempo, d-se historicamente sob forma tradicional atravs de funes de unificao e totalizao. Em princpio, a conveno narrativa impe que uma histria se d com a ruptura de uma ordem qualquer suposta e manifeste essa desordem atravs de oposies de caracteres, intenes e interesses, as quais provocam desafios e lutas. Os acontecimentos inscrevem-se em uma temporalidade orientada comeo, meio e fim , embora possam ser apresentados em diferentes posies no discurso manifesto (um fato capital ocorrido no comeo da histria pode ser apresentado

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  • no final do discurso). Enfim, a narrativa comporta personagens, identificveis ao longo de seu desdobramento.

    As narrativas presentes na industria cultural tendem a reter as grandes articulaes da forma tradicional, com sua linearidade, transparncia e clausura. Um modelo reduzido de mundo, altamente idealizado, conforta e assegura o espectador que segue sem riscos o simulacro de uma aventura aberta. Ora, uma nova tradio, a partir da frmula romanesca, criticou e desarticulou a grande forma narrativa e deu lugar a ou refletiu um sujeito mltiplo, descentrado e fragmentado, que advm ao longo de um fluxo casual de sensaes. Nesse sentido, as novas narrativas, ao iluminarem o homem comum em uma situao excepcional pela sua prpria insignificncia, passageiro de um espao e de um tempo quaisquer, investiram no realismo radical da experincia imediata, dos fragmentos de vida, das pequenas histrias. A prpria narrativa de massa do videoclipe telenovela , ao tratar os grandes temas do amor e da morte, procurando fornecer um sentido institucional-mente cristalizado existncia cotidiana, afetada pela pequena narrativa moderna, que procura pensar com radicalidade a experincia do homem contemporneo.

    A oposio entre narrativa tradicional e narrativa de desconstruo no chega a dar conta da diversidade atuai do panorama. Agentes na esfera especfica da chamada "cultura superior" colaboram com produtos tpicos da indstria cultural de massa, sem a qual, alis, a mencionada cultura superior no se pode viabilizar. crtica sofisticada s metanarrativas no campo literrio e poltico, aos grandes painis da histria, se contrape uma demanda de sentido global e de orientao prtica para uma existncia inesttica, embora estetizada, submetida s relaes de mercado. Indcio dessa tendncia o prestgio das biografias e de feitos e personalidades histricas romanceadas. A isso parece corresponder um re-crudescimento de discursos narrativos de cunho religioso, promovidos seja pelo retorno s grandes religies, seja pelo incremento e proliferao de seitas mais ou menos exticas. Em geral, narrativas de natureza explicativa e normativa servem de referncia para a afirmao de diferenas culturais. Elas podem ser utilizadas por minorias em busca de fundamentao e legitimao.

    Convivem e mesmo se interpenetram no mundo contemporneo a narrativa ideali-zante, modelizante de um universo de sentido potencialmente ordenvel, e aquela crtica, ctica e trgica, realista no rastreamento de experincias sem eixo. O artista pode ou no recorrer a histrias conhecidas ou clebres, a temas e problemas universais. O sentido produzido no depende mais, porm, de nenhum princpio que o transcenda. Ele tanto pode decorrer de um jogo lgico e estetizante, como em Greenaway, como de um espiritualismo angustiado e pessimista, mas apaixonado, como em Kieslowski. Exemplos entre outros,

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  • os filmes desses dois diretores, de sensibilidades to diferentes, so tanto matrizes de reflexo sobre a experincia moderna quanto produtos da industria cultural.

    Na dcada de 40, Auerbach, em livro justamente clebre sobre realismo e realidade na literatura, tratou de formas de subjetividade explicitadas e convocadas pela literatura ao longo de toda a historia e mostrou as relaes que elas mantm com a realidade, isto , com determinados estados da cultura. Ele apontava certas caractersticas do romance moderno que podem ser, com pequenos ajustes, transferidos para o cinema narrativo em geral e, mais particularmente, para a produo alternativa ao esquema dramtico do cinema americano.

    Segundo o autor, o tipo de realismo da moderna literatura no pensvel sem referncia ao individualismo e democracia. No centro dos acontecimentos, movimenta-se um anti-heri. O tempo e o lugar perdem todo carter sagrado ou solene e a experincia comum, na sua excepcionalidade mesma, matria de arte, arte que se debrua ento sobre o insignificante e o produz. Ao indicar as caractersticas do romance moderno, Auerbach parece ao mesmo tempo indicar aquilo com que se defronta o espectador comum de cinema. Assim, o romance moderno segue o fluxo de conscincia de diferentes personagens; introduz um espao e um tempo multipolar, para alm da sucesso simples de um antes e um depois; desconecta de relevantes acontecimentos externos, de natureza histrica, aquilo que narrado e, no interior da narrativa, desconecta os acontecimentos entre si; por fim, multiplica os focos narrativos, os pontos de vista a partir dos quais se relatam os acontecimentos.

    Ao comentar o lugar do insignificante na literatura moderna, diz Auerbach, valendo-se do exemplo de Virginia Woolf: " Surgem circunscries de acontecimentos e conexes com outros acontecimentos que anteriormente mal foram vislumbrados, nunca vistas nem consideradas e que so, contudo, decisivas para a nossa vida real". Enfatiza-se, segundo o autor,

    ... o acontecimento qualquer, sem aproveit-lo a servio de um contexto planejado de ao, mas em si mesmo, e com isso tornou-se visvel algo de totalmente novo e elementar: precisamente o excesso de realidade e a profundidade vital de qualquer instante ao qual nos entregamos desintencionalmente. Aquilo que nele ocorre, trate-se de acontecimentos internos ou externos, embora concerna muito pes-soalmente aos homens que nele vivem, concerne tambm, e jus-tamente por isso, ao que elementar e comum a todos os homens em geral. Precisamente o instante qualquer relativamente inde-pendente das ordens discutidas e vacilantes pelas quais os homens lutam e se desesperam. Transcorre por baixo das mesmas, como vida cotidiana.5

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  • Mais radicalmente, o desaparecimento das formas de subjetividade, espacialidade e temporalidade da narrativa clssica e romntica se d com a superao da novela psicolgica, por exemplo, em Proust: ao levar a observao psicolgica e social a seus limites, o romancista fragmenta o sujeito-heri da narrativa, que passa a sobreviver apenas no e pelo prprio desenvolvimento da trama textual, pelo seu processo de autoproduo. Ningum, talvez, como Proust tenha realizado to extremadamente, com meio sculo de antecedncia, aquilo que vai aparecer como programa terico para Michel Pcheux, em outro contexto:

    ... da evidncia (lgico-)ingiistica) do sujeito, inerente filosofia da linguagem enquanto filosofia espontnea da lingstica, at aquilo que permite pensar a 'forma-sujeito' (e especificamente o 'sujeito do dis-curso') como um efeito determinado do processo sem sujeito.6

    A obra de Proust exemplo daqueles que deslocam o problema da narrativa para o lugar do narrador. Quem diz ou mostra, quem escreve e lembra? No se trata de representar um heri indivduo ou grupo e fazer dele um conjunto de determinaes psicolgicas e sociais em torno ou ao fim das quais se estruturam processos identificatrios dos leitores a quem a narrativa se dirige e a 'quem' exatamente ela se dirige, se no 'a todo mundo'? , mas de prover o leitor com uma capacidade de escuta de uma voz que, subentendida no ato narrativo, pura voz, pura imagem como gnese indeterminada do texto, est sempre ausente dele. O lugar da enunciao um lugar fora do texto e que, no entanto, o informa, ao mesmo tempo que inexiste sem ele. A situao de comunicao narrativa proferio e escuta anterior a qualquer discurso manifesto. No se trata, ou no se trata mais, de uma subjetividade soberana, emprica ou idealmente delineada, que sabiamente discorre sobre o tempo passado e serve de suporte para um imaginrio presente. A narrativa moderna provoca e exige uma nova leitura, porque d-se nela um processo de formao de forma que implica para alm do discurso, nesse 'fora' que torna possveis e de onde emergem proferio e escuta, uma escuta interessada e interrogante um efeito-sujeito, um lugar de subjetivao. Este dever ser preenchido efetivamente, a cada instante do processo, pela atividade dos fruidores, que nesse gesto se subjetivam, para alm de seus corpos e personalidades empricas, e que so, na verdade, seus produtores histricos tanto quanto seus consumidores, se acreditarmos, com Kierkegaard, que toda recepo produo.

    O discurso esttico se revisa, reflete sobre si no ato mesmo da enunciao: um dizer elevado segunda potncia, que se ouve a si mesmo nos ouvidos de seus receptores. Se verdade que 'toda

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  • recepo uma produo' (S. Kierkegaard. Concluding Unscien-tific PostScriptum, p. 72), ento a escrita deve buscar atingir a liberdade de seus leitores em aceitar ou rejeitar a verdade ofere-cida como quiserem, apresentando assim, na sua prpria estru-tura, algo da natureza crptica, indemonstrvel e no-apodtica da verdade.7

    O problema no saber como sero difundidas na massa novas verses da experin-cia narrativa, em contraposio narrativa tradicional, mas detectar as tentativas de superao de alternativas caducas, entre metanarrativas e pequenas histrias, ou arte de massa e arte erudita. Trata-se ao mesmo tempo de responder demanda coletiva por histrias e inscrev-las em matrizes que tornem de outro modo pensvel, numa perspectiva crtica e artstica, a experincia do homem comum.

    Quanto s noes bsicas que podem servir compreenso das novas articu-laes de sentido atravs do audiovisual, elas foram elaboradas modernamente, sob a influncia da lingustica estrutural, pelo avano dos estudos semiticos no domnio da comunicao pr ou no (apenas) verbal, em especial o cinema, com todas as trans-ferncias, difceis ou indbitas, de anlises voltadas para as estruturas das lnguas naturais. A nfase na sintaxe dos relatos audiovisuais, com a dvida crescente at mesmo sobre se so efetivamente relatos isto , se incluem ou no uma situao e um contexto dialogai e se tm sintaxe especfica, deu lugar ao estudo semntico, aos significados que pareciam apontar para a passagem entre estudos internos de um conjunto de enunciados para a forma que tais conjuntos do a sentidos extratextuais, circulantes no meio social. Por fim, com a mais recente importncia dada pragmtica dos atos de comunicao, recai a nfase no nas formas de expresso e contedo dos enunciados, mas nas condies de enunciao.

    A esse desenvolvimento histrico das investigaes sobre os discursos e atravs dos mass-media correspondem mais ou menos as trs acepes de relato encontradas por Gerard Genette.8 O autor parte das consideraes pioneiras do linguista Benveniste sobre a diferena entre histria, relato de acontecimentos sob forma objetiva, e dis-curso, que implica a relao de presena entre um eu e um tu. Para Genette, podemos desvelar sob o termo relato trs sentidos complementares: 1. o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assegura a relao de um acontecimento ou de uma srie de acontecimentos; 2. a sucesso de acontecimentos reais ou fictcios que so objeto desse discurso, com diversos tipos de relao entre eles, tais como encadeamento, oposio, repetio, etc; 3. o ato de narrar tomado em si mesmo. Em resumo: a maneira

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  • de narrar o que narrado em uma narrao. Ou: o enunciado como signo, o referente como objeto e a enunciao como ato. A questo do sujeito se coloca no nvel da enunciao: que subjetividade convocada na relao intersubjetiva que o discurso efetua?

    No caso da narrativa ficcional, o leitor ou espectador examina o relato em relao ao prprio relato. Ele no est em condies de medir a veracidade do relato em relao a acontecimentos reais que podem ser abordados por outros meios. Claro que no caso do relato ficcional os acontecimentos narrados e o ato de narr-los podem esclarecer aspectos extratextuais, mas devem faz-lo, para serem compreendidos em sua especificidade, dentro do mundo virtual criado.

    Estaria a definio de relato ancorada na lngua verbal e nas suas manifestaes discursivas, orais e escritas? Se assim fosse, ela seria de pouca utilidade para o exame do filme de fico narrativa, seja no cinema, para a televiso ou em vdeo. De fato, o filme no conta, apenas: ele mostra. Reedita-se aqui a grande fissura que, no dizer de Michel Foucault,9 atravessa a cultura ocidental e sua escrita, dividida entre dizer e mostrar, proferir e figurar, representar com palavras e apresentar em imagem, o que pode ser colocado em correspondncia com a distino que faziam os gregos entre a diegese, o contar atravs de um declamador, e a mmese, o contar atravs da imitao realizada por atores; isto , entre exposio pelo narrador e personificao atravs da ao, fictcia e manifesta. Entre dizer e mostrar, portanto.

    Na narrativa flmica esto presentes tanto o relatar quanto o mostrar diretamente aes e personagens. Est-se diante de um modo de narrar que utiliza tanto a mostrao quanto, internamente, a narrao em sentido restrito (quando, por exemplo, uma person-agem discorre sobre fatos passados). So muitos os subtipos e as articulaes do relatar e do mostrar; uma extensa bibliografia constituiu-se sobre o tema, no se tendo chegado ainda a um consenso mnimo sobre a acepo a ser dada a termos gerais.10

    Para alguns autores, a sucesso de imagens dadas percepo visual e sonora colocaria o filme fora da categoria de relato narrado. O filme parece emergir por si mesmo, sem que uma instncia narradora assuma ser suporte de seu desenvolvimento. No cremos, porm, que o mostrar no filme narrativo de fico o coloque fora da categoria do relato, que s seria aplicvel rigorosamente literatura. Se centralizamos o enfoque na experincia emprica do espectador, perdemos de vista que o filme um tipo de escritura ou grafia cinematografia e no uma iluso de tica 'quase-real'. Posies sobre enunciao no cinema, que tomam como parmetro o dilogo face a face, a 'conversao presente' para negar ou afirmar essa estrutura comunicacional na relao do filme com o espectador , continuam inspiradas na falsa ideia de que o filme, ou a maioria dos filmes, cria uma

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  • impresso tal de realidade que o espectador parece estar envolvido pela 'prpria realidade' que o filme tematiza. Aqui preciso desistir de encontrar no filme como alis em determinadas situaes face a face, como o caso da assistncia a uma pea de teatro ou a um concerto musical algo semelhante interatividade prpria ao dilogo, conversao, ao discurso na acepo de Benveniste. As marcas das condies de enunciao e os objetos, palavras e acontecimentos referidos pelo relato encontram seu lugar no interior do prprio relato. O carter imaginrio, ficcional e artstico se molda atravs de procedimentos de escritura, que criam uma situao de comunicao mediata. Esse o primeiro dado que deve ser levado em conta para que se compreenda o funcionamento da produo cultural da fabulao. Consideraes estticas devem, por isso, preceder e no seguir anlises do discurso audiovisual inspirado na lingustica e na semitica, sem o qu perdem-se as caractersticas fundamentais da especfica experincia de subjetivao daquilo que foi chamado o cine-sujeito a que a narrativa audiovisual convoca.

    Para Benedito Nunes,11 a partir de uma primeira leitura de um relato ficcional que avana at o final, de sequncia em sequncia, e conclui na direo inversa da ordem cronolgica, no registro dos temas gerais e dos motivos envolvidos abrem-se os caminhos para u m a segunda leitura: ou o interpretativo, temtico, do texto como um todo, ou o explicativo, que tenta deduzi-lo de um modelo analtico, construdo na base da sistematizao lgica dos motivos ou funes da linguagem narrativa.

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    De modo assemelhado, ha, segundo Iuri Lotman, duas maneiras de considerar um filme: apreender sua significao pela articulao de diferentes matrias de expresso, como o som (de rudos, palavras e msica), e a imagem (de coisas, pessoas e palavras) essa maneira solicita uma explicao a partir da anlise. Ou experiment-lo enquanto totalidade aberta, que pede uma compreenso ou interpretao. Creio que deva ser dada primazia terica abertura interpretativa que o filme solicita, porque ela tem na experincia do espectador o seu primado. Em nada diminui a dignidade crtica e reflexiva considerar-se segunda nesse duplo movimento em espiral