calvino - vida, influemcia e teologia - wilson castro ferreira

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Wilson Castro Ferreira

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  • Wilson Castro Ferreira

  • CALVINO:

    EDIO DE LUZ PARA O CAMINHO Campinas, So Paulo

  • EDIO DE LUZ PARA O CAMINHO Campinas, So Paulo

    JooCalvino: Vida, Influncia e Teologia Wilson Castro Ferreira

    Direitos reservados por Luz para o CaminhoC.P. 130 13100 Campinas, SP

    O texto bblico utilizado neste livro o da Edio Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bblica do Brasil, exceto quando outra verso indicada.

    l.a Edio -1985

    Luz para o Caminho a organizao de radiodifuso internacional da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Igreja Crist Reformada dos Estados Unidos e Canad.

  • minha esposa, Maria;

    a meus filhos, Wilson Jnior e Ricardo;

    minha nora, Mrcia;

    e a minhas netinhas, Ins, Leila Marlia.

  • NDICE

    Prefcio .................................................... 11Uma Palavra de Introduo .......................... 15Uma Orao de Calv ino............................... 22

    I Parte - JOO CALVINO VIDA

    Capftulo 1 Um Homem Chamado Joo . . . . 25Capftulo 2 Grard Cauvin .......... . 31Capftulo 3 A Educao de Joo Calvino .. . 36Capftulo 4 Um Novo Rumo..................... 50Capftulo 5 Peregrinaes de Calvino . . . . . . 62Capftulo 6 Calvino em Genebra................ 67Capftulo 7 Estrasburgo .. ...................... 88Capftulo 8 Genebra Novamente................ 101Capftulo 9 Servetus............................... 114Capftulo 10 Sebastio Castlio Mas Um

    Opositor....... ........................123Capftulo 11 O Fim da Luta ....................... 127Capftulo 12 Companheiros de Calvino.........131Capftulo 13 A Obra Literria de Calvino . . . . 140Capftulo 14 Cartas de Calvino................... 151Capftulo 15 Os Sermes de Calvino . . . . . . . . 162Capftulo 16 A Piedade de Calvino.............. 168Notas........................................... .......... 174

    II Parte - JOO CALVINO INFLUNCIA

    Capftulo 1 Influncia de Calvino naEducao-* A Sua Academia.......181

    Capftulo 2 Pensamento Polftico de Calvino.. 203 Capftulo 3 Influncia de Calvino no Processo

    Social e Econmico ................217Notas........................................................234

  • III Parte - JOO CALVINO TEOLOGIA

    Nota Explicativa Terceira Parte...................239Introduo........................................ 240Capftulo 1 O conhecimento de Deus ......... 244Capftulo 2 Escrituras Sagradas................. 252Capftulo 3 Criao O Homem Estado

    em que Foi C riado................. 261Capftulo 4 Conhecimento de Deus como

    Redentor em C ris to ................265Capftulo 5 Ofcios de Cristo Profeta,

    Sacerdote, Reis...................... 274Capftulo 6 Cristo O Mediador ..............278Capftulo 7 Como Cristo Realizou o Oficio

    de Redentor..........................284Capftulo 8 Providncia...........................289Capftulo 9 Regenerao Pela F Arrepen

    dimento........................... 295Capftulo 10 Justificao Pela F Nome e

    Realidade............................. 301Capftulo 11 Como Obter a Graa de Cristo , . 306Capftulo 12 F Definio e Propriedades

    Peculiares........................... . 311Capftulo 13 A Trindade ..........................319Capftulo 1'4 A Santa Igreja Catlica A Igreja

    Verdadeira............................325Capftulo 15 Indulgncia e Purgatrio.......... 339Capftulo 16 A Eterna Eleio ...................344Capftulo 17 Mestres e Ministros da Igreja . . . . 353Capftulo 18 Sacramento .......... ............... 359Capftulo 19 Santa Ceia ........................... 367Capftulo 20 Reconciliao Entre as Promes

    sas da Lei e do Evangelho.........373Capftulo 21 A Ressurreio Final ..............378

  • Capftulo 22 0 Governo na Igreja Primitiva . . 384Capftulo 23 Governo C iv il....................... 387Capftulo 24 Orao, Perptuo Exerccio da

    F ........................................ 393Capftulo 25 Meditando na Vida Futura........ 403Capftulo 26 A Vida do Cristo Argumento

    das Escrituras........................ 408Notas........................................................415BIBLIOGRAFIA ........................................416

  • PREFACIO

    Guteriberg de Campos, luminar do plpito em, nossa grei, sem ser ufanista, muito menos chauvinista, de justo empolgamento se inflamava ao referir-se gloriosa herana protestante na vida nacional, mormente peregrina contribuio de tantas figuras de escol que honram o passado da f evanglica nos rinces ptrios. de lamentar-se que tantos heris da Causa, findado o labor desta vida, sejam esquecidos nas penumbras do pretrito, desconhecidos das novas geraes, ignorados nos anais da histria.

    A Igreja Presbiteriana do Brasil, sem favor nenhum, conta, em sua no longa trajetria, com um acervo assaz elevado de vultos de primeira grandeza, que merecem lembrados com admirao e respeito. Pena que os esforos de Jlio Andrade Ferreira em legar-nos galeria mais profusa de nomes memorveis tenha sofrido soluo de continuidade! Destarte, ao olvido se votam legies de grandes servos do Senhor que to bem serviram ao Evangelho e tanto fizeram pela Igreja e pela Ptria. Mesmo enquanto aqui mili- tam, quo poucos recebem o reconhecimento a que

  • fazem jus! Neste rol dever-se-ia incluir o autor deste livro, cuja carreira acompanho desde os tempos escolares, nada menos de cinco dcadas!

    De fato, Wilson Castro Ferreira um dos mais nobres e dignos ministros de Cristo que a igreja Presbiteriana do Brasil conta em seus quadros. Carter impoluto, inteligncia vivida, corao generoso, f no fingida, esprito despretensioso, modesto, singelo, no vido de humanas honrarias, nem sequioso por posies de destaque. bem verdade que, a despeito disso, foi por seus pares, sem politiquice nem malabarismos, guindado posio de Secretrio Executivo da Igreja, tecnicamente a mais importante da direo mxima, no chegando Presidncia, a honra suprema, to cobiada de muitos, porque se no prestava s manobras pouco lisonjeiras que o acesso a esse cargo passou a exigir. .

    Em sua vida longa e abenoada, Wilson Castro Ferreira, hoje jubilado, tem sido o dedicado pastor, que serviu a muitas igrejas, o pregador vibrante, de mensagens incisivas, que ainda reboam nos programas radiofnicos que implantou no pas e se estendem at pelo exterior, o educador eminente, que marcou poca no Instituto Jos Manuel da Conceio, a que dirigiu com especial proficincia, o professor diligente, que no Seminrio Presbiteriano de Campinas, com incomparvel consagrao, por largos anos lecionou a geraes de seminaristas, o poeta espontneo, a cantar as coisas da f e as coisas da vida, o escritor operoso, autor de livros e mensagens que edificam e inspiram, levando a tantas almas o testemunho de Cristo e a palavra de confiana, mais do que tudo, porm, o estudioso incansvel, que. por vezes vrias, buscou em instituies do exterior os conhecimentos que melhor o assistissem na tarefa bendita de bem expor a Palavra de Deus. Enfim, um ministro fiel em toda linha, de quem a Igreja se deve orgulhar.

    Paralelos vrios se podem, plutarquicamente, assinalar em nossa prpria carreira. Juntos estivemos nos dias longnquos dos estudos pr-acadmicos no ento chamado Curso Universitrio Jos Manuel da Concei

  • o; fomos colegas, a seguir, no Seminrio Presbiteriano de Campinas, depois, no Seminrio de Princeton, nos Estados Unidos, e, mais tarde, exercemos, lado a lado, no Seminrio em Campinas, a docncia teolgica. Contudo, paralelo no menos de destacar-se o acen- drado interesse que ambos nutrimos pela pessoa, obra e teologia de Joo Calvino, e isto de longa data, merc do qual compendia ele a presente obra e eu mourejo na laboriosa tarefa de faser o Reformador falar em portugus as INSTITUTAS por inteiro.

    Isto posto, ver-se- que o livro que estamos, com grande honra nossa, a prefaciar, representa, por um lado, o fruto dessa sublimada admirao do autor a enfocar o homem de Genebra com aquela empatia que, s, habilita a compreenso genuna, por outro lado, a resultante de demorados e exaustivos estudos de autores de todos os matizes, como o atestam a longa bibliografia e as multplices referncias e citaes. , pois, uma contribuio, de modo nenhum sobeja, a somar-se s obras de Vicente Temudo Lessa e Tha Van Halsema, para constituir-se uma trade de livros referentes a Calvino em portugus, o que, na parsim- nia de nossa literatura teolgica, cifra relevante. Fui aluno de Temudo Lessa e ouvi-o ler, nos cultos a seu cargo, no Instituto Jos Manuel da Conceio, os captulos todos do seu livro. Do escrito de Van Halsema fui revisor da traduo para nossa lngua e, ao depois, em 1973, vim a conhecer a autora, cujo esposo fora meu contemporneo em Princeton. Destarte, os trs livros esto-me intimamente associados. So bem diferentes. Pode-se dizer que em Temudo Lessa, o historiador profissional, falam os FATOS, em Van Halsema, a dama romntica, estampa-se a VIDA, ou, melhor, Calvino no cenrio da sua vivncia, em Castro Ferreira, o esprito prtico, focaliza-se o HOMEM, a figura de Calvino como pessoa no viver, na influncia exercida, nas idias e princpios esposados e proclamados.

    Obra de leitura fcil, cursria, natural, sem pruridos tcnicos nem linguagem arrevesada, flui como que em ligeiras pinceladas ou uma srie de flashes vividos

  • mas rpidos, que descortinam, o cenrio todo num panorama de seqncia no espessas, nem pejadas. Logo, um livro que se l com agrado e proveito, sem fatigar.

    O autor divide a obra em trs partes distintas. A primeira propriamente biogrfica. Calvino visto no prisma de sua vida e carreira, em breves mas sugestivos captulos. A segunda expe-Uie a influncia, destacados trs nveis ou planos: educacional, ressaltada a incalculvel contribuio de Calvino 'nessa rea, desde a perspectiva pedaggica at o prprio cultural, a culminar na renomada ACADEMIA de Genebra; poltica, demonstrada a real viso de governo advogada pelo Mestre Picaro, embasada na justia, nos direitos humanos e na ordem pblica, em consonncia com os ditames bblicos, na realidade, a verdadeira formulao democrtica hoje postulada, bem que se no sirva ele desse termo; e econmico-social, discutida a real direo de sua filosofia nesse setor, por sinal que to mal interpretada por estudiosos prejudicados, que lhe inculcam os males atribudos a um capitalismo desumano, quando Calvino, firmado na Bblia, de um lado, apregoa as virtudes do trabalho, da economia, da diligncia, mas, de outro, o imperativo da responsabilidade social, da benevolncia, do altrusmo, logo, da filantropia; a terceira um breve apanhado, em linhas gerais, do contedo das INSTITUTAS, a obra mxima do grande pensador, uma como que smula de sua teologia, em termos de seus tpicos principais, pena que demasiado sumria e no to sistematizada como conviria ao leitor no familiarizado com a matria. Ao nobre colega, Rev. Wilson Castro Ferreira, s h que agradecer-lhe a contribuio feita e rogar que Deus lhe permita enriquecer-nos com outros escritos relevantes.

    Campinas, 2 de janeiro de 1985

    Waldyr Carvalho Luz

  • UMA PALA VRA DE INTRODUO

    Por que mais um livro sobre Joo Calvino, quando h dezenas de obras sobre esse assunto, encarando os mais variados aspectos?

    A pergunta tem a sua razo de ser. Todo livro tem uma explicao, deve ter. Pode ser que seja o produto de determinada deciso, tendo em vista atender a uma predileo pessoal, sem maiores justificativas.

    Escrevem-se livros como se fazem poemas ou se produz msica. O artista tem que fazer arte.

    Nascem os livros quase sempre de uma necessidade imperativa, por vezes meramente circunstancial, indiferente, em certos casos, do papel que esse livro vai exercer no futuro ou da extenso da sua influncia.

    Um certo Tefilo, de quem nada sabemos, em torno do qual h somente conjecturas, sendo algumas at grotescas, quis informar-se um pouco mais a respeito de Jesus, de quem havia ouvido histrias interessantes, mas para ele duvidosas. Lucas, ou porque era amigo ntimo de Tefilo, ou porque fora informado das suas dvidas e ansiedade, julgou-se no dever de dissip-las e oferecer-lhe uma exposio demorada, solidamente

  • fundamentada, a respeito da vida de Jesus. E o fez com extrema dedicao, com grande habilidade, sob a inspirao do Esprito Santo de Deus.

    Disso resultaram dois preciosos livros do Novo Testamento: o terceiro Evangelho e o livro histrico dos Atos dos Apstolos, os quais constituem um riqussimo repositrio de fatos, cujo conhecimento houve por bem o Esprito revelar-nos para nosso proveito e edificao nas coisas concernentes ao Eeino de Deus. E como seria bem mais pobre o registro das coisas referentes a Jesus e Igreja primitiva sem esses dois volumes!

    Pouco saberamos da infncia de Jesus e nada saberamos da obra missionria do apstolo Paulo, de tal maneira que as suas epstolas se tornariam quase incompreensveis .

    Com respeito a Calvino, diramos que, embora haja abundante material em outras lnguas, no o h em portugus. H mesmo falta, que precisa ser preenchida.

    Presbiteriano de origem, alimentei desde cedo, o desejo de conhecer melhor a vida e os feitos de Joo Calvino, pois achei que me deveria informar das origens da denominao evanglica no meio da qual, pela providncia divina, vim a nascer.

    Fala-se muito em Lutero nos meios evanglicos, e no sem razo, pois a ele cabe a glria de iniciar, por assim dizer, a grande reforma do sculo dezesseis. No se fala muito em Joo Calvino, nem mesmo entre os presbiterianos. Parece haver um certo desinteresse com respeito pessoa do Reformador, at mesmo entre aqueles que so seus descendentes espirituais diretos os presbiterianos e reformados.

    Como explicar isso? Mal informados a respeito, muitos preferem manter reserva sobre o assunto. Talvez fosse isso um estmulo a mais para que eu procurasse estudar a vida de Joo Calvino. Sempre gostei de investigar e saber a razo da minha herana espiritual.

    Haveria alguma coisa em Calvino de que nos envergonhssemos?

    Nos meus dias de estudante no seminrio, julguei

  • que deveria desvendar o motivo da atitude reticente desse retraimento generalizado, at mesmo entre os alunos de teologia, com respeito pessoa de Joo Calvino.

    Li alguma coisa naquela poca, mas havia tanto que ler obrigatoriamente em razo dos meus estudos, que no me sobrava muito tempo para ocupar-me em leituras que podiam ser adiadas. Lembro-me do entusiasmo do meu professor de Latim e Portugus, de saudosa memria, Reverendo Vicente Temudo Lessa: costumava ler para ns, no Instituto J.M.C., captulos manuscritos de sua obra sobre Calvino, que ele escrevia na poca. Essa obra deveria ser lida por todos os presbiterianos do Brasil.

    Cheguei concluso, naqueles tempos, de que a difcil e, por isso mesmo, mal entendida e mal aceita doutrina da predestinao, era em grande parte responsvel pela indiferena com que se tratava Calvino. A impresso foi confirmando-se cada vez mais no meu esprito atravs dos anos. Alm disso, o to explorado caso de Servetus (to explorado pelos inimigos), to mal conhecido nos seus pormenores, lanava uma sombra de desconfiana, quem sabe at desprezo, sobre a grande e insupervel figura de Joo Calvino, o Reformador.

    Infelizmente, por uma razo qualquer, talvez por quererem parecer muito liberais, alguns presbiterianos expem argumentos de adversrios de Calvino, argumentos esses que sofrem, evidentemente, a fora de preconceitos, para avaliar a sua pessoa. Por isso, algum afirmou que os evanglicos s vezes rivalizam com os catlicos nas crticas a Calvino.

    Em 1971, recebi da Federao dos Homens Presbiterianos do Brasil, um convite para falar-lhes sobre Calvino e sua obra no seu Congresso Nacional em Recife. Aceite-o, alegrando-me por verificar que surgia no ambiente da Igreja Presbiteriana do Brasil, embora tardia e timidamente, um certo interesse em conhecer a vida do Reformador de Genebra. Estava eu, nesse tempo, envolvido com muitos afazeres, sobrecarregado com o nmero excessivo de aulas no Seminrio, e

  • outros compromissos. No entanto, julguei que no deveria perder o ensejo que se me deparava para dedicar algumas horas em pesquisas sobre Joo Calvino e, ao mesmo tempo, tom-lo mais conhecido entre seus descendentes espirituais das terras brasileiras.

    Como de meu feitio, procurei desincumbir-me dessa tarefa da melhor maneira possvel, dentro das minhas limitaes. Atirei-me com afinco aos livros sobre o assunlo, roubei algumas horas de sono, li tudo o que poderia ler no pouco tempo de que dispunha, e fui descobrindo precioso material que, embora no to abundante, enriquece a nossa biblioteca do Seminrio do Sul, sobre esse importante assunto. Convm dizer que ali se encontram algumas obras de valor, ignoradas, quem sabe, por muitos que a freqentam.

    A tarefa se me apresentou cada vez maior, medida que ia lendo monografias sobre Calvino, obras de sua autoria e parte das muitas mil cartas que escreveu no seu diversificado ministrio.

    Fui a Recife, com sacrifcio, numa viagem de nibus, interminvel, que deixou lembranas, convicto de que ia cumprir uma parte importante no programa daquele conclave. Tive a impresso decepcionante, de que o Congresso de Homens ali reunido estava muito mais preocupado em questes polticas eclesisticas e outros assuntos do momento, do que em conhecer alguma coisa sobre Calvino, sua obra, sua doutrina, e o legado espiritual que dele recebemos.

    Senti-me, todavia, compensado pelo esforo feito, que no somente me tornara maior admirador de Cil- vino, como fizera renascer em mim, o desejo de, em havendo oportunidade, dedicar mais tempo ao estudo da obra fascinante do imortal Reformador de Genebra. Concorriam, para isso, as palavras de estmulo com que o Presidente do Supremo Concilio a mim se dirigiu no final das minhas palestras em Recife, com as quais me afirmava ter sido o meu trabalho uma das coisas mais srias produzidas naquela reunio.

    Posteriormente, recebi da Igreja Presbiteriana do

  • Brasil a incumbncia de ampliar o meu sucinto trabalho, dando-lhe a forma de livro. Era mais um estmulo ao meu propsito. Os estudos feitos no Congresso foram depois publicados, sem reviso, contra a minha vontade, eivados de erros e supresses que seriamente comprometiam o sentido do texto em alguns perodos, o que me causou natural aborrecimento. Via-me constantemente na obrigao de explicar as circunstncias em que os mesmos haviam sido publicados, praticamente minha revelia.

    Os planos de Deus, no entanto, nem sempre dis- cernveis ao nosso entendimento, aguardam a plenitude dos tempos conforme o seu desgnio superior. O meu interesse por Joo Calvino continuava vivo, mas, as esperanas de fazer algo mais significativo para torn-lo mais conhecido, iam se emurchecendo. No tinha tempo, nem lugar para uma pesquisa mais ampla sobre o assunto.

    Posteriormente, em 1975, ia aos Estados Unidos para ministrar um curso sobre a obra missionria no Brasil, no Calvin Seminary da Igreja Reformada, uma oportunidade que surgiu inesperadamente em momento muito propcio.

    O Calvin Seminary tem uma tima coleo de obras de Calvino, incluindo livros raros e documentos de grande valor histrico. Nada me pareceu mais oportuno do que aproveitar o tempo que me restava das atividades no seminrio para ler sobre o assunto. Atirei-me com fria leitura, fui tomando notas, pensando em us-las de alguma forma, se outra oportunidade me aparecesse.

    Meu tempo nos Estados Unidos venceu e tive que voltar ao Brasil, agora com encargos maiores e, por isso, com menos tempo ainda, pois trazia comigo a incumbncia de estabelecer o escritrio da organizao que se encarregava da transmisso de mensagens evanglicas atravs do rdio Luz para o Caminho. Devia escrever mensagens, manter vasta correspondnca, atender a consultas de ouvintes, e tc ...

    Uma nova oportunidade veio agora, quando por ocasio da minha aposentadoria, a organizao The

  • Back to God Hour ofereceu-me, a ttulo de prmio, uma verba auxiliar para que pudesse dar prosseguimento s minhas pesquisas sobre Joo Calvino. Deo Gratias !

    Creio, porm, que h um motivo mais urgente e imperioso para publicao desta obra do que a minha predileo pessoal por Joo Calvino. Penso mesmo que, acima de todas as circunstncias que cercam este empreendimento, est um plano de Deus para que isto acontea. Calvino uma personalidade que de tempos em tempos ressurge para atender a reclamos de determinadas crises, s quais a sua obra se torna pertinente . uma mina que no se esgota. H uma necessidade por muitos sentida no mundo atual de uma re- descoberta de Joo Calvino.

    Reyburn diz que Joo Calvino um dos homens mais odiados da histria, no entanto, a animosidade um tributo sua fora".1

    Os problemas que afligem o mundo moderno, em particular a Igreja de Cristo, exigem essa redescober- ta, porque Calvino na opinio dos editores de suas cartas, em edio recente, 1972, o profundo Scholar e o telogo exato, o estadista esclarecido, o eminente Reformador que exerceu uma influncia na poca em que viveu, a qual, ao invs de diminuir no lapso de trs sculos, h de continuar crescendo, enquanto as grandes verdades que envolvem o presente e o futuro da humanidade, s quais ele to lcida e energicamente deu nfase, forem incorporadas ao progresso da humanidade.2

    Numa excelente palestra pronunciada por John T. Mc Neill, em 1960 grande estudioso da vida de Joo Calvino afirma ele que, na primeira metade desse sculo, a imagem de Calvino tem alcanado no mundo intelectual uma estatura jamais atingida.3

    Walker observa que, aps a primeira guerra mundial, um novo interesse por Calvino fez surgir muitas obras a seu respeito. E diz perceber-se, ento, estar em processo um reavivamento do calvinismo.4

    Que essa voragem benfazeja, embora tardiamente, chegue a ns e que o Senhor seja servido utilizar este

  • modesto trabalho como uma contribuio a esse des- pertamento entre ns. E que seja tudo como Calvino mesmo desejava Soli Dei Gloriae.

    Cabe aqui uma palavra de agradecimento:Primeiramente, minha esposa, que, alm do

    constante apoio de sempre, suportou comigo uma longa separao dos filhos e horas de solido em nossa casa nos Estados Unidos, enquanto me entregava, dia aps dia, ao trabalho de pesquisa. Agradecimento especial THE BACK TO GOD HOUR, o departamento de rdio e televiso da Igreja Crist Reformada dos EE.UU. e Canad, que me proporcionou um perodo de quase seis meses nos Estados Unidos, exclusivamente para o preparo deste livro. Agradecimento Luz Para o Caminho e seu diretor executivo, Rev. Celsino C. Gama, pela responsabilidade que assumiu na publicao da obra. Agradecimento ao meu velho colega e companheiro de tantas refregas Dr. Waldyr Carvalho Luz, que, com sua peculiar capacidade e zelo, aceitou a tarefa de rever e prefaciar esta obra.

    Wilson Castro Ferreira

    Junho de 1984

  • UMA ORAO DE CAL VINO'

    Joel 2.32

    Sabemos, por esta passagem, que embora Deus possa afligir muito a sua igreja, ela ser perpetuada neste mundo; pois no h de ser destruda, como no pode a verdade de Deus, que eterna e imutvel.

    Permite, Deus Todo Poderoso, que assim como Tu, que no somente nos convidas constantemente a buscar-Te, pela voz do Teu Evangelho, mas, tambm, nos oferece Teu Pilho como nosso Mediador, pelo qual um acesso a Ti est aberto, permite que possamos encontrar-Te como Pai a ns propcio. Oh!, permite que, confiados no Teu convite, nos exercitemos em vica na orao, de vez que muitos males nos perturbam de todos os lados e muitas necessidades nos acabrunham e nos deprimem; que sejamos mais prontos a buscar-Te com empenho e nunca desfalecer no exerccio da orao, at que, tendo sido ouvidos por Ti durante toda a existncia, possamos, afinal, ser recebidos no Teu Reino Eterno, onde gozaremos da Salvao que nos tem prometido e da qual Tu nos testificas diariamente pelo Teu Evangelho. E para sempre unidos ao Teu Pilho Unignito, do qual somos agora membros, possamos ser participantes de todas as bnos que Ele nos alcanou por sua morte. Amm.

  • vaiA ONIA ivo ovor

    Biyvd i

  • Captulo 1

    UM HOMEM CHAMADO JOO

    Plutarco, na sua obra imortal De Viribus Illus- tribus, ao tratar da vida de Pricles, nos informa que o grande general e estadista grego, era portador de uma deformao fsica que o enfeiava, fruto de um problema enfrentado por sua me durante o perodo de gestao. Tivera ela um sonho terrvel com um leo, e a cabea do filho nascituro tomou, em conseqncia, a forma da cabea desse animal feroz. Pricles a tinha alongada demais.

    Os poetas de Atenas, na poca, no perdoavam essa deformidade e, daqui para ali, a estavam mencionando ou fazendo referncias alusivas anormalidade. Os inimigos de Pricles, de modo especial, se valiam dessa caracterstica para ridiculariz-lo, emprestando-lhe alcunhas, chamando-o cabea de cebola ou coisa semelhante. Os amigos e admiradores procuravam encobrir ou dissimular-lhe o defeito.

  • Artistas, e entre eles o grande Pidias, que era amigo particular de Pricles, cunhavam o seu busto com o capacete militar, disfarando, desse modo, o alongamento irregular do crnio.

    H de ser sempre assim, no apenas com os grandes, mas tambm com os pequenos como ns. Aqueles que no nutrem por ns simpatia ou amizade, por esta ou aquela razo, fazem a nossa caricatura. Do expresso exagerada s caractersticas pouco apreciveis que nos distinguem. Se temos um nariz mais ou menos saliente, o caricaturista o far parecido com o de um Pinquio ou que tal. Os nossos amigos preferiro um retrato retocado que elimine a crueza fria e inexorvel da cmara fotogrfica, impiedosa mas fiel.

    Nem tanto terra nem tanto ao mar. Joo Calvino oferece exemplo significativo desse fenmeno. O vastssimo material que se tem produzido no mundo ocidental a respeito dele, revela a importncia desse homem excepcional que Deus, na sua providncia, preparou para uma obra gigantesca no seu Reino.

    Os inimigos de Calvino, ou sejam, os adversrios d causa que ele representa e pela qual se ofereceu em holocausto vivo, exageram as suas fraquezas, transformam o seu zelo em tirania, a sua firmeza em ditadura e obsesso; negam-lhe alguns aquilo que inimigos mais ferrenhos tm sido obrigados a confessar o seu saber, a sua inteligncia privilegiada, o seu absoluto desprendimento das coisas materiais, a sua firmeza de convices.

    No lhe pouparam mal-verses, as mais descabidas. Do interpretao maldosa s suas melhores intenes. Se Calvino busca resolver o problema dos refugiados e perseguidos que cada dia batem s portas de Genebra porque pensa ganhar adeptos em maior nmero para a sua luta contra os libertinos. Se Calvino guarda silncio sobre o paradeiro e a verdadeira identidade de Servetus, quando este se encontra foragido, e condenado pelo santo ofcio, no por tolerncia, nem por pacincia, nem por esprito cristo, mas por sadismo e por sede de vingana,

  • esperando cev-lo para a oportunidade de o destruir espetacularmente.

    Os amigos nos oferecem dele o retrato de um estadista invulgar de uma cultura vasta e profunda, de uma inteligncia brilhante e rara, um prottipo de apstolo e santo.

    Homens como E. Doumergue, por exemplo, o classificam como um dos servos mais prodigiosamente ativos que a humanidade j possuiu, uma das vontades mais tenazes, um dos trabalhadores mais laboriosos, de inteligncia e de vida, que o mundo jamais conheceu.

    Outros, como Servetus, feridos no seu amor-prprio, nos seus interesses pessoais, no vacilariam em cham-lo Simo Mago, criminoso matador, desgraado, viu, e at ignorante, um co a ladrar.6

    Faz coro com Servetus, Bolzec, expulso de Genebra, a apontar Calvino como vingativo, ignorante e at sodomita.

    Admiradores e fiis discpulos do Reformador, como Teodoro Beza, no encontram palavras suficientes para exaltar-lhe a grandeza moral e espiritual e a insigne cultura e inteligncia do mestre e do profeta de Deus.

    Os homens do Conselho de Genebra que com ele privaram na intimidade, e que muitas vezes dele discordaram, acabaram reconhecendo a legitimidade de sua luta e o seu esforo desprendido. So homens que o assistiram no fragor das mais violentas batalhas; que testemunharam os seus ltimos momentos e que comentavam a sua morte com aquilo que bem poderia ser epitfio de Calvino: Deus lhe concedeu um carter de grande majestade. Essa majestade grandiosa do Reformador de Genebra se torna mais evidente nas palavras do prprio Calvino, que no alimenta nenhuma iluso nem dvida com respeito s suas limitaes e fraquezas, reconhecendo que, se algo possui, fruto imerecido da Graa do Senhor; Graa que ele, com tanto brilho, proclama e exalta na sua teologia e que reconhece no seu testemunho final: "Agradeo a Deus que no s tem mostrado rniseri-

  • crdia para comigo, sua pobre criatura, e me tem tolerado em todas as minhas fraquezas e pecados, mas, muito mais do que isso, me fez participante da Sua obra para serv-Lo no Seu trabalho; e no somente isso, mas com a mesma misericrdia e benignidade bondosa, graciosamente suportou-me com as minhas faltas pelas quais eu merecia ser exterminado por Ele; estendeu-me Ele a Sua clemncia e benignidade e houve por bem usar da minha instrumentalida.de para divulgao da verdade do Seu Evangelho. . . No tenho outra defesa ou refgio para salvao, a no ser na Sua adoo gratuita da qual somente a minha salvar o depende. . . Abrao a graa que me oferecida em Jesus Cristo e aceito os mritos do Seu sofrimento e morte, atravs dos quais todos os meus pecados so sepultados.6

    Este livro no o panegrico de um santo, j que no temos santos beatificados e canonizados nos esquadres evanglicos; se ns os temos, ho de ser na acepo bblica - homens imperfeitos, pecadores, salvos por Jesus Cristo e que ho de ser libertados de todas as limitaes, isentos de todas as falhas prprias de contingncia humana. Homens que no outro lado do rio da morte iro se encontrar com Jesus, o Cordeiro de Deus, cujo sangue nos purifica de todo o pecado.

    fcil apontar imperfeies grandes, tanto em Calvino, como em Lutero, como no cordato Melanch- thon, ou no sbio e cordial Martin Bucer, que tambm teve os seus momentos de fraqueza e de abatimento. Nenhum deles se arrogava perfeio ou santidade; esta vam prontos a reconhecer as suas faltas e, muitas vezes, o fizeram. Todos eles sabiam o que o apstolo So Paulo to bem descobrira e proclamara, quando pensava nas suas realizaes: No eu, mas a graa de Deus em mim.

    De modo que s pela graa e misericrdia de Deus que nos podemos atribuir as excelncias que em ns houver. essa preciosa graa que burila e digni* fica, dando utilidade justa aos dons naturais que venhamos a ter. Sem essa graa, sabemo-nos perdidos

  • e miserveis, faltos de qualquer valor, sem qualquer esperana.

    Difcil , s vezes, entender que os homens imbudos de uma grande viso e identificados com uma grande causa, encarnando uma vocao divina que se torna a nica razo de suas atividades e lutas, sejam no raro impacientes, intempestivos, quando sentem ameaados os projetos de suas vidas, aos quais, para a glria de Deus, votaram servir de todo o corao.

    Nem sempre se aceita que o mesmo homem que escrevera em termos to severos aos cristos de Co- rinto e da Galcia, seja o mesmo terno pastor que, de alma aberta, se dirige em palavras ternas de agradecimento e afeio Igreja de Filipos.

    Joo Calvino era, indubitavelmente, um homem de excepcionais dons de inteligncia e carter, que nem mesmo alguns dos seus mais tenazes inimigos ousam negar. No entanto, a sua constituio fsica, j de si mesma frgil, foi dominada por enfermidades tantas e to inquietantes, capazes de tirar a calma, o equilbrio e a vontade de viver e trabalhar mesmo ao mais paciente dos mortais. Por outro lado, possua a humildade necessria para lamentar diante de Deus e perante os amigos mais ntimos seus resvalos e fraquezas. A respeito dele poderamos dizer, parodiando o apstolo So Paulo: Onde abundou a fraqueza, su- perabundou a graa. Da o nome que lhe foi dado por outras razes, mas que to providencialmente se lhe assenta: Joo, que quer dizer, a graa de Deus. Um homem sim, chamado Joo, exemplificao autntica da superabundante graa que supre as faltas da nossa fraqueza humana.

    Da, no de admirar que os homens do Concilio de. Genebra o tivessem chamado: A boca de Deus.

    H, por vezes, uma sensibilidade vesga, que procura interpretar com disfarces a atitude de Jesus, quando expulsa os vendilhes do templo ou quando vergasta com palavras duras os fariseus, sacerdotes e es- cribas do Seu tempo. H aqueles que s entendem Jesus afagando as criancinhas, perdoando a pecadora e dizendo: Vinde a mim todos vs, que estais cansados

  • e oprimidos e eu vos aliviarei.... Gostariam, quem sabe, que o Evangelho de Joo no registrasse o discurso em que Jesus se dirige aos judeus que se obstinavam em persegui-lo e em negar a Sua autoridade divina, contra todas as evidncias: Vs sois do diabo, que vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos". (Jo 8.44).

    Dir-se-a que Jesus tinha autoridade divina para falar desse modo. Vale a pena ler Posdick, no seu velho mas sempre precioso livrinho A Varonilidade do Mestre, para compreender como o mesmo Jesus, compassivo, amoroso, cheio de humildade na Sua varonilidade completa e acabada, era capaz de, pelas mesmas razes que O fizeram abrir o corao com ternura aos infelizes carentes de misericrdia, indignar- se contra os que, satanicamente, se opunham realizao da Sua obra.

    Quem j tem vivido uma boa parte da existncia, no convvio dos homens em qualquer sociedade, se quis fazer algo construtivo, se se empenhou apaixonadamente por um ideal, h de ter experimentado o preo que isso exige e que nada mais do que ver, em muitos casos, atacada a sua moral, acusado de perfdia, de insinceridade, quando, nas melhores intenes, procurava acima de tudo servir a Deus e ao prximo.

  • Captulo 2

    GRARD CAUVIN

    Grard Cauvin um nome que passaria no anonimato, sem qualquer meno histrica, no fosse o filho ilustre que teve. No se pode ignorar, contudo, que esse filho s pode ser o que foi pelo esforo do pai, que tudo fez para dar-lhe uma educao capaz de faz-lo o melhor entre os melhores na sua carreira.

    Encontramos Gerard Cauvin no princpio do sculo XVI, na cidade francesa de Noyon, na Picardia, bem casado, bem posto na vida, residindo numa das principais praas da cidade, participando ativamente da vida social, relacionado com as famlias gradas do lugar e da regio.

    Procurador do captulo da catedral, secretrio do bispo, advogado, embora sem diploma, contudo influente e conceituado, G. Cauvin era dono de vasta clientela na regio.

  • Casara-se com Jeanne de Lafranc, jovem de grande formosura e reconhecida piedade, filha de abastado hoteleiro aposentado de Cambrai, agora influente membro da sociedade de Noyon.

    Grard, por sua vez, provinha de troncos humildes: era de famlia rude. Seu pai fora barqueiro e acrescentara a essa profisso a de artfice em madeira; originrio de Pont lvque, cidadezinha a meia hora de viagem de Noyon, onde nascera Grard Cauvin.

    Pensa-se que o ambicioso jovem sentiu que sua terra natal era pequena demais para seus sonhos e ambies e, logo que pode, tratou de se situar em Noyon, pondo em jogo toda sua habilidade, de modo a cedo conquistar posio vantajosa. Grard Cauvin era, sem dvida, catlico praticante, embora sem a piedade que distinguia a nobre esposa. Sonhava com um futuro brilhante para os filhos, especialmente para Jean, no qual adivinhava, desde cedo, uma inteligncia privilegiada. Ao filho mais velho, Carlos, encaminhara para a escola dos capetos, assim chamada devido ao capuz que, guisa de uniforme, os alunos usavam. Pois no era nessa escola que estudavam os menins da famlia Montmor, sobrinhos do bispo? No queria o notrio menos para seus filhos. Os proventos que recebia e que no deviam ser to pequenos, talvez fossem insuficientes para arcar com as despesas de educao dos filhos como sonhava. Mas o seu status social, que no queria perder, assim o requeria.

    Gozava, no entanto, de prestgio para solicitar um benefcio eclesistico, primeiramente para o filho mais velho, Carlos, e, posteriormente, para Jean.

    Em 1519, Carlos assumia os direitos da Capelania de La Gesine na Catedral de Noyon, que, no ano seguinte, trocaria por outro, na mesma catedral e, dois anos depois, transferia para o irmo menor, Jean, este, ento, com doze anos incompletos.

    Que que isso significa para o menino Jean, em termos de dinheiro e servio Igreja? Significava que o adolescente, cuja nica ligao com o sacerdcio era a tonsura que recebera, ao assumir o benefcio, se via provido das rendas que aquela capelania propiciava.

  • Impossibilitado de exercer o sacerdcio pox muitas razes, inclusive pela pouca idade (uma vez que somente aos vinte e cinco anos poderia ser ordenado), conforme um costume muito em voga, um clrigo para isso combinado, realizava os atos eclesisticos ati- nentes capelania, recebendo uma parte da renda e entregando o restante ao titular do benefcio.

    Procuram alguns ver nisso uma semelhana s bolsas escolares fornecidas a estudantes que se destinam ao ministrio evanglico, ou, diramos, s verbas pres- biteriais destinadas aos candidatos ao ministrio evanglico (na Igreja Presbiteriana)> pois que tais benefcios subentendiam que o beneficiado se destinava carreira do sacerdcio.

    Gerard Cauvin, segundo se sabe, pensava em fazer do filho um clrigo.

    Uma parte considervel das rendas desse benefcio se constitua em gros, pagos pelos territrios adjacentes de Voienne e Espeville.

    Quando mais tarde os estudos em Paris requereram maiores verbas, Jean Cauvin tornou-se tambm receptor das rendas do pastorado de Saint Martin de Marthe- ville (vinte e sete de setembro de 1527), que depois permutou pelo de Pont Fvque, terra de seus ancestrais paternos. Pensam alguns que razes afetivas o levaram a isso. Teodoro Bez afirma que, embora no ordenado sacerdote, Calvino pregou vrios sermes na terra natal de seu pai.

    Muitos bigrafos de Calvino procuram elucidar a questo dos benefcios eclesisticos, mostrando como era comum a prtica naqueles tempos, embora estranha para ns, hoje.

    Generalizado era, ento, o costume, pois o prprio bispo de Noyon teria sido receptor de um benefcio, quando ainda adolescente, de modo que to arraigada prtica, no causava espcie, nem provocava escndalo, pois gozrva da aceitao tcita com algo perfeitamente normal e natural.

    Carlos, irmo mais velho de Calvino, cedo entrara para a carreira eclesistica, que tambm terminou cedo. Notabilizou-se por sua vida dissoluta e desregra

  • da, na prtica de erros comuns naquele tempo, mas em frontal desrespeito s leis da Igreja. Rebelado, tornou-se passvel de penalidades eclesisticas, morreu excomungado e impenitente, recusando-se a receber antes da morte o sacramento da Igreja.

    Pela passagem de uma carta de Calvino a um amigo, descobre-se que o irmo mais velho criara-lhe dificuldades financeiras, a ponto de ter que pedir dinheiro emprestado a um amigo.

    A questo de alguns, de que as dificuldades entre o irmo Carlos e a Igreja fossem o resultado de sua adeso Reforma, no parece aceitvel. Entende-se que o desejo de Grard Cauvin de encaminhar Calvino para a carreira eclesistica no era fruto de uma preocupao religiosa especialmente, mas o desejo de v-lo subir nessa carreira com as vantagens sociais, polticas e financeiras que ento propiciava. Mais tarde, veria ele, no na Igreja, mas na advocacia, um futuro vantajoso para o filho e lhe daria ordens para mudar de estudos, seguindo nessa outra direo.

    Convm notar que, a essa altura, as suas relaes com o alto clero de Noyon j entrara em crise. Pode ser que os rumores da Reforma, que por l j haviam chegado, criassem dvidas no seu esprito quanto convenincia de ter o filho no clero catlico romano.

    A filial obedincia de Calvino s determinaes de seu pai, o fariam deixar Paris e ir para Orleans, posteriormente para Bourges, em busca de um ensino mais apurado e mais atualizado do Direito.

    Uma certa sombra de mistrio paira sobre o final da vida de Grard Cauvin, pois mesmo o filho Jan, que lhe dera assistncia nos ltimos dias, interrompendo para isso os estudos, no nos oferece informaes a respeito, o que no estranho, dada a natural reserva de Calvino em assuntos de tal intimidade.

    O fato que o administrador de bens da Catedral no terminou bem o desempenho dessa funo. Falhou mais de uma vez na pestao de contas em alguns casos e o conflito se exacerbou, ao ponto de ser ele excomungado. Teriam os desmandos financeiros de Car

  • los algo a ver com a situao desfavorvel do pai? No se sabe.

    No fosse a interferncia de Joo Calvino o pai teria sido sepultado fora dos terrenos sagrados.

    Como haveria isso de aumentar os conflitos na alma de Calvino j nessa altura submersa em grandes lutas ntimas!

  • Captulo 3

    A EDUCAO DE JOO CALVINO

    A providncia prepara os seus instrumentos, embora para isso utilize meios puramente circunstanciais e aparentemente contrrios aos seus desgnios. O apstolo So Paulo no tem dvida disso, pois afirma que Deus o escolheu desde o ventre de sua me para ser o apstolo dos gentios. E utiliza as coisas que so para confundir a,s que no so.

    Em Noyon, sombra da Catedral, famosa por suas relquias, na casa do notrio da corte eclesistica e secretrio do bispo, havia de nascer um menino que teria papel de grande importncia na consolidao da Reforma do sculo XVI, contra a qual o poder eclesistico, ali to bem representado, haveria de mover guerra feroz. Noyon estava fadada a ficar na histria. Ali fora coroado Carlos Magno como rei dos francos, em 768. Ali Hugo Capetino, o primeiro soberano da linha dos Capetos, fora proclamado rei em 487. Isso

  • quanto ao aspecto poltico. Quanto ao religioso, l es- tavam guardadas as relquias de Santo Eloy.

    O nmero de igrejas era grande para o tamanho da cidade e o movimento religioso mais ou menos intenso, com peregrinos que vinham visitar as relquias. A fertilidade do solo ao redor dava importncia agrcola e comercial pequena comunidade de umas doze mil pessoas. Era a sede de um bispado, e o bispo residente, um dos doze pares da Frana, o que emprestava sua autoridade espiritual um carter tambm poltico. Os picrdios (e Noyon ficava na Picardia), se tornaram conhecidos por seu amor polmica nas lutas nacionais.

    Nos tempos de Calvino, alguns filhos da terra eram figuras intelectuais de destaque em Paris, como Lefr- ve, Olivetan e Vatable, todos de Noyon. Ao aspecto educacional, Noyon podia se orgulhar de seu Colgio dos Capetos, assim denominado por causa do capuz usado pelos alunos. Tratava-se de uma escola correspondente ao nvel primrio e secundrio, onde estudavam alguns filhos de famlias gradas e nobres, como eram os Montmors, colegas de Calvino.

    Nessa escola, o futuro Reformador iniciaria os seus estudos, tomaria as primeiras lies de latim e preparar-se-ia para estudos mais elevados na Universidade, em Paris.

    Em Noyon, enquanto a Europa comeava a agitar-se com as questes religiosas levantadas por Lute- ro, ao pregar as suas 95 teses na porta da capela de Wittemberg, um menino franzino, moreno, de olhos castanhos e vivos, comeava a preparar-se para ser, quem diria, o grande consolidador da Reforma, o autor da teologia dogmtica, slida, bblica, postulador de uma tica e filosofia crists genunas e de uma forma de governo democrtico e viril.

    Quem havia de pensar que Jeanne de La Franc, a meiga, silenciosa e quase mstica filha do antigo hoteleiro de Cambrai, havia de dar luz em Noyon, ao menino que mais tarde abalaria os alicerces daquela igreja a que to devota e piamente procurava obedecer! E Calvino que nos d a entender que, levado pe

  • las mos de sua me igreja, se viu cercado, desde a infncia, por um ambiente religioso que teria reflexos decisivos na sua carreira futura.

    A sua crtica s relquias, severa e at sarcstica, tinha uma origem longnqua; vinha do esprito de revolta que muito cedo comeara a sentir contra tudo aquilo que lhe parecia estranho, superficial e at grotesco.

    Aos vinte e sete minutos da tarde, ou s doze horas e vinte sete minutos do dia 10 de julho de 1509, nascia Joo Calvino, filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc. Conforme alguns, seria o segundo filho, ou o terceiro, ou at o quarto na opinio de outros, se que outros filhos morreram na infncia.

    Dentro de uma boa tradio catlica, Calvino foi logo batizado, antes mesmo de completar um ms. Teve como padrinho um dos cnegos da catedral, Jean Vatine, de quem recebeu o primeiro nome. Mui cedo comearia Gerard Cauvin a descobrir no pequeno Jean as qualidades que o tomariam grande; desse modo, passou a alimentar o sonho de ter um filho famoso, alcanando o que ele no pudera alcanar em virtude das limitaes que o cercaram no bero.

    Gerard Cauvin valer-se-a da amizade e confiana de que desfrutava da parte do bispo, no para suplicar favores desmedidos, mas a concesso de benefcios eclesisticos que lhe permitisse educar os filhos na mesma escola em que estudavam os sobrinhos do clrigo. E os benefcios eclesisticos foram concedidos, inicialmente, ao filho mais velho, Carlos, e, posteriormente, a Joo Calvino, quando ainda contava menos de doze anos.

    Aos estudos na escola local juntou-se a influncia que Calvino recebia dos bons amigos e colegas que nela adquirira. Passou a freqentar a casa desses amigos e se tomou quase um membro da famlia de Adriano Hangest, parente do bispo, uma das famlias mais nobres da regio. No convvio desse lar de gente da nobreza, Calvino aprenderia a etiqueta e as boas maneiras que regiam a alta sociedade, dando-lhe assim um toque de polimento e habilitando-o mais tarde, sem

  • constrangimento, a movimentar-se com desenvoltura nas altas rodas, tanto em Paris, como em outros lugares.

    O tempo passaria muito depressa e logo a escola de Capeto no poderia oferecer nada mais ao filho de Grard Cauvin e aos seus colegas da famlia de Han- gest. possvel que Grard Cauvin consultasse os amigos sobre o futuro do filho e, evidentemente, Paris seria o lugar indicado para o prosseguimento dos seus estudos. A convenincia de sair, atendendo a essa finalidade, juntava-se a necessidade de fugir ao perigo da peste que comeava a visitar de novo a cidade de Noyon, peste que, de tempos em tempos, assolava a provncia, ceifando implacavelmente muitas vidas.

    Ainda aqui, as boas relaes com o bispo influram para que Calvino seguisse com destino capital, em companhia de seus sobrinhos, sob a orientao de um mesmo tutor. Assim que, nos seus verdes catorze anos, partia Joo Calvino para Paris. Inicialmente, residiria em casa de um tio, Jac Calvino, um ferreiro, fabricante de chaves, de quem pouco ou nada se sabe.

    Em Paris, a Providncia lhe prepararia a oportunidade do encontro com um homem que teria importante papel na sua formao intelectual, logo de incio: Marthurin Cordier, ou Marturinus Corderius, que, indubitavelmente, influenciaria na sua evoluo religiosa. Cordier era um homem de grande valor, e da mais alta reputao da Frana, como professor da juventude. Mestre consumado do latim e do francs, elegante estilista e pedagogo. Embora professor de classes mais adiantadas, para o que no lhe faltava competncia nem habilitao, preferia ter como alunos iniciantes jovens, de modo a oferecer-lhes base slida no aprendizado da lngua, antes que se viciassem em erros to comuns do tempo. Queria v-los falando e escrevendo um franc primoroso, isento de barbarismos e outros defeitos.

    Adotara mtodos modernos para o ensino da lngua, pois usava o que hoje chamaramos o mtodo direto, em que os alunos aprendiam a lngua falando,

  • conversando sobre coisas prticas, sobre assuntos da vida diria, versando sobre temas familiares. A ele se atribui a perfeio e elegncia do francs que Calvino exibia. Na opinio de Abel Le Franc, professor do colgio de Paris, Cordier fez dele um clssico comparado a Rebelais. Dele diz Le Franc: Maitre unique lun des Grammaires les plus distingues de le epoque.7

    ainda Marturin Cardier que fez de Calvino o latinista perfeito, igual aos clssicos dos tempos de Sneca. Pois era conforme Le Frnc: Par excellence un latinista consume.8

    Dele no se esqueceria o aluno aplicado, pois o levaria mais tarde para Genebra, onde depois de ensinar em Neuchatel, terminaria seus dias, na idade avanada de 85 anos, como professor da Academia que Calvino fundara.9

    Foi pena que, por to pouco tempo, estivesse Calvino sob a orientao pedaggica de Cordier, pois tivera que se transferir para outra escola. Do colgio de La Marche, Calvino foi para Montaigu, atendendo ao propsito de seu pai, que o destinara carreira eclesistica, pois ali se prepararia melhor para isso.

    Pensam alguns que esta mudana de escola fora determinada pelo tutor de Calvino, levado por um capricho injustificvel. No entanto parece que a situao de detentor de benefcios eclesisticos, que custeavam as suas despesas o subtendiam sua destinao ao clero, tenha infludo nessa mudana, pois convinha justificar a concesso desses benefcios feita a Calvino. Calvin mesmo que nos diz ser inteno do pai destin-lo carreira eclesistica.

    De La Marche para Montaigu havia uma diferena muito grande e a mudana foi chocante. Penning afirma que era um pulo no precipcio. Cordier representava o progresso, a primavera, a delicadeza; Montaigu era o inverno, o velho mtodo, o estreito conservadorismo, o chicote.10

    Montaigu trazia o nome do bispo de Laose, Pier- re de Montaigu, que o reconstrura 70 anos aps a sua fundao. Ali estudou Erasmo, o grande humanista, antes de Calvino, e guardava sombrias lembranas do

  • ambiente insuportvel, da disciplina cruel, da falta de higiene, da comida mal preparada, dos vermes dos quais Erasmo dizia ter recebido maior poro do que da teologia que impregnava as paredes. Os .quartos eram prximos das privadas ftidas e infecciosas; muitos estudantes ali adquiriram enfermidades graves e incurveis, alguns morreram e havia casos de cegueira, e at de lepra.

    Alm disso, os castigos corporais eram praticados com severidade e as horas de estudos esticadas, com tempo limitado para as refeies. Calvino, no entanto, no se queixava dos rigores da escola, alis, no o encontramos queixoso em nenhum lugar. Era estudante por vocao; era um filho obediente e aceitava com firmeza e pacincia estica as dificuldades que os estudos lhe impunham.

    Dirigia a escola, no tempo de Calvino, o severc Noel Beda, intransigente na sua disciplina e rigoroso defensor da ortodoxia catlica. Era um decidido inimigo da Reforma e de qualquer novidade teolgica que fosse de encontro sua concepo doutrinria medieval. Perseguira Jacques Lefrve. um grande intelec tual, um homem pacfico e moderado, somente porque via nele simpatias para com as idias de Lutero. Lefrve, num estudo de um texto bblico, dera-lhe interpretao diferente daquela ento em voga, mos* trando que Maria de Betnia, Maria Madalena e a outra Maria que ungira os ps de Jesus, na casa do doutor da lei, eram personagens diferentes. Foi o bastante para que se visse na necessidade de sair de Paris a fim de evitar perseguio maior. A severidade que Beda imprimia escola no poupara nem a irm do rei, Margarida de Valois, que ali fora castigada com rigor. No se pode negar, contudo, que Calvino ali adquirira uma bagagem de conhecimentos bem grande, que o fez versado na teologia de Toms de Aquino, de Agostinho, de Jernimo e outros grandes nomes do passado.

    Ali tambm, possivelmente, adquirira a disposio para algumas das enfermidades que bem cedo se

  • lhe tomaram em verdadeiros flagelos, que, por fim, acabaram por vitim-lo. O colgio de Montaigu gozava de grande reputao pelos seus mtodos rigorosos, pela energia da sua disciplina, pela sua oposio ao humanismo; evidentemente, um lugar para se preparar clrigos na bitola em que Noel Beda os desejava ter. E no era para a carreira eclesistica que o pai de Calvino o destinava? Ento era ali o lugar onde devia passar uma boa parte dos seus tempos de estudante.

    Talhado para o sofrimento, dotado de uma capacidade inata, quase incrvel de suportar os incmodos de uma vida sem sade, aplicado aos estudos, vido de aprender, no perdia tempo em arengas e queixas e, com uma pertinacia herica, foi adquirindo grande cabedal de conhecimentos, com rapidez e facilidade, que dentro em pouco o tornaram o melhor aluno da sua turma.11

    Quando mais tarde, nas grandes polmicas que enfrentou, Calvino revelou um conhecimento enorme dos pais da Igreja, era capaz de citar com facilidade e absoluta propriedade e preciso estes vultos do passado, bem como filsofos, surpreendendo amigos e adversrios. porque soube esquecer as pulgas e ratos de Montaigu para dedicar-se aos tesouros do conhecimen to que ali se lhe oferecia. O seu aproveitamento despertou a ateno dos professores e se fez logo notria entre os alunos a sua aplicao e capacidade de aprender.

    Cadier, bigrafo de Calvino, nos conta que Luche- sius Smits descobriu 1700 citaes de Santo Agostinho e mais 2400 referncias a ele nos escritos de Calvino.12

    Ali aprendeu Calvino a raciocinar e coordenar com maestria os argumentos e silogismos; ali consolidou a fama e o prestgio de bom estudante que vinha trazendo desde Noyon, e a admirao de antigos conterrneos e colegas bem como outros que granjeara em Paris. A sua vantagem em relao aos outros colegas de classe, dado seu rpido desenvolvimento, valeu-lhe a promoo em pouco tempo para estudos mais

  • elevados das disciplinas de filosofia e dialtica. Assim que, em 1528, terminava o seu curso de artes que o qualificava a entrar para os estudos de Direito em Or- leans e Bourges.

    Entende-se porque o mocinho tmido de aparncias pouco atraentes, de modos discretos fosse capaz de impor-se simpatia e admirao dos que o rodeavam, mestres e estudantes, onde quer que fosse, a ponto de formar em todo lugar um crculo notvel de amizades entre intelectuais e gente do povo. Calvino possua por instinto a arte dificlima de viver em meio a um ambiente at certo ponto hostil aos princpios ticos que adotara, sem ser odiado ou evitado.

    Alguns afirmam que, em Montaigu, recebera ele o apelido de Caso acusativo, dada a severidade e a intransigncia com que reprovava os erros dos colegas. Esta afirmao, contudo, parece sem fundamento e contestada por Guizot, por Walker e por muitos outros.

    Aos 19 anos de idade, Calvino deixa o colgio de Montaigu e deixa Paris, isso em 1528. J no era mais nem o menino ingnuo, o adolescente tmido que sara de Noyon cinco anos antes, nem era, to pouco, em matria de religio, o mesmo incondicional freqentador da Igreja e das cerimnias religiosas. Longe estava ainda de ser o cristo evanglico, defensor intransigente das verdades bblicas em oposio s inovaes da Igreja., como se tornaria mais tarde. Contudo, e certo que levava consigo a semente dos ensinos da Reforma que recebera do seu parente Roberto Olivetan, com quem privara durante a permanncia na capital. E no somente Roberto Olivetan, mas outros teriam tambm procurado abrir os seus olhos para a luz do Evangelho que j ento comeara a brilhar com fulgor nas terras da Frana.

    Roberto Olivetan traduziu o Velho Testamento para o francs e era zeloso e assduo estudante das Escrituras, descrente da Igreja Catlica e aderente dos princpios defendidos por Lutero e outros Reformadores. Nessa altura, o pai de Calvino j havia mudado

  • de idia com respeito carreira futura do filho e desejava que ele seguisse estudos de direito, a seu ver, o caminho mais seguro para a conquista de posio, de riquezas, de honra, pelo que nos informa o prprio Joo Calvino. Discute-se a exata razo dessa mudana de posio por parte de Gerard Calvin.

    Convm lembrar qe no eram amistosas, nessa altura, as suas relaes como o captulo da catedral de Noyon. As razes todas no se sabe. Sabe-se que perdera a confiana dos homens da catedral e que, ao que tudo indica, deixara de ser o bom e correto administrador que antes tinha sido. Pode ser que a vida desregrada do filho mais velho lhe tivesse trazido dificuldades financeiras e lhe criasse complicaes com os antigos patres. Tudo isso poderia ter infludo na deciso de indicar ao filho Joo as portas da escola de direito e no do seminrio.

    Emanuel Stickelberger, notvel escritor alemo que no seu estilo potico e pitoresco, assinala uma circunstncia curiosa da vida de Calvino, nesta fase: No princpio de 1528, quando o picrdio Joo Calvino, cuja cabea de 19 anos de idade seria logo decorada com o barrete de doutor, e sairia do colgio de Montaigu de Paris; um flcido basco para ali entrava vestido de andrajos, como se fosse um mendigo, por escolha voluntria. Os seus olhos brilhavam com fantico xtase, pois ele tambm desejava equipar-se com as ferramentas da cincia para o desempenho de tarefa que escolhera. Era ele Inigo Loyola. Loyola entrava puxando um burrinho que trazia os seus livros, e ia a p. Inescrutvel! diz Stickelberger.13

    A comparao entre Calvino e Loyola tem sido feita por escritores catlicos, como Andre Favre Dor- saz.14 O paralelo traado colocando Calvino em posio desfavorvel, tratando-o como se fosse um mrbido, perturbado emocionalmente, inteligente, mas fraco telogo; ao mesmo tempo que exalta a grande elevao do fundador da Companhia de Jesus, evidentemente, uma posio preconcebida e vesga.

    Em obedincia uma vez mais aos desejos do pai,

  • Calvino se dirige para Orleans. A escola de direito de Paris no gozava da fama nem da notoriedade da de Orleans, agora enriquecida cota a presena de Pierre de LTEstoile O rei da jurisprudncia, como o chama Penning.

    Pierre de LTSstoile era um homem de reconhecida capacidade intelectual e um grande mestre de direito. Catlico, ortodoxo, tendo enviuvado, ordenou-se sacerdote, mas continuava lecionando. Orleans iria oferecer a Joo Calvino uma nova situao, inteiramente diferente daquela que deixara em Montaigu.

    Para trs ficara a disciplina rgida de um ambiente de ferro. Agora era a liberdade, o descontraimento de um clima- intelectualmente arejado; uma mocidade brejeira, at frvola, embora preocupada com o saber, pois Orleans era nesse tempo, mais do que Paris, a capital intelectual da Frana.

    A fama de LEstoile atraa muitos alunos de vrios lugares. Embora adversrio da Reforma, era um homem de excepcional inteligncia e de um esprito cordial e amigo. Quando Calvino foi para Orleans, a universidade contava com 3.000 a 4.000 estudantes agrupados em dez naes ou clubes, conforme a sua origem de pases ou provncias. Calvino foi escolhido logo procurador da nao dos Picrdios, a sua provncia, naturalmente como resultado da confiana e da amizade que lhe devotaram os colegas conterrneos, pois que nessa poca tinha Calvino apenas vinte anos de idade.

    O ambiente liberal no impedia que Calvino se impusesse uma rigorosa disciplina, a qual o obrigava a alimentar-se frugalmente, estudar at altas horas da noite, de manh acordar cedo, e permanecer no leito recordando o que aprendera no dia anterior.

    Em Orleans encontra Melchior Wolmar que, depois, iria tambm para Bourges e que seria ali seu professor de grego, alm de amigo; dele Calvino receberia influncias no que dizia respeito Reforma, pois Wolmar era adepto de Lutero, um verdadeiro luterano. H aqueles que atribuem uma profunda in

  • fluncia de Wolmar sobre Calvino, neste sentido, fazendo-o quase totalmente responsvel pela deciso religiosa definitiva do aluno de grego. Pensa-se at que tenha ele infludo para que Calvino deixasse Orleans e fosse para Bourges.

    A correspondncia de Calvino com Wolmar, posteriormente, no oferece base para essa concluso.

    Nem mesmo o oferecimento que lhe faz Calvino de um de seus comentrios. No oferecimento, embora manifeste apreciao pelo ensino do grande mestre, no se refere a qualquer influncia religiosa, como era de se esperar, se fosse o caso.15

    Mais uma vez Calvino se destaca pela inteligncia, pelo aproveitamento rpido e admirvel. Dentro em pouco distinguido pelo mestre LEstoile com o convite para substitu-lo nas aulas, quando' precisa se ausentar; e o fato se repete e Calvino o faz com tal proveito que muitos comeam a ver nele um futuro substituto do grande professor.

    Como em Paris, Calvino se v em Orleans cercado de bons amigos, alguns colegas e mesmo professores. Entre os colegas se destaca Francisco Daniel, que mais tarde, seria advogado influente em Orleans e com o qual manteria correspondncia cordial e amiga. Daniel era de Orleans, tinha outros irmos e irms, e Calvino se tornou freqentador assduo e estimado do lar dessa famlia. Outro amigo Duchemin, durante algum tempo companheiro de quarto de Calvino, a quem Calvino tem a liberdade de solicitar um emprstimo quando os desequilbrios financeiros de seu irmo Carlos o deixavam em dificuldades e aperturas.

    A amizade com Francisco Daniel se estende por muito tempo embora no se torne ele um cristo reformado, como Calvino desejaria. Mais tarde, em Genebra, um filho de Daniel se torna objeto dos cuidados de Calvino.

    Calvino devia deixar Orleans antes de completar o seu curso, mas a Academia, por voto unnime, resolveu conferir-lhe o grau de doutor, livre de quaisquer despesas, considerando os servios que ali prestara.

  • Divergem os autores sobre se Calvino teria aceitado ou no esse grau. Beza parece acreditar que sim.

    A ida de Calvino para Bourges prendia-se ao interesse que vinha despertando nos estudantes de direito o novo professor italiano, Andre Alciati, tido como o maior advogado da poca, insigne mestre de direito. Jovens de outras partes da Europa estavam indo para Bourges atrados pela sua fama. Dizia-se que o rei da Frana o mandara vir da Itlia, oferecendo-lhe o dobro do salrio que al recebia. Francisco Daniel tambm se transferira para Bourges, seguindo o exemplo de Calvino. Sabe-se que o pai estava em srias dificuldades com as autoridades eclesisticas em Noyon, tendo sido at excomungado e que, nessa situao morreu. Contudo, no se tratava de um problema religioso, tanto quanto se pode saber, mas de uma questo financeira; ou a falta de prestao de contas devida na administrao dos bens da catedral.

    A morte de Gerard Cauvin trouxe mudanas nos planos de Joo Calvino. No continuaria os estudos t lei que encetara em obedincia aos desejos do pai e que, com grande sucesso, conduzira tanto em Orleans como em Bourges.

    Dirige-se agora a Paris. Vai dedicar-se aos estudos dos clssicos, ampliar os seus conhecimentos de grego sob a direo do grande professor dessa matria, Danes; iniciar o aprendizado do hebraico com Vata- ble, ambos do colgio real fundado por Francisco I, indo residir no Colgio Fortet.

    Ali se veria tambm cercado de um grupo de amigos, como Nicolas Cop e outros jovens juristas, intelectuais.

    Sara de Noyon. mas l ficara o irmo Carlos, motivo de preocupaes para Calvino, e que to mal desempenhara o papel de seu representante no recebimento do dinheiro devido aos estudantes e no encaminhamento dos negcios da famlia. Foi, por isso, obrigado a tomar dinheiro emprestado do seu amigo e colega Duchemin. O irmo Carlos continuaria ser motivo de preocupao para ele. Comea ento a prepa-

  • rar o livro da sua estria como escritor, o seu comentrio de Sneca, ou Tratado de Clementia .

    No tinha Calvino 23 anos completos quando o livro foi publicado, em Abril de 1532. Calvino nunca deixou de estudar, de ler, investigar, mas parece que agora em Paris os seus estudos so menos acadrr cos. Comeava a aflorar-se nele o grande intelectual, o escritor profundo, o crtico penetrante, o analista perspicaz, o filsofo meditativo e o telogo exato, que havia de ser, insupervel na sua poca.

    A universidade era nova mas adquiria fama, pois com a proteo de Margarida de Angouleme vinha arrebatando professores de nome como Alciati. E Wolmar tambm deixara Orleans para integrar o corpo da nova universidade. Era um grande intelectual, professor de grego que se deleitava em ler os clssicos com os seus alunos.

    A impresso que se tem, contudo, que Calvino ficou um pouco desapontado com Alciati. O professo italiano era um fluente palrador, dono de magnfica retrica, mas quem sabe sem a lgica serena do grande LEstoile, muito ao sabor de Calvino metdico e organizado. Wendel, na sua biografia de Calvino, chega a dizer que ele ficou descontente com os pomposos discursos de Alciati, os quais no lhe deixaram de ser teis, pois que o encontro com esse mestre do direito por certo lhe instilou o gosto pela oratria bem cuidada, brilhante e cheia de enfeites. Uma polmica parece ter surgido posteriormente entre os adeptos de LEstoile e os admiradores de Alciati.

    Duchemin, colega e amigo de Calvino. publica uma defesa de LEstoile e pede a Calvino que a prefacie, o que ele faz. Julga-se seria esse o primeiro trabalho pblico da pena de Calvino de que se tem notcia (1529).16

    Em Bourges, Calvino segue a mesma rotina de estudos dedicando-se afincamente aos livros. Passou a estudar grego com Wolmar, algo muito importante para a sua carreira futura. Tem que ir, no entanto, a Noyon, atendendo s notcias da enfermidade grave

  • de seu pai, a quem assiste at ao final. H um verdadeiro silncio sobre a atitude religiosa de Grard Calvin na fase fina de sua vida.

    Parece difcil pensar que o filho, j nessa altura profundamente influenciado pelas idias da Reforma, no o tivesse levado ao conhecimento das verdades bblicas nos ltimos dias da sua vida. Calvino, sempre reservado com respeito as coisas mais ntimas da sua vida particular, no nos d nenhuma informao sobre o assunto.

    Percorrendo os fatos da vida de Joo Calvino com a perspectiva que hoje temos de mais de quatro sculos, fcil acompanhar os sbios caminhos da providncia que, segundo os seus desgnios, vai traando a rota do homem que, em tempo oportuno, havia de ser instrumento eficaz na realizao de uma obra gigantesca, de conseqncias transcendentais.

    Os planos, fossem eles de Grard Cauvin, o pai, para atender suas ambies com respeito ao filho; fossem do prprio Joo Calvino, em obedincia s suas inclinaes naturais, eram, acima de tudo, planos de Deus na preparao do instrumento til, designado pela sbia e soberana vontade do Senhor, para a execuo da Sua obra.

  • Captulo 4

    UM NOVO RUMO

    Discute-se a poca e a maneira em que se deu a converso de Joo Calvino ao Protestantismo.

    Teodoro Beza atribui influncia de Pedro Roberto Olivetan, segundo alguns, primo de Calvino, natural de Noyon e tradutor do Velho Testamento do hebraico para o francs, o interesse inicial de Calvino pelas Escrituras Sagradas, as quais passou a ler e, em conseqncia, a sua averso s supersties da Igreja e o seu afastamento das reunies dos templos catlicos.'7 Nesse caso, essa influncia se iniciara muito cedo, pelo menos logo aps a ida de Calvino para Paris, onde estaria em contacto direto com Olivetan.

    A dificuldade que se encontra em obter maiores informaes sobre esse assunto oriunda da reserva e retraimento de Calvino, que se abstm de tratar de suas experincias intimas.

  • ainda Teodoro Beza quem aponta Melchior Wolmar, alemo adepto das idias de Lutero e entusiasta pela Reform^, professor de grego de Calvino em Bourges, como um outro elo na corrente de influncias que o levaram a uma deciso de carter espiritual. E Beza tem melhores condies de saber a esse respeito, pois no somente foi aluno de Wolmar, em cuja casa conheceu Calvino, como tambm foi o sucessor de Calvino em Genebra e com ele militou muitos anos. Alis, Calvino mesmo reconhece essa influncia e dedica mai,; tarde a Wolmar o seu comentrio Primeira Epstola aos Corintios, em sinal de gratido.

    Abel Le Franc, parente de Calvino pelo lado materno, professor do colgio de Paris e um estudioso da vida do Reformador, pensa que a sua converso tenha sido, embora repentina, fruto de um processo demorado, que vinha desde os dias da sua infncia no lar em Noyon.

    Uma demanda que segundo Penning,18 durou duas geraes entre a catedral de Noyon e a Abadia de' Santo Eloy sobre os direitos das relquias desse santo, na qual Grard Cauvin deve ter atuado como procurador da catedral; demanda que transcorreu marcada de violentas agresses de parte a parte e que trouxe desmoralizao ao clero, deve ter calado na alma do ingnuo adolescente, filho de Grard Cauvin, que no entanto era bastante vivo para compreender que havia algo errado em isso tudo.

    O seu tratamento do assunto num trabalho sobre relquias, mostra com ironia e sarcasmo o ridculo delas, como quem conhece de perto o assunto por experincia pessoal. O fato que desiluses iam-se acumulando atravs de uma srie de ocorrncias e, comeando a inquietar seu esprito ainda jovem, por isso buscou inicialmente no humanismo a satisfao que desejava, mas estava longe de encontrar.

    Sabe-se que Calvino muito cedo comeou a estudar as Escrituras e apreci-las, fazendo delas estudos bblicos, sem se definir com respeito posio que devia tomar em relao Igreja Catlica. bem pos

  • svel que a sua aceitao intelectual dos princpios da Reforma antecipasse por algum tempo a crise que resultaria na sua posio definitiva. Como intelectual, poderia, semelhana de Erasmo, a quem admirava, assumir para com as Escrituras Sagradas a atitude de um diletante; para com a Igreja e a religio de sua infncia, uma posio de anlise crtica, sem, contudo, sair da sua grei.

    A obra do Esprito de Deus, conforme o ensino das Escrituras e a interpretao da teologia calvinista, qe realiza a converso verdadeira do homem, embora par isso utilize instrumentos humanos. Essa obra tem aspectos misteriosos por vezes no inteligveis a nossa compreenso. Guizot afirma que a despeito da estima que Calvino manifesta por seus mestres e da influncia que sobre ele exerceram, nem o direito, nem o saber, nem qualquer das cincias ensinadas pelos professores poderiam satisfazer Calvino. Ele precisava de um alicerce mais slido, mais consistente sobre o qual assentasse a sua vida.

    Numa passagem da Carta de Calvino ao cardeal Sadoleto, o Reformador parece entrar em mincias com respeito sua vida espiritual e refere-se forte influncia que sofreu das idias reformadas, as quais apontavam os erros da Igreja; revela a resistncia tenaz que manteve, temendo pela unidade da Igreja; sentindo-se, no entanto, cada vez mais perturbado, mais insatisfeito, mais inseguro. Sadoleto, na carta que dirigia Igreja e ao Senado de Genebra, imaginou um catlico e um protestante diante de Deus, apresentando cada um a sua posio religiosa. Calvino aproveita a deixa do Cardeal e, com muita astcia, imagina um ministro protestante e um crente comum defendendo os princpios da Reforma, o que supe que seja uma revelao da sua prpria experincia. O ministro responde que fora acusado de dois crimes horrveis, a heresia e o cisma, e defende-se, dizendo que a heresia nesse caso se constitua nos protestos contra dogmas opostos luz da Palavra de Deus; alega terem muitas coisas sido introduzidas na Igreja em substitui

  • o Palavra de Deus, frutos do crebro humano. Via entre aqueles que se diziam lderes, falta de conhecimento das Escrituras e pouco interesse por elas, uma vez que tinham inventado muitas coisas inteis como meios de buscar o favor divino. O discernimento para entender o erro dessa maneira de proceder, vinha da prpria luz que o Esprito de Deus fizera brilhar na sua alma atravs da Palavra.

    Com respeito acusao de cisma, afirmava que a unidade da Igreja que desejava era aquela que comeava em Deus e terminava em Deus, pois como Deus mesmo nos recomenda paz e concrdia, Ele mesmo nos mostra o nico meio de preserv-la. Desejar, porm, a paz com aqueles que se gabam de ser os chefes da Igreja, colunas da f, seria compr-la com a negao da verdade de Deus; pois o Ungido de Deus havia declarado: Passar o cu e a terra, porm, as minhas palavras no passaro (Mt 24.35).

    Uma outra declarao de Calvino que mais intimamente parece relacionar-se com a sua luta espiritual est no prefcio do Comentrio de Salmos, publicado em 1557, portanto, muito depois da sua converso .

    Calvino se considera muito humilde para se comparar a Davi, mas, v um paralelo entre a experincia da elevao do pastor de Belm dignidade real e a ao providencial de Deus na sua vida; que o tirou de origens to humildes para a honrosa posio de ministro e pregador do evangelho. Refere-se aos planos de seu pai para que se dedicasse ao sacerdcio e, posteriormente, estudo de leis, o que fez em obedincia exclusiva vontade dele e contra, ao que parece, sua prpria vontade, no que Deus, afinal, veio em seu socorro, orientando-o em outra direo, de acordo com a sua providncia secreta.

    Alude Calvino sua obstinao em apegar-se a supersties do papado das quais lhe fora to difcil sair, tal a profundeza do abismo em que se encon trava. Deus, porm, subjugou o seu corao, tornando-o dcil e dando-lhe gosto pelo conhecimento da

  • verdadeira piedade, de modo que lhe ardia um grande desejo de alcanar benefcios dela. Calvino estava disposto a abandonar a todos os seus estudos nesta situao, uma vez que no sentia mais interesse por eles. Narra, ainda, a surpresa que teve quando algumas pessoas, desejosas da pura doutrina, o procuravam para aprender dela quando era nisso apenas iniciante. Conta da sua predileo pelos estudos em lugar tranqilo e quieto, e, no entanto, Deus o conduzia a vrias experincias difceis para que no tivesse repouso em lugar nenhum, conduzindo-o luz e colocando-o em evidncia.

    Voltando agora carta que escreveu ao cardeal Sadoleto, encontramos as palavras que Calvino pe na boca do cristo que passou pela experincia de converso do catolicismo f reformada; experincia que parece ser a de Calvino mesmo: Quando pareceu que eu tinha feito todas essas coisas, embora em alguns intervalos gozasse de quietude, eu estava longe da verdadeira paz de conscincia.... Continua descrevendo a sua resistncia aos ensinos que lhe eram apresentados pelos dissidentes da Igreja at que: a minha mente agora preparada para dar ateno, afinal percebi como se a luz tivesse cado sobre mim, mostrando-me em que tipo de erros eu tinha andado e quanta poluio e impureza eu tinha assim contrado. Excessivamente alarmado pela misria em que caira, e muito mais por aquela que me ameaava na viso da morte eterna, eu, no cumprimento do dever resolvi como primeiro empenho conduzir-me ao teu caminho, condenando a minha vida passada, no sem lgrimas ou sem gemidos, mas ao invs da defesa, suplica fervorosa de julgar-me segundo a desero e abandono da Tua Palavra. . . 19 Tudo parece indicar que Calvino est falando de si mesmo, e assim pensam muitos de seus bigrafos.

    Sabe-se que Calvino sempre muito reservado com respeito as suas experincias religiosas, longe de proclamar em linguagem pattica o que ocorre no seu ntimo, retrai-se, refugia-se na sua teologia e atravs de

  • la expressa seus mais altos sentimentos. Faz-se por vezes a pergunta: como conciliar a reconhecida honestidade de Calvino e a posio inequvoca que ele foi sempre capaz de assumir em face da verdade, com a longa espera para uma deciso definitiva em relao ao seu desligamento da Igreja Catlica e dos benefcios que lhe eram atribudos e dos quais usufrua proventos?

    Alis, costuma-se lembrar que Calvino foi peremptrio na condenao daqueles que ele mesmo chamou de Nicodemitas homens como Duchemin e Roussel, os quais embora no ntimo aceitassem a causa da Reforma, permaneciam ligados Igreja Catlica. A Roussel especialmente, Calvino incrimina com severas palavras, dizendo: Um velho amigo agora empreitado para aceitar o bispado em Oloron.

    Um exame detido dos fatos dar compreenso mais clara da atitude de Calvino, atitude que se observa em outros exemplos de converso, nos quais, em virtude de certos fatores psicolgicos, ela se processa atravs de uma longa demora at deciso final. Por vezes, fruto da interveno de acontecimentos excepcionais que o Esprito de Deus sabiamente utiliza; seria o caso do apstolo So Paulo, que por tanto tempo resistiu ao aguilho da conscincia at ser tombado por terra pela luz divina no caminho de Damasco.

    Como foi difcil ao rabino Saulo de Tarso admitir a verdade do cristianismo, mesmo quando vencido pela argumentao decisiva de Estvo; mesmo depois de ter testemunhado com os prprios olhos a comovente cena da morte do primeiro mrtir do cristianismo, com a serenidade de um santo, o rosto iluminado pela paz interior, preferindo palavras de perdo e de intercesso em favor

  • to cedo mantinha contudo uma extraordinria resistncia ao que seria o rompimento com a sua religio da infncia, do lar, da cidade de Noyon, de sua me de to gratas memrias. Parece que a palavra cismtico lhe produzia sentimentos de terror e jamais poderia se sentir em paz com a conscincia se participasse de um movimento para dividir a su Igreja. E isto est muito claro na sua carta a Sadoleto quando se refere ao profundo respeito, que sempre mantivera para com a unidade da Igreja: Uma coisa em particular me fazia avesso aos novos mestres, a reverncia para com a Igreja, mas, quando uma vez eu abri meus ouvidos e me permiti ser por eles ensinado, percebi que esse medo de depreciar a majestade da Igreja era sem base; pois eles me lembraram a grande diferena entre o cisma da Igreja e o estudo correto das faltas pelas quais a Igreja mesma estava contaminada20 Alis, foi essa sempre a agonia dos reformadores; todos eles mantinham um profundo respeito para com a Igreja e nem de leve lhes parecia possvel uma separao dela. Foi exatamente isso que sentiu Lutero, pois o seu pensamento no era dividir a Igreja, mas reform-la. E quanto esforo no fez nesse sentido! Escreveu Lutero ao Papa, lamentando as condies em que Roma se encontrava e apelando para que tentasse modific-la.

    Calvino sofre influncia de muitos elementos, os quais, de uma maneira ou de outra, no todo ou era parte, aceitavam as idias da Reforma, mas no esta- vam decididos a romper com a Igreja.

    Homens como Luis de Tillet, que at chegou a se declarar do lado da Reforma por algum tempo, mas depois retrocedeu, com tristezas para Calvino, que alimentava por ele grande amizade. E Erasmo? Capaz de escrever o Elogio da Loucura, to impiedoso na crtica ao clero; auxiliar indreito da Reforma com a publicao do Novo Testamento grego, entretanto comodista- incapaz de tomar posio clara e definida ao lado dos reformadores. Erasmo admirava Calvino e at chegou a prever nele o homem fue ainda haveria de dar muito trabalho a Igreja. E Margarida de Valois, que fez da

  • sua corte um refgio para os perseguidos cristos evanglicos, que oferecera proteo a Lefvre, tirando-os das garras da Sorbonne, para que no fosse levado fogueira quente, porque defendia a salvao pela f, a semelhana de Lutero. Margarida no queria jamais uma separao da Igreja.

    Lefvre, contudo, no pensa em se desligar da Igreja Catlica, sente entusiasmo por Calvino, admira-lhe a inteligncia e v nele um futuro profeta da era evanglica. No peito, o velho Lefvre alimentara a esperana de que um jovem como Calvino pudesse produzir o movimento de renovao espiritual a que ele mesmo no se abalanaria a realizar. Calvino para Lefvre seria o profeta de uma nova ordem; e ser profeta aquele que prope pela sua palavra uma viso nova e espiritual, reformadora, e o jovem picrdio de Noyon havia de s-lo. Lefvre continuaria na sua man- suetude evanglica, irrepreensvel, com o seu saber profundo e sua piedade no fingida, a orar e ajudar a muitos que haviam de ligar a sua vida causa da Reforma com ardor indomvel e coragem, como Farei e Vatable.

    Margarida de Valois no mede esforos para salvar a vida dos fiis adeptos da Reforma. Pessoalmer te dedica-se ao cultivo espiritual, escreve seus piedosos poemas msticos, e com isso provoca as suspeitas da Sorbonne e at mesmo as iras de Beda, que estaria pronto a encaminh-la s fogueiras da Inquisio; e que s no o faz porque no pode romper com a oposio do irmo de Margarida, o rei Francisco I. Chega a condenar os seus versos como literatura hertica porque advoga a salvao pela f. Margarida, no entanto, no deseja separar-se da Igreja e' mostra-se reservada com respeito a Calvino, quando pensa que o jovem picrdio se encaminha para uma posio cis- mtica.

    Por pendor pessoal, inato, Calvino nunca seria um reformador no sentido em que o termo se entendia. Nada lhe agradaria mais do que afundar-se nos livros, estudar os problemas, buscar solues e pro-

  • clam-las atravs da sua pena gil, dextra e escorrei- ta. O seu papel era iluminar a caminho para que outros mais vigorosos, com mair disposio para a luta, com vocao para a refrega, empreendessem a caminhada. No sente pendor e nem disposio fsica para jogar-se numa disputa encarniada de vida ou morte. E no o faz at que, arrastado pelas circunstncias, contrariando a sua vontade pessoal, e escolha, descobre que debalde lutar contra a vontade de Deus.

    Aqueles que tm vivido o romance da vocao ministerial, sabem entender bem isso, porque tambm lutaram premidos pela viso de sua prpria capacidade apoucada e tentaram resistir a todas as foras que os conduziam rumo ao divino chamado, at que descobrissem no haver outra maneira de viver em paz consigo mesmo, e com Deus, se no aceitando o que tantas vezes tinham rejeitado, que, porm, ento se revelava de maneira clara e inconfundvel como determinao divina.

    Mesmo depois da sua experincia de converso, Calvino sonha estudar teologia, formular cuidadosamente luz da Bblia o credo dos novos cristos, mas nunca assumir o papel de lder inconteste da Reforma na Frana ou na Suia como lhe estava providen- cialmente reservado.

    Ele era telogo nato, o pensador, o intelectual por vocao; nada lhe dava mais prazer do que pesquisar cuidadosamente a revelao dos mistrios de Deus nas Escrituras e, no emprego da mais rigorosa exegese, luz dos textos originais e em comparao com o pensamento de homens como Agostinho formular uma dogmtica evanglica precisa e exata.

    Calvino havia de fazer isso, mas no como pensava; a sua teologia no haveria de ser acadmica, de gabinete, e que talvez a fizesse rida, sem valor permanente, sem aplicao prtica. O gnio de telogo iria se exercitar no fragor de uma luta de sangue, de lgrimas, de sofrimentos fsicos, de presses inimigas constantes, para que, assim, a teoria fosse

  • sustentada pela prtica e a sua obra, por isso mesmo, resistisse a todas as vicissitudes do tempo.

    No por sua escolha que vai para Genebra, se no pela violenta admoestao de Farei, de que estaria fugindo a uma ordem divina e que no O poderia fazer temerariamente. Sim, Farei, o homem que fora conduzido a sua converso por Lefvre, o tmido Lefvre! Recorda-se que a ele, Farei, Lefvre dissera um dia: meu filho, somente pela graa, o bastante para acender no corao ardente do jovem impetuoso a luz verdadeira do evangelho. ,

    Ningum mais conteria Farei, movimenta-se em Paris, forma um ncleo de evanglicos; vai para Basilia, percorre outros lugares e chega a Genebra, onde produz uma verdadeira revoluo que Calvino jamais poderia realizar, mas que ele, Farei, no pode consolidar, e, para tanto, precisa do telogo das Insti- tutas.

    Quanto mais preferiria recolher-se ao silncio de uma biblioteca e garimpar nas minas das Escrituras o profundo sentido do evangelho! Quando expulso de Genebra, embora humilhado e ferido, sente, no entanto, o alvio, pois agora pode fazer o que tanto desejava quando al chegou.

    A vista de tudo isto, torna-se mais fcil entender o processo demorado do rompimento definitivo de Calvino com a sua igreja de origem.

    Retrado por temperamento, honesto para com Deus e para consigo mesmo, nutrindo um grande amor para com a Igreja do Senhor, no quer romper com ela, e s o faz na absoluta conscincia de que segue indeclinvel a orientao divina para a sua vida.

    H lampejos admirveis nesta longa trajetria de Calvino que valem a pena lembrar.

    De uma feita, em Poitiers, celebra a Santa Ceia em lugar escondido, uma caverna, segundo consta, com um grupo de evanglicos, com a mesma simplicidade bblica de que a cerimnia se revestia na igreja primitiva: L uma passagem dos evangelhos alusiva ao sacramento e preside cerimnia sem as for

  • malidades da missa, o po consagrado e exposta a doutrina da Ceia do Senhor. Haveria nesse ato qualquer incongruncia inexplicvel com a posio de Calvino at ento? E Doumergue lana luz sobre o assunto, quando nos conta que Calvino num debate a respeito da Santa Ceia com Carlos Lesage, apontava para a Bblia dizendo: A est a minha missa e, descobrindo-se, erguia os olhos ao cu como numa angus- tiosa orao, clamando: Senhor, se no dia do julgamento Tu me reprovares por que eu no tenho estado presente missa e eu a tenho abandonado, com justia dizei: Senhor, Tu a no ordenaste; aqui est o Teu livro, aqui esto as Escrituras, que so as regras que Tu me tens dado, na qual no pude achar outro sacrifci, seno aquele que foi ofertado na cruz.21

    o gemido de um corao ansioso pela absoluta claridade, a qual vislumbra ainda em meio a nuvens de dvida e confuso. um homem absolutamente sincero, mas que no possui ainda a luz completa do dia perfeito.

    Como bem aponta Walker, embora haja dificuldades de entender o processo de desenvolvimento religioso e converso de Calvino, no h nenhuma dvida quanto ao resultado final: Nenhum lder religioso da era da Reforma se apresenta mais claramente definido do que ele, Calvino, em todos os aspectos de carter espiritual, nos seus anos de maior maturidade. O processo, porm, pelo qual Calvino passou do status de um estudante sustentado por fundos de organizaes eclesisticas romanas e aceito como membro do clero romano, mesmo sem ordens clericais, quela posio de lder do protestantismo, difcil de seguir em mincias, em parte por razes da reticncia do prprio Calvino com respeito a tudo que concerne s suas experincias ntimas; parcialmente porque os seus primeiros bigrafos, no intencionalmente, distorceram os fatos da sua primeira vida religiosa, e, parcialmente tambm, em conseqncia das vrias interpretaes que modernos historia

  • dores tm dado s indicaes escassas existentes do seu desenvolvimento espiritual.

    Muito bem, os ltimos momentos de Calvino atestam como tambm a espinhosa carreira em Genebra, com rastos de sangue, a sua mais completa entrega a Cristo Jesus, fruto duma converso legtima, tenha- se ela dado mais cedo ou mais tarde em sua vida, no importa.

    Dentrq dele, nos recnditos da sua alma aflita, r voz irresistvel do Esprito ressoou com clareza inconfundvel o chamado de Deus, e ele obedeceu com humildade esse chamado para entregar-se inteiramente ao seu Senhor, como ele mesmo expressou em uma de suas obras: Cor meum tibi ddbo".

  • Captulo 5

    PEREGRINAES DE CAL VINO

    Passemos, em retrocesso uma vista nesse perodo to incerto da vida de Calvino. De Bourges, interrompendo os seus estudos, Calvino tem que ir a Noyon, aonde a enfermidade de seu pai o chama e onde permanece at a morte de Gerard Cauvin. O desaparecimento do progenitor marca como que um novo captulo na vida do filho.

    H, possivelmente, negcios que o detm al por um pouco de tempo mais. Grard Cauvin no estava apenas enfermo, gravemente; estava em srios conflitos com o capitulo da catedral, conflitos que resultaram na sua excomunho. Se essa situao de carter econmico e moral tinha qualquer coisa que ver com a sua enfermidade, no sabemos. Ainda aqui Cal-

  • vino mais uma vez, como do seu feitio, absolutamente discreto.

    nesse perodo que escreve ao grande amigo Du- chemin e lhe d conta, sem maiores mincias, do agrar vamento da sade do pai.

    No voltaria mais Calvino aos estudos de direito, pois estava livre do compromisso de satisfazer a vontade paterna, e podia agora dedicar-se carreira de sua preferncia. O seu pendor natural era para letras clssicas, seguindo a linha humanista da poca. Vai para Paris, reinicia os estudos de grego, comea a estudar hebraico, prepara-se para estreiar no mundo das letras com o seu comentrio de Seneca, De Clemen- tia. O interesse no hebraico que j vinha de algum tempo, tinha relao, por certo, com a preocupao de melhor entender a Bblia no que diz respeito ao Velho Testamento De Clementia, como veremos mais tarde, era uma obra de teor humanstico, que no aspecto tico bem se enquadra ao sabor de Calvino, que encontra na filosofia do estico latino algo que se afina com a sua inclinao natural para uma vida de sobriedade e cultivo de virtudes.

    At ento, Calvino era um expositor bblico sem maiores responsabilidades, a no ser o dever de conscincia que o impelia a buscar, para si e para os outros, na palavra de Deus os ensinos de uma vida crist verdadeira.

    Comeara com grandes sucessos essa misso em Orleans, continuara quando em Bourges numa pequena vila prxima, Laviere, e prossegue em Paris. Podamos dizer que nessa altura era apenas um catlico, que a semelhana de Lefvre, tomara uma posio diferente, livre das peias da dogmtica e cerimonialis- mo catlicos.

    Em Paris vai residir em casa de Etienne de La- forge, rico negociante, ardoroso adepto da Reforma, onde os perseguidos reformados costumavam se reunir, um tanto s