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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL CAMINHOS DO AXÉ: A TRANSNACIONALIZAÇÃO AFRO-RELIGIOSA PARA OS PAÍSES PLATINOS A PARTIR DO TERREIRO DE MÃE CHOLA DE OGUM, DE SANTANA DO LIVRAMENTO – RS. DANIEL FRANCISCO DE BEM Porto Alegre, 2007

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    CAMINHOS DO AX:

    A TRANSNACIONALIZAO AFRO-RELIGIOSA PARA OS PASES PLATINOS A PARTIR DO TERREIRO

    DE ME CHOLA DE OGUM, DE SANTANA DO LIVRAMENTO RS.

    DANIEL FRANCISCO DE BEM

    Porto Alegre, 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    CAMINHOS DO AX:

    A TRANSNACIONALIZAO AFRO-RELIGIOSA PARA OS PASES PLATINOS A PARTIR DO TERREIRO

    DE ME CHOLA DE OGUM, DE SANTANA DO LIVRAMENTO RS.

    DANIEL FRANCISCO DE BEM

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

    ORIENTADOR: PROFESSOR DR. ARI PEDRO ORO

    Porto Alegre, Maro de 2007

  • Dedico esta dissertao me Chola de Ogum Mal, a Belkis, Pitufo, Javier e a

    todos os membros dos terreiros da Casa Africana Reino de Ogum Mal pela

    hospitalidade para com um estranho. Espero que este trabalho possa s

    valorizar o projeto de vida de vocs.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao longo da minha trajetria pessoal e acadmica, contei com o apoio de mais

    pessoas do que sou capaz de me lembrar. Por vezes uma palavra furtiva que

    desencadeia uma srie de derivaes que transformam toda a realidade. Meu

    primeiro agradecimento para Marcelo Tadvald, que em 2003, em um momento

    particularmente difcil para mim, insistiu para que eu participasse das reunies do

    Ncleo de Estudos da Religio (NER) do Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social da UFRGS. Foi a partir de ento que esta dissertao se tornou

    uma possibilidade mais concreta. Portanto, agradeo, por tudo Marcelo, porque s

    o irmo que a vida me permitiu escolher.

    Ademais, teo meus agradecimentos a algumas das pessoas que so, de

    alguma forma, responsveis pela materializao deste trabalho:

    Ao Prof. Dr. Ari Pedro Oro, pela confiana em mim depositada em tantos

    momentos, pelo seu exemplo de pessoa e profissional.

    me-de-santo Chola de Ogum Mal, pela disponibilidade, interesse,

    pacincia e confiana para comigo. todos os seus filhos-de-santo em Santana do

    Livramento, Posadas e Montevidu, pela ateno e desprendimento com que me

    receberam em tantas oportunidades.

    Em Santana do Livramento ainda agradeo a prof. Mestre Gladys Bentancor e

    esposo Fernando Roses pela acolhida sincera, o dilogo de qualidade e a

    experincia de vida que me mostrou um pouco de como so os uruguaios. E a

    agradeo ao seu Srgio da Santeria Canto dos Orixs, pela gentileza e

    disponibilidade de me acompanhar em algumas das minhas entrevistas.

    todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Antropologia

    Social da UFRGS, por me guiarem no aprendizado da Antropologia; sobretudo ao

    Prof. Dr. Bernardo Lewgoy e a Prof. Dr. Caleb Farias por sempre estarem abertos ao

    dilogo.

    Ao PRONEX/ CNPQ que financiou a maior parte das minhas expedies pela

    regio fronteiria entre Brasil, Argentina e Uruguai. Sem esse apoio, este trabalho

    no teria sido possvel.

  • Aos amigos e colegas de ncleo Rafael Derois, Cntia vila, Rosilene

    Schoenfelder, Antnio Madalena, por todo o apoio, auxlio e interesse, meu muito

    obrigado.

    J. R. Saldanha e Rita Rauber por tudo que fizeram por mim, sobretudo nos

    momentos mais difceis de todo esse processo.

    Aos meus amigos e familiares pelo tempo de convivncia que lhes foi

    subtrado, meu muito obrigado por entenderem a importncia desta pesquisa para

    mim.

    A minha me Ilca Cardoso de Bem, grande incentivadora de todos os meus

    projetos. Te amo e espero que te orgulhes de mim.

    A minha namorada Adriana, parceira intelectual, musa inspiradora e suporte

    moral, sem o qual eu teria soobrado perante esta tarefa. Amorzinho, mesmo nos

    longes da distncia meu amor teu.

  • verdade que a antropologia estuda problemas, e no povos, como disse

    Evans-Pritchard; mas seus problemas so aqueles dos povos que estuda (...) [e assim existem] problemas postos por

    estes povos para si mesmos, e portanto para os antroplogos. (...) O que sempre

    se passa uma negociao entre os problemas do etnlogo pessoais tanto

    quanto tericos e os problemas de seus informantes, tomados em maior ou menor

    medida como a expresso de um pensamento integralmente social

    (Eduardo Viveiros de Castro)

  • RESUMO

    A conformao de comunidades dentro do processo de difuso dos sistemas

    religiosos afro-brasileiros para o Uruguai e a Argentina propicia o surgimento de

    famlias-de-santo transnacionais, trans-tnicas e trans-territoriais. o que ocorre na

    Casa Africana Reino de Ogum Mal, com sede em Santana do Livramento (Brasil),

    um ponto de partida tradicional para a transnacionalizao afro-religiosa na fronteira

    do Brasil com o Uruguai. Suas filiais encontram-se em Montevidu (Uruguai) e

    Posadas (Argentina), havendo ainda ramificaes em So Miguel de Tucum

    (Argentina). Organizados por me Chola, membros desse coletivo percorrem,

    durante o calendrio litrgico, os vrios pontos desse territrio, visitando-se

    mutuamente, construindo sua religiosidade e reforando o pertencimento rede.

    Busca-se aqui, atravs do mtodo etnogrfico, recompor a ambincia

    experimentada durante os rituais e, ao mesmo tempo, identificar os momentos em

    que os atores envolvidos performatizam tenses identitrias, na medida que, ao se

    relacionar atravs de uma estrutura ritual compartilhada, acabam por a experienciar

    a partir de significantes e prticas culturais informadas por outros pertencimentos,

    sejam tnicos, lingsticos ou nacionais.

    Palavras-chave: transnacionalizao religio afro-brasileira ritual fronteira

    jogos identitrios

  • ABSTRACT

    The diffusion of African-Brazilian religions into Uruguay and Argentina leads to

    the formation of families-in-saint which can be at once transnational, transethnical

    and transterritorial. Such is the case of the Casa Africana Reino de Ogum Mal

    (The African House of the Kingdom of Ogum Mal), whose headquarters lies is

    Santana do Livramento (Brazil), a traditional departure point for the

    transnationalization of African-Brazilian religion, on the Brazilian-Uruguayan border.

    Its has branches in Montevideo (Uruguay) and Posadas (Argentina), and also links in

    San Miguel de Tucumn (Argentina). Leaded by mother Chola, the members of this

    collectivity cross the many point of this territory during the liturgical calendar, paying

    each other visits, building their faith and reinforcing their attachment to this network.

    This dissertation leans on the ethnographic method to recreate the ritual

    experience. At the same time it tries to identify moments in which the actors perform

    their identitary tensions. Although sharing the same ritual structure each actor

    experiences it from significants and cultural pratiques informed by different

    attachments, be they ethnical, linguistic or national.

    Key-words: transnationalisation African-Brazilian religion ritual border identity

    role-playing

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: Brasil, Uruguai e Argentina:Territorializao da rede de terreiros vinculados me Chola de Ogum Mal 2006........................................................p. 12 Figura 2: Seu Srgio e esposa................................................................................p. 22 Figura 3: Me Chola ...............................................................................................p. 27 Figura 4: Dois caboclos...........................................................................................p. 34 Figura 5: Fachada de templo em Rivera.................................................................p. 40 Figura 6: Homenagem me Chola.......................................................................p. 45 Figura 7: Exus durante o Pai Nosso.......................................................................p. 53 Figura 8: Batizado do filho de Beatriz.....................................................................p. 64 Figura 9: Afresco em Montevidu...........................................................................p. 74 Figura 10: Esttua de Iemanj na Rambla..............................................................p. 76 Figura 11: Marca de fronteira entre Santos............................................................p. 77 Figura 12: Ritual para Iemanj................................................................................p. 79 Figura 13: Me Chola e alguns filhos montevideanos..........................................p. 87 Figura 14: Frente do terreiro de Posadas...............................................................p. 94 Figura 15: Ritual para Oxum...................................................................................p. 97 Figura 16: Presos de obrigao..........................................................................p. 101

  • SUMRIO

    INTRODUO.....................................................................................................................................p. 6 CAPTULO 1: EXPERINCIAS RELIGIOSAS E SOCIAIS NUM TERREIRO EM SANTANA DO LIVRAMENTO......................................................... p. 17 1. O primeiro contato..........................................................................................................................p. 17 2. No Canto dos Orixs......................................................................................................................p. 20 3. Na Casa Africana Reino de Ogum Mal........................................................................................p. 22

    3.1. A histria de me Chola...................................................................................................p. 26 4. Ampliando a rede...........................................................................................................................p. 30 5. Minha primeira sesso de Umbanda..............................................................................................p. 31 6. Um cavalo bailarino........................................................................................................................p. 39 7. Conversa franca.............................................................................................................................p. 41 8. Com os Santos...............................................................................................................................p. 42 9. A Quimbanda das almas................................................................................................................p. 49 10. Obrigao de mata a la pampa....................................................................................................p. 57 11. Fabiano, o interior e o exterior......................................................................................................p. 65 12. As histrias de Tita.......................................................................................................................p. 68 CAPTULO 2: ILHAS NO EXTERIOR...............................................................................................p. 73 1. A Montevidu afro-umbandista.......................................................................................................p. 73 2. Saudao a rainha do mar no Ro de la Plata................................................................................p. 76 3. Na Playa Ramrez..........................................................................................................................p. 81 4. Transnacionalizao afro-religiosa, mate e culinria.....................................................................p. 82 5. Preparando ebs para uma quinzena............................................................................................p. 85 6. Batuque em Montevidu.................................................................................................................p. 87 7. Em Posadas...................................................................................................................................p. 92 8. Um presente para Oxum................................................................................................................p. 93 9. Uma festa de Quimbanda transnacional........................................................................................p. 98 10. Obrigao de Batuque em Posadas...........................................................................................p. 100

  • 11. O calendrio religioso.................................................................................................................p. 103 CAPTULO 3: TRANSNACIONALIZAO: NA FRONTEIRA, OS JOGOS IDENTITRIOS........p. 106 1. Condies scio-histricas-espaciais da regio fronteiria..........................................................p. 106 2. A transnacionalizao afro-religiosa transfronteria para os pases platinos...............................p. 110 3. A identidade afro-religiosa e os fatores constituintes da sua transnacionalizao .....................................................................................................................p. 111

    3.1. O projeto de vida religioso e territorial de me Chola de Ogum Mal ...........................................................................................................................p. 112

    3.2. O ethos e viso de mundo propostos na experincia ritual afro-religiosa .........................................................................................................................p. 117

    3.2.1. Consideraes sobre o conceito de ritual.................................................p. 118 3.2.2. A Aliana atravs do sacrifcio, uma perspectiva ritual.............................p. 123 4. Os jogos identitrios na microssociologia das interaes de uma rede religiosa transnacional..................................................................................................p. 131 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................................p. 138 REFERNCIAS................................................................................................................................p. 143

  • INTRODUO

    Esta dissertao versa sobre o processo de transnacionalizao das religies

    afro-brasileiras para os pases platinos, pela fronteira Brasil Uruguai, a partir do

    projeto territorializado da rede de terreiros Casa Africana Reino de Ogum Mal, que

    tem a sua principal sede na cidade gacha de Santana do Livramento. O foco

    investigativo desta pesquisa centrou-se na questo dos jogos identitrios

    performatizados pelos membros de tal comunidade religiosa, sobretudo nos

    momentos rituais.

    Em 2003, recm graduado em Cincias Sociais, fui convidado a participar das

    reunies do Ncleo de Estudos da Religio (NER) do Programa de Ps-Graduao

    em Antropologia Social da UFRGS, coordenado pelo professor Dr. Ari Pedro Oro. Ao

    me aproximar do temrio da Antropologia da Religio , trazendo como bagagem uma

    infncia em Uruguaiana, cidade na fronteira com a Argentina, e um interesse pela

    histria da regio platina, fui apresentado pelo professor Ari aos estudos sobre a

    transnacionalizao afro-religiosa. Deste encontro derivou a pesquisa que embasa o

    presente trabalho.

    Entre 18 e 30 julho de 2005 fiz uma viagem exploratria pela fronteira gacha.

    Dos terreiros contatados nas cidades de Santana de Livramento (BRA), Rivera

    (URU) e Uruguaiana (BRA), Paso de Los Libres (ARG), a Casa Africana Reino de

    Ogum Mal se destacou como um bom exemplo de rede religiosa transnacional, na

    medida em que a me-de-santo relatou realizar um itinerrio ligando as vrias sedes

    do seu terreiro, conformando um projeto transnacional bem sucedido. No primeiro

    encontro com este grupo estive no terreiro de me Chola em Santana do Livramento

    em trs oportunidades, nos dias 20, 22 e 23 de julho. Desde de ento realizei vrias

    expedies as cidades em que se encontram esses terreiros, onde visitei e

    permaneci nos mesmos, como exposto abaixo:

    2 visita, em 27 de agosto de 2005, ao terreiro de Santana do Livramento;

    3 visita, em 01 de novembro de 2005, ao mesmo terreiro;

    4 visita, entre 08 e 11 de dezembro de 2005, ao terreiro de Posadas;

  • 7

    5 visita, entre os dias 21 e 31 de janeiro de 2006, ao terreiro de Santana do

    Livramento;

    6 visita, entre os dias 02 e 05 de fevereiro de 2006, ao terreiro em

    Montevidu;

    7 visita, entre os dias 20 e 23 de abril de 2006, ao terreiro de Santana do

    Livramento;

    8 visita entre os dias 06 e 11 de setembro ao terreiro de Posadas.

    Esta dissertao a primeira sistematizao mais densa, mais reflexiva, dos

    dados que venho coletando ao longo destes 18 meses de pesquisa. Como este um

    trabalho em processo, pretendo continuar aprimorando o meu entendimento sobre

    este objeto e aprofundar a investigao de vrias dimenses do mesmo com as

    quais tive contato durante a observao participante. Tambm pretendo desenvolver

    e ampliar em futuras pesquisas os desdobramentos aqui apontados sobre o tema da

    transnacionalizao de sistemas religiosos.

    Dado o cunho antropolgico desta pesquisa, tenho lanado mo de

    metodologias consagradas na tradio disciplinar, compreendendo as questes

    propostas a partir de um olhar, uma escuta e uma escritura antropolgica,

    parafraseando Roberto Cardoso de Oliveira (1996). Portanto, realizar esta pesquisa

    consistiu em vivenciar a observao participante (BECKER, 1999) e a experincia

    afetiva junto aos grupos e locais onde se realizam essas manifestaes religiosas,

    que permitem que os cdigos estruturais e estruturantes de suas concepes sejam

    definidos, atualizados, re-significados e propagados.

    Cada objeto de pesquisa requer uma abordagem diferenciada por parte do

    pesquisador. Dentro de uma relao que deve primar pela comunicao, o

    antroplogo se empenha na realizao profcua do encontro com os grupos e

    pessoas envolvidas. Tenses, conflitos e dilaceraes vivenciadas no campo

    parecem ser, no entanto, uma realidade em qualquer pesquisa antropolgica. Estes

    problemas podem variar de acordo com o tema, evidentemente, mas podem ser

    melhor ou pior vivenciados em consonncia com o comportamento do pesquisador.

    A forma de insero, de estabelecimento de um mnimo grau de intimidade entre as

    partes, pesquisador/ pesquisado, antroplogo/ outro, deve ser levada em conta, a fim

    de proporcionar o desvelar de sentidos mais profundos, mais aproximados da

    realidade de percepo e de cognio dos sujeitos.

  • 8

    Para mim a questo mais difcil durante o perodo de confeco desta

    dissertao foi o da escritura etnogrfica, no s no que se refere aos jogos de poder

    que essa escrita materializa (CLIFFORD, 1998). Sei que essas relaes permeiam

    todo o texto, porque todo o texto representao e toda a representao est no

    lugar do que se quer representar, re(a)presentando o objeto a partir de um ponto de

    vista impregnado pelo projeto do pesquisador (RAFFESTIN, 1993; SILVA, 2000).

    claro que uma srie de expedientes de construo textual podem me ajudar a

    problematizar, e em certo nvel, apaziguar esta questo. Entre os inmeros autores

    que tematizam a questo, James Clifford (1998) advoga a construo de um texto

    etnogrfico cada vez mais polifnico. Vagner Silva coloca claramente a grande

    questo que me assalta:

    Como transpor, entretanto, a riqueza, a complexidade, as difceis negociaes de significados ocorridas entre antroplogo e grupo pesquisado, enfim toda a srie de problemas e situaes imponderveis que surgem durante a realizao do trabalho de campo, para a forma final, textual, da etnografia, sem perder de vista aspectos relevantes do conhecimento antropolgico como o prprio modo pelo qual este produzido? (SILVA, 2000, p. 118).

    claro que o mtodo etnogrfico um instrumento epistemolgico coerente

    para construir as tramas e redes de relaes nas quais transparecem as aes dos

    homens (ECKERT, 1998, p. 12-13). Mas como adequar tanta vida em cento e

    poucas pginas e ainda fazer uma srie de cruzamentos entre esta experincia e as

    experincias, mediadas pelo texto, de outros antroplogos que estudaram assuntos

    prximos ao meu?

    Entre os instrumentos necessrios ao antroplogo, a teoria, como nos mostra

    Lvi-Strauss (2003), aquela capaz de realizar o colamento e a

    complementariedade entre o significante disponvel (que nomina o concreto) e o

    significado penetrado (o que se desvela como ontolgico a esse concreto). O

    pensamento simblico estabelece ou constri parcialmente essa correspondncia, na

    forma de significantes flutuantes, que adequam respostas inventadas s

    proposies problematizadas por dada comunidade (Lvi-Strauss, 2003). Contudo

    no se pode negar que, com maior ou menor grau de colamento realidade: 1. as

    explicaes nativas esto na base das prticas dos nativos, podendo ser

    identificadas nas aes individuais; 2. o fato de que explicaes e prticas so

  • 9

    relativas a instncias histricas, sociais e naturais, antes de mais nada, elas so

    relacionais para com os outros membros deste grupo, outros grupos humanos,

    outros seres, a dinmica real dada, a realidade concebida. Assim, quando pensamos

    sobre as construes simblicas humanas, pelo ponto de vista antropolgico, pelo

    menos de uma antropologia como pensada por Lvi-Strauss:

    [...] No podemos jamais estar seguros de havermos atingido o sentido e a funo de uma instituio se no pudermos reviver a sua incidncia sobre uma conscincia individual. Como esta incidncia parte integrante da instituio, toda interpretao deve fazer coincidir a objetividade da anlise histrica ou comparativa [como essa instituio exerce sua influncia concretamente] com a subjetividade da experincia vivida [como sentida, interpretada, a ao desta instituio] (LVI-STRAUSS, 2003, p. 15).

    Neste ponto da empresa antropolgica a teoria se une ao mtodo etnogrfico,

    que busca recriar a subjetividade da experincia vivida pelo outro. Na construo

    dessa escritura etnogrfica tentarei recompor um pouco da ambincia experimentada

    durante os rituais que participei, o clima encantatrio totalizante que busca

    prescritivamente reviver pensamentos e paisagens mticas associadas cosmogonia

    das tradies sudanesas onde, performaticamente, apresentam-se as tenses

    identitrias entre os atores envolvidos na medida em que, apesar de relacionarem-se

    atravs de uma estrutura ritual compartilhada, a experienciam a partir de

    significantes e prticas culturais informadas pelos seus pertencimentos anteriores

    (LEACH, 1996; SAHLINS, 1997). Assim, o ritual converte-se, diante de um olhar

    informado antropologicamente, em metacomentrio sobre as dinmicas de criao,

    manuteno e transformao dos cdigos de organizao social de determinado

    grupo, pois, como escreveu Roberta Peters em relao as festas de casamento de

    famlias palestinas no Rio Grande do Sul:

    H um aspecto do ritual que o da expressividade cnica e [...] ele coaduna coisas, smbolos e situaes que podem ser incongruentes [...] somente no ritual, estas incongruncias so expressas publicamente e convertidas em algo inteligvel e ao mesmo tempo polifnico (Peters, 2006, p. 70).

    Nesta pesquisa busco entender o que significa ser praticante de religies afro-

    brasileiras na zona de fronteira entre Brasil, Argentina e Uruguai. Abordarei

    problemas relativos s categorias identitrias destas pessoas. Como se estruturam e

  • 10

    hierarquizam-se as diversas identidades das quais esses sujeitos so portadores?

    Como se relacionam as identidades tnicas, nacionais e religiosas em contextos

    rituais transnacionais?

    Como tcnicas de pesquisa utilizadas nessa trajetria investigativa, servi-me

    da j referida observao participante, do registro fotogrfico, escrito e de udio dos

    rituais e de outros eventos de sociabilidade do grupo pesquisado, de entrevistas

    semi-estruturadas de carter aberto. Tais instrumentos parecem ser os que melhor

    possibilitam compreender, nas trajetrias individuais e sociais (VELHO, 1999) dos

    sujeitos envolvidos, determinadas questes preservando o universo discursivo de

    cada interlocutor narrativa, biografia e histria de vida (DEBERT, 1986) e de cada

    experincia religiosa apresentada, tambm, a partir de relatos.

    A pesquisa apresentada nestas pginas justifica-se, primeiramente, pela atual

    importncia dos estudos de fenmenos transnacionais como limitadores,

    descentralizadores e redimensionadores de vrios pertencimentos a unidades

    socioculturais, polticas e econmicas (RIBEIRO, 2000), sobretudo em relao aos

    Estados nacionais.

    A temtica da transnacionalizao religiosa no propriamente uma novidade

    para os cientistas sociais brasileiros, argentinos e uruguaios, visto os vrios trabalhos

    que se debruaram sobre o processo de transnacionalizao religiosa afro-brasileira

    e neopentecostal para os pases do Prata pela fronteira gacha. Contudo,

    certamente ainda h muito a ser pesquisado sobre este tema, tanto no que diz

    respeito as suas redes constituintes quanto a sua estruturao sociolgica e aos

    seus contedos e operadores simblicos. Acredito que esta pesquisa pode contribuir

    enquanto registro antropolgico de um determinado momento do processo de

    territorializao de uma comunidade religiosa formada em e a partir de Santana do

    Livramento, historicamente reconhecida como um dos principais centros de difuso

    das religies afro-brasileiras para os pases platinos, e dos jogos identitrios

    engendrados dentro deste processo.

    Por fim, esta pesquisa ganha relevncia ao debruar-se sobre a constituio e

    atual dinmica de um processo de transnacionalizao religiosa que ocorre entre

    Estado-Naes perifricos, dentro das classificaes poltico-econmicas do sistema

    mundial e entre redes de sujeitos no-hegemnicos, com intensas prticas

    transnacionais pouco documentadas, aliceradas em uma estrutura religiosa ritual de

  • 11

    matriz sudanesa (ou melhor dizendo, de matriz etno-lingstica ioruba). Dirigir o olhar

    para tais processos buscar entender os fluxos alternativos e subterrneos que,

    existentes dentro da prpria modernidade, no assemelham-se s foras de

    homogenizao desta, mas, ao contrrio, so foras de heterogenizao (RIBEIRO,

    2000), fenmenos de resistncia e ressurgimento tnicos contra a lealdade terminal

    ao Estado, uma lealdade onvora das possveis lealdades alternativas (SANTOS,

    2000).

    A transnacionalizao religiosa, como bem definiu o professor Ari Pedro Oro,

    remete propagao sobretudo de bens e necessidades simblicas, que ocorre

    margem do aparato estatal (Oro, p. 18). Assim, o processo de transnacionalizao,

    apesar de existir dentro dos territrios estatais e ser praticado por cidados dessas

    naes, nada tem a ver com os interesses do Estado-Nao. Pode-se citar alguns

    tipos de transnacionalizao religiosa, a) a partir de fluxos migratrios, b) atravs do

    deslocamento transfronteirio e c) atravs da circulao miditica internacional de

    certas idias religiosas. Segundo Ari Oro:

    A implantao das religies afro-brasileiras nos pases do Prata obedece preferencialmente a um modelo feito de [...] deslocamentos e viagens de agentes religiosos, fiis e interessados pela religio, entre Brasil/Uruguai/Argentina, sem a fixao definitiva em outro pas (ORO, 1999, p. 70).

    Nessa forma de transnacionalizao a ultrapassagem das fronteiras dos

    estados nacionais e pode gerar comunidades nas quais os sujeitos, instituem redes

    familiares, religiosas, de solidariedade e reciprocidade e compartilham identidades

    coletivas.

    Dentro do processo transnacional afro-religioso, o ritual, enquanto uma

    linguagem que se encontra colada a toda a ao produzida comunitariamente,

    configura-se como espao e tempo privilegiado tanto para o exerccio e a construo

    da identidade do grupo, quanto para a problematizao dos mltiplos pertencimentos

    em que os atores desta comunidade foram socializados anteriormente, como o

    pertencimento tnico, nacional, geracional, de gnero, lingstico etc. O ritual revela

    tenses entre foras identitrias centrpetas, aglutinadas em torno da identidade

    religiosa compartilhada, e centrfugas, outros pertencimentos que afastam os

    indivduos de uma experincia mais completa da identidade religiosa. Estas linhas de

  • 12

    fora atravessam todos os lances dos jogos identitrios experienciados neste coletivo

    natureza-cultura (LVI-STRAUSS, 1982; LATOUR, 1994), ou seja, os humanos e os

    seres espirituais do panteo religioso da Linha Cruzada.

    No caso da comunidade religiosa de Linha Cruzada Casa Africana Reino de

    Ogum Mal, passa-se que (1) esta uma comunidade sediada no em um nico

    terreiro, mas em vrios terreiros que se territorializam por trs pases (vide figura 1),

    tendo como sede o de Santana do Livramento (BRA) e como filiais de destaque

    aqueles localizados em Montevidu (URU) e Posadas (ARG), articulando ainda dois

    terreiros localizados em So Miguel de Tucum (ARG); (2) Esta rede de terreiros

    organiza-se em torno da me-de-santo Chola de Ogum e conta com filhos-de-santo

    brasileiros, uruguaios e argentinos que circulam pelos trs terreiros, agregando-se

    sob a identidade de praticantes desta religio e criando entre si toda uma economia

    de trocas simblicas, que tem no ritual o seu mercado, que ora performatiza as

    diferenas, sobretudo nacionais e tnicas, dos diversos atores envolvidos, ora

    investe na expresso da aliana identitrio-religiosa existente nesta comunidade; (3)

    Assim, tendo diferentes terreiros em diferentes cidades, que por sua vez, esto em

    diferentes pases, me Chola estruturou o calendrio litrgico de sua comunidade de

    forma que determinados rituais prioritariamente devam ser praticados em

    determinadas cidades, criando um circuito ritual transnacional que organiza e

    possibilita a existncia da comunidade materializada nesta rede de terreiros.

    Figura 1: Brasil, Uruguai e Argentina:Territorializao da rede de terreiros vinculados me Chola de Ogum Mal 2006.

  • 13

    As religies afro-brasileiras tm uma histria antiga, pois existem relatos de

    cultos africanos sendo praticados em terras brasileiras j em meados do sculo XVII,

    os chamados Calundus Coloniais. Mas realmente no sculo XIX que, com a

    urbanizao crescente e o maior contingente de negros livres, cresce

    significativamente o nmero desses grupos, que tem suas capacidades organizativas

    aumentadas, se transformando, com o tempo, de clulas de resistncia religiosa

    africana em instituies religiosas afro-brasileiras. Nos primrdios dessas religies o

    que estava em pauta era a superao das diferenas, polticas, culturais e religiosas

    entre os escravos negros, oriundos de diversos grupos tnicos, em prol da

    continuidade do exerccio religioso de forma similar a dos sistemas africanos

    (SILVEIRA, 2005).

    Essas religies constituem um sistema religioso complexo, que abrange desde

    variaes regionais1 do culto aos orixs, mais prximo da matriz religiosa africana,

    cujos exemplos incluem o Candombl, Batuque, Tambor de Mina do Maranho,

    Xang do Recife etc, at religies sincretizadas com o espiritismo Kardecista e o

    catolicismo (que o caso da Umbanda), passando pela mistura de algumas dessas

    vertentes (como acontece com a Linha Cruzada ou Umbanda Cruzada), na qual os

    praticantes participam de rituais de Batuque, Quimbanda e Umbanda; por sua vez, a

    Quimbanda uma linha ritual, ramificada da Umbanda, na qual se reverenciam

    espritos do tipo trickster, chamados de exus e pombagiras. Na Linha Cruzada,

    apesar das especificidades de cada uma dessas religies, alguns elementos so

    fixos e aparecem em todas variantes, revelando um padro cultural. Todas essas

    religies compartilham, em maior ou menor grau, elementos lingsticos, rituais,

    mticos e simblicos de ascendncia sudanesa entre os quais destacam-se as

    prticas ligadas ao ax (fora vital); a possesso, ou incorporao, das entidades no

    crente e a ritos iniciticos e sacrificiais (CORRA, 1988; ORO, 1999).

    No Rio Grande do Sul, sabe-se que pelo menos desde meados do sculo

    XIX se pratica o Batuque, originrio das nucleaes negras de Rio Grande e Pelotas

    sendo portanto uma religio nativa do estado. Desde sua origem pode-se perceber a

    1 Essas variaes devem-se principalmente a dois fatores: a ascendncia dos diferentes grupos africanos que chegaram ao Brasil (Banto, Jje, Nag etc.), mas que j tinham uma matriz religiosa compartilhada na frica e adaptaes locais na constituio destes cultos nas diversas regies do pas.

  • 14

    necessidade de uma configurao trans-tnica para sustentar a manuteno dessa

    tradio religiosa, como aponta Norton Corra:

    Apesar do pequeno nmero de sudaneses, o Batuque manteve-se graas estrutura slida e do alto nvel de articulao interna do modelo jje-nag. Mas contribuiu sem dvida para isto um nmero significativo de participantes e a supe-se o ingresso de no-sudaneses pois do contrrio no se sustentaria como manifestao. Entretanto, este ingresso no resultou, ao que tudo indica, em grandes influncias banto no ritual. Pelo fato de ter cooptado negros de origens tnicas diversas, pode-se dizer que teria atuado no passado, como importante fator de identidade para as grandes massas negras urbanas de todas as origens tnicas, no Rio Grande do Sul (CORREA, 1988, p. 7071).

    Atualmente, conforme relatos de informantes2, o campo afro-religioso do

    estado dominado pela linha cruzada e prevalece no batuque a nao (tradio)

    Ijex, ou a mistura desta com a nao Jje.

    Na fronteira gacha, as religies afro-brasileiras comeam a ser praticadas

    com maior visibilidade nas primeiras dcadas do sculo XX, difundindo-se, a partir

    da, pelos territrios uruguaio e argentino. No Uruguai sabe-se da existncia de

    terreiros em Artigas, desde 1936 e na capital, Montevidu, desde 1942. No entanto, o

    processo de transnacionalizao afro-religiosa para os pases platinos s se

    intensificou em meados da dcada de sessenta, quando abriram portas os primeiros

    terreiros em territrio argentino (CORREA, 1998)3.

    Santana do Livramento tornou-se uma das principais cidades na rota de

    difuso das religies afro-brasileiras pelo espao platino. L viveram e trabalharam

    dois dos principais responsveis pela expanso da Linha Cruzada, pai Joo do Bar,

    porto-alegrense, e me Teta de Oxal, esta santanense e filha-de-santo do primeiro.

    A transnacionalizao foi por eles impulsionada, seja atravs de viagens peridicas

    ao Uruguai e Argentina, seja pela iniciao de inmeros fiis uruguaios e

    argentinos, principalmente na Nao (PI HUGARTE, 1993b; ORO, 1999). Ainda hoje

    2 Esses relatos foram colhidos em diversos terreiros de Porto Alegre e do Interior do Rio Grande do Sul. Posteriormente essas observaes foram confirmadas, em uma comunicao pessoal, pelo prof. Dr. Ari Pedro Oro. 3 Para outras anlises sobre o incio do processo de difuso das religies afro-brasileiras para o

    Uruguai e a Argentina, consultar os textos de Alejandro Frigrio (1998) e Rita Segato (1998).

  • 15

    trabalham em Santana do Livramento muitos pais-de-santo contemporneos e/ ou

    descendentes desses personagens histricos. Me Chola de Ogum Mal, por

    exemplo, por um certo tempo esteve no grupo de um filho-de-santo de Joo do Bar,

    tendo sido iniciada por este no Batuque.

    Esta dissertao composta por trs captulos. Os dois primeiros so

    etnogrficos. No captulo inicial eu abordo a minha percepo da fronteira, como

    materializada na prpria espacialidade das cidades de Santana do Livramento e

    Rivera, bem como descrevo os eventos relativos aos rituais que assisti nas 1, 2, 3,

    5 e 7 visitas que realizei a sede brasileira da Casa Africana Reino de Ogum Mal,

    em Santana do Livramento. Nestas visitas eu acompanhei uma sesso de Umbanda,

    uma quinzena de Batuque, um ritual de Quimbanda para o dia dos finados, a

    obrigao de mata na Umbanda deste terreiro e a obrigao de Batuque pela festa

    de Ogum. Minha narrativa enfatizar o contexto e as enunciaes das pessoas e

    suas entidades em que pude identificar a performatizao das tenses resultantes

    dos jogos de identidades entre os membros desta rede, quando territorializada no

    seu principal terreiro.

    No segundo captulo descrevo, alm dos rituais realizados nos terreiros de

    Posadas e Montevidu, um pouco da cena religiosa afro-brasileira nestas cidades, da

    estrutura de deslocamento entre os terreiros desta rede e apresento registros das

    horas de cio, sociabilidade e aprendizado que ocorrem entre os momentos rituais,

    mas que so to fundamentais para a coeso e reproduo deste grupo quanto os

    ltimos. Tambm aqui a nfase se coloca sobre os jogos identitrios que acontecem

    nestas outras estaes da rede transnacional constituda e percorrida por me Chola

    e seus filhos-de-santo.

    No terceiro captulo, procurei organizar uma anlise antropolgica que

    permitisse entender o processo de transnacionalizao das religies afro-brasileiras

    a partir da regio fronteiria, na qual uma estrutura social compartilhada permite o

    atravessamento dos bens simblicos e elementos identitrios diacrticos deste

    sistema religioso para o espao platino, usando da rede familiar e de sociabilidade da

    me Chola para conectar os terreiros geridos por ela em um territrio em rede,

    tramado sobre o mesmo espao em que territorializam-se outros projetos de outros

    grupos e portanto, competindo com outras territorialidades e outros elementos

    identitrios culturais (oriundos dos pertencimentos lingsticos, tnicos e nacionais).

  • 16

    No entanto, existe a manuteno da comunidade transnacional, pela existncia de

    uma forte identidade religiosa, estruturada por uma perspectiva ritual organizada a

    partir do ethos e da viso de mundo deste sistema religioso. Neste contexto de

    transnacionalizao o ritual torna-se a esfera onde se desenrolaram jogos identitrios

    que ora buscam dirimir as diferenas, ora buscam ressalt-las, de forma que as

    diferenas entre os atores se problematizam na interao ritual e acabam a

    transformando.

  • 17

    CAPTULO 1 Experincias religiosas e sociais num

    terreiro em Santana do Livramento

    O relato que segue trata dos contatos por mim realizados em Santana do

    Livramento e Rivera. Entre os vrios momentos sociais, privilegiei os rituais

    realizados na Casa Africana Reino de Ogum Mal, no para analis-los apenas

    enquanto prticas religiosas, mas enquanto espao e tempo privilegiados para a

    performatizao de elementos significativos, de convergncia, dissenso, conflito e

    apaziguamento das tenses advindas da configurao particular do grupo social em

    questo: o jogo de identidades sociais, religiosas, tnicas, nacionais desse grupo

    multi-tnico e transnacional. As tenses resultantes da especificidade deste grupo

    aparecem nas falas dos atores, assim como nas palavras de suas entidades por

    ocasio dos rituais, como se ver.

    1. O primeiro contato

    Na segunda-feira, dia 18 de julho de 2005, cheguei em Santana do Livramento

    s cinco horas da manh, vindo de Porto Alegre, acompanhado de Adriana4, depois

    de uma viagem de mais de 500 quilmetros, percorridos em quase sete horas de

    nibus. Fazia muito frio. Saindo da rodoviria, como no tnhamos muita certeza do

    rumo a tomar para chegar ao hotel em que ficaramos hospedados em Rivera fomos

    nos informar com um senhor de tez morena, comum aos tipos fronteirios, que

    estava acendendo um cigarro um pouco mais adiante. Ele disse que deveramos

    subir em direo Praa Internacional e cruzar a Linha; a calle que procurvamos

    era a primeira paralela direita desde a principal, a avenida Sarandi; seu portugus

    era carregado de hispanismos e, por isso, presumi que ele fosse uruguaio.

    4 Adriana gegrafa e pesquisa sobre fronteira e contrabando. Acompanhou-me em etapas de cinco das minhas incurses a campo; quatro Santana do Livramento (julho, agosto, novembro de 2005 e janeiro de 2006) e uma Posadas (dezembro de 2005).

  • 18

    Com mochilas pesadas e roupas grossas, caminhvamos rpido para

    espantar o frio e o cansao. Passamos ao largo da Praa Internacional, escura e

    deserta - neste momento no vi o obelisco e as bandeiras, das respectivas naes,

    demarcando os limites dos dois pases, imponentes no Sol claro5. Atravessamos

    uma avenida, atrs de ns todas as placas, propagandas e smbolos estavam

    escritos em portugus, nossa frente sinais do mesmo tipo, todos em espanhol.

    Tnhamos derivado silenciosamente de Santana do Livramento para Rivera, mas, por

    um momento, ainda no estvamos l; estaramos, irrefletidamente, suspensos no

    limiar entre ambas as cidades enquanto estivssemos no canteiro central desta

    avenida, sobreposto prpria Linha de Fronteira, limite fsico da territorializao

    desses Estados. Pensei como era fcil cruzar de um lado para o outro sem se

    perceber disso. Quantas pessoas, quantas vezes por dia realizavam esse

    movimento? Essas foram as primeiras impresses que recebi acerca desta fronteira,

    do tipo de gente que l vive e do espao em que ocorrem as trocas materiais e

    simblicas que se realizam pela justaposio de dois territrio nacionais (Brasil e

    Uruguai) e das redes que o atravessam.

    s dez horas da manh j estava no saguo do hotel procurando nos guias

    telefnicos locais algum anncio de pais-de-santo ou de santeras. Copiei os dois

    endereos que encontrei, ambos em Santana e sa em direo ao lado brasileiro

    para telefonar a esses e outros contatos que me haviam sido indicados em Porto

    Alegre por um pai-de-santo influente, presidente de uma federao afro-religiosa.

    No consegui encontrar nenhuma dessas pessoas, e o pai-de-santo porto-alegrense

    estava de obrigao e no poderia atender o telefone; comeava a ficar um pouco

    tenso: eu no conhecia o lugar; tinha poucos dias, pouco dinheiro; no possua

    experincia de campo anterior profunda e ainda no tinha nenhum contato naquela

    cidade que me era estranha. E se no conseguisse encontrar nenhuma marca,

    nenhum evento ou nenhuma pessoa atravs dos quais pudesse iniciar o contato com

    os atores locais que vivem a religiosidade afro-brasileira e agenciam o processo da

    sua transnacionalizao para o Uruguai?

    5 Um gesto comum para a maioria dos turistas que visitam essa fronteira o de posarem para uma foto em frente ao obelisco, com um p no Brasil e o outro no Uruguai.

  • 19

    Acompanhado de Adriana e mais uma gegrafa carioca6 sa para fazer um

    reconhecimento das imediaes da zona central da Linha, o corao pulsante de

    comrcio e servios que une, e no divide, as duas cidades. No lado uruguaio

    espalham-se os famosos freeshops, cheios de perfumes, aparelhos eletrnicos,

    chocolates, vinhos e usques; o teatro municipal de Rivera; uma danceteria; um

    cassino; queijarias; restaurantes; padarias e aquele clima retr descolado composto

    pelas largas caladas, a arquitetura das casas, o vesturio dos transeuntes; entre

    estes, sempre presentes, estavam muitas pessoas com os seus apetrechos para

    tomar mate e os inmeros fumantes... Nas ruas brasileiras, uma srie de lojas

    populares oferecendo os mais variados artigos, de objetos de vesturio a acessrios

    para o chimarro; alguns restaurantes movimentados; alguns hotis; o terminal dos

    nibus que percorrem todo o Livramento; o nico cinema das duas cidades; mais

    pessoas nas ruas em caladas mais estreitas... Sobre a Linha, naquele mesmo

    canteiro que me referi acima, a balburdia dos camels brasileiros e uruguaios,

    oferecendo uma miscelnea de objetos para todos os gostos e necessidades (por

    vezes, supostamente, objetos iguais em qualidade aos do freeshop), e dos

    cambistas. No comrcio, indistintamente nos dois lados da fronteira, havia muitos

    atendentes de ambas as nacionalidades e na maioria dos lugares os preos estavam

    expostos tanto em pesos uruguaios, quanto em reais; o dlar estadunidense tambm

    sendo usado como moeda corrente.7

    Errando pelo lado brasileiro, na avenida Joo Pessoa, acompanhando

    paralelamente a Linha, sou alertado por Adriana para uma pequena placa escrita

    mo e dependurada em um poste de iluminao e que aponta para uma entrada com

    escadas para o andar inferior de uma galeria, construdo abaixo do nvel da rua (o

    prdio fora construdo sobre uma encosta, por isso o desnvel do andar). Na placa

    estava escrito apenas: Santera Canto dos Orixs, acompanhado por uma seta em

    diagonal descendente. Eu sabia o que santera queria dizer, esta, enquanto loja

    6 A forma como se estrutura a fronteira em Santana do Livramento e Rivera, torna estas cidades objeto de estudo para vrias cincias humanas, de forma que, atravs de Adriana me inseri em um grupo binacional de gegrafas, (ela, gacha, a outra, carioca e uma terceira uruguaia residente em Livramento) que estavam realizando investigaes sobre a dinmica poltico-econmica entre essas cidades. Tive a oportunidade de acompanhar algumas entrevistas com autoridades locais, nas quais consegui compor um quadro mais amplo sobre as relaes locais, regionais, nacionais e internacionais que atravessam vrias esferas da vida nestas cidades. 7 Para uma leitura mais especifica sobre os atravessamentos sociais, culturais e econmicos, na fronteira em Santana do Livramento-Rivera ver o trabalho de Andrea Quadrelli-Sanchz (2002).

  • 20

    especializada na venda de artigos religiosos, sobretudo para rituais afro-brasileiros,

    equivalente aquilo que em Porto Alegre chamamos de bazar ou flora (Oro, 1999).

    2. No Canto dos Orixs

    Descendo por dois lances de escadas vi do lado esquerdo um curto corredor

    que leva a duas lojinhas e, direita, num canto, justificando um dos sentidos do

    prprio nome, a Santera Canto dos Orixs. Uma esttua de Iemanj, em tamanho

    natural, est esquerda da porta do estabelecimento e a primeira coisa que

    algum v ao se virar para este lado do corredor; do lado direito desta, j no interior

    da loja, uma outra esttua de um casal de pretos velhos, dessas em que se pode

    colocar algum dinheiro sobre a palma da mo da esttua. A loja tem uns trs metros

    de profundidade, por uns cinco de largura, com um p direito de dois metros e meio.

    O espao encontra-se completamente atulhado por objetos religiosos em prateleiras

    e nos dois balces dispostos em L, mas, tambm, dependurados no teto ou

    colocados ordeiramente pelo cho. Velas e esttuas dos mais variados tamanhos;

    guias8 multicoloridas e rolos de fitas de tecido verde, azul, rosa, vermelho, roxo,

    amarelo; representaes metlicas em tamanho reduzido de facas, escovas,

    espelhos, luas, estrelas, ferraduras, bigornas, machados duplos que, posteriormente

    fiquei sabendo com um pai-de-santo de Uruguaiana, eram usadas nos

    assentamentos9 dos Orixs, visto que esses cones representam domnios e

    atividades ligadas a essas divindades; pilhas de incensos e defumadores que

    carregam com odores fortes o ar do recinto.

    Quando entrei na loja, nessa primeira vez, havia uma mulher branca, cabelos

    escuros um pouco abaixo dos ombros, na casa dos trinta anos, atendendo dois

    clientes. Esperei acanhadamente, ouvia meio sem querer um pouco da conversa que

    se desenrolava; atravs dessa, tive certeza de que a mulher era uruguaia. Os

    clientes atendidos, fui falar com ela para pedir o contato com alguns pais-de-santo

    locais e talvez at uma entrevista. Um pouco desconfiada mas solcita, ela me

    passou trs ou quatro contatos, e falou-me que, se eu quisesse fazer a entrevista e

    pegar outros contatos, deveria voltar pela tardinha para falar com o marido dela.

    8 Colares que o fiel das religies afro-brasileiras usa para proteo e como indicao das entidades que esto com ele. 9 Rito que institui a aliana pessoa/ orao.

  • 21

    Agora tinha por onde comear, mas a verdade que no tive muita sorte nas

    minhas visitas: no achei um dos endereos em Santana e, na cidade de Rivera, tive

    um primeiro contato com a me-de-santo ela era brasileira, branca, por volta dos

    trinta e, segundo ela prpria, teria largado a carreira jornalstica para viver s para a

    religio10 agendamos uma entrevista, mas no dia marcado ela teria feito uma

    viagem de emergncia para Tacuaremb11. Apenas consegui alguma coisa ligando

    para uma certa me Chola que atendia no bairro do Prado em Santana do

    Livramento, marquei uma entrevista para ali dois dias, na quarta-feira vinte de julho.

    Queria mais tempo, tanto para ver se conseguia outros pais-de-santo, quanto para

    me preparar para essa entrevista; tambm acabei no voltando a santera Canto dos

    Orixs neste dia.

    No dia 19 de julho, uma tera-feira, fui em duas outras santeras, com

    pssimos resultados, e segui uma indicao at o Centro Cultural Zumbi dos

    Palmares, cuja presidente, dona Enilda, seria tambm me-de-santo, alm de

    professora de escola pblica e pessoa poltica importante dentro do movimento

    negro de Santana do Livramento e Rivera. Dirigi-me para a rua Doutor Fialho, onde

    est localizado o centro cultural. Depois de me perder e encontrar o trajeto

    novamente, quando estava caminhando pela rua General Cmara e faltavam menos

    de duas quadras para eu chegar na rua pretendida, passo pela frente de um provvel

    terreiro: Centro So Jernimo Reino do Pai Xang. Anotei o endereo, para passar

    ali depois de conhecer o trabalho da dona Enilda. No entanto, o centro cultural

    estava fechado, s dava atendimento algumas tardes por semana (como me

    informou uma vizinha), e, por isso, voltei ao terreiro acima citado. Um senhor negro

    me atende no porto, diz que a sua esposa que a responsvel pelo centro no se

    encontra, est no colgio trabalhando. Qual o nome da sua esposa?, perguntei.

    Enilda!, me respondeu ele. Sim, no havia coincidncia, a senhora que eu

    procurava era a esposa desse senhor, mas de qualquer forma ele no podia me

    ajudar, teria que voltar outra hora e falar pessoalmente com ela.

    Pela tarde voltei a santera Canto dos Orixs e finalmente conheci o seu

    Srgio, homem moreno e de compleio fsica larga, de cabelo escuro ondulado,

    10 Termo mico pelo qual os praticantes denominam as religies afro-brasileiras. Ari Pedro Oro argumenta que sua origem pode caracterizar uma estratgia de oposio acusao sofrida de serem membros de uma seita, evidentemente, no sentido negativo do termo (ORO, 1999, p. 19, grifo no original). 11 Cidade uruguaia, capital de departamento, distante aproximadamente 100 km de Rivera.

  • 22

    olhos brilhantes e sorriso largo, com os seus trinta e tantos anos; sua fala cheia de

    expresses bem gaudrias como bah, tch guri, capaz e sobretudo as palavras

    com os seus e bem articulados em comparao com a fala mdia dos porto-

    alegrenses que articulam esses e como se fossem i. Seu Srgio montou essa loja

    em Santana faz mais de quinze anos. Antes, um tio seu tinha uma flora no bairro da

    Azenha em Porto Alegre; sua famlia se divide entre evanglicos e afro-

    umbandistas12. A entrevista que fiz com ele me possibilitou visualizar um pouco a

    atual cena afro-religiosa de Santana do Livramento e Rivera e conhecer alguns dos

    protagonistas da construo dessa histria. Atravs dele e de sua esposa conheci

    duas me-de-santo e um pai-de-santo dos mais importante da regio e que foram

    contemporneos de pai Joo do Bar e me Teta de Oxal13.

    Figura 2: Seu Srgio e esposa

    Foto do autor

    3. Na Casa Africana Reino de Ogum Mal

    Por volta das dezesseis horas, do dia 20 de julho de 2005, fui ao terreiro de

    me Chola, acompanhado por Adriana. Quando ligara anteriormente, me Chola

    pediu para que eu esperasse, pois sua filha, Belkis, me passaria a localizao da

    casa:

    De onde tu sai para chegar aqui? perguntou ela.

    Eu acho que vou sair de perto da Linha, da rua Almirante Tamandar.

    Ento tu tens que pegar o nibus PRADO...Sabes onde fica o Hipdromo?

    12 Termo mico comum no Uruguai, equivalente de praticantes de religies afro-brasileiras. 13 Como vimos na introduo estes atores so dois dos mais importantes responsveis pela difuso das religies afro-brasileiras no Uruguai e na Argentina a partir da fronteira em questo.

  • 23

    No!

    Ele a tua referncia, passou por ele para bajar duas quadras depois, no

    armazm do Sica, um prdio amarelo, viste?

    E depois?

    Bueno, ali tu j podes preguntar que todos sabem onde o terreiro, mas

    s subir duas quadras e dobrar a esquerda. O terreiro bem no meio dessa quadra,

    no tem como errar.

    E tu pode me dar o endereo?

    S, posso, mas no vai te ajudar, porque ningum usa o nome da rua aqui,

    capaz de se forem te dar informao, te mandarei pro outro lado, viste? Anota a,

    Joo Alves Coelho de Moraes, cento e quarenta e seis.

    Realmente o nome da rua no tinha servido de nada, mas as indicaes

    estavam muito claras e achamos o lugar com facilidade.

    Em uma rua sem calamento, de um bairro de periferia, entre casas simples,

    paramos em frente a uma casa de alvenaria que no se distinguia entre as demais; o

    terreno na parte da frente cercado por um muro de um metro de altura, na poca,

    pintado de branco. Antes deste, na calada defronte a casa est colocado uma

    espcie de pdio para se decorar com bandeiras em dias de grandes festas (mais

    adiante falarei destas)14. Entre o muro e a parede externa da casa existe uma

    varanda onde esto os nicos sinais externos que mostram que esta casa um

    templo e um territrio afro-religioso, muito discretos, estes indcios podem passar

    despercebidos para o transeunte ocupado com os seus prprios pensamentos.

    Destaco quais so estes sinais: duas placas, colocadas uma acima da outra,

    na parede, ao lado esquerdo da porta, sendo que na superior, que de pedra

    branca, se l, escrito em letras douradas Casa Africana Reino de Ogum Mal e na

    segunda, que feita de um mrmore escuro e esverdeado, est escrito, tambm em

    letras douradas, Reino Ogum Male Casa Africana15; uma plaquetinha branca sobre

    um suporte de ferro na qual se l: Consultas: Bzios, cartas e cristais; do lado

    esquerdo da varanda h, em um nvel abaixo da linha do muro, um recanto para

    14 Eu mesmo s fui me dar conta desta estrutura em abril de 2006, quando o vi enfeitado por vrias bandeiras durante um ritual. 15 Os motivos dessa mudana da grafia de Mal podem ser vrios...Prefiro acreditar que a placa tenha sido encomendada por algum filho-de-santo estrangeiro que no atentou para a forma correta da escrita do termo em portugus (os falantes de espanhol geralmente do uma sonorizao oclusiva do e final desta palavra, dizendo Mal e no Mal).

  • 24

    Iemanj, colocado no ngulo que junta o muro lateral (decorado com o desenho de

    um rio correndo entre pedras, sob quatro estrelas azuis) e a parede da casa est um

    pedestal de gesso que se abre, em sua parte superior, em uma grande concha

    dentro da qual est aninhada uma pequena esttua de Iemanj adornada com duas

    lampadinhas, flores artificiais e colares; do lado direito da varanda e igualmente

    inferior em altura ao muro, temos uma casa para o Bar da rua, construda tambm

    em alvenaria, com o teto caramelo e a portinhola marrom escura.

    Eu e Adriana batemos palmas desde a calada, entramos na varanda atravs

    de um portozinho de madeira e testamos a porta de entrada sem resultados. De

    repente algum chama da casa da direita. Era para entrarmos por ali. Voltamos

    calada e adentramos um pequeno porto de ferro; passamos por um jardim; por

    uma casa marrom de madeira ladeada por uma rea calada coberta por um

    caramancho, na qual havia uma churrasqueira. Esta passagem leva a uma outra

    pea construda nos fundos da casa de madeira. Era de l que nos estavam

    chamando e parecia que por l que chegaramos, atravs de uma rota alternativa,

    at o templo. Fomos recebidos por uma mulher negra, na faixa dos quarenta anos,

    tinha uma expresso sria, quase brava, vinha carregando uma cuia de chimarro.

    Nos aproximamos e eu, que j tinha reconhecido a voz dela, a cumprimentei: Opa,

    tudo bem? Tu a Belkis?. Isto! Tu o Daniel? Pode passar no mais a me Chola t

    te esperando no outro salo!

    Entramos na pea em que ela estava. Havia uma mesa perto da porta e

    sentados prximos a ela havia mais umas quatro pessoas no recinto. Estavam

    fazendo uma roda de chimarro. Este cmodo tem uns dez metros de largura, por

    uns cinco de comprimento; na parede em que se encontra a porta pela qual

    entramos e nas paredes que fazem ngulo com esta h um grande mural a la

    Caminito16, mostrando um casal danando tango ao lado de um lampio, em

    vermelho e negro. O teto era baixo. Na parede oposta tambm h um balco, que

    divide a pea e atrs deste esto outras trs portas de peas menores, que estavam

    fechadas. Posteriormente, soube serem um depsito de bagagens e dois quartos-de-

    exu, algo equivalente a um quarto-de-santo17, com os assentamentos dos exus dos

    16 Uma rua famosa do bairro bomio da Boca, em Buenos Aires, importante na histria do tango. 17 Tanto aquilo que estou chamando de quarto-de-exu, quanto o quarto-de-santo, so espaos sagrados nos quais se guardam os assentamentos, respectivamente, dos Exus e Pombagiras e dos Orixs.

  • 25

    filhos-de-santo da casa. Na parede lateral esquerda, a partir da porta pela qual

    entramos, h outras duas portas, uma que leva para uma cozinha entre a cozinha e

    o primeiro quarto-de-exus, um corredor leva para um rea coberta nos fundos do

    ptio e outra, com trs degraus adiante, atravs da qual se penetra para o salo no

    qual me encontraria com me Chola.

    O salo grande, composto por uma nica pea retangular medindo dez

    metros de largura por vinte e cinco de comprimento, dividida em trs reas que ficam

    bem delimitadas pela disposio da moblia e dos objetos religiosos que se

    encontram em seu interior. A primeira rea, na qual est a porta de entrada que d

    para a varanda descrita anteriormente, ocupa quase um quarto da rea total do

    salo; na sua esquerda uma porta para um banheiro; junto parede da frente, de

    cada um dos lados da porta, pilhas de cadeiras de plstico; o cho de cimento em

    um acabamento simples. A segunda rea, que ocupa algo como metade do salo,

    tem o cho coberto de parqu e vrios quadros de Orixs, trofus, duas espadas,

    muitos diplomas de federaes afro-religiosas, que garantem me Chola o

    exerccio do sacerdcio nos territrios dos Estado-Naes pelos quais ela circula, e

    vrios objetos decorativos de inspirao religiosa dependurados nas duas paredes

    laterais, nas quais esto encostadas mais dessas cadeiras; junto da parede direita h

    uma pequena plataforma, com mais ou menos um e meio de lado, sobre ela um

    banco e dois tambores grandes; e quase na rea de transio para o terceiro setor,

    est uma poltrona verde de encosto alto. Na terceira rea do salo, que separada

    das outras reas por uma grande cortina (que nesta ocasio estava aberta),

    encontram-se a partir da parede esquerda: um porta estandarte com bandeiras de

    vrios pases nos quais Chola tem filhos-de-santos residentes e para os quais ela s

    vezes viaja (Brasil; Argentina; Uruguai; Mxico; Estados Unidos da Amrica) e do

    terreiro (uma bandeira verde, com algumas estrelas brancas e duas faixas vermelhas

    que atravessam diagonalmente a bandeira), a entrada para um banheiro; uma srie

    de prateleiras lotadas de imagens tanto de santos catlicos, quanto de entidades18

    afro-religiosas; a porta do peji, ou quarto-de-santo, que fica alinhada, igualmente

    como a porta de entrada, na metade da distncia entre as paredes laterais do salo;

    18 Entidade um termo genrico que os afro-umbandistas utilizam para se referir aos espritos e divindades que so cultuados em seus rituais.

  • 26

    mais uma srie de prateleiras, mais um banheiro e a porta que comunica-se com o

    outro salo e pela qual entramos.

    Me Chola estava sentada na poltrona verde. Eu e Adriana nos sentamos nas

    cadeiras de plstico ao lado da poltrona; Belkis parou-se de p ao lado da poltrona

    da me. Esta uma senhora de aspecto slido, que irradia uma aura de poder e

    sabedoria ali, naquele momento, sem me dar conta, estava entrando em um reino

    em que ela a rainha, tudo parece emanar dela e todos ficam como que apagados

    perante o seu brilho prprio. Feies meio indgenas, quer dizer, queixo quadrado,

    olhos pequenos, escuros e penetrantes, pele morena clara. Cabelo pintado de acaju

    e bem arrumado, abrigada num xale-poncho elegante e senhorial, usava na mo

    esquerda um grande, todavia sbrio, anel, talvez de ouro, no qual est escrito o seu

    nome, Gloria. Belkis, atenta, mas discreta, com os braos relaxados e as mos

    entrelaadas a frente do corpo era a imagem de uma princesa: inteligente e

    poderosa mas contida pela fora que reconhece na me.

    Esta primeira entrevista realizada com me Chola consistiu na sua histria de

    vida, seu projeto, sua interpretao da estrutura ritual da Linha Cruzada e sua

    memria e conhecimento sobre a difuso deste campo religioso na fronteira, no

    Uruguai e na Argentina, narrativa que ratifica e ratificada por entrevistas que fiz

    com seu Srgio, pai Pocho de Xang e me Dlsia de Ogum. Em vrias outras

    oportunidades voltei a conversar sobre estes assuntos com me Chola e com os

    seus familiares.

    Na seqncia apresentarei de maneira sinttica um pequeno relato sobre a

    vida da informante e dos seus movimentos dentro das religies afro-brasileiras, que

    culminam com o atual estgio de consolidao da Casa Africana Reino de Ogum

    Mal como uma comunidade religiosa transnacional composta por trs terreiros

    localizados no Brasil, Argentina e Uruguai e algumas centenas de filhos-de-santo,

    alguns, como expliquei acima, atualmente radicados em diversos outros pases,

    como por exemplo Mxico e Estados Unidos da Amrica.

    3.1 A histria de me Chola

    Glria Silveira, uruguaia, nascida em 1942 no departamento de Rivera, filha

    de uma mulher negra e de um basco errante. Sua me trabalhou por vrios anos

  • 27

    como cozinheira de uma famlia de turcos e por isso mudou-se com sua menina e

    mais dois filhos para a casa dos patres. At os seis anos de idade Cholinha, como

    era chamada a menina, tinha um estilo de vida citadino, em Rivera, e algumas

    regalias perante a famlia dos empregadores de sua me. Sua me faleceu e Chola e

    seus irmos foram viver com a av na zona rural de Rivera, que trabalhava como

    lavadeira para os fazendeiros do entorno.

    Figura 3: Me Chola (primeiro plano)

    Foto do autor

    Chola ficou neste lugar por uns dez anos. Diz que foi nesta poca de privao

    que aprendeu a fazer muito com pouco e as mais diversas formas de lidas que lhe

    possibilitaram ser uma boa me-de-santo, orientando e pegando junto, nos

    trabalhos rituais com os filhos-de-santo. Posteriormente, Chola comeou a trabalhar

    como domstica em Rivera, onde conheceu seu primeiro marido e pai dos seus trs

    filhos: Jaime, Javier e Belkis. Este relacionamento durou mais de vinte e cinco anos,

    mas foi muito difcil, sendo seu marido muito machista e autoritrio, segundo as

    palavras da prpria.

    Foi neste momento da vida que me Chola teve seu primeiro contato com a

    religio quando, com cerca de vinte e quatro anos, teve um problema de bcio e um

    vizinho lhe falou de uma senhora que benzia e curava as pessoas. Chola titubeou e o

    vizinho lhe chamou de medrosa; para desdiz-lo, Chola foi se consultar com a bruja

    que lhe orientou a procurar um lugar para se desenvolver mediunicamente. A partir

    deste momento Chola, primeiro sozinha, mas logo acompanhada por seus filhos,

  • 28

    passou a freqentar o centro umbandista do pai Sidnei de Bar, pai-de-santo porto-

    alegrense que pela dcada de sessenta estava radicado em Santana do Livramento.

    Aps algum tempo s na Umbanda, Chola quis aprontar-se tambm no Batuque.

    Mas, quando teve condies para seguir seu desenvolvimento nesta linha ritual, seu

    chefe19 na Umbanda j tinha voltado a morar em Porto Alegre e ela teve que receber

    a mo20 do pai Pocho de Xang na sua cabea, este filho-de-santo de Joo do Bar.

    Alguns anos depois, j na dcada de setenta, Chola se libera e comea a dar

    sesses em sua casa em Rivera, na cozinha, para alguns parentes e vizinhos.

    Sempre que ia visitar um de seus irmos em Montevidu acabava por ser procurada

    para dar consultas com os bzios. Sua reputao cresceu e essas visitas se

    tornaram cada vez mais freqentes e chegaram a ter uma periodicidade semanal.

    Esse foi um momento tumultuado, pois seu marido no permitia que ela pernoitasse

    em Montevidu. Por isso, ela, sempre acompanhada por um de seus filhos, saa de

    Rivera a meia-noite, chegava em Montevidu pela manh e pela noite voltava para

    Rivera trazendo alguns produtos cosmticos, roupas e bijuterias para vender e

    repassar21. Desde ento, em Montevidu Chola j teve terreiros em mais de trs

    endereos, mas tambm passou um bom tempo sem um templo estabelecido, at

    que, mais ou menos quinze anos atrs, Cristina do Bar, uma de suas filhas-de-

    santo montevideanas, lhe cedeu a garagem de sua casa para usar como terreiro.

    Durante este perodo a vida particular de Gloria passou por mudanas

    considerveis, como ter que se responsabilizar pela criao e sustento dos filhos de

    um outro irmo e, mais adiante, divorciar-se. Felizmente, ela contava com a ajuda de

    alguns dos seus filhos-de-santo mais prximos, como Hugo de Xang e sua famlia e

    Ilda de Oxum e seu esposo, entre outros. Passado algum tempo, Chola inicia uma

    relao com o seu segundo e atual companheiro, Paulo, e posteriormente transfere

    seu terreiro para Santana do Livramento. H aproximadamente dez anos, Paulo

    construiu a atual sede da Casa Africana Reino de Ogum Mal, nesta cidade.

    A partir da dcada de noventa, j como uma me-de-santo de prestgio e com

    muitos filhos-de-santo no Uruguai e Argentina, me Chola contatada por alguns de

    19 Forma de tratamento do sacerdote lder de um centro de Umbanda. Este cargo pode ser somado a outros de outras linhas rituais das religies afro-brasileiras, como quando este chefe tambm um pai-de-santo. 20 Receber a mo significa que foi iniciada no Batuque por esse sacerdote que entre outras coisas derramou sangue ritual sobre a sua cabea para despertar seu Orix. 21 Junto ao percurso religioso transnacional, ocorre tambm um percurso econmico.

  • 29

    seus netos-de-santo de Posadas, no nordeste da Argentina, que estavam um pouco

    desconfiados e descontentes com o seu pai-de-santo (filho-de-santo da me Chola).

    Este homem estava lhes iniciando na Quimbanda sem todavia estar pronto e liberado

    para tanto por sua me-de-santo. Chola se mandou para Posadas para

    desmascarar o filho-de-santo e dele se desvincular. Reparando os erros cometidos

    por este, para com as pessoas de Posadas, ela se torna responsvel por esses fiis

    e passa a visit-los mensalmente para dar sesses e guiar seu desenvolvimento na

    religio, constituindo ento a terceira filial do seu terreiro, naquela cidade.

    A partir deste novo territrio conquistado e da ampliao de sua rede de

    contatos na Argentina, me Chola fez uma ponte para a cidade de So Miguel de

    Tucum no Noroeste argentino, lugar em que, na atualidade, madrinha de dois

    terreiros, os quais visita algumas vezes por ano, ao passo que tambm recebe estes

    filhos-de-santo em Santana do Livramento.

    No atual momento de sua vida, em uma posio estvel, porm em um ritmo

    acelerado de trabalho para articular um grande nmero de filhos-de-santo ainda

    ligados a estes cinco terreiros, me Chola, sem muita pressa, mas com uma

    determinao discreta e contnua, comea a preparar a sucesso de sua famlia-de-

    santo e um futuro afastamento da cena religiosa, que iniciaria-se com um censo dos

    seus filhos-de-santo (para confirmar a descendncia religiosa destes a partir de sua

    casa) e o no aprontamento22 de novos filhos-de-santo a partir de abril de dois mil e

    sete.

    Nas quase trs horas de entrevista, me Chola, plena de autoridade, com a

    voz repleta de inflexes graves e sorrisos pontuando as partes do discurso que

    pediam conivncia ou aquiescncia, narrava a sua vida e dardejava suas opinies

    enquanto que Belkis intervinha completando as informaes, lembrando detalhes,

    alcanando coisas, dando apartes que reforavam o relato de sua me. No meio da

    conversa, uma moa vem agradecer me Chola por t-la aceito novamente como

    membro de sua corrente23, estava transtornada e chorava muito. Magnanimamente,

    22 Aceitao de um indivduo como filho-de-santo e orientao do desenvolvimento religioso do mesmo at a sua liberao para, se o indivduo quiser, ser um pai-de-santo e gerir o seu prprio terreiro ou continuar como mdium, plenamente desenvolvido, na corrente de seu pai-de-santo. 23 Corrente um termo mico relacionado com o grupo de pessoas que faz parte do terreiro e que participam dos rituais de transe e incorporao. O termo advm da corrente de energia espiritual formada pelos mdiuns em trabalho.

  • 30

    me Chola a recebeu e se comprometeu a continuar orientando o seu

    desenvolvimento espiritual.

    Quando samos do terreiro, j noite escura, e caminhvamos para pegar o

    nibus, reparamos que havia muitas igrejas evanglicas nas imediaes do terreiro

    de me Chola. Muito diferentes da casa simples e discreta que abriga o templo afro-

    religioso, estes outros templos tm fachadas chamativas, se no na arquitetura, pelo

    menos em grande placas que trazem o nome das tais confisses religiosas e os

    horrios dos cultos.

    4. Ampliando a rede

    Na tarde da quinta-feira 21 de julho de 2005, voltei ao Centro Cultural Zumbi

    dos Palmares, mas dona Enilda no se encontrava ali. Acabei entrevistando uma

    sobrinha dela e apesar da conversa ter sido muito interessante, mais me distanciou

    da minha investigao do que me aproximou, pois o assunto me levou para uma

    srie de temas colaterais aos da religiosidade afro-brasileira na fronteira, como

    pertencimento tnico e as aes afirmativas. Ao pesquisar a religio afro no Uruguai

    fui vrias vezes apresentado a militantes de movimentos culturais ligados

    promoo do candombe (ritmo tradicional ao qual se atribui uma origem negra) e do

    movimento poltico Mundo Afro, o que talvez mostre o grau de laicidade da

    sociedade uruguaia. Alm disso, acabei descobrindo que o Centro So Jernimo

    Reino do Pai Xang um centro de Umbanda branca de longa histria em Santana

    do Livramento, mas com um nmero de freqentadores agora restrito. O interessante

    do meu contato com esses parentes da dona Enilda que ao longo das minhas

    outras visitas a Livramento, percebi que este grupo tem desde h muito relaes de

    reciprocidade com a comunidade religiosa de me Chola. Uma outra sobrinha de

    dona Enilda, Tita, uma mdium encostada no terreiro de Chola; no passado, em

    seus primeiros anos na religio, Chola era freqentadora contumaz das sesses de

    Umbanda dirigidas por Maria Redonda, a me de dona Enilda, e at hoje sempre que

    h festas religiosas em uma das casas, a outra manda uma delegao para

    prestigiar as cerimnias.

    Pela manh da sexta-feira, dia 22 de julho, fui com seu Srgio visitar uma

    outra me-de-santo uruguaia, radicada na periferia de Rivera. Me Dlsia de Ogum,

  • 31

    nascida em 1937, me concedeu uma entrevista muito interessante, na qual relatou a

    sua entrada nas religies afro-brasileiras a partir de um problema de sade que

    comeou a tratar atravs do seu desenvolvimento em um centro esprita, do qual

    teve que afastar-se por ter comeado a incorporar a cabocla Jurema. Neste

    momento com quatorze anos, foi levada por sua av ao terreiro de me Teta, de l

    continuou seu desenvolvimento com o pai-de-santo de me Teta, o j citado Joo do

    Bar, e continuou em suas mos at a morte deste, passando depois para as mos

    de me Teta e com a morte desta, em 1998, Dlsia passou a ser orientada por pai

    Pocho de Xang, com o qual se encontra ligada at hoje. Tambm me Dlsia tem

    vrias ligaes com o terreiro de me Chola, as duas se conheceram e forjaram a

    sua amizade enquanto eram filhas-de-santo de pai Pocho; Dlsia madrinha de

    Javier, filho de Chola, na religio, e tambm me biolgica de um dos tamboreiros

    de me Chola.

    5. Minha primeira sesso de Umbanda

    Ainda no dia 22, voltei ao terreiro de me Chola para assistir uma sesso de

    Umbanda, acompanhado de Gladys, uma gegrafa uruguaia residente em Santana

    do Livramento. Chegamos um pouco antes das vinte e trinta e o terreiro estava com

    a luz da varanda acessa e a porta de entrada aberta; organizado para o ritual o salo

    estava diferente do que eu tinha visto na quarta-feira. Na assistncia24 as cadeiras

    de plstico estavam organizadas, cinco a cinco, em fileiras dispostas esquerda e

    direita da porta, delimitando um corredor que ligava a entrada rea da gira ritual, a

    segunda rea deste salo. Do lado esquerdo s estavam sentados homens e do lado

    direito mulheres. Atravessamos a assistncia para cumprimentar Belkis. Nessa rea

    alguns membros do terreiro, j vestidos com suas roupas rituais, esperavam o incio

    dos trabalhos conversando entre si. Outros passavam rapidamente para irem se

    trocar; e no tablado dos tambores, um rapaz moreno, de porte atltico, com o cabelo

    castanho bem crespo com algumas partes descoloridas afinava um tambor enquanto

    conversava com um homem de pele um pouco mais escura. Belkis pediu que nos

    sentssemos nas cadeiras dispostas contra as paredes laterais, que contornavam a

    24 Local de um terreiro onde ficam as pessoas que s assistem ao ritual e que depois se submetem a passes e a consultas com as entidades dos mdiuns que formam a corrente. No espao em questo, a assistncia a primeira parte do salo a partir da porta de entrada.

  • 32

    rea da gira ritual para visualizarmos melhor o desenvolvimento da sesso. Outras

    pessoas j estavam sentadas ali, pareciam ser mais ntimas da casa ou possurem

    mais status e a diviso sexual presente na assistncia no se realizava nestas

    cadeiras.

    Alguns minutos depois, vrios mdiuns estavam a postos no meio do salo,

    formando um crculo. Todos descalos, as mulheres de saias compridas, com calas

    por baixo e os homens, com calas brancas, dois, em particular, estavam usando

    umas bombachas brancas muito folgadas. Belkis estava posicionada no ponto de

    passagem da rea da gira ritual para a rea do altar e do peji. Antes de comear a

    sesso, Belkis agradeceu a presena de todos e informou que me Chola deixou

    um beijo para todos! Ela no est presente porque teve que viajar para a capital.

    Imediatamente algum perguntou em tom galhofeiro qual delas? [Montevidu ou

    Porto Alegre], s no sbado fui saber que era para Montevidu.

    Comeou um toque contnuo de sineta, um turbulo foi trazido para defumar o

    ambiente, os mdiuns se reuniram na rea de gira, as pessoas na assistncia (a

    sobrinha da professora Enilda que entrevistei no dia anterior, entre elas), agora

    lotada se acomodaram, algumas roupas foram trazidas pelos mdiuns ou pelo

    pblico e colocadas prximas ao altar. S ento a porta do quarto-de-santo foi aberta

    e se entoou um ponto para Ogum que por refro tinha: Ogum de Mal, Ogum de

    Nag!, acompanhado pelo tambor e o ag. Seguiu-se um outro ponto para as vrias

    entidades e todos os mdiuns na corrente se deitaram, encostando o rosto no cho,

    realizando a ao de bater a cabea em sinal de reverncia aos Orixs e s

    entidades da Umbanda.

    Durante este tipo de ritual, muitas coisas acontecem ao mesmo tempo e

    enquanto se iniciava o primeiro ponto, algum membro da casa que estava fora da

    roda se aproximou de mim e de Gladys e pediu que tirssemos os sapatos, nesta

    parte do salo no se pode ficar calado, falta de respeito, disse-nos. Um pouco

    envergonhados pela gafe ficamos de ps descalos sobre o parqu gelado.

    Aps estes primeiros procedimentos que vrios pontos foram executados, os

    mdiuns danando, uns aps os outros sendo tomados pelas entidades, comeando

    a girar e dando muitas voltas no mesmo lugar, com uma velocidade constante e

    aparentemente sem comprometimento do senso de equilbrio; os olhos fechados ou

  • 33

    fixos em algum lugar e concentrados; o vento produzido pelo movimento das saias

    era impressionante.

    Quando paravam de girar, suas faces estavam transformadas: algumas

    adquirem uma expresso indefinida, outras viram carrancas; mas as antigas

    rostidades (DELEUZE & GUATTARI 1995-1997; ANJOS, 1993) prprias de cada

    indivduo, foram substitudas por outras rostidades tambm especficas, cada

    mdium com um outro rosto tambm particular: o de outro ser, uma entidade que

    est no corpo do mdium. Esta entidade fora o corpo do mdium, ou ele resiste

    entidade, mas o fato que o corpo do mdium se retesa e algum outro mdium vem

    at o possudo e lhe tira a rigidez soprando em seus ouvidos e/ ou lhe passando a

    mo pelos braos e cruzando-os sobre o peito25. A partir de ento a entidade

    realmente se apossa do corpo do mdium e, se dirigindo at a frente do quarto-de-

    santo, tambm bate a cabea.

    Quando a msica pra, a roda, que fora desfeita durante os processos de

    incorporao, se refaz. Um forte barulho, como o ronco de um animal, se espalha

    pelo salo, so as entidades respirando; algumas caminham para frente e para trs,

    outras manquejam; algumas do gritos fortes, parecem bravas; todas

    performatizam alguma postura especfica com os membros superiores, um brao

    erguido com a mo fechada de uma maneira especfica, ou um brao dobrado nas

    costas... so sinais caractersticos de cada entidade, tornando-as passveis de

    reconhecimento, para os iniciados, pelo seu caminhar, pelo seu gestual. Percebi que

    alguns mdiuns estavam comunicando as mesmas gestualidades, portanto seria a

    mesma entidade que estaria incorporada neles. Mesmo assim, pequenos detalhes do

    gestual indicaram-me que poderia at ser a mesma entidade, mas no

    completamente, pois cada entidade se torna particular em cada mdium.

    As entidades (ouvi as pessoas ao redor falarem de caboclos) que j tinham

    batido a cabea cruzam o salo e saem varanda para saudar tanto a casa do Bar

    da Rua, quanto a esttua de Iemanj. Alguns caboclos deram fortes gritos, que me

    assustaram um pouco, pois no estava esperando por isso. Depois voltam e

    cumprimentaram os tamboreiros em uma saudao na qual se passa o antebrao

    25 Por vezes quando a entidade se manifesta com muita fora, faz-se necessrio mais de um mdium para lhe segurar e realizar esse destravamento do seu corpo, como aconteceu em determinado momento: Ai Ogum Beira-Mar o que trouxe do mar? cantava-se em outro ponto e o homem moreno que estava tocando ag incorporou to forte que outros trs mdiuns vieram em seu auxlio.

  • 34

    direito pelo antebrao direito do outro e depois se repete o mesmo com o antebrao

    esquerdo. Fazem esse cumprimento cruzado que termina com um abrao que repete

    a mesma lgica. As entidades tambm se cumprimentam entre si e cumprimentam

    algumas pessoas da assistncia. Quando se sadam entre si, percebe-se uma

    etiqueta muito baseada em afinidades e hierarquia; todos foram cumprimentar Belkis,

    mas nem todos foram cumprimentar outros mdiuns. Belkis no permitia que

    algumas entidades fossem bater cabea para a sua entidade, aceitando apenas o

    cumprimento cruzado. No obstante, de outros exigia que batessem a cabea.

    Depois que incorporara, a entidade de Belkis veio me cumprimentar Fora sempre!,

    o acento uruguaio dela perdido, sua entidade falando em portugus bem claro.

    Figura 4: Dois caboclos

    Foto do autor

    Entre os mdiuns havia uma discreta maioria de mulheres, de todas as idades,

    desde uma menina (Cac como lhe chamam) que na poca tinha oito anos, at a

    sua av (dona Deolinda) que tem mais de setenta anos; havia tambm duas

    adolescentes: Bianca, de dezenove anos e Carina, de treze; vrias mulheres entre

    trinta e quarenta anos. Entre os homens que estavam na roda, s havia um menor,

    Antnio (irmo de Cac), de quatorze anos; havia, tambm um rapaz mais velho,

    Fabiano (vinte e poucos anos) e alguns homens acima dos trinta, e um nico senhor

    mais idoso.

    Cac chamou muito a minha ateno. No imaginava que crianas tambm

    poderiam participar da roda. Parecendo dentro do seu vestido branco uma aia de

    casamento, ela tocava sineta, danava, to bem quanto os adultos, mas no

    incorporava. Todavia, mesmo assim girava, acompanhada por um adulto que ficava

  • 35

    limitando o espao da sua gira com os braos e depois a levou para beber um copo

    com gua que estava na rea do altar 26, abaixo de uma esttua de So Jorge (pelo

    sincretismo, Ogum).

    A entidade em Belkis comeou a passar a saia pelos tambores e tamboreiros,

    a fim de limp-los: segurando a saia pela barra a esfregando por toda a superfcie

    dos tambores com movimentos de cima para baixo e depois sacudindo a saia em

    direo ao cho, como quem sacode uma toalha cheia de p ou farelos. Depois

    limpando os tamboreiros em si, e, por fim, repetindo essa ao no tocador de ag. O

    procedimento foi, tambm, realizado por vrias outras entidades. Contudo, cada

    entidade tem uma forma prpria de executar uma limpeza, algumas s sopram

    assobiando em torno da pessoa ou objeto a ser limpo; outras ficam fazendo um

    movimento com a mo de forma que o dedo indicador bate no dedo mdio, segurado

    pelo polegar (produzindo um estalo). Este movimento acompanhado por algumas

    palavras ou por grunhidos indefinidos; outras, ainda, apenas passam as mos em

    toda a extenso do corpo que querem limpar.

    O ritual se interrompeu por alguns momentos e recomeou com os tambores

    sendo batidos em outro ritmo e as pessoas cantando Eu vi mame Oxum na

    cachoeira, sentada na beira do rio [...]; Belkis desenhava em frente ao quarto-de-

    santo, o que em outro momento me explicou que seria um ponto grfico, uma

    assinatura icnica do novo tipo de entidade que estava sendo invocada nesta

    segunda parte da sesso. Belkis desenhou com giz azul cinco linhas horizontais

    serpenteantes, como se fossem as ondas de um mar, e sobre elas desenhou quatro

    estrelas-de-davi e se deitou quase sobre o desenho beijando o cho. Depois, no

    meio do tal ponto colocou um copo com um lquido claro (que eu no soube precisar

    qual era) e os outros mdiuns vieram se deitar em frente ao desenho. Neste

    momento j estvamos com quase uma hora de sesso. Posteriormente, em

    conversa com Belkis, ela me contou que as entidades que estavam se manifestando

    neste momento eram mes dgua e pretos velhos.

    Mais pontos cantados sobre Oxum, [...] minha me Oxum na Umbanda e no

    Candombl [...] e o vento dos espritos na dana girante dos cavalos continua.

    26 Em setembro de 2006, durante uma conversa com Belkis ela me explicou que neste ritual que narro agora, se fazia a menina girar para ela no ficar carregada com todas as energias que estavam em circulao na roda. Talvez a ao de beber da gua, que estava abaixo da imagem, tenha a mesma explicao.

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    Belkis, possuda por esta me dgua vem me limpar novamente, sopra em minhas

    mos, as fecha e me d uma beno. Dona Deolinda saiu da roda e foi se sentar em

    uma cadeira na parede oposta a qual eu estava. Um pouco depois, Belkis foi at ela

    e a limpou, levantou seus braos e a senhora pareceu que cairia para frente, se

    levantou e voltou para a roda. Uma moa negra com tranas no cabelo, seu apelido

    Tita (a sobrinha da professora Enilda), de estatura baixa, de vinte e poucos anos,

    saiu da roda, tambm foi se sentar perto dessa senhora, estava com uma expresso

    muito estranha no rosto, olhos revirando... ficou sentada ali um bom tempo,

    provavelmente incorporada por um preto velho. Cac voltou a girar e a ir beber gua

    no p do santo. Mais uma vez, todos os mdiuns incorporados se dirigiram varanda

    para cumprimentar a casa do Bar e a esttua de Iemanj.

    Uma grande pausa, os tambores silenciaram, um dos tamboreiros, um homem

    de meia-idade, chamado Wilma, filho da me Dlsia de Ogum como vim a saber

    mais tarde27, acendeu um cigarro; muitas