camio onoda caldas e outros - manual de metodologia do direito - estudo e pesquisa - ano 2010

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M anual de M etodologia do D ireito E studo e P esquisa

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  • M anual d e

    M eto d o lo g ia d o D ireitoE stu d o e P esquisa

  • A Q uartier Latin teve o mrito de dar incio a uma nova fase, na apresentao grfica dos livros jurdicos, quebrando a frieza das capas neutras e trocando-as por edies artsticas. Seu pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inmeras Editoras seguiram seu modelo.

    Ives G andra da Silva M artins

    Editora Quartier Latin do BrasilEmpresa Brasileira, fundada em 20 de novembro de 2001

    Rua Santo Amaro, 316 - CEP 01315-000 Vendas: Fone (11) 3101-5780

  • C a m il o O n o d a C a l d a sAdvogado, Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP), Mestre em Direito Poltico e

    Econmico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutorando em Filosofia e Teoria Geraldo Direito pela Universidade de So Paulo (USP). Diretor do

    Instituto Luiz Gama. Professor de Introduo ao Estudo do Direito da Faculdade de Direito da Universidade So judas Tadeu.

    L u c y l a T ellez M e r in o

    Advogada, Mestre e Doutoranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de So Paulo (USP). Professora de Metodologia e de Direito do

    Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade So Judas Tadeu.

    S ilv io L u iz d e A l m e id aAdvogado, Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP), Mestre em Direito Poltico e

    Econmico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de So Paulo (USP). Presidente do Instituto L uiz Gama. Professor de Metodologia e de

    Filosofia do Direito na Universidade So Judas Tadeu.S ilvio M o r e ir a B a r b o s a J r .

    Psiclogo, Psicanalista, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP). Diretor Cultural da Ao

    Cooperada. Professor de Metodologia da Faculdade de Direito da Universidade So Judas Tadeu e de Esttica no Conservatrio Souza Lima.

    M anual d e

    M eto d o lo g ia d o D ireitoE stu d o e P esquisa

    Editora Quartier Latin do Brasil So Paulo, vero de 2010

    [email protected]

  • EDITORA QUARTIER LATIN DO BRASILRua Santo Amaro, 316- Centro - So Paulo

    Contato: quartierlatin@quarerlatin. art.br www.qmrtierlatin.ari.br

    Coordenao editorial: Vincius Vieira

    Diagramao: Jos Ubiratan Ferraz Bueno

    Reviso gramatical: Jos Ubiratan Ferraz Bueno

    Capa: Miro Issamu Sawada

    Figura de Urobros: Brbara Malagoli Martino

    C a l d a s , Camilo Onoda et alii - Manual de Metodologia do Direito: Estudo e Pesquisa - So Paulo: Quartier Latin, 2010.

    ISBN 85-7674-460-0

    1. Teoria Geral do Direito. 2. Pesquisa Jurdica. I. Ttulo

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Brasil: Teoria Geral do Direito

    3 0 S OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a. reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente istcmas grficos, microfilmicos, fotogrficos, reprogrikos, fo nogrficos.videogrficos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao ou pardal, bem como a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies am-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais puruVel como crime (art. 584 agrafos do Cdigo Penal), oom pena de priso e multa, busca e apreenso e indenizaes diversas (ares. 101 a 110 da Lei 9.610, 9.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

  • S u m r io

    Lista de Figuras....................................................................................... 7Apresentao............................................................................................ 15Introduo............................................................................................... 17

    P arte I - Instrumentos para

    A PRTICA DO ESTUDO, 191. Estados psicolgicos comuns aos estudantes...................................... 212. Condies necessrias para a pesquisa cientfica................................ 23

    2.1. Desentendimento como condio para a pesquisa...................... 232.2. Cincia enquanto combate ao preconceito................................. 252.3. Liberdade como condio fundamental da cincia................... 30

    3. A orientao para o processo de pesquisa........................................... 323.1. Primeiros passos para lidar com um texto.................................. 333.2. Como abordar um texto.............................................................. 343.3. Como analisar um texto............................................................... 38

    3.3.1. Consideraes gerais.............. ............................................... 383.3.2. Nveis de compreenso do texto........................................... 3 83.3.3. Procedimentos para anlise do texto.................................... 423.3.4. Releitura do texto.............................................. ................... 60

    3.4. Como interpretar um texto ......................................................... 623.4.1. Um texto sua histria......................................................... 633.4.2. Sobre as fontes de pesquisa.................................................. 643.4.3. A pergunta oculta em cada texto......................................... 663.4.4. Hierarquia textual................................................................. 67

    P arte II - O discurso cientfico , 711. A cincia............................................................................................ 72

    1.1. O paradoxo constitutivo da cincia............................................ 721.2. A relao mtodo/objeto.............................................................. 741.3. Modos de trabalhos da cincia............................................ ....... 78

    1.3.1. Relao entre o Esquema Esttico e o EsquemaDinmico da Cincia........................................................................ 791.3.2. Distino dos Modos de Trabalho a partir daRelao Mtodo/Objeto................................................................... ^1

  • 1.4. Teoria, atuao e objetivo da cincia.................................................. 821.5. Conceito, produto e instrum ento...................................................... 92

    2. Discurso cientfico no direito..................................................................... 932.1. Metodologia e d ireito ........................................................................... 93

    2.2. Direito natural e direito positivo........................................................ 93

    2.3. Direito como cincia.............................................................................. 9 42.4. Conceito e deciso.................................................................................. 96

    2.5. Teorias jurdicas e suas conseqncias.............................................. 992.6. Direito e propriedades da teoria ......................................................... 101

    Parte III - C onfeco e formatao do TEXTO ACADMICO, 103

    1. Os 10 erros mais comuns em uma pesquisa............................................ 1042. O que se espera de uma pesquisa................................................................ 1053. A escolha do te m a ........................................................................................... 1054. Levantamento preliminar bibliogrfico.................................................... 1 0 75. O anteprojeto de pesquisa............................................................................. 1096. Redao do trabalho....................................................................................... 1137. Normatizao do trabalho............................................................................. 1 1 4

    7.1. N BR 14724:2005: normatizao de trabalhos acadmicos......... 1 1 77.1.1. Estrutura.................................................................... ....................... 1 1 77.1.2. Regras G erais.................................................................................... 11 8

    7.2. N B R 6023:2002: referncia bibliogrfica...................................... 1237.2.1. Monografias (Livros)........................... .............................. ........... 1257.2.2. Publicaes Peridicas (Revistas/Jornais)................................. 12 77.2.3. Documentos jurdicos.................................................................... 128

    7.3. N B R 10520:2002: citao.................................................................. 131

    7.3.1. Sistema de chamada autor-data................................................... 1 3 47.3.2. Notas de R odap............................................................................. 138

    Leituras recomendadas....................................................................................... 143

    Bibliografia............................................................................................................ 145

  • L ista de F ig u r a s

    Figura 1 - Relao entre cincia e preconceito...................................... 27Figura 2 - Anlise do texto............................................................ ........ 3 9Figura 3 - Interpretao do texto.......................................................... 40Figura 4 - Exemplo de articulao de conceitos a partir da

    lista de repeties e definies subsequente........................ 51Figura 5 - Exemplo de articulao de conceitos a

    partir da lista de repeties e definies subsequente........ 56Figura 6 - Conceito de cincia - Primeira articulao.......................... 75Figura 7 - Conceito de cincia - Paradoxo........................................... 76Figura 8 - Comparativo entre esquemas de cincia............................... 7 8Figura 9 - Distino dos Modos de Trabalho a partir da

    Relao Mtodo/Objeto - Esquema parcial...................... 81Figura 10 - Distino dos Modos de Trabalho a partir da

    Relao Mtodo/Objeto - Esquema completo................ 82Figura 11 - Conceito de teoria - Primeiro esquema............................. 85Figura 12 - Conceito de teoria - Segundo esquema............................. 89Figura 13 - Conceito de teoria - Terceiro esquema.............................. 91

  • A g r a d e c im e n t o s

    Queremos aqui oferecer um agradecimento especial s pessoas que foram fundamentais para que esta obra surgisse.

    Aos nossos familiares e amigos, que souberam compreender nossas ausncias durante a tarefa de preparar este livro.

    Editora Quartier Latin, que nos ltimos anos tem se notabilizado por publicar o que de melhor h no mbito jurdico. Por isso, sentimo-nos imensamente honrados pela oportunidade de fazer parte do grupo de renomados autores que integram esta editora.

    Universidade So Judas Tadeu pelo apoio e por nos mostrar que ainda possvel ensinar para a emancipao.

    Ao querido mestre e amigo de todas as horas, professor Dr. Alysson Leandro Mascaro, que com o brilho de suas ideias nos ajudou a dar rumo e a consolidar vrias das posies adotadas neste livro.

    E especialmente ao professor Dr. Fernando Herren Aguillar, exemplo de educador, a quem devemos a ideia original deste livro. Motivado por uma viso arrojada da educao, mas ao mesmo tempo fiel s melhores tradies, o professor Aguillar nos fez compreender que, antes de preparar os alunos para o exerccio das profisses jurdicas, seria necessrio prepar-los para pensar o direito. Ao professor Aguillar, nossa eterna gratido e respeito.

  • A p r e s e n t a o

    Durante milnios, direito, religio, moral, costumes e mesmo magia se confundiram. Quando um estudioso se depara com os Dez Mandamentos, conside- ra-os regras do direito ou da religio? Na Idade Mdia, como classificar o Direito Cannico? De fato, em sociedades pr-capitalistas, no h um fenmeno jurdico distinto das amarras sociais costumeiras e do mando direto dos senhores.

    Mas, desde o surgimento do capitalismo, na Idade Moderna, iniciou-se um movimento de especificao do direito. Desde l at hoje, cada vez mais se separa a voz da religio, da moral e dos costumes daquela que a voz do direito. J h dois sculos, teve incio um movimento de reduo do direito a parmetros meramente lgicos, limitados apenas pela anlise de normas jurdicas. A filosofia que procedeu a tal reduo do direito s normas do Estado levou o nome de juspositivismo.

    O juspositivismo tentou^e vender como uma filosofia cientfica e avanada sobre o direito. No mistura o que jurdico com o que moral. No faz juzos de valor. Limita-se a ser tcnico. Imagina construir um direito imparcial, frio e objetivo. Mas exatamente esse o auto-engano do juspositivismo. A imagem que tenta ver no espelho no sua realidade. Nem objetivo nem imparcial. Atende a classes e interesses sociais muito especficos.

    Em pleno sculo XXI, h quem no queira ver mais longe e, por isso, se satisfaa com essa limitada associao formal do direito ao Estado, sem entender suas causas e suas implicaes. A viso de mundo dos conservadores faz crer que o Estado o bem-comum. Da, se por direito se considerar apenas aquilo que sai do Estado, o direito seria sempre bom e justo. Mas as causas dessa associao imediata do direito ao Estado so profundas e estruturais: o direito permite a reproduo da explorao capitalista.

    Romper com as falsas vises juspositivistas fundamental. Alguns at negam o juspositivismo, mas para andar para trs: contra a tcnica, opem crenas morais e discursos reacionrios. No entanto, preciso fazer o caminho oposto e avanar ainda mais em busca dos objetivos histricos, sociais e polticos transformadores. Entender as mazelas do capitalismo, do Estado e do direito o primeiro passo para transformar as engrenagens da explorao social presente.

    O juspositivismo um mtodo de entendimento do direito conservador e limitado. Mas, para alm dele, uma viso crtica do mundo uma forma superior e avanada de compreenso metodolgica do direito.

  • A. metodologia do estudo e da pesquisa do direito fundamental para aquele se iniciar nos mbitos tericos e prticos da vida jurdica. Saber os possveis ihos a serem trilhados, entender para onde levam, posicionar-se perante a ide, tudo isso urgente e fundamental. Um bom entendimento metodol- o direito acarreta um posicionamento poltico melhor em face da sociedade.Vlm de desvendar as opes metodolgicas em jogo, o estudante de :> dever saber se debruar com proveito sobre as idias e os textos, esta- :ndo as suas mais amplas e profundas relaes. Dever saber aproveitar ) que ouve de seus professores, concatenando reflexes. Alm disso, por ua vida ler normas, leis, despachos, sentenas, decises e doutrinas. Far> e prestar concursos. Dever escrever com rigor, sistematicidade e cria- de. Haver de construir suas monografias, estudos, trabalhos, provas e jurdicas conforme as regras da lngua culta e da ABNT.iste M anual de M etodologia do D ireito: Estudo e Pesquisa, dos professores lo Onoda Caldas, Lucyla Tellez Merino, Silvio Luiz de Almeida e Silvio .ra Barbosa Jnior, uma obra decisiva, na literatura em lngua portugue- :a o entendimento das questes gerais do direito: todo aluno na faculdade sito e mesmo o jurista j estabelecido ho de encontrar, neste livro, as mais idas reflexes a respeito da metodologia do direito e dos caminhos para o> e a pesquisa do direito.Ds autores, importantes pensadores tanto do direito quanto da filosofia ;incias humanas, reuniram os melhores esforos para entregar, ao leitor liro, uma obra mpar sobre a metodologia jurdica. Acompanho proxi- :nte a trajetria intelectual e profissional de todos os autores; alguns neus ex-alunos e antigos orientandos de ps-graduao; todos especiais >s. A reunio de tais intelectuais para este trabalho coletivo representa eliz somatria de esforos da inteligncia e da didtica.ista obra ponto alto do pensamento jurdico avanado e crtico no Brasil.

    Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaroor da Faculdade de D ireito da Universidade de So Paulo (Largo So Francisco), fessor da Ps-Graduao em D ireito da Universidade Presbiteriana M ackenzie.

    Doutor e Livre-Docente em D ireito pela USP.

  • A leitura desta introduo fundamental.

    Este manual tem o propsito de ensinar o aluno a entender outras obras e a fazer pesquisas, por isso j inicia com uma lio dessa ordem: a leitura das introdues dos livros fundamental.

    A exemplo da maioria dos textos cientficos, essa introduo ajudar o leitor a entender: quem fez a obra, quais seus objetivos, qual a forma de apresentao adotada, quais seus limites.

    Passemos a entender o presente manual:

    Os autores dessa obra, alm da prpria vivncia em pesquisa, acumularam experincia lecionando a disciplina de metodologia e orientando estudantes de direito na elaborao de monografias.

    O objetivo da obra decorre, em parte, dessa experincia, pois ela procura:a) Servir como material de apoio para aulas de metodologia;b) Oferecer instrumentos para anlise e interpretao de textos;c) Ser um manual introdutrio para quem deseja realizar pesquisas

    cientficas;d) Explicar como a cincia se constitui e como o direito tenta se

    constituir como cincia;e) Explicar o sistema que normatiza a produo de trabalhos

    acadmicos.Os temas, que esto relacionados aos objetivos dessa obra, so apresenta

    dos em trs partes distintas, a seguir.A primeira parte trata dos instrumentos para prtica do estudo. Se al

    gum deseja realizar uma pesquisa, necessrio saber como lidar com um texto cientfico. Iniciamos com algumas consideraes preliminares, mostrando onde um estudante mdio de uma universidade se encontra quando tem de iniciar uma pesquisa. A seguir, os instrumentos para analisar e interpretar um texto so apresentados.

    A segunda parte procura explicar o que o discurso cientfico. H uma diviso deste tema em dois blocos: inicialmente, explicamos o que a cincia e qual sua relao com o seu objeto e seu mtodo. Posteriormente, a questo da cientificidade e suas implicaes apresentada no mbito jurdico.

    I ntroduo

  • A terceira e ltima parte aborda a confeco e formatao de um texto cadmico. O propsito no apenas o de expor as regras dessa natureza neste tocante, sugerimos ao leitor ler as prprias normas da Associao Brasi- ira de Normas Tcnicas (ABNT) que versam sobre textos acadmicos caso ueira se informar a respeito), mas tambm explicar o sistema de normatiza- o, sua razo de ser, seu funcionamento.

    Finalmente, importante ressalvar os limites desta obra. Trata-se de um anual. O que isso significa? Este um livro introdutrio que no segue um adro de forma e contedo rigoroso. Por essa razo, uma opo adotada me- ice ser destacada: o livro no contm referncias bibliogrficas ao longo do xto. Porm, todas as obras citadas possuem sua referncia completa ao final, 'om isso esperamos que a leitura possa fluir melhor.

    Em suma, este manual serve apenas para iniciar o aluno nas questes lativas metodologia e pesquisa. No uma obra de referncia, na qual o luno deve encontrar as respostas finais sobre s temas abordados. E uma obra til para o incio de uma jornada: a busca do conhecimento.

  • P a r t e I

    I n s t r u m e n t o s pa r a

    A PRTICA DO ESTUDO

  • As dificuldades com relao abordagem e ao manuseio do contedo iniversitrio so hoje uma realidade comum em nossas faculdades. No que ange ao curso de direito, assim como na maioria das denominadas humani- lades, a dificuldade se faz patente justamente no trabalho com o texto, espe- ialmente no estudo de doutrinas jurdicas.

    Perante esta dificuldade, um recurso emergencial muito utilizado pelos :ursos apostilar os programas, disponibilizando aos alunos textos indicativos, vagos e esquemticos, prtica que visaria a compor um mosaico das pesquisas e reflexes dos autores respectivos de cada rea do direito.

    O recurso acima pode ser apenas resultado de uma impossibilidade de xabalho com textos cientficos. Ou pode ser o sinal de algo pior: o de que as aculdades no se consideram responsveis por esta falha de formao dos dunos e que, portanto, no lhes caberia deixar o principal (a concepo de estratgias de ensino para as questes tcnico-jurdicas), em favor do acessrio 'o ensino de estratgias para anlise de textos). Noutras palavras: seria mais importante expor os contedos das disciplinas e no ensinar a forma adequada dos alunos acess-los.

    Certamente, um curso de direito no pode assumir como meta principal a formao do aluno em quesitos que o ensino mdio deveria ter suprido, sob o risco de comprometer sua funo primordial. O problema que o objetivo do curso jurdico fatalmente falha se no for superada a impossibilidade/dificuldade do aluno de analisar objetivamente um texto.

    Assim, no se trata, por um lado, de assumir todas as demandas negligenciadas pelo ensino mdio, nem de ignorar as carncias concretas com que nossos alunos ingressam na faculdade. Trata-se de criar dentro do curso as condies de possibilidade para que estas carncias se esclaream, a fim de que, ao trabalhar o texto, o aluno se comprometa com a prpria formao e com o preenchimento de lacunas que antes no eram to evidentes.

    No entanto, o processo acima pode ser extremamente doloroso.

    Como o aluno, na maioria dos casos, no experimentou nenhuma vez as verdadeiras dificuldades na leitura de um autor de cincia, tendo se limitado at ento a cartilhas e resumos, este primeiro contato pode suscitar complicaes para a prtica do estudo.

  • t-. i^ c /-vuMtiL/V OILVKJ /VI. tARBOSA JR. - 21

    Por isso, considerando esses elementos, a questo da prtica de estudo ser abordada em trs etapas:

    Primeiramente, sero indicados alguns estados psicolgicos comuns aos estudantes de hoje, o que eles podem significar e como podem comprometer o processo educacional.

    Em seguida, ser apresentada uma distino entre os elementos analticos e hermenuticos do texto, com o fim de apresentar ao aluno a sua realidade objetiva.

    Por ltimo, sero sugeridas algumas prticas de manuseio de texto para que seu contedo possa ser reorganizado e trabalhado adequadamente.

    1 . Estados p s ic o l g ic o s c o m u n s aos estudantes

    Impe-se atualmente a ditadura do entendimento. Se algo no entendido imediatamente, sem muita dificuldade e com uma aplicao evidente, ento no deve ter utilidade significativa.

    Esse estado psicolgico, vulgar entre os estudantes, oriundo do preconceito de que nada que ultrapasse o que j sabemos pode ser mais importante do que j temos por certo. Trata-se de um comprometimento perigoso, considerando que impossibilita o acesso a tudo aquilo que o sujeito ainda no sabe. Chama-se preconceito porque o indivduo desconhece parcial ou totalmente o comprometimento decorrente desse comportamento.

    Por isso o preconceito no uma escolha do indivduo, uma opo que ele ponderou e anuiu livremente, mas um hbito social desenvolvido historicamente, cujo exerccio, ainda que no explicitado, confere ao praticante estabilidade de viso de mundo e sentimento de pertena a um grupo. Por isso to difcil admitir um preconceito e super-lo: mant-lo confortvel, enfrent-lo incmodo.

    Conclui-se que pr a descoberto esses processos pode suspender a estabilidade de viso de mundo e o sentimento de pertena do sujeito. Ainda que temporariamente, quem preferiria isso ao conforto do sempre sabido? Se para algum ainda no havia notado de onde um preconceito tira sua fora, esse exemplo serve de ilustrao.

    Ao nos referirmos ao estado psicolgico acima, impossvel no pensarmos com a situao poltica atual. Podemos inferir que nossa sociedade

  • caminha sobre o preconceito. Sob a ditadura do entendimento, no se questiona nada, pois tudo j est dado; tudo auto-referenciado, e aquilo que no se apresenta de forma imediata nossa inteligncia o que no nos interessa. Conceitos e teorias a partir dos quais nossa sociedade se organiza no so passveis de discusso. Democracia, legalidade, igualdade, cidadania, termos que poderiam significar alguns dos grandes dilemas do nosso tempo so tomados como inequvocos, e seu significado e alcance no admitem interpretaes distintas. O que no admite discusso, no permite pluralidade; onde no h pluralidade, no h dilogo; onde no h dilogo, a poltica no se estabelece. A ditadura do entendimento, longe de se instalar apenas na dimenso epistemolgica ou psicolgica da existncia, constitui-se numa ditadura poltica.

    O que epistemologia?

    Um dos significados de epistemologia "teora do conhecimento". De origem grega, formada pelas palavras "episteme" e "logos". "Episteme" pode ser traduzida como "conhecimento" ou "cincia". "Logos", apesar dos diversos significados, pode ser traduzido neste contexto como "discurso" ou "teoria''.

    Mas h um estado psicolgico aparentemente oposto a esse, em que o aluno, perante as dificuldades e rigores do estudo, decepciona-se consigo, flagela-se internamente, sente-se incapaz da tarefa e termina por aceitar o fato de que se superestimou ao pretender cursar uma universidade. Todavia, este estado idntico ao outro, apenas com a mudana do objeto afligido, No primeiro caso, subestima-se a tudo, menos a si mesmo, no segundo, subestima-se a si mesmo em face de tudo que lhe ultrapassa. Mas ambos os estados se fundamentam no mesmo princpio, no preconceito de que j se conhece tudo o que se necessitava conhecer: seja a incompetncia do mundo em apresentar algo de interesse para si; seja a prpria incompetncia em apresentar algo de interesse para o mundo. Politicamente, o primeiro comportamento diante do no-enten- dimento leva ao conservadorismo e a posies reacionrias; j o segundo leva apatia e ao conformismo.

  • _ _ _ _ _ _ _ ~ w . j i l v i u I V I . O A K b U S A J K . - Z

    Diferente de tudo isso a fora e a capacidade de no saber, nem para um lado, nem para o outro. Nesse sentido, esse estado pode ser instrumentalizado, j que costuma se apresentar com frequncia. Este estado pode ser indicativo do carter indito do contedo confrontado face ao elenco possudo pelo aluno. Estados de desconforto, agitao, desinteresse, torpor, sono, so possibilidades indicativas desse confronto, assim como estados de revolta e desdm com relao ao estudo e, por fim, estados de angstia, ansiedade, medo, depresso e inferioridade. Enquanto todos estes estados forem apenas uma possibilidade indicativa do confronto entre outras, o oposto no permite opo. Se estivermos confortados e localizados perante o primeiro contato com um contedo, pouco ou nada de significativamente novo poder nos ser acrescentado. No melhor dos casos, tratar-se- de novos dados acumulados acerca de um sistema conhecido. E como algo poderia nos ser acrescentado significativamente, se de antemo j sabemos tudo o que necessitvamos saber?

    Resumindo: embora o desconforto diante do novo seja natural, ele no impeditivo.

    2 . C o n d i e s necessrias para a pesquisa c ie n t f ic a

    O problema do hbito scio-psicolgico descrito acima que ele inviabiliza a pesquisa. Assim, uma vez diagnosticado o problema, sero expostos a seguir os caminhos para super-lo.

    De maneira muito esquemtica, so apresentados trs pressupostos para o desenvolvimento de uma pesquisa cientfica: o desentendimento, o combate ao preconceito e a liberdade.

    2 .1 . D esentendimento c o m o c o n d i o para a pesquisa

    A primeira condio de possibilidade da pesquisa a ausncia de entendimento. O estado de desentendimento comum para a prtica da pesquisa. Ainda que se trate de uma pesquisa orientada com amplos alicerces, s avanar perante a coragem de arriscar seguir para as regies que ultrapassam seu territrio explorado. evidente que isso implica um risco, alm da angstia presente no estado de desorientao perante o desconhecido.

  • No h garantias, em nenhuma pesquisa, que ela encontre um resultado que justifique os seus esforos. O pesquisador deve estar preparado para suportar essa expectativa, sob o perigo de falsificar resultados ou propor concluses precipitadas ao curso da investigao, apenas para suprir a sensao de que o trabalho no foi em vo. Por todas estas razes o estado de angstia se justifica, de modo que no deve ser evitado, mas conhecido, para que se tome familiar e se aprenda a suport-lo. Se esse estado maciamente rejeitado, nenhuma tcnica didtica posterior poder oferecer mais que um paliativo. O aluno deve ser no s informado deste estado, mas confrontado com ele em todas as oportunidades oferecidas.

    O desentendimento perante algo de modo algum indica um fracasso no processo de estudo. Ao contrrio, sinal de que o material apresentado ao estudante absolutamente novo. Significa que o estudante, perante ele, no tem qualquer referncia. O valor, nesse caso, integral, visto que todo contedo apresentado guarda a possibilidade de relao com o absolutamente novo. Um exemplo contrrio pode auxiliar.

    Um estado oposto ao de desentendimento o de plena localizao. Estamos absolutamente localizados quando conhecemos na totalidade ou, ao menos, conhecemos bem os pontos principais de uma teoria ou doutrina. Certamente nada temos a ganhar nesse caso no que se refere ao crescimento intelectual, mas, ao contrrio, nos sentimos seguros e reafirmados em nossas crenas, conforme o caso. A capacidade de sacrificar esse conforto e comodidade, de sacrificar a orientao pelo incerto ou ainda indistinto, sem falsific-lo em uma coerncia que lhe exterior, o que distingue a prtica ntegra da pesquisa em relao ao processo de reafirmao dos prprios preconceitos.

    A questo aqui no sobre o que j se detm, mas do que se pode adquirir, independente do que j se conquistou. A sensao de domnio e segurana nos patamares de estudo, aliada ao receio de perder tal condio interna, pode interromper o crescimento intelectual em qualquer plano em que ele se encontre. No raro, at mesmo grandes pesquisadores caem nesta armadilha, e passam a pesquisar mais sobre meios de reafirmar suas prprias posies do que conseguem permanecer abertos para o aprofundamento crtico da prpria pesquisa original.

  • ^ . V I U l l . U /VKOlo>SA JK . - O

    2 .2 . C incia enquanto combate ao preconceito

    Apresenta-se a o primeiro e mais digno objetivo da cincia: o combate ao preconceito. O motor da cincia no foi a racionalidade, nem o assegura- mento, nem o controle, mas sim o combate ao preconceito e a tudo que ele obsta- culiza. At hoje, esse o grande regente da cincia.

    claro que a cincia pode gerar armadilhas para ela prpria, como visto no captulo anterior. Os conceitos e teorias elaborados na cincia no esto a salvo de se verterem ou se originarem de preconceitos. No raro, a cincia se encontra enredada em conceitos articulados nos processos histricos que lhe tolhem o movimento, encerrando-a em processos dogmticos. Ao problema no se apresentam solues simples nem finais, pois o prprio diagnstico que o identifica pode ser resultado do processo de uma estrutura de alienao, j que tambm se trata de um produto, histrico. Dito de outra maneira: se verdade que a cincia, atravs da elaborao dos procedimentos metodolgicos, ofereceu uma alternativa aos preconceitos vigentes nas sociedades totalitrias e opressoras, ela tambm pode produzir comportamentos irrefletidos que se tomam fonte de preconceitos.

    Todo preconceito oriundo de um estado de ignorncia. Contraditoria- mente, estes estados de ignorncia, principalmente no mbito social, so decorrentes de conhecimentos alcanados, por vezes, legitimamente, mas cujo custo de asseguramento os destacou do todo orgnico e dinmico do qual surgiram e poderiam ser reverificados. Nesse sentido, o asseguramento pode opor-se dinmica viva da pesquisa.

    Uma sociedade totalitria e opressora alcana seu estado de ignorncia pelo acmulo de costumes e hbitos j automatizados. A automao, a princpio, no ruim. Ela permite a otimizao de procedimentos para que novos instrumentos sejam desenvolvidos e um resultado mais amplo seja alcanado. O problema ocorre quando determinadas automaes passam a nos assegurar, de alguma forma, uma viso de mundo. Esse asseguramento que em geral franqueia toda ao do homem ocidental no mundo tambm gera a dependncia do mesmo. O asseguramento tem a tendncia de abrigar o medo de perd-lo. No o conhecimento que se teme perder, mas a segurana que se creditou a ele.

    J no campo da cincia, uma de suas prioridades a conquista do conhecimento objetivo. O conhecimento considerado objetivo quando inde

  • pende da subjetividade de um indivduo, de uma cultura e de uma poca para ter sua validade. A primeira e principal vantagem do cumprimento destes requisitos a possibilidade de acmulo do conhecimento. A cincia uma tarefa coletiva. Sem a possibilidade objetiva do acmulo de seu conhecimento, ela no poderia cumprir a extenso de suas exigncias, que requerem pesquisas que se desenvolvam por sculos - s vezes, por milnios - e um contingente de milhes de pesquisadores. Sem a possibilidade do acmulo de conhecimento, a cincia no possvel. Esse acmulo, por outro lado, exige a automao dos procedimentos conquistados para que a cincia possa progredir. Os pontos j verificados passam a ser pressupostos e assumidos como premissas nas pesquisas seguintes. Estes so os instrumentos bsicos que articulam o tipo de pensamento que ser identificado como cientfico. Sem ele no teramos sado da manufatura de instrumentos de pedra para o incio da colonizao interplanetria.

    Entretanto, tambm na cincia estes elementos de acmulo e automatizao tero como resultado um determinado asseguramento sobre algumas reas do conhecimento. Tambm na cincia o homem experimenta o conforto de um conhecimento quando sua polmica foi pacificada e, portanto, teme perder o que assegurou. Por essa razo, a cincia tambm acumula seus hbitos e costumes justamente pelo processo de automao, que em geral a alavanca de seu desenvolvimento, mas por meio do qual, ao mesmo tempo, se embaraa em processos viciados que teme verificar, a custa de abalar conhecimentos j assegurados.

    O acmulo e a automao na cincia tanto superam os preconceitos quanto os produzem. Se, em um primeiro momento, a cincia quer denunciar os preconceitos, ela deve comear pelos seus. Para que essa denncia seja efetiva, ela deve estar atenta hiptese de que mesmo essa denncia poder gerar em mdio prazo outros preconceitos. Talvez seja este o preo ;m se valer da fora de um acmulo to vasto de conhecimento, exigindo m processo mais massificado de automao face ao seu gigantismo. A ncia, para instaurar-se como cincia, ao invs de dogma ou doutrina, leve sempre estar atenta e lidar com estes aspectos elementares em toda ua articulao de conhecimento.

  • A rigor, todo trabalho cientfico vem conciliado de preconceitos (essa proposio ser melhor entendida aps a explicao seguir). A diferena do discurso da cincia para os outros discursos que ela deve levar isto primeiramente em considerao. Evidentemente, isso torna o discurso da cincia fraco perante os outros discursos. Aristteles (19901, p. 2-11, 980a- 982a2),

    1 O nmero indicado entre parnteses aps o nome de um autor de livro - no caso acima "1990" - indica a data da edio da obra utilizada pelos autores deste manual. Esse sistema, chamado de autor-data, ser explicado na terceira parte deste livro, que trata das normas da ABNT. Por ora, ressalvamos que a data indicada no tem necessariamente relao com o ano no qual a obra foi escrita, como o caso da obra de Aristteles referida aqui.

    2 Na maioria das obras da antiguidade encontra-se uma dificuldade adicional: a ausncia do texto originalmente escrito pelo autor. Por isso, diante de vrias verses existentes, costuma haver uma de aceitao mais comum que torna-se referncia para pesquisadores e tradutores. No caso de Aristteles, o texto de referncia mais aceito foi publicado por Immanuel Bekker (1 78 5 -1 87 1 ) em 1831. Assim, quando citamos um autor com o Aristteles, costume se reportar publicao de Bekker, referindo-se pgina, coluna e, se for o caso, linha de sua obra. Por exemplo, quando mencionamos 980a5, estamos nos referindo pgina "980", coluna "a", linha "5", do livro de Bekker.

  • preocupado com esta distino, traou disciplinas independentes para cada caso. Vejamos como:

    a) Os conhecimentos cientficos e epistmicos seriam da alada da cincia, tratados por procedimentos analticos e produzindo resultados inequvocos e apodctkos.

    b) Aos conhecimentos que no pudessem alcanar o mesmo estatuto de certeza que o anterior, mas que, de algum modo, permitissem uma metodologia de pesquisa, Aristteles os designou como dialticos, e pertencem ao campo da retrica.

    c) Os conhecimentos que so falaciosos induzem ao engano, mas podem se organizar tecnicamente permitindo sua instrumentalizao; Aristteles os tratou por conhecimentos sofsticos, figurando um catlogo de silogismos teis ao campo da erstica.

    O que apodctico?

    As proposies apodcticas so aquelas que no podem ser contestadas porque so resultados de uma demonstrao. Neste caso, as proposies resultam em uma concluso necessria e, portanto, no acidental.

    O que erstica?

    Dentre outros significados, ela designa genericamente a arte das discusses lgicas e sutis. Mais especificamente, indica a arte da discusso da argumentao capciosa e dos sofismas (raciocnios com aparncia de verdade).

    Com isso, o filsofo grego visava distinguir com suficincia o campo da cincia, para proteger o rigor que lhe fraglizava da fora dos efeitos de outros discursos sem o mesmo compromisso. Evidenciada a diferena entre o discurso da cincia e os outros discursos, props-se a primeira regulamentao tcnica para a legitimidade da pesquisa.

    Outros autores, anteriores a Aristteles, tinham como tema principal a verdade, a origem, o ser, o bem ou o comportamento especial de cada coisa em

  • particular. Aristteles privilegiou a questo do mtodo. Por isso sua filosofia conhecida como sistemtica: ela procura organizar e classificar as formas de conhecimento. O filsofo grego considerou e trabalhou exaustivamente sobre a maioria das reas de cincia pesquisadas pelos autores que o antecederam, com seus respectivos temas, mas em cada um dos temas em que trabalhou desenvolveu junto pesquisa a questo do mtodo necessrio para ela.

    Estabelecida a questo do mtodo para a cincia, jamais esta se desvenci- lharia daquele. Atravs do desenvolvimento do mtodo, a cincia tem seu mbito garantido e legitimado. Por exemplo: o discurso cientfico no precisa demonstrar mais fora que o discurso poltico, basta para ele operar dentro de seus parmetros pesquisados e explicitados. O discurso poltico pode at mesmo se tornar um objeto de estudo cientfico, como, alis, demonstra a cincia poltica. At mesmo a cincia pode se tomar objeto de estudo de si mesma, como ocorre na epistemologia. O mtodo, a partir de parmetros previamente elaborados, permite que tudo possa de tornar objeto de estudo, at ele prprio, como ocorre na metodologia.

    Assim, o mtodo libera a cincia para seu prprio desenvolvimento. O comportamento bsico da cincia est estabelecido, o que em tese a liberta dos discursos vagos, dogmticos ou to somente tcnicos e pragmticos. Por dog- matismo pode-se, por ora, compreender tudo que j se encontra estabelecido e que limita uma reviso crtica. A cincia, ao contrrio, est sempre sujeita verificao. No importa o patamar conquistado, ele nunca final. Esta a caracterstica mais forte da cincia, que ela constituiu ao se posicionar contra todo o tipo de preconceito, mas que a toma indeterminada quanto a um fim.

    Pela mesma razo, a cincia se ope tambm a toda apologia prtica em seu sentido absoluto, e ao funcionalismo e utilitarismo ingnuo decorrente disto; pois cincia todo conhecimento interessa, mesmo que ele no tenha nenhuma utilidade prtica. Se no fosse assim, a cincia estaria limitada pelo preconceito de que somente deve ser pesquisado aquilo que possa ter aplicabilidade. A convenincia de se pesquisar apenas o que til uma questo poltica, no epistemolgica.

    Todo final de pesquisa deve ser considerado como um final episdico. Toda pesquisa tem um programa, e, embora este programa tenha comeo, meio e fim, no significa que ele no possa ser revisado. Por essa razo a pesquisa sempre permanece aberta. Ela se conclui apenas dentro do estabelecimento de

  • um programa, que deve ter unidade e coerncia para que seus resultados tenham valor cientfico e possam ser levados em considerao por outras pesquisas. Porque a cincia permanece aberta, pode se desenvolver indeterminadamente, e, como esta abertura nunca indicou a possibilidade de um fechamento absoluto, especula-se que as possibilidades da cincia so ilimitadas. Isto o mesmo que dizer que a cincia est condenada sua prpria liberdade.

    2 .3 . Liberdade c o m o c o n d i o fundamental da cincia

    Recapitulando o que se apresentou anteriormente, at mesmo a racionalidade, o controle e a segurana so derivados do objetivo inicial da cincia, que o de se opor a todo tipo de preconceito, ainda que sejam os preconceitos gerados por ela. Evidentemente trata-se de uma tarefa infinita, pois todo discurso tende a dogmatizar-se logo depois de enunciado, como este. No se deve considerar, em funo disso, que a cincia se constitua como uma impossibilidade. Muito diferente disso, esse problema concernente sua constituio no sintoma de uma falha, mas de um fardo que se verte em sua mais digna capacidade. Este fardo o fardo da liberdade.

    A liberdade exige, para ser coerente, a preservao da infinita possibilidade de toda resoluo ser verificada, reformulada e pesquisada de outra forma. A liberdade um fardo porque ela no promete estabilidade nem segurana. S o dogma pode prometer algo assim, mas sempre levando ao risco de ser falacioso. A cincia, neste sentido, no se ope ao dogma, mas reclama o direito de estud-lo e descrev-lo. Como no promete nenhuma estabilidade, mas procura estabelecer as condies dinmicas para que o conhecimento exista e possa ser transmitido, alguns ilustradores, na Idade Mdia, representaram este estatuto de liberdade da cincia pela figura do Urobros.

  • O Urobros, a serpente que devora a si mesma pela prpria cauda, pode ser interpretado como smbolo dos paradoxos ou dos processos infecundos, que no conduzem a lugar nenhum. O smbolo, no entanto, recorrente em outras culturas alm da nossa, tambm foi interpretado como a estrutura dos processos profundos que fundamentam prticas cientficas de nveis variados.

    O elemento comum a toda prtica cientfica representado pelo Urobros o compromisso da cincia em sempre procurar explicitar os seus limites. O discurso cientfico o nico discurso que leva em considerao o problema da sua prpria possibilidade. Por essa razo que a cincia necessita de um mtodo cientfico. Um mtodo cientfico s faz sentido quando se mantm a possibilidade da prpria cincia em questo.

    Esta condio da cincia o preo de sua liberdade. Para ser capaz dessa condio, o aluno deve pagar o preo, que muitas vezes ser manifesto por algum estado psicolgico de sofrimento, como ansiedade e angstia. Entretanto, passado por esse estado algumas vezes, e permanecendo nele, o aluno no encontrar dificuldades para suport-lo com o passar do tempo. Para que esta capacidade seja desenvolvida, o aluno no deve recear o estado de desentendimento, ao contrrio, deve procur-lo. A desorientao pertence no apenas inexperincia do aluno, mas ao processo interno que rege toda pesquisa efetiva. O novo e o indito cobram de ns o sacrifcio de nossas referncias e seguranas. Quem no for capaz deste sacrifcio, no ingressar no estatuto necessrio para o exerccio da pesquisa.

    A pesquisa to-somente no promete concluso. Anos podem ser consumidos at que se encontre um caminho vivel para o discurso cientfico. Os critrios de cientificidade sero sumariamente expostos neste manual. Eles no so absolutos, como j foi indicado, mas variam conforme o mtodo da cincia - e um discurso cientfico no se estabelece sem eles. Antes, contudo, de se chegar ao manuseio desses critrios, o aluno deve contar com a instituio de ensino para inici-lo nesse mbito. Mais do que isso, deve confiar nela. O aluno que no experimentar o sacrifcio de suas zonas de conforto, no poder se valer dessa ajuda. No se trata, contudo, de abandonar seu senso crtico, mas de desenvolv-lo ainda mais, para que as prprias certezas possam ser reveladas e postas em discusso.

    Por outro lado, no se trata de identificar posies e procurar meios mais efetivos de defend-las. Esta uma prtica comum sofistica, como foi expli

  • cado quando se apresentou a distino de Aristteles para os tipos de conhecimento. importante comprometer-se com posies, mas o compromisso no pode obliterar a pesquisa. Ainda que se tenha uma posio, outras oposi- es devem ser estudas com afinco correspondente. No se deve negligenciar esse tipo de aprofundamento, para que a posio assumida seja realmente um ato de escolha, e no uma influncia to-somente. irresistvel nos localizarmos no mundo, nos sentirmos integrados e acolhidos. A cincia no exige o exlio desse estar-no-mundo, A sua prtica no uma diretiva para a vida. A sua prtica especfica e local. Sacrificam-se as orientaes no suficientemente explicitadas no mbito da pesquisa, mas no no mbito da vida. Deixando clara esta distino, o aluno est suficientemente informado onde deve se efetuar o sacrifcio, para que o estudo direcionado pesquisa tenha incio.

    Alcanada a disposio correta, o prximo passo implica nas possibilidades de orientao frente ao estatuto de desorientao inicial da pesquisa.

    3 . A ORIENTAO PARA O PROCESSO DE PESQUISA

    At aqui, foi apresentado de modo geral o mbito da cincia a partir de algumas questes pontuais que consideramos de relevncia no quadro de alunos que tm ingressado no curso de direito nos ltimos anos, questes sobre as quais os alunos no trazem a mais remota informao, mas devem surgir no seu mbito de discusso. A orientao para a pesquisa somente ser vivel ao aluno que alcanou esse estatuto pelo sacrifcio de suas zonas de conforto. Nesse estado, o aluno pode receber orientaes.

    No caso da orientao para o seu Trabalho de Concluso de Curso (TCC), ele deve confiar no seu orientador. Tal como qualquer outro ofcio, uma maneira segura de aprender pelo exemplo de quem j executa certo ofcio. Entretanto, isto ainda muito pouco. Quando chegado o tempo da orientao para o TCC, esperado que o aluno j tenha adquirido alguns instrumentos tcnicos de estudo. Porm, comum encontrarmos o contrrio: alunos absolutamente despreparados, que sequer ascenderam ao estado de desorientao necessrio para o incio da caminhada. O aluno procura, na maioria dos casos, encaixar ou mesmo reduzir o contedo trabalhado pelas diversas disciplinas s suas prprias referncias. O aluno sequer suspeita da existncia de algo indito frente s suas concepes estabelecidas, Quem no se desorienta,

  • _ . _ _ . i JK. * 0 3

    no pode ser orientado. Quem no se perde, no pode se encontrar. Alguns caminhos devem ser perdidos para que o curso realmente represente uma nova caminhada, uma caminhada diversa do que se apresentou at ento. Se for para permanecer o mesmo que se era antes da faculdade, detentor das mesmas referncias, para que ingressar em um curso universitrio? Para que fazer uma pesquisa?

    A partir deste ponto do manual, sero sugeridos procedimentos diretivos para a instrumentao de uma tcnica de estudo.

    3 .1 . Primeiros passos para lidar c o m u m texto

    Conforme mencionamos anteriormente, o estatuto de desorientao deve ser levado em conta durante cada etapa do estudo, sempre distinguindo com a maior preciso possvel os contedos dominados em relao aos apenas indicados.

    No caso do curso de direito, isto se inicia com o confronto do texto. O aspirante ao mundo jurdico deve saber que sua vida ser daqui por diante ocupada pela prtica da leitura. Da mesma maneira que o marceneiro passa a maior parte de sua vida entre suas ferramentas, o jurista conviver quase exclusivamente com livros. E no se trata de cdigos ou consolidaes de legislaes, geralmente os nicos tipos de publicaes que o jurista costuma colecionar em quantidade.

    A formao do jurista implica um conhecimento amplo no s de sociedade, mas de civilizao e cultura; implica em estar imerso na polmica cientfica acerca do ser humano e possuir os instrumentos para operar no campo da filosofia, e, no caso especfico do assunto que estamos tratando nesta obra, particularmente a filosofia da cincia, porque a questo do mtodo uma constante para o jurista devidamente formado.

    Essa formao integral s ser possvel se o aluno for capaz de ter acesso a pesquisas e a seus textos, a partir dos quais se consolidaram os conceitos e objetos que aliceram os debates no mbito jurdico. Mesmo que de carter meramente escolar, vale a pena indicar algumas premissas fundamentais para todo estudante de direito:

    a) a aula visa apenas iniciar o aluno na leitura, no encerr-la;b) um resumo no substitui uma obra;

  • um com entrio de uma obra no a substitui;d) apostilas e esquemas, como este manual, so instrumentos que

    acompanham a leitura das obras, mas no ocupam o lugar delas.Sendo nosso tempo finito, nada passa por uma negligncia efmera de

    pois que se optou pela formao em direito. E evidente que no podemos estudar o tempo todo, o que tambm implica ser, no que tange ao conhecimento, sempre carente de alguma coisa. Entretanto, a cada momento em que a escolha de ocupao do tempo no recair na leitura, o jurista toma parte em sua carncia de formao: o mesmo ocorre em cada momento em que a leitura escolhida for com o mero objetivo de entreter. Evidentemente que opes nessa direo so compreensveis, e at, conforme o caso, necessrias, mas no deixam de ser negligncias por essa razo. Seremos sempre carentes em muitos conhecimentos, mas devemos tomar parte ativa desse processo, escolhendo aquilo em seremos carentes e aquilo em que nos aprofundaremos. aqui que se iniciam as implicaes ticas do estudo.

    Na maioria dos casos, no entanto, a negligncia no ocorre por livre arbtrio do aluno. Muitos alunos, hoje, so incapazes de ler. Aqueles que lem, acompanham quando muito uma matria de jornal ou um sucesso editorial. E quando conseguem ir alm, uma leitura com vis crtico quase invivel. O leitor mdio, no s no Brasil, mas no mundo, no consegue ir alm das exigncias de compreenso de um texto de auto-ajuda. A arte e a cincia no podem ter sequer sua existncia atestada por esses leitores, que, contraditoriamente, julgam conhecer ambas to bem.

    O plano que ser seguido abordar o texto e seu contedo a partir do contexto em que ele se insere, partindo, inicialmente, da materialidade do prprio discurso. Esse plano implica desde a diferenciao da hierarquia de textos sobre determinado assunto at a distino pormenorizada dos elementos analticos e hermenuticos na abordagem de todo texto.

    3 .2 , C o m o abordar u m texto

    Nenhuma pesquisa se desenvolve a partir do nada ou de um ponto absolutamente original. Mesmo uma profunda inovao cientfica leva em considerao o que foi renovado.

    Na maioria dos casos, a pesquisa no curso de direito se processa a partir e atravs dos textos. Nenhum texto que o aluno confrontar possui valor ab

  • soluto, em conformidade com o que j se afirmou sobre a condio fundamental da cincia, que a liberdade. Diferente disso, cada texto tem seu contexto. Ele se insere em uma tradio em um tempo histrico determinado, leva em conta algumas posies e alguns trabalhos especficos, perante os quais elabora, mesmo no explicitamente, uma pergunta que serve de linha condu- tora para o texto. Por essa razo, um texto no pode ser tomado de modo absoluto. Um engano comum ao estudante crer que o texto por si s deve cumprir a tarefa de informar o aluno absolutamente - partindo do princpio de que o aluno seja capaz de l-lo. Por essa crena, delega-se ao texto toda a autonomia, condenando o aluno a uma posio passiva em que s resta esperar que o texto faa tudo por ele. Muito diferente disso, o texto deve ser operado, trabalhado em todos os sentidos, o que no quer dizer que o texto, ou o que ele diz, seja totalmente fruto da interpretao do aluno. Esta outra crena, muitas vezes sequer formulada, que costuma acompanhar o aluno no ingresso na universidade. Perante a dificuldade no confronto do texto, o estudante aposta, de modo irrefletido e reativo, que as suas referncias sero capazes de extrair o significado latente do texto. Por essa crena, delega-se ao aluno toda a autonomia, condenando o texto a uma posio passiva em que nenhuma capacidade de significao esperada dele. Muito diferente disso, o texto um dado objetivo, e no pode ser interpretado indeterminadamente.

    Assim, o aluno, por sua vez, costuma se encontrar perdido entre estas duas possibilidades: ou o texto deve ser capaz de inform-lo totalmente - e como no o faz, no merece considerao; ou o que o aluno j sabe mais que suficiente para significar o texto - e, como no basta, acaba desistindo de investir em si como intrprete. Essa situao pode ser representada da seguinte maneira:

    Postura com o texto Crena do aluno Conseqncia

    SuperestimaoO texto ser capaz de inform-lo totalm ente

    Com o isso no ocorre, o a luno acredita que o texto no merece sua ateno.

    SubestimaoO aluno j sabe mais que o suficiente sobre o texto

    O texto n lo ganha ateno do aluno, pois o que ele pensa (preconceito) sobre o texto j suficiente.

  • Essas duas posturas ou crenas referem-se a duas carncias instrumentais costumeiras do aluno. O aluno porta tanto uma carncia analtica como hermenutica na lida com o texto (a diferena entre estes dois termos ser explicada adiante). Essa carncia, em primeiro lugar, se d em funo de esses dois comportamentos se misturarem no ato de representao. O programa de anlise textual na disciplina de lngua portuguesa, mesmo no ensino fundamental, mas, principalmente, no ensino mdio, deveria ter dado conta da distino desses processos (que sero indicados logo adiante).

    As duas mencionadas carncias do aluno encontram um espelhamento na prpria constituio material do texto. Como foi indicado, o texto no existe fora de seu contexto, que pode ser muito amplo e complexo. Mas, alm disso, o texto afirma objetivamente algumas coisas que independem da interpretao que se d a elas,

    No primeiro caso, quando o aluno no capaz de contextualizar o texto, acaba, sem perceber, substituindo o contexto do texto pelas suas prprias referncias, exigindo que o texto seja porta-voz de sua viso de mundo pessoal com seus preconceitos correspondentes. Nesse caso, o aluno fora o texto a enunciar suas referncias particulares, incapacitando-se de acessar o que enuncia o prprio texto objetivamente,

    No segundo caso, levando em considerao a capacidade objetiva do texto, o aluno tende a esperar que ele o informe em sentido absoluto. No se trata de uma falha na capacidade informativa do texto, mas sim de uma carncia analtica em descrever os contedos objetivos que esto concreta- mente no texto.

    Essas duas carncias s se deixam ver para o prprio aluno quando o aluno confrontado com os textos e com suas dificuldades. Partindo-se dessas referncias, as prticas pedaggicas que visam facilitar o contedo de uma disciplina para o aluno so extremamente nocivas, visto retirarem do aluno o instrumento pelo qual se daria seu aprendizado concreto, que a dificuldade.

    A dificuldade pode revelar ao prprio aluno as carncias que ele porta de um modo prtico e vivenciaL Nesse sentido, a dificuldade anloga ao estado de angstia oriundo do desentendimento necessrio para o avano significativo da pesquisa. Facilitar o contedo de uma disciplina atravs de tcnicas pedaggicas supor coisas perigosas. supor, por exemplo, que o texto de pesquisa apenas um meio de transmisso de contedo (ou seja, apenas um

  • instrumento pedaggico), e que o contedo transmitido existe separado do meio que o transmite, embora precise incorporar em algum meio, transformando-o em mero veculo, para ser transmitido. Este um pressuposto que parte de uma viso excessivamente metafsica da cincia, e at mesmo mstica, ao considerar perene a existncia do contedo sem maior reflexo. O contedo no pode se assemelhar a um vrus para ser transmitido desta ou daquela maneira, e a prtica do ensino no se resume a uma guerra bacteriolgica que visa melhor dissemin-lo.

    Por essas razes, no de se espantar que o aluno se encontre em posio passiva com relao ao estudo. A partir das propostas de facilitao do ensino, o aluno adoece da educao. Ao contrrio disso, o aluno deve ser instrumentalizado para desenvolver uma autonomia verdadeira com relao ao texto. Deve, portanto, ser capaz de abordar o texto formalmente, e no s como veculo que est ora possudo por um contedo; deve entender suas razes formais, ser capaz de decodific-las e operar sobre elas. O aluno que conquista autonomia sobre o estudo constri o sentido do texto com o texto, sem necessitar roubar esse sentido das prprias referncias.

    A construo da autonomia do aluno se faz por dois caminhos conjuntos: o caminho do contexto em que o texto se insere (via hermenutica); o caminho da estrutura por meio do qual o texto construdo (via analtica).

    O instrumental hermenutico do aluno deve ser mais aplicado s relaes contextuais do texto, enquanto que o instrumental analtico deve ser exercido mais sobre a estrutura textual. Ressalva-se, contudo, que a separao entre processos hermenuticos e analticos na prtica do estudo tem fim exclusivamente didtico. O objetivo organizar a construo do sentido atravs do estudo a partir de uma proposta tcnica. Essa proposta, evidentemente, no o nico caminho para instrumentalizar a prtica do estudo, mas apenas o caminho escolhido neste manual.

    Esses dois caminhos sero expostos a seguir. Primeiramente, ser abordado o texto em seu aspecto estrutural (anlise do texto), para se apresentar a instrumentao analtica que desta abordagem decorre.

    Em seguida, sero abordados os aspectos contextuais em que o texto se insere, investigando os instrumentos hermenuticos deles decorrentes (interpretao do texto).

  • 3 .3 . C o m o analisar u m texto

    3.3 .1 . C onsideraes gerais

    Anlise a descrio de um objeto a partir de si mesmo e de suas partes componentes. No caso deste manual, ser estudada a anlise de textos cientficos, que tem como processo oposto a interpretao, no que tange abordagem tcnica de seu contedo.

    A anlise visa descrever, evidenciar e organizar as partes de um texto. Nesse sentido, ela pode ser entendida como um elaborado processo de descrio. No necessrio recorrer a nada alm do texto para realizar sua anlise. Ainda que um texto no seja entendido, ele pode ser analisado.

    Atravs da anlise evidenciamos o comportamento do prprio texto, o que ele faz e o que deixa de realizar. A caracterstica mais distintiva da anlise que ela no porta nada de subjetivo. Tudo que descrito no texto independentemente da interpretao pode ser considerado analtico,

    O que extrado primeiramente do texto atravs da anlise sua estrutura, no o seu contedo; trata-se mais de como se afirma e onde se afirma ao invs de o que se afirma.

    Anlise pode assinalar tanto o que afirmado no texto quanto o que no afirmado ou sequer considerado por ele, o que efetivamente realiza e a que no se presta. Desse modo possvel a elaborao de um mapa no qual esses momentos pontuais so localizados, indicando com isso a estratgia do texto para a realizao de seu projeto.

    Por essas razes, a anlise permite a descrio do texto, mas no seu entendimento. Embora a anse no vise primeiramente ao entendimento do texto, o entendimento no alcanado sem a anlise. A anlise descreve o comportamento do texto. Ainda que no se entenda com suficiente clareza um conceito, sempre se pode assinalar a definio que um determinado texto traz sobre ele. A localizao destas definies e dos prprios conceitos dentro de um texto depende da capacidade de descrev-lo, de analis-lo.

    3.3 .2 . N veis de compreenso d o texto

    So trs os nveis de compreenso que devem ser acumulados e por eles ascendidos para a construo do entendimento de um texto. Portanto, para entendermos uma obra, preciso subir cada um desses degraus.

  • ...... v.. i timuil/ry vJILV / Vi* L/MVDVA>A JK. O Zf

    Primeiro nvel: anlise do texto. O objetivo da anlise do texto, cujo funcionamento ser apresentado a seguir, explicitar objetivamente tudo que o texto afirma, explica e conceitua, bem como a maneira como ele realiza cada um desses processos; sendo assim, sua finalidade tambm evidenciar as estratgias elaboradas pelo discurso, o modo como se conforma a cadeia argu- mentativa, o objetivo e a concluso do trabalho. Esse trabalho o de descrio. E preciso descrever o comportamento do texto e o que ele realiza ou no realiza efetivamente.

    Figura 2 - Anlise do texto

    Os conceitos devem ser extrados do texto e correlacionados entre si conforme a indicao do prprio texto, evidenciando suas relaes de oposio, com plem ento, dependncia, instrum entalidade, etc.

    Textoanalisado

    1..1 a presente obra estabelece um duplo objetivo: estudar o pensamento jurdico do ftsoo do Oireito Umberto Ceroni e sua insero no universo marxist-3; dotar a filosofia desse penwdor como ponto de referncia par* urru anlise do conceito de cidadania sua relao com o modelo poltico-econmico nstitufdo pelo ^cventodo liberalismo.Assim, a panir das contribuies tericas marxistas, especialmente as encontradas nas obras de Cerroni, este livro procura responder i seguinte iodagao: em que medida a concepo de cidadania preconizada na modernidade petos tericos liberais lirnta as possibilidade*de expanso e eetrvaJo da democracia?

    O prim eiro sentido do texto deve ser extrado dele mesmo atravs da anlise.

    Cofljceito

    Conceito

    Segundo nvel: interpretao do texto. Neste processo entram em considerao elementos exteriores ao texto. Trata-se aqui de olhar para o texto dentro de um mbito maior, o contexto no qual se insere. E obrigatrio que a interpretao do texto ocorra aps a anlise do texto - nunca antes ou simultaneamente. E preciso antes conhecer objetivamente a posio que um determinado texto assume, para, depois, considerar essa posio com relao a outras posies. Assim ser identificado o lugar de um texto dentro de uma discusso maior, que o antecede e, em alguns casos, o ultrapassa, alm de localizar

  • para alm do objetivo declarado no texto a pergunta que o motivou, mas nem sempre se encontra enunciada.

  • Terceiro nvel: construo do entendimento. De posse dos resultados analticos e hermenuticos do texto, o pesquisador agora pode fazer opes de encaminhamento de relaes, comparaes, confrontos e propor, para alm de tudo que foi dito, consideraes inditas sobre o tema abordado pelo texto. Somente agora o pesquisador estar autorizado a faz-lo, porque conhece o texto e os lugares que ele ocupa na arquitetura da cincia.

    importante destacar o perigo de se negligenciar as etapas de anlise e interpretao do texto:

    Sem a anlise, o texto no chegou a ser explicitado suficientemente para ser conhecido. Com sua ausncia ou precria realizao, geralmente no se fala sobre o texto, mas sobre impresses equivocadas sobre ele. Um trabalho concludo dessa forma no alcana os critrios suficientes de cientificidade para ser aceito pela academia.

    Sem a interpretao, o texto no chegou a ser considerado suficientemente dentro do debate cientfico para que se compreenda o mbito da pesquisa. Com sua ausncia ou precria realizao, no se alcana o patamar em que a questo pesquisada se encontra, correndo-se o risco de uma repetio de resultado ou da recorrncia de um equvoco j superado. Um trabalho concludo dessa forma pode alcanar os critrios de cientificidade exigidos pela academia, mas arrisca-se em no produzir um trabalho pertinente e que signifique alguma contribuio para o mbito pesquisado.

    Os trabalhos de anlise e interpretao efetivamente cumpridos garantem a insero do aluno no debate cientfico do tema pesquisado. Eles no garantem, contudo, que uma hiptese ser confirmada nem que a prpria pesquisa seja concluda. Grosseiramente comparando, seria como imaginar que para um jogador profissional seria suficiente o alcance de um determinado nvel para garantir a vitria de todas as partidas que jogasse.

    O objetivo da formao metodolgica tornar o aluno capaz de fazer pesquisas cientficas, e no de confirmar todas as suas hipteses, nem de efetivar todos os seus projetos de pesquisas. H projetos de pesquisas que, depois de planejados, se mostram impossveis de serem realizados. Nem todo tema encontra material suficiente para permitir uma pesquisa cientfica. Por vezes, o tema no pertence sequer ao campo cientfico. Todas essas situaes fazem parte do cotidiano de quem se prope a fazer pesquisas cientficas.

  • O que uma hiptese cientfica?

    Sobre o termo hiptese no campo das pesquisas cientficas, "hiptese" pode ser definido como: "suposio que se procura demonstrar por meio de um mtodo adequado". A hiptese uma resposta que se supe adequada para um determinado problema, sendo a pesquisa o processo para demonstrar a existncia ou no dessa adequao.

    3.3 .3 . Procedimentos para anlise d o texto

    O processo de pesquisa se inicia pela mesma tcnica da prtica de estudo: a anlise de texto. A tcnica aqui sugerida para extrair os elementos analticos de um texto se efetua por cinco etapas:

    a) Tabela de repeties;b) Hierarquia hipottica de conceitos;c) Possibilidades de relaes;d) Partes compositoras do texto;e) Esquemas derivados.

    Para melhor evidenciar o instrumento analtico na abordagem do texto, pede-se imaginar um texto do qual no se possua nenhuma referncia. Para esse exerccio, importante supor um texto do qual no se tenha nem uma ideia geral, sequer o menor indicativo do que se trate. Alm disso, nenhum conceito trabalhado neste texto hipottico do conhecimento do leitor, nem num sentido geral ou superficial.

    Perante essa dificuldade, tendo apenas o prprio texto por recurso, a anlise se revela um efetivo instrumento para essas situaes. Como j foi afirmado, ainda que no seja possvel o entendimento de um texto, possvel descrev-lo.

    O procedimento de anlise, que ser explicado adiante, pode ser resumido da seguinte maneira: primeiramente, identificar os termos e as expresses que se repetem no texto, um procedimento bem simples. Em seguida, um

  • , , u v ILi u r v [VI. A K B U 5 A JK . ' .

    elenco dessas repeties pode sugerir elementos para o levantamento de hipteses acerca da relevncia de uns sobre os outros. O que passa a ser investigado ento so a centralidade e a importncia de um conceito sobre os demais, mas, tambm, as possveis relaes entre eles. Estas relaes, a ordem e o modo como se apresentam e se articulam, indicam a estrutura do discurso sobre a qual o texto se organiza. Tratando-se de um texto em formato cientfico, essa organizao dever ser o eco de necessidade do objetivo enunciado da pesquisa. Por ltimo, detendo o resultado de todos estes procedimentos, possvel ensaiar esquemas e organogramas como sntese formal do discurso da pesquisa. Certamente os primeiros esquemas sero equivocados, mas a contnua verificao dos esquemas ensaiados com a releitura do texto dar ao estudante posse de sua unidade formal.

    Todos esses procedimentos, ora resumidos, so explicados em detalhes a seguir.

    a) T abela de repeties e a procura pela pergunta

    A tabela de repeties tem por objetivo preparar uma estimativa dos principais conceitos do texto e identificar em que estado se encontram nele. Em primeiro lugar, devem-se numerar os pargrafos editorados no texto ( lpis, no incio de cada um deles. Evidentemente, isso jamais deve ser feito em livros retirados de bibliotecas ou acervos pblicos). Isto essencial para a localizao dos conceitos no texto. Recomenda-se para cada texto um pequeno caderno de 50 folhas, no caso de se tratar de um artigo de no mais que 20 ou 30 pargrafos. Este procedimento pode se mostrar pouco prtico em textos longos, como em livros. Neste caso, sugere-se separar o livro em partes menores para que este tipo de procedimento seja vantajoso. Nada impede, tambm, que o aluno, a partir destas sugestes, elabore procedimentos novos conforme as necessidades que se apresentem.

    Numerados os pargrafos, devem ser numeradas as primeiras pginas do caderno com o nmero de pargrafos correspondentes. Por exemplo: se o seu texto tem 20 pargrafos, devem ser numeradas as 20 primeiras pginas do caderno, de modo que cada pgina do caderno corresponda a um pargrafo do livro. Depois disso se inicia o processo de releitura. A primeira leitura de um texto, principalmente para aqueles que tm dificuldade com esse exerccio, deve ser feita de uma s vez, sem retornar ou se deter em partes quando se

  • considerar que perdeu a concentrao. Posteriormente, nas primeiras releitu- ras, pode-se ler em partes, de maneira mais detida.

    A nica tarefa nesta etapa do procedimento de estudo encontrar os termos ou expresses que possam ser candidatos a conceitos e se repetem no texto. Isto s pode ser efetivado com maior aproveitamento atravs da releitu- ra. Por exemplo: um termo no primeiro pargrafo que se repetir no vigsimo dificilmente vai ser recordado em uma primeira leitura. No entanto, algumas releituras so suficientes para perceber a repetio.

    No caderno de pginas numeradas, cada termo que se repete no texto deve ser anotado na pgina correspondente ao pargrafo onde foi encontrado. Por exemplo: caso um termo do pargrafo 3 seja repetido no pargrafo 9, deve-se anotar o termo na pgina do caderno numerada com o 3 e na pgina do caderno numerada com o 9 (lembre-se: cada pgina do caderno corresponde a um pargrafo do texto).

    Espera-se que os termos mais significativos para o texto tenham mais repeties e, portanto, sejam encontrados em mais pargrafos e, consequentemente, anotados em mais pginas no caderno,

    Quando o termo for repetido apenas em um pargrafo, deve-se anot-lo uma nica vez na pgina de mesmo nmero. Repeties em um nico pargrafo so menos significativas que em pargrafos diferentes, ainda mais se distantes, Esta distncia significa que o termo retomado constantemente.

    A cada releitura novas repeties so percebidas e devem ser anotadas. Esse processo pode se seguir indeterminadamente, e o aluno deve interromp-lo quando considerar que detm um elenco significativo de termos que podem se revelar conceitos centrais no texto.

    O passo seguinte elaborar uma tabela de repeties. Isso significa quantificar o nmero de vezes que um termo se repete no texto.

    Em uma nova pgina do caderno, crie duas colunas: na primeira escreva cada termo anotado no caderno, no repita os termos, escreva-os apenas uma vez; na outra coluna, ao lado, escreva o nmero de vezes que o termo foi anotado no caderno ( s contar o nmero de pginas em que o termo apareceu). Faa esta tabela logo aps a ltima pgina numerada onde foram anotados os termos repetidos. Depois identifique o grupo de termos que mais se repetem entre todos. Neste grupo talvez sejam encontrados potencialmente os conceitos principais do texto.

  • Quando se conclui a tabela de repeties alcanado um novo patamar com relao ao texto. Agora o texto no mais um amontoado de palavras. H palavras que se destacam com relao a outras. Existem termos que podem ser mais decisivos para o texto do que outros. A partir da elaborao da tabela de repeties a relao do texto nunca mais ser a mesma porque o leitor executa sua leitura de posse de uma pergunta. Um texto, por mais que ele seja expressivo, s responde o que lhe perguntado. E preciso inquirir o texto para que seu discurso ganhe significado, ganhe sentido. Entretanto, no pode ser qualquer pergunta. necessria uma pergunta que parta do texto. Perguntar pela definio dos termos que mais se repetem e em quais condies eles se apresentam uma maneira segura de no elaborar questes inadequadas para o mbito do texto. E isso possvel, neste caso, graas elaborao de uma tabela de repeties.

    Recapitulando, os passos para a elaborao da tabela de repetio so:a) Numerao dos pargrafos do texto,b) Numerao das pginas do caderno para cada pargrafo corres

    pondente.c) Anotar as palavras repetidas na pgina do caderno cujo nmero

    corresponde ao pargrafo no qual elas se encontram.d) Elaborar uma tabela que mostre a incidncia de repetio por

    pargrafo de cada termo.e) Apurar quais termos tm maior repetio.f) Propor a hiptese dos conceitos principais (procedimento que

    ser mais bem explicado adiante).Entretanto, este procedimento aplica-se a textos em que nenhuma refe

    rncia possvel. Muitos textos no se encontram neste grau de inacessibilidade ao aluno para que se justifique um procedimento de alcance to preambular. Entretanto, o aluno deve estar atento e verificar se sua compreenso do texto autntica ou deformante, tendo como instrumento para isso sua prpria conduo durante as aulas.

    Os recursos aqui sugeridos foram desenvolvidos a partir de grandes dificuldades, em que grupos de alunos no dispunham de nenhuma condio de trabalho com o texto. O mais importante nessa fase do processo abandonar a expectativa de entendimento. As tcnicas aqui sugeridas implicam em gran

  • de parte procedimentos mecnicos em seu incio. Nenhum entendimento advir deies muito cedo. Se o aluno passar a verificar o avano de seu entendimento em cada etapa do processo, no que concerne anlise, ele pode perder- se em uma progressiva ansiedade, resultando num complicador efetivo para o seu desenvolvimento.

    Perante os termos reunidos, o aluno pode agora question-los, pois sugerido como hiptese que o maior ndice de repetio por pargrafo incida em conceitos mais centrais para o texto. possvel que isso se verifique parcialmente descrevendo a atuao de cada termo no texto e sua relao com os outros.

    b) H ierarquia hipo ttic a de co nceito s

    A ttulo de hiptese, o aluno se deixar guiar pelo ndice de repetio para arriscar um palpite sobre quais so os conceitos principais, ou aqueles com os quais o texto conta mais efetivamente para cumprir seus objetivos.

    O levantamento dessa hiptese permite um primeiro exerccio de verificao que, nessa etapa do processo, deve realizar-se anaticamente. Ao sugerir a importncia de alguns conceitos com relao a outros (ao estabelecer uma hierarquia), possvel retornar ao texto tendo essa pergunta por guia (ou seja, retomar tendo uma hiptese).

    Diferente das leituras anteriores, agora o texto ser confrontado tendo em vista o comportamento de alguns termos especficos. Talvez a primeira e mais importante pergunta que pode ser feita :

    Determinado termo (presente na lista de repetio) explicitamente definido no texto t

    O importante aqui no o entendimento do conceito do termo. Ainda no se cobra nenhum entendimento do aluno. O aluno deve verificar se o texto traz a definio do termo de maneira explcita, Se o texto no traz a definio de um conceito, sabemos que a pesquisa em questo pressupe que o leitor j esteja informado sobre essa definio. Em nossa organizao bibliogrfica, sabemos, ao final de um longo processo de pesquisa, em quais materiais certos conceitos encontram uma definio clara e em quais as definies so apenas pressupostas. Na construo de nossa prpria pesquisa, devemos declarar de que autores e mtodos a definio de certos conceitos foi tomada, o que se torna irrealizvel se no sabemos localiz-los e identific-los.

  • Sobre essa questo, oportuno fazer uma observao: um erro muito comum (e altamente comprometedor) nos trabalhos acadmicos (especialmente de graduao) justamente no fazer constar essa declarao, na qual se torna explcita a origem autoral e metodolgica das definies utilizadas. Isso pode levar a dois resultados indesejveis: tomar emprestada uma determina definio sem atribuir-lhe a devida autoria (problema tico); misturar definies incompatveis, de autores cujas ideias e mtodos no so concili- veis entre si (problema epistemolgico). Imagine como o leitor ficaria confuso ao ler um trabalho de curso que usasse as definies de Direito de Hans Kelsen, Alysson Mascaro e Miguel Reale (totalmente diferentes entre si) sem esclarecer, em cada momento em que a definio aparece, a quais autores cada definio pertence.

    Feita essa observao, voltemos ao processo de anlise do texto.Caso a resposta primeira pergunta seja afirmativa (Determinado termo

    explicitamente definido no texto), a segunda pergunta pode ser:A definio do termo usa em sua redao outros termos

    que se encontram na tabela de repetio?Nada mais natural que na definio de um conceito surjam outros

    conceitos no definidos. Este fenmeno, alis, no apenas um dos grandes complicadores do estudo, mas uma das questes principais da cultura. O dicionrio o exemplo mais concreto dessa questo. Um dicionrio mono- lngue serve para definir e explicar o uso de uma palavra em determinado idioma. Entretanto, ele procura cumprir essa tarefa com as mesmas palavras que tem por misso ensinar. Figura um alicate que tem por objetivo construir a si mesmo. Um dicionrio acaba sendo utilizado por aqueles que menos precisam dele, e, quanto menos precisam, mais utilizam. Um analfabeto, para quem aprender o significado das palavras seria redentor, est impossibilitado de utiliz-lo. J para algum que mal formado no seu idioma, mas, entretanto, alfabetizado, a leitura do dicionrio muito penosa, de modo que termina por fazer pouco ou nenhum uso dele. Grandes usurios de dicionrios acabam por ser os grandes autores da lngua. E muito comum um literato, um grande pesquisador ou escritor chegar a colecionar dicionrios de todo tipo.

    O mesmo se passa com a cincia. A impresso inicial da maioria dos alunos que a cincia procura informar aqueles que j esto informados. Por

  • essa razo muitos estudantes acabam desacreditando do processo cientfico. Ainda que no possam sequer nomear seu incmodo, o processo cientfico parece absurdo.

    Por essa razo a iniciao em mbitos totalmente novos necessita de um mestre exterior informao. Nenhuma informao adquirida pode iniciar o nefito em um mundo novo. Em qualquer contexto, uma informao s faz sentido para aqueles j informados. O contedo exige sempre que o receptor j esteja inserido no contexto para que faa sentido. Por essa razo que, geralmente, o aprendizado se d por repetio. Isto at mesmo em patamares absolutamente pragmticos. Algo sempre permanece incompreensvel para quem nunca exerceu o ofcio: de que modo o marceneiro lixa e faz o polimento da madeira? Como lhe d adornos e realiza a arte da marchetaria, e da talha, entre outras?

    Embora seja possvel inferir em geral o processo, essas inferncias so incapazes de realizar o mesmo trabalho. Apenas por reproduo e repetio da atividade de um mestre podemos ingressar nesse novo mbito. Depois de muito tempo, algumas compreenses tomaro forma, mas somente depois de j possuir a capacidade de realizar aquilo que agora se capaz de explicar. No entanto, essa explicao ser infecunda para quem no capaz de realizar o mesmo tipo de trabalho. Assim os professores sempre esto a aperfeioar sua prtica cientfica na troca de informao entre si. O desejo de todo professor que os alunos logo ascendam a este convvio. Ele prprio, enquanto aluno, galgou com muito sofrimento esses patamares, a ponto de desejar que o caminho de outros seja mais facilitado. Entretanto, no se pode tirar a inclinao da montanha sem perder a prpria montanha. O objetivo do ensino no levar o aluno ao topo da montanha, mas participar da instrumentao que o capacitar a escalar cada vez tipos mais variados de inclinao. O pesquisador acaba tomando gosto pela escalada, no pela vista quando ela acaba. A escalada nada tem a ver com o contedo de uma informao. A informao e a comunicao geralmente so imediatas e transitrias. O processo de formao do ensino (e por essa razo se chama formao) praticamente o oposto da troca de informao.

    De comportamento oposto ao do contedo a estrutura. Ainda que no se pertena ao mbito contextual em que suas informaes correspon-

  • dentes so trocadas, possvel deduzir a estrutura que permite sua troca, ou ao menos levantar hipteses pertinentes. O mesmo exemplo do dicionrio serve para essa ilustrao. Existem muitos casos de pessoas que se iniciaram em idiomas diferentes somente pelo uso de um dicionrio monolngue naquele idioma, Como isto possvel, visto que o dicionrio faz referncia apenas a si mesmo? Isto possvel porque possvel deduzir as relaes existentes entre as palavras, ainda que no se saiba seu significado. A estrutura aparece antes do contedo, se observada da maneira correta, sem cobrar o preo que o contedo cobra para ser entendido. A estrutura pode ser sempre descrita se anaiticamente observada.

    E justamente este passo que est sendo realizado ao investigar os termos que so usados para definir outros termos. Atravs disso tem incio um mapa estrutural das relaes entre os conceitos. Que conceitos necessitam de outros para se definir? Estes conceitos que surgem na definio de outros conceitos tambm so definidos no texto? De quais conceitos os conceitos do texto mais dependem para sua definio? Que conceitos se valem de mais conceitos em sua prpria definio, acabando por articul-los? possvel dividir os conceitos, segundo as definies do texto, entre mais simples e bsicos e mais complexos e elaborados? Por exemplo, tomada a segunda definio de justia do dicionrio Houaiss (HOUAISS, Acesso em: 05 dez. 2009), ela se defme pelo princpio moral em nome do qual o direito deve ser respeitado. Anaiticamente, na definio de justia surgem outros dois conceitos: moral e direito. Em um procedimento analtico deve ser indagado ao texto se esses conceitos encontram repeties, se eles tambm so definidos no texto e, caso sejam definidos, se a definio se utiliza de outros conceitos que se repetem no. texto, e assim por diante.

    Todas essas perguntas partem da observao estrutural dos conceitos que aparecem dentro da definio de outros conceitos. Atravs desse procedimento elaborada uma hierarquia de conceitos, mediante a qual aqueles que possuem mais conceitos em sua definio so mais complexos do que outros, no necessitando de conceitos exteriores ao texto para defini- los. Podemos formular o seguinte quadro, a ttulo de ilustrao, caso o pesquisador prosseguisse no exame de um texto que tratasse do tema acima mencionado:

  • N de repeties Lista de conceitos

    Direito

    Norma

    Estado

    Poder

    Sano

    Legitimidade

    Fora

    Moral

    Coao

    Justia

    Dever ser

    Cidado

    Definies dos conceitos a partir de conceitos do texto

    Norma, Sano, Poder, Estado

    Dever ser

    Norma, Poder, Legitimidade

    Fora, Coao

    Norma, Coao

    Norma, Legitimidade

    Moral, Direito

    Direito, Estado

    Os conceitos so complexos porque dependem de outros conceitos para se conceituar, e sero to mais complexos quanto mais conceitos estiverem articulados na definio. Assim, em nosso exemplo, necessitaramos definir moral e direito, verificando que conceitos surgem nas respectivas definies. Na definio destes conceitos seguintes surgiro outros conceitos, e assim por diante. No recomendvel fazer este exerccio com um dicionrio. Como o seu trabalho definir palavras, a partir de uma nica palavra seria possvel avanar pelo dicionrio inteiro. J num texto cientfico as definies so bem limitadas, chegando o procedimento ao cabo rapidamente. A hiptese presente neste procedimento que quanto mais conceitos um determinado conceito articular em sua definio, mais importante ele ser para o discurso do texto. Alm disso, se a essa complexidade se somar um grande nmero de repeties, isto resulta em mais um elemento que sugere o carter central deste conceito para a pesquisa.

  • Figura 4 - Exemplo de articulao de conceitos a partir da lista de repeties e definies subsequente

    Entretanto, embora esta seja uma boa hiptese para a localizao de conceitos centrais no texto cientfico, isto no uma regra. E perfeitamente possvel que um conceito pouco repetido no texto, que articula poucos ou nenhum conceito e sua definio, e at mesmo nem seja definido pelo texto, possa ser um dos conceitos mais importantes da pesquisa. E por essa razo que os resultados colhidos por esses procedimentos devem sempre ser tratados como hipteses.

    c) Possibilidade de relaesO que fazer quando o texto no define explicitamente o termo que

    investigamos? Ainda assim possvel descrever a relao que mantm com outros conceitos no texto. Alis, o caso de um conceito integrar a definio de outro conceito no texto apenas uma de suas relaes possveis. Principalmente quando os termos aparecem juntos ou prximos, outras relaes podem ser descritas, como por exemplo:

    a) Um conceito pode estar submetido a outro;b) Um grupo de conceitos podem se articular dentro de um mesmo

    tema;

  • c) Um grupo de conceitos pode se articular em nveis diferentes, abrindo subconjuntos;

    d) Um conceito pode ter em outro uma oposio.Identificar possveis relaes entre os conceitos fundamental para des

    crever como eles se articulam e identificar as partes componentes do texto. Do que foi visto at agora sobre a hierarquia conceituai, possvel esquema- tiz-la desta maneira, na forma de passos para se efetuar o processo a partir de perguntas:

    Determinado termo (presente na lista de repetio) explicitamente definido no texto?

    Em caso afirmativo, seguem-se as perguntas abaixo:

    Em caso negativo, seguem-se as perguntas abaixo:

    A definio do termo usa em sua redao outros termos que se encontram na tabela de repetio?

    O termo que no possui definio explicita no texto, est articulado com outros termos?

    Estes termos tambm so definidos no texto?

    Que tipo de articulaes ele estabelece?

    O termo em questo tambm integra a definio de outros termos?

    possvel identific-lo dentro de um grupo ou tema de alguma parte especfica do texto?

    A partir da definio do primeiro termo, quantos termos se encontram articulados at o fim das definies de cada termo no texto?

    Sua atuao local ou geral com relao ao texto?

    Ao final, elabora-se uma rvore hierrquica dos conceitos integrante de definies de outros conceitos.

    Estas perguntas so algumas sugestes para a abordagem analtica do texto a partir de seus conceitos identificados pela tabela de repetio. Nada impede que o aluno, em sua prtica de estudo, proponha novas perguntas ou reformule as que foram sugeridas. Quando mais perguntas forem feitas ao texto, mais o texto revelar sua estrutura pontualmente em funo de cada uma delas, desde

  • que as perguntas partam do prprio texto. Uma boa forma de colher afirmaes pontuais do texto procurar sentenas que pudessem ser respostas diretas a alguma pergunta. Estas respostas pontuais do texto podem indicar posies que o prprio texto assume em suas etapas argumentativas. Deixar clara a estrutura destas etapas um dos objetivos de uma leitura analtica.

    d) Partes compositoras do texto

    Atravs da articulao dos conceitos podemos inferir sobre as partes do texto e como se organizam. E normal encontrar ncleos temticos organizados a partir da articulao dos conceitos. Do mesmo modo que os conceitos, estes ncleos temticos se organizam e se articulam entre si, figurando a cadeia argumentativa do texto ou suas partes compositoras. Isto assim se determina porque um texto cientfico se articula numa unidade funcional. Essa a razo pela qual ele consegue chegar a concluses ou confirmar e refutar hipteses.

    A identificao da organizao temtica no trabalho cientfico diz respeito estratgia assumida no trabalho para cumprir seus objetivos. Esta estratgia geralmente explicitada na introduo do texto. Como por exemplo na obra Perspectivas para o direito e a cidadania: o pensamento jurdico de Cerroni e o marxismo, do professor Camilo Onoda Caldas (2006, p. 20-21):

    [...] apresente obra estabelece um duplo objetivo: estudar o pensamento jurdico do filsofo do Direito Umberto Cerroni e sua insero no universo marxista; adotar a filosofia desse pensador como ponto de referncia para uma anlise do conceito de cidadania e sua relao com o modelo poltico-econmico institudo pelo advento do liberalismo.

    Assim, a partir das contribuies tericas marxistas, especialmente as encontradas nas obras de Cerroni, este livro procura responder seguinte indagao: em que medida a concepo de cidadania preconizada na modernidade pelos tericos liberais limita as possibilidades de

    expanso e efetivao da democracia?

    A hiptese proposta, que ser examinada ao longo desta obra, pode ser resumida da seguinte forma: a ideologia que cinde a existncia dos indivduos em duas esferas distintas - sociedade civil e Estado, ou

  • ainda, que separa economia e poltica - estabelece uma concepo de cidadania contraditria e limitada, que a