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Canções de Protesto: O avanço da esquerda para e pelas artes.
José Fernando Saroba Monteiro1
Resumo: Em inícios da década de 1960 surge no Brasil um tipo de “canção politicamente
engajada”, que viria a ser conhecida como “canção de protesto”. Originada entre os dissidentes
nacionalistas da bossa-nova, entre eles Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Sérgio Ricardo e
Nara Leão, a “canção de protesto” ganharia ainda mais fôlego no período pós-golpe de 1964,
especialmente através da figura de Geraldo Vandré. A vertente “canção de protesto” seria ainda
impulsionada por suas apresentações nos Festivais da Canção onde atingiria grandes massas e
um novo público consumidor, agora moderno e de classe média, incluindo a juventude
universitária frequentadora dos festivais, que nesse período já havia formado um parti pris ante
o regime militar vigente. As “canções de protesto” teriam grande aceitação e seriam inclusive
responsáveis pelo surgimento da própria vertente MPB.
Palavras-chave: “canção de protesto”, regime militar, censura, Festivais da Canção, MPB.
Na década de 1960 surgiu um tipo de “canção politicamente engajada” repleta de críticas
de viés político-social alimentadas ainda mais no período pós-golpe devido aos embates entre
a ala esquerdista e o regime militar vigente, a “canção de protesto”. As “canções de protesto”,
que vinham ao lado dos protest songs norte-americanos e da nueva canción latino-americana,
tinham um caráter de cultura de “resistência” (arte popular revolucionária2, anti-
establishment). Para o regime, essa relação interamericana seria organizada. Um documento do
Departamento de Polícia Federal (DPF), de 1973, ao descrever o I Encuentro de la Canción
Protesta, em 1967, fala de “[...] uma organização cuidadosamente montada para desenvolver,
em cada país, a promoção da canção de protesto. Essa organização funcionava em Havana,
Cuba, e iniciou suas atividades em agosto de 1967 [...]” (Informe 01/73 – DCDP, 27 abr. 1973).
1 Em 2005 ingressou na Licenciatura Plena em História da Universidade de Pernambuco (UPE), campus Nazaré
da Mata, em 2010 ingressou na Especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem da Universidade Federal
do Ceará (UFC), em 2012 ingressou na Licenciatura em Música da Universidade Federal do Ceará (UFC),
atualmente é mestrando em História do Império Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa (UNL)
onde ingressou em 2013. e-mail: [email protected]. 2 Ver: Anteprojeto do Manisfesto do Centro popular de Cultura. mar. 1962. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque
de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/ 70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004, pp. 135-168.
No Brasil, stricto sensu as “canções de protesto” tiveram sua base na música engajada
(participante) de Carlos Lyra e nos ideais do Centro Popular de Cultura (CPC)3, assim como
nos catárticos espetáculos Opinião4, Arena Conta Zumbi, Arena Canta Bahia e outros. Heloisa
Buarque de Hollanda nos explica que
“[...] a produção cultural, largamente controlada pela esquerda, estará nesse
período pré e pós-64 marcada pelos temas do debate político. Seja ao nível da
produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da
modernização, da democratização, o nacionalismo e a “fé no povo” estarão no
centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte
participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética.”
(HOLLANDA, 2004, p. 21).
Era o avanço da esquerda para e pelas artes.
De acordo com Marcelo Ridenti: “do fim dos anos 1950 ao início dos 1970, nos meios
artísticos e intelectualizados de esquerda, era central o problema da identidade nacional e
política do povo brasileiro” (RIDENTI, 2014, p. 01). Também é Ridenti quem nos fala sobre
um certo idealismo romântico que ficou indelevelmente associado ao período sessentista,
adjetivo este (romântico), que aparece por vezes em sua obra Em Busca do Povo Brasileiro,
ocorrências sobre as quais ele mesmo nos esclarece:
“Em geral, o termo [romântico] não é empregado [na obra] com um sentido
unívoco, preciso; por vezes é usado com uma conotação pejorativa,
identificada a certa ingenuidade e falta de realismo político. Contudo, não
cabe tomar o romantismo revolucionário com desdém. [...] Se o uso do termo
carece de um sentido único nas várias falas, por outro elas revelariam certas
percepções de uma época, dita romântica” (RIDENTI, op. cit., p. 08).
De toda forma, a intelligentsia revolucionária mantém uma solidariedade espiritual com
o povo, ela deve encontrar seu lugar ao lado do proletariado, “[...] o lugar do intelectual na luta
de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo
produtivo.” (BENJAMIM, 1987, p. 127). Na esfera musical Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros,
Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo (que pertencem à ala esquerda e corrente mais nacionalista
3 Grupo fundado no Rio de Janeiro em 1962 e ligado a UNE. 4 “Ainda no final de 1964, estreava no Rio de Janeiro o espetáculo Opinião, criado por remanescentes do CPC. Foi um sucesso,
ao juntar no palco uma cantora de classe média (Nara Leão, depois substituída por Maria Bethânea), um representante do
homem do campo (João do Vale, e outro do malandro urbano (Zé Keti).”. (RIDENTI, 2002, p. 124). “Após o Golpe, os
principais protagonistas do CPC ligados PCB [...] organizaram o Show Opinião, que viria a dar nome ao teatro onde era
montado.” (RIDENTI, 2014, p. 106).
da Bossa Nova5), foram os personagens que se envolveram de corpo e alma nessa clivagem.
Outros como Edu Lobo e Vinícius de Moraes também contribuíram para este quadro.
Segundo Miliandre Garcia de Souza:
“No final dos anos 1950 e início de 1960, acentuar as diferenças, e não as
semelhanças, entre a bossa nova e o jazz tinha como objetivo resgatar os
vínculos com a tradição da música popular brasileira e precaver-se contra as
críticas que a consideravam elitista, sem conteúdo e voltada para o consumo
externo. Nesse contexto, podemos considerar o diálogo entre tradição e
modernidade como uma das tentativas de politização e popularização da bossa
nova por músicos que integravam o CPC, a exemplo de Carlos Lyra.”
(SOUZA, 2007, p. 60).
De acordo com Ruy Castro,
“Os furúnculos nacionalistas ainda não estavam tão inflamados em 1960
quanto se tornariam dois ou três anos depois. Mas já começavam a pipocar na
sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), na Praia do Flamengo, onde
se reuniam os rapazes que estavam criando o CPC (Centro Popular de
Cultura). Alguns desses rapazes (vá lá) era Ferreira Gullar, Leon Hirszman,
Carlos Estevam, Oduvaldo Viana Filho e, este sim, o garoto Carlinhos. O CPC
vinha para ‘recuperar’ as ‘raízes’ da ‘autêntica’ cultura ‘popular’, ‘sufocadas’
pelos ‘tentáculos’ da General Motors, da Esso Standard Oil, da Coca-Cola, da
Metro-Goldwyn-Mayer e de outras múltis mamutes.” (CASTRO, 2001, p. 81).
José Ramos Tinhorão nos esclarece que
“O primeiro compositor ligado à bossa-nova a demonstrar inquietação em face
do excesso de informação cultural estrangeira no movimento foi Carlos Lira.
[...] Carlos Lira compôs em 1957 um samba em que, citando nominalmente o
bolero, o jazz, o rock e a balada, criticava sua influência na música brasileira.
Essa composição, intitulada Criticando, ia revelar-se afinal uma antecipação
do seu samba Influência do Jazz, composto dentro do mesmo pensamento
crítico em 1961, mas que estava destinado a soar como uma ironia: apontando
a absorvente influência do estilo americano de tocar, a música de Influência
do Jazz indicava ela mesma o quase mimetismo a que chegara a bossa-nova
na incorporação de células musicais e recursos particulares da música norte-
americana.” (TINHORÃO, 1974, pp. 227-228).
Segundo Waldenyr Caldas:
“De qualquer forma, a música de Carlos Lyra é uma das mais expressivas do
movimento da bossa nova. Além disso, seu discurso traduz o pensamento de
uma ala política, naquele momento histórico, ou seja, o período de maior
engajamento político da UNE, a partir de 1961, em que um grupo de jovens
5 Ver: CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. 16ª ed.. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Ver também: GARCIA, Miliandre.
Do teatro militante à música engajada: A experiência do CPC da UNE (1958 – 1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2007.
talentosos não admitia qualquer interferência estrangeira em nosso país, em
particular em nossa cultura e no samba.” (CALDAS, 1989, p. 52).
É o próprio Carlos Lyra quem fala sobre esse engajamento,
“Isso acontece no momento em que vou para São Paulo ser o diretor musical
do Teatro de Arena. Eu travei conhecimento com o Vianinha (Oduvaldo
Vianna Filho), com o Guarnieri... Esse pessoal, posteriormente, veio para o
Rio de Janeiro e fundou o Centro Popular de Cultura. Quando o Centro
Popular de Cultura da UNE começou a se desenvolver, havia evidentemente
um engajamento político da minha parte e da parte dos outros participantes.
Aquilo deu uma reviravolta grande na cabeça das pessoas não somente de
forma política, mas também cultural. A minha presença no CPC fez com que
a minha cabeça musical mudasse. Eu já estava preocupado em fazer música
do tipo da Marcha da quarta-feira de cinzas e não só em criar canções como
Você e eu e Coisa mais linda.” (LYRA apud CHEDIAK, 1994, p. 23).
É a partir dessa nacionalização da bossa-nova que irá surgir a vertente chamada “canção
de protesto”, através do engajamento político-social de alguns bossanovistas que passaram a
incorporar em suas músicas elementos ligados a tradição popular brasileira como forma de
negação da importação cultural e da influência estrangeira em nossa cultura. “Podemos
igualmente incluir na rubrica do protesto, canções que denunciavam as condições de vida dos
oprimidos da cidade e do campo (como as canções do show Opinião) [...]” (MIRANDA, 2009,
p. 128).
De acordo com Arnaldo Contier:
“A chamada canção de protesto, escrita por dezenas de compositores durante
os anos 60, num primeiro momento, representava uma possível intervenção
política do artista na realidade social do país, contribuindo assim para a
transformação desta numa sociedade mais justa. [...] O matiz ideológico que
representava a brasilidade (moda-de-viola; ritmos sincopados) e o seu
conteúdo político atingiam um segmento do público sintonizado com essa
proposta política: estudantes universitários, profissionais liberais dos grandes
centros urbanos. Outros textos, não explicitamente políticos, excessivamente
metafóricos, atingiam todos os tipos de público, incluindo setores mais
conservadores da sociedade.” (CONTIER, 1998, p. 02).
Nelson Barros da Costa nos demostra que nas “canções de protesto” “O sujeito se dispõe
à “formação ideológica” (“conscientização”) pelo coletivo, preparando-se para ser ele mesmo
um formador de consciências” (COSTA, 2001, p. 185). Para o crítico José Ramos Tinhorão
“[...] esse tipo de canção exigia um tom épico, os compositores e letristas das músicas de
protesto [...] passam a cantar as belezas do futuro, com dezenas de versos dedicados ao dia que
virá” (TINHORÃO, op. cit., p. 233). De acordo com Walnice Nogueira Galvão, O DIA QUE
VIRÁ, destaca-se entre os seres imaginários que compõem a mitologia da MMPB (Moderna
Música Popular Brasileira), e tem a função de “[...] absolver o ouvinte de qualquer
responsabilidade no processo histórico.” (GALVÃO, 1976, p. 95). A expressão O DIA QUE
VIRÁ foi cunhada por Walnice Nogueira Galvão em seu artigo MMPB: Uma análise
ideológica, sobre o qual David Treece traz as seguintes considerações:
“Ao escrever, em 1968, sua critica literária, Walnice Nogueira Galvão chegou
a uma conclusão terrivelmente pessimista em relação à produção da protest
song representada pelo trabalho de Geraldo Vandré e seus contemporâneos
Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Para ela, apesar do
compromisso da nova canção com uma ‘realidade cotidiana, presente, aqui e
agora’, esta fez pouco mais que uma substituição evidentemente ideológica do
‘escapismo complacente’ da bossa nova e sua mitologia ‘de sol, mar e areia’
por uma nova e igual mitologia tranqüilizante. Seu tema onipresente, ‘o dia
que virá’, imaginou o poder de redenção da própria canção, substituindo
qualquer tipo de ação política concreta, que era sempre adiada para algum
futuro hipotético e utópico. Ao ‘povo’ – destinado à passividade como
ouvintes eximidos de responsabilidades – era, dessa maneira, negada qualquer
atuação na condução da história.” (TREECE, 2000, p. 127).
Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, no livro Cultura e
participação nos anos 60, nos explicam que:
“Em meados da década [de 1960], o panorama crítico e criativo da música era
dominado pela presença de uma forte corrente nacionalista e engajada que,
com o declínio da Bossa-Nova e a subida ao poder das forças conservadoras,
encontrava um terreno propício para se desenvolver, especialmente entre o
público estudantil, avesso às formas culturais que pudessem ser relacionadas
a uma indesejável ‘invasão cultural imperialista’. [...] Essa espécie de protest
song nacional contava com o apoio de um considerável setor da crítica que
tratava de zelar pela ‘autenticidade de nossas raízes’ e pela adequação das
mensagens propostas pelas canções. [...] Protesto e nacionalismo faziam,
portanto, o coro da MPB.” (HOLLANDA; GONÇALVES, 1987, pp. 53-54).
Desta forma o conteúdo passou a ter mais importância, divergindo da tríade “flor, amor
e dor”, e não mais saudando “o sol, o sal e o sul”, fazendo agora menções aos mitos do “morro”
e do “sertão”.
Na transição entre a bossa-nova e a “canção de protesto”, alguns artistas tiveram papel
de destaque, entre eles Nara Leão, Edu Lobo, e o próprio Carlos Lyra, entre outros. Até mesmo
o tropicalista Gilberto Gil integrou a vertente em seu início de carreira. Contudo, Geraldo
Vandré foi o compositor de maior representatividade na “canção de protesto”, depois de seu
desvinculamento com a bossa-nova, e o que melhor sintetizou a canção engajada no mercado.
Segundo Marcos Napolitano:
“A busca constante de referências musicais e culturais revelava as vicissitudes
de um artista que, mais do que outros, incorporou a tarefa de criação de uma
canção ‘de massa’, engajada e exortativa, dentro das estruturas do mercado.
Essa tarefa era incrementada pela radicalização do quadro político do país,
que parecia impregnar o trabalho de Vandré mais do que o de outros músicos.
A partir de 1967, tornou-se o músico brasileiro mais identificado com a versão
brasileira da “canção de protesto”, superando Nara Leão. Essa mudança de
referencial foi causa e efeito da grande popularização da MPB, entre fins de
1966 e 1968, cuja demanda requeria canções mais diretas e exortativas,
inspiradas nas formas musicais anteriores à bossa nova.” (NAPOLITANO,
2007, p. 127).
Geraldo Vandré e o Quarteto Novo (NAPOLITANO, 2007, p. 125).
Notamos que alguns autores frequentemente associam a vertente “canção de protesto”,
com a então emergente MPB. Na verdade, essa convergência da bossa-nova que resultou na
“canção de protesto” foi também responsável pelo surgimento da vertente denominada MPB,
pois foi com características nacionalistas, muito próprias do engajamento que viria a entrar em
voga no período em questão, que foi composta a canção síntese do nascimento do gênero,
chamado inicialmente de MMPB, Arrastão (Edu Lobo/ Vinícius de Moraes), interpretada por
Elis Regina no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965.
Nesse sentido, não podemos esquecer que a “Era dos Festivais”, ocorrida entre as
décadas de 1960 e 1970, foi também responsável por abrigar e difundir as “canções de
protesto”. Os Festivais da Canção eram compostos por um público de classe média, em sua
maioria pertencente a juventude estudantil, um público universitário, que cada vez mais se
mostrava participativo politicamente e interessado em canções que correspondessem à esse
engajamento. Segundo Hollanda e Gonçalves
“A presença em massa da juventude estudantil, que assumia um papel de
crescente importância na contestação ao regime de 64, envolvia as
apresentações num ambiente de acalorada participação, onde se tornar adepto
desta ou daquela música assumia muitas vezes ares de opinião política.”
(HOLLANDA; GONÇALVES, op. cit., p. 57).
Conforme Marcos Napolitano “[...] o triunfo da MPB nos festivais (ou seja, no mercado)
era, ao mesmo tempo, um triunfo político, termômetro da popularização de uma cultura de
resistência civil ao regime militar.” (NAPOLITANO, 2004, p. 212).
Dentre as “canções de protesto” que mais se destacaram, está a guarânia Pra não Dizer
que não Falei das Flores (Caminhando) ou ainda Sexta Coluna (Geraldo Vandré), apresentada
no III Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1968, que apesar do título trazia, sem
tergiversar, versos como: “Há soldados armados/ Amados ou não/ Quase todos perdidos/ De
armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam/ Uma antiga lição:/ De morrer pela pátria/ E viver
sem razão.”, que atingiam em cheio o regime militar, e “Apesar de aclamada pelo público,
despertou a ira dos militares.” (AQUINO, 2012a, p. 39), recebendo inclusive um poema-
resposta de autoria de um capitão do exército, intitulado Carta a Geraldo Vandré, para o qual
em informativo do DOPS era solicitado “[...] a colaboração no sentido de divulgar o poema e
daqueles que possam e o desejam reprodução para distribuição.” (APESP, Prontuário nº 001062
– DEOPSSANTOS). Não obstante, foi o auge da “canção de protesto”, tornando-se um hino na
luta contra a repressão, uma verdadeira Marselhesa como a descreveu Millôr Fernandes. Aliás,
se a “canção de protesto” se caracterizava pela invocação dO DIA QUE VIRÁ, Pra não Dizer
que não Falei das Flores, tal como a Marselhesa, anunciava que o dia já chegou, enquanto uma
proferia “Allons, enfants de la patrie/ le jour de gloire est arrivé.” [Avante, filhos da pátria/ O
dia de glória chegou], a outra exclamava “Vem vamos embora/ que esperar não é saber/ Quem
sabe faz a hora/ não espera acontecer”:
“Assim, compositores, como Geraldo Vandré ora esperavam o dia da
libertação (em Aroeira: “Vim de longe, vou mais longe,/ Quem tem fé vai me
esperar/ Escrevendo numa conta/ Pra junto a gente cobrar/ No dia que já vem
vindo/.../ E a gente fazendo conta/ pro dia que vai chegar”), ora enfatizaram o
papel ativo dos sujeitos, como na letra já reproduzida de Para Não dizer que
não falei das flores, de Vandré, que parece uma resposta explícita a críticas
como a de Galvão. Trinta anos depois, Walnice Nogueira Galvão matizaria
suas observações no artigo “Nas asas de 1968: rumos, ritmos e rimas” (1999),
reconhecendo o papel politizado e politizador da MPB e das artes em geral no
combate à ditadura.” (RIDENTI, op. cit., p. 214).
Segundo Treece:
“Como tal, Caminhando representou o resultado lógico de esforços para
politizar uma música que foi acusada, na melhor das hipóteses, de ter se
alienado das lutas sociais anteriores e posteriores à 1964 e, na pior, de ter
endossado o espírito de modernização capitalista do pós-guerra.” (TREECE,
op. cit., p. 127).
Tamanha foi sua repercussão que se acredita ter sido ela o leitmotiv para o decreto do
AI-5 que, entre os emepebistas, “[...] acabou criando uma espécie de ‘frente ampla’ musical.”
(NAPOLITANO, 2002, p. 69). Sobremodo, este decreto ceifaria a carreira de Vandré. De
acordo com Marcelo Ridenti:
“Ambigüidades [sic] da história: a canção de Vandré, Caminhando, símbolo
das lutas de 1968, o chamado à guerrilha, foi regravada recentemente num
versão intimista de Simone, que mais parece um réquiem, e até políticos
conservadores chegaram a cantá-la em programas televisivos de propaganda
eleitoral na década de 80. Não obstante, há quem tenha entoado a canção de
Vandré: nas passeatas estudantis de 1977, nos enterros de vítimas da ditadura,
como o do jornalista Herzog em 1975 e do operário Santo Dias em 1979, e até
mesmo na campanha das ‘Diretas já!’ em 1984. A força das diversas
manifestações dos anos 60, simbolizada pela canção, reapareceu em outras
conjunturas e de outras formas, diferentes daquelas dos anos 60, mas que de
algum modo buscavam reatar o elo perdido. O uso tão díspar da mesma
canção-símbolo para diferentes fins políticos e culturais, quase como um Hino
Nacional, por um lado, sugere que aquilo que a todos representa, ao mesmo
tempo, não representa especificamente ninguém. Mas, por outro lado, tal uso
revela a legitimidade das lutas libertárias dos anos 60, encarnadas naquela
canção, legitimidade reconhecida até em meios políticos conservadores que
fazem uso dela para seus próprios fins. De modo que o espírito das luta sociais
da década de 60 incorporou-se em formas múltiplas à consciência coletiva
nacional. Não é à toa que Millôr Fernandes disse que Caminhando “é o hino
nacional perfeito; nasceu no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima,
cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de
pessoas. É a nossa Marselhesa”. (RIDENTI, 1991, pp. 08-09).
De acordo com Adalberto Paranhos:
“Com a entrada em cena, em 1985, da chamada ‘Nova República’ e os novos
ventos que sopraram na vida política nacional, em 1992 ‘Caminhando’
embalaria, junto com ‘Alegria, alegria’, de Caetano Veloso, o movimento dos
estudantes caras-pintadas pró-deposição do presidente Fernando Collor de
Mello, símbolo de um governo que se afundou, de alto a baixo, na corrupção.”
(PARANHOS, 2009, p. 06).
Ironicamente Vandré se tornaria posteriormente um admirador das Forças Armadas,
como nos mostra Beatriz Kushnir:
“Em uma reportagem do jornal Correio Brasiliense, de 15/9/1985, lê-se:
“Vandré não é só o último, mas quem sabe, o eterno exilado brasileiro. Ele
exilou-se de si próprio desde sua volta ao Brasil, em 17 de julho de 1973,
quando, depois de um mês de depoimentos e pressões no I Exército, no Rio,
foi obrigado a aparecer no Jornal Nacional, saltando de um Electra da Varig,
em Brasília, como se tivesse acabado de chegar de Santiago do Chile, pondo
fim a um exílio físico e geográfico que começou em dezembro de [19]68, após
o malfadado AI-5”. Tornou-se nacionalmente conhecido graças à canção
Caminhando – Pra não dizer que não falei de flores, um hino contra a ditadura,
que foi censurado no fim dos anos 1960. Em 1994, no Memorial da América
Latina (SP), em um concerto para o 4º Comar da FAB, Vandré apresentou
“Fabiana”, uma canção feita em homenagem à FAB. O jornalista Percival de
Souza (Autópsia do medo, op. cit., p. 34), no relato biográfico sobre o
delegado Fleury, menciona que “Vandré, preso, passou por uma conversão no
cárcere, transformando-se em um profundo admirador da Força Aérea
Brasileira”.” (KUSHNIR, 2004, p. 305 – rodapé).
Não obstante, Geraldo Vandré esteve presente na apresentação de Pra Não Dizer Que
Não Falei das Flores pela artista norte-americana Joan Baez, em março de 2014, em São Paulo,
e, embora não tenha cantado, permaneceu no palco, marcando sua volta após quarenta anos no
anonimato.
Dentro dos Festivais da Canção, ainda nas décadas de 1960 e 1970, Geraldo Vandré,
juntamente com Chico Buarque, foram responsáveis pela catalização da audiência engajada.
“Eles sintetizaram a curiosa situação histórica da MPB nascente dos anos 60, na qual idolatria
pop e engajamento político pareciam se combinar.” (NAPOLITANO, 2004, p. 206.).
A “canção de protesto” viria a ter um período de crise ao fim da década de 1960, crise
essa que “[...] foi geradora de críticas e autocríticas por parte de artistas e intelectuais do próprio
espectro da esquerda.” (NAPOLITANO, 2001, p. 234). No entanto a “canção de protesto”
seguiria sua trajetória durante os “anos de chumbo”, e depois de terminada a ameaça de Vandré,
a censura, elegeria, entre os emepebistas, Chico Buarque de Hollanda como inimigo número
um.
Depois de promover um auto-exílio na Itália, Chico Buarque volta para o Brasil em um
período que marcaria o amadurecimento de sua carreira. Para além da composição de Apesar
de Você (Chico Buarque de Hollanda), com uma mensagem que tinha como destinatário o
próprio presidente-general Emílio Garrastazu Médici, o que lhe renderia a censura e o
recolhimento das 100 mil cópias vendidas, Chico Buarque escreve a peça Calabar, com Ruy
Guerra, que também seria censurada, e compõe a canção Cálice (Chico Buarque de Hollanda/
Gilberto Gil), que ao ser apresentada no festival Phono 73, ao lado de Gilberto Gil, teve os
microfones desligados devido também a sua censura e proibição de execução. Caso curioso é o
de Chico Buarque ter criado o pseudônimo Julinho da Adelaide para tentar driblar a censura,
de acordo com o seu site oficial:
“Julinho da Adelaide nasceu quando Chico Buarque passou a ser muito
conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70. Suas músicas
eram proibidas somente porque levavam sua assinatura. A saída para burlar a
censura foi a criação de um heterônimo. E deu certo. Acorda amor, Jorge
maravilha e Milagre brasileiro passaram pela censura sem maiores problemas.
Julinho chegou até a dar uma entrevista para o jornal Última Hora sobre sua
carreira em ascensão.” (Chico Buarque – site oficial6).
Entretanto a farsa logo foi revelada pela imprensa, o que resultou em regras mais rígidas
por parte da censura.
Muitos como Taiguara, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e outros, também sofreram com
ações repressivas. Até mesmo a música brega-popularesca (kitsch) de Odair José, Waldick
Soriano, e da dupla da marcha ufanista Eu te amo meu Brasil (Dom), Dom e Ravel, sentiriam
os efeitos da censura. Sobre esta última questão quem nos fala é Paulo César de Araújo, que em
seu livro Eu não sou Cachorro, Não, nos adverte:
“Quando relacionam produção musical e regime militar, os críticos,
pesquisadores e historiadores da nossa música são pródigos em ressaltar a
ação de combate e protesto empreendida por diversos compositores da MPB,
que se valiam de metáforas, imagens truncadas e herméticas, com o objetivo
de driblar a censura e manifestar o seu inconformismo com o quadro político-
social vigente. O que estes analistas nunca ressaltam, ou simplesmente
ignoram, é o papel de resistência desempenhado naquele mesmo período por
artistas populares como Paulo Sérgio, Odair José, Benito di Paula e, não se
surpreenda, a dupla Dom & Ravel.
Três aspectos chamam a atenção no universo deste grupo de cantores/
compositores. Em primeiro lugar, a mensagem de suas canções: grande parte
delas traz a denúncia do autoritarismo e da segregação social existentes no
cotidiano brasileiro. O segundo aspecto é a relação entre esta produção
musical e o momento histórico: a maioria de seus autores e intérpretes alcança
6 Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/sanatorio/abre_julinho.htm> Acesso em: 03 mai. 2014.
o auge do sucesso entre 1968 e 1978, período de vigência do Ato Institucional
nº 5, sendo também proibidos e intimados pelos agentes da repressão do
regime. E o terceiro aspecto, a origem social do público e dos artistas: ambos
oriundos dos baixos estratos da sociedade [...].” (ARAÚJO, 2010, pp. 16-17).
Na década de 1970 muitos outros artistas também passaram pelo crivo da censura.
Segundo Marcos Napolitano:
“Na luta contra a censura e a ditadura, concorreram muitos grupos e
indivíduos. Nos anos 70, por exemplo, artistas populares – sobretudo aqueles
ligados à música, como Chico Buarque de Holanda, Ivan Lins, Vitor Martins,
Gonzaguinha, João Bosco, Aldir Blanc, Milton Nascimento, Elis Regina,
entre outros –, aproveitando-se do próprio crescimento da indústria cultural
no Brasil, tornaram-se porta-vozes dos valores democráticos e emancipadores,
que se contrapunham à realidade política vigente.” (NAPOLITANO, 1998, p.
45).
BIBLIOGRAFIA.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. 7ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.
BENJAMIM, Warlter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
CALDAS, Waldenyr. Iniciação à Música Popular Brasileira. 2ª edição. São Paulo: Editora
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CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. 16ª ed.. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CHEDIAK, Almir. Carlos Lyra. Songbook. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994.
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