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Paulo Victorino
CAPÍTULO TRÊS
UM TIRO NO PEITO
O TRÁGICO FIM DE VARGAS
No silêncio da madrugada, um tiro ecoa. O capitão Hélio,
responsável pelo plantão chega esbaforido: "O Presidente
suicidou-se!". O historiador Helio Silva narra: "Subiram, correndo,
Alzira, Tancredo e todos os que se achavam no hall. Vargas estava
recostado, na posição confirmada por todos, a perna para fora da
cama. O coração sangrando aos borbotões. Tancredo conta que
procurou ampara-lo, enquanto Alzira abraçava-o. Ele procurava
alguém com o olhar, que se fixou em Alzira, mais demoradamente,
até que faleceu."
Terminados os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, dos quais
pouco participou, Getúlio Dorneles Vargas assume como Senador da República,
mas deixa em seu lugar o suplente, Camilo Mércio, ilustre desconhecido fora das
fronteiras do Rio Grande do Sul e, talvez, até dentro de seu próprio Estado.
Foi uma dádiva que caiu às mãos do jovem e neófito suplente, eleito pela
força irrefreável do titular que, aparentemente, já cansado da luta, retira-se para
sempre da arena, retornando, ao que parece definitivamente, ao seu refúgio na
Estância de Itu, dentro da pequenina cidade fronteiriça de São Borja.
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Todavia, a abertura da temporada sucessória para as eleições gerais, por
volta de 1949, fez reiniciar a romaria de políticos a São Borja. Eram os
correligionários do trabalhismo, eram pessedistas preocupados com a incógnita
que representaria uma eleição sem Getúlio e era, também, o Partido Social
Progressista do governador paulista Ademar de Barrosa, interessado numa
composição nacional com o Partido Trabalhista Brasileiro de Getúlio Vargas,
para reforçar sua posição nos Estados, especialmente em São Paulo, onde se
lançava a candidatura do engenheiro Lucas Nogueira Garcez, competente,
mas desconhecido.
Ademar Pereira de Barros, chefe do PSP, até pensou em candidatar-se à
Presidência da República, mas recuou ante o perigo de deixar o governo do
Estado de São Paulo nas mãos de seu vice, Novelli Junior, que poderia detonar
a máquina eleitoral tão cuidadosamente montada pelo governador.
A certa altura, segue do Rio de Janeiro para São Borja o jovem jornalista
Samuel Wainer, a mando de seu patrão, Assis Chateaubriand, levando a
missão de conseguir uma entrevista com Getúlio Vargas. Trata-se de um desafio,
pois a imprensa era mantida à distância do refúgio do velho ditador.
Depois de três dias de persistente trabalho junto à assessoria, consegue,
milagrosamente, que Vargas se disponha a atendê-lo. Não o ajudou a fama de
repórter, que não a tinha, mas contou a seu favor justamente a de ser um
jornalista mediano na escala profissional.
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Getúlio e Wainer não se conheciam e assim, nas preliminares, fazem
trabalho de mútuo reconhecimento. A charla gaúcha se alterna com o linguajar
carioca, trocando informações, opiniões, ideias. Getúlio era um observador
perspicaz e não tardou em reconhecer Samuel Wainer um homem em quem
poderia confiar. Abriu-se, então, numa entrevista ampla, terminando por dizer
que, se o povo pedisse sua volta, ele não deixaria de ouvir o apelo popular.
A publicação da matéria nos jornais de propriedade de Chateaubriand traz
uma reviravolta nos conchavos das cúpulas partidárias. Os fiéis seguidores de
Getúlio espalham cartazes pelo país inteiro, com a frase: Ele Voltará. Não é
preciso dizer quem é o alvo. Ele deixa de ser pronome para transformar-se em
substantivo próprio de especial significado, que todos entendem, sem precisar
de maiores explicações.
O reboliço causado nas hostes oposicionistas e o entusiasmo incontido dos
correligionários trouxe à luz o que todos sabiam há tempos: não havia como
fazer política sem Getúlio, e não havia como afasta-lo do cenário político, a não
ser por métodos não reconhecidos em um regime de plenitude democrática.
A luta que vai se travar, primeiro durante o período eleitoral, depois no
interregno que o separa da posse, prossegue por todo o período de governo,
desaguando, por fim, na grande tragédia de 24 de agosto de 1954. É dessa luta
que trataremos neste capítulo, contando a história desde o princípio.
Tomem seus lugares
e boa viagem
Deixando a porta entreaberta, assinalando a possibilidade de retorno,
Vargas, entretanto, nomeou Salgado Filho como seu preposto no Rio de
Janeiro, encarregando-o de manter entendimentos com o PSD e a UDN para a
escolha de uma candidatura de consenso, não encontrando retorno em sua
proposta.
A UDN admitiu uma união de forças, desde que ela se desse em torno do seu
líder maior, o brigadeiro Eduardo Gomes. E como essa exigência, logicamente,
não fosse aceita pelas partes, saiu à frente, lançando, por conta própria, a
candidatura do brigadeiro, disposta a liquidar com Getúlio e o getulismo, num
trabalho de restauração política que não dispensava, se preciso fosse, o
concurso de métodos menos ortodoxos.
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Com efeito, num ato de evidente provocação, o lançamento da candidatura
de Eduardo Gomes se deu em 19 de abril de 1950, data do aniversário de
Getúlio Vargas. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Descartada a possibilidade de entendimentos com a oposição, o PSD
resolveu adotar também candidatura própria, saindo à luta com Cristiano
Machado, cujo nome foi lançado em 16 de maio de 1950, um mês após a
definição da UDN.
A esta altura, ainda não havia surgido a revelação de Getúlio, que continuava
afastando seu nome da disputa. Assim, desejando sair do impasse, alguns
trabalhistas mais apressados começaram a pensar em uma candidatura saída
do Exército para se opor à do brigadeiro, surgindo articulações em torno do nome
do general Canrobert Pereira da Costa, então ministro da Guerra do governo
Eurico Gaspar Dutra.
Foi nesse cenário que surgiu a entrevista dada por Getúlio Vargas a Samuel
Wainer, renovando esperanças do PTB, e causando confusão no PSD, onde o
candidato Cristiano Machado começou a perder progressivamente suas bases
de apoio.
No PTB de São Paulo, o coronel-deputado Porfírio da Paz propõe que a
candidatura varguista seja lançada mesmo à revelia do candidato. No Rio
Grande do Sul, o jovem político João Goulart lança, por conta própria, a
candidatura de Getúlio. No Rio de Janeiro, Danton Coelho segue pelo mesmo
caminho.
Ademar de Barros, governador de São Paulo, vai a São Borja, determinado a
fechar acordo apoiando Vargas, formando a coligação PTB-PSP, em troca de
cargos no ministério e com a indicação de seu correligionário Café Filho para
compor a chapa, como vice.
Aconteceu o previsto. Em 8 de junho era lançada a candidatura de Getúlio
Dorneles Vargas, cujo registro, vencidas as impugnações, se deu em 14 de
setembro de 1950.
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O Partido Socialista Brasileiro, de pequena expressão eleitoral, decidiu, assim
mesmo, lançar candidatura própria e registrou o nome do político baiano João
Mangabeira, só para marcar presença.
O eleitorado do PSD migrou para Getúlio, esvaziando a candidatura de
Cristiano Machado, fazendo nascer o neologismo cristianização, que significa
apoiar seu candidato formalmente, enquanto se está trabalhando para eleger o
adversário.
As eleições
Desfazendo os temores do governo federal, que ameaçou lançar
paraquedistas em qualquer parte do país onde se pretendesse tumultuar as
eleições, a verdade é que o pleito de 3 de outubro de 1950 transcorreu em
grande festa, sem que qualquer problema maior se registrasse.
Abertas as urnas, apurou-se o seguinte resultado:
Getúlio Dorneles Vargas ........................ 3.849.040 votos (48,70%)
Brigadeiro Eduardo Gomes ................... 2.342.384 votos (29,70%)
Cristiano Machado ................................ 1.697.193 votos (21,50%)
João Mangabeira ................................... 9.466 votos ( 0,02%)
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Durante a campanha, Vargas dissera, no Rio de Janeiro: Se eu for eleito, no
ato da posse, o povo subirá comigo as escadas do Catete e ficará comigo no
governo.
Ele voltou, nos braços do povo, escolhido em eleição direta, no pleito mais
disputado até aquela data.
O tapetão
Dispostos a fazer o jogo democrático, seus adversários não dispensaram,
entretanto, a chicana, recursos que preenchem as formalidades legais, mas que
tem discutida validade moral.
Já durante o período pré-eleitoral, corria pelo congresso uma emenda
constitucional que pretendia prorrogar em um ano o mandato do presidente
Eurico Gaspar Dutra, a qual foi sustada pelo suposto interessado, já que Dutra
afirmou que ficaria no poder nem um dia a mais, nenhum dia a menos do que o
previsto na constituição vigente.
A inelegibilidade de Vargas é também questionada pelo dr. José Tomás
Nabuco, do Instituto de Advogados. Essa posição é corroborada pelo Correio da
Manhã, insinuando que o TSE impugnaria a candidatura Vargas, por ele ter-se
desfeito de duas Constituições (a de 1891 e a de 1934), além do que se recusou
a assinar a de 1946. É tudo verdade.
Paralelamente, o advogado paranaense Álvaro Vale deu entrada no Tribunal
Superior Eleitoral com um pedido de impugnação da candidatura Vargas,
apresentando todo um arrazoado com que esperava convencer os ministros. E
não faltou quem pretendesse a anulação do pleito já apurado, por não se ter
registrado maioria absoluta (50% dos votos).
Nada disso deu resultado. Ao analisar o registro, o Tribunal desconheceu a
questões preliminarmente, considerando-as ilegítimas, já que uma impugnação
só poderia ser feita por outro candidato ou por delegado de partido político, não
cabendo, no caso, uma ação popular. E, em 19 de agosto de 1950, a
candidatura foi registrada.
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Uma última tentativa foi aventada, logo após as eleições e só não ganhou
força porque foi descartada com vigor pelo presidente Dutra, caso contrário,
poderíamos entrar numa crise difícil de ser solucionada.
Entendiam alguns juristas de plantão que o mandato de cinco anos
estabelecido na Constituição de 1946 não poderia ser aplicado para Eurico
Gaspar Dutra, já que ele foi eleito pela Constituição de 1937, alterada pela
emenda nº 9, que fixava o mandato do Presidente em seis anos, detalhe que
constava de seu diploma. Assim, cumprindo o dispositivo constitucional,
querendo ou não, Dutra era presidente da República até 31 de janeiro de 1952.
Também é tudo verdade.
Como o Presidente garantiu que, em qualquer circunstância, deixaria o poder
em 31 de janeiro de 1951, haveria vacância do cargo, a ser preenchida por seu
sucessor legal imediato.
É aí que surge o embrulho, pois, a vencer essa tese, não há sucessor legal
que preencha os requisitos. O vice, Nereu Ramos, foi eleito pelo Congresso
Constituinte e seu mandato se vence em 31 de janeiro de 1951, a data em que
Dutra deixa o poder. O mesmo ocorre com o presidente da Câmara Federal e
com o presidente do Senado, ficando, pois, disponível apenas o presidente do
Supremo Tribunal Federal, que deveria assumir no lugar de todos os
antecedentes na escala sucessória.
Felizmente, o expediente, conquanto legal, foi abandonado, pois uma
hipotética posse do presidente do STF, após eleições realizadas dentro da lei e
da ordem, das quais participaram candidatos devidamente registrados,
representaria um golpe de difícil assimilação no país e, principalmente, no
exterior, onde nossa imagem ficaria irremediavelmente comprometida.
Getúlio no retiro
de São Pedro
Sendo avesso a viagens, Getúlio preferiu aguardar no Brasil o dia de sua
posse, retirando-se para seu Estado natal, o Rio Grande do Sul.
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Todavia, como a cidade de São Borja era uma trilha marcada pelos
peregrinos da política, o local foi desaconselhado e o presidente eleito seguiu,
então, para a Estância de São Pedro, propriedade de Batista Luzardo, na cidade
de Uruguaiana, também divisa com a Argentina e a uns 30 quilômetros do
Uruguai.
Em verdade, seguiu para lá dias antes das eleições, acompanhando, distante,
os últimos comícios e o desenrolar do pleito. Sobre esse curto período, escreve
Glauco Carneiro, biógrafo de Luzardo:
"Pois foi nesse cenário histórico que Getúlio Vargas viveu os
agitados meses que precederam a sua derradeira ascensão ao
Catete. Na alta e larga varanda, ele entrevistou-se com centenas
de candidatos a cargos políticos. Andou muito a cavalo,
contemplou a Argentina do outro lado do rio Uruguai; recebeu e
despachou emissários para Perón; repousou e brincou com as
crianças na Ilha dos Amores – uma pitoresca construção no centro
do jardim da Estância. Provou da boa culinária de D. Adelaide
[mulher de Luzardo] e, por muito tempo, deu impressão para os
outros de que o proprietário da casa seria seu futuro ministro da
Agricultura.
"À noitinha, atravessava o corredor sombreado de árvores que
leva ao Castelinho (um apartamento algo retirado, imitando um
pequeno castelo), esquentava os pés na lareira, corria uma roda de
chimarrão e recomeçava a conversa política. Só altas horas da
noite ia procurar o repouso da cama de metal, colocada ao fundo
do aposento. Cerrava o cortinado que separava o quarto da sala,
enquanto lá fora o tenente Gregório dispunha a guarda pessoal
para velar pelo sono do amo e senhor Getúlio Dorneles Vargas.
"(...) Getúlio levantaria voo dali somente a 17 de janeiro de
1951 para dar entrada no Palácio do Catete, que viria a ser, a 24
de agosto de 1954, cenário de um tiro que varou seu peito e
atravessou a História."
Sobre o estilo de vida do Presidente eleito, conta D. Adelaide, mulher de
Luzardo, o dono da estância:
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"Não era exigente em matéria de comida. Dizia: ‘Ó D. Adelaide,
de banquete estou até aqui... Quero feijão, arroz, canjica.’ Gostava
muito do peixe que eu fazia. Naquele tempo não era como agora;
o rio Uruguai dava cada dourado... Eu fazia ensopados, com
bastante molho, pimenta, tomate, manjerona. Quando Getúlio via o
peixe pronto, comia demais. Depois, tomava um cafezinho e ia se
deitar..."
Bem-me-quer, mal-me-quer > Amigos desde a Primeira República, Getúlio
Vargas e João Batista Luzardo estiveram, algumas vezes em oposição
A Estância de São Pedro foi o último instante de paz em sua vida. Ao remanso
do rio, seguem-se águas velozes por um leito pedregoso e encachoeirado,
exigindo nervos fortes, determinação, raciocínio rápido, manobras precisas e
confiança, muita confiança no seu próprio destino que, a partir desse momento,
se confunde com os destinos da nação brasileira.
A posse e o ministério
A despeito de todos subterfúgios utilizados pelos seus inimigos, antes e
depois das eleições, para impedir-lhe o caminho, em 18 de janeiro de 1951,
Getúlio Vargas foi reconhecido e proclamado pelo TSE como o novo presidente
da República, juntamente com seu vice, Café Filho.
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No dia 22, ambos comparecem ao TSE para a diplomação e, em 31 de
janeiro de 1951, Eurico Gaspar Dutra, tal como prometera, deixa o governo,
passando a faixa presidencial para Getúlio Dorneles Vargas.
Era o início de uma longa e encarniçada luta, com seus inimigos alojados no
seio da União Democrática Nacional, em parte das Forças Armadas e na maioria
dos jornais brasileiros, que lhe abriram feroz perseguição, ignorando os atos de
governo e pinçando os desacordos para transforma-los em cavalos de batalha,
como se a sobrevivência da nação dependesse da eliminação, para todo
sempre, do Presidente.
Getúlio Vargas e Gregório Fortunato, que foi seu chefe da guarda
e homem de confiança desde o Estado Novo
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Getúlio vivia um dilema. Calcando sua campanha eleitoral no nacionalismo
fanático, recebia das mãos de Dutra um governo alinhado com os Estados
Unidos e sofria uma pressão, de dentro e de fora do país, para uma abertura do
mercado, buscando na iniciativa estrangeira os capitais que nos faltavam.
Seu ministério, que pretendia ser de coalizão, procurava compor esses dois
fatores antagônicos. Trouxe para perto de si militares da ala nacionalista, buscou
apoio em outros partidos e, a despeito de a UDN recusar-se a participar do
governo, houve um udenista, João Cleofas, que aceitou o Ministério da
Agricultura. Era difícil, mas tentava-se governar com os partidos políticos, base
sólida de qualquer democracia.
O ministério, chamado de experimental, ficou assim formado:
Relações Exteriores, João Neves da Fontoura (PSD, Rio Grande
do Sul); Justiça, Francisco Negrão de Lima (PSD, Rio de Janeiro);
Fazenda, Horácio Lafer (PSD/PSP, São Paulo); Agricultura, João
Cleofas de Oliveira (UDN, Pernambuco); Educação e Saúde,
Ernesto Simões da Silva Freitas Filho, ex-diretor do jornal "A
Tarde", da Bahia; Trabalho, Indústria e Comércio, Danton Coelho
(PTB-Rio de Janeiro); Viação e Obras Públicas, Álvaro Pereira de
Sousa Lima; Guerra, general Estillac Nilton Leal; Marinha,
almirante Renato de Almeida Guillobel; Aeronáutica, brigadeiro
Nero Moura. Gabinete Militar, general Ciro do Espírito Santo
Cardoso; Gabinete Civil, Lourival Fontes, o criador da Agência
Nacional; Chefe de Polícia, general Ciro de Resende e Banco do
Brasil, Ricardo Jaffet.
“Nacionalistas” versus
"entreguistas"
Na defesa apaixonada de suas ideias, formaram-se dois grupos de opiniões
bem definidos: de um lado, os nacionalistas, reunidos em torno de Getúlio
Vargas, mas com ramificações em agrupamentos de esquerda, como os
socialistas e os comunistas, estes últimos fora da lei, mas em plena ação; de
outro, os autointitulados "democratas", que defendiam ampla abertura do Brasil
ao capital externo para acelerar o desenvolvimento nacional. Seus adversários
preferiam chamá-los de entreguistas e assim ficaram sendo conhecidos.
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O ninho de serpentes dos democratas era a União Democrática Nacional,
todavia suas ideias se propalavam também na Aeronáutica, sob a forte influência
do brigadeiro Eduardo Gomes, e no Exército, rachado ao meio entre oficiais que
defendiam o nacionalismo e outros que não encontravam perspectiva de
progresso ao país, a não ser com a internacionalização de nossa economia.
O presidente da República jamais dispensou o capital estrangeiro para a
realização de seus projetos, porém lutou para que esse aporte se desse na forma
de empréstimos e não na instalação de empresas internacionais no Brasil.
Esse posicionamento equivocado azedou nosso relacionamento com outras
nações, privou o país de capitais de que tanto necessitava e acabou ganhando
novos e fortes inimigos, quando limitou a remessa de lucros ao exterior a 20 por
cento do capital das empresas multinacionais aqui instaladas. Medida, por sinal,
inútil, já que existem muitos caminhos pelos quais os lucros podem se evadir, de
maneira que, fechado um canal, o fluxo continua pelos outros que continuam
abertos.
Pelo menos no que tange às indústrias de base, a promessa de
nacionalização total foi mantida. A Cia. Siderúrgica Nacional foi construída com
base em empréstimos feitos por ocasião da Segunda Guerra Mundial, durante o
Estado Novo, sendo o capital 100 por cento nacional. A propósito, a Siderúrgica
foi inaugurada no governo Dutra e, no ato de inauguração, nenhuma palavra foi
dita em lembrança ao seu idealizador, Getúlio Vargas.
Neste novo mandato, o Presidente atira-se com vigor na criação da
Petrobrás e, já no final de governo, na implantação da Eletrobrás, ambas
estatais, e sem interferência de participação acionária estrangeira. No mais, teve
de ceder, entregando os anéis para ficar com os dedos.
A Guerra da Coréia
Uma amostra do que estava por vir foi o episódio criado relacionado à guerra
da Coréia, entre 1950 e 1953, desdobramento (quente) da guerra fria entre os
Estados Unidos e a União Soviética, envolvendo de permeio a China comunista
e a Organização das Nações Unidas (ONU).
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Após a Segunda Guerra Mundial, a Coréia foi dividida em dois territórios,
tendo como divisa o paralelo 38, ficando a parte setentrional com a União
Soviética, que organizou ali um governo comunista; a parte meridional
permaneceu com as demais potências aliadas e, quando estas se retiraram, os
Estados Unidos consolidaram nela um governo capitalista sob sua influência.
Em 25 de junho de 1950, a Coréia do Norte, num ato de provocação,
atravessou o paralelo 38, levando o presidente dos Estados Unidos, Harry
Truman a enviar tropas àquele país, ad-referendum do Congresso Americano,
ou seja, sem declaração formal de guerra ou, pelo menos, do estado de
beligerância..
O conflito se expandiu com a entrada da China a favor dos norte-coreanos,
levando a ONU a tomar partido, declarando a China como potência agressora.
Esta era a situação quando os Estados Unidos apelaram aos países pan-
americanos, entre eles o Brasil, para que enviassem tropas na defesa das
liberdades ameaçadas.
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Getúlio Vargas não entrou nessa armadilha. Já que os Estados Unidos não
foram atacados por uma potência estrangeira, não havia como falar na aplicação
do tratado pan-americano.
Em represália, os Estados Unidos ameaçaram suspender as negociações,
quase concluídas, para um empréstimo de 500 milhões de dólares ao Brasil. O
Ministro da Fazenda e o de Relações Exteriores eram a favor do envio de tropas.
Getúlio não, e enviou aos Estados Unidos o general Góis Monteiro, com a
missão de convencer o governo americano a separar as coisas, que nada tinham
em comum: guerra é guerra, empréstimo é empréstimo.
Alegava Getúlio que possuímos vários minerais estratégicos de que os
americanos necessitam e não se faz referência a essa colaboração, que
podemos dar, em vez de sangue dos brasileiros, para lutar na Coréia.
Os brasileiros não foram à luta, e isso evitou a perda de vidas inúteis por uma
causa que nem era nossa.
A guerra da Coréia, pelo balanço final, teve, entre os aliados, 118.515 mortos,
sendo a maioria deles sul-coreanos; os Estados Unidos perderam 33.729
soldados e os países que enviaram contingentes, atendendo ao apelo
americano, deixaram 4.786 homens em campo de batalha.
A ideia de criar a
Petrobrás
Uma luta feroz, em que o presidente se empenhou até o fim, se deu a favor
da criação do monopólio estatal do petróleo. Não que Vargas fosse um histórico
defensor do petróleo brasileiro, muito pelo contrário.
Quando do primeiro governo (1930-1945), sua visão de estadista levava-o a
acreditar que o mais proveitoso ao Brasil seria a compra do combustível das
companhias estrangeiras, evitando o trabalho de prospecção e refino, para o
qual o Brasil não dispunha de capitais nem tinha conhecimentos técnicos.
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Com o valor do petróleo extremamente aviltado (cerca de dois dólares por
barril), era mais econômico nos servirmos do produto acabado e não desviar
nossas atenções para uma tecnologia que não dominávamos, e cujo controle
mundial estava nas mãos de umas poucas empresas.
Pelo menos, esse era o pensamento do ditador, tanto que não entrou em seus
planos sequer a construção de usinas de refino, preferindo importar o produto
pronto para o uso, exportando em troca, minerais e outros produtos primários
que o Brasil tinha em abundância.
Ao fim do Estado Novo, o país possuía apenas três pequenas refinarias,
respectivamente em Uruguaiana (RS), Rio Grande (RS) e São Paulo, cuja
produção era insignificante.
Um único poço aberto na Bahia na década de 1930, segundo narrativa de
Monteiro Lobato, só gerou petróleo por descuido do ditador, que mantinha
técnicos encarregados de boicotar os trabalhos de prospecção. Durante o
período de Carnaval, quando esses técnicos se achavam de folga, o pessoal
prosseguiu nos trabalhos e conseguiu fazer jorrar o petróleo há tanto procurado.
Sabedor do acontecimento Getúlio Vargas mandou lacrar o poço e procedeu
sua estatização. Assim conta Lobato, cujo nome foi dado ao primeiro poço, em
homenagem à sua luta em favor do petróleo, luta essa que lhe valeu uma
temporada na Casa de Detenção em São Paulo, a mando do então chefe do
Estado Novo.
Nos anos cinquenta, a situação mudara bastante. O petróleo continuava
barato, mas deixou de ser um simples produto de consumo para transformar-se
em material estratégico, cujo domínio ou não, poderia significar o progresso ou
a estagnação de um país. Daí o interesse do Presidente, e mais, sua
determinação de que, tal como na siderurgia, o capital estrangeiro deveria entrar
na forma de empréstimos, jamais como participação acionária.
Em 8 de dezembro de 1951, o Presidente envia ao Congresso Nacional
mensagem com projeto de lei para a criação da sociedade por ações Petróleo
Brasileiro S/A, com o objetivo de levar a efeito a pesquisa, a extração, o refino,
o transporte do petróleo e seus derivados.
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A captação dos recursos para a integralização do capital seria feita: a) com
bens da União adquiridos no correr dos tempos para prospecção de petróleo; b)
com receita federal sobre parte do imposto de combustíveis líquidos e consumo
de automóveis; c) com taxação de artigos de luxo (inclusive os próprios carros);
d) com parte da receita estadual oriunda de impostos sobre combustíveis
líquidos; e) com empréstimo compulsório a ser cobrado por ocasião do
licenciamento de veículos; f) por subscrição voluntária de particulares e
entidades públicas interessados no empreendimento.
"O Petróleo é Nosso"
Como previsto, a reação dos adversários é imediata e violenta. A proposta do
governo contrariava frontalmente pelo menos dois axiomas do liberalismo
econômico, o primeiro ao criar uma empresa de caráter estatal, descartando a
iniciativa privada e o segundo ao recusar o aporte de dinheiro internacional na
formação do capital e condução da empresa, desprezando a tecnologia
desenvolvida pelos blocos que dominam o mercado petrolífero.
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Na contrapartida, o projeto sensibilizou não só os aliados do governo, como
os sindicatos, associações e entidades as mais diversas, e até os comunistas
que, embora adversários do governo, lançaram-se na campanha pela
nacionalização do petróleo. Surgiu, então, a divisa, que ecoou por todo o país e
que foi divulgada de norte a sul, em manifestações públicas e em campanhas:
O Petróleo é nosso.
A opinião pública ficou dividida entre nacionalistas e entreguistas, estes
últimos apoiados abertamente pelos americanos e pelos simpatizantes dos
Estados Unidos no Brasil, entre eles empresários com interesses voltados para
aquele país.
A luta atingiu em cheio o Clube Militar, onde as duas correntes tentavam fazer
valer as suas opiniões.
Dentro do governo a divisão entre ministros era clara e, no Congresso, a base
de apoio se fracionou ameaçando a tramitação e aprovação do projeto. No
trabalho de convencimento, muito ajudou a campanha popular, que tomou um
vulto considerável, não podendo ser ignorada pelos parlamentares.
Por fim, o projeto foi aprovado. Em 3 de outubro de 1953, marcando o 23º
aniversário da revolução de 1930, Getúlio Dorneles Vargas sanciona a Lei nº
2004, criando a Petrobrás. Estava vencida a batalha.
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Getúlio não teria a mesma sorte com a criação da Eletrobrás. Enviando um
projeto de lei ao Congresso em 10 de abril de 1954, pouco depois se viu
envolvido no mar de lama que inundou o Palácio do Catete e pôs fim ao seu
governo.
A guarda pessoal
do Presidente
Empossado no Governo em 1930, Getúlio Vargas não possuía nem pretendia
ter guarda pessoal. A segurança do Presidente era garantida pelas Forças
Armadas, alternando-se ora soldados do Exército, ora os Fuzileiros Navais.
Assim foi até 11 de maio de 1938, quando se deu o putch integralista, com a
invasão do Palácio da Guanabara, em coordenação com os fuzileiros que,
naquela noite, estavam dando plantão. Foi o tenente Nascimento que abriu os
portões do palácio para entrada dos atacantes, e foram os fuzileiros em serviço
que prenderam ou executaram aqueles que se recusaram participar do levante.
Naquela noite, é bom que se lembre, um franco-atirador, do alto de uma
árvore, enviou um tiro certeiro em direção à mesa de despachos do Presidente,
transpassando a cadeira onde supostamente ele estaria sentado. Tudo com a
ajuda daqueles militares que se encontravam no Palácio para garantir-lhe a
segurança.
Superado o episódio, Getúlio pede ao seu irmão, Benjamin Vargas, que lhe
selecione homens competentes e confiáveis para a formação de uma guarda
pessoal sobre a qual seja possível exercer influência direta.
É aí que entra em cena a figura estranha e comprometedora do tenente
Gregório Fortunato. Homem rude e ignorante, tinha, todavia, uma virtude,
apreciada por Getúlio: seguia as ordens de seu amo como um cão fiel,
executando-as ao pé da letra, custasse o que custasse, contando para isso com
uma equipe de jagunços que obedeciam cegamente seu comando.
Não tardou que Getúlio lhe entregasse missões mais amplas para as quais,
seguramente, ele não estava preparado.
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Ao final da campanha de 1950, por exemplo, foi Gregório Fortunato que
escolheu a Estância de São Pedro, em Uruguaiana, dentre tantas outras, para
abrigar o candidato e depois Presidente eleito, até o dia da diplomação. E era
ele que fazia a triagem de políticos que podiam adentrar ou não à estância para
parlamentar com seu amo.
Com tal poder nas mãos, não é de se surpreender que venha a ser assediado
por interesseiros que, a troco de propinas, utilizavam seus serviços para obter
favores ou ganhar as boas graças do Presidente.
Gregório enriqueceu rapidamente e, como era rude e ignorante, não tomou
medidas de precaução para salvaguardar a si mesmo e ao Presidente, a quem
servia.
Manobrado com astúcia por gente palaciana, cometeu deslizes, um após
outro, até chegar ao crime da rua Tonelero, começo do fim do presidente Getúlio
Vargas.
Lacerda, o demolidor
Filho do renomado político socialista Mauricio de Lacerda, o jovem estudante
Carlos Frederico Werneck Lacerda fez sua estreia política aos 21 anos, meses
antes da Intentona Comunista de 1935, quando, em emocionado comício, lançou
o nome de Luís Carlos Prestes como presidente de honra da Aliança Nacional
Libertadora.
Semanas antes Intentona, quando Prestes já se achava no Brasil, em lugar
incerto e não sabido, coube a Carlos Lacerda fazer a leitura pública de um
manifesto do líder comunista, detonando os acontecimentos que levaram até a
rebelião de 27 de novembro de 1935.
Em 1947, filiado à União Democrática Nacional, Lacerda elege-se vereador
pelo Distrito Federal, com expressiva votação. Em 1951, assume uma cadeira
na Câmara Federal, passando a conciliar suas atividades políticas dentro da
UDN e no Congresso, com as atividades jornalísticas na Tribuna da Imprensa,
jornal do qual era proprietário.
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Com uma metralhadora giratória, representada pelo poder extraordinário de
sua palavra, pelo raciocínio claro e límpido, e pela determinação demolidora de
seu temperamento, Carlos Lacerda passa a atacar incessantemente o palácio
presidencial, tendo como alvo o presidente Getúlio Vargas, mas atingindo,
indistintamente, todos os que estão ao redor.
Uma de suas primeiras vítimas foi o jornalista Samuel Wainer que,
beneficiado pelo dinheiro fácil oriundo de empréstimos oficiais, começou a
montar uma rede de jornais para a defesa do Presidente, destacando-se a
Última Hora no Rio de Janeiro, sua congênere de São Paulo, e a revista Flan,
de circulação nacional.
Ao mesmo tempo em que atacava Wainer, procurando por tabela atingir
Vargas, Carlos Lacerda passou a investigar a vida pregressa de seu adversário,
obtendo uma revelação que caiu como bomba: Samuel Wainer não era brasileiro
nato, condição essencial para ser proprietário ou diretor de órgão de imprensa.
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Com efeito, pelos documentos levantados, Wainer nasceu na Bessarábia
(Rússia Europeia) havendo entrado no Brasil, ainda criança, pelo vapor
Canárias. Chegando a São Paulo, seus pais o registraram como nascido na
capital paulista e, portanto, brasileiro nato.
Havia, então, uma série de crimes, suficientes para leva-lo aos tribunais: falsa
identidade, falsa nacionalidade, atuando ilegalmente como proprietário e diretor
de órgãos de imprensa, e mais, os empréstimos irregulares em Bancos oficiais,
assim como isenções fiscais para importação de maquinário e papel de
imprensa, o que o pôs em vantagem sobre os demais concorrentes.
Ao final, Wainer foi condenado a uma pena de um ano e nove meses de
prisão. A revista sob sua direção deixou de circular, os jornais entraram em
declínio e, mais tarde, os títulos foram vendidos. Ao atingir o jornalista, Carlos
Lacerda acertou seu alvo máximo, o presidente Getúlio Vargas.
O espancamento e morte
de um jornalista
O ano de 1954 já começara com um triste presságio. No mês de maio, o
jornalista Nestor Vaz Moreira, do jornal A Noite foi surrado até a morte por
policiais. Investigando por conta própria, a imprensa descobre como principal
autor do espancamento um policial, cujo nome se perdeu no tempo, mas que era
conhecido pela sugestiva alcunha de Coice de Mula.
Ante os protestos da imprensa, da oposição e da própria sociedade civil, foi
aberto um inquérito na Chefatura de Polícia, então comandada pelo general
Armando de Morais Âncora. Os dias passam e o inquérito se arrasta, para ao
final encerrar-se de forma inconclusiva, com respostas que não aclaravam nada,
nem tranquilizavam a quem quer que seja.
A Chefatura de Polícia voltava a lembrar os velhos tempos em que era
ocupada por Benjamin Vargas, quando arbitrariedades se cometiam com a
conivência, quando não por ordens expressas de sua autoridade maior.
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O sepultamento do jornalista Nestor Vaz Moreira teve grande
concentração de amigos, colegas de profissão e políticos
A morte de Nestor Vaz Moreira foi um assunto que rendeu meses de ataques
à polícia de Getúlio Vargas e a falta de solução valeu como combustível para
alimentar as críticas muito além do que o episódio, em si, poderia suscitar, se
esclarecido a tempo.
Nem bem o assunto começava a esfriar e outra notícia volta a alarmar a
sociedade carioca: Carlos Lacerda fora vítima de um atentado.
O crime da rua Tonelero
Com os amigos que tinha à sua volta, Getúlio Vargas nem precisava de
inimigos. O general Mendes de Morais e um deputado federal, ambos íntimos
do palácio presidencial, sugeriram ao chefe da guarda pessoal do Presidente,
Gregório Fortunato, que ele estaria prestando um excelente serviço ao seu amo
se eliminasse Carlos Lacerda.
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Gregório deixou-se envolver pelo canto da sereia e, acreditando, realmente,
que a morte do jornalista traria bem-estar ao Presidente, não teve dúvidas em
contratar um pistoleiro para executar o trabalho.
Não se sabe bem por quê, Carlos Lacerda, jornalista, tinha como guarda
pessoal um oficial graduado da Aeronáutica, o major Rubens Vaz. Na noite de
5 de agosto de 1954, os dois desceram do carro na rua Tonelero, nº 180,
residência de Lacerda, quando foram interceptados por um desconhecido que
atirou contra o major, ferindo-o mortalmente, voltando-se depois contra o
jornalista, que ainda teve tempo de se defender, levando apenas um tiro no pé.
Socorrido por populares, o major Vaz veio a morrer em seguida, antes mesmo
receber atendimento médico.
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No hospital, chega o brigadeiro Eduardo Gomes, arqui-inimigo de Getúlio
Vargas e, sob comoção, declara: Para a honra da nação, confio que este crime
não ficará impune.
Uma placa de carro, anotada durante a fuga, forneceu a primeira pista, a partir
da qual foi se desfazendo, aos poucos, a trama. O motorista do veículo, Nelson
Raimundo apresentou-se à polícia e revelou ter sido contratado por Climério
Eurides de Almeida, integrante da guarda pessoal do palácio. A missão do
motorista era transportar o pistoleiro Alcino João do Nascimento, contratado
para consumar o atentado.
Tomando conhecimento do fato, Getúlio Vargas manda dissolver
imediatamente a guarda pessoal, o que não impede que os acontecimentos se
desdobrem, descontroladamente, e com extrema rapidez.
Poderes paralelos
É difícil, muito difícil mesmo, descrever o que se passou após a morte do
major Vaz e a criação da República do Galeão, uma comissão de inquérito
formada na Aeronáutica ao arrepio da Constituição.
A comoção pelo trágico acontecimento envolveu por completo as Forças
Armadas e minou a autoridade do presidente da República, tirando-lhe as
condições essenciais para continuar governando. Quem conta é Hélio Silva:
"Ao mesmo tempo que a Polícia, conhecendo o caso através da
delegacia em cuja jurisdição o fato ocorreu, tomava providências
adequadas, a Aeronáutica designou um oficial superior para
acompanhar o inquérito.
"Não parou a interferência da Aeronáutica. A oficialidade reuniu-
se em assembleias ruidosas no Clube da Aeronáutica. No Clube
Militar, oficiais da Marinha e do Exército se solidarizavam com seus
oficiais aviadores no repúdio ao crime e na exigência de uma
repressão violenta imediata.
"Formaram-se bandos punitivos, que realizavam, por sua conta
e risco, toda espécie de diligências, ocupando estações
rodoviárias, ferroviárias e aeroviárias, identificando quem saísse da
capital, empregando cães amestrados na busca dos fugitivos.
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"Esse trabalho varava os dias e as noites e, enquanto uma
equipe exausta era substituída por outra, descansada, os foragidos
vinham sendo submetidos a uma perseguição sem trégua, cujos
resultados logo se iam apresentar."
A “República do Galeão”
A Aeronáutica tomou a frente, instalando uma comissão de inquérito para
investigar o presidente da República, Chefe Supremo das Forças Armadas, cuja
autoridade estava agora sendo ignorada. Pela arbitrariedade que representava
essa Comissão, funcionando como um tribunal à margem da Constituição, a
sede da Aeronáutica ficou conhecida como a República do Galeão.
Ato primeiro foi a prisão de Gregório Fortunato. Logo em seguida, é preso
Climério o outro componente da guarda pessoal. Dois dias depois, acuado como
fera, rende-se o pistoleiro Alcino.
Getúlio nem tinha ideia do que se passava à sua volta e, de moto próprio, abriu
os portões do Palácio do Catete para que a Aeronáutica fizesse ampla
investigação.
O objetivo do Presidente, com toda sinceridade, era o de provar que se
tratava de um ato isolado, que não podia ser generalizado, sob pena de
comprometer a seriedade de sua equipe, na qual tinha irrestrita confiança.
Estava enganado, e muito, o Presidente. À sua volta, sem o seu
conhecimento, as irregularidades vinham sendo praticadas há tempos,
envolvendo todos os escalões e comprometendo por completo o governo e seu
titular, o Presidente.
Todos o sabiam, só Getúlio não. Ele confiava demais nos seus auxiliares. E,
registre-se a seu favor, nenhum indício sequer foi encontrado de que o
Presidente tenha, alguma vez, utilizado o poder em proveito próprio. Seus
assessores o faziam, à sua sombra, sem o seu conhecimento e sem o seu
consentimento.
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O mar de lama
A cada investigação, novos e surpreendentes fatos iam aparecendo, como,
por exemplo, uma operação de compra e venda de uma fazenda: o vendedor
era Getúlio Dorneles Vargas; o comprador, nada menos que Gregório Fortunato,
chefe da guarda pessoal e sem renda suficiente para bancar de uma operação
de tamanho vulto.
Vamos explicar o que ocorreu de fato. Há tempos Getúlio, envolvido em
dívidas contraídas durante a campanha eleitoral, passara uma procuração ao
seu filho Manuel Vargas (Maneco) para vender alguns de seus bens, a fim de
saldar compromissos. Maneco recebeu a procuração, cuidou de executar o
mandato e, sobre o assunto, nada mais disse nem lhe foi perguntado.
Surgindo agora essa embaraçosa revelação, Getúlio entra em contato com
Maneco, que se achava em viagem pela Europa, ordenando-lhe que volte
imediatamente para esclarecer o assunto.
A conversa entre Getúlio e seu filho dá a verdadeira dimensão do escândalo.
Maneco confessa tudo. Vendera, sim, a fazenda, a Gregório Fortunato, e parte
desse dinheiro serviu, não para cobrir dívidas de campanha, mas para custear a
viagem, agora interrompida, que o próprio Maneco estava fazendo à Europa.
João Batista Luzardo, velho companheiro do Presidente, conta o que ouviu
de Osvaldo Aranha, ministro da Fazenda, a propósito:
"Só aí o Presidente tomou consciência dos problemas bárbaros que
derrocavam seu governo. Mandou então chamar Osvaldo Aranha
com urgência (eu transmito o episódio como me foi narrado pelo
próprio Osvaldo, na manhã de 24 de agosto). Osvaldo subiu e
encontrou Getúlio debruçado numa janela do Catete, óculos
escuros e uma fisionomia tristonha, denotando que havia chorado.
‘Mas o que há, ‘seu’ Getúlio?’ O Presidente fez uma pausa e só fez
dizer: ‘Osvaldo, está confirmado. Debaixo do Catete há um mar de
lama. O Maneco chegou e confirmou que vendeu a propriedade.’
Dito isso, voltou a chorar."
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Segundo narrativa de Luís Alberto, filho de Luzardo, que se achava no
palácio, com seu pai no dia 22 de agosto, chegou a notícia de que a Aeronáutica
ia atacar o palácio e, então, o general Caiado de Castro, chefe da Casa Militar,
distribuiu armas a todos os presentes para organizar a defesa.
Com efeito, aviões da FAB passavam sobre o Catete em voos rasantes, com
o objetivo de achincalhar o Presidente.
Após um manifesto de almirantes, segue-se manifesto dos brigadeiros
brigadeiros e transmitido, como o primeiro, por todas estações de rádio. O
brigadeiro Nero Moura, ministro da Aeronáutica desde o início do governo,
demite-se, retirando apoio ao Presidente, sendo substituído pelo brigadeiro
Epaminondas Gomes dos Santos.
Dia 23, no Hotel Serrador, em encontro secreto, o opositor Carlos Lacerda e
o vice-Presidente constitucional, Café Filho conversam durante duas longas
horas, acertando detalhes sobre a sucessão, na hipótese da renúncia de Getúlio.
Em seguida, Café Filho pronuncia um discurso no Senado, previamente
redigido, mimeografado e distribuído aos parlamentares, em que considera a
hipótese de assumir o governo.
Soldados da Aeronáutica cercam o Ministério e impedem a entrada do novo
ministro nomeado. Por sua vez, a polícia ocupa a Companhia Telefônica e impõe
censura às estações de rádio e agências telegráficas.
Por fim, vem o manifesto dos generais em que o Exército se manifesta,
solidarizando-se com a Marinha e a Aeronáutica. Entre as assinaturas, encontra-
se o nome de Canrobert Pereira da Costa, o primeiro dos signatários. Seguem-
se nomes de peso, como Juarez Távora, Alcides Etchegoyen, Pery
Bevilacqua, Humberto de Alencar Castelo Branco, Henrique Batista Duffles
Teixeira Lott e Jair Dantas Ribeiro.
O cenário estava armado, só o roteiro da peça ainda não era conhecido por
ninguém.
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A última reunião
do Ministério
Tarde da noite de 23 de agosto de 1954, realiza-se a última reunião
ministerial de Getúlio Vargas, uma reunião pouco ortodoxa, segundo expressão
de Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Lá se encontrava todo o Ministério e mais
pessoas ligadas ao Palácio, que nada tinham a ver, mas que lá ficaram, porque
o Presidente não lhes pediu que se retirassem. Entre elas, a própria Alzira que
se postou junto ao pai e que interferiu, em certo momento, recriminando os
ministros militares.
A reunião teve lances dramáticos e uma discussão entre os ministros
militares, como conta Alzira:
"Estabelecera-se um atrito entre o ministro da Guerra e o da
Aeronáutica, o qual seria o maior responsável pela situação: o
Manifesto dos Generais ou a República do Galeão. O brigadeiro
Epaminondas [Ministro da Aeronáutica] declarou que bastava
prender os dois principais cabeças do movimento, Eduardo Gomes
e Juarez Távora, e toda a pendenga estaria terminada. Zenóbio
[Ministro da Guerra], irritado, perguntava: É por que você não os
prende?’ ‘Porque não disponho de tropas’, respondia
Epaminondas. ‘Forneça o local para prende-los e eu vou’.
"Interpelado, Guilhobel [Ministro da Marinha] disse duramente:
‘Presidente, parece que seu destino é ser traído pelos seus chefes
militares.’ O general Caiado de Castro [chefe da Casa Militar] que,
um tanto surdo, em pé, atrás do ministro da Marinha, tentava
acompanhar os debates, levou as sobras. O ministro da Guerra
[Zenóbio] o interpelava brutalmente, perguntando por que não ia
ele comandar as tropas de defesa. Caiado, quando entendeu,
aceitou o desafio e pediu que lhe desse as tropas. A confusão
ameaçava tornar-se total quando a voz de Vargas, serena e clara,
novamente restabeleceu a ordem e o silêncio, um silêncio tétrico."
Fecham-se as cortinas
Na madrugada do dia 24 de agosto de 1954, encerrada já a reunião
ministerial, Getúlio Vargas dá suas últimas instruções, assina alguns
documentos, e recolhe-se aos seus aposentos. Os participantes da reunião,
retiram-se quase todos. Apenas alguns permanecem no palácio, entre eles o
ministro da Justiça, Tancredo Neves.
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No silêncio da madrugada, um tiro ecoa. O capitão Hélio, responsável pelo
plantão chega esbaforido: "O Presidente suicidou-se!". O historiador Helio
Silva narra:
"Subiram, correndo, Alzira, Tancredo e todos os que se
achavam no hall. Vargas estava recostado, na posição confirmada
por todos, a perna para fora da cama. O coração sangrando aos
borbotões. Tancredo conta que procurou ampara-lo, enquanto
Alzira abraçava-o. Ele procurava alguém com o olhar, que se fixou
em Alzira, mais demoradamente, até que faleceu."
Ao seu lado, um papel cuidadosamente datilografado, em linguagem clara e
com os pensamentos muito bem formulados. Era a carta testamento, cuja
autenticidade foi contestada por muitos. Quando mais não fosse, por um detalhe:
Getúlio não sabia escrever à máquina. João Batista Luzardo, em depoimento a
Glauco Carneiro, protesta contra essa versão:
"Mas, meu Deus, quem pode dizer isso? Está ali a ideia, o feitio
dele; o pensamento, a plataforma do que queria e do que procurava
fazer, quando fundou o PTB... Ali está a sua reação contra as
pressões que sofria, contra os inimigos que o assediavam – quem
pode contestar uma certeza destas? Não posso dizer que tenha
sido ele quem escreveu as palavras, mas o conteúdo é dele, é dele.
“Todo mundo sabia que o Maciel Junior era quem melhor
expressava o pensamento dele, por escrito – o emprego dos
termos, a maneira de falar do Getúlio. Captava até aquela
linguagem coloquial do Getúlio, que tinha muito sucesso ao falar de
improviso, porque não se alongava e era feliz – com expressão,
com sentimento, com precisão, aferrando-se a ideias determinadas
e as transmitindo muito bem ao público. Além do mais, o Maciel
Filho, que penso ser o escrevinhador da carta, mas não o seu autor,
era confidente de Getúlio, vivia com o Getúlio dia e noite. Se o
Getúlio deu as ideias gerais, e o Maciel as alinhou, onde é que o
Getúlio deixa de ser o autor?"
Verdade é que, se o tiro da rua Tonelero, acertando o major Vaz atingiu
também, de forma indireta, Getúlio Vargas, já o tiro no peito de Vargas atingiu
em cheio a União Democrática Nacional e seu porta-voz máximo, o jornalista
Carlos Lacerda. O impacto do suicídio e o teor da carta-testamento
sensibilizaram o trabalhador brasileiro, que se voltou contra a UDN, retirando-lhe
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qualquer chance de chegar ao poder e dele participar. Seu destino, até que foi
extinta na ditadura, por Ato Institucional, foi permanecer na oposição, uma
oposição violenta e, por vezes, consistente, mas afastada das massas
populares, cuja confiança jamais chegou a conquistar.
Jornais repercutiram o suicídio...
... e a multidão seguiu com Getúlio para o último “”adeus”