capítulo Único

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Os três dias em que Morte viveu Camila Meurer Jandrey Capítulo Único Enquanto caminhava, os cabelos negros e opacos ululavam ao vento. Os olhos, também negros, varreram desinteressadamente o lugar. Vivia sua eterna e entediante vida em cemitérios e bares, revezando-se entre trabalho e prazer. Foi no bar que a viu. Primeiro foram apenas chamas no meio da multidão, mas logo conseguiu enquadrá-la em seu campo de visão. Os olhos eram azuis e a pele, “amendoim” diriam os artistas, parecia macia. Mas o mais belo eram seus cabelos. Madeixas alaranjadas que clamavam por serem tocadas, bagunçadas. Era o cabelo ruivo de uma amante selvagem, traiçoeira e promissora. Sem receios, aproximou-se dela. A mulher o olhou de volta e, imediatamente, soube que havia vida demais nela. Infelizmente já era tarde demais. O Senhor dos Mortos estava apaixonado. Conversaram e o resultado foi inevitável. Foram ao apartamento dele. Na noite seguinte, aconteceu algo inédito: o homem saiu pela segunda vez com a mesma mulher. Foi em segredo. O romance era escondido, pois, mesmo então, sabiam que havia algo de errado. Era noite de lua cheia e as árvores lançavam sombras azuis montanha abaixo. No topo da elevação rochosa, ponto de encontro do casal enamorado, o vento forte e constante não chegava a ser um problema. Perdidos em seu belo pecado, o homem e a mulher se amaram. Ao amanhecer, toda a vegetação que lhes rodeava estava morta. O casal, é claro, não percebeu. O homem, pálido como nunca antes, não foi ao cemitério. A mulher, pálida como jamais pensara ficar, também permaneceu no apartamento dele. Ficaram o dia inteiro juntos. Conversaram, riram e se conheceram. Eles sabiam que o que faziam não poderia, jamais, acontecer. Por isso nenhum fez a pergunta realmente importante. Nenhum dos dois havia passado tanto tempo junto de outra pessoa.

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Fanfic de Camila Meurer Jandrey

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Page 1: Capítulo Único

Os três dias em que Morte viveu

Camila Meurer Jandrey

Capítulo Único

Enquanto caminhava, os cabelos negros e opacos ululavam ao vento. Os olhos, também negros, varreram desinteressadamente o lugar. Vivia sua eterna e entediante vida em cemitérios e bares, revezando-se entre trabalho e prazer. Foi no bar que a viu. Primeiro foram apenas chamas no meio da multidão, mas logo conseguiu enquadrá-la em seu campo de visão. Os olhos eram azuis e a pele, “amendoim” diriam os artistas, parecia macia. Mas o mais belo eram seus cabelos. Madeixas alaranjadas que clamavam por serem tocadas, bagunçadas. Era o cabelo ruivo de uma amante selvagem, traiçoeira e promissora.

Sem receios, aproximou-se dela. A mulher o olhou de volta e, imediatamente, soube que havia vida demais nela. Infelizmente já era tarde demais. O Senhor dos Mortos estava apaixonado. Conversaram e o resultado foi inevitável. Foram ao apartamento dele.

Na noite seguinte, aconteceu algo inédito: o homem saiu pela segunda vez com a mesma mulher. Foi em segredo. O romance era escondido, pois, mesmo então, sabiam que havia algo de errado. Era noite de lua cheia e as árvores lançavam sombras azuis montanha abaixo. No topo da elevação rochosa, ponto de encontro do casal enamorado, o vento forte e constante não chegava a ser um problema. Perdidos em seu belo pecado, o homem e a mulher se amaram. Ao amanhecer, toda a vegetação que lhes rodeava estava morta. O casal, é claro, não percebeu. O homem, pálido como nunca antes, não foi ao cemitério. A mulher, pálida como jamais pensara ficar, também permaneceu no apartamento dele.

Ficaram o dia inteiro juntos. Conversaram, riram e se conheceram. Eles sabiam que o que faziam não poderia, jamais, acontecer. Por isso nenhum fez a pergunta realmente importante. Nenhum dos dois havia passado tanto tempo junto de outra pessoa. E jamais passarão novamente. Ao final da tarde, voltaram ao quarto dele e deitaram-se abraçados. Subitamente a luz do sol invadiu o aposento. Em ângulos abertos, espalhava-se por todo o quarto. Era uma luz fraca, de pôr do sol, e nenhum dos amantes deu-lhe atenção. O barulho ensurdecedor, entretanto, foi impossível de ser ignorado. O carvalho que deveria viver mais quinhentos anos caíra.

Assustados, ambos correram à janela. O carvalho estava atirado de lado, sobre dois carros. Os donos gritavam em desespero. A atenção deles, porém, estava na árvore. A árvore que acabara de provar que seus maiores pesadelos eram reais. As raízes, em avançado estado de decomposição, como se mortas há anos. A grama ao redor estava amarelada, morta. Entretanto, as folhas nas copas estavam verdes e cheias de vida. O tronco, ou boa parte dele, apresentava força e beleza. O carvalho nunca estivera tão vivo quanto em sua morte.

O casal se olhou. Suspiraram e caíram, derrotados, um ao lado do outro.

Page 2: Capítulo Único

- Você é Vida – ele disse.

- E você é Morte – ela respondeu.

Mais palavras foram desnecessárias. Sem se conter, o homem se levantou e buscou sua máquina fotográfica. A mulher se encolheu e uma tênue luminosidade esverdeada a envolveu. Seus cabelos voltaram a ser chamas clamantes e a pele voltou a reluzir. O homem tirou a foto do ser mais lindo do mundo e permitiu que ela tirasse uma sua. Depois disso, ele se sentou no sofá da sala, longe do carvalho incriminador. Vida o seguiu e se deitou em seu colo. Ela segurou sua mão, sabendo que jamais o veria novamente. Os cabelos dela, novamente sem brilho, eram a mais bela visão para Morte.

Uma lágrima escorreu dos olhos do homem. Se Vida e Morte viverem juntos, tudo ao seu redor viverá superficialmente, enquanto que, por dentro, tudo morrerá. A Vida não existe sem Morte, porém ambos não podem conviver juntos.

O homem sai de seu escritório silencioso no cemitério e vai ao banheiro. Ao limpar seu rosto, não reconhece o homem que o encara. Há tempos não reconhecia. Há quinhentos anos, Morte e Vida se conheceram em um bar. Agora, Morte vai aos bares procurando por uma substituta. Mas ele jamais a encontrará e sabe disso. A mulher por quem procura trará algo pior do que o apocalipse se for encontrada, pois a única capaz de fazer Morte amar é Vida.

Quilômetros ao sul, uma mulher de cabelos chamejantes encara o terreno morto que um dia fora o lar de um belo carvalho.