carolina bastos - dionisio e apolo - faces de uma reflexão sobre dança

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  • 7/30/2019 Carolina Bastos - Dionisio e Apolo - faces de uma reflexo sobre dana

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Bastos, Carolina Leopardi Gonalves BarrettoB297d Dioniso e Apolo: faces de uma reflexo sobre a dana a partir

    dasLeis de Plato / Carolina Leopardi Gonalves Barreto Bastos.- - Campinas, SP : [s. n.], 2005.

    Orientador: Alcides Hector Rodriguez Benoit.Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Dioniso (Deus grego). 2. Apolo (Deus grego). 3. Plato.4. Dana. 5. Dilogos. 6. Filosofia I. Benoit, Alcides HectorRodriguez, 1951-. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    cc/ifch

    Palavras chave em ingls (Keywords) : PhilosophyDance

    Dialogues.

    rea de concentrao : Esttica, Filosofia, Histria da Filosofia, Dana.

    Titulao : Mestrado em Filosofia.

    Banca examinadora : Alcides Hector Rodriguez Benoit, Jos Antnio AlvesTorrano, Jeanne-Marie Gagnebin de Bons.

    Data da defesa : 22/07/2005

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    BANCA EXAMINADORA

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    RESUMO

    A dissertao oferece uma amostra de como a dana aparece na literatura filosfica. Em

    termos especficos, consiste em apresentar o panorama com que o tema discutido nos

    dilogos de Plato. Considerando-se que o filsofo ateniense apresenta a dana do

    perodo clssico da antiguidade grega em uma pluralidade de aspectos, discutimos: (1) a

    educao daplis, (2) o sentido religioso dos festivais, (3) o carter mimtico da dana

    grega e (4) a sade e a beleza do corpo nas terapias que envolvem o uso da ginstica e

    dos jogos. Na segunda parte, expomos uma introduo dana no pensamento de

    Nietzsche, considerando os sentidos e os termos com os quais a dana uma instncia de

    reverso do platonismo.

    RSUM

    La dissertation offre um aperu de la danse et comment elle apparat dans la littrature

    philosophique. Dune faon plus precise, elle consiste prsenter le panorama avec

    lequel le thme est discute dans les Dialogues de Platon. En considrant que le

    philosophe athnien presente la danse de la priode classique de lAntiquit Grecque

    dans une pluralit daspects, nous discutons : (1) lducation de la plis, (2) le sens

    rligieux des festivals, (3) le caractre mimique de la danse grecque et (4) la sant et la

    beaut du corps dans les thrapeutiques qui enveloppent lusage de la gymnastique et

    des jeux. Dans la second partie, nous exposons une introduction la danse daprs la

    pense de Nietzsche, em considrant les sens, les mots avec lequels la danse est instance

    de rversion du platonisme.

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    Agradecimentos

    Ao prof. Dr. Hector Benoit (IFCH-UNICAMP), primeiramente pela aceitao de um

    tema no convencional nas discusses sobre o pensamento antigo e, em particular, pela

    sua leitura e contribuiesparmenidianas ao presente texto.

    profa. Dra. Jeanne-Marie Gagnebin de Bons (IFCH-UNICAMP) e ao prof. Dr.

    Oswaldo Giacoia Jr. (IFCH-UNICAMP) pelas consideraes feitas em exame de

    qualificao, muitas vezes decisivas, e no somente nesta ocasio. profa. Jeanne-

    Marie, especialmente pela viso de movimento e desdobramento dos espaos a ocupar;

    ao prof. Oswaldo, pela indicao de leitura para a resoluo de um problema especfico.

    Ao Prof. Mrcio Benchimol de Barros (UNESP-Campus Marlia) pelo seu importante

    livro sobre a primeira obra de Nietzsche, pelo cordiais incentivos minha pesquisa e

    pelos comentrios sobre uma jia.Ao prof. Dr. Paulo Vasconcellos (IEL-UNICAMP), ao prof. Dr. Flvio Oliveira (IEL-

    UNICAMP) e ao prof. Dr. Jackie Pegeaud (NANTES-FR) pelas indicaes de leitura

    sobre a dana grega. Sobretudo ao encorajamento por parte do prof. Paulo.

    Profa. Dra. Haiganushi Sarian (MAE-USP) pelo curso sobre Iconografia da Imagem e

    comentrios sobre o projeto inicial; e ao prof. Dr. Marcos Nobre (IFCH-UNICAMP) por

    ajudar a viabilizar esta interlocuo.

    profa. Dra. Valciclia Pereira (UFAM) pelos livros gentilmente cedidos e pela leitura

    atenciosa do primeiro captulo.

    Ao prof. Dr. Adilson Nascimento (FE-UNICAMP) pelos estudos empricos envolvidos

    na formao de um sujeito danante.

    Railda Leonardo (Centro de belas Artes de Macei), Eliana Cavalcante e Emlia

    Clark (Ballet Eliana Cavalcante), no por terem sido minhas professoras de balletmas

    pelo encantamento com que se mantiveram efetivamente inesquecveis.

    Graa pela ternura com que foi minha leitora; amizade e carinho sem igual.

    A Jenner pela dedicao em ler os captulos restantes.

    Ambos pelo apoio irrestrito.

    A Sakai pelo companheirismo.

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    Isadora Duncan

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    SUMRIO

    INTRODUO:...........................................................................................................p.8

    CAPTULO I:Paidia................................................................................................p. 11

    1.1 Os deuses e a dana..............................................................................................p.12

    1.2- A educao principia com a dana: Apolo e as Musas..........................................p.14

    1.2.1 Ritmo e harmonia.... ........................................................................................................p. 18

    1.2.2 O julgamento artstico.....................................................................................p. 20

    1.3- O aspecto dionisaco da dana .............................................................................p. 21

    1.3.1 O vinho, a dana e as fases da vida humana....................................................................p. 22

    1.3.2 As danas bquicas.........................................................................................p. 25

    CAPTULO II:Psiqu..............................................................................................p. 26

    2.1 A harmonia e os movimentos da alma: Timeo e Fedro..........................................p. 292.1.1 Danas de harmonia e de desarmonia ......................................................................p. 31

    2.1.2 Universos de referncia: verticalidade e simbologia ...................................................p. 33

    2.2- Natureza dos movimentos: princpio, continuidade e equilbrioLeis e Timeo .... p.36

    CAPTULO III:Mimese...........................................................................................p. 43

    3.1 Uma palavra dos historiadores.............................................................................p.45

    3.2 A representao mimtica da dana emLeis..........................................................p. 50

    3.2.1.- O gesto.......................................................................................................p. 51

    3.2.2- O elemento do prazer.....................................................................................p. 52

    3.2.3- Os squmata...............................................................................................p. 54

    3.3 Dana retratada....................................................................................................p. 59

    CAPTULO IV: Uma leitura nietzschiana deLeis.................................................p. 68

    4.1- Contraponto: a dana como lugar de reverso......................................................p. 69

    4.2- Redefinio: Os princpios da dana emA Viso Dionisaca do Mundo .............p. 72

    4.2.1 Apolneo, as figuras e a navalha........................................................................p. 81

    4.2.2 Dionisaco, no fundo do prazer e da dor..............................................................p. 84

    4.3- Retomada: O princpio apolneo da dana platnica em Nietzsche..................p. 87

    CONCLUSO:.......................................................................................................... p. 91

    BIBLIOGRAFIA:......................................................................................................p.102

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    INTRODUO:

    Esta cena no seno apenas uma dentre todas as outras que se encontram neste

    vaso grego de figuras vermelhas, suporte material de figuras lendrias, antigamente

    utilizado para transportar gua, chamado dria.1

    O que nela haveria que espreita um incio? A mnade tem os olhos fixos em

    Dioniso que, estando de p com seu tirso, contempla a mnade que neste instante acabou

    de girar sobre si mesma. A imagem retrata o instante preciso em que seu vestido ainda

    est contorcido e cheio de ar. Quase nada existe nesta figura que nos possa lembrar as

    furiosas companheiras do deus de que nos falam Eurpedes e Pausneas, a escalar

    montanhas em neve, munidas do tirso e da mania, a danar sem ordem ou mesura,

    incansavelmente, e capazes de despedaar e devorar animais com as prprias mos. Uma

    mnade inconsciente, um ser tomado, no nos parece. H uma outra atitude, em seu

    1 Confeco e composio pictrica do incio do ano 400 a.C., o exemplar proveniente de Ruvoe pode ser atualmente encontrado em Karlsruhe, no Landesmuseo. A cena principal da pea ojulgamento de Pris, tema com o qual se nomeou, posteriormente, o pintor.

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    lugar. Entre as figuras, uma lmpida atmosfera exclui todo e qualquer elemento de

    xtase, entrega, receptividade. Com justeza nos movimentos ela se expe e se apresenta

    atravs de sua dana. Neste momento, no se abandona a si mesma, mas retoma a si e

    pode ver bem dentro dos olhos de Dioniso.

    O que h nos olhos de Dioniso que no se pudesse achar nos olhos de Apolo?

    Segundo nosso modo de pensar, Dioniso primeiro representa a espontaneidade do

    movimento, sua fora natural que preenche o mundo de fenmenos que no se prestam a

    serem medidos ou pesados. A bacante dana a seu bel prazer, sem sugesto de tcnica,

    sem condies sine qua nonpara seus movimentos. O olhar de Dioniso a transporta para

    um lugar anterior onde h apenas movimento incessante, onde estamos todos por

    demais prximos das percepes imediatas e profundas, do prazer e da dor.

    A bacante se conecta a este mundo, ao mesmo tempo ntimo e selvagem, nestedivino olhar. O sentido da terra lhe revelado. Diante desta presena gira sobre si

    mesma, tendo mo o tirso. No se pergunta sobre o porqu dos Mistrios, pois os

    pressente ao demarcar os espaos de sua dana. Ela os pode sentir, no fluxo intenso do

    tempo, mas no os pode ver, seno atravs de alguma obscuridade.

    A esta perspectiva dionisaca, em sentido radical de abertura ao movimento,

    ligamos a acepo apolnea. Nesta ltima, a ocupao previamente definida pelo

    espao da dana. No se pergunta o porqu desta indicao, uma vez que est claro que a

    evoluo do danarino, rumo virtuosidade, pressupe a disposio em continuar a

    repetir um determinado modo de proceder.

    Assim, inicialmente enquanto a dinmica entre espontaneidade e tcnica de

    movimento, refletimos sobre o princpio fundamental da dana atrelado aos nomes dos

    deuses gregos Apolo e Dioniso, ao longo de nossa abordagem aos dilogos de Plato

    campo educativo, esfera anmica e quadro das representaes mimticas, sobretudo em

    Leis, mas tambm em Fedro e Timeo e, no ltimo captulo, na leitura nietzschiana

    sobre o tema, a partir do texto de juventude de NietzscheA viso de Mundo Dionisaca.

    Desde Leis, a dana concebida como ddiva dos deuses Apolo, condutor das

    Musas, e Dioniso, afigurando-se em um alegre meio de conhecer o ritmo e a harmonia, e

    tambm uma celebrao que nos liga novamente s divindades. Do grego Nomoi,

    conhecido na tradio latina porLeges, o dilogo Leis comeou a ser elaborado pelo

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    filsofo ateniense Plato (428-348 a. C) em 360 a.C, consistindo em sua ltima obra.

    Segundo alguns autores, os 12 livros que a compem teriam correlao direta com as

    doze horas de caminhada entre o porto da ilha de Creta e o templo de Zeus, atravs do

    qual os personagens ateniense, cretense (Megilo) e lacedemnio (Clnias) conversam,

    caminhando sombra das rvores que se projetam na estrada. A principal discusso gira

    em torno das melhores leispara uma cidade recm fundada, na qual o primeiro meio de

    educao no seno a dana, a dana coral.

    No primeiro captulo, esta proposta de educao atravs da dana,

    particularmente acerca do livro II das Leis, abordada em seus vnculos dialgicos. Em

    um segundo momento, trazemos a tona as figuras de conexo como as quais os

    princpios apolneo e dionisaco da dana so definidos, um a partir do outro.

    No segundo captulo, relacionamos os princpios fundamentais da dana apolneoe o dionisaco aos movimentos da alma, vinculando leitura precedente as imagens da

    tripartio da alma que os personagens Timeo e Scrates formulam, nos dilogos Timeo

    e Fedro, respectivamente. Em um primeiro momento, abordamos os universos

    referenciais, interno e externo, das fontes de movimento, em perspectiva de danarino.

    Em um segundo momento, a relao suscitada entre o universo daphysis e as instncias

    dapsiqu retomada na reflexo teraputica sobre o papel do movimento no equilbrio

    entre soma epsiqu.

    No terceiro captulo, discutimos a representao histrica da dana frente ao

    papel dos dilogos, considerando, sobretudo, a formao do squmata, na

    preponderncia do aspecto plstico nas operaes de representao mimtica.

    No quarto e ltimo captulo, confrontamos a representao da dana em Leis e

    em A Viso Dionisaca do Mundo (1871) de Nietzsche e arrematamos a contraposio

    entre o apolneo platnico e o dionisaco nietzschiano na exposio do que veio a

    ser a retomada do princpio apolneo da dana platnica em Nietzsche.

    Neste ponto, preciso ter em mente que os princpios fundamentais da dana de

    Apolo e de Dioniso assumem diferentes roupagens e se desvelam sempre em face de

    uma relao complementar. Nosso controle consiste em retrat-los em seu jogo mltiplo

    de referncias e campos de atuao, situando e definindo os elementos imprescindveis

    trama que os constituem, ao longo deste itinerrio.

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    CAPTULO I

    PAIDIA

    Eu mesmo aprenderia com muito gosto, siracusano,

    as figuras da dana.

    E de que te serviria isto, Scrates?

    Serviria para danar.

    (Xenofonte, O banquete )

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    1.1- Os deuses e a dana

    Um dos mais importantes aspectos da dana2 nos dilogos de Plato consiste na

    disciplina educativa. Neste captulo nos propomos a aborda-lo em Leis, onde o papel

    poltico atribudo ao conjunto das artes musicais introduzido pela dana coral. Nosso

    interesse deslindar os sentidos suscitados nesta disciplina educativa, e em sua notria

    exceo, e, posteriormente, comentar a viso de dana que ela deixa transparecer.

    Apolo e Dioniso inventam a dana e a concedem aos homens os quais, liberados

    da aridez do trabalho, receberem as divinas ddivas do ritmo e da harmonia, nos festivais

    religiosos. Assim nos fala o ateniense, no livro II:

    A ns (...) foram dados aqueles deuses como companheiros de corias

    (koreas), tendo sido eles que nos concederam o agradvel sentido do

    ritmo (rithms) e da harmonia (harmonia), por meio do qual nos

    movimentam e dirigem, enquanto ns, de mos entrelaadas, cantamos e

    danamos. A isso deram o nome de coro pela alegria que lhe prpria.3

    Neste primeiro tpico, a questo se coloca no entrelaamento entre prottipos

    divinos e manifestaes humanas atuando nos festivais. Segundo nosso modo de ver, a

    citao acima faz aluso a algumas regras do jogo religioso dos gregos que, em muito,

    determinam uma concepo cannica de dana, a saber: a visibilidade dos deuses nos

    homens, a aparncia de juventude dos prottipos divinos e a glorificao da vida

    imortal.

    2 O termo korea, correspondente ao verbo koreu foi concebido entre os gregos como a arte dadana necessariamente associada msica, ao canto e palavra recitada, tal qual o sentido latode musik, sendo neste caso freqentemente designada por dana coral. J o termo orksisdesigna, em todo caso, exclusivamente a arte da dana, ainda que esta, em muitos momentos,seja uma parte da dana coral.3 Cf.Leis, II, 653e-654a. PLATO.Laws II. Opera Platonis, v. XI, trad. R. Bury, Loeb ClassicalLibrary, 1984, p. 90; PLATO.Leis. Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XII XIII, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 90.

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    Deuses e devotos esto envolvidos em um processo mtuo de criao. No sentido

    antropolgico utilizado por Lonsdale,4 quando pensamos na performance humana no

    devemos nos esquecer a mimese de um prottipo divino sem o qual, de certa forma, o

    divino no existiria. Neste ponto, notemos que as ddivas concedidas em honrar os

    deuses com cantos e danas conferem visibilidade aos deuses imaginados. Ou seja, de

    acordo com esta crena religiosa os prprios deuses dependem dos mortais para se

    tornarem visveis.

    Contudo, a contemplao recai sobre uma fase especfica da vida humana: a

    juventude, a qual representa tambm o recm chegado vida poltica, uma vez que a

    glorificao das figuras eternamente jovens dos deuses exercida atravs da dana e do

    canto dos adolescentes. Esta brevidade da vida humana, em diferentes fases, e a

    eternidade dos deuses, sempre joviais, tambm dependem uma da outra. Cria-se, comesta conveno, uma marcao de tempo social, simbolizada, ora pela tentativa de

    reduzir a mais inegvel diferena, entre deuses e homens, ora para ressalta-la.

    Segundo Sechan,5 os movimentos de dana talhados em mrmore, pedra e

    bronze, e representados por figuras juvenis, chamaram a ateno dos filsofos para um

    sentimento de fugacidade impressa nos materiais menos perecveis. A fora e a graa da

    juventude estariam conservadas perpetuamente, de modo que as imagens votivas fariam

    sentir, com os jovens, a brevidade da vida.

    Ao que nos parece, nos coros religiosos de que fala o ateniense, as figuras

    eternamente jovens dos deuses e a apresentao dos adolescentes interatuam,

    particularmente, atravs do sentimento de glorificao da vida em uma nica e dinmica

    perspectiva mortal e imortal. Esta condio entre deuses e homens se realiza plenamente

    movendo-se o corpo com ritmo e entoando elogios aos deuses. A despeito das

    necessidades do trabalho, da inevitabilidade da morte, e do transcorrer do tempo,

    homens e deuses cantam e danam de mos dadas: o ritmo imprime no tempo um

    sentido de limite, a harmonia ensina a proporo e a pertinncia de cada elemento no

    conjunto, e a melodia d a conhecer, mais propriamente o encantamento das canes.

    4 LONSDALE, Steven H.Dance and ritual play in Greek religion. London, Baltimore, 1993.5 SCHAN, Louis.La danse grecque antique. E de Boccardi, Paris, 1938, p. 12.

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    Todavia, ainda neste contexto, h um outro aspecto a considerar: o valor poltico

    da dana religiosa na antiguidade. As ligaes fundadas entre personificao divina e

    danas corais atuam como um veculo que atravessa e preenche todos os espaos que

    supomos separados entre o poltico e o sagrado. Neste dilogo, no livro VII, teremos de

    maneira mais contundente uma de suas ltimas conseqncias: a direo artstica dos

    tipos de danas de carter venervel atribuda ao general e ao sacerdote. Um corpo de

    danarino portador de signos e um corpo concentrador. Isto , as danas de maior

    importncia seriam presididas por aqueles que, na poca, exerciam as mais altas funes

    polticas.

    1.2 A educao principia com a dana: Apolo e as Musas

    Portanto, como j mencionamos, ser no evento das festas sagradas que as danas

    comeam a tomar parte na educao da polis, particularmente desenvolvidas no livro II

    das Leis. Contudo, diferentemente do que havia sido considerado antes,6 o

    desdobramento da discusso sobre as partes da educao musical avanam estritamente

    sob o signo de Apolo e Musas.7

    Nesta seo, nos concentramos no modo argumentativo com que o ateniense

    concebe a paidia, dispondo seus elementos de um modo menos embaraoso, segundo

    nosso modo de depreender. O trecho em questo se encontra ao longo do livro II,

    compreendendo toda extenso da numerao referente a 653.

    Um primeiro ponto consiste em associar a perfeio de um homem sua

    felicidade, afirmando que feliz o homem que possui a sabedoria, a verdade e a reta

    opinio, bem como as graas delas advindas. Aquilo que parece venervel ao ateniense

    j est posto, nesta designao.

    Em um segundo momento, a virtude e o vcio, no indivduo, tornam-se

    primeiramente presentes atravs das primeiras percepes de prazer e de dor. Daqui,

    desponta a primeira elaborao sobre o conceito de educao:

    6 Cf. citao, p. 7.7 Ver-se O aspecto dionisaco da dana, p. 18.

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    Agora eu tenho por educao esta virtude (aret) que dada por

    meio de hbitos consoantes aos primeiros instintos das crianas,

    quando o prazer, e a amizade, e a dor e o dio so corretamente

    introduzidos em almas ainda incapazes de razo/colher o

    discurso. E quem as encontra, depois de ter adquirido a razo,

    para ficar em harmonia com ela.8

    O fim ltimo da paidia ser a harmonia com o lgos e designar a educao

    adquirida pelo adulto, a educao correta (orto); por outro lado, quando a educao

    precede o descortino da razo, designada educao primeira (prton), pressupondo a

    introduo de uma harmonia exterior s crianas, na qual o prazer e a dor (inevitveis)

    sejam direcionados para a virtude (proposta).

    Sobre o prazer e a educao, note-se, o jogo metafrico do alimento e da bebidaque aparece algumas vezes ao longo do dilogo. Sua apario, com freqncis, reafirma

    o carter primacial dos alimentos em detrimento do prazer, mas no somente, pois

    considera, de forma mais pungente, a necessidade de aliar o prazer nutrio. Na

    seguinte passagem exemplificativa, o educador procura aliar o prazer da msica aos seus

    propsitos:

    Mas como as almas dos jovens no suportam trabalhos pesados,

    esses encantamentos receberam a denominao de diverses e

    cantos e, como tal, foram tratados maneira do que se faz com os

    doentes e debilitados: misturam-se drogas saudveis a certos

    alimentos ou bebidas adocicadas, e drogas prejudiciais a

    alimentos repugnantes, para que eles se habituem a distinguir com

    acerto o que devem preferir e o que lhes causa repulsa.9

    Seguindo um pouco o contexto, o legislador sensato ser aquele que convencer

    o poeta a usar a sua boa linguagem a fim de aliar o prazer boa instruo. Portanto,neste argumento, a composio harmnica da msica e a dana dos coros educativos

    pressupem no somente o conhecimento do belo e do bom, mas um conhecimento de

    8 Cf.Leis, II 653b. Texto grego utilizado p. 49.9 Cf.Leis II, 659e-660a. Pp. 59-60. Texto grego, p. 57.

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    aliar o sabor agradvel ao que recomendvel para a sade do corpo, em termos

    nutricionais.

    H, ainda, outro modo de dizer a educao, como uma parte da virtude. Neste,

    denomina-se virtude esta harmonia da alma como um todo, sendo a educao a

    habilidade particular no que se refere ao prazer e a dor, que leva sempre a amar o que

    deve ser amado e odiar o que deve ser odiado, do comeo ao fim da vida.

    Ora, nesta segunda acepo de paidia um dos sentidos atuantes est

    compreendido no espao psicolgico da educao infantil, ou seja, entre a percepo

    originria (prazer e dor) e o sentimento (de atrao ou de averso) produzido a partir

    delas. Naturalmente, este espao em que a educao atua supe o conhecimento real e

    exterior ao que desejvel e, neste sentido, determinados hbitos podem ser

    introduzidos de permeio, com fins persuasivos10.

    A educao consiste em puxar e conduzir a criana para o que a

    lei denomina doutrina certa e, como tal, proclamada de acordo

    pelo saber de experincia de feito, dos mais velhos e virtuosos

    cidados. E para que a alma da criana no se habitue aos

    sentimentos de dor e de prazer contrrios ao que a lei recomenda,

    mas se alegre ou entristea de acordo com os princpios vlidos

    para os velhos, inventou-se o que se chama canto. 11

    Uma vez que projetamos uma imagem das concepes de educao, do livro II

    dasLeis, a partir de agora, vamos esclarecer de que modos esta bem ordenada disciplina

    do prazer e da dor ter seu incio justamente na dana.

    Na dana os jovens passam a conhecer dois importantes sentidos ordenadores: o

    ritmo e a harmonia. Estes sentidos antecedentes ordem da razo seriam capazes de

    suscitar hbitos virtuosos, os quais, conforme vimos, passam a ser apre(e)ndidos antesmesmo de serem propriamente entendidos. Se que podemos dizer deste modo, isto

    quer dizer: comea-se a ser gente de verdade cantando e danando.

    11 Cf.Leis II, 659d-e, traduo. C. A. Nunes, p. 59; texto grego utilizado, p. 58.

    16

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    Desta maneira, os coros religiosos da polis consistem na primeira lio poltica,

    anterior ao domnio do dilogo e da dialtica, visto que o jovem manifesta, de modo

    ainda no suficientemente crtico, determinadas certezas sociais sobre o lugar onde est

    e, daquilo que deve ser objeto de seu desejo. Ainda que apoiadas na tradio, essas

    certezas vem existncia por meio da manifestao coral dos jovens, da repetio dos

    hinos, da atualizao ou renovao da f nos deuses da sociedade, a qual se renova com

    o evento destas manifestaes.

    No contexto geral do dilogo, como vimos, a educao primeira, da criana, vem

    a rememorar a educao correta dos adultos. Este cultivo de sentimentos para o prazer e

    para a dor que se denomina educao , com freqncia, descurado e corruptvel.

    Portanto, ao longo da vida, cantar e danar so os modos de rememorar os sentidos

    ordenadores do ritmo e da harmonia.Uma caracterstica importante para a aquisio dos sentidos musicais , sem

    dvida, a permeabilidade dos jovens.

    Os coros devem atuar por meio de suas canes mgicas na alma

    tenra das crianas, que devem aprender por meio deles, e de sua

    repetio, que para os deuses a vida mais agradvel a mais

    justa.12

    Consideramos permeabilidade esta sensibilidade com que as crianas mais velhas

    facilmente apanham o sentido musical com que entram em contato e o interiorizam. No

    contexto apresentado, at o presente momento, a teoria da virtude educativa pretende

    comear a se valer na fixao de modelos artsticos representados atravs dos coros.

    Se, por um lado, a dana e o canto dos adolescentes atua na alma dos jovens e,

    conseqentemente, no corpo poltico da cidade, por outro lado, a ordenao destes

    movimentos no se realiza de forma forada, mas por meio persuasivo, o qual no seria

    possvel sem o elemento de prazer, fundamental para a eficcia do plano geral da

    educao pela persuaso musical.

    Ora, os mtodos coercitivos no podem abranger toda a educao que se pretende

    em Leis. Com isso queremos dizer que a composio musical em questo um

    12 Cf.Leis II, 659e ; texto grego, p. 112, traduo em portugus, p 59.

    17

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    instrumento poltico de manuteno das foras em apreo posto que o sentido de ordem

    adquirido deve estar em consonncia com as composies oficiais, as quais informam e

    ratificam qual o universo poltico em que os jovens devem se reconhecer.

    Finalmente, nas Leis, aliar o prazer educao ser aqui uma tarefa de toda

    manifestao da musik: dana, canto, poesia e msica instrumental.

    1.2.1- Ritmo e harmonia

    J mencionamos, no incio deste captulo a parte do discurso do ateniense em que

    por ritmo e harmonia entendido o sentimento agradvel concedido pelos deuses e

    atravs dos quais ns, seres humanos, somos movidos e dirigidos por aquelasdivindades. Neste ponto, ritmo e harmonia so tanto dons divinos quanto meios

    ordenadores.

    O ateniense vir a se manifestar acerca do que considera por ritmo e harmonia,

    somente emLeis, II 665a, ao retomar e recolocar o que foi desenvolvido sobre os coros e

    dar incio ao tema do terceiro coro, presidido por velhos em honra a Dioniso. Neste

    momento podemos saber, com simplicidade mpar, o que precisamente ele pensa por

    ritmo e harmonia.

    (...) no que entende com o movimento, a ordem recebeu o nome

    de ritmo; e com a voz, na mistura de sons agudos e graves, o de

    harmonia, vindo a ser chamada coregia a unio das duas.13

    H em grego clssico trs principais sentidos em que podemos conceber a

    harmonia. Primeiramente, aquele que poderamos dizer de uma mesa, por exemplo, ao

    nos referirmos s ligaduras, no aparentes, que garantem a unio e o equilbrio no qual

    algumas peas de madeira tornam-se uma mesa concretizada. Note-se que, na lngua

    portuguesa este sentido se conservou somente no registro da anatomia, j utilizado por

    13 Cf.Leis,II 665a. Trad. C. Nunes, p. 66; na verso grega cotejada, pp 64-65.

    18

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    Galeno14 para designar uma certa ligao quase imperceptvel e articulada entre dois

    ossos.

    O segundo sentido principal diz respeito ao deus Harmnides, de onde deriva

    Jarmonikov", como encontramos em Fedro 268e, ao se referir ao perito em msica.

    O terceiro sentido principal de harmonia diz respeito sucesso lgica de sons ou

    acordes, particularmente dentro da oitava, tendo, no princpio, designado as prprias

    notas musicais e, s posteriormente, as escalas.

    Sobre o termo ritmo, Liddell & Scott15 atribuem ao primeiro trecho o sentido de

    movimento que se mede no tempo. Esta atribuio mais simplificada em muito se

    confunde com a de sucesso de um conjunto fluente e homogneo no tempo, a espaos

    sensveis quanto durao e acentuao.

    Segundo Jger, pensar o ritmo como fluncia no seno a conseqncia daderivao etimolgica da palavra revw, que significa fluir e com a qual se apoiou a noo

    mais antiga da palavra ritmo. A aplicao da palavra ao movimento da dana e da

    msica, pode ocultar a significao fundamental. Para ele, o ritmo, na acepo mais

    antiga, vem a ser justamente aquilo que imprime firmeza e limites ao movimento e ao

    fluxo.16

    O que nos interessa deixar claro com a contribuio desse autor no seno que,

    se a intuio originria do descobrimento grego do ritmo, na dana e na msica, no se

    refere sua fluncia, mas s pausas e constante limitao do movimento, a atribuio

    do ritmo dana refere-se, evidentemente, ao rigor formal das coreografias.

    Temos, inicialmente, a forma determinada do ritmo, o encadeamento

    proporcional da harmonia e o thos da composio musical indicada pela alegria do

    fenmeno dos coros. No mbito coreogrfico, isto significar dizer que a cristalizao

    dos passos e dos gestos apoiada no ritmo e a justeza com a qual a sucesso agradvel de

    agudos e de graves promovida consistem mais especificadamente nos elementos da

    14ApudLIDDELL & SCOTT. Greek-English Lexicon, 9 ed. Clarenton, Oxford, 1996, p. 244.15Ibidem, p. 1576.16 Pensemos no Prometeu de squilo, que se encontra sujeitado, imvel sua rocha, gritando dehorror estou preso aqui, neste ritmo, ou em Xerxes, o qual, diz squilo, represou o curso doHelesponto e deu outra forma (ritmo) ao curso da gua ou seja, se transformou em umaponte com firmes ataduras. Cf. JGER, Werner. Paidia: los ideales de la cultura griega. trad.Joaquim Xirau. Fonte de Cultura Econmica, Mxico, 1957, p. 127.

    19

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    dana e demonstram, com rigor, a profunda dependncia musical da dana, no discurso

    do ateniense, sobre a qual ainda voltaremos.

    1.2.2- O julgamento artstico

    Vimos, nos tpicos anteriores, o quanto os elementos pr-racionais, ritmo e

    harmonia, desempenham um papel considervel na persuaso s regras, desde a

    demarcao dos movimentos do corpo e da voz dos coreutas. Resta deixar claro que,

    embora reconhecendo que esta unio entre paidia e poltica j havia sido abordada na

    Repblica, gostaramos de salientar que, em Leis, o autor confere s artes musicais uma

    abrangncia social bastante ampla.

    Se j existia esta unidade entre tico e esttico no tempo de Plato, o ateniense seprope a restaura-la com a corutica, que tem presente como modelo primeiro para

    educao. O pressuposto de uma forma absoluta do belo constitui um dos maiores

    problemas do educador, que pretende edifica-la com a base artstica. Ora, poderamos

    dizer que, quem v a assimilao do thos de toda polis e de sua juventude nas melodias

    e coros, no poder depender do critrio individual para as prticas artsticas.

    Pensa-se, com os legisladores, a utilizao de modos persuasivos, mais ou

    menos sutis, que garantissem a eficcia dasLeis em elaborao. Isto explica, em grande

    parte, o sentido atribudo musik nesta obra, bem como de todas as formas musicais

    que a compem. : os cantos, as danas, os poemas e a msica instrumental.

    Neste sentido, as artes musicais estaro sendo exortadas, estudadas e

    determinadas por razo do poder atravs do qual so capazes de conduzir as pessoas a

    determinadas condutas, e, com isso, evitar a transgresso s Leis e a necessidade de

    combate-las. O aspecto educativo da dana emLeis exigir que as composies musicais

    sejam avaliadas por um grupo restrito, antes de serem apresentadas publicamente.

    Neste sentido, os personagens acreditam ser possvel legislar com coragem e

    deciso no domnio das composies e execues artsticas e determinar quais os tipos

    de melodias que so boas por natureza de modo que, se algum conseguisse apanhar a

    justeza em matria musical, poderia com confiana legislar com respeito sua execuo.

    20

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    Em prol de uma educao para o prazer e para a dor, que havia sido proposta no

    incio do segundo livro das Leis, recomenda-se agora, no apenas os tipos apropriados

    de composies corais consoantes com a justia, mas tambm seu processo de escolha.

    Eis a funo utilitria e poltica atribuda arte a que muitas vezes se d o nome

    de conservadorismo: no estatuto das danas corais nasLeis de Plato, a resoluo caber

    to somente aos velhos juzes. Adotado o modelo egpciode normalizao das prticas

    artsticas17 sob pena de impiedade18, fica acordado que as inovaes nas artes musicais

    so prejudiciais educao dos jovens.19 As composies musicais sero encaminhadas

    aos velhos cultos, suficientemente versados em todas as artes musicais: poesia, canto,

    dana e instrumental. Em seguida, tais senhores selecionaro os tipos mais adequados,

    podendo emitir pareceres corretivos, auxiliados pelos poetas, desde que estes ltimos

    saibam interpretar convenientemente as intenes dos legisladores.Outro ponto a destacar, ao lado da prtica legisladora, consiste na confirmao do

    argumento de que o verdadeiro critrio musical no se encontra no prazer mas na

    correspondncia dos prottipos de virtude a serem reverenciados nas prticas. No fundo,

    a idia dominante de que a estabilidade das Leis da msica condicionaria a estabilidade

    da poltica.

    Tudo isso, supe, conseqentemente, uma forte convico na probidade do poder

    poltico dos velhos sbios, o que , em todo caso, bastante suspeitoso, especialmente

    quando lembramos que tanto os personagens quanto o autor dos dilogos so

    representantes diretos desta categoria de legisladores.20

    1.3- O aspecto dionisaco da dana

    Nas Leis, precisamente em 672b, a origem dionisaca da dana seguir outro

    prottipo: ser concebida enquanto reao da loucura ou mana introduzida pela

    madrasta Hera em Dioniso ainda criana. Tomado por esse castigo, o deus teria criado

    17 Cf.Leis II, 656c.18 Cf.Leis VII, 800a.19 Cf.Leis VII, 798d-e.20 Plato teria sido convidado a preparar nomoi para a cidade de Megalpoles. Cf. DiginesLarcio. Vida, Doutrinas e Sentenas dos Filsofos Ilustres, Livro III apudHildeberto Bitar emIntroduo traduo dasLeis de C. A Nunes, supra citada, p. 6.

    21

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    danas extravagantes e concedido aos homens o advento do vinho, esquecimento dos

    males e alvio da alma. Nosso interesse, neste tpico, consiste em deslindar o fenmeno

    dionisaco a partir das figuras envolvidas na sua concepo, descrever o contexto

    dialgico onde ele se encontra, e comear a expor a natureza das danas educativas e no

    educativas, segundo o aspecto psicolgico.

    1.3.1 O vinho, a dana e as fases da vida humana

    Notadamente nos captulos II e VII dasLeis, chamamos a ateno para os signos

    da criana e do fogo que de modo bastante peculiar, acompanham a perniciosa lenda da

    origem dionisaca da dana e a preservao das virtudes do vinho.Embora as danas dionisacas e o vinho sejam igualmente atribudas em virtude

    da mesma perturbao divina oferecida pelo mito, exposto e renegado, as manifestaes

    dionisacas sero diferentemente admitidas no cenrio dasLeis.

    Conta a lenda, reforada pela fama, que essa divindade ficou com

    a mente perturbada por influncia de Hera, sua madrasta, por isso,

    como vingana, ele promoveu orgias e danas extravagantes,

    sendo com tal inteno que nos fez presente do vinho.

    21

    Em primeiro lugar, os jovens so aqueles que devem ser educados para adquirir

    hbitos consoantes com a virtude. Note-se que a utilizao do vinho lhes proibidapara

    no atirar fogo ao fogo.22Por outro lado, o coro de Dioniso, tal qual o ateniense designa

    o terceiro coro,23 composto de homens que devem, necessariamente, fazer uso do

    vinho, uma vez que os juzes que o comporiam precisam do fermentado fruto da vinha

    para perder as inibies agravadas pela idade, semelhana do ferro aquecido.24 O

    21Leis, II, 672a, ibdem , p. 74-75.22 Cf.Leis, II, 666a.23 Cf.Leis, II 664c, os trs coros so masculinos: o primeiro o coro das Musas, composto porcrianas; o segundo, o coro de Apolo onde rapazes de at 30 anos pedem a influncia do deusem suas mentes e o terceiro, de Dioniso, tal qual se encontra no exposto.24 Cf.Leis, II, 666c.

    22

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    personagem central dasLeis tambm recorre natureza gnea das crianas, sem o sentido

    de ordem nos movimentos e na voz25 como uma origem orqustica.

    A investigao acerca da natureza das crianas permeia grande parte da discusso

    nasLeis. Em 653d-e, o personagem j havia dito que todos os animais na primeira idade

    no conseguem manter quietos nem corpo nem voz, esforando-se sempre por

    movimentar-se e gritar, como na realizao de danas alegres e expresses de

    contentamento. Porm, enquanto os outros animais no possuem o sentido de ordem e

    desordem nos movimentos, a que damos o nome de ritmo e harmonia, ns o ganhamos

    de presente dos deuses.

    Em 664e, o assunto da natureza dos mais moos retomado em virtude da

    ardncia muito prpria, que no os deixa ficar quietos, nem o corpo nem a voz, uma vez

    que no param de saltar e de cantar, sem nenhuma ordem. Esta concepo de ordem,como bem lembra acrescenta o personagem, com relao voz e ao movimento,

    estranha aos outros animais, s dela participando a natureza humana. Em decorrncia

    disto, a ordem no que se refere ao movimento recebeu o nome de ritmo e a ordem no que

    toca a voz, na mistura de sons agudos e graves, harmonia. J em 808d-e, dentre todos as

    criaturas a criana a mais intratvel e pela prpria excelncia do germe da razo que

    nela existe em estado rudimentar, a mais ardilosa, a mais hbil e a mais atrevida. 26

    Nesta trama dialgica, onde o vinho muitas vezes confere juventude a quem no

    mais a tem e as crianas esto muito prximas dos outros animais, conquanto no

    desenvolvem os sentidos musicais, a utilizao do vinho aceita na cidade e

    suficientemente indicada enquanto elemento de jovialidade a servio da superao das

    condies limitadas dos velhos, no exerccio de serem coristas de Dioniso (o mesmo no

    acontece com as danas).

    preciso que os velhos esqueam de sua real condio,27 de modo anlogo,

    preciso que os jovens se tornem seres civilizados pela dana de Apolo e das Musas,

    atravs da qual sua origem primitiva e dificultosa ceda lugar sua condio civil.

    25Cf.Leis, II 653d-e.26 Sobre a presena de Plato na histria das concepes atuais do educar para o pensar verGAGNEBIN, Jeanne-Marie. Infncia e Pensamento, em Sete aulas sobre Linguagem, Memria eHistria, Imago, Rio de Janeiro,1994.27 Um trecho de As Bacantes de Eurpedes faz aluso questo do ancio no culto a Dioniso:Tirsias diz a Cadmo: Onde danar? Onde deter o passo e sacudir a cabea grizalha? Ensina-

    23

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    O particular em questo, salientado aqui e alhures, o diferenciado, porm

    contnuo, aprendizado do ritmo e da harmonia, em todas as fases da vida. Neste

    momento fica bastante claro que o desenvolvimento da ordem um aprendizado

    destinado juventude, pois o princpio ordenador impossvel s crianas da primeira

    idade.

    A inconstncia das crianas fogo, seus movimentos desordenados dos

    membros e da voz, liga-se aos intensos sentidos de prazer e dor com os quais o mundo

    comea a se revelar sem nenhum controle, ou, de seu modo outro, era pr-olmpica,

    assombrada pela fria assassina dos Tits. Em todo caso, sempre remetendo a uma

    anterioridade, no tocante compreenso humana acerca do movimento. Eis o incio em

    que o demiurgo considera a gnese do universo:

    Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto

    possvel, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas

    visveis nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e

    desordenadamente e f-lo passar da desordem para a ordem,

    por estar convencido de que esta est em superioridade em

    relao quela [grifo nosso].28

    Neste ponto, o demiurgo aproxima-se do legislador. Este e aquele so os

    criadores de suas representaes da ordem, com as quais conferem um sentido quele

    estado anterior de incompreenso. A criana, por sua vez, representa aqui to somente

    o estado originrio carente de um sentido lgico e destitudo de medida, ao qual o carter

    orqustico das manifestaes dionisacas ser justamente tambm caracterizado.

    me tu, velho a um velho. Tirsias: tu s sbio. Nem me fadiga de noite nem de dia bater com otirso na terra. doce esquecermos que somos velhos. Ao que o profeta cego responde: Sentes omesmo que eu! Tambm juveneso e executarei as danas. Vamos danar em honra a Dionisos! doce esquecermos que somos velhos! EURPEDES.Bacas. Trad. Jaa Torrano, HUCITEC, SoPaulo, 1995, Vv 184-190, p. 33.28Timeo, 30a. Trad. A.Nunes, cf. Bibl. p. 36.

    24

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    1.3.2- As danas bquicas

    Havamos mostrado, inicialmente, em Leis29, que as koreas representavam, de

    um modo bastante objetivo, uma parte importante na paidia, enquanto matria

    obrigatria e meio de aquisio do domnio, originariamente divino, do ritmo e da

    harmonia. Nele, primeiramente, Apolo e as Musas, e, em um sentido mais restrito,

    Dioniso sero deuses das danas, princpios divinos da dana e companheiros de coros.

    De acordo com Apolo e as Musas, a dana conduz ordem, na alma e no corpo poltico,

    ao passo que, de acordo com Dioniso, o foco incidir na origem manaca da dana, e

    seus outros smbolos, analisados no tpico precedente.

    Agora, vamos nos aproximar da discusso sobre os tipos de danas, do livro VII,

    814e-816e. Reservando-nos, aqui, ao tipo dionisaco no prximo captulo voltaremosmais extensivamente sobre esta passagem.

    Embora o carter religioso fosse atribudo a ambas as origens da dana, o que

    confirma, sem dvida, ao estatuto geral da dana na Grcia antiga uma considervel

    reverncia, o personagem no inclui a espcie de dana, a qual deriva seus nomes de

    figuras como ninfas (mnades), Pan e silenos e que representem mimeticamente pessoas

    embriagadas no ato de celebraes sagradas como purificaes e iniciaes. O carter

    duvidoso atribudo dana reside na incompreenso de sua prtica. Em verdade, as

    danas srias (semns) e as danas bufnicas (faulon), diferem em essncia das

    bquicas. Ou seja, sua representao mimtica no possui relaes de semelhana nem

    com os movimentos prprios aos belos corpos a guerreira prrica e a pacfica emmelia

    nem s gesticulaes prprias aos corpos feios cmicas.

    Neste processo classificatrio, as danas manifestadas em honra ao deus do

    vinho no se mostram facilmente passveis de serem definidas.

    Quer parecer-me, porm que se poderia muito bem qualific-lo

    com exatido se o separssemos tanto do gnero guerreiro quanto

    do pacfico e declarssemos que semelhante gnero de dana no

    se casa com as boas instituies, e assim (...), voltaramos a

    29Leis II, 654d. PLATO. Texto grego, p. 90, traduo utilizada, p. 52.

    25

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    estudar os outros dois gneros, os quais, sem dvida, nos falam

    mais de perto.30

    primeira vista, nenhum vestgio das metforas do fogo ou dofarmacon entram

    na composio das danas de Dioniso. Ao tratar do fenmeno da dana, o gnerodionisaco no se adapta s duas categorias e recomenda-se sua extino por no

    adaptao.

    Uma interpretao possvel se baseia na lgica da pretenso e da eleio, tal qual

    no captulo Plato e Simulacro da Lgica do Sentido de Deleuze. Nelas, dir-se-ia, sem

    obstculos, que as danas dionisacas representam de modo exemplar o elemento de

    excluso produzido a partir do assim chamado mtodo da diviso. Segundo a maneira

    com que vemos este mtodo o mito no se encontra em posio de oposio explicao

    dialtica dos eventos. O mito oferece o modelo a partir do qual a espcie mais adequada

    ser escolhida na diversidade que constitui um gnero. Elege-se, nos dilogos platnicos,

    o particular em pauta, tal qual o poltico, o amor ou a justia a partir do modelo sugerido

    pela histria declaradamente mtica. Dentre outras coisas, separa-se o verdadeiro do

    falso, procedendo de forma a no apenas posicionar vencedor e pretendentes, mas

    hierarquizar o universo dos pretendentes entre si. primeira vista, a dialtica platnica

    seria uma dialtica da contrariedade mas, alm da superfcie de dicotomia caracterizada

    sobretudo pela idia dos dois mundos, subsiste um processo de seleo e eleio cujo

    produto final levaria a dois resultados ou realidades deste mundo: cpias bem fundadas e

    simulacros. Nesta operao, as danas guerreira e pacfica disporiam de uma

    identificao notica com a idia que denota virtude, enquanto a justa medida da

    coragem e da temperana, ao passo que os demais tipos se distanciariam, em grau de

    verdade, da coragem e da sabedoria em si.

    No nosso interesse esgotarmos a questo de como uma interpretao

    deleuziana se aplicaria expulso das danas dionisacas, pois aqui ela est como umexemplo interpretativo do tema da excluso. Em nossa viso, a reserva das danas

    bquicas no cenrio de formao da cidade nasLeis no est em primeiro plano, embora

    indicativa. E, portanto, aproximar-se de uma operao que denota inadequao das

    30 Cf.Leis VII, 815c-d. Texto grego, p. 94; traduo utilizada, p. 236.

    26

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    bquicas aos nicos gneros reconhecidos, ou reconhece-la, sutilmente, na formao do

    terceiro coro e suas necessidades teraputicas, apenas nos informa um mtodo em que a

    anttese do modelo poltico perpetrado representa uma exceo.

    Vimos de que maneira o papel educativo da dana est caracterizado em Leis,

    particularmente no que se refere prtica de sociabilidade poltica, na qual o

    conhecimento dos princpios de ordem pr-racional passavam a ser assimilados pelos

    jovens, quando estes, na ao de cantar e de danar, participavam dos coros sagrados.

    Quando adultos, estes homens e mulheres tero na dana um meio atravs do qual as

    imagens de virtude possam novamente ser vivificadas na memria, ou na memria do

    corpoZ.

    Para o ateniense, atribuir um carter educativo s danas apolneas e suprimir a

    representao mimtica das danas dionisacas, se coloca como previso do sentido deordem na alma e no corpo poltico, atravs da atividade dos coros sagrados.

    Neste captulo mostramos que o princpio fundamental da dana, apolneo,

    consiste na disciplina educativa do corpo e da alma, opondo-se quele estado inquieto e

    desordenado da criana fogo, dionisaca.

    Sobre a questo da adequao ou inadequao ao quadro de danas platnico

    faremos uma abordagem psicolgica. Deste modo, veremos que as danas de Apolo e

    Dioniso representam mimeticamente dois princpios ancestrais de movimento,

    associados s condies fsico/mentais dos danarinos, os quais propiciam at mesmo

    um plano extremado de oposio entre uma racionalidade clara e distinta, na execuo

    dos movimentos, e, por outro lado, uma aparente dissoluo da conscincia e de

    descontrole nos movimentos.

    Nosso prximo passo ser mostrar que esta oposio exagerada dos tipos de

    dana est ancorada no princpio que rege a necessidade de harmonia entre as partes da

    psiqu.

    27

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    CAPTULO II

    PSIQU

    A raiz e a estrela

    A raiz diz:

    sou profunda

    a estrela ri:

    imunda

    (Horas de Albuquerque, Fios de desafios)

    28

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    29/108

    2.1- A harmonia entre os movimentos de dana: Timeo eFedro

    Nesta seo apontamos os universos de referncia dos prottipos divinos da

    dana, a partir das ligaes entre a harmonia das partes da alma e os movimentos de

    dana.

    Primeiramente, lembremos que a harmonia um princpio divino que fora

    concedido aos homens para que estes conhecessem a alegria da ordem nos movimentos

    do corpo e da voz. Mas tambm preciso ter em conta que, no mundo grego, desde os

    pitagricos mas principalmente a partir de Plato, era comum o uso de termos musicais

    para se falar da vida poltica e moral.

    No Protgoras, 324d, Plato j havia dito com grande nfase que toda vida

    humana tem necessidade de ritmo e harmonia e na Repblica, 430e, explicado que atemperana sophrosyne uma certa consonncia e harmonia entre as partes internas do

    gnero humano. Ora, se a vida humana virtuosa pensada sob o paradigma da ordem, da

    medida, da proporo, do ritmo, da harmonia e da consonncia, bvio ento que uma

    vida humana sem virtudes deve ser concebida como submetida desordem,

    desmedida, desproporo, desarmonia e dissonncia.

    Dentre as muitssimas formas pelas quais, no corpus platnico, a harmonia ser

    definida, duas representaes das partes da alma humana, podero nos mostrar em que

    sentido esta harmonia atua e denota a potncia dos movimentos.

    No dilogo Timeo, clebre fbula da criao do mundo na ptica de um artista

    plstico, figura denominada demiurgo, a criao dos mortais pelos deuses criados

    descreve o modo com que a raa dos homens foi formada, e, com ela, a descrio de

    partes da alma, fisiologicamente alojadas no corpo. Cada qual com sua razo de ser e

    disposta para um universo de ao.

    A poro da alma (quvmo") que participa da coragem e da clera e

    ambiciona a vitria, (eles colocaram) entre o diafragma e o

    pescoo, para ficar em condies de ouvir a razo (oriunda da

    alma imortal, localizada na cabea) e a ela aliar-se, a fim de

    vencer, pela fora, a tribo dos desejos (oriunda da parte imortal da

    29

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    alma localizada no ventre) sempre que estes se recusem a

    obedecer ordem de comando da cidadela.31

    Assim, segundo Timeo, teramos trs espcies de alma alojadas em cada um de

    ns: uma alma imortal localizada na cabea, uma alma mortal, no peito, e uma segundaalma mortal no ventre, precisamente entre o diafragma e o umbigo.

    Nesta viso, as partes da alma se comunicam umas com as outras, no sentido em

    que suas pores esto alojadas no corpo. Neste exerccio de proporo, entre vontades

    convenientes, e potencialmente conflitantes, o quvmo" corresponde nica parte anmica

    que capaz de se comunicar diretamente com aquelas que esto nos extremos, ora

    associando-se alma imortal, ora tribo dos desejos. Um delicado elo entre o cu e a

    terra, portanto o homem, equilbrio dinmico entre as partes da alma.

    Uma segunda imagem est em Fedro 15c-e, onde novamente a alma humana se

    apresenta entre partes distintas. Neste momento o personagem Scrates a descreve tal

    qual a fora natural e ativa que une um carro puxado por uma parelha alada e conduzido

    por um cocheiro. O cocheiro representa a deliberativa que direciona o carro, aquela que,

    contudo, no teria fora, sozinha, de levar-se para o local que se direciona. Os dois

    cavalos alados representam a fora necessria para que a parte deliberante leve o carro

    ao destino do seu curso. Os cavalos, todavia no obedecem igualmente ao condutor uma

    vez que, entre eles, h um que no oferece condies de gerar continuidade s decises

    do cocheiro e, pelo contrrio, recusa-se a obedecer, interessando-se pelas imagens de

    beleza que contempla pelo caminho, fazendo-o somente mediante ao aoite que o leva

    dor e, da, o impele obedincia. Este cavalo, de olhos vermelhos, no reconhece no

    cocheiro a funo de dirigente enquanto aquele que est ao seu lado acata-o com

    presteza e sem o intermdio da violncia. Resultado: o cocheiro no consegue dirigir o

    carro sem ser forado a desvios. Scrates oferece esta explicao sofrvel e incompleta

    participao da alma humana no cortejo liderado por Zeus.Nesta ptica, a parte dirigente dirigente por excelncia, sua deliberao opera

    na elevao da condio humana e no exerccio da boa conduta e das boas prticas. A

    31 Cf. Timeo 70a. PLATO. Timaeus. Opera Platonis, v. IX, trad. R. Bury, The Loeb ClassicalLibrary ; 1989, p. 69; PLATO. Timeo. Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XI, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 78.

    30

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    parte que melhor representa a fora vital dos apetites imprescindveis sobrevivncia

    ser tambm aquela que no foge a nenhuma aventura, seduzvel por excelncia. A

    intermediria, por excelncia, ser a parte da alma que se refere coragem e ao medo,

    que ambiciona a vitria, e, principalmente, est em condies de aliar-se razo,

    reconhecendo nela a que deve dirigir. E buscando conter os desejos irracionais daquela

    que no compreende a lngua da razo, notamos que, nestas imagens apresentadas, o

    mais baixo e o mais elevado no falam a mesma lngua.

    Cada parte da alma, ncleo de vida ou fonte de movimento, em sua diversidade,

    participa do conjunto das vontades do indivduo, eventualmente conflitantes entre si, por

    razo de terem diferentes interesses (guiar, ser guiado e gozar das belas imagens, por

    exemplo). Portanto, a harmonia, na diversidade do conjunto com que a alma humana

    definida, pressupe a superao de um conflito potencial mas, mais precisamente, umarelao de pertinncia entre as vontades. O que afirmamos que o equilbrio necessrio

    entre os desejos ser sustentado, ou se preferir, ser assegurado na medida em que existe

    uma relao de harmonia entre as partes da alma, e somente atravs dela.

    Mas como isto se relaciona dana? O que liga a harmonia entre partes da alma

    e as danas apolnea e dionisaca ?

    A primeira resposta a essa pergunta ser dizer que a dana religiosa simboliza,

    aos olhos do espectador, a relao do danarino com o princpio de harmonia que deve

    reger as suas disposies anmicas. Em seguida, que as partes da alma representam

    mimeticamente os princpios do movimento que regem as danas apolnea, guerreira e

    dionisaca.

    2.1.1 Danas de harmonia e de desarmonia

    Inicialmente, a respeito da primeira assero, o universo das danas organizado

    a partir de uma classificao, segundo S. Curt,32 que divide os tipos de movimento em

    relao ao corpo do danarino. Para este historiador da dana, todos os tipos de dana

    conquistam uma reformulao dos limites do corpo e uma liberao do inconsciente,

    todavia, os meios que tornam possvel estes mesmos resultados, fazem a diferena.

    32 SACHS, Curt. Wold History of the dance, W.W. Norton&Company, 1937, p. 25.

    31

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    Movimentos harmnicos revelam danas harmnicas, movimentos de

    desarmonia, danas convulsivas. As danas harmoniosas so caracterizadas como sendo

    acompanhadas de exaltao, de exonerao da gravidade, e mesmo, mais objetivamente

    falando, por movimentos para cima e para frente.

    As danas no harmoniosas sero acompanhadas por signos de mortificao da

    carne, cujas descries so idnticas em todo mundo, segundo ele, correspondendo a um

    estado forado de flexo e relaxamento dos msculos que faz atirar o corpo em

    selvagens paroxismos. Neste tipo de dana, o objetivo perder o controle sobre as partes

    do corpo, completamente ou em alguma medida, de forma tal que a conscincia pode

    desaparecer por completo. O autor assevera que estas danas aproximam-se mais do

    sofrimento que da atividade.

    Segundo a diviso primordial dos tipos de dana, consideremos, em um primeiromomento que, na ao humana e em suas formas de mimese, mais ou menos corpreas,

    a disposio de ordenar os movimentos e a disposio em atingir um estado anterior

    ordem, passar sempre pelo crivo do desejvel e poder transpor as fronteiras do

    aceitvel. Escolhe-se a ordem porque somente atravs dela algo poder ser diferenciado

    da desordem ntima de toda conscincia. A ordem superior desordem, assim pensou

    o demiurgo quando comeou a criar o universo.

    Contudo, preciso jamais perder de vista que a oposio entre um plano

    ordenador de dana, em que os movimentos indicam a clarividncia de uma conscincia

    desperta e atuante, e, distantes deste patamar, as danas que indicam o descontrole dos

    movimentos, ao ponto mximo de dissoluo da completa da conscincia, no so seno

    indicativos de dois princpios extremos que alimentam o movimento da dana segundo

    uma viso excessivamente lgica e racionalista do mundo, a qual se caracteriza pelas

    figuras da dana.

    Deste modo, estariam aqui representados, por apolneo, a aparncia exterior de

    um controle de si e da observncia s tcnicas de movimento, e, por dionisaco, o desejo

    de criao de uma nova ordem, sem a qual nada de novo apareceria ao olhar.

    32

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    2.1.2 Universos de referncia: verticalidade e simbologia

    Por outro lado, a teoria da tripartio da alma se liga diretamente s fontes de

    movimento que, de modo simblico e fisiolgico, correspondem s danas religiosas de

    Leis. Esta correspondncia se dar no plano da proeminncia dos universos de

    referncia, internos e externos, da representao mimtica dos movimentos.

    Deste modo, no plano interno da psiqu, as danas apolneas sero regidas pelo

    princpio de inteligibilidade, as danas guerreiras, pelo princpio da coragem e, as danas

    dionisacas, pela tribo dos desejos.

    No plano externo, por sua vez, os universos de referncia da representaomimtica da dana sero os princpios ao mesmo tempo primitivos e universais dos

    movimentos provenientes da observao das evolues dos astros celestes e da

    percepo sinestsica dos sentidos da terra.

    Na dana apolnea, para que a proporo interna pudesse ser conhecida e

    perpetuada, atriburam-se determinados gestos ao deus antropomrfico, gestos

    reverentes e ordenativos, praticados em cerimnias religiosas. Todavia, como estamos a

    dizer, a referncia dos gestos dignos dos deuses provm, inicialmente, do movimento

    dos astros. O que dizemos que as danas de harmonia so inspiradas pela observao

    do cu.

    Determinadas passagens dos dilogos discutem, dentre outros assuntos de no

    somenos importncia, a natureza e as evolues dos astros celestes, denominados dana,

    coro de dana ou coreografia.

    O coro de dana (coreiva") dessas mesmas divindades em suas

    respectivas revolues, suas justaposies, avanos ou recuos dasprprias rbitas; as que se tocam em suas conjunes e as que se

    opem umas s outras, em que ordem cada uma delas passa pela

    frente ou por trs da companheira, ou como aquela se esconde da

    nossa vista, para parecer mais adiante e enviar aos homens

    33

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    incapazes de raciocinar sinais e medos acerca do que tem que

    acontecer.33

    (...) a natureza dos astros, belssima vista, e que em evolues e

    danas corais, mais belas e magnficas que todos os coros, trs acumprimento aquilo que temos necessidade todos os seres

    vivos.34

    Neste sentido, e referindo-nos mais especificamente s citaes, o filsofo

    escreve sobre movimento e natureza dos astros celestes e, com isso, nos fala um pouco

    da relao que os gregos tinham com o cu. O movimento dos astros envia aos homens

    incapazes de raciocinar sinais e medos acerca do que tem que acontecer e, num

    segundo momento, trs a cumprimento aquilo de que temos necessidade todos ns seresvivos.

    O inteligvel participa da natureza dos astros celestes na medida em que eles

    seguem sempre seu caminho, sem nenhum desvio, sendo esta tambm uma maneira de

    falar de sua beleza. Este carter constante da natureza dos astros celestes ir nos

    interessar ao passo que as danas procuravam representar aquilo a que reverenciavam:

    uma fonte inteligvel constante e ordenadora que diz respeito vida de todos os seres.

    Em todo caso, tomar parte do cortejo dos deuses sempre desejvel, a menos que no se

    reverencie este princpio ordenador, visvel e inteligvel.

    No incio do livro VIII de Leis, o ateniense se encontra na tarefa de determinar a

    ordem das festas, a freqncia, os deuses homenageados, os sacrifcios feitos e as

    cidades envolvidas, quando adverte:

    Alm disso, no ser misturado o culto dos deuses subterrneos

    com o das divindades denominadas uranianas, ficando

    devidamente separados os ritos respectivos. (...) preciso que os

    guerreiros no manifestem averso particular a essa divindade,

    porm a honrem como a mais benfica para o gnero humano,

    33 Cf. Timeo. 40c. Texto grego p.84, traduo utilizada p. 45.34 Cf. Epnomis. 982e-983a, Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XII XIII, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 432.

    34

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    pois a unio da alma com o corpo, sob nenhum aspecto superior

    separao, o que afirmo com a maior convico possvel.35

    Dioniso, no tocante morte, uma divindade especial, primeiramente entre os

    demais deuses gregos, pois ele o nico que morre, mas tambm entre os homens, postoque Dioniso renasce. Os mitos mais conhecidos que narram estes acontecimentos esto

    presentes no duplo nascimento do deus, como indica seu nome, Dinisus e no

    despedaamento do seu corpo pelos Tits. Provavelmente por razo desta memria seu

    culto envolve o despedaamento de animais vivos.

    Contudo, o universo sensvel de referncia da dana dionisaca no se refere

    apenas a este aspecto mrbido, o qual se liga recepo do corpo do morto e sua

    transformao em pedaos cada vez menores, ou ainda morada ancestral de todos os

    mortos36, das memrias perdidas e das ausncias. Mas das presenas, das ddivas e do

    prazer do esquecimento. As palavras de Tirsias so apropriadas para compreende-lo:

    Existem para os homens dois princpios fundamentais. Primeiro a

    deusa Demter ou a Terra, qualquer que seja o nome que se lhe

    d. Ela a nutriz, a potncia dos alimentos slidos para os

    mortais. Vem em seguida, mas igual em poder, o filho de Smele,

    que inventou e introduziu entre os homens o alimento lquido, a

    bebida extrada da uva: ela acalma as angstias dos pobreshumanos quando se fartam do licor da vinha; ela lhes traz a

    ddiva do sono, esquecimento dos males quotidianos, e no h

    outro remdio para seus males. 37

    Nestes sentidos, o esquecimento ser prazeroso quando este esquecimento

    significar, de fato, uma libertao dos males. Este poder curativo atribudo aqui ao vinho

    35 Cf.Leis VIII, 828c-d. Traduo de Alberto Nunes, pp. 249-250.36 Veja-se, sobre a identificao de Dioniso com Hades, o fragmento 5 de Herclito: o mesmo Hades e Dioniso. Apud texto introdutrio sobre a traduo de Jaa Torrano Bacas cf.bibliografia, p. 15.37 EURPEDES, As Bacantes. Versos 274-285, traduzido por Detienne e posteriormente porCarmem Cavalcanti, cf. bibliografia.

    35

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    estende-se s danas extticas e ao culto dos mistrios, onde a intensificao do prazer e

    da dor so temas centrais.

    Ser neste sentido que pensamos a harmonia das partes da alma, as fontes de

    movimento e seus universos de referncia. O homem enquanto elo dinmico entre o cu

    e a terra pode assumir como representao a imagem do danarino conectado s fontes

    de movimento, fisiolgicas e simblicas, daphysis e dapsiqu.

    2.2- Natureza dos movimentos: princpio, continuidade e equilbrio

    Nesta seo mostraremos uma leitura da dana a partir da unio psico-fsica

    envolvidos na discusso sobre os tipos de movimento, em Leis. Nela, o movimento

    corresponde primeiramente maneira com a qual uma alma se manifesta; neste sentido,pensamos a dana como a representao mimtica desta manifestao universal,

    enquanto forma artstica.

    No livro X das Leis, empenhado em atingir o suposto erro dos filsofos da

    natureza em fundamentar o princpio do movimento (kinhvsew" a[rch) a partir dos

    elementares, o ateniense expe os tipos de movimentos existentes e desenvolve a teoria

    segundo a qual aquilo que movido por outra coisa jamais poder gozar do papel que

    se atribui a um princpio. Tem-se, com isso, o exame entre os dois tipos principais de

    movimentos: por um lado, o movimento capaz de movimentar outra coisa mas que no

    se movimenta a si mesmo, concernente queles do fogo, da terra, da gua e do ar, e, por

    outro lado, o movimento que sempre move a si mesmo tal qual a outra coisa. Este ltimo

    movimento, por anterioridade em relao ao outro, ser o que move a si mesmo, o que

    em si mesmo e por si mesmo, tambm denominado alma (yukhv).

    Segundo Vlastos, autor de O universo de Plato, para Plato o mundo fsico no

    responsvel pelo movimento de si mesmo, apenas a alma possua este poder demovimentar o corpo em que estava ligada. Esta concepo de alma no contm matria

    fsica propriamente dita nem propriedades fsicas-materiais, exceto a de movimento. O

    fogo, a terra, a gua e o ar eram movidos um pelo outro sem que houvesse um motor

    primeiro no mundo fsico. Deste modo, a alma no contm matria fsica e no tem

    quaisquer propriedades da matria fsica, tais como temperatura, densidade ou peso,

    36

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    exceto uma: pode mover-se. Mas, mesmo na sua capacidade de locomoo, a alma e a

    matria fsica diferem de modo radical. Para Plato a matria fsica sempre movida por

    algo que no ela mesma.38 A alma, diferentemente, pode movimentar o corpo ao qual

    est unida e, atravs deste outros corpospelo pensamento e pela vontade.Nesta acepo,

    a alma possui a propriedade fsica do movimento per si, isto , de forma diferenciada,

    passvel de ser percebida pelos sentidos, e possui de uma propriedade deliberativa

    necessria para mover a si mesmo.

    Neste ponto, faz-se preciso nos aproximarmos da ao do dizer que leva a estas

    concepes de movimento. A anterioridade dapsiquem detrimento daphysis envolve a

    substituio do termo empregado pelos filsofos naturalistas, a partir do momento em

    que o ateniense expe a definio da essncia do que entende por physis como umaespcie determinada de movimento.39

    Ora, no se trata aqui de realidades diversas mas de dois aspectos de uma mesma

    realidade, isto , a psiqu enquanto physis e a physis enquanto psiqu, precisamente

    enquanto movimento que move a si mesmo e no, como os physilogoi o

    compreendiam, movimento que movido por causas exteriores.

    Neste caso especfico pensamento e vontade em ao demarcam o campo

    metafsico da dana. O princpio do movimento (kinhvsew" a[rch) enquanto aquilo que

    move a si mesmo (to; aujto; auJto; kinou'n) de que nos fala Scrates no Fedro40o melhor

    dos movimentos enquanto aquele que em si mesmo e por si mesmo

    (hJ ejn eJautw/ uJf j aujtou' ajrivsth kivnhsi") de que nos fala Timeo no dilogo homnimo,

    bem como o princpio de todos os movimentos (kinhvsew") e primeiro aquele que move

    a si mesmo (th;n aujth;n eJauth;n kinou'san), sobre o qual o ateniense nos fala emLeis X,

    895b, so recorrncias e reincidncias a um importante conceito de alma atravs das

    quais a dana alcana imanncia nos dilogos de Plato.

    38Timeo,49b-c ( ...) o que denominamos gua, ao condensar-se, segundo cremos, vira pedra eterra, e ao fundir-se e dissolver-se, esse mesmo corpo se transforma em vento e ar; o ar virafogo quando se inflama, e, por um processo inverso, o fogo, contrado e extinto, retoma a formado ar, como o ar, retornando a reunir-se e a condensar-se, vira nuvem e neblina, das quaisoutra vez, comprimidas ainda mais, deflui a gua, para desta, de novo, sair terra e pedra.Traduo utilizada, p. 54-55.39 Cf.Leis, X 892b.40 Cf. Fedro, 245d.

    37

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    Contudo, a bipartio do mundo sobre essas categorias de movimento, embora

    privilegie o campo metafsico da dana, no poder contemplar o sentido da proporo

    entre os dois aspectos de uma mesma realidade. Definimos a terceira abordagem dos

    vnculos entre a danapsiqumediante o valor teraputico do movimento e da superao

    da hierarquia da atividade terica em relao prtica.

    As conseqncias teraputicas desta tese segundo a qual a natureza do

    movimento por si mesmo diferencia-se do movimento que por outra causa

    comeam a surgir quando as molas metafsicas do pensamento e vontade esto

    entrelaados ao corpo humano, vivo, perecvel e atuante.

    Neste ponto, no vemos a negao dos apetites corporais como uma atitude

    caracterstica nos dilogos, mas, em seu lugar, o cuidado medical no cultivo de umalouvvel proporo entre soma epsiqu, por meio de movimentos compensatrios.

    Vimos, anteriormente, as partes distintas da alma separadas pela extenso do

    corpo. Neste momento ser de acordo com as concepes fisiolgicas e psicolgicas

    expressas por Timeo que abordaremos a prescrio medical de exerccios rtmicos para a

    sade do corpo e da alma, indicada para o equilbrio entre o exerccio racional e o

    exerccio corporal, vinculada ao circuito de movimentos internos e externos ao

    indivduo.

    No que diz respeito sade e s doenas, virtude e aos vcios,

    no h proporo nem desproporo de maior importncia do que

    a existente entre a alma e o corpo.41

    Com estas palavras no temos mais a confirmao da superioridade do exerccio

    intelectual em detrimento do puramente fsico. Esta idia recorrente na tradio

    neoplatnica se encontra aqui mais tnue em virtude de um cuidado mdico enraizadono princpio de proporo entre as partes que constituem o humano.

    Da ser imprescindvel quele que se dedica ao aspecto racional o hbito

    disciplinado do exerccio corporal. Ocorre o inverso sempre que o corpo grande e

    41 Cf. Tim. 87d. Texto grego, Pp. 326-328; Traduo utilizada, Pp. 96-97.

    38

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    superior alma dotada de pequena inteligncia. Neste segundo caso de desproporo, o

    indivduo deve cultivar a matemtica, a msica e a astronomia.

    Todavia um meio proposto para que ambos os perigos sejam evitados: no

    acionar a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, de modo que se defendendo um do

    outro, corpo e alma consigam equilibrar-se e conservar a sade.

    No poremos um inimigo ao lado do outro, para gerar no corpo

    guerras e doenas, mas associaremos um amigo a outro, a fim de

    que, juntos, cultivem a sade.42

    Nesta argumentao, o personagem considera alguns tipos de movimentos no

    tocante sade. De todos os movimentos, (1) o melhor ser considerado aquele que o

    corpo produz nele e por si mesmo, por ser o mais aparentado com o movimento do

    pensamento e do universo e dos astros celestes; (2) inferior a esse ser o movimento

    produzido por outro agente, e (3) o pior de todos, o que provm de causa estranha e

    abala o corpo enquanto este se acha deitado e em repouso.

    Este ltimo ser o movimento propriamente nocivo sade, contra o qual

    devemos nos proteger com exerccios compensadores, cultivo de sua totalidade dual.

    Sobre este, considera-se que o corpo capaz de se aquecer e de se esfriar por dentro com

    as substncias que entram nele, ou se resseca ou umedece sob a influncia do exterior, e

    sofre os efeitos desse duplo movimento, muitas vezes vencido e perece, quando se

    entrega a esta agitao uma vez em estado de repouso.

    Associar a exigncia de proporo entre os aspectos duais da constituio

    humana no tocante aos movimentos entre as partes do corpo e as partes da alma

    demonstra a exigncia, no discurso de Timeo, de uma argumentao intuitiva e,

    sobretudo, de ordem da observao natural. Isto se mostra, sem dificuldade, na

    prescrio de movimentos regulares em prol de uma sade equilibrada.A figura da me e seu pequeno filho, em momentos diversos, permite o

    argumento pelo qual assinala a eficincia teraputica incontestvel do mtodo. Veja-se,

    por exemplo, a exposio do ateniense43, acerca das prticas indicadas para a formao

    42Tim. 88e. Texto grego, p. 240; Traduo utilizada, p. 98.43 Cf.Leis VII, 790c-e. Traduo de A. Nunes, p. 206.

    39

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    das almas das crianas na primeira idade. Trata-se precisamente do movimento de ninar

    e de acalentar mediante o qual, nos braos firmes da me, o pequeno muitas vezes se

    acalma, abandonando o desagrado ao passo em que se permite uma ateno permevel

    ao deslocamento. De volta ao universo da ordem, onde tudo tem um tempo e um ritmo

    certo para o acontecimento, o ir e o vir, o bater e o bater novamente, o indivduo repousa

    na tranqilidade, a salvo de seu desagrado e sem mais causar transtornos: dorme.

    Em Timeo 87d, o protagonista homnimo argumenta que devemos imitar o que

    denominamos a nutridora e ama do universo, esforando-nos para que o corpo no fique

    nunca em repouso. Se o mantivermos sempre em movimento, e a cada instante

    imprimirmos certos abalos em suas partes, para defend-lo naturalmente entre os

    movimentos internos e exteriores, possvel estabelecer alguma ordem entre as partes e

    as afeces que erram no corpo.Por um lado, esses cuidados comuns, tambm encontrados em prescries

    mdicas e na educao dos jovens, fazem ver o valor esttico do corpo, dentre outras

    coisas, e uma das faces da ginstica grega.

    Uma das partes da dana se limita a imitar as palavras da Musa,

    sem nunca perder o senso de nobreza e liberdade; a outra

    promove os bons hbitos, agilidade e beleza dos membros e

    demais partes do corpo, por meio da flexo ou distensoconvenientes, como movimentar cada um dentro do ritmo

    apropriado, que se difunde por toda dana e a acompanha

    exatamente.44

    Mas preciso ainda lembrar que, a rigor, tanto na dana quanto na ginstica, a

    beleza que estava em jogo no se continha na bela forma alcanada, nos traos

    harmonizados, nos msculos consolidados. Estes eram, sem dvida, mais que indcios

    significativos, todavia, entre os gregos, a beleza se estende na ao. E, pensando neste

    sentido, no seriam o ginasta e o danarino os seres mais aptos e potentes a realizar, de

    modo explcito e imediato, as mais belas aes de superao das foras humanas?

    lanar mais longe, girar mais rpido, suportar mais peso, saltar mais levemente.

    44 Cf.Leis VII, 814e. Traduo de A. Nunes, p. 234.

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    Naturalmente, a realizao dos jogos e das danas no pode ser plenamente

    compreendida no exerccio medical. Do mesmo modo, o ideal de beleza cultuado entre

    os gregos no consistia no nico aspecto da dana entre os gregos.

    Sobre a relao que se estabelece entre os movimentos de soma e psiqu, os

    princpios imaterial e material da dana so retomados na esfera da sade. Nesta

    nova perspectiva, a distino e a definio do que so e do que representam os princpios

    fundamentais da dana, pressupem um cuidado de proporo entre as partes com as

    quais concebemos a totalidade das fontes de movimento. Portanto, no ser enquanto

    associao de realidades que se repelem que o humano est aqui pensado, mas sim em

    sua totalidade conciliada; ou ainda, no exerccio contnuo desta conciliao.

    No captulo anterior, havamos suscitado uma viso de dana na qual os jovensexperimentam a transcendncia divina, em ritos iniciatrios, os quais conferem

    visibilidade aos deuses imaginados e renovao das perspectivas da ordem social. O

    ateniense de Plato busca na dana a primeira forma persuasiva de transmisso e

    interiorizao de uma ordem social. Neste cenrio, o objeto do ensinamento e o

    resultado de sua contnua reproduo formam uma bela metfora entre a alma do jovem

    e o corpo social, no estudo da educao atravs da dana apolnea. Contudo, como

    pudemos abordar neste segundo captulo, se as percepes pr-racionais do ritmo e da

    harmonia na dana educam a alma e o corpo dos jovens, na medida em que estes so

    ddivas das Musas e de Apolo, por outro lado, a espcie dionisaca contrasta o

    paradigma da dana que se pretende instaurar. Isto se deve por razo de denotar, ao olhar

    dos legisladores, uma precria harmonia no corpo e na alma dos participantes, os quais

    sero identificados, primordialmente, com aquele estado originrio de prazer e dor, sem

    mediao da razo, sintetizados no smbolo da criana. A irrequieta centralizao em si

    mesma com que a criana , dentre todas as criaturas a mais intratvel torna o sentido

    das danas bquicas de difcil compreenso.

    Neste captulo, discutimos em que sentido os princpios apolneo e dionisaco da

    dana so descritos enquanto desdobramentos da alma, organizados segundo os

    referenciais interno e externo das fontes de movimento. Assim, a partir da teoria da

    tripartio da alma, a alma imortal humana liga-se observao dos movimentos dos

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    astros e a sua representao mimtica, associadas inteligibilidade e constncia, e, no

    extremo sul, a parte irascvel da alma liga-se aos sentidos mais prementes da terra: a

    necessidade de manter vivo o fogo interior, o qual comanda, as atitudes espontneas da

    criana e os desejos violentos de prazer e de dor.

    Deste modo, o contraste sugerido pela exceo das danas polticas projeta,

    algumas faces assumidas pelos princpios da dana religiosa de Apolo e Dioniso, as

    quais se comportam diferentemente na educao, na compreenso psicolgica do

    danarino e na representao. No prximo captulo, nos demoraremos mais sobre a

    questo da representao mimtica da dana e suas estruturas e convidaremos o leitor a

    pensar nos acordos e desacordos entre o conhecimento da medida e a viso, ainda turva,

    do intenso fluxo de movimentos, os quais no deixam transparecer exatamente as belas

    figuras da dana.

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    CAPTULO III

    MIMESE

    ... o que a dana? Um e outro de vs parece respectivamente sabe-lo; mas sabe-lo totalmente em

    separado! Um me diz que ela o que , e que se reduz quilo que nossos olhos esto vendo; e outro

    insiste que ela representa alguma coisa, e que no existe ento inteiramente nela mesma, mas

    principalmente em ns. Quanto a mim, meus amigos, minha incerteza fica intacta!...

    (Paul Valry,A alma e a Dana)

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    No captulo anterior, havamos discutido a representao mimtica da dana, sob

    um primeiro aspecto: no estudo das partes da alma caracterizamos as fontes de

    movimento em relao aos universos de referncia, internos e externos da mimese e,

    neste sentido, apresentamos tipos de danas paradigmticos, a partir daqueles

    referenciais de movimentos.

    Neste momento, a representao da dana comea a ser abordada,

    particularmente em seu carter histrico. Por exemplo: observemos as consideraes

    tecidas por L. Schan sobre a preeminncia do aspecto apolneo da dana grega.

    Segundo o helenista, os gregos no ignoravam a face dionisaca, orgistica da

    dana, a qual apresentava movimentos excessivos, tumultuosos, desordenados, por

    exprimir uma petulncia quase animal ou ainda, valendo-se do frenesi, levando a umdelrio onde a personalidade humana era dissociada do corpo. Contudo, a dana antiga

    grega era essencialmente apolnea, o que diz ela ser mesura, medida, equilbrio, luz,

    conscincia e um bem entendido de bondade e de beleza de viver, e crescente alegria:

    Para os gregos a dana no era normalmente concebida enquanto

    xtase, mas mais propriamente como uma expresso completa da

    harmonia do ser dentro dos seus limites, expressando

    naturalmente e sem excessos os sentimentos bem aventurados daserenidade inerente divindade que se manifesta em todas as

    formas da beleza.45

    Segundo nosso modo de ver, esta concepo da dana grega, em seu carter

    apolneo em muito se apia nos dilogos,especialmente no que diz respeito aLeis, onde

    o tema da dana mais longamente debatido; de modo tal que Plato, o autor dos

    dilogospode ser considerado, sem reservas, tambm um historiador da dana.

    Sobre esta questo, ampliaremos, momentaneamente, a perspectiva da dana

    grega antiga em exposio da representao histrica do fenmeno da dana grega. No

    apenas para contextualizar as consideraes do autor dos dilogos na formao do

    verbete dana grega antiga nem apenas para situar a questo da dana na cultura

    45 SECHN, Louis. La danse grecque antique, E de Boccardi, Paris, 1937,p. 86.

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    grega, mas, mais particularmente para suscitar outras relaes entre dana e mimese, a

    partir das alternativas precedentes. De um modo geral, neste captulo, nos

    concentraremos em abordar algumas caractersticas da representao mimtica da dana.

    3.1 Uma palavra dos historiadores

    Plato o autor que, dentre os antigos, conhecidamente oferece as informaes

    mais ricas e mais vlidas sobre a dana grega de seu tempo 46. Todavia, o tema da dana

    no apresenta uma sistematizao imediata pela qual um plano de danas estivesse

    explicitamente consolidado. As referncias so de tipos de danas diversas e muitas

    vezes os nomes das danas esto omitidos, restando as consideraes algumas vezes

    conflitantes entre si.O prprio termo grego relativo dana coreiva adquire sentidos diferentes,

    ao longo dosDilogos, podendo denominar (1) a dana circular ou bem uma melodia a

    ser danada, um canto de dana, sendo o sentido (2) de revoluo dos astros, que ele

    toma em seguida, ulterior composio do Timeo. Nas Leis o termo empregado em

    sentidos oscilando entre a primeira e a segunda acepo. Sendo notvel que ele aparece

    principalmente nas passagens relativas educao.

    Em um sentido geral, nossa abordagem literatura platnica privilegia os

    princpios fundamentais da dana, apolneo e dionisaco, na medida em que so

    constitudos mimeticamente. Todavia, a proeminncia do carter apolneo da dana na

    literatura platnica (e a impossibilidade de superao completa do dionisaco) esto

    afirmadas em diversos nveis de anlise. Cabe, aqui, fazer uma indicao sobre a

    abrangncia do tema, acerca da qual voltaremos, sempre que for necessrio.

    Neste modo, as duas explicaes sobre a origem da dana apresentadas pelo

    ateniensenasLeis47esto em primeiro plano. Nelas, como vimos, a dana vista como

    uma ddiva de Apolo e das Musas, e, secundariamente, atribuda