casa tempo 2011
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Casa Tempo foi o tema escolhido pela equipiá 2011 para desenvolver as atividades na Biblioteca Narbal Fontes. Segue publicação realizada pelos Artistas Educadores Flávia Sodré - Música, Juliana Rosa - Artes Visuais, Liliana Olivan - Dança e Sidmar Gomes - Teatro.TRANSCRIPT
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Programa de Iniciação Artística (PIÁ)
Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo
Divisão de Formação
Diretoria
Luciana Schwinden
Coordenação Geral PIÁ
Luciana Schwinden
Coordenação de Linguagens
Amilcar Farina – Música Isabelle Benard – Artes Visuais
Karin Rodrigues – Dança Roger Muniz – Teatro
Equipe PIÁ Narbal Fontes
Coordenação
Liliana Olivan
Arte Educadores
Flávia Sodré Juliana Rosa
Liliana Olivan Sidmar Gomes
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“Sótão é um porão, só que em cima da casa”.
Piás Narbal Fontes
“... com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade
do teto à irracionalidade do porão. (...) No porão também
encontraremos utilidades, sem dúvida. Enumerando suas
comodidades, nós o racionalizamos. Mas ele é a princípio o ser
obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas.
Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das
profundezas”.
Gaston Bachelard
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CASA TEMPO
Empreendemos a viagem e partimos do/ao encontro com a casa.
Como será ou como pode vir a ser?
Viagem que é mergulho.
Múltiplos encontros com a casa propõem percursos diversos.
Experiências, suporte para discutir coisas do trabalho, graus diferentes
da relação com o espaço, num prenúncio de uma relação mais
afinada. Essa experiência (in)fundada está em andamento. Ainda
passamos pela sensação do encontro, aproximação do objeto.
Experiência plena / utopia. Do encontro / aproximação ao
reconhecimento da coisa. Processo do inacabamento
> deslocamento > do > ao encontro > sempre inacabado.
É casa porque acolhe.
Como = pela própria casa
Corpos em encontro da casa.
Corpo em coletivo pela arte e além da arte.
Inter relação entre casa / pessoas /propostas.
Corpo relacionado aos corpos: espaço, memória, fantasia, cantos,
eco, forma conteúdo, matéria, contos, ocupação, residência, luz,
sombra, planta, duração, trânsito, vento, movimento, ilusão,
passagem, acolhimento.
Espaço / luz / formas / são encontros com a casa.
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A Música da Casa
Percebemos que a casa foi algo que despertou o imaginário
das crianças desde o princípio do processo. Com essa turma,
composta por alunos de 5 a 7 anos, optamos por explorar o infindável
potencial de alimento à criatividade que a casa poderia nos
proporcionar.
Decidimos dividir a casa em partes, e a cada etapa do
processo uma dessas partes nos serviu como tema. Assim, a única
coisa que sabíamos a princípio seria que exploraríamos o chão, as
portas, as janelas, as paredes e o teto.
Das geometrias da arquitetura da casa, praticamente um
verdadeiro mosaico de camadas e mais camadas de anos, reformas
e mais reformas, diferentes mãos e processos de
construção/manutenção, partimos para um processo que pretendia
dar-se pela integração entre a linguagem teatral e a linguagem
musical.
Ao longo desse percurso, sem lugar de chegada previsto, fomos
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surpreendidos pelo interesse comum da turma pela composição de
temas musicais. Prato cheio ao processo pretendido. O disparador
para a descoberta foi a escolha da utilização de músicas populares
que traziam em suas letras/temas as partes da casa a serem
abordadas, atreladas a jogos tradicionais. Nessa perspectiva
podemos nos lembrar da aula em que uma caça ao tesouro, que
teve como pistas as portas da casa, foi acompanhada da canção
popular:
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A porta é uma só,
Porém dois lados há!
Dentro e fora,
Você onde está?
A porta é uma só,
Porém dois lados há!
Eu estou dentro,
E você onde está?
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Ao cabo da proposta, à frente de uma imponente porta da
casa, as crianças supunham o que poderia haver atrás dela. Após as
suposições, a porta abria-se e de dentro dela saia “a mulher do lado
de dentro” revelando um espaço limitado, sem grandes mistérios,
apenas o local para a localização de um quadro de luz. Pretendemos
com essa proposta a discussão sobre as relações entre o dentro e o
fora, das imprevisões dos espaços fora da gente e dos espaços dentro
da gente.
Após a inicialização musical das crianças, e com a percepção
do desejo da turma para a composição de temas próprios, o processo
desviou seu ponto de partida para a exploração dos
espaços/estruturas da casa como mote para a criação de
composições musicais próprias. Letras musicais e suas melodias foram
criadas a partir da exploração livre de jogos de palavras e diversos
instrumentos musicais.
Não raro, fomos surpreendidos por caminhos que dotaram o
processo de vértices não imaginados, mas muito bem vindos. De
configuração rizomática, esses vértices deram ao percurso riqueza
decorrente da contradição presente em contextos de caos
organizado.
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Quando chegamos ao momento da exploração das janelas da
casa, por exemplo, distintas e que revelam a poesia de recortes de
uma cidade em constante transformação, fomos tomados pelo
desejo da utilização das mesmas como molduras ao improviso de um
teatro de dedoches. Esquecida a casa por algumas aulas,
mergulhamos na tarefa da confecção dos dedoches, das narrativas
deles decorrentes e na composição de uma música que atrelava
dedos e dedoches. Como último momento dessa parcela do
processo, ocupamos os dois lados das janelas da casa, um pelos
dedoches e seus manipuladores, o outro pelos espectadores que o
assistiram, para compartilharmos os improvisos pensados.
Espontaneamente, uma criança nos interpelou com a seguinte
reflexão: “uma janela também tem o lado de dentro e o lado de
fora”. Sua reflexão foi mote para instaurarmos a discussão de que seja
do lado de dentro ou do lado de fora (enquanto atores, ou
espectadores) a responsabilidade é a mesma, muda-se apenas a
perspectiva do olhar integrado ao espaço. Ou seja, a discussão sobre
a contradição dentro/fora e seu potencial poético foi retomada
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espontaneamente num momento de distração/desvio dos rumos
retilíneos do percurso. Nesse momento essa discussão veio dotada de
maturidade e profundidade decorrente da decantação de seus
princípios, travados ainda na parcela inicial do processo em que as
portas foram abordadas.
A sensação é a de como se estivéssemos que esquecer por
alguns instantes o mapa de bordo traçado. Desse esquecimento, à
deriva, somos levados para contextos desconhecidos. Em contextos
desconhecidos, involuntariamente nos recordamos com lucidez de
quem somos e onde estamos. O incômodo do desconhecido nos
impele ao mergulho do eu que procura sua identidade. Do percurso
do conhecido ao desconhecido, para novamente estarmos em
contextos conhecidos, mas que já não são os mesmos que os
anteriores, damos organização e unidade a esse caos de pretensão
desorganizada. Quando percebemos, estamos deslocados para
outros cantos, mas novamente ligados aos eixos do outrora.
A cada espaço/estrutura da casa explorado, finalizamos com a
materialização de nossas sensações a partir da proposta da
construção da maquete de uma casa. De porta em porta, janela em
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janela, piso em piso, canto em canto, na última aula acomodamos a
derradeira telha da cobertura da casa. Foi quando tivemos uma
surpresa: a proposta da construção de uma maquete não pretendeu
em momento algum a reprodução exata da casa da biblioteca, mas
quando findada, percebemos que ela apresentava grandes traços de
semelhança a nossa grande e real inspiradora. De formas estilizadas, a
maquete suscitou em nós, artistas educadores, certo teor das formas
circulares, lúdicas, coloridas e de inspiração direta na natureza do
artista catalão Antoni Gaudí. Ou seja, esse seria um vértice
interessante para o desdobramento do processo findado com o
término do semestre caso sua continuação fosse possível.
Ao cabo desse processo, reiteramos as bases estruturadoras de
uma poética que alia pedagogia e artes, construída ao longo desses
quatro meses pela convivência/integração de quatro artistas
educadores recém conhecidos. Dessa poética podemos destacar os
seguintes aspectos: a integração entre linguagens, a permanência do
caráter inacabado de um processo criativo - por nos entendido como
a exploração e sensibilização para os infindáveis desdobramentos
possíveis em termos de exploração estética e de sentidos da criação
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artística -, a iniciação artística de crianças por meio da abordagem
das artes pela perspectiva da brincadeira, almejando o encontro de
experiências estéticas que possibilitem a compreensão do mundo por
meio dos sentidos.
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Ao chegarmos à Casa Tempo, Biblioteca Narbal Fontes, fomos
apresentados à casa. Conhecemos a casa da escada ao sótão,
brincamos em todas as partes da casa. De repente, surgem as
indagações... Isso é uma casa ou uma biblioteca? Tem cara de casa!
Quem morou aqui? Parece um castelo mal-assombrado!
Todos queriam saber melhor sobre ela, mas, para descobrirmos
as respostas dessas questões, nada melhor que perguntar para a
própria casa. Continuamos no processo conforme nosso
planejamento inicial, que era de conhecê-la.
Ao andarmos em volta da casa, observamos as distintas árvores,
a roseira, o gramado, a fachada da casa, todo seu visual ao redor, o
telhado de barro vermelho... Tivemos uma sensação de bem-estar...
Parecia uma casa de campo dentro da cidade. Andamos com os pés
descalços no gramado, sentimos o cheiro das plantas, ouvimos o som
dos pássaros e respiramos com um imenso prazer.
Como é o som do lado de fora da casa? A partir dessa
pergunta fizemos exercícios de escuta sonora. Ouçam o som do
vento! Tem um movimento que as folhas das árvores fazem e que
também produz som. De onde vem o vento? Por que ele está fazendo
esse som? Ouçam o canto dos pássaros! Qual a característica do som
de cada um? Mas também ouvimos os automóveis na rua... as
buzinas... as freadas, gente que anda, gente que fala, cachorro que
late, avião que voa...
Ao pararmos por um momento e nos concentrarmos no que
ouvimos, percebemos que o mundo é uma grande orquestra! Mas
como poderíamos registrar esses sons? Por meio de uma partitura, é
claro! Mas você sabe ler partitura? Não? Ah!... Tenho uma idéia!
Porque não criamos uma partitura orgânica? Partitura orgânica? Mas,
o que é isso? Vamos fazer uma pesquisa sonora e escolher três sons,
O Terror que Nosferatu Despertou
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depois colheremos três objetos da natureza que se pareçam com os
três sons que cada um escolheu. Vejam, esse graveto é comprido
como o som da freada do ônibus que parou! Essas quatro sementes
têm a duração de cada piada do canto daquele pássaro! Ouço
passos... talvez essas pedras possam representar os passos, ou quem
sabe, essa folha seca caída no chão possa representar o carro que
passa... mas a folha tem curvas!... Mas o som do motor do carro
passando também tem curvas! Ah, que legal! Vamos unir as frases dos
nossos sons e montar uma orquestra! Mas, quem será o maestro? Vai
você primeiro... depois eu vou.
Tudo foi uma grande brincadeira! Imaginem só... Partituras
orgânicas nunca vistas antes, músicos interpretando o que se lia na
partitura e um maestro maluco regendo todo mundo, ora mandava
parar, ora mandava prosseguir... Ouvi uma janela bater sozinha! Será
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que tem alguém regendo o som dessa casa? Ainda acho essa casa
estranha!
Foi muito bom conhecer o lado de fora, agora vamos entrar e
conhecer o lado de dentro...
Mas, é uma biblioteca! Corredores cheios de livros... Quem
morou aqui gostava mesmo de ler! Olho pra cima e lá está o velho
telhado de barro vermelho. Que sensação estranha... Ao mesmo
tempo em que parece casa mal-assombrada de filme de terror, é
aconchegante! É estranho!
Vejam! O acabamento dessa casa é todo feito de madeira!
Portas de madeira... janelas de madeira... escada de madeira... e o
sótão, gente... é de madeira as paredes e o piso!
Experimentamos tocar em tudo que era de madeira para
explorarmos as diversas possibilidades acústicas que a madeira pode
proporcionar numa produção sonora. Por falar em acústica... embaixo
dessa escada que leva ao sótão, tem uma acústica muito interessante
que reverbera! Mas o que é reverberar? É o som que reflete com
grande intensidade! Será que é a sombra do som?
Aqui tem muita sombra... É sinal que também tem muita luz!
Vamos lá fora observar as sombras... A luz do sol é ótima para refletir
com intensidade fazendo surgir as sombras. Veja a sua sombra! Fique
parada que vou desenhá-la! Faça uma pose! Que legal!
Que cor é a sombra? Preta! Ué!!! Preta?
Com papeis celofanes coloridos fizemos sombras coloridas! Uau!
Eu não sabia que isso era possível! Que sombras poderiam ter cor!
E o som... Tem sombra? Claro que não! Não mesmo? Vamos
brincar de fazer cânone! O que é cânone? São frases musicais que ao
se repetirem, intercalam-se nas diferentes entradas, formando uma
harmonia, mas a prática vai ensinar melhor... Conhecem a música do
Frere Jacke? Então, vamos lá! Vocês desse lado irão cantar a música
toda, repetindo sem parar. E vocês do outro lado, também irão cantar
a música toda e repetirão sem parar, porém vocês devem esperar o
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primeiro grupo iniciar, e vocês entrarão ao meu sinal. Quando o
primeiro grupo estiver cantando a segunda frase, vocês entrarão
cantando a primeira frase ao mesmo tempo, como se fosse um eco
do primeiro grupo.
Por meio do cânone fizemos refletir os fraseados da música? Sim!
Parece ECO! Podemos dizer então que o cânone e o eco são reflexos
de um som? Eles poderiam ser a sombra do som? ECO! Vamos lá para
cima experimentar o eco do lado de dentro. No banheiro! Eu canto
no banheiro porque parece que estou cantando com um microfone!
Reverbera! Lá embaixo daquela escada que leva ao sótão também
reverbera e dá uma sensação de casa mal-assombrada... Eu já disse...
essa casa é estranha e tem um som estranho... a porta bateu sozinha!
Será que tem fantasmas morando aqui? O que vocês acham de
perguntarmos para a casa? E como ela poderia nos responder?
Bem, vamos pesquisar em
seus livros histórias de terror.
Legal! Encontramos estes livros...
Gostei desse aqui de vampiro!
História aterrorizante! Vocês já
ouviram falar do filme mudo
“Nosferatu”? Não! Não? Então
vamos assistir...
Nossa! Que vampiro
estranho! Ele não fala nada, mas
dá medo! Que tal se fizermos um
filme de terror! Com monstros...
como o “Frankstein”? LEGAL!!!!!
Então vamos construir uns personagens.... Vamos fazer os
monstros! Desenhamos os monstros em tecidos, pintamos, cortamos e
costuramos, mas cada um fez uma parte do corpo sem ver a parte
do outro... um fez as pernas... o outro a cabeça... o outro os braços,
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etc. Os membros ficaram desproporcionais, mas essa era a ideia!
Afinal, eles eram monstros!
Agora precisamos criar a história (roteiro) com os personagens
que temos. Nós também queremos ser personagens desse filme!
Ótimo! Vocês vão criar a história, escrever o roteiro, filmar, vão ser os
personagens, vão colher sonoplastia para o filme, criar cenário,
figurinos, participando de toda a montagem do filme! No final,
editamos juntos. Vamos selecionar as imagens, colocá-las em
sequência como no roteiro, depois introduzimos toda a sonoplastia
com os sons que colhemos e registramos com gravador e com trechos
de músicas orquestrais de trilha sonora de filmes de terror para dar
sensação de medo. LEGAL!!! Kauê fez uma montagem aterrorizante
no computador! Eu não sei fazer isso! E o Pedro correndo com a
imagem focada nos pés dele ao som de um trecho da trilha sonora
do filme do tubarão! O terror que o Nosferatu despertou terminou com
monstros pendurados nas árvores e corpos representando o terror da
morte no sótão da casa. A produção foi concluída com sucesso,
porém, Kauê chegou no dia da mostra com uma gravação com
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efeito especial para o filme, mas já era tarde para aquele filme que já
estava editado. Compreendemos que o processo ficou inacabado,
pois sempre a arte dará continuidade na vida dessas crianças
fantásticas que trabalharam muito e se surpreenderam, nos
surpreendendo com o que aprendemos juntos!
Nossa! Nosso filme ficou maravilhoso! Isso é PIÁ!
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A História da Mãe
Ao conhecermos a biblioteca que parece um castelo, que
parece com uma casa mal-assombrada, fizemos o mesmo processo
inicial com a turma de terça-feira de manhã. Depois que passamos
pela pesquisa sonora e falamos da sombra: que tal um teatro de
sombras? Legal! Precisamos de um ambiente bem escuro e luz!
Achamos o local! Aquela saleta abaixo do sótão era perfeita para o
teatro de sombras, mas... que história contaríamos?
Bem, os adolescentes estavam com o tema “terror” a flor da
pele, pois tiveram a mesma inclinação da turma de manhã. Houve
contação de história com sonoplastia – a história da mãe que perde
seu filhinho que a morte veio buscar. Então a mãe segue desesperada
atrás da morte para tentar resgatar seu filho, a ponto de perder seus
olhos num lago, por muito chorar...
As crianças fizeram os personagens da história com papeis
recortados à mão livre, colocaram apoio e brincaram contando
histórias com esses personagens por meio do teatro de sombras.
Era necessário entender melhor o que era sonoplastia... Então
fizemos um corredor sonoro, onde uma pessoa passava com olhos
vendados para sentir o que os sons lhe fazia sentir, levando para outro
lugar visual da mente. Sensações que remetiam a uma percepção
imaginária do tempo e do espaço, por meio da escuta de sons
urbanos e da natureza.
Fizemos uma viagem com Villa Lobos através da música “O
Trenzinho Caipira”. Percebemos a sensação de estarmos no trem,
trilhando entre as colinas que a música instrumental dá... O momento
da partida do trem, da freada, da continuidade e da chegada.
Cantamos e descobrimos que o som tem altura, mas essa altura
não é o volume!... Como assim? Vamos pensar num som grave, num
médio e um som agudo. Por meio de uma partitura gigante de
somente três linhas, indicaremos a primeira linha abaixo representando
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o som mais grave, a do meio, o médio e a superior, o agudo. Os
nossos corpos foram as notas musicais e brincamos de fazer música,
onde nós mesmos éramos a partitura fazendo o som que queríamos
de acordo com a indicação das alturas: grave, médio e agudo.
Lembrei do “Pulsar” de Caetano Veloso, em sua poesia
concreta, fez com que as vogais fossem correspondentes às alturas do
grave, médio e agudo. Então, aprendemos a música “Pulsar” por
meio de um sistema de partitura que Luiz Tatit criou.
Depois de cantarmos, falamos sobre os aspectos das músicas de
terror e exploramos os sons dos instrumentos musicais. Mas,
precisávamos de algo concreto, então surgiu a idéia da turma
expressar aquela história da mãe. Fizemos tipo uma foto-novela.
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Todo o trabalho anterior para aguçar a percepção e a
sensibilidade sonora serviu para o desenvolvimento do processo
criativo.
Desenhamos as cenas da história em um tecido, pintamos com
tinta de tecido, colocamos em sequência, fizemos várias histórias com
as mesmas imagens, mas com sonoplastias diferentes, filmamos e
editamos a última exploração, porém a sensação que me deu foi de
que não havia a história certa para o filme, pois poderia ser qualquer
uma. Ela poderia continuar de outras formas. A imaginação sempre
esteve presente e pronta para mudar, transformando a história em
outra. A sensação é de que a história da mãe dava origem a outras, e
que por isso jamais teria fim.
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O Espaço da Cor
Tudo começou quando descobrimos que um grande baile
aconteceria no sótão da Biblioteca Narbal Fontes às dez horas de
uma quinta-feira ensolarada. Mas, em um evento tão importante, só
poderia entrar quem tivesse convite. Como conseguir os convites?
Bem, nos disseram que eles estavam escondidos em um lugar muito
específico da biblioteca e fomos à procura deles.
Sem mais nem menos, descobrimos que a luz que estava vindo
da janela da antessala estava diferente, iluminando o ambiente com
várias cores. “– Lá estão os convites!” Alguém gritou. Eram quadrados,
transparentes e coloridos. Nossa pele, acho que por causa da luz que
passava pelo convite, ficou colorida também. Foi uma festa!
Experimentamos várias cores no nosso corpo.
Cada um escolheu a cor do seu convite para, enfim, entrarmos
no baile. Lá surgiram princesas, palhaços, reis e cobras que
transformavam todo o espaço-tempo. Olhem só a rainha Bianca!
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E olhem também como a Brenda, o Iago José, o Sidmar, a
Mariana, a Letícia, o Jean, o Gabriel, o Iago Hitomi e o mundo todo
ficavam legais quando a gente olhava através dos convites!
Um tempo depois, caminhando pelo jardim da casa-biblioteca
encontramos máquinas fotográficas incríveis! Elas tinham
enquadramentos engraçados e aproveitamos para tirar muitas fotos
tanto de dentro quanto de fora da casa. Flores, gramas, manchas,
texturas, feições... e escolhemos algumas delas para guardar dentro
da gente. De repente, encontramos assustados um ser de outro
mundo! Ele tinha cabelos rosas, era muito alto e possuía uma capa
preta que o cobria por inteiro. Seu nome: Mago das Cores, aquele
que está em todos os lugares ao mesmo tempo. Ele ofereceu umas
pílulas mágicas que faziam enxergar o mundo por meio de cores
diferentes. “– Nossa! Estou vendo tudo azul! – E eu verde!”. Foi curioso
como essas pílula tiveram um efeito tão rápido. Pensamos então que
poderíamos, agora com as câmeras coloridas, fotografar mais coisas
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legais. Que surpresa boa! Todas as fotografias registravam um mundo
mais colorido que o normal, sem falar como elas saíram engraçadas.
Todo esse processo de ver por meio de transparências azuis,
verdes, amarelas, vermelhas, laranjas, etc., nos instigou a percorrer
caminhos inesperados como, por exemplo, experiências com a cor-
luz, a cor-sombra, a mistura das cores, a cor-luz, a cor no corpo, a cor-
líquida, salada de cores e outras formas de imersão na cor. Agora, é
continuar o caminho que começamos no PIÁ.
Tudo começou quando descobrimos que um grande baile
aconteceria no sótão da Biblioteca Narbal Fontes, às dez horas de
uma quinta-feira ensolarada. Mas, em um evento tão importante, só
poderia entrar quem tivesse convite. Como conseguir os convites?
Bem, nos disseram que eles estavam escondidos em um lugar muito
específico da biblioteca. Então, fomos à procura deles.
Sem mais nem menos, descobrimos que a luz que vinha da
janela da ante-sala estava diferente, iluminando o ambiente com
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várias cores. “– Lá estão os convites!” Alguém gritou. Eram quadrados,
transparentes e coloridos. Nossa pele, acho que por causa da luz que
passava pelo convite, ficou colorida também. Foi uma festa!
Experimentamos várias cores no nosso corpo. Cada um
escolheu a cor do seu convite para, enfim, entrarmos no baile. Lá
surgiram princesas, palhaços, reis e cobras que transformavam o
espaço-tempo. Olhem só a rainha Bianca!
E olhem também como a Brenda, o Iago José, o Sidmar, a
Mariana, a Letícia, o Jean, o Gabriel, o Iago Hitomi e o mundo todo
ficava legal quando a gente olhava através dos convites!
Um tempo depois, caminhando pelo jardim da casa-biblioteca
encontramos máquinas fotográficas incríveis! Elas tinham
enquadramentos engraçados e aproveitamos para tirar muitas fotos,
tanto de dentro quanto de fora da casa. Flores, gramas, manchas,
texturas, feições... Escolhemos algumas delas para guardar dentro da
gente. De repente, encontramos, assustados, um ser de outro mundo!
Ele tinha cabelos rosa, era muito alto e possuía uma capa preta que o
cobria por inteiro. Seu nome: Mago das Cores, aquele que está em
todos os lugares ao mesmo tempo. Ele ofereceu umas pílulas mágicas
que nos faziam enxergar o mundo por meio de cores diferentes. “–
Nossa! Estou vendo tudo azul! – E eu verde!”.
Foi curioso como essas pílulas tiveram um efeito tão rápido.
Pensamos então que poderíamos, agora com as câmeras coloridas,
fotografar mais coisas legais. Que surpresa boa! Todas as fotografias
registravam um mundo mais colorido que o normal, sem falar como
elas saíram engraçadas. Todo esse processo de ver por meio de
transparências azuis, verdes, amarelas, vermelhas, laranjas etc., nos
instigou a percorrer caminhos inesperados como, por exemplo,
experiências com a corluz, a corsombra, a cor no corpo, a corlíquida,
salada de cores e outras formas de imersão na cor. Agora, é continuar
o caminho que começamos no PIÁ.
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O Corpo Inacabado: Relato de um Processo Criativo
Todas as turmas partiram, na primeira sessão de trabalho, de
uma atividade que tinha como princípio a exploração e o
reconhecimento da casa. Supúnhamos que por estarmos trabalhando
com crianças as possibilidades e visões de mundo da “casa” seriam
infinitas, e que dessas infinitas possibilidades conseguiríamos perceber
a identidade em formação de cada turma.
O fio colorido, atividade assim denominada pelas crianças, logo
apontou para o interesse da turma de 8 a 10 anos do período tarde
em explorar os diversos casulos e lagartas que enfeitavam a fachada
externa da casa. Atentos a essa solicitação, propusemos uma imersão
no mundo das lagartas, casulos e borboletas.
Logo, traçado o plano de vida de uma borboleta (a princípio
lagarta, depois casulo e, por fim, borboleta), por meio de profunda
observação dos vestígios encontrados pela dissecação de casulos,
movimentação de lagartas, exploração de cores de borboletas,
dentre outros, direcionamos o trabalho para fins artísticos, da
expressão de formas que tocam diretamente os sentidos. Assim,
propusemos a reprodução do ciclo de vida das borboletas com o
corpo em jogo das crianças atuantes, onde diferentes qualidades de
movimento foram identificadas: leve/pesado, lento/rápido,
pequeno/grande, contínuo/não-contínuo. Recorremos aos estudos da
Rudolf Laban e suas qualidades de movimento, e logo as crianças
identificaram a fase lagarta com a qualidade do deslizar, a fase
casulo com a qualidade do empurrar e a fase borboleta com a
qualidade do flutuar. Iniciados no universo de Laban, propusemos em
seguida outras qualidades, já não relacionadas diretamente ao ciclo
de vida da borboleta. Entre elas podemos citar: socar, cortar e
sacudir.
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Aqui, após uma exploração livre inicial de cada uma das novas
qualidades, desafiamos o grupo a criar improvisos em dupla em que a
proposta era a criação de um diálogo de movimentos
(pergunta/resposta) explorando as qualidades de movimento
experimentadas.
Assim, pequenas partituras improvisadas surgiram repletas de
vida, revelando o corpo individual de cada atuante, bem como sua
apropriação do processo proposto.
Nessa altura percebemos certa exaustão por parte das crianças
acerca do tema das borboletas. Então, num dia de sol, apresentamos
diversos tecidos e desafiamos o grupo a transformar o jardim da
biblioteca a partir dos elementos concretos apresentados. Dessa
proposta, surge uma cabana e a discussão sobre o tema das
instalações. A instalação criada foi o mote para a construção
conjunta de uma narrativa improvisada teatralmente logo em
seguida. Castelos, florestas, baú mágico e crianças perdidas
remeteram o grupo novamente ao universo das borboletas, quando
uma das crianças expressou seu ponto de vista sobre a experiência:
“nossa cabana é como o casulo da borboleta”. Nessa sessão de
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trabalho, mais de uma vez, pudemos perceber o interesse das
crianças pelo universo dos animais, quando introduziram animais na
narrativa criada, ou fizeram referência à cabana como lar para os
mesmos. Esse interesse foi o mote para a próxima proposta.
Propusemos ao grupo a construção de animais por meio da
exploração de canudos de papelão e outros materiais disponíveis
(papel, tinta, canudinhos de refresco, dentre outros). Pela exploração
e integração desses diferentes materiais, surgiram quatro animais:
duas cobras, uma inarticulada e outra, criativamente articulada, um
tigre e uma girafa.
Feitos os animais, observamos os mecanismos de construção dos
mesmos e conversamos sobre a possibilidade limitada de movimento
dos corpos criados, dada a ausência de articulações.
Na sessão seguinte, partimos para outra experiência. Depois de
uma caça ao esqueleto - ossos de uma réplica de esqueleto
escondidos pelos cantos do jardim -, montamos o conjunto completo,
nomeando e observando as principais articulações e seus respectivos
movimentos. Como atividade seguinte, propusemos a construção de
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bonecos em miniatura, a partir de barbante, canudos de refresco e
palitos de churrasco, que reproduzissem as principais articulações do
corpo humano.
Depois de uma semana, esses bonecos foram retomados. Com
isso pretendemos a observação dos movimentos dos bonecos para
que as crianças travassem uma experimentação individual acerca
das possibilidades de movimentação de suas articulações,
transportando para seus corpos os movimentos realizados com os
bonecos.
Ao final dessa experiência, conversamos sobre a possibilidade
de darmos movimentos e vida a um objeto inarticulado (os animais
feitos anteriormente). Após o consenso geral por parte dos alunos da
possibilidade dessa afirmação, foi proposto ao grupo que pensasse
em uma narrativa integrando os quatro animais (duas cobras, um tigre
e uma girava), improvisando posteriormente essa narrativa por meio
da animação de tais animais inarticulados. Assim, surge a história de
um tigre ingênuo que sempre é convidado pelos demais animais - as
cobras - para uma festa, mas quando chega ao endereço da
comemoração, sempre bate com a cara na porta, pois nunca a festa
é dada. Até que um dia ele recebe o convite de uma girava, mas
receoso de que as situações anteriores se repetissem, ele não aceita.
Contudo, dessa vez a festa era de verdade. Com a imersão na
exploração das articulações do corpo terminamos nosso trimestre de
trabalho.
De início tínhamos como única certeza o desejo de
embarcamos numa viagem que estaria à mercê dos interesses e
experiências dos alunos-atuantes em consonância às práticas
artísticas dos artistas educadores. Da imprevisibilidade do caminho
brotou sensibilidade e criatividade para a continuidade do processo.
O prazer, tanto por parte dos alunos-atuantes quanto por parte dos
artistas educadores, é fruto da interação respeitosa e sensível entre
diferentes experiências, do deslocamento a partir da confiança no
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outro para caminhos desconhecidos, fator que legitima também a
riqueza do trabalho realizado. O processo criativo acima descrito,
mesclado pela integração entre diferentes linguagens artísticas,
objetivou sensibilizar os alunos para as estruturas de seus corpos e a
ampliação e afinamento de suas possibilidades de movimentação.
Torna-se claro o caráter inacabado do processo criativo instaurado,
denunciado pelas diversas possibilidades de desmembramento e
continuidade da proposta apresentada, bem como por sensibilidades
que uma vez despertadas jamais findarão suas leituras e explorações
acerca do mundo.
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Corpo Reflexo
Nossa viagem começou num dia ensolarado com 13 crianças
com idades que variavam entre 8 e 10 anos: Pedro, Ana Paula,
Ericson, Manuela, Ágata, Hosana, Samuel, Saulo, Beatriz, Amanda,
Giulia, Andreza e Paloma. Nesse percurso alguns abandonaram o
navio, outros embarcaram, recebemos os flutuantes, os pontuais, os
eventuais. No último encontro, num outro dia de sol, também
tínhamos 13.
Nosso ponto de partida: da Casa Tempo ao encontro do
desejado inesperado.
A casa encheu nossos olhos e saltamos o elástico, marcamos
caminho como João e Maria, descobrimos a rosa e seu ritmo,
cantamos para as árvores, puxamos o rabicho dos animais,
contornamos a casa e o corpo no papel, brincamos de pique
corrente, entramos, percorremos escadas, chegamos à salinha do
Narbal e tínhamos muitas dúvidas: quem morou ali? Será que o tal
Narbal era o dono da casa? A Ofélia gostava de crianças? Criança é
gente? Finalmente, chegando ao sótão tínhamos um caminho
percorrido materializado: elástico, barbante, rabichos, linha vermelha,
papel e foi preciso ação em grupo, numa coordenada força tarefa
para puxar aquele emaranhado. Coube tudo no baú, que seria
aberto no último encontro.
Para celebrar nosso grande encontro só uma festa bem
dançante, com ritmos variados, fantasias, movimentos grandes, que
demonstravam a disposição para a empreitada.
O que chamou a atenção foi o que nossos olhos adultos não
tinham visto: os inúmeros casulos espalhados no jardim: quem nasceu
primeiro: lagarta ou o casulo? Tempo de explorar o miolo da
Biblioteca, por que tantas portas? O que tem atrás de cada uma?
Livros, mais livros, mesas, livros infantis, livros em braile, cadeiras, pia,
vassouras.
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Com certeza é ou era uma casa. E esses casulos? São muitos os
vazios, casas abandonadas. Com certeza, tantos livros nos dizem
muito sobre borboletas e todos se interessam, ciclo natural: lagarta –
casulo – borboleta. É a tal metamorfose. Puxa! Para se transformar é
preciso parar, endurecer para então ficar leve. Processo criativo
natural: metáfora recorrente, a feia lagarta que se transforma na linda
borboleta.
Experimentamos: flutuar como borboletas, andar como lagartas,
empurrar as paredes do casulo, experimentamos asas e voamos
vagarosos ou ligeiros. Nosso espaço tem sons, tem pistas, muitos
instrumentos, muitos movimentos. Como consigo me movimentar com
esse som? Onde está o caxixi? O reco reco?
Experimentamos sons. Umas crianças produzem o som, outras
dançam no ritmo produzido. Criam partituras, viram maestros,
assumem o comando.
Como construir uma cabana? Basta experimentar: algumas
árvores, arbustos, muitos tecidos, cordas, barbantes, elásticos. Faz de
conta que construímos uma cabana mágica no meio da floresta com
direito até o encontro com bruxo, inventamos a história e a
interpretamos. Serve para nos abrigar, piquenique dentro da cabana.
Tudo é mágico, principalmente para quem nunca construiu uma
cabana nem com almofada, em frente da televisão.
O casulo/metáfora/casa encontra a árvore dos desejos.
Quantos sonhos trazem desenhos, cores, interações. Tantos
movimentos novos, sons, possibilidades, impossibilidades. A instalação
é uma ocupação, é intervenção, é estimulo visual, pode ser tátil,
olfativa.
Podemos construir objetos a partir de sucatas variadas. Sim,
gostam muito de construir: elaboram, reelaboram, misturam, recortam,
pintam, colam pás, vassouras, cavalinho de pau, abajur, catapulta,
binóculo, luneta, machado. Pretexto para criar histórias, estabelecer
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interações, criar caminhos, sozinhos ou em grupos. Objetos se
relacionam, abajur deve se entender com a luneta, viram
personagens, inventam histórias, são essenciais. Mas não tem
articulação, movem-se com delicadeza porque tudo é questão de
jeito. Como se mexer sem articulação?
De repente as sombras, tudo vira sombra, corpos e objetos
inarticulados, a sombra é mágica reveste tudo com poesia e certo
distanciamento da realidade.
Momento investigação: muitas pistas para localizar os ossos
espalhados pelo jardim. Onde está o outro pé? Como montar? O que
liga um braço ao tronco? Atlas e livros de anatomia, as crianças se
interessam, lembram os nomes, brincam e montam o esqueleto,
enfeitam, trocam de roupa, criam histórias macabras e argumentos
toscos.
Criam pequenos bonecos articulados feitos em barbante,
canudo, bolas e bolinhas muitas. Experimentam possibilidades no
articular, dobrar articulações, boneco, sombra, projeções,
movimentos. Trazem para seus corpos o movimento do boneco e
transferem para o boneco seus próprios movimentos.
Depois da apreciação de trechos do filme “Tambours Sur La
Digue”, do Théâtre du Soleil, os experimentos se adensaram, se
dividiram entre bonecos e bonequeiros. Quem manipula quem? Os
bonecos são guiados, às vezes esquecem que são bonecos e
demonstram vontade própria.
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Vemos materializar diante dos olhos a partir de um roteiro
simples, escrito pelas crianças, o jogo estabelecido, a apropriação do
espaço, a prontidão criativa, a preocupação cênica. As crianças
trouxeram tudo com elas, só esperavam alguém olhar e ver.
Nossa curta viagem chegou ao fim com a certeza de que não
somos mais os que partiram (AEs e crianças), pois trazemos um novo
olhar, vimos outras paisagens, criamos significados, encontramos um
outro. Para nós fica evidente o caráter inacabado do processo
criativo na medida em que nos nutrimos uns aos outros e
experimentamos com os olhos, os músculos, os ouvidos; enfim, está
impregnado nos nossos corpos.
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O guardador de rebanhos
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Peso com os olhos e os ouvidos
E com as mãos e os pés e com o nariz e aboca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Fernando Pessoa
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Fechar os Olhos para Ver
Desde o início tivemos certeza que nossa reunião com os pais
deveria ter como eixo a proposta de uma vivência e não uma
conversa longa sobre o que é o PIA. Sabíamos intuitivamente (ou
praticamente) que só poderíamos sensibilizá-los para os princípios do
programa de forma lúdica.
Nosso tema gerador para o semestre, definido nas nossas
primeiras reuniões, era Casa Tempo, casa porque o que nos chamou a
atenção desde que chegamos ao equipamento é a construção: um
sobrado com sótão. Quem morou ali, quem olhou por essas janelas,
quanta alegria essa casa já presenciou, quantas mortes? O tempo
está implícito, inscrito, grudado nas paredes.
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Queríamos que os pais conhecessem a casa, explorassem o
ambiente conduzidos pelos filhos.
Os pais foram chegando com suas expectativas, sua pressa
indisfarçável, alguma curiosidade. Os acolhemos com as
apresentações indispensáveis e solicitamos que vendassem os olhos,
pais e filhos. Nossa proposta era subir o primeiro lance de escada,
guiados pelos sons de alguns instrumentos musicais. Quando
chegaram à salinha que antecede a escada que dá acesso ao
sótão, pedimos que as crianças tirassem a venda e conduzissem os
pais ao sótão. Lá deveriam ficar nos cantos enquanto os pais
procuravam os filhos ainda de olhos vendados. Nesse ínterim os pais
deveriam se sensibilizar para os odores, os sons, as texturas, os olhos
poderiam se abrir quando encontrassem os filhos.
Disponibilizamos alguns materiais: voil cru, voil vinho, TNT de
cores variadas, diversos lenços coloridos, elásticos, barbantes, tesoura,
abajur.
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Nossa proposta: construir uma(s) cabana(s), junto com as
crianças, utilizando aquele material. Criaram paredes e teto de
tecidos, varais de lenços, chão colorido. De repente, a surpresa: um
tecido claro de voil, esticado virou uma tela com a projeção da luz de
um abajur, estava criado uma espécie de teatro de sombras. Os pais
foram lembrando-se das sombras feitas com as mãos, as crianças
mergulharam na brincadeira, foram para detrás da tela e o jogo
continuou.
As projeções foram ocupando o espaço. Visivelmente nos
encantamos todos: pais, AEs e crianças. O momento foi mágico, puro
processo criativo e, como tal, potente, inacabado, fluente.
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Vamos Brincar de Quê?
“Ludicidade: a brincadeira como forma legítima
de se relacionar, de ser e estar no mundo, na sua
espontaneidade e significação. Reconhecer a
bagunça, a alegria, o jogo e a fantasia como
aspectos desse princípio.” 1
“Quando se está na idade de imaginar, não se sabe dizer como e por que se imagina. Quando se
pode dizer como se imagina, já não se imagina. Seria preciso, então, desamadurecer.”
Gaston Bachelard
Nas nossas conversas piantes, o termo brincar é essencial,
delicado, controverso, envolto em sutilezas, cheio de ressalvas: “não é
brincar por brincar”, “não é qualquer brincadeira”, “quem propõe a
brincadeira?“, “a brincadeira como experiência estética”, “como
convencer os pais que não é apenas brincadeira?” e infinitas outras
aspas.
Quando falamos de brincar queremos enfatizar o caráter lúdico
que propomos e insistimos nos nossos encontros, o que nos conduz à
tensão e à incerteza. A tensão da dúvida de estarmos realmente
prontos para ouvir, sentir, elaborar com o outro AE e propor à criança
a coisa/processo criativo, e a incerteza de que tudo isso nos conduzirá
a uma experiência estética/processo interessante e significativo. A
grande pergunta a cada encontro: “dará certo?”.
O brincar é atividade livre e descontraída, neste sentido distante
da proposta da educação convencional. Talvez por isso mesmo
capaz de absorver totalmente o brincante de maneira intensa e total.
1 Primeiro princípio do PIÁ, redigido pela equipe de 2010.
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Nem por isso é atitude/procedimento distante de regras e
organização.
A proposta é séria: queremos brincar. Perseguimos, como arte
educadores, guardar a qualidade de divertimento no aprendizado,
queremos intimidade entre o saber e o sabor (viva a etimologia);
brincamos e brindamos o prazer da construção de conhecimento, o
sabor do saber.
É preciso lembrar: queremos nos afastar de uma abordagem
tecnicista da arte, de um mero desenvolvimento de técnicas e
atividades que tenham como objetivo desenvolver “habilidades
motoras”, “resgatar auto estima”, “criar apresentações” e outros
conceitos afins, ao mesmo tempo não queremos afirmar
categoricamente que tais procedimentos precisam, necessariamente,
estar distantes das nossas aulas.
Propomos e experimentamos uma maneira de ver o mundo,
queremos pensar o mundo pelos olhos da arte e descobrir em cada
grupo o caminho para tecer experiências. Na verdade, percebemos
que existe algo potente como um raio de luz que une nossas
aspirações, e pode nos tirar da escuridão fundamental, mas quando
colocamos no papel tudo é tão fugaz.
Brincamos porque nos sentimos pertencendo, não brincamos
com qualquer pessoa, brincamos onde não conhecemos, brincamos
do que queremos, brincamos interagindo com os outros e não porque
nos obrigam, a brincadeira é livre e espontânea e também
aprendida. O AE tem também a função de propor e acolher a
proposta da criança/jovem, ressignificar a brincadeira.
Parece estar claro para nós, piantes, ou pelo menos para a
maioria de nós, a importância da brincadeira para o desenvolvimento
e envolvimento das crianças/jovens. Comprovamos no exercício do
nosso fazer diário que por meio do brincar propomos um modo de
conhecer o mundo, de conhecer e criar cultura, de interagir entre
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pares, de trabalhar afetos e desafetos, de construir um tipo de olhar
para e pela realidade.
A medida que a faixa etária aumenta, a coisa brincar se
complica e se elucida porque não é apenas a brincadeira de
criança, o brincar é no caso uma forma de acontecer, das coisas
rolarem. Quer seja jogo ou brincadeira, é imaterial, ultrapassa os limites
da realidade física, é diversão, envolve ritual.
Utilizar o termo brincar com pré adolescentes, ou seja, na faixa
etária dos “piantes” de 11 a 14 anos, causa estranheza e desconforto
entre eles. Querem adentrar no mundo adulto, popularmente
conhecido como “mundo sério”. Intuem, que estão numa linha de
passagem e têm quase certeza que do outro lado não pode haver
brincadeira. Parece complicado porque a coisa que esses jovens
menos querem é brincar. Será?
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou adulto
fluem de sua liberdade de criação.”
Winnicot
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