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7/23/2019 Castanheira - Acao Coletiva No Espaco Organizacional de Cooperativas Populares
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AO COLETIVA NO ESPAOORGANIZACIONAL DE COOPERATIVAS
POPULARES
MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA
2008
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MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA
AO COLETIVA NO ESPAO ORGANIZACIONAL DECOOPERATIVAS POPULARES
Dissertao apresentada Universidade Federal deLavras, como parte das exigncias do Programa de Ps-graduao em Administrao, rea de concentrao emGesto Social, Ambiente e Desenvolvimento, paraobteno do ttulo de "Mestre".
OrientadorDoutor Jos Roberto Pereira
LAVRASMINAS GERAIS - BRASIL
2008
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Ficha Catalogrfica Preparada pela Diviso de Processos Tcnicos daBiblioteca Central da UFLA
Castanheira, Maria Eugnia Monteiro.Ao coletiva no espao organizacional de cooperativas populares /
Maria Eugnia Monteiro Castanheira. -- Lavras : UFLA, 2008.75 p.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Lavras, 2008.Orientador: Jos Roberto Pereira.Bibliografia.
1. Ao coletiva. 2. Cooperativas populares. 3. Economia solidria. 4.Vnculos sociais. I. Universidade Federal de Lavras. II. Ttulo.
CDD 334.681
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MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA
AO COLETIVA NO ESPAO ORGANIZACIONAL DECOOPERATIVAS POPULARES
Dissertao apresentada Universidade Federal deLavras, como parte das exigncias do Programa de Ps-graduao em Administrao, rea de concentrao emGesto Social, Ambiente e Desenvolvimento, paraobteno do ttulo de "Mestre".
APROVADA em de de 2008
Prof. Cndido Ferreira da Silva Filho UNISAL
Prof. Elias Rodrigues de Oliveira UFLA
Jos Roberto PereiraUFLA
(Orientador)
LAVRASMINAS GERAIS - BRASIL
2008
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A Sandinha e Lita,
mes do corao que me acolheram e apoiaram com todo carinho;
OFEREO
minha me Nina, anjo que deixou como legado seu exemplo de vida e
de amor incondicional;
Ao meu pai, Eduardo, e meus irmos, Ana Luiza e Luiz Fernando,
verdadeiros alicerces;
DEDICO
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por me guiar e proteger em todos os momentos
Universidade Federal de Lavras e ao Programa de Ps-Graduao em
Administrao.
Ao orientador, Professor Jos Roberto, pelos ensinamentos transmitidos
durante minha orientao.
Aos professores do departamento de Administrao, Edgard, Juvncio,
Robson, Mozart, Paula, Maroca, Elias, Flvia Naves, Ricardo Sette e Antonialli.
Aos amigos do mestrado, Carol, Mayara, Mari, Llis, Felipe, Max,Alexandre, Wesley, Raquel, Cludia, Vanessa, Knia e Marcelo.
Aos estagirios da Incubacoop/UFLA, especialmente Mirella e
Fernanda, pela ajuda na pesquisa.
s secretrias da ps-graduao Bete e Jaqueline pela pacincia e
dedicao.
Ao Z Egmar e ao Roberto pela hospitalidade, ateno e estima.
Mariana, Izabela e Renata, irms do corao.
s queridas amigas de longa data, Loren e Del.
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Melhor serem dois do que um, porque tm melhor paga do seu
trabalho. Porque se carem, um levanta o companheiro; ai, porm, do
que estiver s; pois, caindo, no haver quem o levante. Tambm, se
dois dormirem juntos, eles se aquentaro; mas um s, como se
aquentar? Se algum quiser prevalecer contra um, os dois lhe
resistiro; o cordo de trs dobras no se rebenta com facilidade.(Eclesiastes 4, 9-12)
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SUMRIO
LISTA DE QUADROS .........................................................................................i
RESUMO..............................................................................................................ii
ABSTRACT ........................................................................................................iii
1 INTRODUO.................................................................................................1
2 AO COLETIVA, VNCULOS SOCIAIS E COOPERAO.....................6
2.1 A teoria da ao coletiva de Olson ................................................................. 6
2.2 A ao coletiva na teoria da ddiva .............................................................. 14
2.2.1 Postulado da ddiva: a obra de Marcel Mauss...........................................162.2.2 A proposta de um paradigma.....................................................................18
2.2.3 A ddiva enquanto sistema ........................................................................20
2.2.4 Sociabilidade e ddiva ............................................................................... 25
2.3 A ao coletiva nas ideologias de cooperao..............................................30
2.3.1 A ao coletiva e a cooperao nos ideais utpicos do cooperativismo....30
2.3.2 A ao coletiva e a cooperao na economia solidria..............................35
3 METODOLOGIA............................................................................................42
4 COOPERATIVAS POPULARES NO BRASIL ............................................. 444.1 Cooperativas populares: conceitos e caractersticas .....................................44
4.2 A organizao das cooperativas populares ................................................... 46
4.3 Ao coletiva em cooperativas populares: alguns casos em anlise.............50
5 CONSIDERAES FINAIS ..........................................................................62
6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................67
ANEXO ..............................................................................................................72
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Ao coletiva nas cooperativas populares.61
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RESUMO
CASTANHEIRA, Maria Eugnia Monteiro. Ao Coletiva no EspaoOrganizacional de Cooperativas Populares. LAVRAS: UFLA, 2008. 72p.(Dissertao - Mestrado em Administrao).
A ao coletiva constitui um fenmeno de mltiplas facetas que estcondicionado s dimenses da vida social. Trata-se de um acontecimentoorganizado, capaz de promover mudanas, e que implica na ampliao deinteresses do nvel individual ao coletivo Enquanto conceito, constitui umacategoria a partir da qual possvel analisar os diversos processos sociais e asinteraes de seus agentes. No caso da economia solidria, e maisespecificamente das cooperativas populares, a ao coletiva configura ummovimento orientado para a consecuo de um bem comum e uma forma deemancipao dos trabalhadores. Esta forma de ao ultrapassa o patamar dasatisfao de interesses compartilhados, buscando inscrever a solidariedade emseu cerne, o que contrape a lgica utilitarista preponderante. Neste sentido, aao coletiva necessita que seus atores se apiem em outras formas de interaoque no se enquadram nos preceitos racionais orientados pelo individualismo.Diante dessas consideraes, parte-se do pressuposto que qualquer tentativa deidentificar as especificidades da ao coletiva no mbito da economia solidriatem incio nas motivaes que orientam os agentes dessa ao e na compreensodas relaes que se estabelecem ao longo dessa trajetria. Tendo em vista estepressuposto, este estudo teve como objetivo identificar e analisar, teoricamente,os vnculos sociais que contribuem, efetivamente, para a ao coletiva no espaoorganizacional das cooperativas populares. Para tanto, utilizou-se comoreferencial terico a lgica da ao coletiva de Mancur Olson, a teoria da ddivae os princpios do cooperativismo e da economia solidria. A partir dessespressupostos tericos, observou-se, a ttulo de hiptese, que os princpios daeconomia solidria e do cooperativismo no so suficientes para sustentar essasformas de ao coletiva, necessitando que os agentes estabeleam entre sivnculos sociais regidos pelos princpios da reciprocidade, capazes de criaralianas e manter a coeso do grupo.
Comit Orientador: Jos Roberto Pereira (Orientador).
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ABSTRACT
CASTANHEIRA, Maria Eugnia Monteiro. Ao Coletiva no EspaoOrganizacional de Cooperativas Populares. LAVRAS: UFLA, 2008. 72p.(Dissertation Business Master Degreee).
The collective action is a phenomenon with many faces that are conditioned tothe social life dimensions This is an organized event, capable of promotingchange that implies in the expansion of individual to collectives interests Whileconcept, this is a category from which is possible to analyze several socialprocesses and the agents interactions Concerning to solidary economy, andspecifically to popular cooperatives, the collective action sets a movement
directed to achieve a common benefit and its performers emancipation This kindof mobilization exceeds the satisfaction level of shared interests, seeking toregister solidarity at the heart of action, which contrasts the logic utilitarianprevalent In this sense, the collective activity requires another forms ofinteraction between the agents that do not fall in the precepts guided by rationalindividualism Thus, the workers organization in popular cooperatives needs tobe conducted through experiences which enable to assimilate the principles ofthis enterprises Given these considerations, it is assumed that any attempt toidentify the collective action specificitys within the solidary economy departsfrom the motivations that guide its conductors and from the relationshipsunderstanding that have been set along that path In view of this assumption, thisstudy aimed to identify and examine, theoretically, the social ties that help,effectively, to collective action in the popular cooperatives organizational spaceThus, it was used as a theoretical reference the Olsons collective action logic,the donation theory, and the cooperativism and solidary aconomy principlesFrom these theoretical assumptions, it was observed, as a hypothesis, that thesolidary economy and cooperativism principles are not sufficient to sustain theseforms of collective action, requiring the establishment of social ties betweenperformers governed by reciprocity principles, capable of creating alliances andmaintain the cohesion of the group
Guidance Comitee: Jos Roberto Pereira (Major Professor).
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1 INTRODUO
A compreenso terica da economia solidria remete, inevitavelmente,
discusso conceitual de ao coletiva e da sociabilidade entre os indivduos. Tal
entendimento implica apreender os fatores que levam constituio dos vnculos
sociais e das motivaes que sustentam e orientam a ao coletiva.
Segundo a definio de Weber (1991) sobre ao social, as condutas
individuais podem ser compreendidas, basicamente, por quatro motivaes que
as orientam, quais sejam: tradio, valores, emoo e razo. No entanto, as
relaes sociais entre os indivduos, orientados por tais motivaes, consistemna adoo de uma conduta que assimilada entre as partes, entendendo que o
sentido da ao partilhado, embora no seja, necessariamente, recproco. Em
outras palavras, significa que, ao envolver-se em uma relao social, o indivduo
pode tomar por referncia certas probabilidades quanto ao do outro ao qual
sua conduta se refere.
Na concepo de Mauss (2001), por sua vez, a ao social pode ser
compreendida por meio da anlise dos vnculos sociais que se estabelecem entre
os indivduos, especialmente, porque tais vnculos adquirem um carter dealiana, que s pode ser gerada com a instaurao da confiana e a partir de uma
lgica guiada pela incondicionalidade, isto , o vnculo apenas se estabelece a
partir do momento em que um capaz de se abrir ao outro sem reservas.
Somente aps um mnimo de confiana ser instalado que se torna possvel
desenvolver o campo da contratualidade e da condicionalidade.
Nesse sentido, as aes sociais nos contextos mercadolgico, estatal ou
domstico, assumem formas distintas entre si, sendo conduzidas conforme as
especificidades de cada uma dessas esferas. O mesmo ocorre no espao relativo economia solidria, cujo sentido da ao corresponde expectativa da
reciprocidade.
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Refletindo sobre essa questo, a ao coletiva emerge como um
fenmeno de mltiplas facetas que est condicionado s dimenses da vidasocial. Trata-se de um acontecimento organizado, capaz de promover mudanas,
e que implica na ampliao de interesses do nvel individual ao coletivo.
Enquanto conceito, constitui uma categoria a partir da qual possvel analisar os
diversos processos sociais e as interaes de seus agentes.
No caso da economia solidria, e mais especificamente das cooperativas
populares, pressupe-se a ao coletiva como um movimento voltado para a
consecuo de um bem comum e uma forma de emancipao daqueles que a
promovem. Essa forma de mobilizao ultrapassa o patamar da satisfao deinteresses compartilhados, buscando inscrever a solidariedade no cerne da ao,
o que contrape a lgica utilitarista preponderante. Para tanto, a atividade
coletiva necessita que seus atores se apiem em outras formas de interao que
no se enquadram nos preceitos racionais orientados pelo individualismo.
Todavia, a economia solidria no , de modo algum, um processo
automtico e simples de se realizar, pois exige que os participantes da ao
coletiva ajam conforme uma lgica contrria s proposies capitalistas que
vigoram na formao social dos indivduos modernos. Sendo assim, aorganizao dos trabalhadores em cooperativas populares precisa ser conduzida
por meio de experincias que possibilitem a assimilao dos princpios que
regem esses empreendimentos. Com o propsito de auxiliar nessa diligncia, as
Incubadoras Tecnolgicas de Cooperativas Populares ITCPs, do suporte a
esses grupos por meio de intervenes educativas, capacitao tcnica e
qualificao profissional, ajudando a construir os alicerces da conscincia
cooperativista.
Diante das consideraes apresentadas, parte-se do pressuposto de quequalquer tentativa de identificar as especificidades da ao coletiva no mbito da
economia solidria tem incio nas motivaes que orientam os agentes dessa
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ao e na compreenso das relaes que se estabelecem ao longo dessa
trajetria. Este entendimento visa a explicar o problema de pesquisa que consisteem identificar quais so os vnculos que contribuem, efetivamente, para a ao
coletiva no espao organizacional das cooperativas populares aps o
cumprimento de um processo de incubao.
Tendo em vista estas apreciaes, este estudo tem como objetivo geral
identificar e analisar, teoricamente, os vnculos sociais que contribuem,
efetivamente, para a ao coletiva no espao organizacional das cooperativas
populares que passaram por um processo metodolgico de incubao orientado
pelos princpios da economia solidria.Neste sentido, os objetivos especficos so:
a) identificar e analisar, no mbito terico, os vnculos sociais que
norteiam a ao coletiva em geral;
b)
analisar estudos de caso que tratam da ao coletiva no espao
organizacional de cooperativas populares que passaram por um
processo de incubao e identificar, nestes casos, os motivos que
levaram os indivduos a constituir cooperativa popular e os vnculossociais que os mantm enquanto organizao.
Com esse intento, a primeira parte deste trabalho discute a lgica da
ao coletiva a partir da concepo de Mancur Olson, que atribui ao interesse a
mobilizao de um conjunto de indivduos em prol de objetivos comuns. Para
este autor, a consecuo de tais objetivos est condicionada a um clculo em que
os agentes avaliam se os benefcios obtidos a partir da ao coletiva compensam
o esforo a ser empregado para a promoo dos mesmos. Alm disso, Olsonacredita que o indivduo movido pela maximizao de seus interesses pessoais,
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sendo necessrio que outro fator, alm dos objetivos compartilhados, influencie
a sua deciso de agir conjuntamente.Em contraponto a essa perspectiva, apresenta-se a teoria da ddiva, que
tem Marcel Mauss como precursor e atribui ddiva o desgnio de elemento
essencial para a constituio de qualquer forma de interao social. Tratada
como pressuposto para a formao da coletividade, a ddiva tem como preceito
estabelecer relaes atravs do circuito composto pelos momentos de dar,
receber e retribuir, que desenvolvem o vnculo social entre indivduos. A partir
dessas proposies, os defensores da teoria da ddiva, dentre os quais destacam-
se Jacques T. Godbout e Alain Caill, propem a ddiva como uma tipologia daao, em que os agentes so movidos, em primeira instncia, pela vontade de se
aliar a outros.
Aps essas discusses tericas, apresentam-se os princpios do
cooperativismo utpico como forma especfica de ao coletiva. Segundo essa
abordagem, a cooperao constitui uma alternativa ao individualismo liberal,
propondo a conduo das atividades econmicas a partir de princpios no
capitalistas, fundados em pressupostos de autonomia, eqidade, democracia e
solidariedade. Com base nesses fundamentos, o cooperativismo prope formasalternativas de organizao social, compondo um modelo em que o processo
produtivo tem como cerne o trabalhador.
Finalizando essa parte do trabalho, busca-se uma compreenso da
economia solidria que, fundada nos ideais do cooperativismo, identifica formas
organizativas que trazem em sua essncia a noo de solidariedade na
composio de atividades econmicas. Condenando a sobreposio do capital
sobre o trabalho, a economia solidria se caracteriza por promover uma
dinmica de reciprocidade que alia os interesses individuais aos coletivos.
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A seo seguinte descreve o processo metodolgico empregado para a
realizao deste trabalho, que tem a ao coletiva como categoria analtica dasreflexes tericas propostas.
Passa-se, ento, ao item 4, que procura conceituar e caracterizar as
cooperativas populares, assinalando a organizao desses empreendimentos no
contexto brasileiro e a contribuio das ITCPs para a concretizao dessas aes.
Por fim so apresentados trs relatos de pesquisas realizadas em cooperativas
populares com a inteno de ilustrar a discusso terica conduzida at ento e
desenvolver as anlises pertinentes ao problema de pesquisa.
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2 AO COLETIVA, VNCULOS SOCIAIS E COOPERAO
2.1 A teoria da ao coletiva de Olson
Olson (1999) considera que qualquer estudo sobre um grupo de
indivduos parte de seu propsito, ou seja, da razo de sua existncia. Neste
sentido, um propsito que caracteriza a maioria das associaes e das
cooperativas, seno todas, a promoo dos interesses de seus membros.
De acordo com Alcntara (2003), Olson discute em suas obras a
promoo do bem coletivo e a deciso individual de agir em conjunto.
Orientando seus estudos para a viabilidade da ao coletiva, esse autor tem oindivduo como elemento norteador de sua anlise, considerando-o:
[...] um ser racional cuja ao se estrutura em raciocnios lgicos,produto do clculo efetuado com as informaes disponveis, portadorde uma caracterstica que determinar todos os cursos da possvel aocoletiva, qual seja, ser um agente maximizador de ganhos individuais(Alcntara, 2003, p.16).
Baseando suas anlises na teoria econmica, Olson (1999) sustenta que
no h qualquer sentido em integrar-se a um grupo quando uma ao individual
independente atende aos interesses do indivduo to bem ou melhor que uma
associao. Por outro lado, quando a ao individual no suficiente para
promover os interesses dos indivduos, seja de forma completa ou da maneira
mais adequada, as associaes podem desempenhar um importante papel no
sentido de servir a objetivos comuns ou grupais.
Este aspecto analisado por Alcntara (2003) da seguinte forma:
o benefcio coletivo permite ao indivduo usufruir de servios eprodutos a um custo menor do que se estes estivessem sendodisponibilizados individualmente. A cooperao para a promoo debens coletivos, levando-se em conta os custos da operao, a
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alternativa mais vivel, justificada pelo clculo racional (Alcntara,2003, p.17).
A partir dessa proposio notrio supor que grupos constitudos por
indivduos com interesses comuns geralmente buscam promover tais interesses,
agindo em prol dos mesmos com o mesmo afinco empregado na satisfao de
seus interesses pessoais. Essa noo concebida como uma extenso lgica do
comportamento racional e centrada nos prprios interesses (Olson, 1999).
Todavia, preciso lembrar que, embora se unam a favor de objetivos
comuns, os indivduos tambm tm interesses puramente individuais, diferentes
dos interesses dos outros membros do grupo.
Para Olson, no s a necessidade conjunta que impulsiona o indivduo
a cooperar. necessrio que haja outro fator influenciando esse tipo de deciso.
[...] a maior vantagem, a princpio, em se agir coletivamente diminuir os gastos e o empenho individual na promoo de um bem,aumentando a margem do lucro obtido com o usufruto do benefcio(Alcntara, 2003, p.18).
Sendo assim, Olson (1999) refuta a deduo de que os grupos agiropara atingir seus objetivos como uma seqncia lgica da premissa do
comportamento racional e centrado nos prprios interesses. Nas palavras deste
autor,
no fato que s porque todos os indivduos de um determinado grupoganhariam se atingissem seu objetivo grupal eles agiro para atingiresse objetivo [...]. Na verdade, a menos que o nmero de indivduos dogrupo seja realmente pequeno, ou a menos que haja coero ou algumoutro dispositivo especial que faa os indivduos agirem em interesse
prprio, os indivduos racionais e centrados nos prprios interesses noagiro para promover seus interesses comuns ou grupais (Olson, 1999,p.14).
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Baseando-se em Max Weber, Olson (1999) afirma que nem mesmo
motivaes ideolgicas, visando o interesse de terceiros, so suficientes paraimpelir o esforo contnuo de grandes massas, j que, em uma economia de
mercado, toda atividade econmica sustentada e guiada por indivduos
centrados em seus prprios interesses materiais ou ideais. Ao citar o postulado
de Parsons e Smelser, que condiciona a performance de uma organizao ao
emprego de recompensas e sanes, Olson (1999) preconiza que
necessariamente o interesse pela maximizao dos ganhos que move a ao dos
indivduos. Sendo assim, embora os membros de um grupo ou organizao
tenham interesse em alcanar um benefcio coletivo, eles no tm interesse emarcar voluntariamente com o custo que a aquisio desse benefcio acarreta.
Na concepo de Olson (1999), em uma ao coletiva, tanto as parcelas
do benefcio quanto o nus pela participao podem ser distribudos de forma
diferente entre cada um dos participantes. Naturalmente, o que o indivduo
racional maximizador busca obter ganhos superiores aos acordados entre os
integrantes do grupo, procurando, assim, reduzir seus esforos para aumentar o
valor real do seu benefcio. Em outras palavras, esse indivduo subestima o
raciocnio lgico dos demais agentes e no se empenha na promoo do bem,mas mesmo assim busca usufruir dos seus benefcios, pegando carona na ao
do grupo. A este agente Olson confere a alcunha defree rider(Alcntara, 2003).
Ofree rider(carona) nada mais que o indivduo racional, defensor de
interesses individuais, portanto, egosta, que vislumbra a possibilidade de ganhar
com a promoo do bem pblico sem, no entanto, ajudar na sua produo
(Alcntara, 2003, p.19).
A presena do carona, portanto, torna a possibilidade de se prover
benefcios coletivos mais remota. Sua figura nociva no s porque reduz aeficincia da ao, mas tambm porque sua recusa em colaborar desmotiva o
esforo de outros agentes.
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Essa questo, contudo, pode variar, de acordo com o tamanho do grupo
e tambm de acordo com os custos e benefcios envolvidos na ao dosindivduos. De acordo com Olson (1999),
se uma determinada quantidade de um benefcio coletivo puder serobtida a um custo suficientemente baixo com relao s vantagens quetrar, a ponto de uma pessoa sozinha do grupo em questo sairganhando, mesmo que tenha que arcar sozinha com esse custo, ento huma boa probabilidade de que o benefcio coletivo seja proporcionado(Olson, 1999, p.35).
No que tange ao tamanho, Olson (1999) alega que para grupos pequenos possvel prover-se de benefcios coletivos sem recorrer a qualquer artifcio
alm do benefcio coletivo em si mesmo, uma vez que em tais grupos a ao de
um membro tem efeito perceptvel sobre os demais, fazendo com que os
relacionamentos individuais tenham importncia e permitindo que os integrantes
se auto-regulem. Em grandes grupos, por outro lado, as contribuies
individuais no afetam de forma perceptvel o grupo como um todo. Dessa
forma, o mais provvel que o benefcio coletivo no seja promovido, a menos
que haja coero1
ou algum incentivo adicional que incite seus membros aagirem em proveito de seus objetivos comuns. Para tanto, necessrio haver,
entre os membros do grupo, algum acordo que proporcione um mnimo de
coordenao ou organizao.
A partir dessas constataes distinguem-se trs tipos diferentes de
grupos cuja diferenciao toma como elemento principal o nmero de indivduos
que os compem: privilegiados, intermedirios e latentes. Um grupo
privilegiado, segundo Olson (1999),
1A coero um recurso usado pelas instituies e organizaes para forar o indivduo a agirsob o argumento de que a sua no-ao custa mais a ele que a sua ao (Alcntara, 2003, p.20).
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um grupo em que cada um de seus membros, ou pelo menos um deles,tem um incentivo para se esforar para que o benefcio coletivo sejaprovido mesmo que ele tenha de arcar sozinho com todo o nus. Em umgrupo assim h uma predisposio de que o benefcio coletivo serobtido e pode ser obtido sem nenhuma organizao grupal oucoordenao de qualquer tipo. Um grupo intermedirio um grupoem que nenhum membro obtm sozinho uma parte do ganhosuficientemente grande para incentiv-lo a prover o benefcio, mas queno tem tantos integrantes a ponto de um membro no perceber se outroest ou no ajudando a prover o benefcio coletivo. Em tal grupo, umbenefcio coletivo pode ser obtido ou pode no ser, mas nenhumbenefcio coletivo jamais ser obtido sem alguma coordenao ouorganizao grupal (Olson, 1999, p.62).
J em um grupo latente, que um grupo muito grande,
se um membro ajudar ou no ajudar a prover o benefcio coletivo,nenhum outro membro ser significativamente afetado e, portanto,nenhum ter razo para reagir. Assim, no grupo latente um indivduono pode, por definio, fazer uma contribuio perceptvel a qualqueresforo grupal e, j que ningum no grupo reagir se ele no fizernenhuma contribuio, ele no ter incentivo para contribuir (Olson,1999, p.63).
Quando comparados aos grupos menores, os grupos grandes se mostram
muito menos radicalistas2 e decididos, caractersticas que, na concepo de
Simmel (1983), so essenciais para que o indivduo se dedique sem reservas
base lgica do grupo. na solidariedade incondicional dos elementos que se
baseia a possibilidade de radicalismo, mas essa solidariedade diminui na medida
em que o crescimento numrico envolve a admisso de elementos individuais
heterogneos. O fato de no sustentar espontaneamente a coeso imediata e
pessoal, tpica do grupo pequeno, faz com que o grupo grande ou latente adote
alguns mecanismos que atuam como compensaes para essa incapacidade.
Sendo assim, criam instrumentos que canalizam e servem de mediadores
2Aqui o termo radicalismo assume o sentido de fidelidade proposta do grupo social.
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para a interao de seus membros, atuando como veculos de uma unidade social
que j no resulta mais das relaes diretas entre seus elementos.Nesse caso, necessrio lanar mo do que Olson (1999) chama de
incentivo independente e seletivo para estimular um membro de um grupo
latente3a agir coletivamente. Tal incentivo considerado de carter seletivo por
constituir um tratamento diferenciado, atribudo queles que contribuem ou no
para a promoo dos interesses do grupo. Dessa forma, podem coagir com
alguma punio aqueles que no arcarem com parte do nus da ao grupal, ou
pode ser uma recompensa para aqueles que agirem pelos interesses do grupo.
Simmel (1983) afirma que depois de chegar a certo tamanho, um grupotem, necessariamente, que desenvolver formas e rgos que sirvam sua
manuteno e promoo, o que no ocorre em um grupo menor. Segundo este
socilogo, os grupos menores so dotados de qualidades, dentre elas as formas
de interao de seus membros, que inevitavelmente desaparecem quando esses
grupos aumentam. Um exemplo so as sociedades socialistas ou quase
socialistas, que s foram possveis em grupos pequenos e inviveis nos grupos
maiores. A explicao para isso encontra-se no fato de que a eqidade na
distribuio da produo e o reconhecimento mtuo, aspectos essenciais aosocialismo, so facilmente realizados em um grupo pequeno, j que a
contribuio de cada um ao todo e sua relevncia no grupo so claramente
visveis. No grupo grande, contudo, a comparao e a compensao so difceis,
especialmente por causa das inevitveis distines de seus membros, suas
funes e pretenses, decorrentes da complexa diviso do trabalho. Esta,
conforme Simmel (1983), o que garante a unidade de um nmero muito grande
de pessoas, pois produz o tipo de interpenetrao e interdependncia capaz de
ligar, por meio de intermedirios, cada pessoa a todas as outras.
3Os grandes grupos so chamados de latentes justamente porque seu potencial para a ao spode ser concretizado ou mobilizado com o auxlio de incentivos seletivos (Olson, 1999).
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Na concepo de Olson (1999), o nmero de indivduos tambm um
fator decisivo para gerar comportamento coletivo no que tange busca racionale voluntria de um interesse. Esse autor acredita que os pequenos grupos
possuem melhores condies que os grandes para promover seus interesses
comuns, uma vez que, em meio a muitos participantes, um elemento tem
conscincia de que seus esforos individuais no influenciaro muito no
resultado final.
Quando uma parceria tem muitos membros, o parceiro individual notaque seu prprio esforo ou contribuio no afetar muito odesempenho grupal e espera obter sua parcela preestabelecida dosganhos tanto se contribuir quanto se no contribuir com tudo o quepoderia ter contribudo. [...] quando o nmero de parceiros aumenta, oincentivo que cada um deles tem para trabalhar pelo sucesso daempreitada diminui (Olson, 1999, p.67).
J no pequeno grupo, em que cada um dos membros conhece os outros
diretamente, as aes individuais no s so perceptveis, como afetam
imediatamente os demais, o que por si s j conduz a uma auto-regulao e a um
esforo para que tudo corra bem (Olson, 1999), eliminando a necessidade de
empregar recursos coercitivos ou incentivos adicionais (Alcntara, 2003).
Com base nas diferenas entre os pequenos grupos (privilegiados e
intermedirios) e os grandes, Olson (1999) traa uma relao entre a eficincia e
o tamanho do grupo, concebendo que os primeiros freqentemente triunfam
sobre os segundos por, geralmente, serem mais organizados e ativos. Tal
conjectura est fundamentada na avaliao desse autor sobre a distribuio tanto
do benefcio quanto do nus entre os participantes, e sobre a coeso grupal que
est relacionada ao conhecimento que cada indivduo tem sobre as aes dos
demais membros do grupo (Alcntara, 2003).
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Retomando a questo dos incentivos seletivos, Olson (1999) acredita
que os incentivos econmicos no so, com certeza, os nicos que movem osindivduos. Interesses como status, respeito, amizade e outros de cunho social ou
psicolgico tambm so capazes de motivar aes. E tais recursos podem ser
eficientes, j que a maioria das pessoas tende a zelar por seu prestgio e auto-
estima.
No entanto, a presso e os incentivos sociais funcionam somente em
grupos de tamanho menor, pequenos o bastante para que cada membro possa
ter um contato face a face com todos os demais (Olson, 1999, p.74). O que
sustenta esse argumento : primeiro, o fato de que, nos grandes grupos, cadamembro representa uma parte to pequena em relao ao total que sua ao no
decisiva; e segundo, porque nesses grupos um indivduo no afetado
socialmente caso no cumpra sua parte em favor do conjunto, j que nenhum
membro capaz de se relacionar com todos os outros.
Sendo assim, Olson (1999) julga que os grupos pequenos o bastante para
serem considerados privilegiados ou intermedirios so duplamente
abenoados, pois, alm dos incentivos econmicos, contam tambm com
incentivos sociais para estimular seus membros a agir em prol do grupo.Procurando combater possveis crticas, Olson (1999) explica que o fato
de incentivos sociais no surtirem efeito sobre os membros de grupos latentes
no significa que esses indivduos apresentem exclusivamente propsitos
egostas ou comportamentos maximizadores de lucros. Conforme este autor,
mesmo na ausncia de presses sociais possvel que as pessoas ajam de forma
desprendida. O que se deve compreender que,
o conceito de grupo grande ou latente aqui oferecido se sustenta tantose o comportamento de seus membros for egosta quanto se fordesprendido - desde que seja racional no sentido estrito do termo(Olson, 1999, p.76).
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aparentemente voluntrios, mas que so obrigatoriamente dados e retribudos
(Godbout, 1999).Procurando demonstrar o que h por trs disso, Mauss (2001) analisa o
direito e a religio dessas sociedades e revela que, nas relaes de troca entre os
membros do grupo, o presente recebido e trocado cria uma obrigao, na qual o
doador tem uma ascendncia sobre o beneficirio porque aceitar qualquer coisa
de algum aceitar qualquer coisa da sua essncia espiritual, da sua alma
(Mauss, 2001, p.66). Nesse sistema, a recusa de dar ou receber significa a recusa
aliana e comunho.
De acordo com Lanna (2000), o argumento central do Ensaio de quea ddiva produz a aliana, tanto as alianas matrimoniais como as polticas,
religiosas, econmicas, jurdicas e diplomticas (Lanna, 2000, p.175). O
pensamento maussiano observa, prioritariamente, no indivduos e estruturas,
mas o que circula entre os atores a favor do vnculo social. Nessa perspectiva, a
ddiva (ou dom) se faz presente em todos os espaos da vida em sociedade,
influindo decisivamente na formao dos atores e na definio de seus lugares
nesse conjunto (Martins, 2004).
A ddiva constitui, portanto, o elemento essencial a toda sociedade, epode ser definida como qualquer prestao de bem ou de servio, sem garantia
de retorno, com vistas a criar, alimentar ou recriar os vnculos sociais entre as
pessoas (Godbout, 1999, p.29). O aspecto essencial atribudo ddiva no
sentido de trat-la como pressuposto para a formao da coletividade. Sua
natureza estabelecer relaes atravs do circuito composto pelos momentos de
dar, receber e retribuir que, embora ocorram de forma espontnea,
implicitamente conservam um carter de obrigatoriedade moral.
Em outros termos, a ddiva consiste em algo que dadoespontaneamente - sejam objetos, palavras, gestos - e, ao ser recebido, gera no
beneficirio dessa ao a necessidade moral e a vontade de retribuir. Essa
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contraddiva, ao ser feita, torna-se uma nova ddiva, que em outro momento
ser retribuda, e assim sucessivamente. Desencadeia-se, ento, um ciclo decirculao de ddivas cujo efeito o desenvolvimento do vnculo social.
A afirmativa mxima da ddiva considera que nada mais importante
que a construo do lao social, visto que a aliana que ele constitui permite a
passagem da guerra paz e da desconfiana confiana, condies inerentes a
qualquer empreendimento e prosperidade. Neste sentido, possvel julgar que
a ddiva o que h de mais til no mundo, embora no se encontre no registro
do utilitrio. Compreende-se que seus objetivos conservam uma mistura
profundamente paradoxal e indissocivel de interesse e desinteresse, rogandoque a relao deve ser construda pelos indivduos que nela entram antes que
estes possam pensar em tirar proveito dela (Caill, 2002, p.8). Em suma, o
dom pressupe que o doador encontra a sua satisfao por meio da satisfao do
outro.
2.2.1 Postulado da ddiva: a obra de Marcel Mauss
Dedicando-se compreenso do direito contratual5 e do sistema das
prestaes econmicas entre os diversos grupos que compem as sociedadesprimitivas, Mauss (2001) observa, nas prticas dessas coletividades, os
chamados fenmenos sociais totais que misturam tudo o que constitui a vida
propriamente social, expressando, ao mesmo tempo, instituies de natureza
religiosa, jurdica, moral, poltica, familiar e econmica. Mauss constata que, no
transcorrer dessas convenes, embora as trocas ou prestaes apresentem um
carter voluntrio, elas so, na verdade, obrigatrias. Diante dessa percepo,
projeta a questo que consagra seu trabalho analtico:
5Em Mauss a noo de contrato no remete aos acordos entre indivduos racionais, mas a regrasda organizao social primitiva (Lanna, 2000).
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Qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipoatrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido sejaobrigatoriamente retribudo? Que fora existe na coisa que se d quefaz com que o donatrio a retribua? (Mauss, 2001, p.52).
Em outras palavras, o que Mauss procura desvendar a natureza das
transaes humanas nas sociedades precedentes e contemporneas e a ao da
moral e da economia nessas transaes.
Adotando um rigoroso mtodo de comparao, Mauss realizou uma
srie de investigaes acerca das formas arcaicas do contrato em reas como
Polinsia, Melansia, Noroeste americano, entre outras, cujos sistemas sociais
foram descritos na sua integridade. Desses estudos provm a percepo de que
nas sociedades primitivas no ocorrem simples trocas de bens, de riquezas e de
produtos no decurso de um mercado passado entre os indivduos (Mauss, 2001,
p.55). Essencialmente, as prestaes e contratos se realizam num contexto de
obrigao mtua entre coletividades (cls, tribos, famlias), que no trocam
somente o que til economicamente, mas tambm gentilezas, festejos, ritos,
entre outras simbologias. O mercado figura apenas como um dos momentos de
um contrato muito mais geral e perene ao qual atribudo o nome de sistema das
prestaes totais(Mauss, 2001) ou reciprocidade total(Graeber e Lanna, 2005).
As prestaes totais, segundo Graeber e Lanna (2005), caracterizam as
trocas em diversas sociedades arcaicas, nas quais dois lados de uma aldeia
dependem um do outro quanto a comida, servios militares e rituais, parceiros
sexuais, danas, festas, gestos de respeito e reconhecimento etc. (Graeber e
Lanna, 2005, p.507). Nesse sistema, a obrigao de dar to importante quanto
a obrigao de receber, uma vez que a recusa de um ou de outro equivale a
declarar guerra, a negar a aliana. Essa propriedade exprime, antes de qualquer
coisa, uma convergncia espiritual em que tudo objetos, pessoas, gestos
constitui substncia de transmisso e de entrega (Mauss, 2001).
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Mauss (2001) apresenta o fenmeno social total constitudo pela ddiva
nas sociedades primitivas, valendo-se de diversas ilustraes etnolgicas, dasquais extrai, principalmente, os exemplos do potlatch, relatado por Franz Boas
no estudo realizado entre os ndios do Noroeste americano, e o kula, descrito por
Malinowski emArgonautas do Pacfico Ocidental(Godbout, 1999).
2.2.2 A proposta de um paradigma
A ddiva, dotada de uma realidade complexa e paradoxal que admite
sobrepujar a anttese entre obrigao e liberdade, o eu e o outro, indica a
necessidade de pensar e conceituar a relao social e a ao individual segundocaminhos diferentes dos que costumeiramente so trilhados pelas cincias
sociais: Pensar segundo o dom implica aprender a superar a tenso no
resolvida entre os dois grandes paradigmas em que se dividem as cincias
sociais (Caill, 2002, p.11). O paradigma individualista, que parte do indivduo
para explicar a totalidade social, e o paradigma holista, que segue o sentido
inverso.
Caill (2002) acredita que a ddiva no s capaz de superar a oposio
habitual entre esses dois paradigmas como possui todas as dimenses paraconstituir um terceiro paradigma, inerentemente relacional. Tal constituio,
inspirada em Marcel Mauss, representa o desenvolvimento do trabalho que vem
sendo realizado pelo conjunto dos autores que se identificam com o projeto que
aRevue du MAUSS(Movimento Antiutilitarista nas Cincias Sociais) comps na
tentativa de transpor a dicotomia entre individualismo e holismo.
Declarando-se antiutilitarista e recusando-se a reconhecer o homo
economicus como pilar das cincias sociais, MAUSS adotou posio
desfavorvel ao que Caill (2002) qualifica como primeiro paradigma.Relacionando o conjunto dos fenmenos sociais exclusivamente com as
decises e os clculos dos indivduos (Caill, 2002), este paradigma afirma que
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a ao individual necessariamente interessada e racional, o que lhe confere a
alcunha de individualista.Uma vez destacada a irredutibilidade da ddiva ao primeiro paradigma,
resta mostrar que o dom igualmente irredutvel ao segundo paradigma -
qualificado como holista - que explica as aes individuais ou coletivas como
manifestaes da dominao exercida por uma totalidade social, preexistente aos
indivduos e infinitamente mais importante que eles, predeterminando seus atos
e pensamentos (Caill, 2002).
A ddiva, enquanto princpio propulsor e mantenedor das alianas
(Caill, 2002), no se encaixa em nenhuma dessas percepes, uma vez que ano equivalncia, a espontaneidade, a dvida, a incerteza, o prazer do gesto e a
liberdade, presentes no seio da relao social, se opem s teorias que do
suporte a esses dois paradigmas (Godbout, 1999).
Na concepo da ddiva,
a totalidade social no preexiste aos indivduos como tampouco oinverso, pela simples razo que tanto uns como os outros, como a suaposio respectiva, se geram incessantemente pelo conjunto das inter-
relaes e das interdependncias que os ligam. portanto amodalidade geral dessa ligao e dessa interdependncia que importaantes de mais nada compreender (Caill, 2002, p.18).
Sendo assim, prope-se a ddiva como um terceiro paradigma capaz de
superar as limitaes do individualismo e do holismo e tambm de pensar essas
duas vises de forma integrada. Neste sentido, o paradigma do dom mistura,
indissociavelmente, obrigao e liberdade, interesse e desinteresse, delineando
com bastante eloqncia o plano sobre o qual essas perspectivas podem se
harmonizar. Para tanto, dispe-se a analisar como se gera o vnculo social no apartir dos indivduos, nem a partir de uma totalidade social, mas a partir de seu
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meio, de forma horizontal, considerando o conjunto das inter-relaes que ligam
os indivduos e os tornam atores sociais (Caill, 2002).Conforme Reinhardt (2006), ao analisar o vnculo propriamente, a teoria
da ddiva possibilita apreender, atravs da significao, a dimenso das trocas
sociais sem o espectro dualista que freqentemente assombra as cincias sociais,
atribuindo sentido ao do agente e no s suas intenes (individualismo) ou
a um sistema simblico que o conduz (holismo). A perspectiva do dom
compreende que a sociedade primeiramente instituda por uma dimenso
simblica e prope a idia de sociedade enquanto fenmeno total, ou seja, um
todo integrado que deve ser analisado a partir das mltiplas significaes quearticulam atores e instituies sociais em uma nica e mesma rede (Martins,
2004).
2.2.3 A ddiva enquanto sistema
Assim como o mercado e o Estado, tambm a ddiva deve ser
compreendida como um sistema que, conforme afirma Godbout (1999), o
sistema social como tal: a ddiva constitui o sistema das relaes propriamente
sociais na medida em que estas so irredutveis s relaes de interesseeconmico ou de poder (Godbout, 1999, p.22).
Apesar da crena no desaparecimento da ddiva, Godbout (1999)
acredita que ela se mantm fortemente presente na modernidade. Este autor
sustenta que a ddiva diz respeito totalidade da existncia social e que, mesmo
nos dias atuais, nada pode se iniciar ou empreender, crescer e funcionar se no
for alimentado pela ddiva (Godbout, 1999, p.20).
Buscando ilustrar essa sistemtica, Godbout (1999) discorre sobre a
funo da palavra como indcio de tal assero. Segundo este autor, soprincipalmente palavras, frases e discursos que o ser humano produz e troca
com os demais (Godbout, 1999, p.21) e elas s podem circular se a relao que
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as autoriza e que delas se alimenta for previamente criada e simbolizada. As
palavras no tm, a princpio, um valor utilitrio e sua funo principal circular. Simmel (1983) considera que, de fato, entre todos os fenmenos
sociolgicos, a conversa a forma mais pura e elevada de interao,
constituindo uma relao que no pretende ser nada alm de uma relao.
Embora seja mais ntido no plano das relaes interpessoais, o sistema
da ddiva tambm pode ser encontrado no plano das relaes funcionais atravs
da confiana na reciprocidade que, alimentada de forma subjetiva pelos
envolvidos, reporta continuidade da relao (Martins, 2004). A confiana,
essencial para que qualquer relao se estabelea (Godbout, 1999), no nasce decontratos jurdicos e formais, por mais elaborados que sejam, mas da relao
interpessoal e da expectativa de que o parceiro da troca - seja ela simblica ou
material - retribua o bem oferecido.
O valor-confiana constitui um atributo que apenas se desenvolve
primariamente no nvel das relaes de ddiva, no dar ao outro
(espontaneamente) um crdito de honra, no acreditar que ao se dar esse crdito a
algum ele ser retribudo com algo que faa circular adequadamente a
confiana inicialmente depositada.
[...] o sistema da ddiva tende a influir sobre a construo dasprticas que do suporte ao funcionamento das instituies sociais,sendo a confiana um dos primeiros bens simblicos a circular a favorda validao da relao social. Sem ela nem o Mercado, nem o Estado,nem a Poltica, nem a Religio, nem a Cincia funcionam (Martins,2004, p.6).
A modernidade, contudo, s reconhece a ddiva como elemento do
passado, inexistente nas sociedades contemporneas. Essa negao, declaraGodbout (1999), reflete a fora do pensamento utilitarista, que obscurece a
forma como o individual e o coletivo interagem no todo social. Essa viso
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transmite a imagem do indivduo egosta e confinado aos espaos funcionais da
sociedade, mas no considera que alm dos contornos do mercado ou daburocracia esse indivduo participa da vida comunitria e possui redes sociais.
legtimo afirmar que a ddiva no tem a sua realidade percebida pelo
pensamento moderno e, segundo Godbout (1999), a crena de que para haver
ddiva ela precisa ser gratuita, contribui para ocult-la. Acredita-se que, como
essa gratuidade impossvel, a ddiva tambm impossvel. Realmente, a
ddiva gratuita no existe, pois sua funo estabelecer vnculos sociais e estes
no acontecem sem retorno e nem se consolidam atravs de atos unilaterais e
descontnuos. Sendo assim, Caill (2002) esclarece que a ddiva privilegia osinteresses de aliana e de solidariedade em detrimento dos interesses
instrumentais, no devendo, portanto, ser concebida pela gratuidade.
Godbout (1999) observa que costumeiramente as cincias sociais
interpretam a histria e o jogo social como estratgias de agentes racionais
que procuram maximizar a satisfao de seus interesses materiais ou que
concentram todos os seus esforos na busca do poder. Essa tradio do
pensamento leva a crer que existem apenas dois grandes sistemas de ao social:
o sistema do mercado, onde se confrontam e se harmonizam os interessesindividuais, e o sistema poltico, estruturado pelo monoplio do poder legtimo
(Godbout, 1999, p.23). Mas como este autor argumenta, a instncia secundria,
composta pelo mercado e pelo Estado no a nica e nem a principal dimenso
que constitui a sociabilidade do ser humano. importante lembrar que, antes de
ocupar funes econmicas, polticas ou administrativas, ele se constituiu como
pessoa no registro da sociabilidade primria, composta pelas relaes
interpessoais familiares, de vizinhana, de camaradagem e amizade.
Martins (2004) refora a concepo da ddiva como um sistema aolembrar que,
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a sociedade moderna no regida por uma lgica, mas por umapluralidade de lgicas. Nesta perspectiva pode-se avanar queenquanto o mercado regido por um sistema de trocas equivalentes(dar-pagar), o Estado conhece um outro sistema de reciprocidades(receber-devolver), enquanto a sociedade civil regida por um sistemade trocas no equivalentes: o dar-receber-retribuir. A lgica mercantilno suprflua como foi pensado por certos setores da esquerda nosculo XX, tendo importncia central para a existncia da ordemmoderna e para a liberdade individual. Mas um erro imaginar que algica mercantil pode substituir o Estado ou as prticas comunitrias eassociativas respectivamente na proteo e na inveno do social [...].A inveno do social apenas ocorre a partir da solidariedade entre osindivduos, isto , a partir do risco de se tomar uma iniciativaespontnea de doao sem garantias de retorno e, igualmente, do riscode se aceitar espontaneamente algo de algum. Esta iniciativa sempreincerta e paradoxal de doao, recebimento e devoluo conhecidacomo a aposta no dom, aposta na qual o valor da relao em si tidocomo mais relevante que o valor das coisas ou dos usos (Martins,2004, p.7).
importante ressaltar que a postura conceitual da ddiva no implica
menosprezar a fora e a legitimidade dos interesses materiais e utilitrios, e nem
afirma que o ser humano age por puro desinteresse. De acordo com Caill
(2002), essa postura crtica apenas sugere que nenhuma sociedade se ergue
somente atravs do contrato e do utilitrio, reiterando que a solidariedade,
indispensvel a qualquer ordem social, somente surge a partir da subordinao
dos interesses materiais a uma regra simblica que os transcenda (Caill,
2002, p.46).
Godbout (1999) enfatiza que os estudiosos da ddiva, ao contrrio do
que se possa pensar, no preconizam a eliminao nem do Estado, nem do
mercado, uma vez que a sociedade atual necessita desses aparelhos para a sua
sustentao.
Na verdade, a compreenso da ddiva, enquanto sistema de trocas bsico
da vida social, permite questionar a concepo caracterstica da modernidade de
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que a sociedade mantida unicamente pela ao planificadora do Estado ou
pelo movimento fluente do mercado (Martins, 2004, p.9). O entendimento daddiva desfaz essa bifurcao e introduz a idia da ao social como interao
que ocorre em meio a uma pluralidade de lgicas no redutveis umas s outras e
nem aos determinismos calculistas sugeridos pelos tericos neoliberais (Martins,
2004).
Convicto quanto a isso, Godbout (1999) alerta para a necessidade de
romper com as explicaes da prtica humana propostas pelo utilitarismo e pelas
teorias que apresentam o ser humano como um egosta natural, sedento de poder,
j que essas teorias, embora dotadas de pertinncia, centralizamsistematicamente a ao no indivduo isolado ou nos aparelhos que constituem a
sociabilidade secundria.
Neste sentido, a ddiva compe uma proposta terica que sugere pensar
a constituio das cooperativas populares e do conjunto das atividades coletivas
com fins no lucrativos a partir dos vnculos de solidariedade e confiana, que
na concepo de Caill (2002) consistem na essncia da associao. Para tanto,
preciso ter em mente que o dom no destitudo nem do interesse, nem da
obrigao, mas dialetiza ambos propondo uma tipologia da ao que privilegiaos interesses de aliana e solidariedade. Em outros termos, a ddiva pressupe
que a ao coletiva tem como propsito fundamental a constituio da aliana
com outros indivduos, sendo movida, simultaneamente e em propores
variveis e instveis, pelo interesse e pela obrigao. Nas palavras desse autor,
o dom no deve ser pensado sem o interesse ou fora dele, mas contra o
interesse instrumental. Ele [o dom] o movimento que, para fins de aliana
subordina os interesses instrumentais aos interesses no instrumentais (Caill,
2002, p.145).Assim, a ddiva concebe que a ao humana se desenvolve na
interseco de duas grandes oposies, quais sejam: a oposio da obrigao e
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da liberdade somada oposio entre o interesse pessoal e o interesse pelos
outros.
2.2.4 Sociabilidade e ddiva
A ddiva na sociedade moderna possui particularidades que a
distinguem da ddiva primitiva. De acordo com Godbout (1999), em muitas
civilizaes primitivas as trocas e os contratos se realizavam na forma de
ddivas, mas, diferente do que ocorre em diversas instncias da sociedade
moderna, aquilo que dado e retribudo no se resume a bens materiais
imbudos de valor econmico ou a simples acordos formais. Ao contrrio, estrepleto de significado e transcende a dimenso material.
Embora no seja completamente estranha s sociedades ditas arcaicas, a
troca mercantil no interfere nas trocas cerimoniais e limita-se a prestaes
intermitentes. Nessas sociedades, o consumo de bens um trabalho ritual e a
lgica do valor das coisas permanece subordinada do valor das pessoas. Essa
afirmao contraria o evolucionismo economicista que insiste em ver na ddiva,
e na permuta cerimonial, ancestrais do sistema econmico moderno. Segundo
essa perspectiva, o dar para receber consiste, na verdade, em escambo, que como passar do tempo foi racionalizado e desenvolvido graas ao surgimento da
moeda (Godbout, 1999).
Essa linha de raciocnio, contudo, no tem fundamento, uma vez que o
escambo, e at mesmo o mercado, no so ignorados pela sociedade primitiva,
apesar de mantidos rigorosamente sua margem. A moeda primitiva , na
verdade, um meio de troca social, cujo valor no atribudo pela relao que
mantm com as coisas, mas pela complexa conexo que mantm com as
pessoas.A moeda primitiva s circula em permuta com um nmero muito restrito
de bens e apenas entre certo nmero de parceiros determinados. Ela no pode
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percorrer qualquer caminho. [...] a moeda primitiva no mede o valor das
coisas, e sim das pessoas. Se ela mede o valor das coisas, apenasindiretamente, por refrao do valor das pessoas. Tanto assim que a moeda
primitiva no permite comprar qualquer coisa (Godbout, 1999, p.138).
A acumulao material no a preocupao primordial das civilizaes
primitivas e a obrigao de dar, to enfatizada por Mauss, contradiz as
exigncias da acumulao. Sendo assim, a ddiva no pode ser tratada, nessas
sociedades, como um mecanismo de relao econmica entre os indivduos, pois
ela representa, muito alm da simples troca de bens, a forma geral das relaes
que congregam os diversos elementos que compem o cosmos6
.Enquanto a economia de mercado, prpria da sociedade moderna, visa a
produzir coisas por meio de coisas, a sociedade primitiva prioriza o
relacionamento entre as pessoas, fazendo com que as coisas sirvam, atravs da
ddiva, gerao e ao fortalecimento dos vnculos sociais. Conforme C.
Gregory, a troca mercantil,
uma troca de objetos alienveis entre pessoas que se encontram numestado de independncia recproca, traduzindo-se pelo estabelecimentode uma relao quantitativa entre os objetos trocados (...).Inversamente, a troca por ddiva consiste numa troca de objetosinalienveis entre pessoas que se encontram num estado de dependnciarecproca, traduzindo-se pelo estabelecimento de uma relaoqualitativa entre os protagonistas (Gregory apud Godbout, 1999,p.161).
Ocorre que a modernidade introduz uma ruptura radical entre o que
Godbout (1999) chama de pessoas-sujeitos e o restante do cosmos, que passa a
ser tratado como objeto subordinado ao domnio da produo. O indivduo
6A ddiva primitiva circula entre todos os elementos do universo do qual faz parte, o que inclui oshumanos, os animais, vegetais, minerais, os antepassados, os espritos e os deuses (Godbout,1999).
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vende a sua fora de trabalho e torna-se instrumento da estrutura racional e
burocrtica hegemnica que se baseia no princpio da impessoalidade e dapadronizao, ou seja, da negao do nico.
Nessa objetificao do mundo, a sociedade moderna d origem a novas
formas de ddiva, cujo circuito passa a operar em instncias especficas que
compensam o carter funcionalista da sociabilidade secundria, constituda pelo
mercado e pelo Estado (Caill, 2002). Dentre essas esferas encontra-se o espao
das relaes pessoais, das redes individuais ntimas e personalizadas, que
consiste na sociabilidade primria, e considerada a dimenso natural da
ddiva na sociedade moderna. Esse ambiente serve para lembrar a todoindivduo que ele nico (Godbout, 1999, p.171) e reserva a cada um a
condio de construir a sua singularidade social. Em outras palavras, onde o
ser conserva a qualidade de sujeito e encontra meios de se distinguir da
sociedade.
Caill (2002) observa que as sociedades primitivas desconheciam a
separao dos espaos de sociabilidade, no havendo motivos para a existncia
de redes individuais e nem para que o circuito da ddiva atuasse como construtor
da unicidade dos seres, pois estes so nicos em toda parte e no soinstrumentos em parte alguma (Godbout, 1999). Na modernidade, contudo, a
personalidade social concreta dos atores abstrada da sociabilidade secundria,
cujo imperativo o da funcionalidade dos agentes. Isso faz com que a lgica da
ao se distinga da linguagem da ddiva, tornando-se irredutvel ao domnio das
relaes entre as pessoas. Sendo assim, a obrigao de dar, receber e retribuir
no se manifesta mais de maneira dominante, a no ser no seio da sociabilidade
primria ou na forma bastante transformada e especfica da sociedade moderna
que a ddiva a estranhos (Caill, 2002).
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A ddiva entre estranhos compe a quarta esfera7 do sistema de
circulao de coisas, materializada em uma diversidade de grupos comunitriosque se constituem livremente com a finalidade de prestar servios. So
diferentes formas de associao que podem ter ligaes com o Estado e com o
mercado e ser por eles financiados, mas que se distinguem por ter a ddiva no
centro do sistema de circulao das coisas e servios (Godbout, 1999, p.81).
Essas organizaes tm o carter de ddiva visto que so criadas
livremente, a partir de iniciativas da sociedade civil, tendo como principal
finalidade o bem estar social.
Conforme Godbout (1999), a ddiva entre estranhos pode ser agrupadaem duas categorias: organismos beneficentes e grupos de ajuda mtua. No
primeiro caso, os servios prestados so voluntrios, sem retorno aparente, j
que a retribuio est no prprio ato de dar. No segundo, as aes so baseadas
na reciprocidade, estabelecendo claramente o circuito da ddiva de dar, receber e
retribuir, havendo uma responsabilidade de transmitir o que se recebe. Incluem-
se, neste ltimo caso, os empreendimentos concernentes economia solidria.
Classificando como espetacular o desenvolvimento do voluntariado e do
engajamento associativo no mundo, Caill (2002) atribui s insuficincias doEstado e do mercado a dilatao de tais fenmenos. Conforme este autor, a
incapacidade das dimenses mercadolgica e estatal em responder a problemas e
necessidades sociais faz com que, alm das solidariedades tradicionais, prprias
da sociabilidade primria, sejam criadas novas formas de solidariedade,
expressas atravs das cooperativas sociais, das associaes e do conjunto das
atividades coletivas com fins no lucrativos (Caill, 2002, p.141).
Esse engajamento associativo e voluntrio ocorre, em primeira instncia,
sob a denominao da ddiva, uma vez que o motor da ao tem origem no
7Segundo Polanyi (2000), o sistema de circulao de coisas compe-se de trs esferas: o mercado,o Estado e a instncia domstica.
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vnculo existente entre os membros da organizao ou entre a associao e a
pessoa ajudada (Godbout, 1999, p.89). Como bem destaca Vizeu (2006), nasorganizaes substantivas as relaes interpessoais so de grande magnitude e
entre os membros h um alto grau de afetividade e solidariedade, rompendo com
a lgica impessoal e com o calculismo das relaes sociais secundrias.
Sendo assim, o fato associativo, orientado pelo registro da ddiva, no
pode ser considerado um espao de sociabilidade secundria. Mesmo quando as
associaes sofrem interferncias dessa esfera, as pretenses funcionais
permanecem subordinadas a um princpio de personalizao que recorre a
modalidades tpicas da sociabilidade primria. Por outro lado, as relaesconstitudas no seio dessas organizaes preservam um carter facultativo e
revogvel que no condiz com as designaes prprias dos vnculos primrios.
Dessa forma, Caill (2002) acredita que o fato associativo se
desenvolve na interface da primariedade e da secundariedade, do privado e do
pblico, operando uma mescla e uma transformao de lgicas opostas
(Caill, 2002, p.149) que permite realizar tarefas funcionais sob a forma da
personalizao e formar alianas em escalas macrossociais sem renunciar
forma da microssociedade. Neste sentido, a associao inaugura aquilo que sepode denominar espaos pblicos primrios, assentados sobre o
interconhecimento.
Essa mescla, na opinio de Godbout (1999), constitui uma nova forma
de sociabilidade a ser pensada (Godbout, 1999, p.89), esboando o que pode
compor um sistema de ddiva nos dias de hoje e oferecendo uma preliminar da
sociedade e das relaes humanas diante da superao do individualismo e da
estrutura burocrtica predominante.
Isso porque, enquanto a economia de mercado est assentada sobre oprincpio da liberdade e do interesse privado, e o Estado se baseia na coero
para que o interesse pblico seja alcanado, a associao, tal como a ddiva,
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realiza o bem comum por meio da integrao dos princpios de liberdade e de
obrigao. importante ressaltar que, nessa perspectiva, a idia de bem comum no
constitui a primazia das identidades coletivas sobre os direitos liberdade
individual, mas o entendimento de que a vida associativa pode constituir um
elemento diferencial importante para se pensar uma moral do indivduo que seja
compatvel com a sobrevivncia do coletivo democrtico (Martins, 2004, p.3).
Os princpios da liberdade e da obrigao e, por conseguinte, da
democracia e da justia social tambm esto presentes nos ideais utpicos do
cooperativismo social-reformista ou rochdaleano, especialmente, na sociedadeconcebida por Robert Owen, considerado o fundador do chamado socialismo
utpico. Neste sentido, na prxima seo ser tratada a ao coletiva na
perspectiva terica e ideolgica do cooperativismo social-reformista.
2.3 A ao coletiva nas ideologias de cooperao
2.3.1 A ao coletiva e a cooperao nos ideais utpicos do cooperativismo
A cooperao sempre esteve presente na histria humana como uma
alternativa de sobrevivncia ou uma soluo para momentos de crise.Considerado etimologicamente, o termo cooperao significa operar junto com
algum e pode ser entendido como colaborao ou o ato pelo qual pessoas unem
seus esforos e recursos no sentido de alcanarem objetivos comuns. Do ponto
de vista sociolgico uma forma de interao e de integrao social que se d a
partir de uma ao conjugada. Quando orientada conforme estatutos previamente
estabelecidos, d origem a organizaes sociais dentre as quais encontram-se as
cooperativas (Pimentel, 2006).
Todas as iniciativas de cooperao ocorridas at o final do sculo XVIIIeram informais e no sistemticas, como as formas de ajuda mtua existentes
entre a populao rural de vrios pases. A cooperao mais organizada,
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realizada de acordo com certos parmetros axiolgicos e metodolgicos, surgiria
apenas a partir do sculo XIX com a pretenso de instaurar um novo sistema8econmico e social. quando surge o cooperativismo, um novo modelo
conceitual, construdo e aperfeioado na vivncia concreta, e inspirado nas
orientaes e doutrinas defendidas pelos socialistas utpicos9(Schneider, 1999).
Segundo Schneider (1999), o cooperativismo surgiu como reao
grave crise econmica e social disseminada pelo capitalismo no sculo XIX,
como forma de modificar o conjunto das circunstncias e o ambiente social para
criar um espao que proporcionasse maior dignidade para o trabalhador.
Santos & Rodriguez (2002) explicam que, desde as suas origens, ocooperativismo se desenvolveu como alternativa tanto ao individualismo liberal
quanto ao socialismo centralizado. Um dos componentes dessa ideologia, o
pensamento associativista, baseia-se na defesa de uma economia fundada em
princpios no capitalistas de cooperao e mutualidade, bem como na
preferncia por formas de organizao poltica pluralistas, em que a sociedade
civil ocupa papel central. Um outro componente, a prtica cooperativa, inspira-
se nos valores de autonomia, democracia participativa, igualdade, eqidade e
solidariedade para conduzir as atividades econmicas.Entre os que contriburam para a emergncia do cooperativismo, Robert
Owen e William King, na Inglaterra, Charles Fourier, Michel Derrion, Philippe
Buchez, Pierre-Joseph Proudhon e Louis Blanc, na Frana, so considerados os
principais precursores do cooperativismo em termos de concepes ou
experincias. As idias defendidas por esses pensadores e reformadores
8 Os defensores do cooperativismo esperavam que, ao final do processo de expanso dascooperativas, fossem constitudas colnias cooperativas autnomas que, na medida em que
multiplicassem, pudessem transformar a sociedade capitalista e competitiva em uma sociedadesolidria e fundada na cooperao (Schneider, 1999).9 O socialismo utpico compreendido como o conjunto de doutrinas socialistas pr-marxistas(Noronha, 2004) cujos seguidores cultivavam ideais de justia e fraternidade, e condenavam asmodificaes provocadas pela Revoluo Industrial sobre as formas de organizao da sociedade(Pimentel, 2006).
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convergem, conforme Schneider (1999), em caractersticas fundamentais ao
movimento cooperativo. Dentre elas, destacam-se a idia da associao comoexpediente de luta por objetivos comuns, a cooperao na organizao do
trabalho como ao emancipadora dos operrios e a ao da ajuda mtua na
defesa dos interesses do trabalhador. Tambm se pronunciam o capital como um
meio para a realizao dos objetivos da cooperao, a necessidade de integrao
e articulao entre empreendimentos cooperativos, o carter democrtico das
decises e a constituio de um sistema scio-econmico predominante, baseado
na cooperao.
De acordo com Santos & Rodriguez (2002), foi a partir dessesfundamentos que os primeiros cooperados contemporneos, conhecidos como
pioneiros de Rochdale, sistematizaram em estatuto os princpios que passaram a
guiar as cooperativas em todo o mundo. Estes princpios so:
a)
vnculo aberto e voluntrio;
b) controle democrtico por parte dos membros, sendo as decises
fundamentais tomadas de acordo com a premissa um membro um
voto;c) participao econmica dos membros no sentido de obter proveitos
de acordo com a contribuio prestada;
d)
autonomia e independncia em relao ao Estado e a outras
organizaes;
e) compromisso com a educao dos membros da cooperativa para
lhes facultar uma participao efetiva;
f)
cooperao com outras cooperativas atravs de organizaes locais,
nacionais e mundiais;g) contribuio para o desenvolvimento da comunidade em que a
cooperativa est situada.
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Segundo Paul Lambert (apud Schneider, 1999), o que conferiu mrito
aos pioneiros, entre outras coisas, foi aproveitar fundamentos isolados deexperincias anteriores e realizar uma sntese original destes princpios, dando-
lhes sua expresso definitiva. O cooperativismo emerge, ento, como um
modelo de insero econmica que situa o trabalhador no centro do processo
produtivo, se destacando como alternativa de trabalho forjada por meio de uma
racionalidade flexvel e compatvel com os princpios da solidariedade e da
democracia (Nascimento, 2003).
A cooperativa de Rochdale, bem como as primeiras cooperativas, no
possua funcionrios, sendo as atividades da organizao desempenhadas pelosprprios associados. Na medida em que realizavam o trabalho e participavam
das decises, no havia separao entre concepo e execuo do trabalho,
condio essencial para a autogesto10(Canado, 2007).
Porm, no final do sculo XIX, com o aumento do tamanho e da
respectiva movimentao financeira, as cooperativas dispensaram a autogesto
plena e passaram a contratar funcionrios, reproduzindo, at certo ponto, a
lgica de explorao do trabalho que as primeiras cooperativas combatiam.
Alm disso, outras mudanas ocorreram nessas organizaes que, antesautnomas e independentes nas suas atividades, receberam o reconhecimento do
Estado, gerando, conforme Canado (2007), um arcabouo jurdico que passou a
sustentar sua estrutura. Houve, ento, a institucionalizao desses grupos ao
longo do sculo XX, tornando-os praticamente um apndice do aparelho estatal.
Em funo desse processo, as cooperativas encontraram dificuldades
para conservar a plenitude de sua base democrtica e, progressivamente, as
decises foram se concentrando em uma elite diretorial, o que trouxe, de certo
modo, a hierarquizao para o contexto dessas organizaes (Thiollent, 2006).
10 A autogesto, em seu sentido mais amplo, designa o exerccio coletivo do poder (Dorneles,2007).
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Da experincia de Rochdale, permaneceram os princpios de associao
cooperativa considerados fundamentais e o pressuposto de que a sociedadecooperativa no pode ser empregada para fins de aplicao capitalista. No
entanto, Arajo (1982) argumenta que o sistema cooperativo no segue uma
filosofia rgida, no assume a condio de dogma. Sendo assim, admite-se que,
existindo no seio da sociedade capitalista, sua filosofia tende a emanar das
prticas que considera mais adequadas para manter sua existncia. Em outras
palavras,
a organizao cooperativa, porque inserida no sistema capitalista,acaba por corresponder s exigncias deste para sobreviver comoassociao. Portanto, em suas caractersticas organizacionais, umacooperativa [...] coincide com os pontos vitais da prpria gnese daproduo capitalista (Arajo, 1982, p. 89).
Nessas circunstncias, a cooperao ao nvel idealista fica situada mais
no campo discursivo, enfatizando a causa comum e propondo atingir esferas
universais, ao passo que a cooperao no sentido objetivo destaca o plano que a
orienta, pretendendo que a realizao de suas atividades resulte, em ltima
instncia, na multiplicao do capital e no crescimento do patrimnio
institucional, o que inevitavelmente a identifica com a prpria lgica do sistema
capitalista (Arajo, 1982).
Isso explica por que nem a prtica cooperativa nem o pensamento
associativo que lhe serve de base chegaram a ser predominantes enquanto forma
de organizao social. Conforme declarou Hirst (apud Santos & Rodriguez,
2002), o associativismo jamais alcanou o amadurecimento necessrio para se
converter em uma ideologia capaz de resistir aos ataques provenientes tanto do
socialismo centralizado quanto do liberalismo individualista. Em outras
palavras, o cooperativismo deu forma a experincias exemplares de cooperao
baseada na solidariedade, mas no conseguiu se impor ao capitalismo.
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Convm, contudo, ressaltar que a teoria e as prticas cooperativas tm
desafiado as conjecturas pessimistas quanto sua capacidade de se reproduzir.Resgatando os elementos centrais do pensamento associativista e os ideais do
cooperativismo, a economia solidria vem emergindo como um conjunto de
atividades econmicas cuja lgica se distingue tanto da lgica do mercado
capitalista quanto da lgica do Estado, propondo formas alternativas de
organizao social (Santos & Rodriguez, 2002).
2.3.2 A ao coletiva e a cooperao na economia solidria
A compreenso da economia solidria, na opinio de Frana Filho(2007), supe repensar o fato econmico, cuja noo predominante11 remete
idia de mercado ou troca mercantil. Conforme este autor, enxergar a economia
apenas por essa lente significa trat-la de forma reducionista, como uma questo
de escolha racional, em que os recursos so escassos e o comportamento do
indivduo est pautado apenas pelo clculo utilitrio de custos e benefcios.
De acordo com Laville et al. (2006), essa definio da economia,
relacionada s noes de utilidade e escassez, esquece seu outro sentido
possvel, que integra a dependncia entre seres humanos e entre estes e anatureza. Enxerg-la em sua definio substantiva, por outro lado, aborda a
economia como um processo de interao entre o homem e a natureza que
possibilita um abastecimento regular de meios materiais para a satisfao de
necessidades (Caill apud Frana Filho, 2007). Este sentido no s resgata a
concepo aristotlica de economia como a prpria etimologia da palavra,
reportando noo de cincia da boa gesto da casa (oiks), ou das condies
materiais de existncia (Frana Filho, 2007, p.158). Em sntese, tal
compreenso pode associar a idia de economia a toda forma de produo e
11A economia mercantil est imbuda de grande legitimidade no mundo contemporneo,repercutindo nas dimenses da vida social e na maneira de conceb-la (Laville et al., 2006).
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distribuio de riqueza, o que significa assumir o pressuposto de uma economia
plural.Diante disso, Laville et al. (2006) sustentam que a economia moderna
pode ser apreendida a partir de trs princpios de circulao de bens e servios:
do mercado, da redistribuio e da reciprocidade. O princpio do mercado,
marcado pela impessoalidade e pela equivalncia monetria, permite que a
conexo entre ofertante e demandante se estabelea numa base contratual a
partir de um clculo de interesse. A redistribuio, pautada pela verticalizao
da relao de troca e por seu carter obrigatrio, compreende uma autoridade
central (o Estado) que se apropria dos recursos a fim de reparti-los. J areciprocidade corresponde ao vnculo estabelecido entre grupos ou pessoas
atravs de prestaes que manifestam o propsito de se instaurar um lao social.
Pautado pela lgica da ddiva, esse ciclo se ope troca mercantil por ser
indissocivel das relaes humanas, e se distingue da troca redistributiva por no
estar submetido a um poder central.
Reconhecendo a diversidade de princpios econmicos existentes,
permite-se considerar a economia pela ponderao entre suas extremidades, que
Laville et al. (2006) chamam de tripolaridade. Trata-se, nas palavras destesautores, de identificar no funcionamento da economia real, de um perodo e de
um contexto dados, as modalidades de mobilizao dos diferentes princpios
econmicos para caracteriz-la enquanto economia plural (Laville et al., 2006,
p.14).
A noo de economia plural permite ampliar o olhar sobre o econmico,
enxergando alm da viso dominante que reduz seu significado idia de
economia de mercado (Frana Filho, 2007). A partir dessa compreenso, as
prticas de economia solidria podem ser abordadas como atividades que soempreendidas com o intuito de democratizao da economia, supondo para a sua
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realizao uma subordinao do princpio do mercado s proposies da
reciprocidade (Laville et al., 2006).O termo economia solidria, segundo Frana Filho (2002), identifica,
enquanto conceito, uma srie de experincias organizacionais inseridas nas
chamadas novas formas de solidariedade, que fazem aluso a iniciativas
cidads no condizentes com as formas de solidariedade tpicas das sociedades
tradicionais12.
Originalmente, a concepo de economia solidria remete aos trabalhos
de Jean Louis Laville e Bernard Eme os quais, atravs desse termo, procuraram
retratar a emergncia e proliferao de formas organizativas que indicam ajuno das noes de iniciativa e solidariedade e a inscrio dessa ltima na
composio de atividades econmicas. Enquanto fenmeno, a economia
solidria est ligada problemtica da excluso social crescente e perspectiva
de encontrar novas formas de regulao da sociedade atual (Frana Filho, 2002).
Trata-se, na perspectiva de Lima (2001), de uma economia voltada para
a satisfao das necessidades dos seres humanos, no sentido do bem estar de
todos e para todos, vista como caminho para uma nova forma de ordenar a
produo e distribuio de bens e servios na sociedade capitalista que, a partirda solidariedade, cria vnculos de organizao e de comunidade.
De acordo com Gaiger (2006), as chamadas iniciativas solidrias contm
um carter coletivo tanto na gesto e na posse dos meios de produo quanto no
processo de trabalho, o que minimiza a presena de relaes assalariadas e
provoca o envolvimento com as questes da cidadania. Tendo em comum esse
aspecto, as experincias se apresentam sob formas diversas, variando em funo
de seus protagonistas, suas origens e motivaes, suas atividades econmicas,
entre outros elementos.
12A organizao dessas sociedades est pautada na chamada solidariedade mecnica (Durkheim)ou socialidade comunitria (Weber), em que os laos so mecnicos, devendo-se s similitudesque os membros do grupo social compartilham (Quintaneiro, 2003).
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Nas palavras de Lima (2001),
a economia solidria fundamenta-se em organizaes sociais dotrabalho, caracterizadas por serem iniciativas associativas, nas quais oslaos solidrios constituem o princpio bsico. Em geral, prima-se pelano-mercantilizao das relaes de trabalho e fala-se em lucro social(Lima, 2001, p.1).
Conforme Singer (2000), a economia solidria no provm de uma
produo intelectual, embora muito de seu desenvolvimento se deva aos grandes
pensadores e realizadores do cooperativismo no sculo XIX, mas advm de um
processo contnuo gerado pelos trabalhadores em luta contra o capitalismo, de
modo que para compreender sua lgica, fundamental considerar a crtica
socialista e operria ao sistema em questo.
Acima de tudo, o que a economia solidria condena a ditadura do
capital sobre o trabalho e a crescente desigualdade entre os proprietrios dos
meios de produo e aqueles que vendem a sua fora de trabalho. Tanto que
estabelece suas bases sobre a propriedade e a gesto coletiva dos meios de
produo e distribuio, recusando a diviso da sociedade em uma classe
proprietria dominante e uma classe subalterna sem propriedade (Singer, 2005).
Benini (2003) acredita que as razes e especificidades da economia solidria so
determinadas pelo contexto histrico, uma vez que,
questes referentes ao desenvolvimento econmico, desemprego,financeirizao da riqueza, organizao do trabalho, convergem para aproposta de construo de outras instituies e setores econmicos,pautados por outras lgicas e princpios (Benini, 2003, p.11).
Os resultados desse processo histrico Singer (2000) sintetiza daseguinte forma:
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a)
homens e mulheres vitimados pelo capital organizam-se como
produtores associados visando, alm de uma fonte de renda, areintegrar-se diviso social do trabalho;
b)
pequenos produtores de mercadorias, do campo e da cidade, se
associam para comprar e vender em conjunto, visando a economias
de escala, e eventualmente criam empresas de produo socializada;
c)
assalariados se associam para adquirir em conjunto bens e servios
de consumo, visando a ganhos de escala e melhor qualidade de vida;
d) pequenos produtores e assalariados se associam para reunir suas
poupanas em fundos rotativos que lhes permitem obteremprstimos a juros baixos e eventualmente financiar
empreendimentos solidrios;
e) os mesmos criam tambm associaes mtuas de seguros,
cooperativas de habitao, etc.
Esse autor qualifica tais iniciativas como de cunho no-capitalista, pois
so constitudas por pessoas excludas da posse dos meios sociais13 de
produo e distribuio.A partir dessa juno, a economia solidria pode ser compreendida
como um fenmeno que reveste diferentes formas de organizao onde os
cidados agem em conjunto, seja para criar sua prpria fonte de trabalho, seja
para ter acesso a bens e servios de qualidade, numa dinmica de reciprocidade
que articula os interesses individuais aos coletivos (Roca, apud Tauile, 2002).
A problematizao da economia solidria, contudo, requer uma
apreenso de seus elementos constitutivos e da forma como se articulam em seu
13De acordo com Singer (2005), os meios sociais de produo so aqueles que s podem seroperados coletivamente, e a concentrao da propriedade destes em poucas mos que caracterizao capitalismo. A propriedade privada de meios individuais de produo, ao contrrio, caracterizaa pequena produo de mercadorias, no o capitalismo, e os trabalhadores que possuem seusprprios meios de produo tendem a integrar a economia solidria.
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contexto. Diante disso, Benini (2003) define a autogesto, a solidariedade e a
sustentabilidade como aspectos que do sentido a essa proposta.A autogesto implica na forma como o trabalho organizado, ou seja,
sem a existncia da relao patro-empregado. Cada membro do grupo , a um
s tempo, scio e proprietrio, o que leva negao do trabalho como
mercadoria e de