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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” 2

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Ficha Catalográfica

Causos do ECA: histórias em retrato. O Estatuto da Criança e do Adolescente no cotidiano /São Paulo : Fundação Telefônica, 2006.

Vários autores 128p.ISBN 978-85-60195-00-8

1. Estatuto da Criança e do Adolescente2. Literatura brasileira - Contos

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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CAUSOS DO ECA – “HISTÓRIAS EM RETRATO”O Estatuto da Criança e do Adolescente no cotidiano

Iniciativa Fundação Telefônica

Fernando Xavier Ferreira Presidente do Conselho CuradorSérgio Mindlin Diretor Presidente

Maria Gabriella Bighetti Gerente de ProjetosPatrícia Mara Santin Coordenadora de Projetos e Coordenação da Publicação

Programa Pró-menino/RISolidaria

Gestão ExecutivaCentro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da FIA

Profª. Dra. Rosa Maria Fischer Diretora GeralProfª. Dra. Graziella Maria Comini Coordenadora do Programa

Pró-menino/RISolidariaFu Kei Lin, Coordenação da Publicação

Gabriela Aratangy Pluciennike Gisella Werneck Lorenzi

Camila de Souza e Marcela Tahan Coordenação de Edição

Autores dos “Causos” Augusto Russini, Edilaine Vieira Lopes, Engracia Maria Tropia Barreto, EunicePaz Gonçalves Santos, Iponina Lubas Sales, José Alencar Ramos, José Valmir Gomes, LucianaGonçalves de Souza, Luciana Ribeiro Barros, Maria Leonora da Silva, Maria Sueli Fonseca Gonçalves,Peterson Xavier do Nascimento, Rosane Pacheco Pereira, Suzete Faustina dos Santos, Tarciana Q. M.Campos, Vânia Farias de Queiroz e Viviane Souza da Silva

Autores dos Comentários Antonio Carlos Gomes da Costa, Claudia Werneck, Daniela Mercury,Emílio García Méndez, Ivaldo Bertazzo, José Fernando da Silva, Maria de Lourdes Trassi Teixeira,Maria Amélia Azevedo, Maria do Carmo Brant de Carvalho, Maria Helena Guimarães de Castro,Mário Volpi, MV Bill, Neide Duarte, Paulo Afonso Garrido de Paula, Pedro Bandeira, WellingtonNogueira e Zilda Arns

Estúdio Girassol Projeto Gráfico e Produção EditorialBeth Kok Desenhos

Esperanza Martin Sobral Diagramação e Editoração EletrônicaJandira Queiroz Revisão de Texto

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Desde o início deste ano, no Brasil e em outros países, o GrupoTelefônica reorientou o foco do investimento social realizado por meio daFundação Telefônica, dirigindo-o à educação formal e complementar dainfância e da juventude. Com isso, nosso programa Pró-menino/RISolidarianão só ganhou importância por já estar nesta trajetória desde a sua cria-ção, em 2003, como também ampliou seu campo de atuação: enquantoantes era voltado prioritariamente a organizações sociais que trabalhamcom crianças e adolescentes, agora sua missão é também trabalhar com asescolas, que têm papel fundamental na efetivação do Estatuto da Criançae do Adolescente e na garantia dos direitos desse público.

Este segundo ano de realização do Concurso “Causos” do ECA conso-lida a opção da Fundação Telefônica pela defesa desses direitos.Recebemos cerca de 130 histórias verídicas, de todas as regiões do País.Histórias que são a comprovação de que a lei efetivamente funciona e deque esta não lida somente com questões de violência ou de jovens infrato-res. É um instrumento muito mais amplo que aborda temas relacionados àeducação, à saúde, à família, ao lazer, entre outros, com o intuito de promo-ver melhoria na qualidade de vida das pessoas e reduzir as distânciassociais. É justamente isso o que, por meio de seu investimento no País, oGrupo Telefônica busca promover: a transformação social, de forma sus-tentável, com base na informação e na conscientização da sociedade.

Fernando Xavier Ferreira

Presidente do Grupo Telefônica no Brasil

APRESENTAÇÃO

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No Vale do Paraíba, em São Paulo, crianças de origem cigana têm aoportunidade de entrar na escola. Seriam elas bem recebidas?

Inverno gaúcho, tempo de tomar um chimarrão quente para enfren-tar o frio. Enquanto isso, num hospital local, travava-se uma batalha comórgãos públicos para salvar a vida de um menino.

Sol escaldante no interior do Ceará. Uma época em que a criança nãoera considerada cidadã, em que brincar não era um direito e em que o tra-balho infantil tirava meninos e meninas da possibilidade de caminhar noscarnaubais. Mas um garoto forte como a palmeira protagonizou uma his-tória em que foi possível transformar o rumo de sua vida, criando perspec-tivas melhores para o futuro.

Mais uma vez, histórias verídicas vindas de diversos cantos do Brasilmostram que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma lei que,quando colocada em prática, provoca mudanças. Na segunda edição doConcurso “Causos” do ECA, promovido pela Fundação Telefônica, por meiodo portal Pró-menino/RISolidaria (www.promenino.org.br), em parceriacom o Portal EducaRede (www.educarede.org.br), também da FundaçãoTelefônica, e com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), aescola foi escolhida como tema de destaque.

A escolha foi feita com o objetivo de mostrar que as escolas têm his-tórias para contar, nas quais o ECA foi usado para transformar vidas. Criou-se a categoria especial “ECA na Escola” justamente para que as pessoaspudessem contar experiências vividas ou presenciadas que ocorreram noambiente escolar e nas quais a comunidade escolar foi o elemento primor-dial para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. A categoria

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INTRODUÇÃO

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geral “ECA como Instrumento de Transformação de Vida” apresenta histó-rias de crianças e adolescentes em situações diversas de violação ou pro-moção dos direitos em que, por meio do efetivo uso do Estatuto, tiveram assuas vidas modificadas e garantidos os seus direitos de cidadãos.

O portal Pró-menino/RISolidaria é um programa da FundaçãoTelefônica que visa a contribuir para a garantia dos direitos de crianças eadolescentes por meio da educação, disseminando informações e apoian-do organizações governamentais e não-governamentais que lidam comessa temática. A escola, portanto, é seu foco prioritário de atenção. O prin-cipal objetivo do Pró-menino/RISolidaria é tornar as escolas e as organiza-ções que lidam com crianças e adolescentes atuantes na garantia dosdireitos do público infanto-juvenil. O portal conta com a gestão executivado Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor(CEATS), um programa institucional da Fundação Instituto de Adminis-tração (FIA), entidade sem fins lucrativos conveniada à Faculdade deEconomia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo(FEA/USP).

Durante cinco meses, o 2º Concurso “Causos” do ECA, lançado emnovembro de 2005, recebeu mais de 120 histórias verídicas de adultos eadolescentes de todas as regiões do País.

As Regiões Sudeste e Nordeste destacaram-se, assim como na primei-ra edição do concurso, pelo número total de textos inscritos, correspon-dendo a 48% e 19%, respectivamente. As mulheres também continuamsendo a maioria a escrever, no total de 70% das inscrições. Além dos adul-tos, os adolescentes também escreveram, correspondendo a 9% do total.

A equipe surpreendeu-se positivamente com a qualidade dos textos e a pertinência das histórias. Foi um trabalho difícil, mas gratificante, esco-lher os dez finalistas de cada categoria que foram enviados aos jura-dos. Antes do envio ao júri, a veracidade das histórias foi verificada. A es-colha dos três primeiros colocados de cada categoria coube ao peda-gogo Antonio Carlos Gomes da Costa, um dos redatores do Estatuto; à

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psicanalista e conselheira da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança,Maria de Lourdes Trassi Teixeira; à assistente social Maria do Carmo Brantde Carvalho, coordenadora geral do Centro de Estudos e Pesquisas emEducação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec); à jornalista DanielaRocha, coordenadora de Mídia Jovem da Andi. Ao final, o júri elegeu histó-rias inspiradoras, possíveis de serem replicadas, que buscaram quebrarparadigmas e que convenceram, por si só, que ali estavam direitos garanti-dos e a cidadania plenamente vivida.

Na categoria especial, o texto de Eunice Paz Gonçalves Santos, intitu-lado “Em Águas Claras, o ECA ecoou”, foi o vencedor, porque, de acordo comos jurados, a história foi um contraponto à atual realidade de individualis-mo presente na sociedade por retratar a ação de uma cidade que, a partirda escola, começou a conhecer mais o Estatuto. Na categoria geral, o texto“Tocando em frente”, de Iponina Lubas Sales, foi o primeiro colocado porapresentar uma história comovente, em que a personagem principal, umamenina de dez anos, utilizou o conhecimento adquirido sobre o ECA den-tro da sala de aula para solucionar a situação de negligência que vivia.Além dos três primeiros colocados de cada categoria, concedemos men-ções honrosas para outras dez histórias que apresentam grande qualidadee sensibilidade, sendo cinco de cada categoria. Nos “causos”, os nomes das pessoas envolvidas foram trocados, a não ser naqueles em que houveautorização do autor para a manutenção da identidade real. Todas as his-tórias que foram finalistas no concurso podem ser acessadas no portalPró-menino/RISolidaria.

Cada um dos 16 “causos” publicados aqui é acompanhado pelos arti-gos do ECA referentes às histórias e por comentários de especialistas daárea de infância e adolescência ou de personalidades. São eles: AntonioCarlos Gomes da Costa, Cláudia Werneck, Daniela Mercury, Emílio GarcíaMéndez, Ivaldo Bertazzo, José Fernando da Silva, Maria Amélia Azevedo,Maria de Lourdes Trassi Teixeira, Maria do Carmo Brant de Carvalho, MariaHelena Guimarães de Castro, Mário Volpi, MV Bill, Neide Duarte, Paulo

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Afonso Garrido de Paula, Pedro Bandeira, Wellington Nogueira e Zilda Arns.Ficamos lisonjeados com a participação de tantos especialistas e per-

sonalidades: a prontidão e o carinho que tiveram para comentar esses“causos” que retratam situações ainda presentes no País. Como exemplosdessa receptividade, gostaríamos de citar a rapidez com que o escritorPedro Bandeira respondeu: logo no primeiro contato enviou o comentário,que parece uma conversa ao pé do ouvido. A cantora Daniela Mercury,embaixatriz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que,mesmo em meio a tantos compromissos, conseguiu tempo para escreversobre um problema que afeta milhares de crianças no Brasil: a falta deregistro civil. A médica Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança,quatro vezes indicada ao Prêmio Nobel da Paz, traduziu em seu comentá-rio a admiração pela sensibilidade da autora e a força da ação dos perso-nagens envolvidos. O advogado e deputado distrital da Argentina, EmílioGarcía Méndez, uma das pessoas que ajudou a implementar leis quaseidênticas ao ECA em outros países sul-americanos, não deixou que a dife-rença dos idiomas o impedisse de participar da obra. Ele enviou o comen-tário em espanhol, aqui traduzido para o português.

Assim como na primeira edição, os textos estão ordenados, em cadacategoria, de acordo com a lógica do Estatuto, partindo dos direitos funda-mentais (à vida, à saúde, à cultura, entre outros), para os direitos garanti-dos em situações de violação (aplicação de medidas de proteção, de medi-das socioeducativas etc.).

CAUSOS DO ECA: “HISTÓRIAS EM RETRATO” – O ESTATUTO DA CRIANÇAE DO ADOLESCENTE NO COTIDIANO nos oferece a oportunidade de conhe-cer experiências de cidadania plenamente vivida e aponta caminhos emque a escola se revela protagonista na disseminação e na garantia dos direi-tos de crianças e adolescentes.

Tenha uma ótima leitura!

Equipe Pró-menino/RISolidaria

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14 PREFÁCIO

17 PREMIADOS DO 2º CONCURSO “CAUSOS” DO ECA

ECA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE VIDA21 E então, é cidadão ou cidadã? – Maria Leonora da Silva

29 Um pequeno médico e o grande Estatuto – Rosane Pacheco Pereira35 Tocando em frente – Iponina Lubas Sales42 Uma ajuda preciosa e precisa – Augusto Russini47 Sonho de bailarina – Vânia Farias de Queiroz53 Transformação – José Valmir Gomes

60 Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca – Tarciana de Queiroz M. Campos

67 Viver para representar! – Peterson Xavier do Nascimento

ECA NA ESCOLA77 Em Águas Claras, o ECA ecoou – Eunice Paz Gonçalves Santos82 Escola e ciganos: por que não? – Viviane Souza da Silva88 O ECA em Samambaia – Engracia Maria Tropia Barreto

e Luciana Gonçalves de Souza94 Vida passada a limpo – Maria Sueli Fonseca Gonçalves

100 Sorrisos de Marina – Luciana Ribeiro Barros106 Aprendizagens do ECA – Edilaine Vieira Lopes113 E agora, José? – José Alencar Ramos118 Eu também faço parte – Suzete Faustina dos Santos

127 ÍNDICES REMISSIVOS

ÍNDICE

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Os direitos humanos têm uma história de construção com datas muitoespeciais. Inclui declarações, convenções, constituições e leis específicas.O fato de a garantia de proteção integral estar na lei é uma conquista queenvolveu muitos militantes, incluindo adultos e crianças, legisladores,comunicadores, acadêmicos etc. Cada data corresponde a muito trabalhohumano, realizado por meio de textos, debates, reuniões, assembléias, mo-bilização popular.

Entretanto, o que define um novo direito e transforma esta lei emrealidade é o compromisso do mundo adulto em desenvolver um novorepertório no modo de ver, pensar e agir em relação à infância.

Quando uma criança tem seu direito ameaçado ou violado, serãonecessários muitos adultos atuando de maneira qualificada e articuladapara que suas condições de vida e desenvolvimento estejam asseguradas.

Este mundo adulto inclui sua família, contando seus avós paternos ematernos, tios, primos, irmãos e pais. Na comunidade onde a criança vive,existe uma rede – composta de seus vizinhos, amigos, padrinhos, professores,agentes de saúde e assistentes sociais – que também tem o dever de cuidar.

Mais ainda, algumas instituições têm a missão de proteger a criança:o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal de Direitos da Criança e doAdolescente, a Defensoria Pública, o Ministério Público, as varas da infân-cia, as delegacias de polícia, institutos médico-legais, organizações não-governamentais, igrejas etc.

Não se trata de imaginar prédios, procedimentos, documentos, buro-cracia, embora tudo isto faça parte do mundo das organizações. Trata-sede reconhecer que o direito é algo vivo e está presente a cada momento

14 CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

PREFÁCIO

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em nossas vidas. Toda pessoa tem alguma história para contar sobre umaexperiência com criança e cada um de nós, na condição de criança quefomos, temos lembranças de adultos que se destacaram por terem nosapoiado em momentos difíceis. Essas vivências revelam que foram peque-nos gestos, mas decisivos em determinados momentos de nossa biografia.

Quando analisamos situações trágicas, dramas familiares, é fácil dis-tinguir entre aquelas que contaram com solidariedade operante (nos quaispessoas sensíveis, capazes de se colocar na pele da criança e do adolescen-te agiram em seu campo, cumprindo suas atribuições com delicadeza) eaquelas nas quais houve omissão.

A omissão ou o descuido é uma segunda violência, tão grande quan-to a primeira. Como dimensionar o impacto advindo da experiência de nãopoder contar com outros seres humanos?

Este livro de “causos” é muito interessante porque estimula pessoas acontar suas histórias, a identificar aquelas em que o direito à ternura foiexperimentado e a demonstrar o direito como algo vivo, que se confundecom nosso cotidiano e que, para ser bem realizado, dependerá de entusias-mo, energia e capacidade de compreender e colocar-se no lugar das crianças.

Trata-se de resgatar a cada momento a criança que fomos e o papelfundamental que desempenham as capacidades humanas de amar, brin-car e aprender.

Obrigada a todos que contaram suas histórias, aos que trabalharamna seleção e na análise dos textos, a quem cuidou da edição, à FundaçãoTelefônica, enfim, a todos que trabalharam nesta jornada que constróimemória, sem a qual não há profundidade na experiência humana.

Cenise Monte Vicente

É psicóloga e mestre em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade deSão Paulo (USP). Foi secretária municipal de Promoção Social de Campinas (SP), presidente do

Conselho da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e hoje coordena o Escritório doFundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), região Centro-Sul.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” 15

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Premiados2º CONCURSO "CAUSOS" DO ECA

CATEGORIA ECA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE VIDA

1º Colocado Iponina Lubas Sales - Tocando em frente2º Colocado Maria Leonora da Silva - E então, é cidadão ou cidadã?3º Colocado Vânia Farias de Queiroz - Sonho de bailarina

Menções HonrosasAugusto Russini - Uma ajuda preciosa e precisaJosé Valmir Gomes - TransformaçãoPeterson Xavier do Nascimento - Viver para representar!Rosane Pacheco Pereira - Um pequeno médico e o grande EstatutoTarciana de Queiroz M. Campos - Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca

CATEGORIA ECA NA ESCOLA1º Colocado Eunice Paz Gonçalves Santos - Em Águas Claras, o ECA ecoou2º Colocado Suzete Faustina dos Santos - Eu também faço parte3º Colocado Viviane Souza da Silva - Escola e ciganos: por que não?

Menções HonrosasEdilaine Vieira Lopes - Aprendizagens do ECAEngracia Maria Tropia Barreto e Luciana Gonçalves de Souza - O ECA em SamambaiaJosé Alencar Ramos - E agora, José?Luciana Ribeiro Barros - Sorrisos de MarinaMaria Sueli Fonseca Gonçalves - Vida passada a limpo

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ECA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE VIDA

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Dar voz e vez a cidadãos comuns. As próximas oito históriasrelatadas foram escritas por pessoas que presenciaram ouviveram uma transformação depois da correta aplicação doEstatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A categoria geral“ECA como Instrumento de Transformação de Vida” mostraexperiências em que o Estatuto passou de simples letras nopapel para a ação efetiva.

Os protagonistas das histórias são diversos: uma pessoa deférias numa cidadezinha do interior, um ator que divulga oECA em um programa radiofônico, uma bailarina que ensinadança a crianças carentes, um médico que age além de suafunção... Suas ações visam beneficiar crianças e adolescentesque têm seus direitos negados ou violados. Suas histórias são verídicas e traduzem a real força da cidadania.

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E ENTÃO, É CIDADÃO OU CIDADÃ?Maria Leonora da SilvaBayeux - Paraíba

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Maria Leonora é graduada em

comunicação social pelaUniversidade Federal

da Paraíba (UFPB),integrante da Equipe do

LIBERTA – Centro dePesquisa, Comunicação

e Educação para aCidadania e produtorado programa “Mulher

Demais” da RedeCorreio, afiliada à

TV Record na Paraíba.

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São oito da noite. João sai do sítio em direção à cidade e vai buscar aparteira. Sua mulher está entrando em trabalho de parto. Pelo caminho, vaipensando como sustentar mais um filho. Com este, completariam sete.“Tem nada não. Onde comem oito, comem nove”, pensa ele. “Além do mais,nem sei se vai vingar. Morre tanta criança antes mesmo de ser batizada.Quando ficar maiorzinha, a gente procura um padrinho e também mandaregistrar.”

***

Cinco da manhã. Nasce um lindo bebê na maternidade da capital. Amãe, ainda adolescente, passa bem. A avó está ansiosa para ver o rosto danetinha. O nome ainda não tinha sido escolhido. Todos os familiares davampalpites de como deveria se chamar a menina. O difícil não era escolhernome, mas convencer o namorado de Ana a assumir a paternidade. Comoa criança ia ser registrada sem o nome de um pai?

***

Cidade de Emas, interior paraibano. Uma sala de aula com mais decinqüenta alunos. Um terço deles não tem registro de nascimento.

***

Cidade do Conde, litoral sul da Paraíba. Um menino é matriculado naescola com o registro do irmão que faleceu. Sua identidade passa a ser a doirmão. Sua ficha escolar é o exemplo de uma cidadania adulterada. A crian-ça foi desrespeitada em seu principal direito: ser quem ela é.

***

22 E então, é cidadão ou cidadã? CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Os personagens das quatro histórias não se conhecem, mas estão nogrupo de milhares de brasileiros que não tiveram o direito à cidadania. Elesnem sabem, mas estão fora das estatísticas do governo, não receberãobenefícios dos programas sociais e estão vulneráveis ao trabalho infantil eao tráfico de crianças. O que eles não imaginam é que tem muita gentequerendo que esse quadro mude e trabalhando para que isso aconteça.

Uma sementinha que brotou em Pernambuco e deu certo tentavagerminar agora na Paraíba. A situação não é muito agradável. O sistema degarantia de direitos está desarticulado. Os números assustavam e os ope-radores do serviço reclamavam da falta de estímulo. Mexe, daqui, mexedali, acorda um, belisca outro, e as coisas começam a acontecer. “Deu nosjornais”, “saiu na rádio”. Os cartórios ameaçavam não abrir suas portas noDia de Mobilização Nacional pelo Registro de Nascimento Gratuito. Eagora? Agora o assunto estava na boca do povo. E é lei, não é, seu doutor?

Nos dois anos seguintes, o trabalho vai seguindo. O deputado chamaos interessados para conversar e quer saber por que a lei não está sendocumprida. Os gestores discutem ações e divulgam a campanha pelo inte-rior do Estado. É cartaz em todo canto: no posto de saúde, no trem, no ôni-bus, na igreja e até em porta de boteco. O dono do cartório veio saber comopodia participar. E a imprensa de olho em tudo.

***

Se essa história fosse uma tela, hoje estaria bem colorida, emboraainda faltem alguns retoques. Em vários locais, as mães já podem sair damaternidade com a criança registrada e os donos de cartório têm umaverba para custear o registro (e, por isso, o papel não tem que ser de piorqualidade). A Paraíba construiu um plano de trabalho para implementaroutras ações em benefício do registro civil gratuito. Com o apoio dasNações Unidas, a atuação das organizações não-governamentais e dosgestores públicos, a responsabilidade social de comunicadores e a adesão

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” E então, é cidadão ou cidadã? 23

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A cada ano no Brasil, 550 mil crian-ças ficam sem registro civil. São muitasas razões, como nos conta MariaLeonora Silva, no passeio que nos levaa fazer pela Paraíba: a cultura de espe-rar a criança “vingar”, mães que dei-xam de registrar seus filhos quando ospais relutam em reconhecer a criança,famílias que não têm recursos parachegar até os cartórios, gente que des-conhece a gratuidade da primeira cer-tidão e do registro civil para todas as crianças (lei em vigor desde 1997),cartórios que insistem em descumpriressa lei.

A taxa de sub-registro, ou seja, o nú-mero de crianças não registradas antesdo primeiro ano de vida, é de 16,4% noBrasil. Segundo dados do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), na Paraíba, em 2004, esse índi-ce foi de 20,2%. Assim como nas histó-rias de João, da menina adolescente eda sala de aula onde um terço dascrianças não tem certidão de nasci-mento, nesse mesmo ano, 15 mil crian-ças não foram registradas antes decompletar o primeiro aniversário.

Por outro lado, também como lem-bra Leonora, não só em Pernambuco,mas em todo o País, houve importan-tes avanços para a garantia do direi-to a um nome para todas as crianças.Campanhas e mutirões de registrocivil foram promovidos pelos gover-nos, pelo Ministério Público, por ONGs, prefeituras, movimentos so-ciais, organismos internacionais, comoo Fundo das Nações Unidas pelaInfância (Unicef) e por gente comum

24 E então, é cidadão ou cidadã? CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Daniela MercuryE então, é cidadão ou cidadã?

da sociedade civil, as crianças de Ana e de Maria, das suas vizinhas e detodas as paraibanas podem ser cidadãs. O menino deixou de ter o nome doirmão e agora pode ser ele mesmo, sonhar seus sonhos, viver sua vida, serquem ele é. Ou melhor, ser o que ele desejar ser.

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empenhada em fazer valer os direitosdas crianças.

No sertão maranhense, por exem-plo, o pequeno município de SantaQuitéria conseguiu registrar todos osseus cidadãos, a começar pelas meni-nas e pelos meninos. Mutirões garanti-ram o registro de famílias inteiras, dabisavó ao bebê recém-nascido.

Em todo o País, a meta para o ano2006 é reduzir para 6% o índice desub-registro civil. É uma meta impor-tante, mas o Brasil deveria realmentese comprometer a erradicar de umavez o drama da falta de registro civildas crianças.

Só assim, a tela que Leonora gosta-ria de pintar ficaria pronta, coloridacom as cores deste país imenso, rico e alegre. Uma tela em que: João per-corresse a estrada, já a caminho do

cartório, onde registraria seu filho ousua filha com alegria; na sala de aula,em Emas, todas as crianças tivessemsua certidão de nascimento guardadacom carinho por seus pais; a mãe, nohospital da capital, tivesse apoio eorientação para registrar sua filha elogo abrir um processo de reconheci-mento de paternidade; o garoto deConde exibisse orgulhoso a primeiraprova de sua cidadania, sua certidãode nascimento.

Que tela bonita pintaria a Leonora!Que cor bonita teria esse Brasil de cida-dãs e cidadãos!

Daniela Mercury é cantora, registrada nacomarca de Salvador, subdistrito de Vitória,em Salvador, Bahia, em 16 de agosto de1965, e embaixadora no Brasil do Fundo dasNações Unidas para a Infância (Unicef).

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” E então, é cidadão ou cidadã? 25

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Dizem que o Estatuto da Criança edo Adolescente (ECA) é um diplomalegal próprio de um país de PrimeiroMundo. Não é verdade. Somente umpaís como o nosso reclama uma legis-lação que tenha por escopo garantirdireitos fundamentais, como a vida, asaúde, a educação e outros que, no seuconjunto, quando concretizados, resul-tam em cidadania plena. Nos paísesonde os bens jurídicos tutelados poresses direitos já se incorporaram comnaturalidade no cotidiano das pessoas,são desnecessárias leis que sirvamcomo instrumentos de transposição damarginalidade para a cidadania. Paraessa transposição, é necessário, antesde tudo, reconhecer a existência for-mal da pessoa. Mas isso nem sempreacontece no nosso Brasil, onde pessoasnão têm sua existência legal reconhe-cida oficialmente, condição mínimapara o exercício de outros direitos.

Nossa Constituição Federal prescre-ve, em seu artigo 5º, inciso LXXVI, alí-nea “a”, que é gratuito, “para o reco-

nhecidamente pobres, na forma da lei,o registro civil de nascimento”. O queregulamenta esse direito fundamentalda pessoa humana são as Leis Federais9.265/96 e 9.534/97, que estabelecema gratuidade do registro de nascimen-to e do fornecimento da primeira certi-dão, independentemente da situaçãoeconômica de cada um, ficando a gra-tuidade das demais certidões sob acondição de declaração de pobreza.

Anteriormente a essas leis, o ECA jáprevia (no artigo 102) que qualquermedida de proteção à criança deveriaser precedida da regularização de seuregistro civil, dispondo expressamenteque “os registros e as certidões neces-sárias à regularização de que trataesse artigo são isentos de multas, cus-tas e emolumentos, gozando de abso-luta prioridade”. Como se vê, há algunsanos, o ordenamento jurídico facilita oregistro de nascimento como atonecessário ao exercício da cidadania, oque, todavia, ainda não se insere nocotidiano de todos os brasileiros.

26 E então, é cidadão ou cidadã? CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Paulo Afonso Garrido de PaulaE então, é cidadão ou cidadã?

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” E então, é cidadão ou cidadã? 27

O que Maria Leonora da Silva, daParaíba, percebeu e apresentou comosolução para os problemas narradosnas quatro histórias, é que a lei nãotransforma a realidade, por melhorque ela seja. O que provoca o câmbiosocial é a articulação da comunidade,a organização das pessoas, a forçaconjunta da reivindicação. Mais quetudo, ainda é a capacidade de indigna-ção a mola propulsora da mudança,da concretização dos direitos funda-mentais. A lei é apenas um instrumen-to. Um poderoso instrumento, masapenas uma das armas na batalhapela cidadania plena, que requer, parasua efetivação, o compromisso e aenergia das pessoas para que a leitransmude-se de declaração, de exor-

tação, de comando para algo real, pal-pável, material, alguma coisa que seinsira na vida das pessoas como reali-dade corriqueira e natural, como é teruma certidão de nascimento e, assim,afirmar-se, como João, como Maria,como José. Como disse Maria Leonorada Silva, a tela ainda reclama aindamuitos retoques. E que eles sejamdados por todos nós!

Paulo Afonso Garrido de Paula é procura-dor de justiça e membro do ConselhoSuperior do Ministério Público de SãoPaulo. É professor de direito da criança e doadolescente da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo (PUC-SP) e ex-presi-dente da Associação Brasileira de Magis-trados e Promotores de Justiça da Infânciae da Juventude (ABMP). Foi um dos inte-grantes de comissão de redação do ECA.

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28 E então, é cidadão ou cidadã? CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 3°- A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pes-soa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,por lei ou por outros, meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar odesenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dedignidade.

Art. 10 - Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicose particulares, são obrigados a:

...II - identificar o recém-nascido mediante o registro de sua impressão plantar e digital eda impressão digital da mãe, sem prejuízo de outras formas normatizadas pela autorida-de administrativa competente;...IV - fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrên-cias do parto e do desenvolvimento do neonato;...

Art. 102 - As medidas de proteção de que trata este Capítulo serão acompanhadas da regu-larização do registro civil.

Parágrafo 1°- Verificada a inexistência de registro anterior, o assento de nascimento dacriança ou adolescente será feito à vista dos elementos disponíveis, mediante requisiçãoda autoridade judiciária.Parágrafo 2°- Os registros e certidões necessárias à regularização de que trata este arti-go são isentos de multas, custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade.

Artigos doECAE então, é cidadãoou cidadã?

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UM PEQUENO MÉDICO E O GRANDE ESTATUTORosane Pacheco Pereira Gravataí - Rio Grande do Sul

Rosane é técnica de enfermagem,

enfermeira free lancer e escritora.

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Era junho ou julho, não me lembro bem... Foi uma temporada bemdifícil para nós que trabalhamos na área da saúde. Parecia que a bactéria dapneumonia e o vírus da diarréia estavam à solta por toda a pequena cidadeda grande Porto Alegre. A pediatria do hospital local já estava com seus 25leitos ocupados. A demanda de crianças era tão grande que foram coloca-dos mais dez leitos extras. De um lado, as bactérias. Do outro, os vírus. Nomeio, o pessoal da enfermagem, que circulava de máscaras e luvas emzonas restritas. Quem cuidasse dos pacientes com vírus não ficava com ospacientes com bactérias. Eram necessárias medidas de prevenção.

A emergência não estava diferente. O número de crianças era tão gran-de que deixava de ser lotação, passava a ser uma superlotação. Havia macaspor todo o corredor com crianças chorosas acompanhadas de suas mães afli-tas. Nós da enfermagem não sabíamos para onde ir nem qual queixa aten-der primeiro. Alguns funcionários foram chamados em casa, pois, naqueledia em especial, havia uma quantidade muito maior de crianças doentes quede funcionários disponíveis. Não tínhamos nem mesmo material suficientepara atender todos que, naquela porta, batessem vomitando, febris ou con-vulsionando. Era uma verdadeira guerra contra o vírus e a bactéria.

O médico de plantão pediu ao rapaz da recepção para informar a quemprocurasse o guichê que o atendimento tinha sido suspenso até diminuir o número de pacientes na emergência. Não tínhamos realmente condi-ções físicas de atender mais ninguém. Foi nesse momento, em que o mé-dico avisava o rapaz da recepção, que ouvimos a sirene da ambulância aproximar-se do hospital. Tenho certeza de que todos que ali estavam senti-ram o coração apertar. Sem perceber, minha colega soltou um suspiro alto:

– Tomara que não seja nenhuma criança.Era a verdadeira visão de um hospital em guerra. E não deixava de ser

uma guerra! A aflição de minha colega era a de todos nós. Infelizmente, erauma criança. Sem se dirigir ao guichê, a auxiliar que trazia a mãe e a crian-ça entrou porta adentro com o tubo de oxigênio na mão e o soro na outra,avisando:

30 Um pequeno médico e o grande Estatuto CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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– É uma emergência!Eu e minha colega olhamos uma para a outra e perguntamos mutua-

mente:– Onde a colocaremos?Quando o médico plantonista abriu a porta do consultório, mostra-

mos com um gesto a maca. O estado da criança que era trazida naquelamanhã de guerra era muito triste. O médico examinou o menino e, ligeira-mente, foi montada uma pequena unidade de terapia intensiva (UTI)naquela minúscula sala. A criança precisava ser transferida porque nonosso hospital não havia UTI. Depois que acomodou a criança, o médicopediu à enfermeira uma auxiliar somente para ela. Eis que eu fui designa-da a ficar com o garotinho, que precisava de cuidados constantes.Qualquer descuido poderia ser fatal. O médico foi para a recepção telefo-nar para todos os hospitais de Porto Alegre e da Grande Porto Alegre, masem nenhum havia leitos disponíveis. A mãe da criança chorava desespera-damente, mas não deixava de acariciar a mão do pequenino, que pareciaestar dando seus últimos respiros.

A manhã passou voando. Tínhamos agora instalada outra guerra,desta vez contra o tempo. Às 13 horas trocou o plantão. Entrou um médicobem novinho. Tinha aparência de um jovem recém-formado. A mãe dacriança aproximou-se de mim e perguntou baixinho:

– Este é o médico? – Sim – respondi enquanto ajeitava as sondas do paciente.– Mas ele já é formado?O médico, que examinava toda a ficha da criança, falou delicadamente:– Sou formado, sim, mãe. Não se preocupe, teu filho está em boas

mãos.– É que o senhor é tão novo...– Mas o que vou fazer não precisa nem de faculdade de medicina –

respondeu ele, dirigindo-se ao telefone.A mãe olhou-me buscando uma resposta e eu também não lhe soube

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Um pequeno médico e o grande Estatuto 31

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dizer. Ficamos apenas esperando a atitude daquele jovem doutor, que a pouca gente convenceria ser médico. Ele simplesmente pediu uma liga-ção para a secretaria de saúde do município e exigiu, em tom autoritá-rio (quem estivesse do outro lado da linha pensaria ser um homem alto,forte e muito “brabo”), falar com o secretário. Levou alguns instantes paraeste ser localizado. Ainda na linha, o jovem doutor mais uma vez identifi-cou-se e expôs ao secretário a situação caótica em que se encontrava aemergência do hospital e o caso da criança que morreria se não conseguis-se vaga numa UTI. Depois de alguns segundos para respirar, ele disse comsegurança:

– Preciso, eu, lembrar o senhor do Estatuto da Criança e do Adoles-cente, que diz claramente que toda criança tem o direito à saúde e ao aten-dimento especializado caso necessite? Está na lei. Mas isso – disse ele edu-cadamente, piscando os olhos para a mãe que assistia a tudo perplexa – eunão preciso informar, não é? A criança necessita de uma UTI em uma hora,caso contrário o município e o estado serão os responsáveis pelo seu óbito.

O jovem doutor escutou mais alguns segundos. Desligou o telefone edisse para a mãe:

– Não se preocupe, mãe. Agora tudo será resolvido.Minutos mais tarde, recebíamos a notícia de que um leito estava nos

esperando no Hospital Santo Antônio. A mãe, num instinto, abraçou emlágrimas o pequeno e jovem médico. A criança foi imediatamente transfe-rida e, meses mais tarde, retornou ao hospital saudável para agradecer aojovem e inteligente doutor. Assim, uma vida foi salva graças ao médico quefez valer o Estatuto que protegia a criança.

32 Um pequeno médico e o grande Estatuto CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Quando terminei de ler o belíssimotexto de Rosane Pacheco Pereira, nãocontive minha profunda admiraçãopela bravura do jovem médico gaúcho.Diante de um problema fora de seualcance como profissional – a falta deestrutura do hospital em um surto depneumonia e virose –, ele adotou apostura de um verdadeiro cidadão que,como tal, tem o direito e o dever deexigir o respeito do Estado à vida deseu pequeno paciente.

O juramento dos profissionais damedicina é salvar vidas. Este jovemmédico sabe disso e sabe que parasalvá-las nem sempre o bisturi é sufi-ciente. O melhor instrumento, além daqualidade da intervenção, é cultivarsempre o sentido de humanidade, deamor ao próximo, de solidariedade, dedever cidadão. Entre os instrumentos àsua disposição, optou pelo único quenaquele momento salvaria a vida dacriança: a Lei.

Como médico consciencioso de seudever, ele conhecia bem o Estatuto da

Criança e do Adolescente, especialmen-te os artigos 7 e 11, que regulamentam odireito à vida e à saúde da criança e doadolescente mediante a efetivação depolíticas sociais públicas de acesso uni-versal e igualitário. Seu conhecimentosobre os direitos assegurados peloEstado foi a arma que utilizou para lu-tar pela sobrevivência daquela criança.

É muito triste que um cidadão preci-se utilizar a Lei como ameaça para serouvido. É vergonhoso ter de informarao seu próprio governo sobre os direi-tos de uma criança. Felizmente, milha-res de pessoas como este médico estãocontribuindo, em seu dia-a-dia, paramudar esta realidade. São profissio-nais e, acima de tudo, seres humanosque devem servir de exemplo paratoda a sociedade.

Entre essas pessoas admiráveis, estáa técnica de enfermagem Rosane,autora deste texto, mulher de imensasensibilidade, pois soube valorizar,naquele hospital tumultuado, o esfor-ço de um jovem médico para salvar a

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Um pequeno médico e o grande Estatuto 33

Zilda ArnsUm pequeno médico e o grande Estatuto

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vida dessa criança. “Mais uma de cen-tenas que chegam todos os dias”,diriam profissionais já calejados, anes-tesiados pelo trabalho incessante enem sempre reconhecido. Rosane, aocontrário, aguça seu senso humanitá-rio a cada criança que vê chegar aohospital precisando de seus cuidados.E por ter tanta sensibilidade é queidentificou, no corre-corre do hospital,uma história de valor inestimável,

que merece ser propagada sob a formade belas palavras.

Zilda Arns Neumann é médica pediatra esanitarista, fundadora e coordenadoranacional da Pastoral da Criança – indicadaquatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz – e daPastoral da Pessoa Idosa. Representa aConfederação Nacional dos Bispos do Brasilno Conselho Nacional de Saúde e ganhou oprêmio “Heroína da Saúde Pública dasAméricas”, da Organização Panamericanade Saúde (Opas), em 2002.

34 Um pequeno médico e o grande Estatuto CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 4° - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público asse-gurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimen-tação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respei-to, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo Único - A garantia de prioridade compreende:a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;b) precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção

à infância e à juventude.

Art. 7° - A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efeti-vação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio eharmonioso, em condições dignas de existência.

Art. 11 - É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por inter-médio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e ser-viços para promoção, proteção e recuperação da saúde.

...

Artigos doECAUm pequenomédico e o grandeEstatuto

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TOCANDO EM FRENTE

Iponina Lubas SalesAnastácio - Mato Grosso do Sul

Iponina é assistente socialcom especialização em

educação inclusiva, atuana Associação Pestalozzi e

é membro do ConselhoMunicipal dos Direitos daCriança e do Adolescente

de Aquidauana.

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Dezembro de 2005. Nos céus de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul,pipocavam fogos de artifício, festa de luzes, cores e sons. As pessoas come-moravam felizes o encerramento daquele ano e os projetos para o ano de2006 que se anunciava. Muita gente nas ruas, carros velozes que iam evinham, risos e cheiro de comida no ar, comida gostosa.

Bia, uma garotinha de dez anos, olhava encantada as luzes dos rojões,mas era só um brilho que se apagava logo, não era como sua fome, que nãose apagava nunca, que fazia doer seu estômago. Olhou para Guto, o irmãode oito anos, e percebeu que ele não se interessava pela festa que aconte-cia ao seu redor porque também tinha fome, assim como seu irmão Rafael,de 12 anos, e sua mãe Zilda. Eles pediam comida aos transeuntes, até queuma alma bondosa atendeu-lhes. Comeram ali mesmo, sentados no chão.Assim, fechavam-se as cortinas do ano de 2005 na vida da família de Bia.Sem aplausos, sem presentes e sem sonhos, rumaram para casa para dor-mir e acordar na mesma rotina no ano de 2006. Viviam nos arredores darodoviária de Aquidauana, pedindo esmolas para se alimentar, mas, apesardos festejos de final de ano, do Natal, do menino Jesus, as manifestaçõesde caridade eram pequenas. A fome era contínua e dolorosa.

Bia nasceu em Cuiabá, no Mato Grosso. Lá, ela, Guto e Rafael viviamcom a mãe, o padrasto Antônio, o irmão William, de 15 anos, e a irmãMarilin, de 13. Mudavam constantemente de uma cidade para outra e em cada lugar iam perdendo um pouco de si mesmos e de seus entes que-ridos, como o William, que ficou em Cuiabá. Quando moravam emMiranda, no Mato Grosso do Sul, sua irmã Marilin casou-se com o irmãode seu padrasto, que reside próximo à aldeia indígena Pardal. E, assim,Bia deixou para trás mais um membro de sua família.

Em Miranda, a menina estudava no Centro de Apoio Integral àCriança (Caic), onde foi alfabetizada e tomou gosto pelos estudos, mas, emrazão da vida desregrada da família e dos vícios de sua mãe, faltava muitoàs aulas e, com a mudança para Aquidauana, parou de estudar. Durante odia, a família mendigava pelas ruas da cidade e à noite dormiam em uma

36 Tocando em frente CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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casa abandonada que invadiram. A mãe, sempre bêbada, não lhes propor-cionava proteção e nem cuidados. Cederam-lhes um barraco de duaspeças, com paredes de madeira e cobertura de telhas de amianto, numaárea invadida na cidade vizinha de Anastácio. Dona Zilda e o companheirodeixavam as duas crianças em casa e passavam o dia e parte da noiteperambulando e pedindo pelas ruas. Rafael não aparecia mais em casa,preferiu ficar em Aquidauana. Dos cinco irmãos, permaneciam juntossomente Bia e Guto.

Quando chegava em casa, quase sempre embriagada, dona Zilda dei-tava-se sobre um banco no pátio e lá permanecia dormindo até que che-gasse a noite, quando então Bia, que tomou para si a responsabilidade dafamília, chamava-a e conduzia-a para dentro do barraco para dormir. Umdia, mãe e padrasto não voltaram para casa, Bia e Guto passaram a noitesozinhos. Ao amanhecer, sem nenhum alimento ou dinheiro em casa,foram até a casa de um vizinho e pediram café da manhã. Depois de ali-mentados, aguardaram pela mãe até às 13 horas, mas ela não apareceu.Então, Bia disse a Guto que iriam descer até o centro da cidade. Assim,puseram-se a caminhar, atravessaram a rodovia, passaram por um postode combustível que sabiam que a mãe freqüentava, não a encontraram econtinuaram a procura. Após caminhar aproximadamente quatro quilôme-tros, chegaram à rodoviária da cidade. Bia, então, tomou uma decisão: per-guntou a algumas pessoas que estavam por ali onde ficava o ConselhoTutelar, e continuou firme, tocando em frente. Chegando ao ConselhoTutelar de Anastácio, Bia foi atendida pela conselheira Miriam, que imedia-tamente solicitou abrigo de ambos na Associação Mãos Amigas (AMA),que tem sob sua responsabilidade 21 crianças e adolescentes em situaçãode risco social e abandono.

Morena, cabelos curtíssimos disfarçados pelo boné, rosto muito sério,amadurecido e sem sorriso, Bia surpreendeu a assistente social durante atriagem quando afirmou ter sido sua a iniciativa de procurar o ConselhoTutelar para mudar sua vida e a de seu irmão. Indagada como sabia que, ao

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Tocando em frente 37

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procurar o órgão, seria atendida e protegida, Bia respondeu seguramenteque, nas escolas onde estudou, sempre lhe falavam do Conselho Tutelar.Quando morava em Miranda, já havia procurado o Conselho daquela cida-de por não suportar mais a situação em que viviam. Por causa da embria-guez constante da mãe, um dia ela falou:

– Mãe, eu e o Guto não vamos mais morar com a senhora, você só vivebebendo e não cuida da gente.

Então, Bia ligou para o Conselho. Quando eles apareceram, a mãe con-versou, pediu uma nova oportunidade, prometeu que mudaria seu com-portamento e que cuidaria dos filhos, o que não cumpriu. Na cidade deAquidauana, manteve-se mendigando e bebendo, e, em Anastácio, optoupor abandoná-los. Não ficou claro se nas escolas onde Bia estudou falavamsobre o Conselho Tutelar para todas as crianças ou apenas para ela, por suaaparência de maus-tratos, fome, abandono e desamparo. Assim, consta-tou-se que foi de suma importância na vida desses irmãos o conhecimen-to sobre esse dispositivo de proteção e amparo à criança e ao adolescente.

Hoje, Bia está abrigada e tem garantidos os direitos básicos de ali-mentação, educação, saúde, lazer e proteção. Busca-se uma família substi-tuta que possa oferecer a Bia e a Guto a acolhida, o afeto, o carinho e a pro-teção que lhes foram negados nesses primeiros anos de suas tenras vidi-nhas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deu voz e vez a essespequenos cidadãos, que, conscientes de seus direitos, fizeram valer a letrada lei, não permitindo que o ECA fosse apenas uma concha vazia, mas umeixo estruturante para transformações efetivas na realidade de muitospequeninos que perambulam pelas festas de fim de ano da vida! Enfim,feliz 2006, Bia!

38 Tocando em frente CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Para fundamentar a formulação deuma Declaração Universal dos Direitosda Criança e, posteriormente, de umaConvenção Internacional que se trans-formasse em legislação interna naordem jurídica dos países membros daOrganização das Nações Unidas (ONU),foi criado o conceito de “pessoa emcondição peculiar de desenvolvimento”.

O que justifica, ou melhor, funda-menta a existência de tal conceito? Pararesponder a esta questão, duas ordensde argumentos foram construídas. Aprimeira baseada no valor da criança:

1. A criança é um ser humano com-pleto em qualquer etapa de seu desen-volvimento e, portanto, digna de aces-

so a todos os direitos humanos aplicá-veis em cada fase de sua existência. Osdireitos de casar, votar, trabalhar ecelebrar contratos são próprios domundo adulto, não se aplicam àscrianças. Elas são, no entanto, dignas(merecedoras) de acesso aos direitosrelativos à sua sobrevivência, ao seudesenvolvimento e à sua integrida-de física, psicológica e moral. Este é ochamado valor intrínseco da infanto-adolescência;

2. O segundo é o valor projetivo dapopulação infanto-juvenil. Cada crian-ça ou adolescente representa a conti-nuidade de sua família, do seu povo eda espécie humana.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Tocando em frente 39

Antonio Carlos Gomes de CostaTocando em frente

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A segunda ordem de argumentosestá relacionada à vulnerabilidade daspessoas em condições peculiares dedesenvolvimento:

1. Crianças e adolescentes freqüen-temente não conhecem seus direitos;

2. Crianças e adolescentes não dis-põem de meios para satisfazer por simesmos suas necessidades básicas;

3. Crianças e adolescentes não têmcondições jurídicas e políticas de fazervaler por si mesmos os seus direitosperante a família, as políticas públicas,as organizações sociais e o sistema deadministração da justiça.

Por tudo isso, os autores do ECA con-ceberam a criação do Conselho Tutelarpara zelar e velar pelos direitos dacriança e do adolescente, funcionandopara eles como a Fundação de Proteçãoe Defesa do Consumidor (Procon) fun-ciona em relação aos direitos do consu-midor, como o Instituto Brasileiro doMeio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveis (Ibama), em relação aosdireitos ambientais ou como as delega-cias da mulher em relação à violêncianas relações entre homem e mulher, ouseja, um órgão garantidor de direitos.

A novidade do caso de Bia é que elenos mostra a força do ECA quando

assumido pela escola como parte daeducação da criança e do adolescentepara a cidadania. Segundo o doutorAntonio Fernando do Amaral e Silva, omaior dos redatores jurídicos do ECA,“o Estatuto é a Constituição da popu-lação infanto-juvenil brasileira”.

Bia mostrou-nos que isso é verdade.Ela se empoderou pelo conhecimentodo ECA recebido na escola e pôs as con-quistas do estado democrático dedireito para funcionar em favor de simesma e dos seus irmãos. Bia é umexemplo límpido e maduro do que é acriança e o adolescente exercer deforma protagônica o papel de sujeitode direitos, dirigindo-se a um ConselhoTutelar ciente de seus deveres e suasobrigações para com ela.

Este “causo” é uma aula de cidada-nia e Bia foi a nossa professora.

Obrigado, Bia, pela lição!

Antonio Carlos Gomes de Costa é pedago-go, presidente da Fundação Antônio Carlose Maria José Gomes da Costa e da empresade consultoria Modus Faciende. Foi oficialde projetos do Fundo das Nações Unidaspara a Infância (Unicef) e da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT) e participoudo grupo de redação do ECA.

40 Tocando em frente CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Tocando em frente 41

Art. 22 - Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores,cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determi-nações judiciais.

Art. 98 - As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que osdireitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;III - em razão de sua conduta.

Art. 101 - Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competentepoderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamen-tal;...VII - abrigo em entidade;VIII - colocação em família substituta.Parágrafo Único - O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma detransição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade.

Art. 136 - São atribuições do Conselho Tutelar:I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplican-do as medidas previstas no art. 101, I a VII;...

Artigos doECA

Tocando emfrente

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UMA AJUDA PRECIOSA E PRECISA

Augusto RussiniSanta Maria - Rio Grande do Sul

Augusto é professor deterceira e quinta sériesdo ensino fundamentalda Escola Marista SantaMarta.

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Ainda acadêmico do curso de história no ano de 2002, resolvi visitaruma pequena cascata no interior, localizada na cidade de Silveira Martins,a convite de minha namorada, que já conhecia a região. Chegamos e fomosconversar com o dono do sítio onde fica a cascata. No decorrer da conver-sa, um homem, que trabalhava como jornaleiro nas propriedades ruraispróximas, aproximou-se com seu filho.

A criança, muito curiosa, foi ao nosso encontro e começou a nos ques-tionar sobre os mais diversos assuntos. Ficamos surpresos, pois o meninode nove anos nunca tinha saído do meio rural e muito menos freqüentadouma escola. Emocionado, ele recordou que não lembrava da mãe, falecidaanos antes. Diante desse fato, sentei-me com o pai, um senhor aparentan-do cerca de 40 anos, e expliquei que seu filho tinha o direito de freqüentaruma escola. Analfabeto e rude, não me deu ouvidos, justificando não sernecessário encaminhar o filho à escola, pois esta não mudaria a difícilsituação em que se encontravam. Preocupado, continuei a conversar comeste pai a respeito da importância de colocar o filho numa escola, que,além de uma obrigação sua, poderia transformar suas vidas para melhor.

Retornei à minha casa pensativo e angustiado, lembrando-me doEstatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, sobretudo, do destino que opai traçara para seu filho. Incomodado com a sorte do garoto, relatei o fatopara uma professora da minha faculdade, que, de posse do ECA, me expli-cou o que deveria fazer. Novamente, no fim de semana seguinte, tentei dia-logar com o pai e, para minha surpresa, ele pediu ajuda para encaminharseu único filho à escola. Tomado de enorme alegria, fomos a uma escolarural próxima e realizamos a matrícula do menino.

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Como todo texto provido de ummínimo de complexidade positiva, ahistória admite múltiplas leituras. Detodas elas, elegi aquela que me permi-tiu colocar a escola numa perspectivahistórica.

Na história humana, a escola pode-ria não ter sido, mas, contudo, foi. Emoutras palavras, a escola, como insti-tuição histórica e contingente, consti-tui-se em trunfo da vontade de igual-dade e superação do ser humano. Além

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Sempre que possível, vou visitar a cascata por ser um lugar belo e per-gunto para o dono do sítio sobre a criança. Ele relatou-me que o meninoestá cursando a terceira série do ensino fundamental, no município deSilveira Martins, recebe o Bolsa Escola do Governo Federal, além do trans-porte até a escola. Ao ver a situação de melhoria do pai e da criança, pas-sei incessantemente a acreditar na minha profissão de educador, forman-do cidadãos dignos para a nossa sociedade e, conseqüentemente, melho-rando a situação do Brasil, um país que, acredito, possa ser um dia umagrande potência mundial, embora a história relate-nos um passado marca-do por injustiças absurdas, impregnadas no seio das classes dominantes.

Penso que todas as áreas do conhecimento são importantíssimas edevem trabalhar de forma interdisciplinar para atingirmos a igualdadesocial no País. Esta experiência relatada mudou tanto a situação daquelemenino, fadado a uma vida de privações e excluído do exercício da cidada-nia, quanto a minha, pois passei a acreditar mais no meu importante papelde educador perante a sociedade.

Emílio García Méndez *Uma ajuda preciosa e precisa

* Texto traduzido porCamila de Souza

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disso, a história relatada por Augustopermite compreender o círculo virtuo-so escola-educação. Todos aqueles quepassaram pela escola consideram ina-ceitável sua ausência. Para o adulto dahistória, é inconcebível pensar a infân-cia sem a escola. Para ele, é imprescin-dível não só a passagem pela escola,como também a conservação da suamemória. Para atender a todos, a esco-la deve continuar vivendo dentro denós por toda a vida.

Também a infância, assim como aescola, constitui-se no resultado de umprocesso histórico de construção social.Phillipe Aries foi o grande historiadorfrancês que, no século XX, mais preci-samente na década de 60, revolucio-nou os estudos sobre a infância. Eledemonstrou que a infância, tal como aconcebemos hoje, é uma invenção doséculo XVII. Os acontecimentos ante-riores e posteriores a esse período per-mitem entender plenamente o proces-so. Então, com base na descoberta dainfância como uma categoria diferen-ciada dos adultos (resultado de umarevolução dos sentimentos), a escolatorna-se o único mecanismo capaz dereproduzir de forma ampliada essacategoria social. Em outras palavras, a

escola converte-se numa verdadeira“fábrica” de crianças.

Mas nem todos aqueles que fazemparte dessa nova categoria social pos-suem recursos (no sentido amplo dapalavra) tanto para entrar quantopara permanecer na instituição esco-lar. Assim, os sujeitos da “infância-escola” transformam-se em crianças eadolescentes, enquanto os sujeitos da“infância-sem-escola” transformam-senos outros, nos excluídos, nos margina-lizados: nos “menores”.

Apenas a escola tem a capacidadede universalizar a infância. Paradoxal-mente, para conservar a escola na rea-lidade, também haveremos de conser-vá-la e preservá-la na memória.

Temos, então, não só o direito, co-mo também a obrigação, de quereruma escola melhor para todos. Paraisso, é imprescindível recordar quequalquer alternativa à escola repre-senta, na verdade, uma alternativa àinfância.

Emílio García Méndez é deputado daCâmara Federal da Argentina, representan-te da Cidade Autônoma de Buenos Aires, foioficial de projetos do Fundo das NaçõesUnidas para a Infância (Unicef) no Brasil e éautor de diversos livros sobre o ECA.

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46 Uma ajuda preciosa e precisa CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 53 - A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvi-mento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho,assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;II - direito de ser respeitado por seus educadores;III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolaressuperiores;IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;V - acesso a escola pública e gratuita próxima de sua residência.Parágrafo Único - É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico,bem como participar da definição das propostas educacionais.

Art. 55 - Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rederegular de ensino.

Art. 70 - É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da crian-ça e do adolescente.

Artigos doECAUma ajuda preciosa e precisa

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SONHO DE BAILARINA

Vânia Farias de Queiroz Rio de Janeiro - Rio de Janeiro

Vânia é mestre de balé,gerente de projetos doBallet de Santa Teresa

e conselheira municipaldos direitos da criança

e do adolescente do Rio de Janeiro.

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Numa tarde fria do mês de maio de 1999, no corredor de uma escolaprimária municipal do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, fui sur-preendida pela pergunta de Teresa, então com quatro anos, moradora doMorro da Coroa:

– Tia, a senhora é professora de balé?– Sou, sim – respondi.– Então quando é que a senhora vai dar aula pra mim?Desconcertada e absolutamente despreparada diante da questão posta,

não respondi. Contornei a situação, mas saí de lá inquieta com a pergunta.Não me lembro exatamente quando decidi ser bailarina, acho que por

volta dos quatro ou cinco anos de idade. Da janela do trabalho de minhamãe, dava para ver uma academia de dança e todas as suas aulas. Eu ado-rava e ficava observando as aulas pela janela. Pedi à minha mãe que mecolocasse no balé: não foi tão fácil, mas consegui. E nunca mais abandoneimeu sonho.

Passei por algumas academias, fiz vários cursos de especialização,graduei-me como mestre de balé clássico e, depois de 11 anos dando aulaspara crianças e adolescentes de classe média e alta, fui surpreendida pelapergunta de Teresa.

Quando fui interpelada por esta menina, já havia me mudado para obairro de Santa Teresa com minha família. Uma coisa sempre me chamouatenção no bairro: a estreita proximidade geográfica de suas ruas tradicio-nais com as favelas. Também me chamou a atenção a grande distânciasociocultural dos moradores das duas áreas geográficas tão próximas.Num bairro famoso pela efervescência cultural, a população das favelasera completamente segregada dos espaços e das manifestações culturais.

A pergunta de Teresa me fez retornar à minha própria história, quan-do, aos cinco anos, decidi que queria ser bailarina e, graças a Deus, tiveminha mãe, que não mediu esforços para que eu realizasse meu sonho.Mas será que a pequena Teresa teria a mesma sorte? Afinal, é muito caro oestudo do balé clássico no Brasil.

48 Sonho de bailarina CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Ao ser surpreendida pela pergunta de Teresa, percebi que a menina per-tencia a uma comunidade marginalizada. Nos dias seguintes, fui indagandopelo bairro de onde era a tal menininha e logo fiquei sabendo que era mora-dora do Morro da Coroa. Nunca em minha vida havia entrado numa favela,mas tomei coragem e fui conhecer o Morro. Procurei a então presidente daAssociação de Moradores do Morro da Coroa e me ofereci para começar umtrabalho de balé clássico na comunidade. Ela adorou a idéia, cedeu um espa-ço no subsolo da sede da Associação e divulgou as aulas.

No primeiro dia de aula, foram 12 crianças, e entre elas estava a pe-quena Teresa. Não foi fácil trabalhar ali. A sala era bastante precária: asjanelas não tinham vidro; quando chovia, ficava inundada; algumas cadei-ras quebradas faziam as vezes de barras; e, para completar o quadro, haviauma vala passando dentro da sala, que era coberta precariamente portábuas. Isso, sem falar na violência, que era, e continua sendo, um capítuloà parte. Mesmo assim, a vontade e a determinação de todos foram maisfortes que os empecilhos e as aulas continuaram.

Em três meses de trabalho, já eram 32 alunas. O espaço não nos com-portava, conseguimos outro no centro cultural do bairro. Era uma pequenasala, sem luz, com o piso precário. Entretanto, com o trabalho voluntário dospais e meus recursos financeiros, reformamos o local e iniciamos as aulas.Já eram 40 alunos. Teresa, com cinco anos, nos acompanhou na mudança.Seu sonho de ser bailarina esmoreceu um pouco, pois a pequena tinha quecaminhar um percurso de 20 minutos para chegar às aulas, mas sua mãenão a deixou desistir, e, entre choros e pirraças, Teresa não faltava às aulas.

Depois de dois anos de trabalho voluntário, a situação começou a secomplicar, pois fui largando os empregos que tinha em academias para mededicar exclusivamente àquelas crianças. Foi aí que meu marido viu umapropaganda lançando o concurso de projetos para patrocínio da Petrobras.Imediatamente, ele sugeriu que registrássemos o trabalho como umaONG, a fim de, quem sabe, conseguirmos um patrocínio para atender àdemanda de alunos, que não parava de crescer. Alguns amigos acreditaram

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na idéia e, assim, surgiu o Ballet de Santa Teresa. Não conseguimos o talpatrocínio, mas a instituição ganhou força e amigos.

Hoje, graças ao sonho de Teresa, atendemos 150 crianças e adolescen-tes dos três anos e meio aos 17 anos de idade, com um curso de complemen-tação e embasamento cultural, em que cada aluno permanece diariamenteem horário complementar ao escolar e cursa 12 disciplinas diferentes. Alémdisso, mantemos atendimento familiar com uma equipe de assistentessociais e psicólogos, além de oficinas de artesanato para mães e parentesdos alunos. Tudo isso é realizado graças ao trabalho voluntário de brasilei-ros e estrangeiros que acreditam neste sonho. Em sete anos de trabalho,não tivemos um único caso de gravidez na adolescência. Nossos alunos fre-qüentam com sucesso a escola formal, e estamos firmes no propósito demelhorar, por meio da educação, a vida das famílias atendidas.

Muita coisa evoluiu nesse período: tornei-me conselheira municipaldos direitos da criança e do adolescente e passei a fazer vários cursos sobreo terceiro setor. Nossa esperança é de que possamos transformar a tecno-logia social do Ballet de Santa Teresa em política pública para que maiscrianças e adolescentes tenham acesso livre à cultura e à educação.

Teresa continua conosco, está com 12 anos e, mais que uma bailarina,já começa a se destacar como liderança comunitária. Em 2005, ela partici-pou como uma das delegadas representantes do nosso Estado na VIConferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Eu, que até então não havia sequer pensado em realizar um trabalhovoluntário, mudei os rumos de minha vida e fundei uma ONG para realizaro sonho de uma menina. Valeu a pena!

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A experiência com arte-educaçãono Brasil tem demonstrado o enormepotencial criativo do brasileiro. Abrir asvias de acesso do jovem à cultura,levando-o a um relacionamento estrei-to com as diferentes linguagens artísti-cas, é o caminho que estrategicamenteo ajudará a desenvolver suas potencia-lidades intelectuais. O ensino em arte-educação anda de mãos dadas com oensino formal.

No Brasil, em comparação com aexperiência de outros países, surpreen-dentemente, somam-se hoje em diaações bastante sólidas em arte-educa-ção desenvolvidas por ONGs. Essasações vão desde específicas interven-ções assistenciais que estimulam ojovem a novos interesses e podem ocu-par seu lazer de forma mais diversifica-da e ativa, até ações que desenvolvemcursos eficazes na capacitação de umfuturo profissional de dança ou música.

A trajetória de Vânia Farias iniciou-se com o legítimo desejo de ensinarbalé clássico a crianças e jovens. E foi a

partir do exercício diário, diante dasdificuldades do ensino, da abertura deum novo campo de possibilidades e dainquietação dos jovens, que a professo-ra lutou para os organizar tanto pos-turalmente quanto na expressividadedos gestos.

Certamente, foi a resposta que Vâ-nia Farias obteve da expressão de seusalunos, associada à compreensão dacomunidade, que levou à formação da Escola de Ballet de Santa Teresa,abrindo mais um espaço para a arte ea educação.

No meu entendimento, as coisaspodem e devem assim caminhar: o pro-fessor com sonhos e desejos varonisinicia o ensino de arte, que, de algumaforma, já traz significado à sua própriavida. Seguindo este caminho, as ONGspoderiam oferecer diversos cursos quecapacitem o jovem a um futuro pro-fissional na performance artística,ampliando o entendimento do mundoque os cerca. Num segundo momento,isso possibilita que cada um encontre

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Ivaldo BertazzoSonho de bailarina

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sua vocação na diversidade das profis-sões existentes.

No futuro, ou melhor, num futuropróximo, espero que ações como a deVânia Farias de Queiroz consigam se somar ao ensino público no Brasil.São essas ações, integradas a muitasoutras, que aos poucos desenvolverãoum diálogo real entre a educação for-mal e a informal, a arte e a sociedade,

mostrando diferentes níveis de apren-dizado e democratização do acesso àcultura para todos.

Ivaldo Bertazzo é coreógrafo e educadorcorporal, idealizador do método de Reedu-cação do Movimento e criador da Escola deReeducação do Movimento. Entre os proje-tos comunitários por ele desenvolvidos,destacam-se o Dança das Marés e o DançaComunidade.

52 Sonho de bailarina CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 58 - No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricospróprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade decriação e o acesso às fontes de cultura.

Art. 59 - Os Municípios, com apoio dos Estados e da União, estimularão e facilitarão a desti-nação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas paraa infância e a juventude.

Art. 71 - A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diver-sões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa emdesenvolvimento.

Artigos doECASonho de bailarina

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TRANSFORMAÇÃO

José Valmir Gomes Palhano - Ceará

José Valmir é estudantede história da Faculdade

de Filosofia DomAureliano Matos

(Fafidam), em Limoeirodo Norte (CE),

conselheiro tutelar emsegundo mandato na

cidade de Palhano efuncionário público

municipal atualmenteafastado.

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Vamos conhecer a história do Zeca, um menino que, embora tenhapassado por muitas dificuldades, nunca deixou de acreditar em seus so-nhos. Morava numa linda cidade do interior do Ceará chamada Palhano, quetem esse nome em homenagem ao seu primeiro morador, José Palhano, etambém por lembrar o artesanato realizado pelas mulheres da comunida-de, que usam as palhas das carnaubeiras para fazer bolsas e chapéus.

Zeca adorava caminhar entre os carnaubais, abundantes às margensdos rios da região. Em suas andanças, escutando a algazarra dos sabiás,graúnas e cabeças-fita, ia recolhendo os talos que encontrava para depoisfazer cavalinhos. Gostava da carnaúba por se tratar de uma palmeira mui-to bonita que cresce bem alta, a ponto de quase alcançar as nuvens, fazen-do lembrar a história João e o pé de feijão. Uma planta arretada que conse-gue resistir aos mais longos períodos de estiagem. Em alguns momentos,Zeca também teve que ser resistente como a carnaúba e encontrar alentono solo às vezes árido da vida.

Logo depois do seu nascimento, Maria, sua mãe, que sozinha já bata-lhava para cuidar de quatro filhos, tendo muitas vezes que pedir esmolaspara alimentá-los, decidiu deixá-lo na porta de alguma família que pudessecriá-lo. Desse modo, quando Zeca tinha apenas 16 dias de vida, Maria despe-dia-se dele às portas do casarão da família Lima. Era uma fria noite sertane-ja, iluminada apenas pelo cintilar das estrelas e dos vaga-lumes.

Fim da década de 1970: tempos difíceis, em que os direitos básicosdos brasileiros não eram assegurados e crianças e adolescentes pobres,a exemplo dos filhos de Maria, eram as principais vítimas. Meninos e me-ninas a quem o País concedeu o indigno status de “menores”, ao aprovar uma lei baseada no princípio da situação irregular, o Código de Menores de 1979.

Zeca foi adotado e teve direito a uma certidão de nascimento, docu-mento que não era assegurado a muitas crianças de sua época. Amado portodos da família, aprendeu os valores que uma convivência familiar saudá-vel transmite. Adorava os pratos de comidas típicas feitos por sua mãe. Seu

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pai, que era carpinteiro, ensinou-o a fazer alguns brinquedos de madeira,como cavalinhos de talo. Gostava de ouvir as histórias de trancoso que suaavó contava.

As cores alegres da infância de Zeca perderam o colorido, assim comoas paisagens secas do sertão quando a chuva não vem. Quando ele tinhadez anos, sentiu a dor da morte da mãe e a ausência de seu pai, que foimorar em Fortaleza, falecendo alguns anos depois. Zeca, que não queria dei-xar sua cidade, optou por ficar com a avó. As dificuldades financeiras seacentuaram, e, aos 11 anos, começou a trabalhar prematuramente numa dasolarias da cidade, tendo que largar seus cavalinhos de talo.

Acordava às 4 horas da madrugada para, em dupla, espalhar as gradesrepletas de telhas no estaleiro. Seus braços esqueléticos quase não supor-tavam tanto peso. Em seguida, prosseguia até às 11 horas realizando diver-sos serviços (colocar barro nas máquinas, limpar os fornos etc.) na cansa-tiva rotina do trabalho na olaria. Acidentes eram freqüentes e Zeca viualguns de seus colegas perderem, além da infância, mão e braço nas má-quinas. À tarde, ia para a escola, mas, enfadado, sentindo muitas dores nascostas e com sono, tinha pouca disposição para as atividades. Quase largouos estudos, a sina de muitos meninos daquela época.

Era o ano de 1987, e o suor que escorria da face de Zeca durante o tra-balho na olaria misturava-se ao suor dos rostos dos militantes da causa dacriança no Brasil, engajados nas lutas por direitos que o período pré-cons-tituinte motivava. Em 1988, foi aprovada a nova Constituição brasileira,que, em seu artigo 227, trouxe a grande conquista dos direitos humanos demeninos. Em 1990, viria a regulamentação desse dispositivo com a aprova-ção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inaugurando um novotempo, em que família, sociedade e Estado são responsáveis pela garantiada proteção integral e da prioridade absoluta a todas as crianças e adoles-centes brasileiros.

A história de Zeca transformou-se, a exemplo das mudanças queocorreram no Brasil. As olarias de sua comunidade deixaram de empregar

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Transformação 55

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crianças a partir da criação dos primeiros órgãos do sistema de garantias.Aos poucos, o ECA foi implementado em sua cidade. Já com 15 anos, Zecaestava engajado num grupo de adolescentes da igreja. Aos 18, passou a fre-qüentar um grupo de jovens, sendo mais tarde escolhido como coordenador.

O tempo passou e, ao celebrar dez anos de vigência do Estatuto noBrasil, a cidade de Palhano já tinha Conselho da Criança, juiz e promotor dainfância e estava implantando o Conselho Tutelar, órgão formado por cincopessoas escolhidas pela comunidade local, com a missão de zelar pelosdireitos de crianças e adolescentes. Zeca, que conhecia de perto os proble-mas que assolavam meninos de sua comunidade, quis ocupar uma vaga noConselho Tutelar. A experiência que adquiriu no trabalho junto ao grupojuvenil foi um dos requisitos para que pudesse se inscrever junto ao Con-selho da Criança e participar do processo de escolha.

Atualmente, Zeca está no segundo mandato como conselheiro tutelare, junto com os demais membros deste órgão, contribui para a erradicaçãodas violações aos direitos da garotada, como aconteceu com Tião, 13 anos,que trabalhava na colheita da castanha em uma fazenda e foi encaminha-do ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti); com Ana, 14anos, que foi abusada sexualmente e está recebendo acompanhamentopsicológico; e com Abel, nove anos, que era maltratado pelo pai e, após ocaso ser notificado ao juiz, foi colocado em família substituta.

Zeca teve a oportunidade de participar de conferências e congressosem Brasília, Distrito Federal. Está cursando o último semestre do curso dehistória da Universidade Estadual do Ceará, onde desenvolve uma pesqui-sa que resgata a história dos movimentos pela infância de seu estado.É um apaixonado pela causa da infância e afirma entusiasmado:

– Eu me envolvi de corpo e alma nessa missão. Realizado estou portudo o que ela representa para mim.

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A trajetória histórica da vida deZeca é uma chave para pensar, enten-der e agir, com o foco nos direitos hu-manos, sobre a situação da infância eda adolescência no Brasil. A sua histó-ria retrata situações semelhantes devárias Marias, Josés, Fátimas...

Senão, vejamos. Zeca, menino cea-rense, nasce em pleno regime militar,período de acentuada violação dos di-reitos humanos. A criança e o adoles-cente – ou o “menor” – eram objetos detutela e não cidadãos e cidadãs dedireitos. Com o processo de redemocra-tização, a sociedade brasileira luta econquista uma nova Constituição Fe-deral em 1988 e, em seguida, o Estatu-to da Criança e do Adolescente, em1990. A Constituição e o Estatuto colo-cam definitivamente o Brasil no planolegal e contemporâneo dos direitoshumanos.

Zeca não veio ao mundo sob a dou-trina da proteção integral, fundada naConstituição e no Estatuto. Ao contrá-rio, Zeca teve direitos violados e outros

conquistados. À luz da proteção inte-gral, ele trabalhou precocemente e,como afirma José Valmir Gomes, “viualguns de seus colegas perderem, alémda infância, mãos e braços nas máqui-nas”. O direito à educação foi vividocom “muitas dores nas costas”. Zecateve direito à certidão de nascimento,diferentemente de 500 mil criançasque não são registradas no primeiroano de vida, segundo dados publicadospelo Fundo das Nações Unidas para aInfância (Unicef) no relatório RetratoEstatístico dos Direitos da Criança e doAdolescente (Brasília, abril de 2006).

Os direitos humanos de crianças eadolescentes ganharam, por meio doartigo 227 da Constituição e do arti-go 4o do Estatuto, uma atenção espe-cialíssima, pois estão relacionados àvida, à saúde, à alimentação, à educa-ção, ao esporte, ao lazer, à profissiona-lização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivênciafamiliar e comunitária. Direitos huma-nos definidos.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Transformação 57

José Fernando da SilvaTransformação

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A concretização do paradigma daproteção integral é uma co-respon-sabilidade da família, da sociedade e do poder público, devendo, neces-sariamente, levar à promoção, à defesae à garantia dos direitos humanospara mais de 61 milhões de pessoascom até 18 anos de idade. A sua plenarealização só admite comportamen-tos e ações que garantam todos osdireitos para todas as crianças e ado-lescentes, que assegurem a indivisibi-lidade e a interdependência dos direi-tos humanos como uma realidade aser conquistada pela nação brasilei-ra. Que as diferenças de sexo, raça,etnia, orientação sexual, existência dealgum tipo de deficiência e o local demoradia de meninos e meninas sejamconsiderados na efetivação dos direi-tos humanos.

Que a história do Zeca – que tam-bém é de Marias, Josés e Fátimas – se-ja, neste ano eleitoral, uma oportuni-dade para que o cidadão e a cidadã,os partidos políticos e cada candidatoà Presidência da República, ao gover-no dos Estados e do Distrito Federal eao parlamento nacional e estadualreflitam e, sobretudo, assumam com-promissos para a promoção, a defe-sa e a garantia dos direitos huma-nos dos Zecas de cada canto e recantobrasileiros.

José Fernando da Silva é presidente doConselho Nacional dos Direitos da Criançae do Adolescente (Conanda), representanteda sociedade civil pela Associação Brasi-leira de Organizações Não-Governamentais(Abong) e integra a coordenação do Centrode Cultura Luiz Freire, em Olinda (PE). Élicenciando em história pela UniversidadeCatólica de Pernambuco (Unicap).

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Transformação 59

Art. 13 - Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescenteserão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem pre-juízo de outras providências legais.

Art. 19 - Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua famí-lia e excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comuni-tária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Art. 60 - Revogado pela Emenda Constitucional 20, que alterou a redação original do art. 7,XXXIII da CF/88.Nova redação: “Proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito,de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partirdos quatorze anos”.

Art. 131 - O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarrega-do pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, defi-nidos nesta Lei.

Artigos doECA

Transformação

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DA IMAGINAÇÃO PARA AREALIDADE: A CRIAÇÃO DO

SUPER-HERÓI PERERECATarciana de Queiroz M. Campos

Fortaleza - Ceará

Tarciana é jornalista e coordenadora do projeto Bom Conselho aGente Faz - apoio à formação de conselheirostutelares pelo rádio,da ONG CataventoComunicação eEducação.

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Abriu a pequena mala e colocou só o necessário para um dia de via-gem. Foi apressado para a estação rodoviária da cidade de Fortaleza, jácom a passagem rumo a Palhano, município localizado no interior doCeará. Acomodou-se na cadeira do ônibus e, com os olhos atentos na pai-sagem que se alegra de luz e verde quando dá uma chuvinha, concentrou-se para a aventura que o aguardava. Muito sério, de óculos no rosto, saiudo ônibus com a malinha na mão e passou despercebido pelos moradoresde Palhano. Entrou num restaurante e perguntou onde era o banheiro.

– É lá nos fundos – disse, desatento, o garçom.Poucos minutos depois, o mesmo garçom tomou um grande susto ao

olhar para a porta do banheiro. O homem sério que entrara havia se trans-formado totalmente: sandálias de couro, roupa verde, capa vermelha, más-cara nos olhos, chapéu de cangaceiro na cabeça, um enorme “P” estampa-do na blusa, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no bolso e umgrande sorriso.

– Oxi, quem é o senhor? – perguntou, confuso, o garçom.– Muito prazer, rapaz. Eu sou o Perereca, super-herói do semi-árido,

defensor dos direitos de crianças e adolescentes e dos princípios da boaamizade e da brincadeira.

– Vixe, mas o senhor acabou de entrar no banheiro todo sério, pare-cendo gente normal e sai super-herói?

– Eu estava disfarçado, amigo. Não posso andar sempre como super-herói. Você sabe como é, as fãs podem atacar... Rá, rá, rá... Mas, me diga,onde fica o Conselho Tutelar de Palhano? É que marquei um encontro comos cinco conselheiros da cidade.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca 61

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– Ora, o Conselho é logo ali. Mas me desculpe a curiosidade, o que osenhor quer com os conselheiros?

– Marcamos de visitar uma escola aqui da cidade pra conversar com acriançada. Mas agora deixe-me ir, rapaz, chegarei ao Conselho Tutelarvoando. Até mais ver!

A caminho do Conselho, o super-herói Perereca causou alvoroço napequena cidade de Palhano. Conversador que só ele mesmo, puxava assun-to com a criançada, cumprimentava as famílias. Xiii, quase que não chega.Quase. Porque, quando chegou, foi uma festa dentro desse ConselhoTutelar, era foto de tudo quanto era jeito, até que o conselheiro tutelarCarlinhos lembrou da visita que tinham que fazer à escola. E lá se foi oPerereca, defensor do ECA, rumo à escola de ensino infantil de Palhano, nomaior papo com os conselheiros tutelares.

– Mas, seu Perereca, me explique aí como foi sua história? Como osenhor virou super-herói defensor dos direitos da meninada?

– Carlinhos, minha história é uma prova de que qualquer idéia, qual-quer sonho pode se tornar realidade. Escute bem, lá em Fortaleza, existeuma organização não-governamental, chamada Catavento Comunicação eEducação. O pessoal que trabalha lá fez uma parceria com o Unicef e bola-ram um projeto chamado Bom Conselho a Gente Faz.

– Oxente! E como é esse projeto?– Calma que eu vou contar, dona Bebel. A idéia do projeto era de tro-

car informações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e sobre osConselhos Tutelares pelo rádio.

– Menino, é o programa Conselhos para o Futuro, que passa aqui narádio comunitária da cidade.

– Isso mesmo, Dudu. A equipe do Catavento começou a imaginarcomo seria o programa. Teria que ter entrevistas com advogados, promoto-res, médicos, conselheiros tutelares e também com a criançada. Teria notí-cias vindas direto dos municípios participantes do projeto, com a ajuda dosradialistas. Devia ter historinhas de rádio-teatro para ficar mais divertido.

62 Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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E, “tchan, tchan, tchan, tchan”... A equipe do projeto teve outra idéia genial:criar um personagem que falasse sobre o Estatuto da Criança e doAdolescente no programa. Foi aí que eu nasci, o Perereca, super-herói dosemi-árido, o mais lindo, o mais charmoso, o mais...

– O mais modesto, hein, Perereca? Mas, no programa, você é muito éatrapalhado.

– Que é isso, dona Bebel? As nossas atrapalhações são só para fazergraça. Tudo é calculado... Ri, ri, ri...

– Sei, mas a história é muito bonita mesmo, seu Perereca.– Sim, sim. E eu lhe digo é mais: para falar na rádio, a gente tem que

ter responsabilidade com as informações que vai passar. Eu, como falo doECA, passei a estudar o livrinho de cabo a rabo. Em toda produção do pro-grama, é o Estatuto que guia a equipe. Vocês não têm idéia do tanto de coi-sas que estamos aprendendo.

– Perereca, pois agora é hora de você dar o seu recado pra meninadada escola, porque já chegamos, vamos entrar.

Na escola, as professoras chamaram a criançada para o pátio, e foi umalvoroço para conversar com o Perereca. E não é que o super-herói, mesmotodo atrapalhado, falou bonito:

– Criançada, existe um livrinho chamado Estatuto da Criança e doAdolescente, o ECA. Ei, menino, faz cara feia, não. ECA não quer dizer só“meleca”. Quando vocês ouvirem a palavrinha “ECA”, lembrem-se de que éum livrinho cheio de leis para que os direitos de vocês sejam respeitados.Direito à convivência com a família, à educação, ao esporte, tudo isso temno ECA. Caso não respeitem os direitos, a denúncia deve ser feita aoConselho Tutelar. E a criançada não pode esquecer também de fazer a suaparte: estudar é um dever, hein, moçada!

E, durante o burburinho da criançada junto do Perereca, a noite foicaindo. O super-herói, que saiu da rádio e transformou-se em carne, osso epalhaçadas na cidade de Palhano, voltou para Fortaleza cheio de lembran-ças e novas histórias para contar.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca 63

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Há quem diga que “o sucesso é 90%transpiração e 10% inspiração”. Combase nessa afirmação, tenho tranqüili-dade em dizer que temos aqui um“causo” de sucesso.

Desde seu nascimento, o ECA nospresenteou com o desafio de torná-loacessível, conhecido, assimilado e utili-zado, não só por todos os que zelampelos direitos da criança e do adoles-cente – que é, na verdade, um dever detodos nós – mas também pelas pró-prias crianças e adolescentes em todoo território brasileiro!

Realizar esta tarefa é um esforçohercúleo e constante, em que articula-ção e mobilização desempenham umpapel fundamental. Afinal, uma gran-de idéia, além de se tornar realidade,precisa fazer parte do dia-a-dia, atin-gir seu público, sair do livro e permearnossas vidas tanto quanto o ar que respiramos.

Fácil falar, desafiador fazer, aindamais frente à dimensão das diversida-des cultural e geográfica de nosso País.

Mas é um desafio bonito por trazer apossibilidade de construção de umponto em comum a todas essas diver-sas e espalhadas tribos. Como chegaraté as pessoas, em todos os lugares, demaneira simples e objetiva, tornando oECA parte de suas vidas?

De acordo com nosso querido Pere-reca, sua história é uma prova de quequalquer idéia, qualquer sonho podese tornar realidade!

E, neste “causo”, vemos uma iniciati-va que, ao abusar da criatividade, arti-cula, provoca e une as pessoas emtorno da causa, oferecendo uma pro-posta de ação altamente inspiradora e,de quebra, ainda gera a formação deuma “cadeia produtiva” criativa, inte-grada, forte e eficiente.

Veja só: uma organização da socie-dade civil que atua nas áreas de comu-nicação e educação na Região Nordes-te compromete-se com esse desafio. E,para vencê-lo, sabe que não é possíveltrabalhar sozinha. Dessa forma, esta-belece uma parceria com o Fundo das

64 Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Wellington NogueiraDa imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca

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Nações Unidas para a Infância (Unicef)para fazer um programa de rádio quedivulgue informações sobre o ECA e os Conselhos Tutelares – atores funda-mentais no processo de fazer aconte-cer a fiscalização e a observância dosdireitos infanto-juvenis – mas sabe queé preciso fazê-lo de maneira abran-gente e dinâmica. Por isso, pensa naparticipação de advogados, médicos,promotores e conselheiros tutelarespor meio de entrevistas, em que essesprofissionais podem conversar com osouvintes e esclarecer dúvidas. Pensatambém no envolvimento de outrosradialistas para propagar histórias desucesso que inspirem e motivem osouvintes a tomar iniciativa.

Mas como falar ao público de ma-neira eficaz? Qual é a opção de lingua-gem que alcance a todos? A escolharecai sobre a alegria e o bom humor,personificados na figura do supermo-desto super-herói Perereca, um palha-ço que estuda, conhece a fundo o ECA e vai discuti-lo com as crianças, osjovens, os pais e os conselheiros tutela-

res. Além de marcar presença no pro-grama de rádio, vai até as pessoas parainteragir com elas, pois aquilo que a gente entende com todo o corpo,aprende-se para sempre, tal qual andarde bicicleta. Nada mais orgânico,certo? E é esse aprendizado que impeleo aprendiz a transformar, a escreveruma nova história. Como uma coisapuxa a outra, todos acabam se tornan-do aprendizes, pois, quando a equipecriadora e executora do projeto estudao ECA para disseminá-lo com seguran-ça do que estão falando e fazendo,todos beneficiam-se dessa riqueza.

É sério, é divertido, é gostoso...E inclui todos, sem exceção, nestagrande roda que estamos construindoem direção ao futuro, tal qual criançasbrincando.

Wellington Nogueira é ator formado pelaAcademia Americana de Teatro Dramático eMusical de Nova York, nos Estados Unidos. Éfundador e coordenador geral da ONGDoutores da Alegria – Arte, Formação eDesenvolvimento e empreendedor socialreconhecido com o fellowship da Ashoka eLíder Avina.

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66 Da imaginação para a realidade: a criação do super-herói Perereca CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 15 - A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade comopessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, huma-nos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 17 - O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da insanidade física, psíquica emoral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, daautonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Art. 88 - São diretrizes da política de atendimento:...VI - mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diver-sos segmentos da sociedade.

Art. 132 - Em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cincomembros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida umarecondução.

Art. 139 - O processo para a escolha dos membros do Conselho Tutelar será estabelecido emlei municipal e realizado sob a responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos daCriança e do Adolescente, e a fiscalização do Ministério Público.

Artigos doECADa imaginaçãopara a realidade:a criação dosuper-heróiPerereca

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VIVER PARA REPRESENTAR!

Peterson Xavier do Nascimento São Paulo - São Paulo

Peterson é ator,arte-educador e

diretor cultural doInstituto Religare.

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Dia 25 de janeiro de 2000, cabeça baixa na viatura, de repente umportão de ferro me assusta depois de ter sido fechado com brutalidade:

– Escuta aí, ladrão, daqui pra frente você só escuta, mantenha a cabe-ça baixa e responda “Sim, senhor” ou “Não, senhor”. Entendeu, Zé?

Foi a primeira coisa que ouvi ainda na porta de uma unidade daFundação do Bem-Estar do Menor (Febem). Quando entrei, o que eu pensa-va era que há pouco eu estava na rua, depois olhava para o lado e via todosolhando diferente. Não via mais um sorriso amigo. Apenas rostos angus-tiados, olhares de medo e sem esperança. Isso foi o que mais me chocou:um monte de meninos de cabeça baixa, sem expectativa de vida, sem umobjetivo. Para todos, a vida tinha acabado. Para mim também.

A capacidade era de aproximadamente 70 jovens, mas havia pelomenos 350 dividindo aquele espaço e eu dormia no corredor num colchãocom mais adolescentes. Fiquei dois dias nessa unidade e fui transferidopara o Cadeião, uma cadeia de verdade. Olhava para os lados e só via grade,grade, grade. Também tinha o problema de superlotação. Fiquei dois mesesno Cadeião e foi aí que perdi a esperança mesmo. Foi um longo tempo semreceber visita nem carta. Naquele momento, cercado de grades, percebique realmente havia feito tudo errado.

Passado algum tempo, chamaram meu nome para visita. Era meu paie foi nesse instante que percebi o tamanho do meu pecado. Doeu muitovê-lo. “O que fiz da minha vida?”, pensava, sem conseguir uma resposta.Uma semana depois, fui transferido para a unidade de internação e sóentão pude voltar a sonhar. Em todas as unidades pelas quais já tinha pas-sado, não havia feito nada além de terapia ocupacional. Novamente, o con-tato com a família, que passou a me visitar, conferiu-me forças para tentarmudar de vida.

Com uma estrutura melhor, ficava em contato com atividades diver-sas, fiz o possível para participar de tudo. Comecei com aulas de cavaqui-nho, depois passei para o curso profissionalizante, jogava no time de fute-bol e voltei a estudar. Mais tarde, fui ver o que pegava nas aulas de teatro.

68 Viver para representar! CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Nas outras unidades, não tinha isso, era apenas “Eu mando e você obede-ce”. Era muito legal fazer teatro, fazia exercício de improvisação de cenasda vida, tinha toda uma história, todo um contexto, uma existência, todauma experiência, um exemplo.

Mais tarde, outras unidades foram incorporadas e o projeto tornou-seum só. A coordenadora de teatro da Febem tinha o objetivo de integrartodas as atividades culturais num único espetáculo. E foi assim que surgiua idéia de encenar Dom Quixote de La Mancha. A característica física fezcom que eu fosse chamado para ler o texto do protagonista. “Era rígido deaparência, seco de carnes, enxuto de rosto.” Li o texto de forma simples,mas com boa interpretação. Ganhei o papel e achei legal, muita gente fala-va que eu estava enlouquecendo, porque falava sozinho com um cabo devassoura na mão. Incorporei mesmo, porque eu via no Dom Quixote muitodos meninos da Febem. O que passa na cabeça de todo mundo ali sãosonhos, sonhos, sonhos... Que não se realizam por falta de caminhos ou porfalta de estrutura.

Foram quatro meses de ensaio. A cada dia, aumentava a ansiedade.Não havia mais espaço no coração de cada um para subir definitivamenteno palco e eu parecia o mais eufórico. Então, chegou o dia de felicidade. Ademora aumentava a agonia, mas era preciso esperar a escolta e o ônibus,que nos levariam para o Memorial da América Latina. O dia era 11 de outu-bro de 2000. Todos estavam eufóricos por fazer algo diferente. Eu lembra-va do personagem, da luta pelos sonhos... Todos que estão na Febem pas-sam por isso. Todos estavam felizes de fazer algo novo e de estar livres poralguns momentos: subir no palco e se sentir livre.

Depois de pouco mais de um mês, recebi a liberdade assistida e volteipara casa. Quando saí, já tinha uma proposta para outra apresentação e faltavam apenas duas semanas. No dia seguinte, eu estava na Febempara ensaiar. Em casa, ninguém entendia por que eu voltava para aquelelugar. Ensaiei todos os dias, mas, na véspera da apresentação, não conse-gui dinheiro para ir ao ensaio, o que preocupou a todos. Porém, no dia

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seguinte, lá estava eu novamente no palco e isso modificou para sempreminha vida.

Fiquei seis meses desempregado e afastado do que eu tinha aprendi-do lá dentro, contatei algumas pessoas que conheci na Febem. Valéria DiPietro, diretora e coordenadora de teatro na Febem, conseguiu para mimum cargo de assistente de educador. Foi assim que voltei novamente a tercontato com aquilo que mudou minha vida: o teatro. Quando conheci aValéria lá dentro, fiz a mesma imagem que todos os internos. Ninguémacredita que as pessoas fazem as coisas para ajudar. Pensava que era umtrabalho de política, falso e enganador. Mas quando saí e comecei a conhe-cer as pessoas fora, percebi os benefícios que elas levavam para lá, princi-palmente a Valéria. Então pensei: “Tenho muitos sonhos na minha vida. Sóquando fui para a Febem tive oportunidade de ser alguém e fazer algumacoisa”. Comecei a perceber que, no teatro, eu podia ajudar os outros damesma forma que me ajudaram. Por que não passar isso para frente?Tornei-me ator e educador, dei aulas de teatro durante três anos na Febeme tive a oportunidade de partilhar minhas experiências.

Hoje, mais de cinco anos depois desse fato sofrido e dessa fase de cres-cimento, não sinto vergonha nenhuma em dizer que fui interno da Febem eque sou um vencedor. Sou ator, educador e diretor cultural no InstitutoReligare, onde continuo meu sonho, agora maior que em outras épocas: tra-balho com crianças e adolescentes em situação de risco e egressos daFebem e deixo sempre uma frase no fim de cada aula para esses jovens:

– Nunca abaixem a cabeça para as pessoas e as dificuldades que pos-sam encontrar pelo caminho. Foi assim que mudei minha vida e vocêspodem mudar a de vocês!

70 Viver para representar! CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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Da cabeça baixa na viatura policialao esplendor dos aplausos no palco. Dahumilhação por estar à margem dosuposto equilíbrio social à inserção pormeio do que há de mais elevado no serhumano: a própria alma, a própriaarte. Esse “causo” contado pelo Peter-son pode ser aplicado em qualquersituação de superação do homem. Deleé que vem a transformação, tanto devitória no ambiente de desigualdadesocial como de vitória pessoal sobre asdificuldades da vida. Peterson servecomo exemplo em diversas facetas, éum vitorioso múltiplo. E é, acima detudo, do indivíduo que vale a penafalar.

No entanto, é preciso atentar para ofato de que sua história é reflexo deum problema recorrente. Ela existe,porque há algo infelizmente maior e mais constante que ela. É aquilo quenão se segue diante de umas das dire-trizes mais fundamentais para o de-senvolvimento das crianças e dos ado-lescentes brasileiros: o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA). O“causo” contado ilustra a importânciade se conhecer o que diz o ECA. O “cau-so” contado mostra que não bastaconhecê-lo.

O ECA proíbe instituições para“menores” que funcionem sem condi-ções para atendê-los. O ECA proíbeuma força policial, ou qualquer outrotipo de autoridade, que atente contrao bem-estar físico e intelectual dacriança ou do adolescente. Acima detudo, é um meio, uma linha, uma dire-triz legal que permite e vislumbra odesenvolvimento social e cultural doindivíduo.

No início da história, quando ogaroto sofreu sanções policiais, feriramo artigo 5º do Estatuto: “Nenhumacriança ou adolescente será objeto dequalquer forma de negligência, discri-minação, exploração, violência, cruel-dade e opressão”.

Nos maus-tratos da Febem, feriramtambém o artigo 91: “Será negadoregistro à entidade (de proteção e

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Viver para representar! 71

MV BillViver para representar!

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atendimento a adolescentes) que nãoofereça instalações físicas em condi-ções adequadas de habitabilidade, hi-giene, salubridade e segurança”.

Acima de tudo, feriram o conceitofundamental, descrito no artigo 3º, deque “a criança e o adolescente gozamde todos os direitos fundamentais ine-rentes à pessoa humana (...), assegu-rando-se-lhes todas as oportunidadese facilidades a fim de lhes facultar odesenvolvimento físico, mental, moral,espiritual e social, em condições deliberdade e de dignidade”.

Feriram todas as palavras envolvi-das, mas não a dignidade e a força dePeterson. E é aí que está sua grandezae a grandeza do indivíduo diante dos“mecanismos” que regulam a socieda-de. Sem tantos aparatos burocráticosou anos de formulação, estrutura epessoal, nessa grande máquina cha-mada Brasil, ele, uma peça, um ho-mem, escreveu e conquistou, com avida e as ações, o que é lei. Fez valer porsi mesmo o que o ECA diz e que deveriaser seguido por todos, ajudado pelabela ação de uma professora, a ValériaDi Pietro, outro indivíduo com esforçopessoal, altruísta. As almas se juntam.As coisas acontecem.

Mostrou no palco e reverteu o pro-cesso macabro de invisibilidade socialque vem junto à degradação moral efísica do indivíduo e à perigosa desu-manização da criança e do adolescentejustamente por parte dos que deve-riam zelar por eles.

Comprovou a importância da artecomo um dos fatores que podem pro-porcionar essa visibilidade. E levou issoao pé da letra ao se tornar mais do quevisto, com direito a iluminação, corti-nas abrindo-se e toda a atenção volta-da para o Dom Quixote do cotidiano.Além de construir seu moinho devento, provou que ele funciona e podemodificar o que não teve estruturapara educá-lo.

É assim que funcionam os exemplos,acima de tudo. Mais do que criar segui-dores e repetidores das boas ações, épreciso educar para que todos cheguematé elas. Peterson usa da cultura teatralpara isso. Ele reverte o processo triste-mente fantástico e mostra ao PoderExecutivo como agir para que as coisassejam executadas na realidade.

O “causo” de Peterson mostra que éna valorização do indivíduo que semostra a transformação mais eficaz eque qualquer ação no sentido dessa

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“melhora social” não pode deixar deesquecê-lo. Não existe a mudança cole-tiva, seja em movimentos sociais, napolítica, em ONGs, empresas ou naintelligentsia brasileira, se ela nãocomeçar no homem. Não vale subjugá-lo pelo “bem maior” se, ao chegarnesse bem, em qualquer momento, oser humano foi ferido de alguma

forma. Porque aí a “melhora” não foicompleta nem justa e a luta por ummundo melhor não valeu de nada.

MV Bill é rapper, autor do livro e documen-tário Falcão - Meninos do Tráfico, em parce-ria com Celso Athayde, e da obra Cabeça dePorco, com Athayde e Luiz Eduardo Soares.É integrante da Central Única das Favelas(Cufa).

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Viver para representar! 73

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Art. 91 - As entidades não-governamentais somente poderão funcionar depois de reg-istradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o qual comunicaráo registro ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária da respectiva localidade.

Parágrafo único. Será negado o registro à entidade que:a) não ofereça instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene,salubridade e segurança;b) não apresente plano de trabalho compatível com os princípios desta Lei;c) esteja irregularmente constituída;d) tenha em seus quadros pessoas inidôneas.

Art. 110 - Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal.

Art. 121 - A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de bre-vidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Parágrafo l°- Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe téc-nica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.Parágrafo 2°- A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção serreavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.Parágrafo 3°- Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos....

Art. 123 - A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, emlocal distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios deidade, compleição física e gravidade da infração.

Parágrafo Único - Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigató-rias atividades pedagógicas.

Art. 124 - São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros os seguintes:...V - ser tratado com respeito e dignidade;...VII - receber visitas, ao menos semanalmente;...XI - receber escolarização e profissionalização;XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;...

Artigos doECAViver para representar!

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ECA NA ESCOLA

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Um professor que ajuda o aluno diante de problemas dentro de casa. A união de escolas com o objetivo de divulgaro Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).Um garoto em medida socioeducativa que retorna à escola.As três histórias têm algo em comum: contam como o ECApode ser efetivamente implementado, tendo como atoresprincipais os diversos personagens ligados à escola.

A categoria especial “ECA na Escola” traz experiências que mostram o importante papel da comunidade escolar – formada pelo diretor, por coordenadores, professores,funcionários, pais e alunos – na garantia dos direitos decrianças e adolescentes. Nas páginas seguintes, oito “causos”revelam ao leitor que o olhar atento dessas pessoas pode servir como um poderoso meio para a proteção integral.

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EM ÁGUAS CLARAS,O ECA ECOOUEunice Paz Gonçalves Santos Turmalina - Minas Gerais

Eunice é pedagoga no Vale do

Jequitinhonha, casada emãe de dois filhos.

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Como em quase toda cidadezinha do interior, em Águas Claras não édiferente. Convivemos com jovens, crianças e adolescentes que andam emturmas, estudam (ou, pelo menos, comparecem à escola), têm sonhos,namoram e estão à procura de um rumo novo para suas vidas.

No mundo inteiro, temos assistido ao espetáculo de completa desuma-nização do homem. As drogas, as guerras, a violência e a ambição desmedi-da têm descaracterizado o ser humano, tornando-o presa de falsos valores.

Vemos que não existem muitas alternativas. Porém, com a esperançabrotando do coração, é que as escolas de Águas Claras resolveram se jun-tar e expandir o projeto O Eco do ECA para todos os cantinhos do municí-pio, na tentativa de resgatar o que é essencial a todo ser humano: sensibi-lidade para conviver e respeitar o outro, assumindo o papel fundamentalda escola de formar o cidadão ético, harmonizado com o seu tempo e como seu meio.

E assim aconteceu. Todos os educadores de Águas Claras se juntaram.O ânimo foi crescendo, a vontade de acreditar não nos faltava, despren-demo-nos completamente e suscitamos acontecimentos que, mesmo pe-quenos, engendraram novos espaços e tempos, criando uma nova história.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi divulgado em 20comunidades rurais e urbanas do município por meio de concursos de tea-tro, música e produção de textos. Grupos ambulantes entravam na escola,promoviam palestras com pais e debates com os alunos. Como temática,tivemos as histórias cultural e regional de várias gerações, promovendo osdireitos e os deveres assegurados pelo ECA, ritmados num caráter multipli-cador pelas famílias que acreditavam e compartilhavam do nosso sonho.

O desafio estava lançado, fomos convocados a ampliar os horizontes. Como desenrolar do projeto, novos parceiros foram surgindo. Crianças de zero a seisanos de idade, num total de 572 atendidas por nove creches municipais, ouvi-ram o ECA ser cantado. De forma crítica, reflexiva e lúdica, o recado foi dado.

Como Águas Claras está situada numa região extremamente carente,no Vale do Jequitinhonha, boa parte das famílias dos alunos envolvidos no

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projeto era atendida por programas governamentais. Há dificuldadesdiversas, e nas escolas desembocam problemas como desestrutura fami-liar, uso de drogas lícitas e ilícitas, gravidez precoce, criminalidade, evasãoe repetência escolares, violência doméstica, exploração do trabalho infan-til, baixa auto-estima, indisciplina escolar e enfraquecimento da ética nasdiversas relações humanas.

Fomos todos contagiados pelo trabalho em rede e, no embalo dosonho, visando à divulgação do Estatuto, os conselhos municipais junta-ram-se às escolas e às creches, e nossa identidade cultural como contra-ponto espalhou-se, como numa onda de valorização do homem.

Os resultados deste trabalho para a comunidade foram observadospela apropriação do conhecimento de casos vivenciados pelas crianças eadolescentes que contrariavam o ECA. Cada caso foi registrado e cuidado-samente tratado pelos envolvidos no projeto. A comunidade não assistiude braços cruzados aos tantos casos de maus-tratos, fome, banalização,falta de compromisso com a escola, assédio sexual, suicídio de jovens,depressão e tantos outros que afligiam as famílias de Águas Claras.

Programas semanais na rádio comunitária local aconteceram, infor-mando o que é o ECA e divulgando os trabalhos realizados nas comunida-des e nas escolas da região. Por meio do Projeto executado, tivemos a opor-tunidade de nos comprometer com uma vivência real do ECA como eixotransformador, articulador, constituinte na formação de crianças e adoles-centes que poderão vislumbrar um futuro, vivenciando a ética como ele-mento básico para uma organização social pelo bem comum.

Hoje, o ECA continua ecoando em Águas Claras. O sonho de ver nos-sos meninos do Vale do Jequitinhonha bem assistidos ainda nos faz cami-nhar. Mesmo que, às vezes, caminhemos dez passos e o horizonte continue20 passos distante... Então, percebemos que nosso sonho serve para nosfazer caminhar muito mais, acreditando sempre que juntos poderemosfazer o ECA ecoar e nossa história mudar!

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Em Águas Claras, o ECA ecoou 79

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Foi no Vale do Jequitinhonha, alionde as águas são claras e o sertão sevislumbra. Onde Minas se estende paraa Bahia. Onde o rio é lembrança deriqueza, do brilho do ouro e do dia-mante. Onde a esperança de toda agente era encontrar a fortuna, maisque a fortuna, a felicidade. A busca detodos nós.

O ouro pode até se procurar sozi-nho, mas a felicidade só se faz no plu-ral. Eu não posso ser feliz se tudo quevive e cresce em torno de mim é misé-ria e degradação humana.

É isso o que aprendi agora, assim,com o gesto dessa gente de ÁguasClaras, com o olhar desses educadoresentusiasmados, que acreditam que avida sempre está pronta para ser recu-perada, restaurada e se apresentar bri-lhando outra vez no coração da gente.

Ao reconhecer que a globalizaçãochegou ali, naquele lugar esquecido, emforma de desestrutura familiar, drogas,gravidez precoce, criminalidade, violên-cia doméstica, os educadores percebe-

ram também que, na origem, nos ante-passados, na tradição regional, poderiaestar a salvação. Na tradição de qual-quer comunidade, o caminho estádado. Os valores que podem nortear orumo de uma pessoa por toda uma vidaestão todos ali, basta segui-los.

Quando perdemos ou desprezamosa tradição, desprezamos ética, valoresde gerações e gerações que nos ensi-nam, antes de tudo, como ser homem,como ser humano neste mundo, comoviver entre homens.

Mas como reconhecer a tradiçãonum mundo onde só vale o novo? Senão for novo, não tem valor de merca-do. Só o novo pode ser comercializado eassim vamos deixando que o consumoe a economia, com suas leis de merca-do, determinem o rumo das nossasidéias, o que devemos pensar, do quedevemos gostar, o que devemos dese-jar. E o valor das coisas tem vida curta,não passam mais de geração parageração, mas de um dia para outro. Aética que vale hoje, amanhã não vale

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Neide DuarteEm Águas Claras, o ECA ecoou

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mais. Hoje é um objeto, amanhã éoutro. Hoje é uma roupa, amanhã éoutra. Hoje é um ator de novela, ama-nhã é outro. Hoje é um modelo, ama-nhã é outra. E assim, de retrato emretrato, os rostos vão sendo substituí-dos e a nossa cara nunca está lá, nessagaleria interminável de modelos pron-tos para nosso consumo, para nossoencanto, para nosso desejo. Esses valo-res estão vazios de significado, nãoparam em pé, não podemos nos apoiarneles sem levar um tombo.

Que o caminho aberto para odesenvolvimento do humano perma-neça fluindo no Vale do Jequitinhonhacomo as águas desse grande rio.

Nós brasileiros agradecemos, somossolidários e queremos participar.

Neide Duarte é jornalista e documentaris-ta, dirigiu o programa Caminhos e Parce-rias da TV Cultura, onde ganhou diversosprêmios de jornalismo. É Jornalista Amigada Criança, título concedido pela Agênciade Notícias dos Direitos da Infância (Andi),e atualmente trabalha na TV Globo.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Em Águas Claras, o ECA ecoou 81

Art. 1º- Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.Art. 70 - É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da crian-ça e do adolescente.Art. 86 - A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á pormeio de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Artigos doECA

Em Águas Claras,o ECA ecoou

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ESCOLA E CIGANOS:POR QUE NÃO?

Viviane Souza da Silva Caçapava - São Paulo

Viviane é conselheiratutelar de Caçapava,estudante de serviçosocial e estagiária doSetor Técnico doTribunal de Justiça doEstado de São Paulo,comarca de Caçapava.

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Descalços, com roupas coloridas, meninos de chapéu e meninas comsaias até os joelhos. Não são duas nem três crianças... Vejo mais de 20delas sorridentes e satisfeitas com seu modo de vida. Diferentes de muitosarranjos familiares “modernos”, essas crianças têm em seu cotidiano umarealidade rara: possuem pai, mãe e seus avós estão por perto. Tios, primose sobrinhos também fazem parte deste universo.

Não falo de algo distante, presente nos livros de história, nem merefiro às famílias tradicionais, cujos componentes residiam num mesmolocal. Vejo à minha frente membros de uma família numerosa, sim, em pes-soas, mas com inúmeros direitos violados. Eles não têm carteira de vacina-ção, não possuem fotos nem registro de nascimento. Não têm acesso aoposto de saúde nem aos serviços públicos. Escola? O que é mesmo issopara um povo situado à margem da sociedade?

Falo dos ciganos. Vejo crianças ciganas, muitas delas, com seus longoscabelos louros e seus olhos azuis ou esverdeados, que brilham ao se depa-rar com meus olhos castanhos que as observam. Admiro suas relações,seus afetos e sua segurança quando estão perto de suas mães. As barracasde lona colorida estão espalhadas ao redor da chácara e, ao soar do meu“bom-dia”, eis que se aproximam, com um andar lento e receoso paraquestionar o que estou querendo.

Sou conselheira tutelar de um município que compreende algunsacampamentos de famílias ciganas. Município este onde muitos cidadãosainda não aprenderam a olhar os ciganos para além de sua higiene precá-ria, para além dos rótulos de “trombadinhas” e “pedintes”. De início, a resis-tência, certa grosseria e pouca correspondência às orientações. Ainda

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Escola e ciganos: por que não? 83

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impregnados pela doutrina do Código de Menores, vigora em seus pensa-mentos a idéia de que “ninguém vai tirar as crianças daqui”. Percebi que jánão era possível alcançar êxito apresentando-me como representante doConselho Tutelar, já que não era vista como defensora de direitos, mas sim,recebida como alguém que impõe obrigações. Como me aproximar? Comoser acolhida e ter a chance de me apresentar como alguém que busca suapromoção e não sua dissipação?

Eis que uma pesquisa pela Internet me leva a um contato com aPastoral dos Nômades. Por e-mail, relato ao padre responsável todas asdificuldades em intervir junto aos ciganos, bem como exponho a preocu-pação em garantir àquelas crianças seus direitos fundamentais. O padre,em resposta, conta que já havia estado com os ciganos desta cidade e quehavia realizado várias celebrações de batizados e casamentos neste acam-pamento. Em seguida, abre as portas e aponta o novo caminho: sugere queeu realize a entrega de algumas certidões que estavam em sua posse. Eassim procedo. Ao chegarem pelo correio as certidões, acompanhadas dealgumas fotos também enviadas pelo “Padre Cigano” – assim chamadopelos que o conhecem –, vou até o acampamento. Qual foi a minha surpre-sa ao lhes falar do padre: ótima recepção e livre acesso a seu meio. É preci-so tão pouco: atenção e compreensão, insistência e muitas visitas ao terri-tório onde se encontram. Aceitar que, quando querem confidenciar algoentre eles, usam seu dialeto próprio. É preciso escutá-los e, como sereshumanos que são, respeitá-los como tais.

As crianças, pouco a pouco, reconhecem-me e já se achegam, alegrese cheias de perguntas. Mas a minha alegria fica completa ao ter a liber-dade de perguntar a elas o que achavam de ir para a escola e obter umaresposta positiva, com olhares de esperança e sorrisos de aceitação. Entraem cena o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante igual-dade de condições para o acesso à escola pública próxima à sua resi-dência. Confiantes, os ciganos informam os locais onde residem outrosparentes. Já não encontro acampamentos, encontro, enfim, ciganos que

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residem em casas alugadas de alvenaria, num bairro periférico da cidade.Apesar de protegidos do sol e da chuva, permanecem desprotegidos

do preconceito. Vejo que a escola como espaço de formação do indivíduo ede cidadania pode ser o carro-chefe para a introdução de novos hábitos,sobretudo aqueles relativos à higiene e à comunicação, bem como para avalorização dos traços culturais dos ciganos rumo à inclusão social. Douprosseguimento à trajetória da garantia efetiva do direito à educação,entro em contato com a secretaria municipal de educação, que garante asvagas para a matrícula das crianças na rede. Sobrevém, entretanto, a preo-cupação da direção da escola municipal, situada no bairro, diante do desa-fio de acolher os novos alunos. Mas nada que um bom diálogo e o trabalhoem rede não possam ajudar, permitindo a criação de alternativas e a aber-tura de oportunidades para o crescimento pessoal e relacional.

Nessa perspectiva, a preocupação transforma-se em motivação paraque a diretora agende reunião com os pais das crianças na minha presen-ça. Ao ser receptiva e acolhedora, a diretora foi igualmente compreendidapor eles. Em meio a sorrisos, apresenta aos pais (acompanhados pelosfilhos), as dependências da escola, enfatizando os horários a serem cum-pridos e as expectativas de todos os funcionários em recebê-los. As crian-ças, eufóricas, transmitem sua motivação e seu contentamento por aden-trar no ambiente escolar.

As aulas começam. Todo o receio de que os novos alunos pudessem serdiscriminados ou rejeitados pelos demais cai por terra. A inocência e a sim-plicidade das crianças espalham-se e surpreendem todos nós. Os professo-res, certos da importância do tratamento igualitário, porém, respeitando asdiferenças, apresentam com tranqüilidade os conteúdos, propagando apedagogia do respeito e da amizade. Mas ainda há muito que fazer.

Esta história não tem fim, pois longo é o caminho a ser percorrido,outros direitos a serem garantidos, mas vale realçar que a escola trouxeaos pequenos ciganos mais dignidade, solidariedade e a possibilidade dedemonstrarem o que são: pessoas, cidadãos, humanos!

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Escola e ciganos: por que não? 85

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Quem tem mais direito à educação?Uma criança com dois olhos que enxer-gam bem; outra, cega de um olho; ouuma terceira, totalmente cega? O sensocomum indicaria a primeira criança,mas os direitos humanos, o conceito deinclusão e a Constituição do Brasil ga-rantiriam: todas as três crianças têmidêntico direito de ter acesso e de per-manecer em uma escola de qualidade,porque delas emana o mesmo valorhumano.

E de onde vem o valor humano des-sas três crianças? De suas semelhan-ças finitas ou de suas diferenças infinitas? Quem se sente comprometi-do com a prática de uma sociedadeinclusiva, certamente acolhe a últimapossibilidade.

Nem “viva a diferença” nem “abaixoa diferença”. As duas expressões refle-tem um raciocínio antigo que nosinduz a achar natural hierarquizarcondições humanas, religiões, orienta-ções sexuais, regiões do País, modos devestir, culturas, línguas, entre outras

situações, numa corrida desenfreadapara saber qual “diversidade” é a maisimportante e, obviamente, deixaralgumas de fora, aquelas do final dafila.

A imagem de uma fila de criançastentando provar que sua diversidade éum valor – ou que tem mais valor quea do amigo ou da amiga ao lado –parece-me abominável. Também parauma criança cigana, de acordo com alegislação brasileira, o direito à educa-ção é indisponível, tal como o direito àvida. É crime privá-la do acesso à esco-la e essa privação irá matá-la de diver-sos modos. Não porque ela deixará deaprender português, matemática, his-tória ou geografia, mas porque nãoconseguirá pertencer à memória afeti-va de sua geração, deixando de serreconhecida como parte dela. Torna-seuma criança sem presente nem futuro.

A chamada “ética da diversidade”,na qual se inspira o conceito de socie-dade inclusiva, convida pessoas dequalquer idade a construir coletiva-

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Claudia WerneckEscola e ciganos: por que não?

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mente um outro modo de lidar com ainfância e a adolescência da humani-dade a qual pertencemos. É urgenteabandonarmos o equivocado hábitode escolher com qual repertório dediversidade vamos trabalhar e aindaemitir juízo de valor sobre o repertório

de diversidade de quem está ao nossolado. Um dia vamos aprender... Queseja rápido!

Claudia Werneck é jornalista, escritora, fun-dadora e superintendente geral da Escolade Gente – Comunicação em Inclusão.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Escola e ciganos: por que não? 87

Art. 53 - A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimen-to de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, asse-gurando-se-lhes:

...II - direito de ser respeitado por seus educadores;...

Art. 54 - É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveramacesso na idade própria;...Parágrafo 1°- O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.Parágrafo 2°- O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua ofertairregular importa responsabilidade da autoridade competente.Parágrafo 3°- Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental,fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela freqüência à escola.

Art. 58 - No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricospróprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade decriação e o acesso às fontes de cultura.

Artigos doECA

Escola e ciganos:por que não?

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O ECA EM SAMAMBAIA

Engracia Maria Tropia Barreto e Luciana Gonçalves de Souza Brasília - Distrito Federal

Engracia é pedagogacom especialização em psicopedagogia,coordenadora geral eassessora pedagógicada Escola Marista Irmão Francisco Rivat.

Luciana é assistentesocial, tem especialização em terapia familiar e mestrado em políticasocial, e atua na Escola Marista Irmão Francisco Rivat.

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Samambaia é uma região administrativa do Distrito Federal e estálocalizada a 25 quilômetros de Brasília. Essa região surgiu a fim de suprir aausência de habitações para famílias de baixa renda no Distrito Federal.Apesar do título de “região administrativa”, Samambaia surgiu com imen-sos problemas de infra-estrutura, habitação e educação, que até hoje per-sistem. Desde 1985, a região tem crescido, a população tem aumentado e oestado continua não acompanhando a demanda. Hoje, Samambaia aindaapresenta problemas de infra-estrutura, habitação, saúde e educação, tra-zendo grandes dificuldades de sobrevivência e de melhoria da qualidadede vida para a grande população jovem da comunidade, que, atualmente,é o maior contingente populacional da região.

É nessa comunidade que Arthur nasceu. Com dez anos, o garoto é openúltimo de quatro filhos de dona Maria, uma mulher trabalhadora, dia-rista por falta de opção e que, não muito diferente de outras mães dacomunidade, sente muitas dificuldades na criação dos meninos, o que fezcom que, entre outros motivos, entregasse os dois mais velhos ao pai.Arthur é irmão das outras três crianças apenas por parte de mãe.Conheceu seu pai um pouco tardiamente – aos cinco anos –, mas logo teveque substituir a presença paterna pela do namorado da mãe, pai de seuirmão mais novo e marido de sua vizinha de rua.

Talvez essa realidade familiar e o contexto em que Arthur morava jus-tificassem para a vizinhança o ar rebelde e violento que o norteava e quefazia com que a comunidade escolar sentisse medo dessa criança franzinae baixinha. Seu vocabulário interminável de palavrões e a força de seuspequenos braços e pernas faziam com que qualquer tentativa de diálogo

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” O ECA em Samambaia 89

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fracassasse. Sua irritação diante de um exercício fazia com que seus cole-gas de sala também sofressem com sua ira. As surras recebidas de sua mãetalvez pudessem trazer a alguns profissionais a resposta do seu ar rebeldee do seu envolvimento com as drogas, ora como “aviãozinho” (atividade emque o garoto transporta a droga até o comprador), ora como usuário curio-so da maconha e da cola.

A escola e todo o corpo de educadores sociais, a partir desses aconte-cimentos, sentiam-se acuados. Estavam, portanto, diante de um desafio.Desafio que trazia consigo vários caminhos e soluções. O convite para omenino retirar-se da escola seria o jeito mais rápido, simples e fácil. Seriaaté bom para a escola, pois findaria também os problemas com os outrospais de alunos em relação a Arthur. O rótulo de menino problemático seriauma outra opção, pois, dessa forma, os educadores não teriam de se preo-cupar com uma criança que “não tem mais jeito”. Bastaria contornar as bri-gas e esperar seu tempo de sair da escola. Outro caminho seria reconhecera limitação da escola e dos educadores sociais diante daquele aluno.Percebíamos que, muitas vezes, na rotina da escola, algumas atitudes nãocondiziam com o ambiente profissional dos professores, e que os deveresde criança, cobrados dos alunos, eram sobrepostos aos direitos garantidosna Constituição Federal.

O desconhecimento dos artigos do Estatuto da Criança e doAdolescente (ECA) por parte da comunidade escolar fazia com que o cami-nho da educação parecesse cada vez mais distante da proposta educativa,cujo pressuposto é o desenvolvimento integral da criança. O distanciamen-to de tal instrumento tornava a escola uma instituição isolada, desampa-rada e despreparada para lidar com situações como esta. A partir dessareflexão, pudemos perceber a necessidade de conhecer o ECA e de desen-volver o despertar, a sensibilidade e a conscientização de alunos e profes-sores sobre seus direitos e deveres. Conhecer o que está escrito é impor-tante, mas não suficiente. Era preciso também vivenciar e incorporar emnossas vidas os deveres de cidadãos, permitindo o fortalecimento dos

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direitos e dos deveres da criança, da família e da comunidade, para, dessaforma, exercer uma educação integral visando à formação de cidadãos. OEstatuto foi um grande avanço na proposta de uma educação em quecrianças e adolescentes são considerados seres humanos em desenvolvi-mento e sujeitos de direitos e deveres, além de colocar a família, a socieda-de e o estado como parceiros e co-responsáveis pela prioridade absolutado desenvolvimento integral e da proteção às crianças e aos adolescentes.

Dar ao Estatuto a mesma importância que à Lei de Diretrizes e Basesda Educação (LDB) na nossa escola foi imprescindível para a escolha docaminho para a situação de Arthur. De posse do ECA, a escola encaminhoua criança e a família para o Conselho Tutelar de Samambaia, onde foramacolhidos e orientados, o que ajudou até mesmo a desmistificar para acomunidade escolar o papel punitivo e de “tirador de criança da família”que rondava os Conselhos Tutelares. Arthur foi encaminhado a medidasprotetivas. Seu pai, bem como sua família paterna, foram acionados para ocumprimento de suas responsabilidades, e dona Maria recebeu orienta-ções sobre seus direitos e deveres de mãe e de autoridade. A escola, por suavez, elaborou dois projetos: Conhecendo seus Direitos para Fortalecer seusDeveres, para os alunos de primeira a quarta série, e Conhecendo oEstatuto da Criança e do Adolescente, voltado para as famílias.

Hoje, seis meses depois, podemos afirmar que aquele menino que“não tinha mais jeito” está mudando de atitude na escola. A comunidadetambém tem relatado melhoria em seu comportamento. A mãe de umaaluna da escola, professora de uma creche da região, chegou a convidarArthur para ficar em sua casa após as aulas para que estudasse e fizesse aslições. Acreditamos que, com o trabalho em rede – escola, Conselho Tutelare Ministério Público – e direcionados pelo ECA, estamos colaborando parao fortalecimento dos direitos e dos deveres de forma consciente e prática.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” O ECA em Samambaia 91

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Esta história bastante real testemu-nha-nos esperança. Esperança na possi-bilidade da escola como instituição edu-cadora, esperança nas leis – neste caso, oECA e a LDB – como regulação necessá-ria ao reconhecimento do sujeito cida-dão – a criança, o Arthur – mas tambémao compromisso e à obrigação de a esco-la, a família e a comunidade assumiremsolidariamente a proteção e o desenvol-vimento de crianças e adolescentes.Mais que isso, a esperança nos canais enas instâncias colocados à disposiçãodos cidadãos – Conselho Tutelar e Minis-tério Público – para restaurar a justiça.

Este caso encanta! Arthur, meninode dez anos, franzino, mas potente, co-mo tantos outros Josés e Marias, filhose filhas de famílias pobres habitantesdas periferias das grandes cidades.Famílias marcadas pela privação dosterritórios chamados de periferia, mar-cadas pela própria história de vidacunhada na precarização. Precarizaçõesde renda, de trabalho, de habitação,de afeto que conjugam um processo

cumulativo de vulnerabilidades e insta-bilidades. Precisam e clamam peloabraço protetor da comunidade e dasinstituições de proximidade.

Um caso de ação pró-ativa! Comu-nidade e instituições de proximidade –escola e Conselho Tutelar – acolherame protegeram. As instituições poderiamoptar pelas soluções de sempre – asnão-soluções –, expressas na expulsão,na exclusão e, sobretudo, no descréditono sujeito usuário de seus serviços.

Mas não! Essas instituições e seusagentes decidiram pelo compromisso,pela restauração de condições. Aposta-ram na ação conjugada entre comunida-de, família e escola. Souberam engajarConselho Tutelar e Ministério Público.Apostaram na potência dos sujeitos – Ar-thur e sua família – e não na fragilidade.

Um caso que sinaliza o novo na polí-tica social. O ECA já é, em si, um anúnciodo novo, pois radicaliza o sentido multi etransetorial da proteção e do desenvol-vimento integral da criança e do adoles-cente. A escola já não pode mais estar

92 O ECA em Samambaia CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Maria do Carmo Brant de CarvalhoO ECA em Samambaia

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desconectada da comunidade e da pró-pria família. Não pode pensar seu fazereducacional sem aliá-lo aos fazeres dasdemais políticas setoriais – saúde, cultu-ra, lazer, assistência social, justiça – nomesmo território, o da comunidade depertença da família e do Arthur.

É preciso ver o Arthur e sua família emsua inteireza, em suas demandas e poten-cialidades. Não normatizar condutas, masconjugar educação e proteção visando àconstrução de uma vida digna e segura.Acreditar verdadeiramente que todospodem se desenvolver independentemen-te de seus pontos de partida, que todostêm o direito de experimentar aprendiza-

gens bem-sucedidas, de aprender a terprazer em conhecer, em saber fazer, emproduzir, em viver com os outros.

Há uma delicadeza em tudo isso. Umadelicadeza no olhar que busca intimida-des colaborativas e não institucionalida-des burocráticas. Se já pudemos olhar ever, podemos agora aprender a reparar.

Maria do Carmo Brant de Carvalho é coor-denadora geral do Centro de Estudos ePesquisas em Educação, Cultura e AçãoComunitária (Cenpec), é pós-doutorada emciência política pela École des HautesÉstudes en Sciencies Sociales da Universi-dade de Paris, na França, e doutora em ser-viço social pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo (PUC-SP).

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” O ECA em Samambaia 93

Art. 18 - E dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvode qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Art. 53 - A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimen-to de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, asse-gurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;II - direito de ser respeitado por seus educadores;...IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;V - acesso a escola pública e gratuita próxima de sua residência.Parágrafo Único - É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico,bem como participar da definição das propostas educacionais.

Art. 105 - Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.

Artigos doECA

O ECA emSamambaia

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VIDA PASSADA A LIMPO

Maria Sueli Fonseca Gonçalves São Paulo - São Paulo

Maria Sueli é professorade língua portuguesada Escola Municipal de Ensino FundamentalPadre Antônio Vieira,trabalha naCoordenadoria deEducação do bairro da Penha e desenvolve o projeto AcademiaEstudantil de LetrasPadre Antônio Vieira(AEL).

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Pedro, 14 anos, negro, morador da periferia de São Paulo, toma contade carros estacionados na rua para ajudar no orçamento da casa. A vidanão está nada fácil e, para completar, é “convidado a procurar” outra esco-la por mau comportamento. Acabrunhado, magoado, confuso e diminuído,o menino chega na nova escola. Quem o observasse com atenção, noentanto, perceberia nos olhos negros e graúdos um não-sei-quê de ternu-ra, de bondade e de infância lutando para virar juventude digna, correta enormal, apesar de tudo.

– Professora, professora!Ela não o conhecia e não o ouviu, seguiu pela rua estreita, a passos

rápidos, porque precisava chegar na outra escola e cumprir a segunda jor-nada do dia.

– Professora, professora!– É comigo que você está falando? Desculpe, parece que ontem era

você me chamando. Desculpe. O que há?– Eu quero ser acadêmico. O que preciso fazer para ser acadêmico?Pedro ouvira falar da Academia Estudantil de Letras Padre Antônio

Vieira, onde alunos da escola ocupavam cadeiras literárias e participavamde estudos semanais, defendendo os seus patronos.

– Pois não. Você pode ser um acadêmico, sim. Vamos combinar? Todasas últimas quintas-feiras do mês convidamos um escritor, poeta, literatopara dar palestra aos acadêmicos aqui na escola. Neste mês, virá um escri-tor de nome Waldomiro Gonçalo, você vai gostar. Venha então na próximaquinta-feira.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Vida passada a limpo 95

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Foi assim que Pedro chegou à Academia de Letras e identificou-se demaneira impressionante com o escritor convidado. Waldomiro, guarda-civilmetropolitano, havia se “descoberto” escritor, conforme seu humildedepoimento, e lançado o seu primeiro livro. O poema “Fome”, especialmen-te, tocou a sensibilidade do jovem estudante, que chorou ao ouvir a inter-pretação majestosa do autor, o qual, apercebendo-se, doou-lhe carinhosa-mente um exemplar.

Desse dia em diante, Pedro passou a freqüentar a Academia Estudantilde Letras como simpatizante e não se afastou mais dos livros. Era comumencontrá-lo com o livro de Waldomiro nas mãos, tentando memorizar opoema “Fome”. Seus olhos tinham agora um brilho especial, não mais visívelapenas a alguns, e em suas atitudes percebia-se uma transformação eviden-te: o menino descobrira o seu valor, a sua auto-estima havia sido recuperadae, por se sentir finalmente amado e respeitado, quebrou as amarras e liber-tou-se. Entre os “imortais”, escolheu Manuel Bandeira e começou a estudar avida e a obra deste notável poeta. Naquele momento, já era suplente, apoia-do em seus estudos pelo acadêmico titular da cadeira pretendida.

Tudo seguia normalmente. Essa história parecia ter chegado ao espe-rado “final feliz”, mas o destino pregou-nos uma peça. A AcademiaEstudantil de Letras foi convidada a participar de um sarau poético numadas escolas vizinhas. Motivo de honra, porém, tratava-se da mesma escolade onde Pedro houvera sido “convidado a se retirar” pouco antes, conformerelatamos no início.

O menino tremeu nas bases, obviamente. Como enfrentar tamanhodesafio? Não comparecer ao evento foi a primeira idéia que lhe pareceurazoável. Não conseguiria subir ao palco e declamar. Como se posicionardiante dos antigos colegas e professores que conheciam tão bem suaantiga história, aquela que ele próprio desejava esquecer? Mais uma vez,nosso herói conseguiu se superar. Fechou os olhos, declamou o poema“Fome” emocionadíssimo, como antes nunca o fizera. A curiosidade inicialdos expectadores, estampada num meio riso em muitos rostos, foi, pouco

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Olá, Pedrinho, meu xará. Conheçomuitas histórias iguais à sua, mas,infelizmente, são raras as que têm umfinal feliz como aconteceu com você. OBrasil, meu querido menino, foi cons-truído como o País da Exclusão, umimenso território onde não cabe amaioria de nossa população. A come-çar pela metade de nós, que inclui pes-soas como você: os descendentes dasmaiores vítimas de nossa história, osafricanos escravizados. Aprendemosque essa escravidão terminou hámuito tempo, não é? Mas, como termi-nou? Com o fim do trabalho escravo ecom a absorção dessa imensa parcelade nossa população pela sociedade,com direito à cidadania, ao acesso àterra, à propriedade, à educação? Não,Pedrinho, isso não aconteceu. Seus tri-savôs foram libertados e imediata-

mente jogados nos últimos degraus dasociedade, sem cidadania, sem direitosequer a executar, desta vez recebendosalários, os serviços que praticavamantes, como escravos. Nosso governoapressou-se a abrir as fronteiras parareceber imigrantes pobres da Europaque substituíssem o trabalho escravoe, para os recém-libertos, sobraramsomente as tarefas mais pesadas, maisdesgastantes, que nem esses imigran-tes pobres queriam executar.

E uma das mais perfeitas formas deperpetuar essa exclusão, Pedrinho, foitreinar nossos professores para perse-guir os alunos mais fracos, os que nãotinham “berço”, os que não entendiamo discurso do mestre. Eram estes ime-diatamente chamados de “burros”,“preguiçosos” e “bagunceiros” se por-ventura se distraíssem por não estar

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Vida passada a limpo 97

a pouco, convertendo-se em seriedade e silêncio. Ao final, o jovem acadê-mico Pedro, já titular da cadeira número 17, de Manuel Bandeira, naAcademia Estudantil de Letras, foi aplaudido, de pé, entusiástica e respei-tosamente, por todos.

Pedro BandeiraVida passada a limpo

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entendendo o discurso afetado do pro-fessor. Daí, meu querido menino,vinham as suspensões e, logo, a expul-são da escola. Esta sempre foi a “solu-ção” educacional para as dificuldadesdos alunos.

O resultado mais comum dessasexpulsões, Pedrinho, não era a alterna-tiva de o expulso ingressar numa “aca-demia escolar” e, com a ajuda da lite-ratura, conquistar um novo papelsocial e construir um final feliz, com aplatéia aplaudindo-o de pé. Infeliz-mente não, meu querido menino. Oque acontece com esses excluídos éserem jogados na rua, tendo comocompanhia apenas os outros excluídosque pelas ruas perambulam sem espe-rança. Daí, revoltados, guardando nocoração apenas o desprezo de que fo-ram vítimas, organizarem-se na margi-nalidade, entrando no mundo das dro-gas, do tráfico, do crime.

É claro que há muitos fatores quepodem explicar a marginalidade brasi-leira, mas, sem dúvida, um deles é opapel da escola. Nós, professores,fomos treinados de uma maneiracuriosa! Fomos preparados para agircomo um médico que aprendesse nafaculdade que só deve cuidar dos

pacientes sãos e expulsar do hospitalaqueles que apresentam doenças maisgraves...

Eu gostaria que a sua história,Pedrinho, fosse a regra, não a exceção.Ah, como eu gostaria! Será esse umsonho impossível? Será uma loucuraesperar que uma professora, abordadana rua por um menino negro, expulsoda escola, imediatamente o introduzis-se num grupo seleto que usa a literatu-ra como arma para a conquista da feli-cidade e da realização pessoal? Seráque há professoras assim?

Eu acho que há. Conheço muitasdelas. São minoria, eu sei, mas sãoaquelas pessoas que mantêm em meucoração a esperança de um Brasilmelhor.

Seja feliz, Pedrinho. Continue a bus-car nos livros as soluções para a suavida. Há gente que não desiste da lutaque levará ao resgate de todos osmilhões de Pedrinhos do Brasil. Eu con-fio. Se não confiasse, pra que viver?

Pedro Bandeira é jornalista e escritor, autorde livros infanto-juvenis publicados noBrasil e no exterior e ganhador de váriosprêmios literários, entre eles o PrêmioJabuti e o da Associação Paulista de Críticosde Arte (APCA).

98 Vida passada a limpo CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Vida passada a limpo 99

Art. 54 - É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:...V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segun-do a capacidade de cada um;...

Art. 58 - No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricospróprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade decriação e o acesso às fontes de cultura.

Art. 71 - A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diver-sões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa emdesenvolvimento.

Artigos doECA

Vida passada a limpo

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SORRISOS DE MARINA

Luciana Ribeiro Barros Juiz de Fora - Minas Gerais

Luciana é pedagoga,psicóloga e diretorapedagógica da EscolaInternacional Pangea.

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A escola onde atuo está situada no município de Matias Barbosa,pequena cidade próxima a Juiz de Fora. Trata-se de um projeto social deuma empresa, que trabalha há quase três anos com 25 crianças de famíliasde baixa renda em horário integral, numa ação de inclusão social.

Semana passada, a mãe de Marina, aluna da escola, telefonou justifi-cando que não poderia ir à reunião porque o teto de sua cozinha estavacom risco de desabamento e teria que desocupar o local. Perguntei se elajá havia solicitado auxílio na prefeitura. Ela disse que sim, mas que nãohavia previsão de nenhuma obra ou ajuda. Continuei os meus trabalhos,mas, volta e meia, pegava-me pensando na situação da família.

A empresa que mantém a escola tem atividades no ramo de constru-ção, o que me levou a tomar a iniciativa de perguntar se poderiam verificaras condições da casa desta família e de executar alguma reforma. Paraadiantar o processo, me ofereci para ir até a casa e tirar fotos do local pararegistrar os riscos da estrutura daquela moradia.

No início da escola, três anos atrás, eu já havia visitado algumas famí-lias para o processo de seleção, mas desta vez foi diferente. Para explicaressa diferença, meu “causo” tem que mudar de forma literária. Acho quetambém mudei de alguma forma. Em casa, à noite, depois das fotos, comuma chuvinha fina lá fora, não conseguia dormir e fui escrever para meentender, para relaxar, para desabafar:

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Sorrisos de Marina 101

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102 Sorrisos de Marina CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Sei que toda vez que choverVai inundar minha menteAs rachadurasDaquele tetoDaquela paredeDaquela gente

Sei que toda vez que chover...Apertarei-me em meus braços Atados na memória dos fiosVirarei curto, circuito, embaraço.Retorcerei longo, desespero, cansaço.

Nós de fios, no teto, queimados.Em teia, em gato, esgarçados.

E se chover forte?

A porta cedeu à violênciaDescascou parede,Transformou o paiMolhou o chão.

A coberta agasalhava a janela,Só moldura, só rangia - de medo,

raiva e frio.Eu só olhava,Fotografava e...MolhavaA vista patinavaNos pés dos móveis destruídos

nos meus pésNa ferrugem, no lodo.

Era mais fácil sairEra mais fácil fugirEra mais fácil fingir

Mas aqueles fios!Apertados de gordura, de tempo (Que tempo? Quanto tempo?)Apertados os nósApertados os corposMal cuidados, mal nutridos, mal

deitados.Apertados os fios de vontadeDe banho quenteDe ferro de passarDe luz elétricaDe outras histórias para contar...

Uma trégua!

A chuva cessa.Vou uma légua pra fora do barracoEspio as nuvens que costumam

trazer sonhos...

Nós de fios elétricos bem que podiam ser laços de fita

Fitas largas, brilhosas, deslizantes!Laços coloridos, de cintura de

vestido novo!Vestido pra ir à festa!Pra dançar!

Sorrisos de Marina

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Sorrisos assim trazem saberes de além dos livros para as linhas docoração. Sorrisos assim mudam o sentido dos dados estatísticos, dão vidaaos estatutos.

Ao entrar no barracão de Marina, vi que lá não cabia minha “neutrali-dade”. Senti que não sou forte se “força” significar o meu escudo. Por causade Marina, tive a exata noção do valor guardado em todos os outros barra-cões sob a tempestade que rega nossa querida Terra. Senti-me impotente,com todos os meus sentimentos secando minha boca. Virei-me para des-pedir de Marina. Deparei com seu sorriso... O que ajudava a mover aquelesorriso, embora tímido, sobre um corpo frágil e receoso, abrigado dentrodaquele barraco?

Quando nos abraçamos, não me senti mais tão impotente assim... Sentique o que também ajuda a mover o sorriso de Marina é uma ponta de ale-gria, equilibrada num traço de esperança fincado na palma da minha mão.

No momento, a empresa está doando o material de construção para afamília de Marina e já conseguimos uma porta. Parceria com a prefeituraestá sendo feita para a mão-de-obra da casa de Marina e a chuva já não meincomoda tanto!

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Sorrisos de Marina 103

Pra embrulhar docinhos em barra!Pra cantar!Pra lambuzar de molho, de doce,

de fantasia!Pra simplesmente, rodopiar!

Vestido pra combinar com tiara,com brinco, com pulseira.

Podia ser estampado de rosaCombinar com batomDaquele tom,

Que colore sorrisos!

Sorrisos em longo convívioSão cada vez mais procuradosMais provocadosCarinhosamente cultivadosDe tanto sorrirem,Balançam, aquecem, conquistamGanham brilho, cor, nome...Viram sorrisos de Marina!

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Uma lição o brasileiro aprendeu aolongo da trajetória da nossa incipientedemocracia: na luta pela vida digna, sóa educação pode garantir o futuro deseus filhos. Cada vez mais, a populaçãomais pobre reconhece na escola o pas-saporte para um futuro melhor.

Apenas as conquistas crescentes pormelhores níveis educacionais, ultra-passando, inclusive, as habilidadesbásicas, poderão garantir, no futuro,uma inserção no mercado de trabalhocondizente com um padrão melhor devida da população e uma distribuiçãode renda mais igualitária entre apopulação brasileira.

O grande desafio da educação noBrasil hoje é a melhoria da qualidadeda educação básica. É uma prioridadeinadiável. Assim, será possível cami-nhar no sentido da igualdade de opor-tunidades, passo fundamental paracombater nossas mazelas sociais.

E a ênfase continua sendo o ensinofundamental, pois os resultados do Cen-so Escolar e das avaliações de desempe-

nho dos alunos mostram com clarezaque, sem isso, não será mais possível aexpansão, com qualidade, do ensinomédio. Qualidade requer eficiência nouso dos recursos, prioridade para a for-mação em serviço dos professores, maise melhores materiais didáticos de apoio,mais tempo na escola, melhor uso dotempo em sala de aula, mais participa-ção dos pais. Não é preciso inventar,mas é preciso compromisso, seriedade,continuidade e firmeza nas ações.

Uma concepção de política socialvoltada para o desenvolvimento hu-mano entende que a vulnerabilidadesocial não é apenas uma questão deinsuficiência de renda, mas de dificul-dade de acesso a políticas públicas queampliem as oportunidades das famí-lias na superação das vulnerabilidades.

A sociedade amadureceu muitoquanto a esse entendimento. Desen-volvimento social não é apenas tarefado governo e, sim, de parceria e soli-dariedade entre todos os setores dasociedade, como na história da Marina.

104 Sorrisos de Marina CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Maria Helena Guimarães de CastroSorrisos de Marina

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O “causo” apresentado e o próprioescopo desta publicação são provaseloqüentes. Há crescente insatisfaçãoda sociedade com o grau de pobreza,desigualdade e injustiça presente noPaís. Essa insatisfação expressa-se pelonú-mero cada vez maior de brasilei-ros com participação ativa em ativida-des públicas por meio de organizaçõesdo terceiro setor ou mesmo comovoluntários.

Há algum tempo, empresas colocamsua criatividade e sua capacidade ge-rencial a serviço de um desenvolvimen-to econômico que também signifiquedesenvolvimento social e preservação

ambiental, assumindo responsabilida-des com a comunidade onde atuam. Afilantropia de antes foi substituídapela responsabilidade social. Hoje, aspessoas estão muito mais conscientesde seus direitos, sentem-se mais res-ponsáveis por suas decisões e esta seráa base de seu progresso social.

Maria Helena Guimarães de Castro é cien-tista política, professora da UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp). É secre-tária de Estado da Ciência, Tecnologia eDesenvolvimento Econômico do Estado deSão Paulo, já tendo ocupado a SecretariaEstadual de Assistência e DesenvolvimentoSocial.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Sorrisos de Marina 105

Art. 87 - São linhas de ação da política de atendimento:I - políticas sociais básicas;II - políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles quedeles necessitem;III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas denegligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;IV - serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentesdesaparecidos;V - proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Art. 88 - São diretrizes da política de atendimento:I - municipalização do atendimento;...

Artigos doECA

Sorrisos deMarina

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APRENDIZAGENS DO ECA

Edilaine Vieira Lopes Novo Hamburgo - Rio Grande do Sul

Edilaine é professora delíngua portuguesa doensino fundamental eestudante universitáriade letras no CentroUniversitário Feevale deNovo Hamburgo.

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Foi em 2003, ou melhor, março de 2003. Eu acabara de sair do magis-tério e estava encarando meu primeiro desafio como educadora: meu está-gio! Estava em uma humilde escola municipal, próxima à minha casa, ondeestudei até a quarta série, e agora dividia espaço com meus antigos (efinalmente colegas) professores.

A segunda série, turma na qual desenvolvi vários projetos durante oestágio, era encantadora! Crianças pobres e simples, mas que, ao final decada aula, ajudavam-me a carregar os livros e as caixas de leitura atéminha casa, a duas quadras da escola.

Todas aquelas crianças eram especiais para mim. Mas havia um meni-no, de apenas oito anos, baixinho, magro, quase desnutrido, amarelinho ede roupas rasgadas, que mexeu muito comigo. Eu sabia que outro motivotrazia-o à escola, além do estudo: a fome. Bastava vê-lo chegar e tomarcom vontade seu copo de leite com pão, presenciar sua terceira repetiçãodiária de feijão ou polenta com molho durante a merenda ou apenasacompanhar sua triste volta para casa, com uma banana ou uma laranjana mão.

Eu já havia estudado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)inteirinho durante o magistério. Sabia que me deparararia com casos emque crianças são maltratadas ou abnegadas de seus direitos. Só não sabiaque seria assim, tão traumático, como foi no meu estágio.

Um dia cheguei à escola, como de costume, cedo da tarde, logo apóso almoço. Para minha surpresa, lá estava ele: o meu aluno! Logo naqueledia de chuva, com a temperatura caindo dois graus a cada hora, ele resol-veu ir à aula... Que milagre! Nunca ia quando chovia muito, pois tinha

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Aprendizagens do ECA 107

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poucas roupas e apenas um tênis velho e rasgado que a família “sorteava”entre os cinco irmãos durante a semana de chuva, fazendo com que cadaum deles fosse num dia da semana, pelo menos para garantir a comidaque ganhavam da escola.

“Estudar pra quê?”, como eles mesmos falam por lá. É costume man-dar os filhos para ganhar o que comer e voltar para casa de estômagocheio. O que não ocorria em semanas de chuva, mas naquele dia, sim.

Aproximei-me e perguntei:– Veio à aula hoje, Samuel? Não está com frio, só de chinelos?De cabeça baixa, mal me olhou e respondeu rapidamente, desviando

de minha direção, o que não era de costume:– É, meu irmão também veio, tá com meu tênis, “sora”.Quando virou seu rosto, vi seu olho inchado, roxo, e não me contive:– O que houve com seu olho?Silêncio.– Nada, não, sora, eu caí no banheiro.Eu sabia que a humilde casa, que mal abrigava todos os irmãos jun-

tos em um único cômodo, não tinha banheiro grande, a ponto de se cairnum tombo. Mas respeitei seu silêncio e fomos para a sala de aula. Lá, oinevitável. Bateram na porta:

– Vim buscá meu filho. Ele vai voltá pra casa.– Não vô! Quero ficá.– Tá frio, vamo embora, eu tô mandando.Apavorada com a mãe de olho roxo, gritando com o filho na porta,

deduzi que ela não podia ter caído no banheiro também... Na tentativa deme tranqüilizar, os colegas de Samuel falaram:

– Xiiii! Acho que eles vão fugir de novo...– Fugir de quem? Por quê? – perguntei apavorada.– Do pai, ué? Ou a senhora não sabe que ele é bebum? Chega em casa

e bate na mulher. Daí, sobra pro Samuel também.Imediatamente, procurei a coordenação pedagógica, que me disse

108 Aprendizagens do ECA CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

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ser comum essa atitude também em outras famílias de alunos da escola.No outro dia de manhã, inconformada, fui até a casa de Samuel e,

para minha surpresa, encontro a irmã mais velha, que não me diz paraonde levaram meu querido e indefeso aluno. Pergunto pelo pai. Ela descon-versa, diz que não está. Escuto barulhos na casa. Em tom de advertência,menciono o ECA, dizendo que os direitos de Samuel estavam sendo desres-peitados e que acionaríamos as autoridades caso ele voltasse à escola comvestígios de agressão.

Passaram-se alguns dias. Era uma manhã fria, tipicamente gaúcha.Daquelas em que acordamos cedo, só para ficar comendo pinhão e toman-do chimarrão à beira do fogão à lenha. Fui à escola e lá encontrei Samuel,acompanhado do pai, que me disse:

– Obrigado por cuidá do meu filho.Sem palavras e tomada de ódio, ouvi Samuel, ainda com um tom roxo

em torno dos olhos, contar que seu pai arrependera-se e fora procurarajuda em um grupo de apoio, o qual lhe estava aconselhando a preservaros direitos da sua família e dos seus filhos.

Sem o ECA, eu não teria subsídios nem coragem de ir até aquele bar-raco falar com aquela gente... Mas fui, confiante na força deste poderosoEstatuto. Hoje, continuo lecionando, numa situação social um pouco dife-rente, em outra escola. Contudo, certas vezes, ainda me deparo com casosde abusos, para isso, não hesito: puxo o meu ECA do bolso e aponto, comose fosse um cartão vermelho na mão de um juiz em final de Copa doMundo!

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Aprendizagens do ECA 109

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110 Aprendizagens do ECA CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Qual a moral da história? Em pri-meiro lugar, ela ensina que uma profes-sora comprometida com seus alunossabe quando desconfiar de que estesestão sendo vítimas de violência emcasa. Samuel é uma vítima típica deviolência doméstica de natureza física(VDF) não só por trazer as marcas damesma em seu corpo (olho roxo), maspor tentar disfarçá-las com explicaçõesimprováveis (queda no pequeno ba-nheiro) e não querer voltar para casacom a mãe (vítima e talvez cúmplice).

A violência doméstica de naturezafísica pode deixar as mais variadasmarcas, conforme a agressão praticada(com ou sem instrumentos). Esse tipode violência costuma ser praticado porambos os pais, numa cultura como anossa, que tem 500 anos da famigera-da mania de bater nas crianças sob afalsa alegação de educá-los 1. No casode Samuel, o agressor é o pai, que tam-bém agride a mãe, especialmentequando bebe. O pai patrão é uma tris-te realidade no nosso país.

Esse tipo de pai costuma usar oálcool como desculpa para o “descon-trole da violência”. Na realidade, po-rém, a vontade de bater é anterior aoabuso de bebida. Por isso, os grupos deajuda – embora importantes – não vãoresolver se a família não aprender aenfrentar a verdadeira fonte da violên-cia doméstica contra esposa e filhos:um padrão de relacionamento abusivo,assentado na lei do mais forte, o pai,detentor de direitos que aos fracos(esposa e filhos) são negados.

Infelizmente, a violência domésticade natureza física contra crianças eadolescentes é mais freqüente do quese imagina: de 1996 a 2005, foramnotificados 41.587 casos em 65 municí-pios de 16 unidades federadas brasilei-ras somente nos três primeiros mesesde cada ano 2. Nesse período, foi asegunda modalidade mais notificadade violência doméstica contra criançase adolescentes (VDCA), só sendo supe-rada pelos casos de negligência (vio-lência por omissão).

Maria Amélia AzevedoAprendizagens do ECA

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Os casos notificados são os maisgraves e constituem a ponta de umenorme iceberg de violências que nãochegam jamais ao conhecimento dasautoridades de proteção à infância(Conselhos Tutelares, Varas da Justiçada Infância e Adolescência, delegaciasde polícia).

Samuel enquadra-se nessa realida-de das ocorrências não notificadas,que às vezes – mas não sempre – resol-vem-se com uma visita domiciliar feitapela professora, associada à ameaçade denúncia com base no ECA (espe-cialmente os artigos 5, 17 e 18). A histó-ria de Samuel parece ter tido finalfeliz: voltou à escola, com o pai aparen-temente contido e arrependido.

No entanto, a história do combate àviolência doméstica contra crianças eadolescentes – especialmente aquelade natureza física – ensina que histó-rias com final feliz são raras: o maiscomum é a violência aumentar em

casa depois de ser desvelada (na esco-la, na comunidade). Daí, a importânciada proteção à criança vítima de violên-cia para evitar sua revitimização. Essaproteção inclui necessariamente anotificação às autoridades competen-tes, como previsto nos artigos 13, 56 e245 do ECA.

No entanto, a melhor de todas asproteções é a prevenção, ou seja, aque-la que chega antes que uma criança ouadolescente se torne um prontuáriomédico, um boletim policial, um pro-cesso judicial, um dossiê psicossocial,uma notícia de jornal ou um corpo nonecrotério.

Maria Amélia Azevedo é psicóloga, livre-docente em psicologia, advogada, professoratitular do Departamento de Psicologia daAprendizagem, do Desenvolvimento e daPersonalidade do Instituto de Psicologia daUniversidade de São Paulo (USP), doutorapela Faculdade de Educação da USP e coor-denadora do Laboratório de Estudos daCriança (Lacri) da USP.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” Aprendizagens do ECA 111

1 A mania de bater como forma de “educar” crianças/adolescentes foi introduzida no Brasilpor jesuítas, já que nossos índios não costumavam bater nos filhos (Azevedo MA, GuerraVNA. Mania de bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. SãoPaulo: Iglu, 2001).

2 Cf. Estatísticas brasileiras no site dos Laboratórios de Estudos da Criança do Instituto dePsicologia da Universidade de São Paulo (www.usp.br/ip/laboratorios/lacri).

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112 Aprendizagens do ECA CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art. 5º- Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, dis-criminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualqueratentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 56 - Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão aoConselho Tutelar os casos de:

I - maus-tratos envolvendo seus alunos;II - reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escola-res;III - elevados níveis de repetência.

Art. 101 - Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competentepoderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;IV - inclusão em programa comunitário ou oficial, de auxílio à família, à criança e ao adolescente;V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalarou ambulatorial;VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento aalcoólatras e toxicômanos;...

Art. 245 - Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção àsaúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competen-te os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tra-tos contra criança ou adolescente:

Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Artigos doECAAprendizagens do ECA

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E AGORA, JOSÉ?

José Alencar Ramos Santo Ângelo - Rio Grande do Sul

José é estudante e participa de oficinas

de informática,artesanato e esportes.

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“A festa acabou,a luz apagou,(...)a noite esfriou,e agora, José ?e agora, você ?você que é sem nome,que zomba dos outros,você que faz versos,que ama protesta,e agora, José ?

(...)está sem discurso,está sem carinho(...)”

Em meio a incertezas, angústias e ansiedades, atravessei o portão docentro de recuperação de dependentes químicos. Enquanto me conduziamao meu quarto na clínica, recordei destes versos do poeta CarlosDrummond de Andrade. A lembrança da manhã em que voltei à casapaterna veio à luz da memória. Em meio ao pranto desenfreado, imploreipara minha mãe:

– Por favor, me ajude! Então, numa manhã escaldante de fevereiro, fui me internar, crendo

que aquele lugar seria a cura para essa doença: eu era prisioneiro de mimmesmo, era um pássaro preso em gaiola aberta.

Minha estadia na clínica durou só quatro meses. Teria que ficar inter-nado nove meses, mas, da segunda vez que fugi daquele local, não maisretornei. A clínica não alimentou minha fome de mudança. Voltei às ruas,

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e minha vida passou a ser tudo aquilo que era antes de entrar na clínica.Troquei a noite pelo dia. Para casa, só ia para mudar de roupa. Do uso dedrogas ilícitas, passei a praticar furtos. Precisava de dinheiro para alimen-tar meu vício cada vez mais... Num desses delitos, fui autuado e encami-nhado ao Juizado da Infância e da Juventude. Durante uma audiência, ojuiz encaminhou-me ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e doAdolescente (Cededica) de Santo Ângelo, Rio Grande do Sul.

Junto ao Cededica funciona o Projeto Escola de Passagem, que acolheadolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto eque estão evadidos da escola regular. Passei a cumprir as medidas de pres-tação de serviço à comunidade (PSC) e de liberdade assistida (LA). Freqüen-tar a Escola de Passagem fazia parte da LA, pois eu estava evadido da esco-la regular.

O meu dia-a-dia no projeto fez com que minha vida caminhasse rumoa uma transformação inacreditável. Na escola, receberam-me como um paique recebe o filho pródigo que esteve ausente da casa paterna por muitotempo. Eu realmente fazia parte de uma família. Sentia isso, vivia isso.Percebi que o tratamento recebido na escola era igual para todos os meuscolegas: éramos tratados com carinho e respeito, coisa que a maioria daspessoas acha que, por sermos adolescentes infratores, não podemos receber.

Graças à Escola de Passagem, temos a oportunidade de mostrar àsociedade que somos pessoas dignas de respeito. Os professores dessaescola mostraram que existem pessoas que se preocupam com o aluno,não importando sua classe social ou sua raça. O que importa é que os pro-fessores e os orientadores estão lá para ajudar, orientar, aconselhar e mos-trar o caminho certo para seguirmos. E são esses os fatores que nos trazemsegurança e vontade de mudar para que nossos familiares e professoresfiquem orgulhosos com nosso desempenho.

O sacrifício valeu a pena. Atualmente, estou com 16 anos. Minha pas-sagem nessa escola propiciou uma transformação, eu diria um milagre. Ofuturo já não é mais incerto. Tenho, hoje, tantas certezas: pretendo estudar

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” E agora, José? 115

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Não ser o José do poema de CarlosDrummond de Andrade foi a grandemudança na vida de José AlencarRamos, um garoto de 16 anos do RioGrande do Sul.

Afundado na combinação abuso dedrogas-delito, encontrou na medidasocioeducativa um espaço para repen-sar sua vida. Do seu relato, emergemaspectos que toda teoria da criminolo-gia e até mesmo os paradigmas dasocialização abordam apenas comsuperficialidade.

A vinculação e o estabelecimento deuma referência positiva com um edu-cador, orientador, professor é a almado processo de reconstrução de suasnovas alternativas de vida. Ao afirmar,num tom entre poético e religioso, que“Tudo pode na bondade e na ternuradaqueles que acreditaram em mim”,José indica os sentimentos que obser-vou nos outros e que busca para si.

Tomou consciência também dasinterrogações da vida, cujas respostaspodem ser indicadas apenas por pistas

e fazer um curso de graduação e, quando estiver formado, voltar e dizer“muito obrigado” para o meu professor (que também é meu orientador) epara a professora, pois eles acreditaram na minha recuperação quando eumesmo achava estar tudo perdido.

Já não sou mais aquele José do poema de Carlos Drummond deAndrade. Agora eu tenho discurso, tenho carinho por mim mesmo. A bon-dade veio, assim como a utopia: tudo é realidade, tudo é possível. Tudopode na bondade e na ternura daqueles que acreditaram em mim. E isso érefletido no cotidiano junto à mãe do meu filho, que eu amo e que me deua maior força na recuperação.

116 E agora, José? CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Mário VolpiE agora, José?

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muito sutis dos outros, mas que preci-sam ser respondidas pela coragem epela responsabilidade de cada um.

O “causo” em questão permite-nosperceber que o aparato institucionalde combate ao delito só consegueobter resultados se os operadores dosistema forem pessoas capazes deorientar processos de reflexão internae profunda de cada sujeito autor deato infracional. Esse aspecto das rela-ções subjetivas fica por vezes negligen-ciado em função das diversas questões

debatidas em torno do projeto peda-gógico, das políticas de financiamento,dos parâmetros arquitetônicos e dasdemais questões estruturais.

A relação educador-educando comofonte de ressocialização é o grandedestaque deste “causo”.

Mário Volpi é filósofo e mestre em políticassociais, coordena o programa Cidadaniados Adolescentes do Fundo das NaçõesUnidas para a Infância (Unicef) no Brasil e é autor de livros que tratam das questõesrelacionadas aos adolescentes privados deliberdade.

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” E agora, José? 117

Art. 122 - A medida de internação só poderá ser aplicada quando:I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.Parágrafo 1°- O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá sersuperior a três meses.Parágrafo 2°- Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

Art. 123 - A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, emlocal distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios deidade, compleição física e gravidade da infração.

Parágrafo Único - Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigató-rias atividades pedagógicas.

Art. 124 - São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros os seguintes:...XI - receber escolarização e profissionalização;...

Artigos doECA

E agora, José?

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EU TAMBÉM FAÇO PARTE

Suzete Faustina dos Santos Santos - São Paulo

Suzete é pedagoga com habilitação emadministração escolar e pós-graduanda emgestão escolar.Atualmente é diretorade escola estadual na cidade de Mongaguá (SP).

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Relutei em escrever. Não sei se o fato de ser um “causo” recente impli-caria numa invasão de privacidade. Foram vários dias pensando e repen-sando. Volto meu olhar para as folhas de papel que relatam uma situação,ao fundo uma música:

“... Tente outra vez...”Um ato cometido: assassinato do padrasto. Comoção geral. Senti-me

totalmente inútil como cidadã e ainda mais como educadora. Perguntei-me qual a finalidade de estar aqui. Quais motivos levaram aquele meninode 15 anos a comprometer sua vida de forma tão aviltante? Não sei, talveznunca saiba. O envolvido, preso em flagrante, conduta excelente, cumpri-dor dos deveres, sempre se destacando nas atividades escolares, com pre-miações por desempenho estudantil. O aluno que qualquer educador clas-sificaria como exemplar. Não adianta lamentos, vamos em frente. Nãoestou aqui para julgar, jogar a próxima pedra. Já que não pude fazer nadaantes, tentei ajudá-lo depois.

Virei sombra deste aluno para que ele não se sentisse tão só diante darealidade obscura que se apresentava. É claro que não sou conivente com odelito, mas solidária na jornada. Como se fosse obra do acaso, várias pes-soas atravessaram nosso caminho. Pessoas que, mesmo sem saber, parasempre marcarão nossos rumos: o delegado super-humano, comprometidocom o trabalho, mas de olho nos rumos de toda uma juventude, o ConselhoTutelar, a assistente social de uma Unidade de Internação Provisória (UIP)da capital paulista e seu próprio pai, separado da mãe, que eu não conhecia.

O pai foi a primeira pessoa a colocar o Estatuto da Criança e doAdolescente (ECA) “sob o braço” e ir à luta. Cumpriu, mesmo sem saber, o

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artigo 22 (“Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dosfilhos menores...”) quando compareceu à escola e a outros locais de fre-qüência do aluno, tentando entender em que momento as coisas ruinscomeçaram a acontecer, tentando mostrar que aquele ato foi pontual.Cumpriu também o artigo 55 (“Os pais ou responsável têm a obrigação dematricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.”) ao se preocu-par com a continuidade de ensino do aluno, fosse na escola em que estavaou em estabelecimentos de ensino “anexos” à UIP.

Passaram-se 45 dias. Em 28 de fevereiro de 2006, uma notícia: o alunofoi solto. Mais artigos do ECA cumpridos: artigo 108 (“A internação antesda sentença pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cincodias...”), artigo 110 (“Nenhum adolescente será privado de sua liberdadesem o devido processo legal.”), artigo 112 (“Verificada a prática do ato infra-cional, a autoridade competente poderá aplicar aos adolescentes asseguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III -pressão de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida...).

Um telefonema: o aluno, agora em liberdade assistida, quer voltarpara a escola. Alegria e preocupação tomaram conta do meu íntimo. Eagora? Como será recebido na comunidade escolar? Não posso jogá-lo naescola simplesmente nem jogar a escola, que poderia estar despreparada,para ele. Preciso “sondar” ambos os lados, sentir os ânimos. Minha maiorpreocupação como educadora era com a comunidade escolar, como elaveria essa “liberdade” repentina? Falo com os alunos, conversa rápida,baseada em observações, gestos e reações diante do que estava sendocolocado. Alívio ao perceber que a comunidade estava ciente do assunto,que tinha visão da “nova” chance que todos devem ter na vida, do discer-nimento de valores. Satisfação em ver que o corpo docente conhecia a pro-posta educacional de formação plena do cidadão à medida que apropria-ram os alunos de concepções e atitudes reais de formação de valores.

Primeiro dia de sua volta à escola. Meus olhos atentos à procura de rea-ções que pudessem denotar ânimos acirrados. O aluno está introspectivo,

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não se aproxima das pessoas: as mesmas que ele já conhecia tão bem.Talvez esteja esperando reações, manifestações. Preocupo-me, fico apreen-siva. No final do período, questiono como foi o dia e faço a pergunta queme agoniava naquele momento, se ele pretendia voltar no dia seguinte...Os segundos que antecederam a resposta pareceram intermináveis horas.Ele me olha nos olhos – sempre olhou nos olhos ao falar com as pessoas –e, com o sorriso aberto, disse que voltaria e que sempre soube, indepen-dentemente do que aconteceu, que poderia contar conosco. Abraçamo-nose sorrimos.

Digo que a vida está lhe dando uma nova chance, que não será fácil,mas agora dependia mais dele do que de nós. Qual será o procedimento daJustiça, o veredicto final? Uma etapa matemática, descobrir a incógnita.

“... Queira, basta ser sincero e desejar profundo...”Terça-feira, 7 de março de 2006, 9 horas da manhã, olho pela janela,

ele joga vôlei com os colegas, vê-me, dá um sorriso, sorrio, ele entende e fazum sinal de positivo. Volto a trabalhar com a convicção de que ele vai darcerto, de que ele quer dar certo. Continuo a pensar que ele precisa deajuda, necessita de cuidados emocionais e precisa de auxílio profissional.Consulto o ECA, o artigo 98 (“As medidas de proteção à criança e ao ado-lescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Leiforem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou doEstado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - emrazão de sua conduta”) e o artigo 101 (“Verificada qualquer das hipótesesprevistas no artigo 98, a autoridade competente poderá determinar, den-tre outras, as seguintes medidas: (...) II - orientação, apoio e acompanha-mento temporários; (...) V - requisição de tratamento médico, psicólogo oupsiquiátrico...”).

No âmbito escolar, sou autoridade competente. Uma vez que elehavia voltado ao convívio escolar, como fazer valer o artigo 101? Ligo numacerta faculdade, primeira resposta:

– Sinto muito, não temos vaga.

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No cotidiano, em que os direitos detodo e qualquer cidadão – adulto, ado-lescente, criança – realizam-se, a ga-rantia dos direitos é efetivada pormeio de políticas nacionais, regionais,locais, por meio de projetos, programase serviços. E por meio de uma atitude,um jeito de olhar, uma palavra... Umsorriso. É isto o que mostra o causo “Eutambém faço parte”. Uma história sin-gela, dramática e forte pela gravidadedo delito do adolescente e pelo jeitoresponsável, manso e amoroso de lidar

com o menino. Para além do mani-queísmo e da opção tola entre o bem eo mal: sem omitir o delito e sem esque-cer que o adolescente autor de atoinfracional é, antes de tudo, um ado-lescente. A prática do delito não otransforma em infrator, ele continua aser um adolescente em cuja históriainscreve-se a prática do ato infracio-nal: este é um outro modo de olhar quenão nega a importância de sua respon-sabilização por meio de medidas socio-educativas e a necessidade de acolhê-

Insisto, peço que pelo menos ouça o que tenho a dizer, resumo asituação, percebo a preocupação de quem me ouve, explicando como devoproceder para cadastrar o aluno. Ele fica preocupado, diz que vai haver umtempo de espera, respondo que tudo bem, que o importante é acontecer,ele afirma convicto que vai acontecer, sim. Sorrio outra vez. Lembro damúsica de Raul Seixas:

“Tente... E não diga que a vitória está perdida. Se é de batalhas que sevive a vida. Tente outra vez...”

Vamos em frente, já está dando certo.

122 Eu também faço parte CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Maria de Lourdes Trassi TeixeiraEu também faço parte

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lo e “tentar outra vez...”, de novo, maisuma vez...

Nenhum desperdício de vidas. Ne-nhuma impunidade. Toda dignidade.

Uma bela história – mais bela porser real – que vai demonstrando nascitações da lei a realização de umatendimento que garante a dignidade,a solidariedade, a esperança. Uma his-tória absolutamente relevante nestestempos em que já é um luxo não temeros demais seres humanos, em que cir-cula pelo mundo o binômio adolescên-cia-violência, em que a juventude já évista como “uma nova classe perigosa”,nestes tempos de Febem, de execuções

sumárias e de desperdício de vidas.Esta história traz a nós esperança deque haverá um tempo em que a escola– todas as escolas – poderá acolher osadolescentes de modo amoroso. Umtempo em que será possível ao adoles-cente autor de ato infracional ter umpresente no qual poderá desenharoutro futuro.

Maria de Lourdes Trassi Teixeira é psicana-lista e doutora pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo (PUC-SP) na área deadolescência e violência e conselheira daFundação Abrinq pelos Direitos da Criançae do Adolescente.

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124 Eu também faço parte CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO”

Art.112 - Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar aoadolescente as seguintes medidas:

...IV - liberdade assistida;...§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, ascircunstâncias e a gravidade da infração.§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado....

Art. 118 - A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequa-da para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.

§ 1º A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá serrecomendada por entidade ou programa de atendimento.§ 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qual-quer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orienta-dor, o Ministério Público e o defensor.

Art. 119 - Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão da autoridade competente, arealização dos seguintes encargos, entre outros:

I - promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inse-rindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social;II - supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo,inclusive, sua matrícula;...

Artigos doECAEu também faço parte

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CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” 127

Artigo 1° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Artigo 3° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28Artigo 4° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34Artigo 5° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112Artigo 7° . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34Artigo 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28Artigo 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34Artigo 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Artigo 15 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66Artigo 17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66Artigo 18 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Artigo 19 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59Artigo 22 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41Artigo 53 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46, 87 e 93Artigo 54 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 e 99Artigo 55 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46Artigo 56 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112Artigo 58 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52, 87 e 99Artigo 59 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Artigo 60 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Artigo 70 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 e 81Artigo 71 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 e 99

Artigo 86 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Artigo 87 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105Artigo 88 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 e 105Artigo 91 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74Artigo 98 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Artigo 101 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 e 112Artigo 102 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28Artigo 105 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93Artigo 110 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74Artigo 112 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Artigo 118 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Artigo 119 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Artigo 121 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74Artigo 122 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Artigo 123 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 e 117Artigo 124 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 e 117Artigo 131 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59Artigo 132 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Artigo 136 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41Artigo 139 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66Artigo 245 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

CAUSOS DO ECA “HISTÓRIAS EM RETRATO” 127127

Índice remissivo – Artigos do ECA

Antonio Carlos Gomes da Costa . . . . . 39Claudia Werneck . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86Daniela Mercury . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Emílio García Méndez . . . . . . . . . . . . . . 44Ivaldo Bertazzo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51José Fernando da Silva . . . . . . . . . . . . . . 57Maria de Lourdes Trassi Teixeira . . . . . 122Maria Amélia Azevedo . . . . . . . . . . . . . 110Maria do Carmo Brant de Carvalho . . . 92

Maria Helena Guimarães de Castro . . 104Mário Volpi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116MV Bill . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71Neide Duarte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80Paulo Afonso Garrido de Paula . . . . . . . 26Pedro Bandeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97Wellington Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . 64Zilda Arns . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Índice remissivo – Comentaristas

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Este livro foi composto em The Sans Semi Light e impresso em papelReciclato da Suzano pela Gráfica e Editora Makrokolor para aFundação Telefônica em Agosto de 2006.Tiragem 4.000 exemplares.

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Este livro traz à tona histórias de pessoas comuns que fizeram da lei seu instrumen-to de efetivação de direitos. Elas conseguiram transpor para a realidade as diretri-zes contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mostrando de forma exem-plar que a ação cidadã está ao alcance de todos. Aqui, o leitor encontra o rico teste-munho de vidas transformadas, sempre acompanhado do comentário sensível depersonalidades e especialistas a quem a problemática apontada na história faz ecoe sentido numa trajetória singular.

Confira quem são os comentaristas: Antonio Carlos Gomes da Costa, CláudiaWerneck, Daniela Mercury, Emílio García Méndez, Ivaldo Bertazzo, JoséFernando da Silva, Maria Amélia Azevedo, Maria de Lourdes Trassi Teixeira,Maria do Carmo Brant de Carvalho, Maria Helena Guimarães de Castro, MárioVolpi, MV Bill, Neide Duarte, Paulo Afonso Garrido de Paula, Pedro Bandeira,Wellington Nogueira e Zilda Arns.

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