cavaleiro da concórdia: o homem de outro mundo

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"Biografia" de Manuel Jacintho Coelho, líder espiritual da Cultura Racional

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Copyright © by:Racional-Gráfica Editora Ltda.Este volume foi composto e impresso na

Racional-Gráfica Editora Ltda. - DISTRIBUiÇÃO INTERNA –

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JORGE ELIAS

CAVALEIRO DA CONCÓRDIA

O HOMEM DO OUTRO MUNDO

RACIONAL GRÁFICA EDITORA LTDA.

3

4

Para João Roberto Kelly, Zé Ketty, Vicente Paulo de Mattos, Orlando Dias, Paulo Bob, José Ventura, Orestes e Robertinho Golden Soy. Músicos, compositores e. cantores. Ventos Racionais a embalar a vida com suas canções. Momentos de poesia, ternura e êxtase;

Para Wilton Franco que me levou do jornal para televisão. Padrinho, conselheiro e amigo;

Para José Louzeiro que me trouxe à "força" da televisão para o livro. Irmãos de duras jornadas, incentivador incansável e perseguidor rigoroso;

Para Maurício Gaze, José Petros e Luiz Sérgio. Amizades sinceras, solidificadas nos momentos difíceis de minha vida .

5

6

ANTES, UMA ADVERTÊNCIA

e a situação política do Presidente José Sarney era difícil, à frente do

Executivo, em dezembro do ano passado, o mesmo não poderia se

afirmar três meses depois. Coincidência ou não, o Governo José Sarney

se fortaleceu, logo após a visita do Mestre Manoel Jacintho Coelho ao

Presidente, no Palácio da Alvorada, em Brasília.

A completa e surpreendente modificação do quadro político

brasileiro, possibilitou a José Sarney realizar todas as suas vontades,

aprovando, entre os Constituintes, por margem substancial de votos, tudo

aquilo que desejava: a vitória do presidencialismo como regime de governo

e o mandato de cinco anos para Presidente da República.

Mas quem seria Manoel Jacintho Coelho, esse homem de 85 anos

de idade, autor de uma obra de quase 800 livros, idolatrado por mais de

cem milhões de brasileiros, os quais se vestem de branco e o tratam de

PAI e GRANDE MESTRE?

Teria ele poderes suficientes para modificar o destino político do

País, com a mesma facilidade que consegue aparecer e reaparecer,

simultaneamente em vários lugares, realizando curas de moléstias tidas

como incuráveis?

Verdade ou não, as portas dos palácios sempre estiveram abertas

para Manoel Jacintho Coelho e os ocupantes do poder sempre ronronaram

aos seus pés.

7

S

Não só por sua força política incontestável, mas também por seus

poderes há muito alardeados. Não foi à-toa que a principal figura política

da história republicana do Brasil, o Presidente Vargas, tornou-se amigo e

confidente dele e até bateu cabeça no gongá da Tenda Espírita Francisco

de Assis, no Méier.

O livro que o senhor e a senhora têm nas mãos não é um trabalho

específico de Cultura Racional, nem pretende mostrar aos incrédulos, aos

crentes e aos religiosos mais fervorosos, a luz da razão, o caminho da

salvação e da eternidade.

Longe de mim tamanha pretensão.

Quem quiser continuar estudando Cultura Racional, terá de fazê-lo

através dos Livros UNIVERSO EM DESENCANTO, uma obra gigantesca,

valiosíssima, através da qual os Racionais afirmam que estão alicerçando

a construção de um mundo novo, aquele que será habitado, segundo eles

próprios, pela civilização do Terceiro Milênio.

Não se trata tampouco de um retrato biográfico do Mestre Manoel

Jacintho Coelho. As biografias não me fascinam, nem me encorajam.

Quase sempre são cansativas, entediosas. Na maioria das vezes,

pretensiosas, dirigidas. E não raro, encomendadas para o lustro e glória de

quem alcançou o sucesso, o poder e a fama, sem predicados ou méritos.

Não me prestaria a esse tipo de trabalho, até por temperamento. Não

toparia participar da feitura de um retrato retocado, de cores pálidas,

esmaecidas, deformado e irreal. Nem o Mestre Manoel Jacintho, pelo

muito que lhe conheço, iria desejá-lo.

Quem arrasta atrás de si milhares de seguidores, transmitindo

ensinamentos, lecionando corajosas lições, não precisa de biografias, nem

de retratos retocados. Vale por aquilo que prega, pelo que ensina, pela

imagem que empresta, pela árvore que planta, por suas revelações e

aquilo que realiza.

8

I

Agora, se a senhora ou o senhor desejam saber um pouco mais

desse HOMEM, de sua história e dos muitos episódios que contam sobre

ele, de seus poderes, de sua força, do início de tudo, devem ler o livro.

Fica aqui o meu convite. Se a curiosidade for muito grande, por certo vão

devorá-lo. Os caminhos percorridos por Manoel Jacintho Coelho foram tão

surpreendentes quanto as suas atuais aparições.

O CAVALEIRO DA CONCÓRDIA nasceu da minha amizade com o

Mestre Manoel Jacintho Coelho, da sugestão dele, bem como da cobrança

de nossos amigos. Reúne, numa linguagem simples, sem pretensões

literárias, passagens da vida do Mestre Racional e fatos ocorridos com ele,

antes e após o surgimento da Cultura Racional. Muitos destes episódios

foram contados pelo próprio Mestre Manoel e por certo teriam sido

varridos pelo tempo, não fosse a sua privilegiada memória. Outras foram

colhidas por mim, aqui e ali, nas minhas andanças, com muito carinho e

interesse.

De uma coisa estejam certos: O CAVALEIRO DA CONCÓRDIA vai

aproximá-los ainda mais do homem Manoel Jacintho Coelho.

Descortinará, através da leitura, um universo mágico, repleto de colorido e

energias. Vai ajudá-lo a compreender a obstinação e a inabalável coragem

de construir deste escritor Racional e também a dimensão de seu trabalho:

envolvente, puro e branco como as roupas que vestem aqueles que

decidiram segui-lo.

A advertência está feita.

Venha, vamos iniciar a viagem.

O autor.

9

I parte

A ÚLTIMA CARTADA

oite inteira, as mulheres estiveram ali, exibindo a ilusão de seus

decotes. Enquanto havia música, deslizaram pelo salão, jogando

beijos aos freqüentadores mais tímidos e lançando olhares furtiv

mais escolados. Mas acabaram indo embora com o passar das horas,

algumas acompanhadas outras, não, deixando no ar a sedução de seus

perfumes, bem como a lembrança de seus vestidos rodados. Agora, o Bar

dos Carmelitas, um barulhento café-concerto, instalado na Rua Moraes e

Vale, na Lapa, vai ficando deserto. Apenas alguns músicos retardatários

ainda se misturam aos garçons, empenhados no recolhimento das

garrafas e copos espalhados sobre as mesas.

Terno azul-marinho bem cintado, camisa de seda branca, gravata

de "tussot" e sapato preto de salto carrapeta, Manoel Jacintho Coelho

retoma do banheiro, onde fôra lavar o rosto, tentando afastar o sono e

diminuir o cansaço. Aquela noite havia sido diferente para ele, apesar da

rotina. Durante o tempo em que permanecera abraçado ao vio

cordas, divertindo boêmios, mulheres, artistas, políticos, jornalistas,

malandros e, principalmente, otários, muita coisa aconteceu.

13

N

A ÚLTIMA CARTADA

oite inteira, as mulheres estiveram ali, exibindo a ilusão de seus

decotes. Enquanto havia música, deslizaram pelo salão, jogando

beijos aos freqüentadores mais tímidos e lançando olhares furtivos aos

ram indo embora com o passar das horas,

algumas acompanhadas outras, não, deixando no ar a sedução de seus

perfumes, bem como a lembrança de seus vestidos rodados. Agora, o Bar

concerto, instalado na Rua Moraes e

e, na Lapa, vai ficando deserto. Apenas alguns músicos retardatários

ainda se misturam aos garçons, empenhados no recolhimento das

garrafas e copos espalhados sobre as mesas.

marinho bem cintado, camisa de seda branca, gravata

ato preto de salto carrapeta, Manoel Jacintho Coelho

retoma do banheiro, onde fôra lavar o rosto, tentando afastar o sono e

diminuir o cansaço. Aquela noite havia sido diferente para ele, apesar da

rotina. Durante o tempo em que permanecera abraçado ao violão de sete

cordas, divertindo boêmios, mulheres, artistas, políticos, jornalistas,

malandros e, principalmente, otários, muita coisa aconteceu.

Por alguns instantes, tivera a estranha sensação de estar saindo de seu

próprio corpo, evaporando, depois partindo e encontrando um outro

mundo.

Tudo aconteceu de forma inesperada, incontida, e porque não

dizer, avassaladora. Seu corpo começou a ficar adormecido, como

estivesse anestesiado.· Ainda reagiu, respirando fundo. Quis falar, pedir

ajuda, mas não conseguiu. Parecia flutuar no ar denso de fumo e de

muitas fragrâncias do Bar dos Carmelitas. E embora soubesse que algo

de anormal, de muito sério, de novo e também diferente estivesse

acontecendo, tinha a certeza: não havia perdido a consciência, tanto que

continuava dedilhando o violão, sem perder o compasso do samba de

Ismael Silva, cantado por um crooner mulato, alto e forte, voz quente de

lirismo e conhaque:

- Se você jurar! Que me tem amor! Eu posso me regenerar!

Mas se é para fingir mulher! A orgia assim não vou deixar.

Assim permaneceu algum tempo, solto no espaço. Wanda, amiga da

Olívia, dançarina do Cabaré Royal Pigalle, após observá-lo, comentou

com Ceci, aquela que se tornaria, no futuro, o grande amor de Noel Rosa:

- Olha só o Manoel. Hoje ele deve estar muito romântico.

Desde que começou a tocar está com os olhos fechados.

Diante da observação da companheira, Ceci apenas sorriu.

Depois balançou a cabeça, concordando.

Aquelas pobres mulheres da Lapa, tão jovens, tão bonitas e tão

carentes, ali estavam todas as noites, arrastando suas vidas pela pista de

dança. Mais que um par constante, um cavalheiro bonito e bem arrumado,

para enlaçá-las pela. cintura, num rodopio elegante, ao ritmo da canção,

sonhavam com um lar, um marido, filhos e uma família. A cada manhã,

porém, despertavam do sonho, sobre os lençóis manchados de pecados e

amarrotados dos hotéis pouco recomendados da Rua Conde Lage. Nas

bolsas, alguns trocados a mais.

14

Nos rostos, as marcas da decepção.

Encerrado o transe, concluída a viagem de volta, Manoel Jacintho

Coelho não escondia: estava atordoado. Perplexo, não sabia o que fazer

nem tampouco o que contar. Imaginava apenas o fim daquela situação,

daquele estado aflitivo, inexplicável. Foi quando um forte assovio

invadiu-lhe os ouvidos, um assovio ensurdecedor, bem parecido com

aqueles emitidos pelos rádios antes da sintonização. Surgiram, então,

diante de seus olhos, as terríveis imagens da

tragédia.

Sem perder tempo, procurou uma cadeira e tratou de sentar.

Ouviu os estampidos dos tiros. Foram quatro, pôde contar um-a-um.

Seguiram-se os gritos de pavor e o corre-corre no cabaré. Homens e

mulheres buscavam a escada, desesperados, querendo fugir. Uns

tropeçavam, caindo. Outros, não. Corriam e saltavam sobre os que estavam

no chão. O tumulto estava generalizado, o pânico estabelecido. Três dos

tiros haviam atingido um homem de terno branco, ele gemia de dor e ia se

curvando, segurando o peito e a barriga. Logo o sangue manchou-lhe o

terno e as mãos, aumentando-lhe ainda mais a aflição. Manoel esforçou-se

tentando reconhecer aquele homem, cujo rosto lhe era familiar. Foi quando

alguém bateu-lhe nas costas, cantando e interrompendo-lhe a visão:

Meu Deus, eu ando com o sapato furado! Tenho mania de

andar engravatado! Minha cama é um pedaço de esteira! Uma lata

velha me serve de cadeira ...

Identificou o samba e a voz. O samba era Cabide de Molambo, ~:.~ I

de João da Baiana, um velho amigo, mostrando com' humor, um

tipo miserável, mas bastante comum nos bares e . na boemia da cidade. A

voz, de um outro companheiro: Aristides Júnior de Oliveira,

o Moleque-diabo:

- Então, Manoel, vamos embora? A festa acabou ...

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- Moleque, não sei o que está acontecendo comigo. Difícil de

explicar, foi tudo muito estranho.

- De que você está falando, Manoel? Eu não estou entendendo nada ...

- Vamos embora, Moleque. No caminho, eu lhe conto tudo.

Certo?

- Podemos dar uma paradinha no Capela. E ali comer qualquer coisa ...

- Está bem, Moleque. Vamos até lá.

2

Unhas polidas e anel de chuveiro, jaquetão de tropical inglês, num

tom cinza-claro, Aristides Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo - apelido

que ganhou· por suas qualidades de músico inigualável de qualquer

instrumento de corda - logo se apressa. Acomoda com todo cuidado, num

estojo de veludo preto, o bandolim importado, e acena para o

companheiro:

- Estou pronto Manoel, vamos?

Essa hora já não é difícil de se conseguir uma cadeira num

restaurante. E o Largo da Lapa, aparentemente intransitável, no início da

noite, aos poucos vai ficando deserto. Ao apagar das luzes, a Lapa, porém,

não é menos barulhenta nem menos alegre. O vozerio de sua gente ainda

pode ser ouvido à distância, vindo dos bares, dos cafés, das pensões de

mulheres e também dos cabarés.

Os dois músicos descem pelas calçadas estreitas e pecaminosas

da Rua Moraes e Vale, na direção do mal-afamado Beco dos Carmelitas,

onde mora o poeta Manoel Bandeira. Protegidos pelas sombras das

paredes dos antigos sobrados, seguem para o Largo da Lapa, onde o

bonde faz a curva e fica o Capela, restaurante que serve, por preço

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razoável, o melhor bife com fritas da cidade. A conversa se tornara tão

interessante que eles nem perceberam, bem próximo, um bêbado

discutindo com a sombra, debaixo de um poste de iluminação a gás:

- Você tem de parar de me seguir ... o que você quer de mim ... A

caminhada, porém, foi interrompida. Diante dos olhos de Manoel surge

novamente o rosto do homem de terno branco, cujas cenas da morte lhe

foram antecipadas, ainda nas dependências do Bar dos Carmelitas. O

músico estremece, pára, empalidece. Começa a suar frio, sua expressão é

de pavor. Ao seu lado, Moleque-diabo quer saber o que está acontecendo,

mas Manoel não consegue falar. O homem baleado não geme mais nem

demonstra sentir dores. Sorri e fala, num tom debochado. Apenas Manoel

escuta:

- Não queria saber meu nome, Manoel? Estou aqui para isso, dizer

quem sou. Realmente você me conhece de alguns carnavais. Tenho

dançado muito ao som de seu violão, pergunte ao amigo, o

Moleque-diabo, a quem você escolheu para as confidências. Meu nome é

Octávio José Pinto. Mas na Lapa, na roda da malandragem, ganhei um

apelido: Meia-noite.

Segue-se uma forte gargalhada e o rosto de Meia-noite

desaparece. No ar paira a fragrância francesa do perfume predileto do

malandro. No chão, reluzente, um monograma feito em ouro, com as

iniciais do nome dele.

3

Bem próximo dali, um dos maiores amigos de Meia-noite, o

Miguelzinho Camisa Preta - assim chamado por só usar camisa dessa

cor - encontrava-se em apuros. Valente, bom de briga, apesar de sua

baixa estatura - 1 ,64m de altura e 54 quilos de peso - ele está sendo

retirado do interior do Cabaré Novo México, por uma mulher,

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Rosinha, uma ex-bailarina, muito ciumenta. E ela não faz por menos,

castiga o companheiro com beliscões, xingamentos, puxões de orelha e

empurrões. Dominado pelo coração, Miguelzinho não esboça a menor

reação. Pelo contrário, cabisbaixo, apanha em silêncio. E enquanto o táxi

não vem, multiplicam-se os golpes. Rosinha está furiosa.

Do outro lado da Avenida Mem de Sá, oito marinheiros divertem-se.

com a situação. Chegam a se contorcer em gargalhadas e gritam, vez por

outra, para a mulher:

- Bate mais, ele gosta ... bate mais, ele gosta ...

Miguelzinho continua calado. Aguarda um táxi. Quando o primeiro

se aproxima, ele não perde tempo: lança à sua frente e trata de pará10.

Embarca a mulher, sem perda de tempo, e fala ao motorista:

- O senhor pode manter o motor ligado. Vou ali e não demoro. De fato não

perdeu muito tempo. Ágil como um gato, mestre na capoeira, senhor na

malandragem, foi logo colocando as mãos no chão, derrubando os três

primeiros. Os outros três se assanharam, não acreditavam no que

estavam vendo. Resultado: receberam igual tratamento. Solto no espaço,

mãos no chão, pernas girando no ar, como pás de moinho. Miguelzinho

bate forte, massacrando os adversários.

Ao final da briga, cinco deles estavam no chão, necessitando de

socorros médicos. Os três outros, após terem se certificado de que a briga

era ruim, embarcaram no primeiro pé-de-vento, descendo a Avenida Mem

de Sá, rumo ao Passeio Público. O cantor Francisco Alves, o Chico Viola,

na porta da Leiteria Boi, ficou sem entender nada. E indagou do

compositor Nilton Bastos, ao seu lado:

- Tem algum navio pegando fogo por aí? ..

Miguelzinho durante a briga havia sujado um pouco da manga do

paletó bege, o que não acontecia quando brigava contra dois, três ou

quatro adversários, por isso de volta ao táxi continuou apanhando.

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Sob o pretexto de que "eu não quero você brigando na rua como um

vagabundo, sujando a roupa que eu lavo", Rosinha continuou castigando

o companheiro. Ela pretendia a qualquer custo, tirar seu homem daquele

lugar, afastá-lo da malandragem, da boemia, dos cabarés, das pensões

das decaídas, o que ia conseguir anos depois.

4

- Eu vi o malandro morrendo, Moleque. Foram três tiros.

- Que malandro, Manoel... que loucura é essa? Você está

precisando de um médico, isso deve ser cansaço, procure dormir um

pouco mais e se alimentar melhor ...

- Moleque, eu sei do que estou falando. Não estou doente nem

tampouco delirando. O que vi não foi um sonho nem um pesadelo. Foi uma

visão, antecipando-me um acontecimento, daí a minha preocupação.

Gostaria de evitá-lo, mas não posso fazê-lo. Não gosto de derramamento

de sangue. Sou um músico, um homem de sensibilidade, portanto, avesso

a qualquer tipo de violência, embora saiba que ela exista, principalmente

aqui na Lapa.

Moleque-diabo não consegue esconder a curiosidade.

Acompanha, com muita atenção, as palavras de Manoel:

- O Meia-noite vai morrer, não demora muito, Moleque. Quem vai

matá-lo, eu não sei. Mas ele será assassinado. A visão que tive, e que

acabou me deixando neste estado, antecipavam-me as cenas do crime.

Diante da afirmação do Manoel Jacintho Coelho, Moleque pára.

Descrente das revelações, procura convencê-lo de que elas não são

verdadeiras, palpáveis. Teriam sido, no seu entendimento, uma

alucinação, como tantas outras ocorridas com diversas pessoas:

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- Manoel, você pode até ficar aborrecido comigo, mas não acredito

nessa história de crime. Não me venha com absurdos, coisas do outro

mundo. Não acredito em espiritismo, macumba, olho grande. Tenho por

hábito trabalhar, ao invés de rezar. Se fico por aí rezando, meu Deus,

agradecido pelas orações, não vai me dar o que comer. Ponho minha fé no

trabalho. Aliás, o trabalho tem sido o meu Deus e também a minha

salvação. Com esse bandolim faço da música a minha oração. Depois, o

Meia-noite já abandonou essa vida de malandragem, de boemia. Está

morando com uma mulher, a Arminda, lá na Rua Assis Carneiro, na

Piedade. E levando uma vida tranqüila como chefe de família.

Regenerou-se mesmo, você acredita, Manoel?

- Acredito. Como também acredito naquilo que vi. Moleque-diabo sorri. Vai

ser difícil demover daquela idéia e começava a se preocupar com o amigo:

- Será que Manoel vai continuar tendo essas alucinações? Indagou

a si próprio, em silêncio.

No fundo, aquela história do assassinato de Meia-noite lhe

impressionara bastante, mas havia decidido: ia manter os pés firmes e não

daria o braço a torcer. Sabia que Manoel tinha uma tenda espírita, a Tenda

Espírita Francisco de Assis, lá na Rua Lopes da Cruz, 89, no Méier, e

talvez por culpa do espiritismo, nem estivesse com o juízo perfeito. Por um

momento, pensou mesmo que devia procurar o Meia-noite e lhe contar

toda a história, mas logo mudou de idéia, temendo parecer ridículo:

- O Meia-noite não ia acreditar em nada disso e, por certo, até

zombaria de mim ...

Manoel ainda pediu a Moleque-diabo que fosse procurar Meia-noite,

alertá-lo para o perigo. Mas Moleque tratou de colocar um pé atrás:

20

- Manoel, sai dessa. O Meia-noite eu conheço bem. Quando você

acabar de contar essa história, ele vai rir na sua cara. O homem não

acredita em Deus nem no diabo, mas no "fogareiro" que leva sempre na

cintura e que tem mandado muito valente dessa vida para outra.

5

E era verdade. Branco, valente e bonito, Meia-noite havia se

tornado, em pouco tempo, no maior matador que a Lapa conhecera.

Convicto da sua condição de malandro, mantinha a palavra, cumprindo

sempre aquilo que havia prometido. Era autêntico e possuía muita

personalidade. Sabia respeitar os mais fracos, não mexia com mulheres

dos outros e só brigava quando era provocado.

Tornou-se amado pelas decaídas, temido pelos policiais e

respeitado pelos boêmios.

Vestia-se muito bem.

Durante o dia não dispensava uma camisa de seda pura nem

tampouco um lenço no pescoço, a calça boquinha de panamá e o chinelo

"charlot". À noite, metia-se sempre num elegante terno claro, de

preferência branco, os sapatos de bico fino e saltos carrapeta. Na cabeça,

o chapéu de panamá.

Vivia do carteado: da ronda, do sete-e-meio e do montinho inglês,

modalidades de jogo preferidas pela malandragem. Nas horas vagas

realizava cobranças para os banqueiros de bicho Pascoal e Alberto,

ambos do Mangue. À noite, protegia os cabarés, os cassinos, as pensões

das mulheres da ação dos desordeiros e também dos maus pagadores,

multiplicando a receita.

Embora pertencesse a uma ótima família, Meia-noite ingressara

muito cedo na malandragem, influenciado por filmes policiais.

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Ainda não havia completado dezesseis anos e já freqüentava os piores

antros do Catumbi, do Mangue, da Praça Onze e também da Lapa. Nas

suas costas pesavam a autoria de mais de quinze crimes de morte.

O último deles, tivera como vítima um guarda civil e ocorrera no

Largo da Lapa. Levado a julgamento, acabara absolvido. E, a partir daí,

decidira abandonar, de uma vez por todas a malandragem.

Montara um armarinho na Rua Laura de Araújo, no Mangue, e

passara a explorar com bons lucros, a venda de balas nos trens da Central

do Brasil. Para muitos, estava regenerado, como acreditava o próprio

Moleque-diabo.

6

Durante o jantar no Capela, Manoel Jacintho Coelho ainda se

mostrava inquieto, tenso e preocupado. E contava detalhes do crime que

iria ocorrer. Dessa forma buscava, decididamente, convencer o amigo a

levá-lo à casa de Meia-noite. Moleque-diabo, porém, mantinha-se

irredutível.

Com a aproximação de Margot, uma francesa de meia idade,

simpática, fornida de corpo, tiveram de mudar de assunto. Dona de uma

das melhores pensões de mulheres da Rua Joaquim Silva, a Imperial,

Margot parecia uma verdadeira matrona e estava acompanhada de

8ianca, mulher bonita, a quem os boêmios tratavam de LiIi das Jóias.

Seios pequenos e erguidos, cintura de vespa, dentes brancos e

perfeitos, pele clara e aveludada, lábios grandes e carnudos, Bianca se

tornara famosa por levar muitos figurões à ruína.

Foi ela quem se adiantou, cumprimentando os músicos. A seguir,

virando-se para Moleque-diabo, disse:

22

- Como foi bom lhe encontrar, preciso muito falar com a Celeste. Há

pouco a Margot perguntou por ela ...

Foi o bastante. Moleque fechou o rosto, demonstrou claramente o

seu descontentamento. Não escondia: estava apaixonado por Celeste,

uma portuguesa rechonchuda, de pernas grossas, roliças e cabeludas. Ela

era dançarina do Avenida, mas ele a levara para casa e pensava

transformá-la em sua esposa.

Mas Bianca parecia disposta a provocá-lo, talvez por inveja da

amiga que conseguira um lar, uma família. Sorridente, insistiu:

- Lembra da Bia, aquela que tinha casa lá na Joaquim Silva.

Ela também casou. Só que foi com um aviador americano. Um homem

alto, bonito, forte. Branco e de olhos azuis. Foi morar nos Estados Unidos

e tudo.

Indignado, Moleque nada respondeu. Mas levantou-se da mesa.

Colocou o chapéu na cabeça e despediu-se de Manoel:

- Eu te procuro na repartição. Não vou ficar aqui aturando essa

mulher. Estou cansado, com sono. Melhor é ir dormir.

Logo que Moleque partiu, Bianca levantou-se da mesa. Empurrou

a cadeira, deu uma rabanada, desaprovando o comportamento de

Moleque. E murmurou:

- Só porque é músico pensa que tem o rei na barriga. Vai mesmo, o

diabo que o carregue.

Depois, foi juntar-se a Margot que ocupava outra mesa.

7

Sem perder a calma, Manoel Jacintho Coelho terminou de jantar.

Depois, como se nada tivesse acontecido, chamou o garçom e pediu a

conta. Após o pagamento, levantou-se. Pegou o chapéu e o violão,

cumprimentou o repórter Carlos Lacerda, do Correio da

23

Manhã - aquele que arrastaria, anos depois, Vargas ao suicídio e se

tornaria, ainda mais para o futuro, um hábil e eloqüente político, e também

governador. Finalmente, ganhou a rua.

Caminhou um pouco, mas antes de embarcar para o Méier, onde

morava, sentiu vontade de tomar um cafezinho. Foi até ó Indígena, ponto

de encontro dos comunistas e integralistas da época. Lá estavam

conversando animadamente, como pôde observar, alguns conhecidos:

Agildo Barata, Plínio Salgado, Santiago Dantas e o pintor Cândido

Portinari. Ainda de cabelo castanho escuro o jornalista e escritor Jorge

Amado. Acenou, saudando a todos, tomou o café e foi embora.

Parecia refeito das sensações estranhas que havia sentido. E as

imagens da tragédia já não lhe incomodavam mais. Estava leve e

purificado, tranqüilo. O sono e o cansaço haviam desaparecido. Sentiu

vontade de ir andando, andando, olhando as pessoas, procurando

ajudá-las. Sentiu-se um homem feliz, completo, realizado.

Mesmo assim decidiu ir para casa descansar. Às 11 horas estaria no

Palácio do Itamaraty, na Rua Larga de São Joaquim, hoje Avenida

Marechal Floriano, próximo a Central do Brasil. Voltaria à sua vidinha de

funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Ao pensar em relações

exteriores, sorriu. E disse:

- Tenho sido um homem de relações exteriores mesmo.

8

Ao contrário de Manoel, Moleque-diabo não ia conciliar o sono

naquele fim de madrugada e início de manhã. Pensativo, rolaria na cama

de um lado para outro, tomado de angústia, tristeza e revolta. Apertando o

travesseiro contra o rosto, indagaria a si próprio:

- Por que essa história de crime? Manoel estaria doente?

24

As alucinações seriam em razão do espiritismo? E o Meia-noite, ia morrer

mesmo?

Outro fato também o atormentava: o da Margot estar procurando

Celeste:

- Tantas mulheres na vida e essa cafetina procurando logo a minha

...

Moleque-diabo gostaria de esquecer tudo aquilo e dormir um sono

solto, livre de preocupações, mas não podia. Estava impressionado. Sabia

que na Lapa do dinheiro fácil, dos cassinos tolerados, da prostituição

consentida, das mulheres bonitas, dos malandros convictos, dos boêmios

incorrigíveis, tudo podia acontecer. Acobertada pela escuridão das longas

noites alegres, a Lapa vivia engolindo muita gente, liquidando homens e

massacrando mulheres, nas suas casas suspeitas, nos cabarés

freqüentados, nos cassinos famosos.

9

Os dias se passaram. Manoel Jacintho Coelho até já havia

esquecido daquela história da morte de Meia-noite. O trabalho, a família, a

Tenda Francisco de Assis, os necessitados e outros afazeres consumiam

as suas horas. E, embora tivesse vontade, não dispunha de tempo para

saborear um bom vinho do porto, do Adriano Ramos Pinto, ou de deixar

descer, garganta abaixo, uma deliciosa cerveja Cascatinha, bem gelada. O

violão encapado, estava em casa, guardado com todo o cuidado.

Filho de músicos - Manoel, o pai, era maestro, e Rosa, a mãe, era

professora de piano - Manoel herdara o talento dos dois, bem como o amor

de ambos pela música. Sonhava em poder reunir, aquela ocasião,

despreocupado, em sua casa, todos os seus amigos músicos,

semanalmente, numa espécie de recital.

25

Por certo, lá estariam o maestro Luperce Miranda, o Jacob do Bandolim, o

Ciro Monteiro, o Altamiro Carrilho, a Odete Amaral, o Luiz Americano, a

pianista Carolina Cardoso de Menezes e também o Aristides Júnior de

Oliveira, o Moleque-diabo.

Bastou pensar nele e o homem apareceu.

Manoel deixava o vestíbulo da biblioteca, no andar térreo do

Palácio do Itamaraty, onde trabalhava, quando avistou Moleque-diabo

caminhando apressado, contornando o lago e buscando alcançar a

varanda para procurá-lo. Estava nervoso, apavorado, podia-se notar, à

distância, através de sua fisionomia abatida.

Ao contrário das vezes anteriores, não trazia consigo o bandolim,

mas um jornal. Ao encontrá-lo, não chegou a cumprimentá-lo. Foi logo

dizendo:

- Veja a desgraça, Manoel. Veja, veja, veja ...

Sem entender ao certo do que falava Moleque, Manoel pegou

o jornal. E ali estava a notícia:

"MORREU MEIA-NOITE"

E mais:

"TRÊS TIROS COLOCARAM FIM NA VIDA E NA CARREIRA DE

CRIMES DO MAIS VALENTE MALANDRO QUE A LAPA CONHECEU."

10

- O Meia-noite está presente!. .. Viva o Meia-noite ...

Assim que entrou no Cabaré Brasil Dourado, na parte superior do

sobrado n° 10, da Rua da Lapa, naquele final de madrugada, recebera

estrondosa saudação. Após os ''viva Meia-noite" seguiram-se as palmas,

fato que acabou por surpreendê-lo e contrariá-la. Aquilo não havia sido

combinado, não estava em seus planos, muito menos a seu gosto.

26

Quando concordou em participar daquela festa em sua homenagem, como

despedida da vida boêmia, da malandragem das noites da Lapa, fez

algumas restrições. Pediu que tudo fosse feito de forma discreta, sem

alaridos, algazarras ou desordem. Na verdade, pretendia rever os amigos,

abraçá-los, apertar a mão de todos e se despedir pessoalmente de cada

um. Seria bonito, comovente e sincero. Havia iniciado uma nova vida, mais

tranqüila, menos arriscada, dedica da à mulher, voltada ao lar e à família.

Para ele a vida boêmia não fazia mais sentido.

Todos concordaram. Mas Falúa, um sargento naval, de quem era

concorrente no negócio de venda de balas nos trens, ali estava quebrando

o acordo, ignorando suas ponderações. E botava a boca no mundo,

anunciando sua chegada:

- O Meia-noite está presente, viva o Meia-noite ...

Não perdeu tempo. Aborrecido, caminhou em direção ao homem e

tratou de repreendê-lo. E decidiu: não ia ficar ali nem participaria de festa

nenhuma. Mas, ao atravessar o salão, rumo às escadas, ouviu os tiros.

Fôra alvejado, estava ferido. Três tiros o atingiram: na barriga, no peito e

no braço esquerdo. Um outro tiro, acabou atingindo o comerciário Ângelo

Millozi que ali se divertia e nada tinha com a confusão.

Meia-noite nem chegara a vislumbrar o homem que empunhava o

revólver, baleando-o. E muito menos identificá-lo. Sabia apenas que ele

estava misturado a um grupo de outros homens,. entre a chapelaria e o

corredor de acesso ao quarto usado pelas bailarinas para a troca de

roupas.

Quisera se defender, revidar a agressão. Vida inteira fôra assim.

Não provocava ninguém, mas se provocado, revidava com o dobro da

violência. Mas àquela altura era impossível, sangrava muito e sentia fortes

dores.

27

Grande confusão verificou-se no cabaré. Clientes e empregados,

homens e mulheres, alheios ao que acontecia, apavorados com os tiros,

tratavam de correr, rumo à escada, tentando alcançar a rua. Era pânico, a

desgraça. Muitos conseguiram, outros não. Acabaram pisoteados e

feridos.

Meia-noite conseguiu encontrar forças para descer também.

Na rua, sentou-se no meio-fio e ali aguardou, em silêncio, a chegada do

táxi para o pronto-socorro.

Na calçada, o sangue escorrendo. Lembrou de Arminda Mattos, a mulher,

a quem deixara em casa, na Piedade, e murmurou baixinho: - Doce

Arminda. Tive de brigar com ela para poder vir cavar a minha própria

sepultura.

Arminda não queria que Meia-noite voltasse à Lapa, mas, diante

da imposição dela, ele pensou:

- Um malandro não deve deixar se dominar, mesmo estando

regenerado.

Brigou com ela. E agora estava ali, a caminho do hospital, baleado, à beira

da morte. Apostara alto e perdera a última cartada. Aliás, essa seria a sua

última frase, dita ao médico que ia operá-la - Eu perdi· a última cartada,

doutor.

O que Meia-noite não viu nem chegou a saber, foi que Arminda,

sua adorada mulher, morreu com ele. Os dois agonizantes, estendidos

sobre as macas, ainda se cruzaram nos silenciosos corredores do

hospital, por onde passa um pedaço de dor e sofrimento de toda a cidade.

Inconformada com a briga que tivera com o companheiro, Arminda

chegou à conclusão de que Meia-noite não ia abandonar a boemia nem

tampouco a malandragem. Diante desta certeza, preferiu o suicídio,

tomando veneno. Socorrida foi levada também para o pronto-socorro,

onde ambos encontraram a morte no mesmo horário.

28

Ao inteirar-se das circunstâncias das mortes de Meia-noite e

Arminda, Manoel Jacintho Coelho ficou arrepiado. Um forte vento

soprou-lhe as costas. E novamente seus ouvidos foram invadidos pelo

zumbido irritante do rádio mal sintonizado. Quis evitar a sensação de

antes, mas fôra impossível. Antes de perder de todo a consciência, ainda

pôde ouvir aquele samba de Ismael, o mesmo que tocava aquela noite, no

Bar dos Carmelitas:

Se você jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas

se é pra fingir mulher/ A orgia assim não vou deixar.

11

Olhos entumecidos, esbugalhados, de lágrimas e de sono, Aristides

Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo, lamenta:

_ Manoel, eu devia ter ouvido o conselho. A tragédia bem que podia

ter sido evitada. Agora, resta-me velar o corpo do companheiro na Capela

Frei Fabiano de Cristo, ali na Praça da República. E acompanhá-lo,

amanhã, à última morada, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju.

Manoel parecia-lhe alheio, desligado, num outro mundo, desatento

ao desabafo de Moleque. Este, sem saber o que estava acontecendo,

achando tudo muito estranho, tratou de sacudi-lo:

- Manoel, Manoel, você está dormindo?

_ Não, Moleque. Tentando salvá-la. Abre o olho, você também

terá urna morte violenta.

UM ANO DEPOIS, DIVULGAVAM AOS JORNAIS

"Inconformado por ter sido abandonado pela companheira, a

bailarina Celeste Maria, por quem estava perdidamente apaixonado,

29

o conhecido músico Aristides Júnior de Oliveira, o Moleque-

acabou se suicidando. Ontem de manhã, após ingerir pesada dose de

formicida, ele pulou do 30 andar do Prédio dos Correios, na Rua 1

Março, no Centro, onde trabalhava."

30

1.2.

-diabo,

acabou se suicidando. Ontem de manhã, após ingerir pesada dose de

andar do Prédio dos Correios, na Rua 10 de

31

32

II parte

UMA PEDRA NO CAMINHO

niciada em São Paulo, com o apoio da oligarquia da burguesia do

café, a revolução de 1932 não alcançou seus verdadeiros objetivos: o fim

do Governo Provisório e o afastamento de Getúlio Vargas da chefia

daquele governo. Muito pelo contrário, a vitória militar sobre os rebeldes

acabou garantindo a Vargas enorme prestígio, o desejado poder e

também grande influência sobre a Assembléia Constituinte que iria se

instalar em novembro do ano seguinte.

Vitorioso, cheio de caprichos e marcas pessoais, Vargas tornou-se

inabalável às críticas de seus adversários políticos, embora acusado de

caudilho, maquiavélico e oportunista. Pulsos fortes e passos medidos,

decidiu ir em frente, tresandando a água de colônia inglesa e dando

continuidade a sua festejada e irreversível trajetória.

Sem dúvida, havia conquistado invejável posição: a do mais

importante político brasileiro, uma espécie de símbolo da emancipação

nacional. Aquele que ia criar, num futuro próximo, um Brasil forte, unido,

altaneiro, novo e soberano, edificado sobre os alicerces e pilares de um

trabalhismo que começava a florescer.

33

I

Mas, por trás daquela figura risonha, sempre impecavelmente vestida,

do azul fio de fumo de seu charuto sem i-aceso, pairava no ar uma

inevitável e permanente ameaça: a de uma ditadura cruel, caprichosa,

mas sombria como todas as outras ditaduras ..

Ao pensar nisto, Manoel Jacintho Coelho ficava totalmente

arrepiado, preocupado, pensativo.

O futuro histórico, o rumo político do País e o destino do povo

brasileiro parecia desfilar diante de seus olhos, através de cenas

coloridas com todos os matizes da vida. Os fatos e suas evoluções lhe

eram quase sempre antecipados. Para isto, bastava apenas que

fechasse os olhos e pronto: estava tudo ali, exatamente como ia

acontecer, numa tela de cinema, imensa e natural.

Muitas vezes ficou amedrontado e teve vontade de fugir. Outras,

não. Sua curiosidade se tornara maior do que o medo que inicialmente

lhe assustava tanto. Com o passar do tempo, a coisa havia se

modificado. Agora, tomado de coragem cívica, estava disposto se inteirar

definitivamente de tudo que ia acontecer. Se o inesperado lhe

surpreendia, o espetáculo lhe agradava.

O zumbido da comunicação e contato do outro mundo em sintonia

passou a se transformar numa enorme e cintilante cascata de luz. Uma

luz que variava de cor, tonalidade, tamanho e intensidade. Quase

sempre começava prateada, de um brilho profundo, encantador. Depois

dava lugar ao azul. Inicialmente o claro, a seguir o escuro, vivo, forte,

misterioso. Do azul-real passava ao azul-turqueza e outros tons

azulados. A seguir aparecia o amarelo, também variável, até o dourado.

Depois o verde-alface, o verde-bandeira, o verde-oliva, o verde-escuro.

No crepitar do vermelho, o espanto, o grito e o clarão:

- Manoel, a fase do pensamento está para terminar. Encerrada a

fase do pensamento, a natureza vai deixar de alimentar o pensamento

dos pensadores. E por falta do alimento natural, o pensamento de

34

todos vai começar a enfraquecer. Portanto, prepare-se. Com a mudança

de fase, você vai iniciar a construção de um mundo novo, um Mundo

Racional, real e verdadeiro. Anote, Manoel: até 1935, a natureza será

governada pelas energias elétricas e magnéticas. Depois, não. A

natureza vai mudar, passando a ser governada pela Energia Racional,

pelo raciocínio.

Morna, forte, grave, a voz masculina vai rasgando o Universo, advertindo e orientando:

- Estamos em 1933, Manoel. Faltam apenas dois anos. Tenha

paciência. Em muito breve você vai conhecer o caminho do

desenvolvimento do raciocínio e terá de ensiná-lo, através de um Livro, a

toda a humanidade. Lembre-se: você não pertence a esse mundo. Vestiu

a carcaça de bicho para cumprir dignificante e salvadora missão: a da

Racionalização dos povos. Quando chegar o grande momento tudo vai

ficar bem claro e luminoso. Deixe de lado a preocupação, fique calmo.

Procure viver normalmente como um habitante da Terra. Estou falando de

seu mundo, procurando orientá-lo, de modo você possa percorrer com

muita rapidez, o caminho que lhe foi destinado.

Esperança e mistério no olhar.

Manoel Jacintho Coelho contempla o espaço, rosto molhado de

suor, braços abertos, numa demonstração de ternura, bondade e

dedicação. No cálice do saber, as lições de um Universo mágico:

- O Livro que você vai escrever, Manoel, será definitivo. Vai

mostrar o princípio e o fim do mundo, o caminho da luz e da eternidade, a

estrada da salvação. Revelará conhecimentos para que todos possam

voltar ao seu mundo de origem: a Planície Racional. O Livro será a

verdadeira luz do animal Racional, a energia que vai impulsioná-lo para o

conhecimento. Portanto, não se esqueça, Manoel: as revelações contidas

neste Livro jamais poderão ser usadas para

35

I

o comércio e a exploração. Deverão ser usadas para a salvação de todos

e também para proporcionar aos Racionais a volta ao seu mundo de

origem, para indicá-los o caminho da redenção e da vida eterna.

13

Endereço chique da nobreza e também palco de grandes e

inesquecíveis festas durante o Segundo Império, o Palácio do Itamaraty,

sede dos três primeiros Governos Republicanos, passou a abrigar, por

determinação do Governo Provisório, a comissão encarregada da

elaboração do anteprojeto da Nova Constituição. Como funcionário do

Ministério das Relações Exteriores, instalado naquele palácio, Manoel

passou a acompanhar o trabalho dos comissionários e também a ajudá-

los. Logo tornou-se amigo do Ministro Afrânio de Meio Franco, nomeado

Presidente da Comissão da Constituição. E como amizade implica, muitas

vezes, em pedidos e solicitações, Manoel não tinha mais hora para

chegar e sair do trabalho, servindo ao amigo.

Como todo brasileiro, alimentava um sonho: o da

reconstitucionalização do País.

Nos longos corredores de pisos trabalhados em mármores e nos

amplos salões de sancas douradas do Palácio do Itamaraty, o movimento

tornou-se intenso com o passar dos dias, após a instalação da Comissão.

Além do Ministro Afrânio das Relações Exteriores, dois outros Ministros

passaram a trabalhar ali: Oswaldo Aranha, da Fazenda (antes fôra da

Justiça), e José Américo de Oliveira, da Viação e Obras Públicas.

Além deles, faziam parte da Comissão outros políticos famosos,

intelectuais e juristas. Nomeados por Vargas, lá estavam João

36

Mangabeira, Artur Ribeiro, Assis Brasil, Temístocles Cavalcanti, Prudente

de Moraes Filho, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Agenor de

Reune, Francisco José de Oliveira e o General Góis Monteiro.

Trabalhavam empurrados por um desejo: o da realização de uma

profunda mudança na vida nacional.

Cauteloso, mas pragmático, Vargas acompanhava de perto os

trabalhos da Comissão da Constituição e a feitura do anteprojeto. Sua

permanência no governo dependeria dos constituintes e ele sabia disto.

Daí a importância de sua permanência, da sua assiduidade, da sua

habilidade política.

Discreto, apesar do sorriso, Vargas procurava não se abrir, nem se

expor. Jogava, às vezes, hesitante, noutras, conivente.

Solitário e obstinado na sua desmedida ambição política não

recuava um milímetro sequer. Sem receio ou remorso, não poupava nem

a amizade de seus seguidores mais fiéis, transformando-os em

mamulengos de suas inconfessáveis intenções e peças azeitadas de

suas engendradas manobras políticas.

14

Transpondo todos os obstáculos possíveis e buscando soluções

simples e desejadas para os problemas de sua vida, Manoel Jacintho

Coelho traçara o seu próprio caminho. Dono de um idealismo contagioso,

discreto e obstinado, logo tratou de alargar os seus passos, aproveitando

o máximo de sua vitalidade:

- O trabalho dignifica o homem - repetia, quase sempre, sem

despregar os olhos daquilo que estivesse fazendo.

Sempre preso a objetivos elevados e com enorme capacidade de

realização tornou-se estimado por seus colegas de trabalho, os quais

não lhe poupavam elogios:

37

1.II1

II

I

- Ah!... Seu Manoel... ele executa as tarefas com o máximo de

rigor, empenho e dedicação. E também se adapta, com a maior

facilidade, a qualquer tipo de trabalho. Parece mesmo ter nascido

para servir. Aceita, com muita naturalidade, aquilo que os

sentimentos ditam, principalmente as intuições, ou melhor, o

raciocínio.

Senhor de uma vida muito rica em acontecimentos singulares e

também inesperados, Manoel não tinha mais preocupações nem se

importava com os riscos. Recebia e assimilava os conselhos, as

lições e as normas que lhe eram ditadas através do Universo,

procurando adaptá-las a sua própria vida.

Indiferente aos preconceitos de época, convivia, sem receio,

com pessoas das mais diferentes camadas sociais. Da mesma forma

que impunha sua presença entre Ministros, com sugestões

inteligentes, fazia sua ausência se tornar sentida entre os boêmios da

cidade:

- Você sabe onde tem andado o Manoel, aquele do violão de

sete cordas? O homem desapareceu, evaporou. Há mais de três

semanas que não aparece por aqui, o pessoal tem reclamado muito a

falta dele. Você tem notícias do Manoel, João da Baiana?

-' Não, Donga. Eu não tenho notícias do Manoel. Há bastante

tempo que não cruzo com ele. O homem ultimamente não tem

aparecido aqui na Lapa nem tampouco visitado a Tia Ciata, como

fazia sempre.

Na verdade, Manoel Jacintho Coelho andava muito atarefado.

Deixava o trabalho tarde, faminto, cansado, pensando apenas num

banho e descanso. Como um estranho príncipe dos aflitos dedicava o

pouco tempo que tinha atendendo aos necessitados na Tenda

Espírita Francisco de Assis, na Rua Lopes da Cruz, 89, no Méier.

38

Buscava a paz, o sossego e a luz. Gostaria de p"er se deitar

numa rede, esquecido, embalado pela suave brisa da tarde e

acompanhar despreocupado, a queda indecisa da luminosidade do

crepúsculo. De ficar longe da cidade, da boemia inconseqüente,

sentimental e nostálgica.

O excesso de trabalho, sabia, oprimira o cavaquinho, deixando

seu velho violão surdo, mudo e amargurado.

Mas naquela tarde morna de abril seria diferente. A Comissão

da Constituinte suspendera o trabalho mais cedo, permitindo-lhe um

pouco mais de tempo para o descanso.

Ao deixar o Palácio do Itamaraty, as cigarras ainda cantavam

nos oitizeiros na Rua Larga de São Joaquim e um vento moleque

varria a rua em toda a sua extensão. Na calçada, parou um pouco.

Abriu o paletó e passou o lenço no rosto. Pensou em dar uma

chegadinha ao Café Paraíso, tomar um copo de água bem gelada e

também um café. Depois, bem. Depois seguiria até a Avenida Central

(hoje Rio Branco), rumo à praia.

Estava ansioso de mar, de um mar cheio de lirismo e energias,

de grandes ondas barulhentas, quebrando sobre as pedras e

esparramando-se em espumas. Um mar misterioso, soluçando,

crescendo, bramindo de solução.

Deixou-se seduzir pelo cheiro do mar, cada vez mais forte.

Ouviu o barulho de pés rangendo na areia e sentiu o calor de um sol

abrindo às suas costas, naquele céu de final de tarde e início de

noite.

Desejou ser o mar. Imprevisível. Incapaz de ficar parado.

15

Filho de músicos, Manoel fôra recebido, gerado e crescido ao

som das valsas, das polcas, das mazurcas e modinhas.

39

Nascera no dia 30 de dezembro de 1903, na Rua Barão do Iguatemi, . na

Cidade Nova, nas proximidades da Rua do Matoso e da Praça da

Bandeira.

Noite de verão, céu aberto e estrelado.

Durante o parto, sua mãe, a professora de piano Rosa Santos, fôra

assistida por uma vizinha, dona Maria Amélia, a negra Amélia Baiana,

filha de escrava, beneficiada pela Lei do Ventre Livre, cuja preocupação,

agora, era ajudar aos outros a nascer.

Logo que sentiu as primeiras dores, dona Rosa mandou chamá-la.

Predisposta à caridade, sorriso largo, Amélia Baiana não demorou,

tratando de atendê-la.

Além da arte de forno e fogão, aquela mulher, como poucas

pessoas, dominava os segredos da vida.

Sua presença acalmou dona Rosa.

Mangas de camisa, gravata borboleta, o maestro Manoel, o pai,

procurava ajudá-la, embora inquieto e nervoso.

- Traga um pano limpo. Pegue água e coloque pra fervê, vamo

precisá - pedia Amélia.

O menino Manoel não demorou a nascer, o parto fôra normal.

Ao ampará-lo, Amélia Baiana sorriu de felicidade. Beiços largos, testa

suada, mão negra segurando o menino pelas pernas, ela berrou, num

misto de contentamento e esperança:

- É homê, é homê, Rosa ... vai lutá pelus homês. Ele trás um

canto de amô, de paz, de concórdia e de liberdade ...

Dona Rosa não disse nada, apenas fechou os olhos, deixando-se

levar pelos acordes de uma doce e suave melodia que lhe chegara aos

ouvidos. Emocionada, Amélia Baiana começou a chorar, boca aberta,

garganta vermelha de tanto gritar verdades.

Seu choro rasgaria a calma.

40

Sua voz negra e pungente atravessaria o vento, anunciando que o

menino que acabara de nascer trazia uma mensagem do Universo e era

o símbolo da união das raças, porque preto e branco são iguais.

No ar pairava um vago sentimento de benção.

No céu, um espetáculo de luz.

Um meteorito em forma de estrela descera sobre a Terra, indo cair

bem em frente à casa do menino que nascera. A noite quente de

surpresa e curiosidade logo arrastaria uma multidão ao local.

O prefeito, a mulata e o general.

Lá estavam todos. Alfaiates, marceneiros, macumbeiros,

funcionários públicos, sapateiros, jornalistas, advogados, políticos,

chacareiros, pedreiros, engraxates, doceiras, lavadeiras, malandros,

comerciantes e costureiras - iam apressados, rumo à Praça da Bandeira,

cobrindo com seus passos o calçamento das ruas e o desenho das

calçadas.

O maestro Manoel estava feliz. Após esvaziar uma caneca de

vinho, acendeu um charuto e chegou à janela. Queria contemplar a noite

e agradecer ao céu, quando alguém lhe perguntou:

- Então, Maestro. Nasceu mais um Silva em sua casa?

- Silva, não. Nasceu outro Manoel, amigo.

Manoel Jacintho Coelho.

Atento à conversa, um repórter magro, alto, cabelos negros,

glostorados, murmurou baixinho:

- Silva ou Coelho que diferença faz. Na verdade somos todos

fulanos de tal, enganados pelos políticos, explorados pelos patrões e

humilhados pelas esquinas.

Vestido comprido e rodado, com aplicações de viés e rendas, laço

de fita no cabelo, a menina Leonor Nunes dos Santos acompanhara todo

o espetáculo com interesse e deslumbramento.

41

Na inocência de seus nove aninhos, ela achava tudo muito bonito e

iluminado, "um dia de festa, com aquela gente toda".

Tempo distante, de lembranças e de saudades.

Naquele dia, muita coisa a menina Leonor ficou sem entender.

Hoje, quase centenária, cabelos brancos servindo de moldura ao rosto

bonito, ela vai repetindo para os netos o seu conto de príncipe.

Na voz cansada, o sublime, o belo, o terno e o saudoso:

_ Naquela noite, uma estrela desceu do céu. Era uma estrela

grande e azul. Veio descendo, descendo, descendo ... e deixando, por

onde passava, um brilhante rastro de luz. Os sinos tocaram e as pessoas

saíram de suas casas, indo para a rua. Estavam emocionadas e felizes.

Homens e mulheres, jovens e velhos, pobres e ricos, adultos e crianças se

abraçavam. Era um novo tempo de amor, de confraternização, de amizade

e respeito, um dia de festa. Afinal, um menino que viera de muito longe e

acabara de nascer.

_ Quem? ... Indaga com interesse um dos netos e dona Leonor

responde comovida:

- O Cavaleiro da Concórdia.

A negra Amélia Baiana tinha razão. Manoel viera ao mundo na cor

de bronze unindo as raças. E ali estava para lutar pela Redenção do

homem, pela liberdade definitiva, para devolvê-Io ao seu estado natural.

Suor negro a inundar a Terra, aquela mulher com seu enorme

poder de percepção, entre o soluço e a lágrima, sentira o poder da energia

que emanara daquele pequenino corpo, tanto que balbuciara:

- Com a chegada de Manué começa um novo tempo.

Depois dele, não vai havê mais lugá prôs miserávis donos da vida,

porque todo mundo vai sabê de onde vem, pra onde vai.

42

O maestro Manoel não conseguira entender exatamente o que

Amélia Baiana pretendia dizer, mas pressentira que o filho viera ao

mundo predestinado a uma missão. E aquela mulher sabia de tudo. Era

um testemunho vivo, palpitante da anunciação de um novo tempo.

Diante desta certeza, olhara para o céu e pedira ao Verdadeiro

DEUS:

Pai, que o sacrifício de meu filho tenha uma finalidade.

16

Durante a noite anterior não conciliara o sono. As VI soes

acabaram por deixá-lo preocupado. Agora, de volta ao trabalho, Manoel

não conseguia esconder a inquietação.

Na tentativa de fugir à curiosidade dos colegas de repartição,

atravessou apressadamente a galeria onde ficam expostos os bustos dos

diplomatas, alcançando o jardim.

No espelho d'água do imenso lago, ladeado por palmeiras, Manoel

examinou o rosto cansado, os olhos vermelhos. Sentiu vontade de ir

embora para casa, de descansar um pouco. Mas acabou desistindo da

idéia. Sabia que tinha muito a fazer, naquele dia, no Palácio do Itamaraty.

Ao pensar nisto, sentou-se na grama. E procurou relembrar a

infância, buscando apagar aquelas imagens que tanto lhe atormentavam.

Como tinha saudades do tempo de menino, da vida colorida a

lápis de cor.

Nos quintais da infância, no esquecido chão de circo, não havia

lugar para as preocupações, embora fatos estranhos já pontilhassem

seus caminhos, provocando medo e inesperadas reações.

43

Sorriu ao imaginá-la correndo, descalço, sem camisa, pelas

ruas da Cidade Nova, disputando espaço com outras crianças. E os

olhos de Amélia Baiana a acompanhá-lo e protegê-lo, cercando-o de

todos os cuidados. Naquele tempo, como agora, amava os pássaros,

os bichos.

Depois mudou-se. Foi para a Rua Alice, no Rocha. Matriculado na

Escola Modelo, na Rua Ana Neri, no Riachuelo, logo a professora

constatou: o aluno Manoel já sabe ler, escrever e contar. E mais:

sabe tudo que lhe for perguntado. História, ciência, português,

matemática, geografia, astronomia e mais: até política, uma loucura.

Tudo isso sem ter freqüentado o colégio anteriormente.

Ao lembrar de dona Joana, a professora, sorriu. Após conhecê-

lo, ela piorou ...

Intrigada, confusa, desnorteada, ela vivia a perguntá-

lo: - Manoel, você consegue ler minha cabeça?

- Olha, eu ia lhe fazer essa pergunta, mas você me respondeu

antes mesmo de ter sido perguntado, como foi isso?

O menino Manoel desconhecia os seus poderes e acabava

complicando ainda mais a cabeça da professora, a coitada já andava

falando sozinha.

Um dia porém, dona Joana resolveu colocar tudo em pratos

limpos. Não se conteve e mandou chamar dona Rosa na escola.

Queria, porque queria, uma explicação para o fenômeno. Para

proteger o filho, a mãe de Manoel escondeu a verdade. Mentiu sem o

menor receio:

- Tudo o que ele sabe, aprendeu comigo lá em casa. O

Manoel é um menino muito inteligente. Não tive a menor dificuldade

para alfabetizá-lo.

- Mas, ele está atualizado até em política. A senhora não acha

que é demais para um menino de dez anos?

44

- Dona Joana, o Manoel é um menino que guarda tudo aquilo

que ouve e assimila os fatos com enorme facilidade. O que ele sabe

de política, aprendeu, estou certa, ouvindo as conversas lá em casa.

Se a mentira livrou Manoel da indiscrição das pessoas não foi

suficiente para tranqüilizar dona Rosa. Ela voltou para casa muito

preocupada, aflita, impressionada.

Era inacreditável tudo aquilo que ela ouvira sobre Manoel. À

noite, logo após o jantar, ela contou ao marido o que estava

acontecendo.

O maestro tratou de acalmá-la:

- Rosa, o Manoel é um menino prodígio. Eu diria mais: um

menino predestinado. Veio ao mundo para cumprir uma missão. Você

não deve se surpreender nem tampouco ficar preocupada. Encare

tudo, meu amor, com naturalidade e paciência. Seja compreensiva e

dedicada, afinal, fomos os escolhidos. Não sei por que razão, mas

fomos os escolhidos.

O maestro Manoel abraçou a mulher. Depois relembrou o

nascimento do filho, aquele meteorito em forma de estrela e também

as palavras de Amélia Baiana, aparentemente sem sentido, mas

verdadeiras e profundas.

17

As lágrimas da saudade umedeciam os olhos de Manoel

quando a voz, vinda do Universo, tratou de chamá-lo à razão e

passou a orientá-lo:

- Vamos, Manoel, está chegando a hora. O Presidente Getúlio

Vargas já está a caminho. E você precisa orientá-lo. Não fique tenso

nem preocupado. Vou estar ao seu lado e irei conduzi-Ia.

45

Repita exatamente aquilo que vou lhe falar. Através de minhas

palavras, você vai entender exatamente as visões da noite passada.

Na tentativa de evitá-las, a comunicação acabou sendo dificultada.

Vamos, Manoel. Temos uma mensagem muito importante para o

Presidente que vem chegando.

Uma força estranha tratou de empurrá-lo. No caminho ajeitou o

paletó, a gravata, passou o pente no cabelo. Tirou o lenço do bolso e

enxugou o rosto. Muito não demorou, Getúlio Vargas chegou ao

Palácio do Itamaraty, acompanhado de uma imensa comitiva.

Sorridente, comunicativo, cumprimentou a todos, indo apertar a mão

de um por um. Depois, adiantou-se, seguindo em direção ao gabinete

do Ministro Afrânio de Meio Franco, onde iria receber e examinar o

anteprojeto da Nova Constituição.

Foi nesse momento que Manoel interceptou-lhe os passos:

- Presidente, Presidente ... preciso falar com Vossa Excelência.

Trago-lhe importantes revelações.

Getúlio parou. Examinou cuidadosamente as palavras de

Manoel. Sabia ser ele funcionário público e que trabalhava ali no

Itamaraty. Após olhá-lo nos olhos, respondeu:

- Terei enorme prazer de conversar com o senhor. Mas, devido

ao compromisso que tenho agora com o Ministro Afrânio não vou

poder atendê-lo imediatamente. O senhor vai ter de aguardar um

pouco. Assim que a reunião terminar, pedirei para chamá-la.

- Vou aguardá-lo, Presidente.

Vargas foi em frente, levando o cortejo de puxa-sacos.

Olhos na comitiva, Manoel observou.

Nenhum governante, por mais habilidoso que seja, vai

conseguir se livrar da sina de aturar os puxa-sacos. Retóricos, eles

ronronam como gatos de madame os pés daqueles que ocupam o

poder. São verdadeiros angorás da política do apadrinhamento, do

privilégio. 46

E o mais curioso é que eles preservam até a índole felina: ode amar a

casa onde são moradores, no caso um palácio, o Palácio do Governo.

Sorriu. Depois esfregou as mãos. Estava mais tranqüilo. Havia

dado o primeiro passo.

Livre da preocupação e esbanjando energias, voltou à mesa de

trabalho na repartição. Aguardaria ali, com ansiedade, o reencontro

com Vargas. Mas logo que se acomodou na cadeira, aconteceu o

inesperado. Diante de seus olhos apareceu novamente a Luz da

Anunciação. E a voz morna e grave se fez ouvir:

- Manoel, vamos entrar na Fase Racional, a última fase da vida

na matéria. Nesta fase, vai surgir urna nova cultura, a Cultura

Racional. Através desta nova cultura, todos vão poder adquirir

orientações para se manter em equilíbrio. Você será o divulgador

desta cultura. E quem quiser adquiri-Ia não vai precisar sair de casa,

ir a igrejas, templos ou terreiros. A Cultura Racional é um,

conhecimento natural, Manoel. Não é ciência da imaginação, você vai

ver.

Manoel fechou os olhos e começou a prestar atenção nas

palavras que chegavam aos seus ouvidos. A intensidade dá luz foi

aumentando, os focos se multiplicando, profundos e cintilantes:

- O homem vai saber, através da Cultura Racional, todos os

segredos da vida. Quem ele é, de onde ele vem, como ele vem e o

que ele está fazendo nesta vida. E ainda para onde vai, como vai e

por que vai. De forma lógica, simples e clara, com provas e

comprovações, os mistérios da natureza serão desvendados. Os

conceitos filosóficos, de vida e de religião, então, rolarão por terra

completamente ultrapassados.

Manoel Jacintho Coelho apóia os cotovelos na mesa, cobre os

olhos com as mãos, ouvindo, compenetrado: 47

- Você vai conhecer o RACIONAL SUPERIOR e representá-lo na

Terra. Terá de ensinar aos homens, mulheres e crianças que a vida é um

rosário de contas e que todos os habitantes da Terra são encantados.

Vai mostrar-lhes o caminho da Imunização Racional, da verdade e da

razão.

Manoel, então, indaga:

- Por que a Cultura Racional não veio há mais tempo?

- Ora, Manoel. O espanto nem sempre surge com a

descoberta de um fato novo. Nem tampouco através de um

acontecimento inesperado. O espanto às vezes dorme, anos e anos, na

cama do cotidiano e da rotina. E desperta à-toa, quando alguém faz

estremecer o dorminhoco.

Manoel voltou a sorrir, diante da brincadeira. Mas a voz,

ganhando tom de seriedade, sentenciou:

- Tudo tem seu tempo, Manoel, aprenda. E o tempo vai chegar.

Árvore nenhuma dá fruto antes do tempo. Portanto, seja paciente.

A mensagem transcendental, a comunicação de Manoel com o

outro mundo acaba sendo interrompida com a chegada de um homem

moreno, pouco mais de 40 anos, bigode aparado:

- Rápido, rápido, rápido Seu Manoel. O Presidente mandou

chamá-lo. Ele está esperando pelo senhor no Salão Nobre.

18

A economia brasileira começava finalmente a se recuperar. O

algodão havia surgido no mercado como o segundo grande produto de

exportação, amenizando, em parte, a crise do café.

A elevação da produtividade industrial também fôra surpreendente

e o País reiniciava, de forma irreversível, sua marcha para o crescimento.

48

Vargas tratou de intensificar um programa de ajuda ao setor

cafeeiro e assumiu plenamente, através de seu governo, a direção dos

negócios naquele setor.

Com argúcia, colocou em prática um plano de reformulação do

sistema de pagamento da dívida externa, calculada, na época, em 250

milhões de libras.

Todo o saldo da balança comercial brasileira passou a ser usado

para o pagamento da dívida, medida que provocou a redução dos juros e

deu ao governo absoluta credibilidade no exterior.

Estava satisfeito com a política econômica desenvolvida por seu

governo. A política social, porém, era motivo de imensa preocupação.

Sabia da necessidade de um estreitamento de relações entre patrões e

empregados, através do campo sindical. Caso contrário não ia encontrar

meios para anular a forte influência anarquista e conter a influência

comunista que começava a se agigantar.

Quando Manoel entrou no Salão Nobre, Vargas dizia ao Ministro

Afrânio:

- Inimigos, Afrânio ... não sei se os tenho. Se os tiver, não serão

jamais tão inimigos hoje que não possam vir a ser amigos amanhã.

Capricho e ambição marcavam aquele homem, além daquele

charuto, daquela barriga, daquele sorriso.

- Entre, por favor, esteja à vontade. O Brasil também lhe

pertence - disse Vargas ao avistar Manoel.

Já de saída, o Ministro Afrânio despediu-se e foi embora.

Carregando no sotaque gaúcho, Vargas falou:

- A partir deste momento, estou à sua disposição, pronto para ouvi-

Ia.

Manoel, então, passou a explicar:

- Tenho uma tenda espírita lá no Méier, uma pequena casa de

caridade ...

49

- Entendo, entendo. O senhor deseja ajuda. Ora, o Presidente vai

ajudá-lo!. ..

- O Presidente está enganado. Não estou aqui para pedir ajuda,

mas para ajudá-lo. Tomei conhecimento, através da minha vidência, de

um acidente. Vossa Excelência vai sofrer um grave acidente e estou aqui

para alertá-lo para o perigo. Gostaria imensamente de poder ajudá-lo,

mas isto independe de mim.

- Acidente? O senhor tem certeza do que está falando? ...

- Tenho.

Da curiosidade natural, Vargas passou à preocupação. Sua

fisionomia risonha e rosada, logo ficou anuviada, transformando-se numa

máscara de gelo:

- Mas como o senhor, como o senhor - indagou Vargas, agora

claudicante - conseguiu saber deste acidente?

- Foi ontem à noite, Presidente, durante a minha

concentração. A vidência não se alongou muito, mas posso adiantá-lo

que o acidente vai envolver um automóvel. Pude vê-lo ferido com outras

pessoas, peço que acredite nas minhas palavras e tome cuidado.

- E quanto a meu governo, o senhor está gostando?

Na indagação de Vargas, duas intenções: a necessidade de

mudar de assunto e também a de investigar Manoel. Vargas imaginou a

possibilidade de estar diante de um homem doente.

- Estou gostando muito de seu governo. Mas vejo a necessidade

de uma preocupação maior com a política social, voltada para o

atendimento das classes trabalhadoras. Os poderosos, evidentemente,

ficarão descontentes, mas, com o tempo, vão reconhecê-lo, aceitá-lo,

aplaudi-lo. Mas o trabalhador brasileiro necessita de mais, de muito mais

...

- Como assim?

50

- Necessita de um Ministério do Trabalho, da promulgação da Lei

da Sindicalização, de uma Lei de Amparo ao Trabalhador Nato, da

redução das correntes migratórias. Na Educação, Presidente, precisamos

modernizar com urgência, o ensino médio e superior, criar as sonhadas

universidades brasileiras, promover uma ampla reforma do ensino

secundário.

Vargas ficou perplexo, embasbacado. Manoel fizera desfilar ali, sem o

menor esforço, suas intenções e planos de governo. Parecia ter aberto o

seu cérebro, especulando, devassando, coisa inacreditável. - Então,

Presidente? Estou certo?

- Claro que está, Seu Manoel. O senhor está certo.

- Vamos precisar também - insistiu Manoel - de uma revisão

na Legislação Eleitoral, Vossa Excelência vai precisar dela. Estamos

próximos das eleições. Fique tranqüilo, não precisa perguntar, o senhor

vai sair vitorioso. A Constituinte vai elegê-lo Presidente do Brasil. Durante

muito tempo o poder vai permanecer nas suas mãos. Agora, tome

cuidado.

- Terei muito cuidado, Seu Manoel.

Manoel levantou-se. Despediu-se e retirou-se.

Quando cruzou o batente da porta principal do Salão Nobre, três

copos de cristal que estavam sobre a mesa foram partidos sem que

ninguém tivesse tocado neles.

Vargas ficou arrepiado. A sensação fôra de que alguém havia

entrado para quebrá-los, usando um estilete. Durante algum tempo,

Vargas permaneceu sentado, confuso, intrigado.

19

O vento varria furioso a escarpada, vergando as árvores e

ameaçando levar pelos ares os telhados das pequenas casas. 51

A chuva grossa e intensa fazia rolar pela serra imensas cachoeiras,

tamanho o volume de água. Iluminada pelos relâmpagos, a estrada

deserta havia se tomado escorregadia e perigosa.

Indiferente à tempestade e aos riscos, a Lincoln presidencial

avançava, vencendo a distância, rumo ao Palácio Rio Negro, em

Petrópolis. Sentado à esquerda, no banco traseiro do automóvel, tendo ao

seu lado a mulher Darcy e o filho Getúlio, Vargas permanecia em silêncio

e acompanhava, com atenção, todos os movimentos do chauffeur

Euclides José Fernandes.

O Capitão-tenente Celso Pestana, ajudante de ordem Presidência da

República, ocupava a cadeirinha fronteira ao Chefe do

Governo, e procurava tranqüilizar a todos.

A certa altura, dona Darcy trocou de lugar com o filho, assustado

com o ribombar dos trovões e com a claridade brusca e intensa dos raios

que cortava o céu. Preocupada, queixava-se do frio e do vendaval que

ameaçava, agora, arrancar a capota do automóvel.

O chauffeur procurou diminuir a marcha à medida que a chuva

aumentava, por preocupação. Mas, ao alcançar o quilômetro 53 da

antiga Rio··Petrópolis, altura do terceiro viaduto, a visibilidade tornou-se

ainda mais difícil. Pensou em parar, aguardar a estiagem, mas poderia

ser pior, como imaginou. Assim decidiu ir em frente.

De repente, o inesperado.

Um estrondo formidável. O pânico, o pavor, o medo e a morte.

Uma pedra pesando 80 quilos desprendeu-se da encosta, rolou

do alto da serra, indo cair bem no centro do automóvel, sobre a O

ajudante de ordens do Presidente, Capitão-tenente Celso rosto

esmagado, morreu imediatamente. Getúlio, com as duas pernas

fraturadas, procurava, arrastando-se e gemendo, socorrer a dona Não

suportando a dor, pois sofrera fratura 52

exposta da perna esquerda, ela desfalecera.

Por sorte (ou proteção), o menino Getúlio não sofrera ferimento,

mas ficara abalado, chorando muito.

Na casa de Manoel Jacintho Coelho, na Rua Lopes da Cruz, 89,

no Méier, o relógio despertador começou a tilintar ruidosamente,

parando, logo depois, definitivamente, às 19h30min.

Um redemoinho de vento invadiu a casa, varrendo todos os

cômodos, arrancando as cortinas e desfolhando o calendário, na parede,

até o dia 25 de abril.

Dia e hora da tragédia.

Derrubado pelo vento, olhos presos no teto, Manoel assistira ao

desastre bastante nervoso.

Desta vez não surgira a cintilante cascata de luz.

Logo após ter sido derrubado, entrou num estado de imobilidade

contemplativa.

O barulho fôra ensurdecedor, indescritível.

A luz vermelha crepitando. O clarão, o espanto. A pedra rolando

serra abaixo. Depois resvalando e precipitando-se no espaço para cair

sobre o automóvel.

Gritou.

Mas o grito não lhe passou da garganta.

Situação terrível, angustiante. De prostração e de pavor.

Doloridos, sofridos, desesperados, diante de seus olhos, os

rostos de Vargas, de sua mulher Darcy, do menino Getúlio e do

chauffeur Euclides.

Socorridos, eles foram levados, minutos depois, para o Sanatório

São José, em Petrópolis. Ali tiveram de ser operados pelos médicos

Haroldo Leitão da Cunha e Florêncio de Castro Araújo.

Estropiado, tenso, amargurado, ainda deitado no chão, sem força

para mover, Manoel perguntava a si próprio a razão daquilo tudo. 53

Ouviu, então, a Voz da Anunciação:

- A felicidade que brilha no mundo, meu bom Manoel, é uma

felicidade sem base. E a felicidade sem base sólida, deixa de ser

felicidade, expondo os viventes a transes, sempre à procura dela.

Quanto mais se procura a felicidade, mais distante ela se encontra. Há

gente vivendo momentos insignificantes na vaga esperança de serem

felizes, morrendo e ficando por alcançar a felicidade. Meu bom Manoel,

não existe na Terra quem possa dizer: "eu sou realmente feliz". Porque,

quando está tudo bem de um lado, do outro lado tudo vai mal. E a

felicidade continua sendo procurada.

- Mas por que a felicidade não é encontrada? Indagou Manoel.

- Porque o mundo é de lutas. E onde há lutas, existe o

sofrimento, não pode existir felicidade. Uns lutam pelos amores, outros

pelos negócios, muitos por melhorias de vida, vários por razão de

doenças, alguns por ideais. Todos na esperança de alcançarem aquilo

que desejam. Enfim, uma vida de lutas, de sacrifícios e sofrimentos.

- E tem mais - prosseguiu a Voz da Anunciação - luta o rico, luta o

pobre, filhos de uma natureza que não regula. Uma hora frio demais,

outra frio irresistível. Ventos castigando, maltratando, ferindo e matando.

De repente, um calor de rachar. Doenças de todas as formas e espécies.

Portanto, se a natureza não regula, como os viventes desejam ser

felizes, desregulados, sem equilíbrio?

A indagação fica no ar.

Manoel acompanha o raciocínio.

A voz, num tom paternal, vai explicando:

- A felicidade é uma palavra que só existe no nome, arranjada

para amansar os iludidos, para aliviar aqueles que não conhecem os

segredos da vida. Como pode a mãe ser feliz permanentemente

preocupada com os filhos? Que felicidade pode ter os pais atormentados

pela mesma preocupação? Na procura da felicidade 54

todos se maldizem, sofrem, lutam e enfrentam dificuldades: o sol, a chuva e o sereno.

- Você quer ser feliz, Manoel?

- Quero, quem não quer?

- Para ser feliz, Manoel, torna-se necessário trazer para si o

que é certo, viver de maneira certa e não na incerteza que todos vivem.

Vou lhe mostrar, em muito breve, o caminho da felicidade, a solução para

todos os problemas da vida e você terá de ensiná-lo à humanidade.

20

Ao despertar na manhã seguinte, ainda sob efeito de analgésicos

e convalescente da cirurgia, Vargas tinha diante de seus olhos a imagem

de Manoel Jacintho Coelho. Chapéu na cabeça e cigarro de palha na

boca, iluminado por uma luz prateada intensa:

- O pior já passou. O senhor agora vai se recuperar rapidamente.

Tenha paciência, acredite ...

A imagem de Manoel desapareceu a seguir. Vargas não podia

falar, embora fosse seu desejo conversar com aquele homem. Figura

singular, Seu Manoel sabia dos segredos da vida e dos mistérios da

morte.

Decidiu. Assim que tivesse recuperado ia procurá-la. Aquele

homem que o alertara do perigo do acidente e agora estivera ali

materializado podia ajudá-lo. Lembrou-se do primeiro encontro. Da

sinceridade das palavras de Manoel, do seu desejo de colaborar. Ajuda

desinteressada, despretensiosa. Por diversas vezes, ao ouvi-lo, ficou

arrepiado, mas procurou controlar as emoções. Afinal, não ficava bem

para um Presidente sair por aí batendo cabeça nem tampouco se

deixando levar por premonições, espiritismo. 55

Iria procurar Manoel, precisava agradecê-lo.

Pensava assim quando o Ministro Afrânio de Meio Franco chegou

para visitá-lo, acompanhado do médico Pedro Ernesto, prefeito do

Distrito Federal.

Logo após cumprimentá-la e antes mesmo de falar sobre o seu

estado de saúde ou ainda contar como ocorrera o acidente, Vargas quis

saber:

- Afrânio, como vai o Manoel?

- Que Manoel, Presidente?

-- Aquele seu funcionário lá do Itamaraty.

- Vai bem, eu acho que vai bem. Mas por que o Presidente

quer saber dele?

Vargas sorriu, respondendo apenas:

- Sei lá, ele me pareceu um bom sujeito.

Dois meses após, Vargas estava completamente recuperado.

Após removê-la para a Casa de Saúde de sua propriedade no Rio de

Janeiro, o médico Pedra Ernesto dedicou-lhe inteira assistência até curá-

la.

Ele não conseguia, porém, esquecer de Manoel.

Quando soube dos resultados eleitorais da Constituinte, dia 3 de

maio, voltou a vê-Ia, sempre iluminado pela luz prateada:

- Esse Seu Manoel parece mesmo um homem do outro mundo. A ampla

vitória dos representantes das situações estaduais haviam lhe garantido

a realização de mais um sonho: o de se tornar Presidente da República,

eleito através do voto indireto, fato que iria ocorrer no dia 17 de julho do

ano seguinte, um dia após a promulgação da Constituição.

Chapéu na cabeça e cigarro de palha na boca, Manoel parecia

acompanhá-la. Sentia vontade de revê-Ia, agradecê-la e abraçá-la. E

também ouvi-Ia. Afinal, ele sabia das coisas. 56

Não perdeu mais tempo. Olhou o relógio, acendeu o charuto,

pegou o telefone e ligou para o Ministro Afrânio de Meio Franco, no

Palácio do Itamaraty:

- Dr. Afrânio?

- Sim.

- Quem está falando é o Dr. Getúlio. Estou desejando saber

do senhor Manoel Jacintho Coelho, aquele funcionário. Ele me pediu que

resolvesse um problema dele, e vou atendê-la. Trata-se de um emprego

para um parente, um sujeito estudioso, competente, merecedor da

oportunidade. Por favor, peça a ele que venha imediatamente ao Palácio

do Catete, porque não disponho de muito tempo.

- Vou mandá-lo sim. E de resto, Presidente?

- Vou bem, DI'. Afrânio. Estou recuperado e pronto para servir

ao nosso País.

- Isto é ótimo, Dr. Getúlio, isto é ótimo ...

- Vou desligar, Dr. Afrânio. Não deixe de mandar o Manoel aqui.

- Sim, Presidente ...

21

Muito não demorou, Manoel chegava ao Palácio do Catete com

seus quase dois metros de altura e mistério. Imediatamente foi arrastado

para o gabinete do Presidente. Ali, Vargas o esperava ansioso, inquieto,

caminhando de um lado para outro e fumando muito.

- Como vai o homem do outro mundo - exclamou sorridente ao vê-

Ia. Depois veio abraçá-la, feliz e agradecido.

- Não sei como escapei daquele terrível acidente, Seu Manoel.

Daquele acidente para o qual o senhor havia me alertado e pedido para

que tivesse cuidado. Mas reconheço, poderia ter sido bem pior, bem mais

trágico. 57

E recordou Getúlio:

- Quando ouvi o estrondo fechei os olhos. De olhos fechados vi o

seu rosto. Tive a consciência, àquela altura, de que não me livraria do

acidente, mas que iria sobreviver, porque o senhor estava do meu lado.

Mandei chamá-la para agradecê-lo e também presenteá-lo.

Caminhou até à mesa e abrindo a gaveta, dela retirou uma

pequena caixa, embrulhada em papel colorido.

Disse:

- É um relógio, Seu Manoel. Um relógio de excelente marca, uma

pequena lembrança. Ao usá-lo, o senhor vai se lembrar do seu amigo

Presidente e também quanto lhe sou agradecido. Saiba, onde quer que

eu esteja, não vou esquecê-lo. E espero que o senhor esteja sempre

comigo.

Manoel sorriu, baixou a cabeça, estava emocionado. Depois

começou a falar:

- Nesta vida nada é verdadeiro, a começar pela própria vida.

Se a vida fosse verdadeira, ninguém iria perdê-la, Presidente. O que

parece certo hoje, amanhã será errado, porque vivemos uma fase de

desacertos, de desencontros. O homem é um vago bicho sem destino,

nasceu sobre a Terra sem saber por que nem para quê.

- E como vamos saber o porquê, Seu Manoel?

- Daqui a dois anos, Presidente, com início da Fase Racional,

a fase do raciocínio, quando a humanidade vai conhecer o mundo de sua

raça e saber também como voltar para ele. A vida não terá mais

segredos.

- O Presidente sabe o segredo da vida?

Um raio de sol fraco e louro iluminou o rosto redondo de Vargas.

Surpreso e curioso, ele absorvia, em silêncio, as palavras sábias de

Manoel: 58

- A vida tem suas organizações muito claras para quem sabe viver.

Para quem não sabe, a vida torna-se desorganizada e difícil. Os seres

orgânicos se digladiam, lutam, destruindo a própria vida. Para ser bem

formada, bem construída, equilibrada ao bem-viver, a vida necessita que

os seres orgânicos e as organizações estejam paralelas e adequadas ao

modo de que se constitui a vida. O poder da vida está naquilo que as

organizações podem corresponder para equivaler à vida.

- O que vale o vivente ter vida, viver e não saber viver, Presidente?

Indaga Manoel, respondendo depois:

- Ora, não vale nada, porque quanto mais se procura organizar a

vida, mais se desorganiza. E se desorganizando, mais sofrimento vai

colhendo. É como a maré, sempre contra a maré, dentro do mar revolto.

Assim como as tempestades que reinam na vida do vivente, acabam por

naufragar-lhe a vida, deixando-o a imaginar e dizer:

- Quanto mais procuro o bem, mais ele se afasta de mim, mais

longe fica, porque não enxergo o que vou fazer da vida.

E concluiu:

- Neste crepúsculo amargo, neste pesadelo infernal, neste vale de

lágrimas, fica o vivente a pensar numa infinidade de coisas, sem saber

resolver o ideal.

- Mas, Seu Manoel, o que seria o ideal no seu ponto de vista?

- Seria viver num mundo natural, verdadeiro, limpo, imenso,

puro, longe dos problemas, das humilhações, das angústias e dos

sofrimentos. Um mundo de união, de concórdia e de fraternidade. Um

mundo sem mentiras, sem desconfiança, de equilíbrio e de virtudes.

E arrematou:

- No mundo de agora, a esperança que consola, aborrece e amola.

Vargas sorriu. Balançou a cabeça, concordando. 59

Manoel despediu-se dele, prometendo voltar um dia. Além dos

ensinamentos de uma nova cultura, ele acabara de mostrar a Vargas, a

luz da razão, o caminho da eternidade.

Agora sim, o Cavaleiro da Concórdia poderia partir para dar

continuidade ao seu trabalho: o de fazer renascer das trevas o esplendor

do Terceiro Milênio.

I I I Parte

A LUZ DA SALVAÇÃO

e nada adiantaram as promessas à Nossa Senhora do Parto. Nem o

copo de água, nem as velas acesas sobre a cômoda, num canto do

quarto. Ana Maria não sobreviveu ao dar a luz ao filho, apesar dos

esforços.

Quem conheceu o drama, jamais vai esquecê-lo.

O menino nascendo, chorando. E Aninha se debatendo, sofrendo,

lutando e morrendo, num ataque de eclampsia.

Ninguém sabia que seu sangue se intoxicara nos últimos dias da

gestação. E quando Aninha começou a tremer, olhos arregalados,

sacudindo-se toda, alguém ainda perguntou num tom nervoso:

- Ela é epilética, ela é epilética?

A pergunta ficou no ar, sem resposta.

Na verdade, o que todos sabiam sobre Aninha era muito pouco -

ou quase tudo de uma vida simples: era uma moça trabalhadeira,

caprichosa, amável e simpática. E não abandonara a máquina de costura

até a véspera do filho nascer, porque trabalho era coisa que ela não

recusava.

63

D

- Aninha pespontadeira, Aninha pespontadeira ... era assim

que todos lhe chamavam na Cidade Nova.

Embrulho de roupas na cabeça, lá ia Aninha entregar as

encomendas.

Mulata sestrosa, colo desabrochado. Cintura fina e fala mansa. No

seu jeito, feitiço, dengue e malícia:

- Bom dia, seu Antenor. Bom dia, dona Carolina ...

O ferreiro Antônio Faustino da Conceição encantou-se por ela.

Apaixonou-se. E com ela acabou se casando, meses depois, num

grande dia de festa. E agora ele chora, coração dilacerado, rasgado,

sangrando. Peito preste a explodir de tanta dor.

Lágrimas rolam pelo seu rosto, umedecendo-lhe o bigode farto,

insolente, arrogante - bigode que Aninha tanto gostava.

O desespero aumenta, impossível viver sem Aninha.

Ela fôra tudo para ele: mulher, amante, amiga. Mãe e irmã.

-- Por que Aninha, por quê? Você não podia ir embora, Aninha.

Me deixar assim, sozinho, largado no mundo, filho para criar ...

Antônio ferreiro chora a ausência da companheira, reclama,

grita, padece. Garganta ardendo, saliva escorrendo da boca aberta de

tanta dor. Parece querer morrer. Sua voz estala e se arrasta no ar,

chorando, queimando de sofrimento, alta e desesperada.

Conhecera Aninha, há seis anos, durante o Carnaval. Ficara

enfeitiçado ao vê-Ia requebrar no Rancho Recreio das Flores, onde

Marinho, neto de Ciata, era mestre-sala e tinha grande prestígio.

Não conseguiu mais despregar os olhos dela. Nem tampouco fugir

de seu jeito dengoso, dos seus lábios de desejo, do seu canto poderoso

e livre:

- Ah! Aquelas ancas de requebros, aquela pele dourada, aqueles

braços bem-feitos, aquelas pernas compridas ... 64

Tempo passou e Antônio acabou por conquistá-la.

Foi Dino Jumbeba, irmão de Marinho, tesoureiro da Irmandade de

São Jorge, na Praça da República, quem tratou de casá-los:

- Vocês se amam de verdade. E esse amor tem que dar frutos,

compreendem, compreendem? .. Repetia sempre.

Quem não se lembra da festa de casamento. Das valsas, dos

lundus, dos chorinhos. Do samba comendo solto, durante o sábado,

entrando pela noite, varando a madrugada e estendendo-se por todo o

domingo.

Aquele casamento reuniu, sem dúvida, a fina flor do Rio musical.

Lá estavam Lamartine Babo e Miguel Guimarães Júnior, Dunga e

Chico Viola, Ismael Silva e Joubert de Carvalho, Nilton Bastos e Heitor

dos Prazeres, Jacob do Bandolim e o poeta Catulo da Paixão Cearense.

Pixinguinha, num terno de linho engomado, e Noel Rosa, batucando,

tempo todo, numa caixa de fósforos. Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo

da Portela, foi um dos últimos a chegar, acompanhado de Cartola e

Nelson do Cavaquinho.

Foram abraçar Aninha, cumprimentar o marido felizardo e comemorar o enlace.

Naquele dia, Antônio se tornara o homem mais felizardo do

mundo. Agora, com a morte da mulher amada, era o mais infeliz de todos

os homens.

Sentado no chão da desolação e da desgraça, rosto entre as

pernas, coberto pelas mãos calejadas, queimadas de fogo e ácido,

Antônio chorava o infortúnio da tragédia:

- Por que isso foi acontecer? Por que, por quê? Eu não sei

que fazer. Aninha, você não podia ir embora, não podia morrer. É o

meu amor, Aninha, o que vou fazer?

Lembrou-se do Padre Mário, barroco e ecumênico. Do casamento.

Aninha vestida de noiva, caminhando para o altar. 65

De véu e grinalda, como sempre desejou: -

Estava bonita ... Ao vê-Io nervoso, ela sorriu, mostrando as fileiras de dentes

brancos e iguais.

_ O senhor Antônio Faustino da Conceição, quer receber, por

livre e espontânea vontade, a senhora Ana Maria de Oliveira, aqui

presente, por sua legítima esposa, conforme o rito da Santa Igreja

Católica? _ Sim, sim. Claro, claro - respondeu apressadamente ao ouvir

a voz do padre em sua alucinação.

Depois aguardou ansioso a resposta de Aninha.

_ A senhora Ana Maria de Oliveira quer receber, por livre e

espontânea vontade, o senhor Antônio Faustino da Conceição, aqui

presente, por seu legítimo esposo, conforme o rito da Santa Igreja

Católica?

- Sim, padre.

Doce Aninha.

Padre Mário fez, por três vezes, o sinal da cruz sobre os

noivos, ajoelhados diante do altar. Depois começou a orar: _ Senhor eterno, que consagrastes as coisas dispersas, que

constituístes para os corações um vínculo de união indissolúvel, que

abençoastes Isaac e Rebeca, que os fizestes herdeiros de vossa

promessa, abençoa i também estes vossos servos e guiai-os para toda a

boa ação. Porque sois um Deus misericordioso e amigo dos homens, nós

vos rendemos honra, Pai, Filho e Espírito Santo, agora e sempre por

todos os séculos dos séculos, amém.

O sacerdote procedeu à benção das alianças:

_ Senhor nosso Deus que tomastes por vossa noiva, como

virgem pura, a igreja nascida dos gentios, abençoa i este noivado e uni

estes servos, guardando-os na paz e na concórdia, porque toda 66

a glória, honra e adoração a Vós pertencem, Pai, Filho, Espírito Santo,

agora e sempre por todos os séculos dos séculos; amém.

Padre Mário tomou as alianças e após colocá-las nos dedos dos

noivos, tratou de abençoá-los, fazendo sobre eles o sinal da cruz.

Entregue às alucinações e preso às lembranças do casamento,

Antônio não chora mais.

Como seria bom se a vida voltasse no tempo, devolvendo às

pessoas as coisas perdidas. As tristezas, por certo, seriam evitadas. Não

haveria tantas desgraças no mundo nem sofrimento. Aninha não estaria

deitada naquele quarto, imóvel.

- Morreu abençoada pelo Padre Mário. Mas o que isso adiantava?

O que ela desejava mesmo era ter um filho, criá-lo. Sonhava sempre com

o bebê, ele acabou por arrastá-la à morte. Ah! meu Deus, quando vamos

deixar de sofrer? - Indagou incrédulo.

Antônio olhou o céu, contemplativo. Buscou um lenitivo na

imensidão do Universo. Uma luz que fosse intensa e pura. Verdadeira

como a crença que possuía, mas que acabara de perder. Uma luz que

pudesse lhe revelar, através daquela claridade e da força, o segredo da

vida, a razão para afastá-lo da descrença.

Mas alguém inadvertidamente acabou por despertá-lo:

- Vamos lá, Antônio. Seja forte. Olhe, seu filho. Está aqui, veja ... o

rostinho dele, uma gracinha. Como se parece com a mãe.

Ao abraçar o menino, Antônio tratou de aproximá-lo bem de seu

peito. No seu gesto de amor e de afeto, uma necessidade: a de senti-lo

respirando, vivendo ... o filho de Aninha.

Depois pediu forças para criá-lo:

- Você, menino. Vai ter de ser um homem honesto, trabalhador e

honrado. Um homem de bem como desejou sua mãe.

Na pia batismal, o filho de Aninha se chamou Moacir, aquele que

nasceu do sofrimento. 67

Em meio ao burburinho provocado pela tragédia que arrastou

vizinhos, amigos e parentes ao leito de morte da mulher, alguém se

lembrou de Maria Amélia, a negra Amália Baiana:

Uma parteira de mão-cheia, caridosa, sensitiva. Foi a melhor que

passou por aqui, igual a ela, nenhuma. Sabia das coisas, da natureza, da

essência. Sabia se a mãe ia passar mal, se o filho ia nascer bem, com

saúde. Era uma mulher especial.

- Mas por onde anda essa Amália Baiana? Por que _não foram

buscá-la? Indagou o relojoeiro Assunção. Moreno, cabelos lisos, terno

cinza, colarinho engomado, correntinha caindo do bolso do colete.

Gorda, vestido estampado, a costureira Cândida, vizinha de

Aninha, adiantou-se, bondade nos olhos e nas atitudes:

- Ninguém sabe por onde anda a Amália Baiana, não, moço.

Se ela está viva, ou se já morreu. Talvez esteja perdida, ou abandonada.

Ande lá para os lados do Cais do Porto, sendo alimentada pelas mãos

generosas de algum estivador, conhecedor de suas histórias e seus

poderes. Ou mesmo tenha encontrado o caminho do mar, da sedução,

do encantamento. Ido para o subúrbio, subido o morro, salpicado de

verde, embalada pela brisa suave, fresca e carinhosa. Ou mesmo, quem

sabe, voltou para a Bahia, para seu povo de velas, saveiros e lendas.

23

- Onde existe atraso, existe sofrimento, existe trevas: Por isso,

todos vivem no escuro, sofrendo, sem saber como se livrar do

sofrimento.

Jamais inteiramente satisfeito, Manoel Jacintho Coelho continua a

sua procura, buscando novos caminhos, novos horizontes. 68

Controlando os impulsos, de forma lúcida, clara, decidida, vai

entregando seu corpo com denodo, abnegação e coragem.

Na atmosfera envolvente e suavemente perfumada da Tenda

Espírita Francisco de Assis, ele recebe mais uma comunicação: sobre sua

cabeça, um foco de luz prateada, intensa, transparente a iluminá-lo:

- Onde existe adiantamento, Manoel, existe a luz. Portanto, não há

sofrimento. Quem sabe não sofre. Quem não sabe, pena. Existem os que

pensam que sabem. Mas o sofrimento prova que eles não sabem, pois se

soubessem não sofreriam nem tampouco fariam os outros sofrer.

Manoel mostrou-se inquisitivo, desejoso de maiores

esclarecimentos. Então, a luz tornou-se mais forte, mais intensa, mais

clara sobre ele.

A voz elevou-se:

- Os que sabem, Manoel, não sofrem. Resolvem tudo por si e por todos.

Porém, muitos vivem com saber insignificante, triste, sem nenhum valor.

Envaidecidos de uma sabedoria fraca. E embora convictos da nulidade da

sabedoria que apregoam, consideram-se sábios, mantendo-se no

pedestal, na tribuna, no púlpito. Na verdade não passam de grandes

impostores. São impostores por serem sofredores, mantendo lições de

uma sabedoria que só traz sofrimento para todos. O que adianta, Manoel,

um saber que só aumenta o sofrimento? Não adianta nada, não vale

nada.

Olhos semicerrados, Manoel ouve em silêncio, expressão de atenção concentrada no rosto:

- O mundo está convertido por uma sabedoria invertida, aonde o

atraso é adotado como saber. Isto é tão visível, como tornou-se visível o

sofrimento do mundo. Tanto assim que admitem a salvação do mundo

pelo desenvolvimento da destruição. Ah! Manoel, dentro de 69

pouco tempo todos vão ver a água ferver e esfriar de repente, como uma

brasa jogada dentro da lagoa. Não fique preocupado, logo depois tudo

será normalizado. E a paz vai voltar a reinar, finalmente, em todo o

Universo.

Manoel quis falar, mas não teve tempo. A Voz da Anunciação

tratou de interrompê-lo, indo adiante:

- Os homens nasceram no mundo, mas o mundo não é dos

homens, não é dos habitantes. E por não ser dos habitantes, nem tudo

eles podem resolver. Dentro de muito breve, as coisas vão começar a se

encarreirar, ganhando novos rumos, com caráter de melhoria universal.

Será colocado um ponto final no absurdo. Através de você, vou

apresentar ao mundo um Livro contendo a verdade das verdades. Com a

leitura deste Livro, todos vão saber de onde vieram e para onde vão.

Será um Livro de revelações surpreendentes, revolucionário, pois vai

provocar modificações de conceitos, de princípios filosóficos, de

pregações religiosas. Através dele, o mundo vai tomar conhecimento de

uma nova cultura, de novos ensinamentos, de novas lições. Vai conhecer

o caminho da luz, além de seu Verdadeiro DEUS. Será uma Obra

universal, grandiosa.

- O livro? Como vou fazê-lo?

Manoel quer saber.

- Terá de escrevê-lo, através do conhecimento que vou lhe

transmitir.

- Não estou entendendo ...

- Quando chegar a hora, Manoel, você entenderá. As verdades

serão derramadas diante de seus olhos, claras, elucidativas. -

Mas, mas ...

Manoel ficou preocupado com o peso de tamanha

responsabilidade.

- Acalme-se, Manoel. Você tem capacidade. Foi por ter 70

capacidade e coragem que você foi escolhido. Já estamos bem próximos

do Terceiro Milênio. E a fase do Terceiro Milênio é a fase da

Racionalização dos povos, onde toda a humanidade vai conhecer o

mundo de sua raça e ainda saber como voltar para ele. Com o livro que

você vai escrever, o homem vai aprender a desenvolver o raciocínio e

também se desligar, definitivamente, da energia elétrica e magnética,

ganhando, então, vida eterna, transformando-se em massa cósmica,

pura, limpa e verdadeira.

Manoel ficou tranqüilo, ouvindo:

- Não será filosofia, nem religião, mas uma cultura transcendental.

A cultura do verdadeiro estado natural, do conhecimento do retorno da

humanidade ao seu verdadeiro Mundo de Origem, através da Energia

Racional, elo de ligação do ser humano ao MUNDO RACIONAL.

- Mas o que é Energia Racional?

Perguntou Manoel, agora curioso. Mas a voz respondeu-lhe apenas:

- Você vai saber de tudo sobre Energia Racional.

Vai conhecê-la para poder ensinar. Tenha paciência e aguarde.

Tudo tem seu tempo. Fruteira nenhuma dá fruto antes do tempo. Eu já

lhe ensinei. Será que você não aprendeu?

Manoel sorriu.

A anunciada transformação que iria ocorrer em sua vida e o

surgimento de uma nova cultura de Racionalização dos povos não

ficariam guardadas atrás das brancas paredes da Tenda Espírita

Francisco de Assis no Méier.

Atravessaria o Atlântico e seria ouvida na Europa.

Na cidade de Gubbio, na Itália, o advogado, professor e escritor

espírita Pietro Ubaldi captaria a mensagem:

" ... e desse modo, os fenômenos não serão mais vistos nem 71

ouvidos, nem tocados por um EU qualquer, mas sentidos por um ser que

se transformou em delicadíssimo instrumento de percepção,

sensitivamente evoluído, nervosamente refinado e sobretudo

aperfeiçoado. Ciência nova, conduzida pelos caminhos do amor e da

elevação espiritual, é ciência que o Super-homem que está para nascer

fundará a Nova Civilização do III Milênio."

Ao receber a mensagem, Pietro Ubaldi tratou de anotá-la e incluí-

Ia no livro que escrevia: A GRANDE SÍNTESE.

Este livro iria se tornar, com o passar dos anos, o mais famoso de

toda a obra do escritor italiano. Durante sua feitura, Ubaldi passava por

um imenso período de solidão e trabalho.

24

- Então, Manoel, contemplando a cidade?

- Oi, Dino. Como vai? Quanto tempo ...

- Puxa, Manoel, você sumiu. Há mais de seis meses que não

lhe vejo. Onde você tem andado?

- Tenho andado pela vida, Dino. Trabalhando, lutando, vivendo.

-. E o violão, a música, as festas? ... As festas, Manoel, as

noites alegres, movimentadas? ..

- Devido aos meus afazeres, ao meu trabalho, ultimamente não

tenho me dedicado à música. Olha que não pego no violão um bom

tempo. Festas, então, nem se fala. Não tenho ido a nenhuma.

- Há cinco anos, mais ou menos, fui procurá-lo e não consegui

localizá-lo. Queria avisá-lo da morte de Aninha ...

- Aninha?

- Sim, Aninha. Aquela pespontadeira, moça prendada, porta-

estandarte do Recreio das Flores, você se lembra? -

Sim, sim ... 72

- Pois é, Manoel. A coitada, cheia de vida, morreu de parto, uma

pena! Foi um fato doloroso, chocante, triste .. E o desespero do marido, o

Antônio ferreiro ... lembrei-me de você. Achei que poderia ajudá-lo. Sei lá

... mas não consegui encontrá-lo ...

- Lamento, Dino. Lamento muito ... bem que gostaria de ajudá-lo

numa hora dessa, difícil...

- Mas deixa isso para lá, Manoel. Já passou. Não vamos ficar aqui

lembrando coisas tristes. Vamos ao que interessa. O que você me conta

de bom?

- Não tenho novidades, amigo. Estou levando, como lhe falei, uma

vida simples, comportada, rotineira. Sem alterações ou coisas novas.

Estou morando no Méier, subúrbio tranqüilo, afastado, calmo. E você? ...

O que você me conta de novo?

- Continuo na Central. Agora sou maquinista, compreendeu?

Comecei cedo, logo depois de deixar o Exército. Entrei como graxeiro,

levado por meu irmão. Depois passei a foguista. Fiz curso e sou

maquinista.

Bom sujeito o Dino Jumbeba. Homem de agradável convívio,

tremendo papo. Religioso, educado, caridoso: Irmão-tesoureiro da Igreja

de São Jorge e neto de Ciata, baiana festeira e dona de Casa de Santo.

- Como vai Tia Ciata, Dino? E seus irmãos?

- Tia Ciata, você sabe, continua com suas festas, com o

candomblé. Respeitada, quando ela fala, ninguém responde. Todo

mundo gosta dela e quando ela dá uma ordem, o pessoal aceita e trata

de cumpri-Ia. Tia Ciata é uma personagem da cidade e vai ficar para a

história.

- Verdade.

- Quanto aos meus irmãos, estão aí. Lili está trabalhando

lá no Moinho Inglês. O Marinho continua metido na macumba. 73

É ogã do terreiro do João Alabá. E o Santana está morando com minha

irmã. Quem fala muito em você, Manoel, é meu primo, o Bucy Moreira. _ Ah, o Bucy. O Bucy compositor ... onde ele anda? Tenho

saudades dele. _ O Bucy continua na dele. Quer achá-lo, basta ir à Praça

Tiradentes. Parece não ter jeito, só vendo, continua o mesmo trapalhão

de sempre. Compõe sambas, depois trata de vendê-los. Não raro, ele

vende o mesmo samba, duas, três vezes. No final, você já

sabe, é aquela confusão dos diabos.

Manoel sorri. Deseja saúde a todos e despede-se de Dino.

Segue seu caminho, subindo a Rua Visconde de Itaúna - hoje Presidente

Vargas, pista do lado do Campo de Sant'Ana. Caminhada para a Praça Onze, antigo Róssio Pequeno. O Rio estava mudando de fisionomia, estava crescendo

- observou.

Ainda na juventude, quando a cidade era bem menor, bem mais

humana, havia sido testemunha da covardia do governo contra os

negros, mulatos e pobres. Tudo a pretexto de um novo conceito de

civilização. Chegou mesmo a ficar revoltado com tanta incompreensão e

desumanidade. A pretexto de um rigoroso saneamento, confundindo

insalubridade com miséria, servindo a interesses políticos, empresariais e

econômicos, o governo deu início à campanha do bota-abaixo. E

demoliu cortiços, estalagens e casas de cômodos.

Quem era pobre, preto e miserável, dançou. Não podia

morar no Centro, onde não havia mais lugar para edificações

simples. Levados pela necessidade de moradias baratas, os despejados

74

- entre eles, muitos estrangeiros - jogados na rua da amargura e da

incompreensão, foram para a Cidade Nova e para os subúrbios.

A zona portuária prosperava, crescia, expandindo-se.

Com o crescimento da importância do Porto, o Rio de Janeiro

tornou-se o principal centro exportador do País, a célula nervosa da

economia e também o maior e principal mercado de consumo dos

produtos importados.

O progresso, a riqueza e o desenvolvimento passou a impor

reformas.

A cidade crescia desordenadamente.

Lembrou-se da pressão dos milionários sobre o prefeito Rodrigues

Alves, sorriu.

Depois falou baixinho:

- Mas que maldade, ignóbil pretensão. Queriam que o Rio tivesse

aparência de cidade européia. Fosse igual a Paris. Estavam

impressionados com as reformas ocorridas na capital francesa, após a

construção dos boulevards, longas e arborizadas avenidas. Impunham

ao governo a nova estética, construindo enormes edifícios e residências

luxuosas.

O governo acabou cedendo. Novas avenidas foram rasgadas.

Surgiu a Avenida Central, imponente. Hoje Avenida Rio Branco.

Sua construção provocou, de imediato, a demolição de 600

sobrados, ocupados pela população proletária.

Recordou-se:

- Aquela nova avenida abriria, na verdade, o caminho de uma

milionária intenção: a venda de terrenos na Zona Sul e a transformação

daquela região em local de residência de ricos e bem-nascidos.

Surgiria também a Avenida Mem de Sá.

As Ruas Frei Caneca e Estácio de Sá seriam alargadas,

75

facilitando o acesso à Tijuca e aos subúrbios da Central.

A abertura da Avenida Rodrigues Alves, margeando o Porto do

Rio de Janeiro, impulsionaria o crescimento dos subúrbios da Leopoldina.

Bonsucesso, Ramos, Penha começariam a se desenvolver. E

a Cidade Nova?

Ah! ... A Cidade Nova cresceria muito após o flagelo do bota-

abaixo. O pessoal da colônia baiana, instalada na Saúde, também

atingida pelas medidas do governo, acabaria se mudando para lá com

sua alegria, apesar das dificuldades. Eram trabalhadores da estiva do

Porto, marceneiros, pedreiros, ferreiros, alfaiates, sapateiros. Homens

alegres, festeiros, muitos deles músicos.

A suposta medida saneadora iria provocar, também, o surgimento

das primeiras favelas cariocas: Providência, São Carlos, Mangueira.

Assim mesmo, nesta ordem.

Após o encontro com Dino, aumentou a saudade de Hilária Batista

de Almeida, a Tia Ciata, em cuja casa os baianos se reuniam para louvar

seus orixás e também para sambar, comer, beber. Memoráveis noites de

festa!

- Ah!. .. A casa de Ciata, seu candomblé. Eram verdadeiras

brigadas de resistência à ação policial. Tempo em que o samba e a

macumba eram coisas proibidas. Negra de valor, de decisão, de caráter.

Vestido de renda bordado, armado por anáguas engomadas, Ciata tinha

tanta força que acabou empregando o marido no governo. Verdade ... o

João Batista era linotipista do Jornal do Comércio. Mas foi para a

Alfândega e de lá para o Gabinete do Chefe de Polícia, mesmo sendo

marido de macumbeira, metida com festas de samba, num tempo de

perseguição e indisfarçável repressão. Ciata curou uma ferida que o

Wenceslau Brás tinha na perna e depois disto seu prestígio

76

cresceu tanto que ninguém podia mexer com ela nem com sua Casa de

Santo. Tinha influência.

Saudades das festas de Ciata rompendo a madrugada.

Ganhando o dia, com seus batuques. As macumbas de muita gente. De

gente pobre, de gente rica. De gente de direita, de gente de esquerda. De

crentes, de incrédulos. De gente que ia fazer pedidos, de gente que só ia

para comer. De pedreiros, de jornalistas. De advogados, de engraxates.

De políticos, de motoristas. De comida baiana, de garrafão de pinga

obrigatório.

O vento das lembranças soprava naquela tarde morna, ao longo

das Ruas Visconde de Itaúna e Senador Euzébio, separadas pelo canal

do mangue ambas deram lugar à Presidente Vargas Manoel Jacintho

Coelho continuava caminhando, relembrando, sentindo.

O tempo alonga as distâncias sentimentais. Um dia pensou que

voltando àquele lugar ia poder abraçar os amigos, erguer à tulipa de

chope e brindar com eles o reencontro. Seria um brinde de saudade, de

recordações. Mas, observou agora, que tudo se modificou ao seu redor.

E mesmo que pudesse reuni-los, eles jamais estariam juntos, porque já

seriam outros, modificados pelo tempo '8 pela distância.

Olhou para o céu azul de sonho, sombreado de nuvens de leve

púrpura. Ao longo do canal, as folhas das palmeiras imperiais, lhe

pareciam imensos leques abertos ao vento.

Sentimental e nostálgico, lembrou-se de Manoel Bandeira, o poeta,

o amigo, o xará. Frágil, tossindo. Da poesia fácil, inspirada, sentida,

espontânea e natural. Bandeira do Desencanto, Bandeira da Cantinela,

Bandeira da Dama Branca, Bandeira da Confidência, Bandeira do

Mangue:

77

"Houve tempo em que a Cidade Nova era

mais subúrbio que todas as Meritis

da Baixada

Pátria amada idolatrada de empregadinhos

de repartições públicas

Gente que vive porque é teimosa

Cartomantes da Rua Carmo Neto

Cirurgiões-dentistas com raízes gregas

avulsivas

O Senador Euzébio e o Visconde de Itaúna

Já não se olhavam com rancor

(Por isso

Entre os dois

Dom João VI plantou quatro renques de

palmeiras imperiais)

Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu

Deus fui funcionário público casado

com mulher feia e morri de tu-

berculose pulmonar

Muitas palmeiras se suicidaram porque

não viviam num píncaro azulado.

Eram aqui que choramingavam os primeiros

choros dos carnavais cariocas

Sambas de Tia Ciata

Cadê mais Tia Ciata

Talvez em Dona Clara meu branco

Ensaiando cheganças para o Nata!..."

78

25

Na ferraria da Rua General Caldwell, atrás da Casa da Moeda, do

lado de uma enorme estalagem, Antônio Faustino da Conceição continua

sua luta contra o ferro bruto.

Martelo e alicate nas mãos, compenetrado no trabalho, nem

percebe o escárnio de um rapazola que passa, gritando:

- Trinca-ferro, trinca-ferro ...

Bate forte no ferro em brasa, sobre a bigorna. Quer dobrá-Io,

vencê-Io. Embora reconheça: esteja dobrado pelo sofrimento. Vencido,

não. Homem como ele não se deixa vencer nem se entrega assim.

No peso das marteladas que se multiplicam, o grito de amargura,

de angústia, de sofrimento, mas também de luta, de esforço, de

resistência.

Após a morte de Ana Maria, Antônio mudou muito.

Deixou de ser alegre, inquieto, irônico.

Mas continuou valente, exigente, infatigável.

Trabalhador? .. Ah! Isto ele sempre foi, como Aninha, com ou sem

ela.

Mãos grossas, pesadas, queimadas pelo fogo e comidas pelo

ácido, Antônio só tem feito trabalhar, trabalhar ...

Calças arregaçadas, camisa aberta, não cuidava mais da

aparência.

O janota alegre de ontem, sempre perfumado, o alegre tocado r de

pandeiro do Recreio das Flores, sorriso aberto, parece ter morrido com

Ana Maria.

De fato.

O homem generoso, aventureiro, feliz. O sentimental, irrequieto,

transbordante, desapareceu, sumiu.

Antônio deixou de sambar, deixou de sorrir. Só não deixou de 79

viver, o que faz com esforço, com sacrifício.

- Trinca-ferro, trinca-ferro ...

a rapazola impertinentemente volta a insistir, a provocá-lo.

Agora ele ouviu, mas não se importou, nem ligou.

Apenas pensou:

- Moço sem picardia, sem malandragem, um bobo. Vai, brinca,

brinca. Você vai mudar quando souber os segredos da vida, quando for

emboscado pelo destino.

Coragem, fibra, sentimento.

Ah!. .. Tudo isso Antônio ainda tem. Mas por necessidade. Aninha

deixou-lhe um filho, o menino Moacir. E ele deseja criá-lo,

transformá-lo num grande homem:

- Vou ser um pai de verdade. E também uma mãe. Aninha, você

vai ver. ..

O crepúsculo já se anuncia.

O dia vai morrendo atrás do Morro do Pinto, de casas humildes,

coloridas e risonhas. De gente pobre, mas alegre, subindo e descendo

suas ladeiras calçadas de paralelepípedos negros, íngremes, densas de

mistério. De seus becos assombrados de espanto e miséria.

A noite não demora a chegar.

o tempo não lhe serviu de remédio para esquecer os encantos, a

beleza e a música de Aninha. Nem a viuvez lhe devolvera a liberdade

que normalmente se adquire quando se deixa de amar. Aquela leve

sensação que se tem de não dever mais satisfações, de completa

isenção de sentimentos, de romper com as algemas.

Queria poder sorrir dos desenganos, do tormento obscuro, daquela

desventura, impossível. Sua fantasia fôra feita de sonho e desgraça. A

bem da verdade não deixara de amar Aninha. Sua alma ainda chorava,

abismada no luto. Aquela mulher se tornara definitiva em sua vida,

principalmente após a morte. 80

Ainda não se sentia forte, tranqüilo e confortado.

Muito menos livre, sólido, liberto.

Dentro de si, no palpitar de seu coração, a certeza: tinha contas a

prestar àquela mulher que, mesmo ausente, ainda morava em seu peito,

viva, infinita:

- Doce Aninha!. ..

Encerrou o trabalho, foi para o banho. De volta, cabelos molhados,

toalha no pescoço, trepou na bicicleta para iniciar o caminho de volta para

casa. Na porta da ferraria, um cego ainda lhe estendeu a mão, pedindo

esmola. Caridoso, tratou de atendê-lo.

Sentiu piedade daquele homem bem mais infeliz, triste sombra na

procissão dos desventurados.

- Coitado, nem o mundo pode ver. Sem trabalho, sem amigos, sem

ninguém. Completamente perdido na escuridão das trevas. Eu ainda

tenho Moacir, herança de Aninha. Meu conforto, meu alento, meu lenitivo.

Nos sobrados coloridos da Cidade Nova, nas simples casinhas

térreas, fronteiriças, moças se debruçam nas janelas. Respiram um ar

repleto de novidades e aguardam curiosas a chegada da noite.

Interessadas, acompanham com os olhos e também com comentários

aqueles que passam - uns apressados, outros não -- de volta do trabalho.

São as perfumadas empregadinhas do comércio, enamoradas e

esperançosas. Os pequenos funcionários públicos, colarinhos

engomados, paletós fechados, jornais debaixo do braço, esbanjando

conhecimento e senso de responsabilidade. A baiana com seu tabuleiro

de doce, num equilíbrio mágico, despertando a gula. O moleque

irrequieto, peito nu, assoviando. O camelô com seus brinquedos, indo de

porta em porta, na esperança de vendê-las, e ensinando, a cada contato,

lições esquecidas da infância. 81

Quando todos retomam, a prostituta vai.

Boca pintada, sonhadora, rumo a alcova, na Conde Lage. Num

elegante vestido rodado, ela deixa transparecer, através do caminhar

esguio, o corpo fornido, bem-feito.

O movimento alvoroça os corações.

Não demora muito, as famílias tomarão as calçadas com suas

cadeiras, suas conversas, seus risos, suas queixas e lamentações.

Na esquina das Ruas Visconde de Itaúna e Sant' Ana um sapo

salta na penumbra da noite que se aproxima, assustando a mulher negra,

gorda, avental amarrado sobre o vestido.

Ela grita e corre para a rua, sem perceber, bem junto dela, a

bicicleta. Antônio ferreiro que vem pedalando, apressado, perde o

equilíbrio, caindo. Na queda, ele bate forte com a cabeça no meio-fio,

ficando sem sentidos.

Imóvel sobre a calçada, seu rosto logo se transforma numa pálida

máscara de cera. De sua cabeça a escorrer um filete de sangue.

O que estaria sentindo ali no chão, aquele homem que perdera o

estímulo da crença, o entusiasmo pela vida e se tornara inconsolável na

dor, após a morte da mulher?

A prostituta foi a primeira a acudi-lo, a socorrê-lo.

Vindo do fundo de sua desgraça, da sua maldição, rompendo com

o absurdo dos preconceitos e com a indiferença da discriminação, ela

tirou da bolsa um lenço colorido, perfumado, colocando sobre a cabeça

ensangüentada do ferreiro.

No rosto banhado pelas lágrimas da solidariedade, de maquilagem

desfeita, um sentimento: a dor e a visão da morte.

Antônio agoniza, amparado pelas mãos geladas de desventuras,

pálidas, hesitantes, mas amigas.

Humildade, desespero e súplica na boca que era, há pouco,

carmim de desejo. 82

A multidão que se formou curiosa, acompanhava o soluçar

intraduzível da mulher, que suplicava ajuda e chorava o destino do

homem que não conhecia.

Alto, prestativo e determinado, o espanhol Juan Gonzalez

abandona o balcão do Café e Bar San Sebástian, ali na Rua Sant'Ana.

Deseja saber o que está acontecendo, a razão daquela confusão:

- Que passa, que passa?

Saiu da sombra em meio aos cheiros e rumores. Quem o conhece,

sabe: está disposto a ajudar.

Natural de Vigo, cidade florida banhada pelo Atlântico, ao norte da

Espanha, Gonzalez abriu espaço na multidão, varrendo o lixo. Inteirado

do que estava acontecendo, da gravidade do estado do homem

agonizando na calçada, não perde mais tempo. Sai à procura de socorro,

voltando, pouco depois, num táxi:

- "Tonterías", "tonterías" ... balbucia.

Antônio é levado imediatamente para o Pronto-socorro, na Praça

da República, hoje Hospital Souza Aguiar. A prostituta, identificada mais

tarde, como Adelaide de Assis, fez questão de acompanhá-lo, esquecida

de sua desgraça:

- Alguém precisa avisar os parentes dele - suplicou compadecida.

No hospital, após os primeiros exames, a dureza do diagnóstico:

fratura de crânio.

Antônio estava grave. A pancada que dera com a cabeça contra o

chão, acabara por afundá-lo frontal. Vai ser operado:

- Preparem a sala de cirurgia, preparem a sala de cirurgia. Alertava um

enfermeiro, nervoso, levando, correndo, várias radiografias para o

médico. Antônio continuava estendido numa maca de ferro, pintada de

branco, na sala destinada aos pacientes homens. Ainda inerte,

completamente fora de si. 83

Do lado de fora, outras pessoas se juntaram à Adelaide, agora

mais calma, embora bastante apreensiva. Chegaram os capoeiras Zé

Moleque, Gabiroba e Brancura. Este metido num paletó jaquetão

rigorosamente fechado.

Visivelmente apreensível, andando de um lado para outro,

aguardando notícias, o sambista e compositor, Agenor de Oliveira, o

Cartola:

- Tia Carmem está desesperada. Quer saber como Antônio está

passando. Assim que souber, vou avisá-la.

Referia-se a Carmem Teixeira da Conceição, a Carmem do

Xibuca, irmã de santo de Ciata. Ela adorava Antônio como .se ele fosse

seu próprio filho.

26

Manoel Jacintho não suportou a saudade de Tia Ciata e decidiu

visitá-la na imensa casa que ela alugara na Rua Visconde de Itaúna. A

velha e poderosa baiana, guardiã de nossas tradições festeiras e

religiosas, ao vê-lo ficou surpresa, satisfeita e comovida. Como Ciata

estava bonita no seu traje de baiana, naquele vestido rodado, de rendas:

- Clata de Oxum - disse.

Deusa do dengue, da formosura, da elegância. Ciata era a própria

Oxum: meiga, vaidosa.

- Vai entrando, vai entrando, Manoel, a casa é sua ... Conversaram a

tarde inteira. Recordaram grandes festas e momentos inesquecíveis.

Falaram dos amigos, de suas saudades. Mas deram, também, ótimas e

largas gargalhadas.

Ciata ainda quis prendê-lo para o jantar. Mas Manoel preferiu

adiá-lo para uma outra ocasião, quando dispusesse de mais tempo e

estivesse mais tranqüilo. Algo lhe dizia que devia ir embora, partir. 84

Atendeu à voz da razão. Despediu-se, ganhou a rua.

Logo seus olhos avistaram uma mulher que chorava muito, levando

um menino pela mão. Quis saber o que estava acontecendo, sentiu

necessidade de ajudá-la.

Era dona Perpétua Alvarenga, doceira de primeira, mestre na arte

culinária, religiosa, caridosa e amiga, ela se prontificara, desde a morte de

Aninha, ajudar Antônio, cuidar de Moacir, o que vinha fazendo com imenso

carinho, amor e inegável dedicação.

A notícia do acidente acabou por surpreendê-la, arrastá-la ao

pânico. No seu inconformado desespero, caminhava apressadamente

para o Pronto-socorro:

- Meu Deus, meu Deus, ajude! O Moacir não pode ficar sem o pai.

Olhos grandes, rostinho redondo, bem parecido com Aninha,

Moacir, na inocência de seus cinco aninhas, não tinha consciência do que

estava acontecendo. Queria ver o pai e pronto. Por isso andava com

pressa, atendendo os apelos da tia Perpétua.

No Pronto-socorro, a indecisão do médico:

- Valeria a pena operar aquele homem? Ele sobreviveria a tão delicada cirurgia?

Examinou a situação. Após alguns segundos de hesitação, análise

e avaliação, concluiu: Antônio não seria operado, não resistiria.

O desespero e o nervosismo tomaram conta de todos os amigos de

Antônio ferreiro, agrupados, agora em número maior, na porta do

hospital. Diante da decisão do médico, restava-lhes apenas aguardar a

morte do companheiro. Ou quem sabe, uma providência de Deus.

Falou em Deus, ele apareceu:

- Olha o Manoel. Quem é vivo sempre aparece ...

- Oi, Cartola. Como está o homem?

85

Perpétua.. 87

- Muito mal, muito mal. O médico não quer operá-lo devido à

gravidade de seu estado. Falou mesmo, se operar, ele morre. --

Verdade?

- Verdade, Manoel. ..

- Quero vê-lo.

Falou e foi entrando corredor adentro, sem que ninguém o

importunasse.

Antônio continuava deitado sobre a mesma maca, agulha de soro

a espetar-lhe a veia. Manoel aproximou-se dele, pousando-lhe a mão

direita sobre a cabeça. Não demorou muito uma luz prateada, brilhante,

clareou toda a enfermaria.

A fonte de luz nascida, através da janela, iluminava o corpo de

Manoel, ressaltando-lhe a silhueta e tornando ainda mais branco o terno

que ele vestia. A mão que estendera sobre a cabeça de Antônio, tornara-

se um poderoso condutor de energia, iluminada, fosforescente, cintilante.

De tão intensa, a luz parecia penetrar na cabeça do ferreiro em agonia.

Pacientes, enfermeiros e médicos e acompanhantes, perplexos,

surpresos, embasbacados, acompanhavam, trêmulos aquele espetáculo

de beleza indescritível.

Num determinado momento, a luz tornou-se bem mais forte,

intensa. A impressão que todos tiveram, nesta ocasião, foi a de que

Manoel Jacintho Coelho, no ponto máximo de sua concentração, deixava

o chão, flutuando no espaço.

Depois, o vento forte soprou por toda sala, abaixando a

temperatura que fôra elevada pelo calor da luz. Alguns vidros de

mercúrio, tubos de esparadrapo e rolos de gaze caíram no chão,

assustando ainda mais aqueles que ocupavam a enfermaria, nervos à

flor da pele.

Anacleto Martins de Almeida que ali estava com uma crise de

bronquite, contaria, anos depois: 86

- Fiquei com o cabelo todo arrepiado, não sei se foi pelo vento que

soprou na enfermaria, ou de espanto por tudo aquilo que assisti. Minha

emoção foi tão grande, tão forte, que acabei ficando curado da bronquite,

que padecia desde os primeiros anos de infância. Lembro-me que outras

pessoas que lá estavam, também doentes, foram beneficiadas com a

cura através da Luz.

Depois do vento, o silêncio absoluto.

A luz fôra se esmaecendo, até desaparecer. Antônio abriu os

olhos ainda sonolentos. Manoel, então, sorriu, dizendo: -

Já posso ir, Antônio. Você já está curado.

A seguir, retirou-se.

Do lado de fora, em frente ao Pronto-socorro, uma situação

inexplicável.

Dona Perpétua vinha chegando. E, com ela, o menino Moacir, e

também um homem: Manoel Jacintho Coelho.

O compositor Agenor de Oliveira, o Cartola, ficou intrigado, sem

entender nada. Manoel, terno branco, tinha conversado com ele, entrado

logo após, no hospital. Estava ali esperando ele sair. Queria saber se

tinha novas informações sobre Antônio, notícias alentadoras. E de

repente o homem surgiu na rua, de terno azul.

Tratou de indagá-lo:

- Manoel, você não estava de terno branco?

- Não.

- Você não entrou no hospital?

- Não ...

- Ô Manoel ... você está brincando ...

- Não Cartola, não estou brincando. Cheguei agora com dona

Cartola tratou de pedir a comprovação das pessoas que ali estavam. De

Brancura, Zé Moleque, Gablroba e Adelaide.

Todos foram unânimes: Manoel estivera ali, momentos antes, num

elegante terno branco.

-- Mas, mas ...

Manoel não tinha mais como negar. Imaginava o que poderia ter

ocorrido:

- Se vocês querem assim, assim seja ...

Muito não demorou, o episódio que deslumbrou a todos no

hospital, ganhou a rua, arrastando uma verdadeira romaria de curiosos

até lá. Durante muitas semanas não se falou em outra coisa na Cidade

Nova.

Sem entender o que realmente acontecera, o ferreiro Antônio,

sentou-se na maca querendo ir embora, no que foi impedido pelo

cirurgião Antenor:

- Seu Antônio, preciso submetê-lo a novos exames. Se o senhor

estiver curado, vou liberá-la, vou lhe dar alta.

- Como, doutor? Eu nunca estive doente, nem sei por que estou

aqui.

No Café e Bar San Sebástian do espanhol Juan Gonzalez, os

comentários ganham um fato novo, num comovente depoimento do

músico Carlos Espínola, pai de Aracy Cortes:

- O tal homem de branco saiu do hospital, após ressuscitar o

Antônio. Na Frei Caneca, foi abordado por um cego que lhe estendeu a

mão, pedindo-lhe uma esmola. Sabe qual foi a esmola que ele deu ao

cego? A visão. Não sei o que ele fez nem tampouco o que falou. Só sei

que o cego, após coçar os olhos, começou a enxergar. E saiu correndo,

pulando e gritando: estou vendo, estou vendo.

No dia seguinte, o cego seria localizado por um repórter do Diário

Carioca. Chamava-se Alfredo Alencar Moreira, o mesmo que deixara

penalizado o ferreiro Antônio quando ele saía do trabalho.

Palácio da Cultura Racional em Belford Roxo-RJ

88 89

90

IV parte

A HORA DA VERDADE

s surpreendentes poderes de Manoel Jacintho Coelho começaram

a ganhar as primeiras páginas dos jornais e também correr de boca

em boca por toda a cidade. Homens e mulheres, jovens e velhos,

poderosos e humildes estavam perplexos e deslumbrados com que

assistiam:

- Você conhece o Manoel? Aquele do terno branco? ..

- Não, Aniceto. Eu não conheço, mas tenho ouvido falar dele.

- Você devia conhecê-lo, Belisário. O homem faz coisas do

outro mundo. Aparece simultaneamente em vários lugares, realiza curas

de moléstias tidas como incuráveis e costuma andar com os pés fora do

chão, flutuando ...

- Pára de brincadeira, Aniceto. Um homem da minha idade não

acredita em Papai Noel. ..

- Brincadeira? ... Eu estou falando sério, Belisário. Seria incrédulo

demais ou talvez um tolo se não acreditasse naquilo que está

acontecendo diante dos meus olhos, dos olhos de toda a cidade. Ainda

na semana passada, o João Cândido, aquele do

91

o

armarinho da Rua Catumbi, foi procurar Manoel, na tenda espírita, lá no

Méier. A filha dele estava com problemas no ouvido e ameaçada de ficar

surda. Sabe o que aconteceu Belisário?

- Não, Aniceto. Não sei.

- O homem curou a menina com um sopro. Se você achar

que estou mentindo, procure o João Cândido, vá procurá-la. Ontem

estive conversando com ele e o homem continuava embasbacado,

perplexo, bestificado. Embora satisfeito, radiante de felicidade.

Olhar de descaso, de pouco crédito, Belisário ouviu em silêncio.

Depois indagou:

- Quem pode comprovar, na verdade, se a menina ficou curada ou

não? Ou ainda se ela estava realmente doente, com problemas de

tamanha gravidade no ouvido?

- Belisário, o João Cândido já havia procurado vários médicos e a

menina estava sentindo dores terríveis no ouvido, dores que

desapareceram logo após o sopro. Quis saber da própria menina o que

ela sentiu quando Manoel soprou-lhe o ouvido e ela contou que sentiu

um calor muito grande entrando pelo conduto auditivo e rompendo com

alguma coisa que não sabia explicar. Falou-me ainda do detalhe que me

deixou também intrigado: no momento do sopro, o Manoel não tinha os

pés no chão. Seu corpo estava livre no espaço ...

- O que é isto, Aniceto? .. Tenho cara de bobo ...

- Ninguém tem cara de bobo, Belisário. Mas nesta hora fica.

O João Cândido ficou com cara de bobo, eu ficaria e você também,

diante de uma cena desta.

- Mas ...

- Mas o que, Belisário? ... Dentre tantas coisas, fiquei

sabendo também, ter sido Manoel quem curou as pernas do Getúlio,

embora o Dr. Pedra Ernesto tenha ficado com o mérito. Não só curou,

como também o alertara, dias antes, para o perigo do, acidente. 92

Como agradecimento do Presidente, o Manoel ganhou um relógio, a

amizade do homem e uma homenagem no Palácio do Catete.

- Verdade, Aniceto?

- Verdade, Belisário. O Getúlio agora não sai mais lá do centro

do Manoel. Vira-e-mexe, está lá com comitiva e tudo. Só que o Manoel

não faz distinção nem o Getúlio quer. Quem quiser falar com ele, tem que

aguardar a vez. Rico ou pobre, influente ou sem prestígio, para o Manoel

todos são iguais perante a Deus e merecem o mesmo tratamento. Trata

todos com muito amor, generosidade e paciência.

- Estou curioso, Aniceto ... coisas desse tipo, eu pago pr:a ver.

-- Não Belisário. Lá ninguém paga nada. A Tenda Espírita

Francisco de Assis é uma casa de caridade. Portanto acho bom não

confundi-Ia com uma casa de espetáculos ...

- Modo de dizer, Aniceto. Aquele negócio de São Thomé. A gente

quer ver para crer ...

- Belisário, o João Cândido me contou também que logo que

sentou-se no banco destinado às pessoas que iam participar da sessão,

foi surpreendido. Mesmo sem tê-lo visto, pois permanecera no interior do

centro, cuidando dos últimos afazeres, Manoel pediu lá de dentro:

_. Quero falar com esse senhor que a filha está ficando surda.

A menina será a primeira a ser atendida. Tem forte infecção no ouvido e

está sentindo dores. Está sofrendo, necessitando de ajuda. Portanto,

peço a compreensão de todos.

- Ao ouvir Manoel falar, João Cândido ficou arrepiado. Não

conhecia o Manoel, e ainda não havia falado com ele nem tampouco

contado a ninguém ali do centro o problema da filha. Havia apenas

solicitado uma consulta para a menina, sem contudo revelar a doença

que ela padecia.

- Mas foi assim mesmo, Aniceto? 93

- Inacreditável, mas foi .. o João ainda me contou que no momento

em que Manoel revelou a doença da filha, sentiu um vento forte soprar-

lhe as costas. Forte e gelado. Medo e uma sensação estranha, diferente.

Mas adquiriu logo a certeza: a de que a filha ia ficar curada.

- Como é o nome da filha de João Cândido, Aniceto?

- Regina, Belisário. Tem 12 anos, uma mocinha.

No Salão Magia das Luvas; uma espelhada barbearia da Rua

Mariz e Barros, ponto de encontro de boêmios, músicos, sambistas,

passarinheiros, funcionários públicos, Pixinguinha se levanta, num terno

riscado. Deixa a cadeira onde aguardava a vez de cortar o cabelo e entra

na conversa:

- Conheço o Manoel. Além de excelente músico, tem realmente

santo forte. Possui poderes e vem realizando muitas curas, algumas

surpreendentes. Costuma deixar as pessoas embaraçadas, respondendo

perguntas que não chegaram ser feitas.

- Será que ele consegue ler a cabeça dos outros, Pixinguinha?

- Às vezes penso que sim, Aniceto, às vezes penso que sim ...

Pixinguinha ajeita o paletó.

Terno bem cortado, caimento perfeito, chama atenção para a

roupa que veste:

- Bonito terno, Pixinguinha.

- Obrigado, Belisário. Foi feito por um jovem alfaiate de

Nilópolis. Um artista invejável e de grande futuro. Não demora muito, vai

tomar conta da cidade com sua arte.

- O nome dele, Pixinguinha?

- Aloysio Carneiro Moraes. Ou Moraes apenas. Mestre da

tesoura dourada, como preferem seus amigos.

- O Moraes tem realmente um excelente talho. Preciso,

milimetrado. Consegue dar à roupa um ótimo caimento. Vou procurá-lo,

vou procurá-lo. 94

Alegre, falante, o barbeiro Donato já não presta atenção no cabelo

que corta, doido para entrar na conversa. Homem que faz da amabilidade

sua arte, admira uma prosa calma, de longas pausas elucidativas:

- Sabe, Pixinguinha. Também estou querendo conhecer o Seu

Manoel. Na barbearia se fala dele todo o dia e há coisas que contam que

estão me deixando curioso. Semana passada, o Almirante, aquele do

rádio, esteve por aqui, cortando o cabelo e fazendo a barba comigo.

Disse que conhecia o Seu Manoel da boemia, do violão de sete cordas.

Mas que estava ouvindo muitas histórias sobre ele, histórias que gostaria

de catalogar para contar, futuramente, num programa de rádio, sobre

coisas do além.

- Antônio ferreiro, Donato. Você sabe dele? ...

- Claro, Aniceto. O homem está trabalhando com mais

disposição do que nunca. Parece que não aconteceu nada com ele. Está

inteirinho, completamente curado. Curado do acidente e da paixão ...

- Do acidente e da paixão?

- Ou você não sabe, Aniceto?

- Não, não sei, Donato ...

- O Antônio está namorando a Adelaide, mulher que o socorreu.

Quem me contou foi o Juan, aquele espanhol do San Sebástian. Hoje de

manhã, ele esteve aqui fazendo a barba e contando as novidades. Falam

que o Antônio está muito bem intencionado. Tirou a coitada da vida e

tudo. Sinceramente, acho que ele fez muito bem.

- Também acho, Donato. Todo mundo merece uma oportunidade,

um ombro.

- Contam que foi mais um milagre do Seu Manoel. Ao sair do

hospital, de terno branco, no dia do acidente, ele teria se aproximado de

Adelaide, procurando consolá-la: 95

- Não chore, mulher. A tempestade já passou, a luz iluminou as

trevas. Antônio está salvo, curado. Pronto para trabalhar e também lhe

dar um lar, uma família ...

- Você está brincando, Donato.

- Brincando? .. Na casa de Tia Ciata não se fala de outra coisa.

Sem conseguir esconder a insatisfação, o passarinheiro Amorim,

caminha de um lado para o outro, resmungando e ocupando todos os

espaços da barbearia.

Camiseta e calça listrada, sovaco forrado por cabeleira espessa,

unhas e bigode por fazer, ele reclama indignado, interrompendo o papo

do barbeiro:

- Quando você começa a conversar, Donato, é um Deus nos

acuda. Acaba esquecendo o trabalho, o freguês na cadeira, uma

loucura. Olha só o que você está fazendo com o cabelo do Carlinhos,

meu amigo lá de Figueira de Meio.

O cabelo do rapaz está todo picotado, cheio de caminhos de rato.

Está certo que o Carlinhos goste de passarinhos, seja criador de curiós.

Agora, transformá-lo num galinha da campina, não.

Você vai ter de dar um jeito, Donato. Vai ter que dar um jeito.

O rapaz não pode ficar assim, com uma crista no lugar do topete.

Longe da inquietação das madrugadas alegres, da trepidação da

cidade, da agitação da repartição pública, perdido na simplicidade e na

quietude da Tenda Espírita Francisco de Assis, Manoel Jacintho Coelho

contempla o espaço, distante e confortado. Esquecido na calma e no

silêncio, ele aguarda imóvel e quieto a descida do crepúsculo olhando as

paredes revesti das de solidariedade e ternura daquela casa de

caridade.

Mas seu corpo logo seria estremecido, por um turbilhão que iria

varrer as dependências da tenda espírita. Uma voz forte, grave, densa

de mistério e rica de conhecimentos, também se faria ouvir: 96

- Manoel, vamos. Chegou a hora.

Arrepiado, cauteloso, Manoel Jacintho virou-se na intenção de

identificar a voz, saber quem estava falando consigo. Foi quando deparou

com uma enorme e cintilante Estrela de Sete Pontas cobrindo todo o

altar:

- Gostou da estrela, Manoel? Ela representa os Sete Reinados da

Vida. E vai acompanhá-lo a partir de agora, porque o sete é o número da

plenitude dos Reinados.

Na frente da imensa estrela, haviam doze cadeiras, seis de cada

lado, enfileiradas, uma de frente para outra, como podem ser

encontradas, hoje, na Varanda do Retiro Racional. No centro, na frente

da estrela, uma décima terceira cadeira prateada, iluminada, cintilante:

- Senta, Manoel. Ela é sua ...

- Minha?

- Sim, Manoel. Ela é sua ...

28

Nervoso, tenso, hesitante, Manoel preferiu ficar onde estava,

ouvindo:

- Serei teu companheiro na tribulação, na realeza e na

perseverança. Vou ajudá-lo a mostrar aos viventes o que vai acontecer

na Terra, ensiná-lo o mistério da estrela e também todos os segredos da

vida. Vamos dar de comer à árvore da salvação.

Um forte cheiro de incenso invadiu a tenda espírita. As doze

cadeiras passaram a ser ocupadas por doze homens. Eram todos velhos,

embora fortes e dispostos. Usavam longas cabeleiras e barbas brancas.

Vestiam compridas túnicas brancas e caminhavam com generosidade e

paciência: 97

- São os Cardeais do Universo, Manoel. Eles formam o Grande

Conselho Superior. E vieram assistir ao seu coroamento.

- Meu coroamento? ..

- Sim, Manoel. Ao seu coroamento. Aqui estou para ensiná-lo

a governar a vida dos viventes, usando o cetro luminoso do Raciocínio.

Para ajudá-lo também a quebrar, com este cetro, os vasos de barro do

pensamento. Nenhuma vitória humana poderá preservar o vivente de ser

finalmente um sofredor. Mas aquele que estiver em sofrimento, você vai

ensiná-lo a não se abalar. O sofrimento não é o meu sinal de cólera, mas

o meu sinal de amor. Através dele, vou lapidar, corrigir e salvar.

Manoel pôde finalmente avistar o homem, cuja voz de trovão

estava acostumado a ouvir. Ficou arrepiado, trêmulo. Seu rosto brilhava

como o sol. Seus cabelos eram brancos, longos como os dos outros.

Seus olhos eram chamas de fogo e seus pés de metal incandescentes.

Sua voz tinha o rumor dos mares. Mostrava na mão direita uma pedra

branca e na esquerda uma espada azul iluminada:

- Sua vida, a partir de agora, Manoel, será muito difícil.

Apesar de seu empenho, da luta e da dedicação para salvar a

humanidade, não lhe pouparei do sofrimento. Você vai conhecer as

difamações, as intrigas, as injustiças. Muitos vão se virar contra você

sem eira nem beira, motivo ou justificação. Outros vão acompanhá-lo

como cordeiros e encontrarão, ao final da estrada, o mundo sonhado.

Quem permanecer fiel aos meus ensinamentos será presenteado, na

hora da morte, com a minha coroa de vida eterna. Prepare-se Manoel,

pois jogarão no teu caminho as pedras do tropeço. Não se desespere

nem esmoreça. Trago-lhe do teu MUNDO, uma pedra branca. Nela, você

deverá gravar o meu nome, um nome novo, que ninguém conhece. E que

só conhecerão aqueles a quem você abençoar. 98

Agora mais tranqüilo, Manoel torna-se todo atenção:

- Minha mensagem tem caráter definitivo, Manoel. Aqueles que

tomarem conhecimento de meus ensinamentos, deverão colocá-los em

prática imediatamente, de modo possam colher bem mais rápido, os

frutos de minhas lições. Serão lições de amor, de concórdia, de verdades.

Vou apresentá-las, através de um Livro, o qual você vai começar a

escrever a partir de hoje. Com o Livro que irei ditá-lo, você vai conhecer o

poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a glória, a honra e o louvor. Mas,

tudo isso, você deverá usar em benefício da humanidade, da divulgação

da minha Obra, para salvar o vivente do flagelo. Seja generoso, paciente,

perseverante. Sempre que se sentir cansado, debruças em mim, pois

trabalharei por você. Pegue o seu cavalo branco, coloque a minha coroa

sobre tua cabeça e parta com a minha espada. Mate a mistificação, o

charlatanismo, a exploração. Você conseguirá, Manoel. Os homens,

esteja certo, vão se associar de peito ao teu sacrifício, ouvindo e

assimilando as minhas mensagens. Quem possuir ouvidos, vai ouvi-lo.

Quem tiver olhos, vai vê-lo. Suas palavras e os seus escritos, percorrerão

o mundo, transformados num inédito poema de esperança, de

revelações.

Manoel não diz nada, permanece silencioso, atento:

- Estás pronto para saber o que vai acontecer na Terra, Manoel?

Respondeu que sim, embora sem saber ao certo. Desejou apenas

dar uma demonstração de coragem. De dedicação, de confiança e de

obediência. As velas dos imensos candelabros de ouro, colocados atrás

das cadeiras alinhadas, logo se apagaram. O Arco-íris que invadira com

sua luz colorida o salão do centro espírita, durante a mensagem,

desapareceu imediatamente. Os relâmpagos e os trovões logo se fizeram

ouvir. O sol se apagou naquele final de tarde e o céu ficou iluminado por

uma luz vermelha como o sangue. 99

Uma chuva de granizo e fogo começou a desabar, os astros

despencaram sobre a Terra, caindo como mangas maduras das

mangueiras. O céu desapareceu por completo. As ilhas foram tragadas

pelo mar em fúria e ebulição. Homens e mulheres, velhos e crianças,

ricos e pobres, patrões e empregados, igualados no desespero e na

desgraça, buscando, na aflição, as cavernas nas montanhas.

- Fique calmo, Manoel - interrompeu o homem de barbas longas e

olhos de fogo, dizendo:

- Nem o céu, nem a Terra, nem as árvores, serão danificados

enquanto não estiverem marcados aqueles que voltarão para nosso

mundo. Meus filhos, Manoel, estarão livres do flagelo. Não terão mais

fome nem sede. Nem tristezas nem dores. Já terão sido lavados na fonte

da vida eterna. O Livro que vou ditá-la, será a chave do poço e do

abismo, lembre-se disto.

Seguiu-se a advertência:

- Durante a tua caminhada não faltarão as profetizas, as

aproveitadoras. Cuidado com as profetizas, Manoel. Tente convertê-las.

Mas não as deixe de ensinar, em conduzir o meu rebanho, mesmo que à

distância. Meus cordeiros acabarão prostituídos e enganados. Desejo

convertê-las também, Manoel, mas não com as suas imundícies.

- Como posso chamá-lo?

- De RACIONAL SUPERIOR. Os ensinamentos que você vai

receber para transmiti-los à humanidade, pertencem a Cultura Racional,

a cultura do raciocínio, a Imunização Racional.

- Mas, o que é Cultura Racional?

- São os ensinamentos do princípio e do fim do mundo.

Através da Cultura Racional, o homem vai ficar sabendo de onde ele

vem. Para onde vai e como vai. Trata-se de uma cultura do Terceiro

Milênio, transcendental. Vamos ensinar a humanidade, como conhecer o

mundo de sua raça e também, como saber voltar para ele. 100

A Cultura Racional, Manoel, é a cultura do verdadeiro estado natural, do

conhecimento de retorno da humanidade a seu verdadeiro mundo,

através da Energia Racional, elo de ligação do ser humano com o

MUNDO RACIONAL. Com o início da Fase Racional, a partir de agora, o

espiritismo deixa de ter sentido, você sabia?

- Não.

- O que é espiritismo, Manoel? Você saberia me dizer?

Manoel quer responder, mas não consegue. Falta-lhe a voz e o

RACIONAL SUPERIOR retoma a palavra, explicando:

- Espiritismo quer dizer: experimentando, em experiência,

espertos, espetando, exploração, sempre com duas intenções, boa e má.

Explicação que não dá conta do profundo ser da matéria, ficando em

experiência sempre, sem solução, por preservar todos os mistérios, todos

os enigmas, todos os encantos. Reside aí, Manoel, a razão dos

sofrimentos e das lágrimas. Quem vive de experiência não chega à razão

nem à conclusão definitiva das coisas. Ninguém deve confiar no

espiritismo. Quem navega em experiência, não sabe se está certo ou

errado. O espiritismo é, na verdade, um barco sem rumo. Os espíritas

ignoram e fazem mistério de suas origens, mantêm segredo em tudo,

mais por desconhecimento do que por precaução. O espiritismo serviu

até aqui, apenas como elemento de toque, para alertar os viventes da

existência de habitantes neste imenso vácuo. E também de outras

paragens, além e muito além do vácuo. O espiritismo está no singular e

nunca passou disso.

Manoel continua ouvindo, agora surpreso:

- Os habitantes do Astral Superior, encontram-se na Terra para

esclarecer todos os mistérios, desencantar a todos, provar o porquê de

todas essas confusões, comprovar o porquê de tudo por tudo.

E prosseguiu: 101

- Você deve lembrar, Manoel. Os Conhecimentos Racionais, são

conhecimentos reais do porquê dessa vida, do porquê desse mundo, do

antes de ser tudo que compõe esse mundo e do porquê todos

desconhecem a sua origem. Do porquê da vida, de tudo e de todos. Isso

só é possível, através dos Conhecimentos Racionais. No que é Racional,

na pureza e na verdade das verdades. E não assim como vivem, à mercê

do espiritismo, uma coisa em experiência, reunindo todas as falsas

verdades. Com apenas uma partícula da verdade. Essa partícula é quem

anima as experiências do espiritismo, botando todos em dúvida com a

falsa fé, porque a fé é do falso condutor.

O RACIONAL SUPERIOR deu uma pausa. Bebeu um cálice da

sabedoria e retomou a palavra:

- Se a fé não fosse do falso condutor, ninguém seria traído por ela.

Se a fé valesse e resolvesse, todos venceriam com o poder da fé,

ninguém sofreria. Não haveria sofrimentos, porque todos, através da fé,

atrairiam para si, aquilo de melhor. Por ser a fé um enigma deste

encanto, é que todos vivem mantendo o sofrimento e também o pranto.

Todos usam a fé e o poder dela para todas as formalidades, para todos

os fitos e para todas as soluções. Se a fé valesse, não haveria miséria de

todos os tamanhos, de todos os quilates. Nem sofrimento. Mas, por ela

não valer é que todos sofrem. Sofre o rico, sofre o pobre, o remediado.

Sofre quem tem e quem não tem. Se ela resolvesse, nada disso existiria.

E por não resolver, é que tudo isso existe.

E foi mais além:

- Os conhecimentos que serão transmitidos por Mim, o RACIONAL

SUPERIOR, são Conhecimentos Racionais, diferentes dessa balofestia,

onde tudo é balofo, só existindo a palavra, mas na realidade, nada. E tem

mais, Manoel: muitos conhecimentos férteis virão com o andamento da

Elaboração Racional. 102

E concluiu:

- E assim, todos nós, cada qual na sua categoria: os habitantes da

Terra, os habitantes do espaço, os habitantes de outras paragens e os

habitantes do Astral Superior, chegarão lá. Mas, vamos devagar,

aprendendo, estudando, colorindo as lições da Elaboração Racional. As

dúvidas são daqueles que não conhecem. Com o decorrer da

Escrituração, as dúvidas desaparecerão, porque o que é Racional é

completo. O que é ciência é do encanto e cheia de dúvidas. O que é

Racional não tem mistérios, nem enigmas, nem encantos. É verdade

desvendada nua, crua, limpa.

29

A noite descera silenciosa e calma, mas Manoel estava nervoso e

impaciente. Queria começar a escrever o Livro e terminá-lo logo, livrando-

se da responsabilidade e da obrigação. Tinha consciência da grandeza

da incumbência, de sua delicadeza e do tamanho de sua importância.

Por isso insistia, permanecendo ali sentado, empenhado, pronto, à espera do grande momento:

- Se é para fazer, vamos fazer logo. Não gosto de deixar as coisas

para depois, pode complicar - pensava, papel e lápis sobre a mesa da

ansiedade.

As palavras lhe fugiam e as mensagens se perdiam na hora da

Escrituração, sem que ele pudesse explicar o que estava acontecendo.

Por várias vezes, olhou o céu, através da janela, na esperança de avistar

o Grande Livro aberto, seguro pela mão de um anjo, diadema de ouro na

cabeça. Mas quando a impaciência começava a ceder lugar ao

desespero, ouviu a voz do trovão:

- Seja paciente, Manoel. Não é assim. O Livro não será aquilo que

você imagina, mas o que tenho para ditar. Após as 22 horas, 103

você deve se concentrar, a Luz Racional vai iluminá-la no silêncio, e

você; então, ouvirá minha voz. Através dela a grande lição a ser dada

a toda a humanidade. Aquele que se embriagar com o vinho do meu

ensinamento alcançará a luz da vida eterna. Quem ignorá-lo, vai

chorar arrependido e desesperado. E arrancará os cabelos ao avistar

a fumaça do grande incêndio. Vai olhar, amedrontado, o tormento.

Mas não haverá mais cálice nem vinho. O orgulho e o luxo vão dar

lugar à tristeza e ao luto. Tudo será devorado: o delicado e o

suntuoso, o ouro e a prata, as pedras preciosas e as pérolas. O linho

e a seda, a madeira e o marfim. Do céu aberto surgirá cavalgando,

finalmente, o Cavalo Branco da Redenção, o qual você deverá

montar. Já lhe dei a coroa, a espada. E lhe darei o Livro. Com a

espada, afaste os preguiçosos, os traidores, os incrédulos e os

abomináveis, pois sobre eles despejarei o fogo de minha ira. Coloque

a coroa na cabeça, Manoel, e trate de guiar aqueles que ouvirem a

sua voz. Pois a sua voz será a voz do céu, a voz das águas, a voz

dos ventos. A voz da natureza, da racionalidade, da verdade

escondida. Seus ouvintes e seguidores serão cobertos e protegidos

pelas asas da grande águia que descerá da estrela. Com o Livro,

espalhe o saber, o conhecimento e a cultura. Através da

Racionalização, vou poder enxugar as lágrimas de todos os olhos,

renovar todas as coisas, pois sou o começo e também o fim.

Aguarde, Manoel. Aguarde a minha música. Ela descerá do céu ao

som da harpa dourada, dando início à salvação dos homens. Neste

dia, estarei sentado num trono branco, sobre a Terra, assistindo

renascer do esplendor do Terceiro Milênio.

104

106

V parte

O AMIGO QUE VEIO DE LONGE

anoel Jacintho Coelho modificara completamente a sua vida.

Agora dedicava-se inteiramente à feitura do Livro, mergulhado na

mais profunda solidão. Esquecera de tudo: dos filhos, da família e dos

amigos. Das alegres noites de festa, do violão, do chope

inconseqüente e gelado. Até o foguete, manga larga marchador que

o levava por demorados passeios pelas ruas arborizadas e tranqüilas

do Méier, havia sido esquecido, colocado de lado e engordava no

pasto.

Ninguém conseguiu demovê-lo do trabalho obstinado,

determinado e ininterrupto. Nem mesmo os médiuns da Tenda

Espírita Francisco de Assis, solicitando conselhos e explicações:

- O Manoel está fascinado, envolvido com o trabalho, vai em

frente, sem olhar para trás. Não adianta chamá-lo, convidá-lo, pois

ele não irá ao encontro musical, o que ele está tocando agora é o

Livro e enquanto não terminá-lo, não adianta.

Jacob do Bandolim tinha certeza daquilo que estava falando,

conhecia muito bem Manoel Jacintho Coelho. Sabia perfeitamente o

107

M

que significava para ele a feitura daquele livro, por isso entendia,

aceitava e impedia que os outros músicos fossem incomodá-lo.

- Então, Jacob. Como vamos fazer? Onde vamos encontrar um

outro sete cordas bom como o Manoel?

- Calma, Ciro. Ainda não sei e não estou querendo esquentar a

cabeça por enquanto. A festa só vai ser realizada mês que vem e até lá

talvez o Manoel já tenha terminado o Livro. Quem sabe?

Ciro Monteiro e Jacob do Bandolim seguem em frente, descendo a

Avenida Central, rumo à Cinelândia. Contemplam a cidade, seus

recantos e explanadas. Na tenda espírita, Manoel continua ouvindo,

concentrado, a voz do RACIONAL SUPERIOR:

- Vamos, vamos, Manoel. Sempre que o prepotente fizer

prevalecer sua ignorância, sua brutalidade, não recue nem sinta

desgosto. Mas o gosto da provocação, iluminando-o com a luz e a força

de seu raciocínio. Jamais conceda ao prepotente a trégua da sua

indiferença. Nem tenha medo. Ao levar a minha mensagem, seja forte.

Não se preocupe com as reações. A única coisa que devemos ter medo

no mundo é do próprio medo.

O RACIONAL SUPERIOR tinha pressa. Findava o ano de 1935 e

Manoel precisava concluir os 21 volumes básicos da obra que iria ser

intitulada de UNIVERSO EM DESENCANTO.

31

Pedreiro de profissão, Nelson Nunes de Almeida mal podia

caminhar. Uma enorme ferida surgira em sua perna esquerda,

provocando-lhe dores terríveis. Enquanto tinha dinheiro, consultou vários

médicos e nada, a perna cada dia inchava mais, para o seu desespero.

Até a pequenina casa, na Rua Mello e Souza, em São Cristóvão, acabou

abandonando por falta de pagamento. 108

Desempregado, sofrendo muito, Nelson não sabia mais o que

fazer. Sua mulher e seus filhos foram levados para a casa de sua sogra e

estavam sendo sustentados por seus irmãos, as dores aumentavam, a

perna inchando, inchando. Sem dinheiro, mal podia comprar remédios,

cuidar do ferimento. Agora, até o socorro médico nos hospitais públicos

tornava-se penoso, devido às dificuldades de locomoção.

Naquela manhã, a coisa piorou. A ferida abriu de vez,

aumentando-lhe ainda mais as dores. Nelson chorava inconsolável:

- Por que meu Deus, por quê? Eu tinha saúde, o meu trabalho, a

minha família. Era um homem feliz, de repente a desgraça. Não posso

entender, meu Deus, nunca fiz mal a ninguém, sempre fui um homem

bom. Por quê? Por quê, meu Deus?

- Por que tá chorando tanto assim, homê de Deus. Não se

desespere não, nem tudo tá perdido nesta vida.

- Como? O que a senhora está falando? Estou sentindo rnlJita dor.

Não tenho o que comer, perdi minha família, meus filhos, meu trabalho,

minha casa. Agora vou perder minha perna, vou morrer. Talvez seja

melhor morrer.

- Vou ti ajudá, homê, vou ti ajudá.

- Me ajudar? Ninguém pode me ajudar, ninguém ...

- Homê, você tá enganado, Tem uma pessoa na Terra

que pode ti ajudá -

Quem?

- O Manué.

- Manoel? ... Quem é Manoel?

- Mora no Méier, mas já morô na Praça da Bandeira. Tem

um centro, mas não é daqui. Veio de longe. Eu mi lembro du dia que

ele veio, eu mi lembro.

109

A mulher continuava falando, falando e olhando para o céu,

buscando alguma coisa. Seus olhos refletiam à luz e o brilho tornava o

mistério ainda maior. Nelson não entendia nada, mas continuou curioso e

também esperançoso:

- Se existe esse homem que pode me curar, diminuir o meu

sofrimento, por que não vou procurá-lo?

Desejava ir até ele, sim, mas como, se não tinha sequer o dinheiro

para a condução:

- Minha senhora, onde mora esse homem? Em que rua? Eu

preciso falar com ele, eu preciso ...

- Você vai falá com o Manué, você vai falá. Tenha

paciência, você vai falá com o Manué ainda hoje. Vou lhe

explicá direitinho. Chegando lá, você vai tê que esperá.

Tenha paciência, meu fio, espere o tempo que for. O Manué

anda muito ocupado, conversando com Deus, recebendo a

mensage du céu. Por isso, espere. É preciso saber esperar,

você num vai arrependê, não.

- Quando ele me perguntar quem me mandou lá, o que devo

dizer, minha senhora?

- Diga que foi uma amiga dele, a véia Amélia Baiana.

Nelson ficou arrepiado ao ouvir aquele nome. Uma sensação estranha,

forte, diferente, vibrante, sacudiu o seu corpo. Emoção incontida tomou

conta de seu peito e seus olhos se encheram de lágrimas. Aquela mulher

que ali estava não era uma mulher qualquer nem tampouco aparecera em

sua vida por acaso. Naquele reencontro havia o dedo de alguém e

também uma luz a indicar-lhe o caminho.

- Você tem dinheiro, meu fio?

- Não senhora, eu não tenho.

- Então tome aqui o trocadinho, você vai precisá. Agora

vá, procure o Manué. 110

Nelson foi esperançoso, arrastando o corpo, perna inchada,

ficando roxa. Seu entusiasmo e a certeza de que ia ficar curado era tão

grande, tão grande, que foi embora sem perguntar à Amélia Baiana onde

ela morava. Se ficasse curado, como ia agradecê-la:

- Sou um distraído, um mal-agradecido - falou baixinho.

32

De roupa branca, sentado numa cadeira da mesma cor, Manoel

Jacintho Coelho vai escrevendo, iluminado por uma luz prateada, muito

intensa, numa pequena sala da Tenda Espírita Francisco de Assis. Vai

anotando, com muita atenção, as palavras que lhe são ditadas pelo

Universo:

- E vivem todos como feras, brigando com tudo, por isto e por

aquilo. Demandando por isto e por aquilo. Por negócios ou seja lá por que

for. Vivem num inferno em vida. Desesperados, sem sossego. Em certas

horas e em certos dias nem vivem, vegetam. Abafados e sem ar,

suspirando e lamentando-se. Tudo isso por viverem contra a sua própria

natureza. Trabalhando contra si mesmos. Sempre desfavorecidos em

tudo e sempre incompreendidos. São amigos hoje e serão inimigos

amanhã. Aparentemente estão bem hoje e amanhã estarão mal.

Portanto, todos vão de mal a pior. E por isso veja, como gozavam há

séculos passados e como tudo tem piorado de um século para cá. E no

futuro irá piorar, pois enquanto não chegarem aos seus lugares, o

sofrimento não acabará. E só depois de todos nos seus lugares, é que

em vez de irem para pior, como iam, irão todos para melhor. Todos estão

pela metade do saber. E para concluírem esse saber terão de chegar à

conclusão de que precisam encontrar o natural de si mesmos, para então

abraçar o Criador, pois enquanto não abraçarem o Criador, o sofrimento

aumentará sempre,

111

estarão incompletos de sua natureza. E só abraçando o Criador estarão

completos de tudo com sua natureza, trazendo para si tudo de melhor.

- Como podemos abraçar o Criador?

- Ora, conhecendo o que não conheciam. O que estão

agora conhecendo: a Imunização Racional. Não confunda Imunização

com espiritualização. A espiritualização é apenas urna forma que

encaminha para a Imunização Racional. O vivente já conhecendo a

Imunização, Escrituração que está em vossas mãos, precisa apenas

conhecer e ficar ciente de todo o seu conteúdo, para ficar completo de

tudo de sua natureza. E alcançar as graças do Astral Superior.

E prosseguiu:

- Vale dizer, Manoel. Na espiritualização, o vivente está ainda

incompleto de sua natureza. E por isso, em mais da metade do caminho,

continua incompleto. Completo o vivente somente vai estar com a

Imunização Racional.

Falou e deu provas, dizendo:

- Uma das provas de que o infante que vive em contato com a

natureza vive bem é dada ao próprio vivente pela botânica, que é um ser

admirável por ser comunicativa com os humanos.

E por isso, aí estão na Flora, vegetais com recursos para a cura

disto ou daquilo, dando ao vivente, meio de remediar os seus males até

não poderem. Também nos sais, nos minerais, nos fluidos elétricos e

magnéticos, ou até mesmo na auto-sugestão, o vivente encontra a cura,

quando há razão para ser curado. E tudo isso é possível, porque tudo é

originado das próprias partículas dos viventes e, por isso, tem grande

ação benéfica para o corpo, tanto na cura corno na alimentação, que são

os legumes, os cereais e etc... 112

33

Na Tenda Espírita Francisco de Assis, no Méier, Nelson Nunes de

Almeida comportou-se exatamente como Amélia Baiana havia lhe

orientado. Pediu para falar com Manoel e diante da resposta de que ia

demorar um pouco, sorriu, dizendo:

- Eu sei, eu sei. Mesmo assim vou esperá-la. Não tenho pressa. Fechou

os olhos e lembrou-se de Amélia Baiana, aquela mulher negra, caridosa,

preocupada com o sofrimento dos outros. E também da observação que

ela fizera:

- Seja paciente meu fio, espere o tempo que fô. O Manué anda

muito ocupado, conversando com Deus, recebendo mensage do

céu.

Amélia Baiana sabia das coisas e não havia aparecido em sua

vida por acaso. Surgiu para indicá-lo com o dedo da sabedoria, o

caminho da salvação, da luz e da verdade.

Perna inchada, Nelson não conseguia calçar sapatos e caminhava

com enorme dificuldade. A cada passo, gemia, sentindo dores terríveis.

Julgava-se sozinho, abandonado no mundo, jogado fora. Após a doença,

esquecido, passara a viver na fronteira com o lixo, pois nem banho

tomava mais.

- Você vai melhorar, moço. Vai ficar curado. As Entidades do Astral

Superior acabaram de me garantir. O tormento, as dores, as dificuldades,

vão desaparecer. As razões de seu fracasso, da doença e dos problemas

surgidos em sua vida, não vou poder revelar, mas vou restituí-lo, a partir

de hoje, de tudo aquilo que você perdeu.

Manoel Jacintho apareceu na porta muito antes do tempo que se

previa. Era a própria luz da esperança, da misericórdia. Sobre sua cabeça

havia uma coroa de material fosforescente. Nelson sabia que se quisesse

tocá-la não iria conseguir, porque a coroa era transpassável. 113

115 você. 114

Parecia iluminada de néon, tamanha a beleza da luz. Então não se

conteve, caiu de joelhos aos pés de Manoel, suplicando:

- Por favor,. por favor. Me ajuda, me ajuda. Não deixe os

médicos cortar minha perna, não deixe cortar minha perna.

- Tenha calma, moço. Sua perna não vai ser cortada.

Ao fazer tal afirmação, Manoel colocou as mãos sobre a

cabeça de Nelson. O homem continuava ajoelhado e chorava

desesperado. Lembrou-se então do que lhe dissera o RACIONAL

SUPERIOR no Dia da Anunciação: "o sofrimento não é o meu sinal

de cólera, mas o meu sinal de amor". No que pensou assim, sentiu

um forte calor percorrer todo o seu corpo e passar para o corpo do

homem que ali estava, através da mão que apoiara na cabeça dele,

num gesto de solidariedade, de sentimento e de amor por seu

semelhante.

Nelson percebeu o seu corpo esquentando, esquentando. Mas

manteve-se em silêncio, cabeça arriada. O calor foi tão forte e tão

intenso, que suas lágrimas secaram e as dores desapareceram

como um encanto. Observou que o corpo de Manoel, naquele

instante, estava solto no espaço, flutuando, circundado por uma

auréola luminosa.

Era inacreditável tudo aquilo que estava vendo e sentindo. Se

contasse, ninguém ia acreditar. Porém tinha que reconhecer: era

deslumbrante, incrível, extraordinário.

O calor foi diminuindo simultaneamente com a luz e a

situação, poucos minutos depois havia se normalizado. Manoel

estava no chão outra vez, transformado novamente em homem:

- Nelson, vai tomar banho. Você está muito sujo. O processo

de cura foi iniciado, mas você só vai estar totalmente curado dentro

de sete dias. Portanto, neste espaço de tempo, tome todos os

cuidados básicos de higiene. Procure se lavar muito bem,

principalmente a perna ferida. Vou procurar algumas roupas para

Manoel não sabia de onde Nelson havia surgido nem

tampouco quem lhe indicara o caminho da Tenda Espírita Francisco

de Assis. Mas ali estava, dedicando-se àquele homem. Após o banho,

trouxera-lhe as roupas e muito mais: comida e também uma

considerável quantia em dinheiro por determinação superior:

- Pegue todo aquele dinheiro que está guardado para a feitura

do meu Livro e entregue a esse homem, Manoel. Não se preocupe. O

dinheiro para o Livro vai surgir. O importante por enquanto será

concluir a Obra. Vamos, Manoel. Pegue o dinheiro e trate de

presenteá-lo a esse homem.

Manoel tratou de obedecer. Nelson ficou surpreso, espantado.

O que estava acontecendo era simplesmente inacreditável. Chegara

ali um trapo, um molambo, dobrado pela dor, castigado pela vida,

mergulhado na miséria. Duas horas depois, a situação havia se

modificado de forma radical. Não sentia mais dores, estava de banho

tomado, limpo, de roupas novas e alimentado. Podia calçar sapatos e

tudo, pois sua perna começara a desinchar após o recebimento da

energia que emanara do corpo de Manoel. E como se não bastasse

tudo aquilo o homem ali estava lhe dando considerável quantia em

dinheiro, para que pudesse reiniciar a sua vida.

Sentiu-se envergonhado. Em princípio não quis aceitar,

achando que podia estar explorando aquele homem que, sem lhe

conhecer nem tampouco perguntar de onde viera, abrira a porta de

sua casa, estendendo-lhe a mão, disposto a ajudá-lo:

- Não, Manoel. Eu não posso aceitar esse dinheiro todo. Não

tenho como pagar. Estou desempregado, doente, e não sei como vai

ser minha vida daqui para frente.

- Moço, eu tenho ordens para lhe dar esse dinheiro. Trate de

aceitá-lo e procure usá-lo da melhor maneira possível. Vá em frente e

cuide de sua vida e não olhe para trás. Um dia vamos nos encontrar.

Antes de partir, Nelson, satisfeito, comentou:

- Quando aquela senhora cruzou meu caminho e começou a me

fazer perguntas, eu sabia, eu sabia! Ela estava ali para me ajudar. Eu

sabia, eu sabia.

- De que senhora você está falando?

- De dona Amélia Baiana.

Ao ouvir o nome de Amélia Baiana, Manoel estremeceu. Olhou

através da janela e viu o céu aberto. No interior dele, um cavalo branco,

veloz, cavalgando em sua direção.

A voz de mar retomou a palavra mais uma vez:

- Enxugue as lágrimas de todos os olhos e coloque o sorriso no

rosto do homem triste. Dê de beber àquele que tiver sede, de comer

àquele que tiver fome, dê coragem àquele que tiver medo, esperança

àquele que tiver em desespero. Dê consolo aos aflitos e coloque a

verdade das minhas palavras na boca do descrente, do mentiroso, do

falso profeta. Seduza o vivente com o meu canto e faça dele a sua

oração. Ultrapasse os muros, Manoel. E percorra o mundo, espalhando a

minha mensagem e apresentando o meu Livro.

34

Os anos se passariam. Manoel Jacintho Coelho fecharia as portas

da tenda espírita, no Méier, e se mudaria inicialmente, para

Jacarepaguá. Depois para Belford Roxo, na Baixada Fluminense. O Livro

escrito seria colocado em circulação e receberia surpreendente

aceitação.

Concluídos os trabalhos de preparação da natureza, logo após a

mudança de fase, em 1935, foram abertos os caminhos, para a

divulgação em massa dos ensinamentos contidos nos Livros UNIVERSO

EM DESENCANTO. 116

Surgia, a partir daí, uma nova cultura: a CULTURA RACIONAL. Aqueles

que sorviam as lições contidas no Livro, conscientes da importância

daquele trabalho para o destino da humanidade e da necessidade de

uma divulgação sempre crescente da Obra, invadiram as ruas, avenidas

e praças, falando em raciocínio, concórdia, equilíbrio e desenvolvimento.

Diziam:

"Quem deseja ver a Luz dos seres do nosso mundo de origem e

desvendar todos os seus mistérios? A Cultura Racional possibilita isso,

tirando-nos de um mundo de sofrimentos, de um mundo de deformação."

E ainda:

"O corpo fluídico (energia) dá origem a outros corpos (micróbios).

Estes originam outros, que são seres humanos e todos os outros que têm

vida. Esse corpo fluídico - que não se vê - é apanhado pela Imunização

Racional, e é levado a seu mundo de origem. No Fluido Racional - puro,

limpo e perfeito - reside o verdadeiro bem da humanidade. Ele tem sido a

razão das muitas curas."

Falavam em linguagem nova, uma linguagem de evolução, uma

linguagem de desencanto:

"Torna-se necessário o desencanto, para que tenhamos a chance

de voltar a apenas uma coisa: nossa origem na Planície Racional.

Desencantados, não seremos mais mortais, pois estaremos salvos e

absolvidos da morte. Saibam todos que a Cultura Racional é o único

caminho capaz de esclarecer, orientar e imunizar a humanidade, para

que ela retome às suas origens e alcance a eternidade. E lembrem-se: a

Imunização Racional já foi anunciada há séculos por São João e

Nostradamus: "Depois que o mundo superar as hecatombes pelas

quais terá que passar, virá, então, a redenção universal" ... "

117

Na Alemanha, Abdruschin, na célebre Mensagem do Graal

(lm Lichte Der Wanreit), recebida de 1924 até 1937, iria fazer

importantes revelações:

"Enquanto o Filho de Deus nasceu diretamente para a sua

missão terrestre, o percurso do Filho do Homem antes de sua

missão, teve que passar por um círculo muito maior, antes que

pudesse entrar no início de sua missão, propriamente. Como

condição para poder cumprir a sua missão, ainda mais terrenal

comparada com a do Filho de Deus, vindo das alturas máximas,

teve que percorrer as profundezas mais baixas. Não apenas do

além, mas também terrenalmente, a fim de poder "vivenciar" de perto

todas as dores e todos os sofrimentos dos seres humanos. Somente

por essa maneira ficou em condições de, quando chegar a sua hora,

interferir nas falhas de modo eficiente e criar alterações auxiliando."

E acrescentou:

"Por esse motivo não podia ficar à margem do vivenciar da

humanidade, antes teve que se encontrar em meio disso tudo por

próprio experimentar vivencial, inclusive das coisas amargas e

sofrendo com isso. Novamente, só por causa das criaturas humanas

teve que realizar-se, portanto esta sua aprendizagem. Mas,

precisamente isto por ficar incompreensível ao espírito humano em

sua estreiteza, tal condição superior, e sendo capaz de formar um

juízo segundo as aparências exteriores, procurar-se-á fazer-lhe

censuras a fim de lhe dificultar a missão, assim como Cristo naquele

tempo."

Àquela época, indagou-se de Abdruschin se o Filho do

Homem já se encontrava na Terra, ou se ainda iria nascer. Isto

como indicação do caminho certo para todos aqueles que tinham

assimilado a sua palavra com convicção. Ele, então, respondeu:

118

"O futuro próximo dará a resposta por si, mesmo. Só haverá um

único Mestre Universal. O Filho do Homem também não precisa

nascer, pois j$ se encontra entre os homens, o que aliás muitos

profetas religiosos intuitivamente já o sentiram."

Referia-se também a Pietro Ubaldi, o escritor italiano.

Abdruschin iria mais além no seu esclarecimento:

"Entre todos os falsos profetas e guias, restará o Filho do

Homem, nesses tempos penosos, tempos esses que estão muito mais

próximos do que esses mesmos homens, fantasiosos e pessimistas,

imaginam e nos quais ele, o Filho do Homem, será o único e

verdadeiro auxiliar para as dificuldades espirituais e terrenas. Por isso,

ele não poderia ser criança nem ainda nascer. Seria assim demasiado

tarde para advir um auxílio ainda em tempo."

"O Filho do Homem - revelou Abdruschin - espera

tranqüilamente a época do cumprimento de sua missão visto que hoje

em dia muitas classes zombariam dele e o odiariam não menos do

que outrora ao Filho de Deus."

E indagou, respondendo a seguir:

"Por que deveria anunciar-se prematuramente, uma vez que a

vontade de Deus aplainara os caminhos para ele? Não necessita

tomar parte na corrida cujo objetivo é unicamente dele. Ninguém

alcançará esse objetivo, exceto ele. Quem, de todos os homens que

procuram seriamente, pode imaginar que esse Filho do Homem se

coloque em linha com todos, ou mesmo com apenas um daqueles que

hoje se denominam de guias? Essa suposição não lhe parece

ridícula? O Filho do Homem não procura angariar benevolência dos

homens, tampouco discutir com as igrejas. Isso tudo não é necessário

para ele. A vontade de Deus impele desta vez a humanidade, como

que chicoteada ao encontro dele."

Depois, incluiu: 119

"Seu tranqüilo aguardar é o que de mais terrível poderia acontecer

à humanidade. Ela entretanto, não merece outra coisa. A humanidade

receberá o que ela mesma preparou para si. Por isso, espere você

também, com calma, até que se cumpra a hora."

35

Em Belford Roxo, Manoel Jacintho Coelho mandou construir,

seguindo orientação superior, um palácio de arquitetura neoclássica, com

amplo átrio, sustentado por colunas e pórticos, relembrando a nobreza da

Grécia antiga. Aquele casarão singular, destacado na paisagem, passaria

a ser o templo do RACIONAL SUPERIOR na Terra e iria atrair a atenção

de milhares de pessoas.

Mas logo que Manoel começou a construí-lo, recebeu uma visita

inesperada, a de um pedreiro que desejava trabalhar:

- Tem um homem aí Seu Manoel, querendo trabalhar. Disse que

era pedreiro, profissional de muita experiência.

Ao receber a informação, Manoel mandou dispensá-lo, alegando

não haver vagas:

- Mande esse homem voltar outro dia. Por enquanto não há vaga.

Bem que gostaria, mas não posso dar trabalho a todo mundo. Preciso

terminar a obra e quem trabalha quer ganhar, porque precisa comer,

morar e se vestir. Avise a ele para voltar outro dia, avise ...

Mas o homem insistiu. Queria trabalhar e pronto. Mesmo tendo

sido informado pelo encarregado da obra da falta de vaga, ele

permaneceu ali, irredutível. Disse que desejava falar com Seu Manoel e

que iria aguardá-lo:

- Eu não tenho pressa, não tenho pressa. Vou falar com Seu

Manoel. Preciso falar com ele, preciso trabalhar, moço. 120

- Mas o senhor não parece que está precisando tanto assim de

trabalho. Pedreiro de terno tem que estar muito bem de vida - disse o

encarregado da construção.

O homem sorriu diante da observação, explicando:

- Eu só ando bem vestido, porque sou trabalhador. Ou será que

um pedreiro, pelo fato de ser apenas um pedreiro, não pode vestir um

terno?

- Claro que pode. Mas do jeito que a vida está, pedreiro só veste

terno no dia do casamento da filha - falou e foi embora, atendendo o

chamado de um colega de trabalho.

O homem permaneceu ali, acompanhando o trabalho, aguardando

com paciência, o momento para falar com Seu Manoel. Havia decidido: ia

esperá-lo o tempo que fosse necessário, mas iria falar com ele. Queria

trabalhar, precisava trabalhar. Não arredaria pé dali sem que tivesse

realizado o seu objetivo, o seu desejo. À tarde, inteirado da permanência

do homem ainda na obra, Manoel mandou chamá-lo:

- Se um homem permanece tanto tempo pedindo trabalho, é

porque ele deseja realmente trabalhar. Quero falar com ele, talvez possa

dar um jeito.

- Vamos lá, moço. O Seu Manoel vai falar com o senhor. Vai lhe

receber, acabei de falar com ele - disse o encarregado.

O homem apressou-se. Diante dele, Manoel Jacintho Coelho ficou

surpreso e abriu os braços para abraçá-lo comovido e satisfeito.

O homem que ali estava, desejando de forma irredutível, trabalho

na obra, era seu velho conhecido. Tratava-se do pedreiro Nelson Nunes

de Almeida, aquele cuja perna havia curado e a quem havia entregue

todo o dinheiro da feitura da edição inicial do Livro.

- Por onde você tem andado, Nelson? Como você está

bem ... 121

- Estou sim, graças a você, ao Verdadeiro DEUS e também

Amélia Baiana. Aliás, foi ela quem me deu seu endereço.

- Como? .. Eu não vejo a Amélia Baiana desde meu tempo de

menino, quando morava lá na Cidade Nova, na Rua Barão do Iguatemi. ..

- Engraçado, Manoel, ela me disse que estava sempre com você

...

Manoel sentiu um vento frio soprar-lhe as costas como se tivesse

anunciando a presença de alguém ali. Talvez fosse ela, a negra Amélia

Baiana de todos os favores, de todas as virtudes. A mãe dos desvalidos,

dos aflitos, dos desesperados, do amor e do perdão.

- Mas, Manoel, andei a cidade toda à sua procura. Logo após ter

saído de sua casa naquele dia, minha vida começou a se modificar. Além

de ficar curado da ferida na perna, ganhei ânimo, coragem e disposição

para enfrentar as dificuldades da vida. Durante sete dias, permaneci em

repouso num hotelzinho no Catete. Depois, tratei de recuperar todas as

minhas ferramentas de trabalho e fui à lufa, trabalhando, trabalhando.

Assim que equilibrei minha vida, fui procurá-lo. Queria pagar o dinheiro

que o senhor havia me emprestado e também agradecer tudo aquilo que

o senhor fez por mim. Mas quando cheguei ao Méier, não encontrei mais

o senhor. Através dos vizinhos, fiquei sabendo de sua mudança para

Jacarepaguá. Ontem, porém, passava pela Praça da Bandeira quando

avistei Amélia Baiana. Ah! Que felicidade Seu Manoel. Corri ao seu

encontro e fui abraçá-la, beijá-la. A coisa que mais desejei na vida foi

revê-Ia. E à medida que eu ia vencendo na vida, a saudade que eu tinha

dela foi aumentando. O senhor não pode imaginar a minha alegria ao vê-

Ia ali caminhando. Quis levá-la comigo, cuidar dela. Mas ela disse que

não, alegando que tinha muitos filhos para cuidar. Quis saber se ela

estava precisando de dinheiro e Amélia respondeu que tinha o suficiente

para viver.

122

Quis saber então, onde ela estava morando, pensando em visitá-la

periodicamente e ela me falou que estava morando com o senhor, aqui

em Belford Roxo. Quando ela falou seu nome, minha alegria foi maior

.. ainda, Seu Manoel. Como estou feliz de poder estar a seu lado, poder

abraçá-lo.

- Mas você Nelson, você está trabalhando?

- Não, Seu Manoel, hoje sou um homem rico, não preciso

mais trabalhar. Ou melhor, preciso trabalhar na construção da casa da

Cultura Racional. Não por necessidade, mas por agradecimento. Quero

também devolver o dinheiro que o senhor me emprestou e oferecer uma

substancial quantia em dinheiro para ajudá-lo na feitura dos seus Livros,

essa Obra gigantesca e importante.

- Mas como você conseguiu tanto dinheiro, Nelson?

- Ah! Através do trabalho que nunca mais me faltou e da

dedicação. Acabei construindo a minha própria firma, uma pequenina

empreiteira, de sociedade com um advogado. A coisa cresceu, Seu

Manoel, deu lucros. E continua dando. Agora, não estou aqui como

patrão, como dono de empresa. Eu serei para o senhor, para a Cultura

Racional, para Amélia Baiana, o mesmo pedreiro que um dia você deu

ajuda. Eu quero trabalhar no palácio da Cultura Racional, quero ajudar a

construí-lo, não só com o dinheiro que tenho, mas empunhando a colher

de pedreiro, virando a massa, dobrando o vergalhão ...

Sonorizando a voz do bom pedreiro, o som da harpa dourada.

36

Idolatrado ator que havia emprestado todo o seu talento à arte de

representar, levando emoção, alegria e sorrisos às platéias de todo o

mundo, também acompanharia o passo evolucionário da natureza e

assumiria, de público, a sua identidade de Racional. 123

Seu nome: Procópio Ferreira.

Assim que começou a leitura do Livro ditado pelo RACIONAL

SUPERIOR, Procópio Ferreira não hesitou: tratou de doar sua imensa

biblioteca, afirmando:

- Já não preciso de tantos livros. Agora tenho apenas um:

UNIVERSO EM DESENCANTO. Nele está contida a verdade que

procurei a vida inteira.

Após ter residido em luxuosas mansões no Rio e São Paulo, com

mordomos de libré, possuir automóveis do último tipo, criados e

motoristas, Procópio decidiu modificar sua vida por completo. Tornou-se

completamente indiferente aos bens materiais, indo morar numa casa

simples, numa rua sem calçamento, em Nova Iguaçu.

Quando iniciou a leitura do Livro UNIVERSO EM DESENCANTO,

Procópio estava muito doente. Não andava, estava quase paralítico.

Amigos colegas de trabalho já lhe consideravam um moribundo.

Encontrava-se totalmente perdido, sobretudo no terreno espiritual. Não

acreditava em nada, absolutamente em nada.

Foi o farmacêutico que lhe aplicava injeções que lhe mencionou o

Livro UNIVERSO EM DESENCANTO, afirmando que "esse Livro Seu

Procópio, vai resolver seu caso".

E resolveu.

Dias após o início da leitura, Procópio estava completamente

curado. Através do Fluido Racional, os males de seu corpo, produzidos

pelo elétrico e magnético, foram eliminados.

Procópio iria desaparecer muitos anos depois, após ter cumprido

seu ciclo terreno. Mas, ainda hoje, muitos estudantes da Cultura

Racional, estão acostumados a vê-lo em suas casas, orientando:

- Existem três mundos diferentes, todos eles habitados. O terceiro

é o dos seres materializados e dos invisíveis que vivem entre o sol e a

Terra. O segundo é dos seres invisíveis do Astral Superior,

124

acima do sol. E o primeiro pertence aos seres Racionais puros, limpos e

perfeitos.

Os que vivem entre a Terra e o sol, são os habitantes do curso

primário e por isso, vivem de experiência, na incerteza de tudo, duvidando

de tudo, desconfiando de tudo, sempre com medo. Os humanos são

seres deformados. Os espíritos, não se deformaram totalmente, estão

entre o sol e a Terra, acima de vocês, habitantes do Astral Inferior. O

curso secundário é formado pelos habitantes do Astral Superior,

localizado acima do sol. Também são deformados, mas estão numa

categoria acima. O curso superior, finalmente, é do MUNDO RACIONAL,

o que deu origem ao nosso mundo, e ao qual se pode voltar pelo

conhecimento. Esse conhecimento é atingido pela leitura dos 21 volumes

do UNIVERSO EM DESENCANTO. Encontrando o MUNDO RACIONAL

vocês terão feito a maior descoberta de todos os tempos. Hoje, pelo

menos, vocês já sabem como entrar em contato com seus Habitantes,

nossos irmãos. Depois da Imunização, sempre pelo conhecimento,

poderão vê-los e dialogar com eles, assim estão entrando na Fase

Racional, à qual alcancei.

Do simples entendimento, a Cultura Racional, passou a alcançar,

após o seu surgimento, resultados extraordinários, O Brasil fôra

historicamente preparado de acordo com o próprio Manoel Jacintho

Coelho, para ser o seu berço:

- Essa nova cultura é a cultura que une, não divide. É a cultura que

soma, não subtrai. A cultura que harmoniza, não cria discórdia.

Os Livros da Obra UNIVERSO EM DESENCANTO ganharam o

mundo. Começaram a ser lidos nas Antilhas, Austrália, Kenya, Botsvana,

Beira, Canadá, China, Dinamarca, Filipinas, França, Grécia, Ghana,

Nigéria, Japão, Israel, Estados Unidos, Argentina, Bolívia, Chile,

Colômbia, Equador, Cuba, República Dominicana, Espanha, EI Salvador,

Guatemala, Holanda, México, Panamá, Paraguai, Porto Rico, Peru e

Uruguai. 125

127

Seriam traduzidos para catorze idiomas.

Manoel iria receber, por seu trabalho em prol da humanidade, uma

infinidade de títulos e condecorações. As comendas e homenagens se

multiplicariam. Em vários Estados brasileiros seriam instituídos os "Dias

da Cultura Racional". E diante da violência que começou a crescer em

todo o mundo, ele sentenciaria:

- A solução da violência está no desenvolvimento do raciocínio; a

solução do desrespeito está no desenvolvimento do raciocínio.

Aos 85 anos, lúcido, Manoel Jacintho Coelho não quer que lhe

façamos culto, apesar de tudo. Mas apenas que tenhamos a sua cultura,

nem tampouco executa ações sobre o livre-arbítrio daqueles que

decidiram por segui-lo. Libertário por natureza, deseja que todos

continuem o exercício de suas liberdades.

37

Apesar da suntuosidade e beleza de seu estilo arquitetônico, o

Palácio da Cultura Racional, na Rua Áurea, 20, em Belford Roxo, acabou

por se tornar pequeno e modesto para tanta gente que vinha de longe

beber o vinho do ensinamento, no cálice da Cultura Racional.

Tornara-se portanto, imprestável para aquilo que se propunha.

Manoel, então, não hesitou em abandoná-lo, apesar de sua

magnificência e pompa.

Sem perda de tempo, tratou de dar início à construção do Retiro

Racional, num vale verde de Nova Iguaçu, no final da Estrada de

Adrianópolis, na localidade conhecida como Vila de Cava.

No dia em que decidiu inaugurá-la ouviu a voz do céu, como

também a voz de muitas águas e ainda a voz de um forte trovão. Logo

depois, o som da harpa dourada. 126

Neste instante, uma imensa águia cruzou o céu, levando um

enorme Livro no bico. O sol tornou-se mais quente e o dia mais claro. O

céu novamente se abriu, dando passagem ao imenso cavalo branco, e

permitindo sua cavalgada pelo Universo. Sobre uma imensa nuvem

também branca, estava o trono cintilante, ocupado~or um "Homem" que

Manoel já conhecia. De longos cabelos brancos e túnica da mesma cor, o

RACIONAL SUPERIOR começou a falar:

- Bem-vindo à minha casa, Manoel. Nela você vai encontrar o rio

da água da vida. No dia da Redenção, a água deste rio vai brilhar como o

cristal. Continue trabalhando, pois acompanharei teus passos. O dia

chegará em que os injustos não mais cometerão injustiças, os perversos

não mais praticarão covardias nem os impuros estarão mergulhados nas

impurezas. Ah! Manoel, eles não gozar~o das sombras das minhas

árvores nem tampouco ultrapassarão os umbrais do pórtico da salvação.

Portanto não entrarão na minha casa nem gozarão das delícias de meu

Reino.

O cavalo branco que cavalgava no céu, aproximou-se de Manoel e

ele tratou de montá-lo. Pensava que estava sozinho, porém, ao olhar

para trás, avistou muitas pessoas.

Lá estavam acenando para ele, com lenços brancos: Meia-noite,

Antônio ferreiro, Adelaide, Nelson pedreiro, Marinho, Dino, Tia Ciata,

Cartola, Nelson Cavaquinho, Ciro Monteiro, Jacob do Bandolim,

Pixinguinha, Zé Moleque, Gabiroba, Brancura, Aninha, Getúlio Vargas

e ela: a negra Amélia Baiana, num lindo vestido branco.

Vindo de Alfenas, entusiasmado com tudo que ouvira, o pintor

mineiro Newton Pierine assistiu emocionado ao espetáculo. Mais tarde,

usando seus pincéis mágicos, pôde transportá-lo para uma imensa tela

de veludo azul.

130

O BENFEITOR E SEUS TÍTULOS

anoel Jacintho Coelho, nascido em 30 de dezembro de 1903, no

antigo Distrito Federal, à Rua Barão de Iguatemi, no Matoso, Rio de

Janeiro. Expoente máximo da CULTURA RACIONAL, a Cultura do 3°

Milênio, da Fase Racional. Iniciou a Obra inédita UNIVERSO EM

DESENCANTO em 04 de outubro de 1935.

A CULTURA RACIONAL dos Livros UNIVERSO EM

DESENCANTO conta com mais de 1000 volumes, traduzidos em

vários idiomas.

Considerado um benfeitor da humanidade em todo o mundo,

por sua Obra, cujos benefícios alcançam os campos naturais,

artificiais e espirituais, Manoel Jacintho Coelho recebeu muitos títulos

e homenagens. Alguns deles encontram-se aqui:

Título de Cidadão Iguaçuano, conferido pela Câmara Municipal

de Nova Iguaçu (RJ).

Comenda Hipólito José da Costa, Patriarca da Imprensa

Brasileira, conferida pela Associação Interamericana de Imprensa.

Título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, concedido

pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, conforme

Resolução n° 494, de 07 de dezembro de 1982.

131

M

4.Medalha de Honra da Inconfidência, recebida em 21 de abril de

1986 em São João Dei-Rei (MG), na presença do Sr. Presidente da

República, Dr. José Sarney.

Placa de prata do Or. Newton Cardoso, Governador do Estado

de Minas Gerais, em agradecimento e reconhecimento dos benefícios

prestados pela Cultura Racional ao Estado mineiro.

Praça "Bosque da Paz", em sua homenagem, em Belo

Horizonte, na entrada do Bairro Lagoinha, com inauguração da Praça

com seu busfo, homenagem prestada pelo Prefeito Municipal de Belo

Horizonte, juntamente com o Governador do Estado de Minas Gerais, em

20 de setembro de 1987.

Título de Cidadão da Cidade de Salvador (SA), concedido

através da Resolução n° 739/88, de 09 de março de 1988, publicada no

Diário Oficial do Município de 24 e 25 de abril de 1988.

Título de Cidadão Friburguense, da Câmara Municipal de Nova

Friburgo (RJ), conforme Resolução Legislativa n° 857, de 10 de agosto

de 1990.

132

Retiro Racional - Nova Iguaçu-RJ

O Jornalista Mauritônio Meira, diretor da Revista Nacional, costuma afirmar: "Jorge Elias foi um dos maiores repórteres de polícia." O poeta

O AUTOR E A OBRA

maranhense Lago Surnett garante:" "Ele pertenceu à melhor escola de profissionais, para os quais uma vírgula pode ser informação." O jornalista Raul Azêdo, ao convocá-lo para trabalhar em Última Hora, em 1971, não esconderia o entusiasmo, confidenciando: "Jorge Elias é um craque com escalação em qualquer seleção, chuta com as duas, apura e escreve muito bem” O escritor José Louzeiro preferiu transformá-lo em personagem de seus livros.

Na verdade, Jorge Elias acabou se tomando, através de grandes reportagens, um dos ases da crônica policial carioca. E também; sem favor nenhum, um dos melhores profissionais da reportagem especializada. Dono de um texto leve, solto, envolvente, de palavras fáceis e bem colocadas, impôs o seu estilo e pontilhou sua carreira com retumbantes sucessos.

Quem não se lembra da série de reportagens intituladas "Ipanema, Território Livre do Tóxico" e "Copacabana, a Servidão do Sexo"? Cobriram dezenas de páginas de jornais e acabaram transcritas para os anais do Legislativo. Ou ainda do "MÃO BRANCA", saltando do noticiário policial para a glória e as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. "Ao transformá-la no mito policial do século, não dei apenas asas ao meu poder de criação. Fui muito mais além, provando, de forma derradeira, que todo repórter tem nas mãos o sublime e terrível poder de informar" - diria Jorge Elias, meses depois num programa de televisão.

Descoberto por Tenório Cavalcanti, quando trabalhava como contínuo numa fábrica de brinquedos, Jorge Elias foi levado para a redação da Luta Democrática, onde percorreu os primeiros caminhos da reportagem. Dali convidado por Francisco Martins Pinto, ingressou no Correio da Manhã, na época o maior jornal do País. Aliás, foi neste jornal que Jorge Elias começou a dar o braço ao sucesso e à fama. Destemido e vibrante, ostentaria a glória de ter sido o único jornalista a colocar um general na cadeia, no primeiro governo da Revolução. Do Correio da Manhã, iria para o Diário de Notícias e. de lá para a Última Hora, onde acabaria permanecendo por mais de 9 anos.

Wilton Franco, que acompanhava suas reportagens, acabou por levá-lo para a televisão. Inicialmente para o programa Aqui e Agora, na extinta TV Tupi. E posteriormente para o Povo na TV, na TV5. Diante das câmeras, Jorge Elias mostraria, mais uma vez, seu talento, criando e impondo seu próprio estilo e imagem, abraçando, como sempre, o sucesso.

Com esse livro, Jorge Elias assinalou. seu ingresso na literatura. De forma modesta, despretensiosa e simples, como ele próprio. Mas não tenha dúvida: por tudo que o livro conta, pelo que se propõe, pela beleza do texto e também pela emoção que passa, o CAVALEIRO DA CONCÓRDIA nasceu predestinado.

Portanto, acredite. Você tem em mãos um livro que vai provocar reações.Lenin Novaes - Jornalista

Você Pode Obter Informações de como adquiri este Livro Bem Como os Livros da Obra Universo em Desencanto.

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