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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE BACHARELADO EM DESIGN
GUSTAVO AUGUSTO LIMA DE SOUSA
CÓDIGO E ARTEFATO:
UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESIGN
Natal – RN
2017
GUSTAVO AUGUSTO LIMA DE SOUSA
CÓDIGO E ARTEFATO:
UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESIGN
Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado
em Design, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requerimento parcial para
a obtenção do título de Bacharel em Design.
Orientador: Profª. Drª. Helena Rugai Bastos
Natal – RN
2017
GUSTAVO AUGUSTO LIMA DE SOUSA
FOLHA DE APROVAÇÃO
CÓDIGO E ARTEFATO: UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO
DESIGN
Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado
em Design, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requerimento parcial para
a obtenção do título de Bacharel em Design.
Orientador: Profª. Drª. Helena Rugai Bastos
Aprovado em: ____ / ____ / ____
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Helena Rugai Bastos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Prof. Dr. Olavo Fontes Magalhães Bessa
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Profª. Drª. Lilian Carla Muneiro
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Sandro e Graça, que por todo o período de escrita desta monografia
estiveram comigo, oferecendo conselhos, apoio e carinho.
A minha grande orientadora, Prof.ª Dr.ª Helena Rugai, pela disposição em ter aceitado
orientar este trabalho com tanto cuidado e atenção, por todas as conversas que tivemos nas
orientações, em que compartilhou comigo sua sabedoria, seu humor, suas reflexões e várias
referências importantes para esta monografia.
A Prof.ª Dr.ª Elizabeth Romani, por seu apoio, pelas pequenas dicas de escrita e
indicações de leitura.
Aos professores doutores, Olavo Bessa e Lilian Muneiro, por todas as valiosas
observações e sugestões que contribuíram para enriquecer este trabalho.
Aos meus amigos da graduação, Lucas Oliveira e Andressa Kaynara, pelo suporte e a
disposição de parte do seu tempo discutindo comigo assuntos tratados nesta monografia,
oferecendo um valioso feedback.
Onde quer que haja língua, linguagem, comunicação, haverá signos reivindicando
entendimento. Isso quer dizer que haverá problemas semióticos à espera de análise.
(MACHADO, 2003, p. 24)
A pesquisa semiológica, pelo menos como a entendo, não visa a definir um sistema de
comunicação baseado em estruturas imutáveis do Espírito Humano (como quer certo
estruturalismo ontológico), e sim tentar continuamente dar formas cada vez mais abrangente
e operativas às modalidades pelas quais os homens se comunicam no curso da história e
através de modelos sócio-culturais diferentes.
(ECO, 1991, p. 16)
RESUMO
Esta monografia parte do pressuposto de que o Design é uma linguagem e, como tal, manifesta-
se por meio de mensagens significativas, construídas por um designer dotado de certos saberes,
inserido num determinado contexto e circunstância, e que busca ser compreendido pelo seu
enunciatário, também submetido às influências de um contexto e circunstância. A partir dessa
premissa, o presente trabalho objetiva investigar como os artefatos, compreendidos como
mensagens, são formados pela linguagem do Design e, logo, como seus significados são
construídos. Ao fim desse estudo, propôs-se a esquematização dessa construção, por meio de
um modelo elementar de produção sígnica da atividade do designer. Para atingir os objetivos
citados, a Semiótica, área por excelência de estudo das diversas formas de manifestação de
linguagens, foi eleita como a principal coadjutora nessa investigação reflexiva sobre o fazer do
designer. Da grande extensão do campo semiótico, este estudo concentra-se nos trabalhos dos
semioticistas Roland Barthes (2009; 2012; 2013) e Umberto Eco (1981; 2004; 2014; 2016) e
suas inquirições acerca da construção do sentido de objetos culturais. Assim, um dos principais
recursos metodológicos desta monografia foi a revisão bibliográfica das obras pertinentes ao
assunto dos autores citados, com a subsequente enumeração de uma série de conceitos
semióticos operacionais, tal como são compreendidos dentro da Semiótica, para sua posterior
verificação de possibilidades e limitações de aplicação ao campo do Design. Em seguida, a
eficácia do uso desses conceitos em Design foi testada por meio da análise de três artefatos
provenientes de sistemas de objetos diferentes, a saber: The Well-Tempered Chair (1986), do
designer Ron Arad (1951 –); o automóvel Fiat Toro® 2017, produzido pelo Grupo Fiat; e o
frasco de perfume Araucária, produzido pelo grupo L’Occitane au Brésil®. Após as análises,
confirmaram-se o poder comunicativo dos artefatos, a possibilidade do desenvolvimento de
uma retórica própria da linguagem do Design e a importância do manejo de códigos culturais,
inseparáveis de determinados contextos e circunstâncias, na construção e interpretação das
mensagens. Por fim, com base na discussão dos pressupostos teóricos e nos resultados das
análises realizadas, um modelo de produção sígnica foi proposto na tentativa de descrever o
processo de estruturação das mensagens no Design. O modelo ressalta a importância dos
códigos culturais, a consideração dos contextos e circunstâncias, a interdisciplinaridade, as
limitações e as opções criativas do designer, bem como o trabalho de agentes externos ao
processo de concepção propriamente dito, como a publicidade e o marketing. Com a proposição
desse modelo, a monografia busca servir de contribuição para uma reflexão sobre a atividade
dos designers, de um ponto de vista dos seus aspectos comunicacionais sintático-semânticos.
PALAVRAS-CHAVE: Design, linguagem, Semiótica, comunicação, produção sígnica, código
e mensagem.
ABSTRACT
This monograph is based on the assumption that Design is a language, and as such, it manifests
itself as meaningful messages, built by a designer endowed with certain knowledge, inserted in
a particular context and circumstance, who seeks to be understood by his enunciatee, that is
submitted to influences of a context and circumstance as well. From this premise, the present
work aims to investigate how the artifacts, understood as messages, are elaborated by Design
language and, hence, how their meanings are built. At the end of this study, a schematization
of that construction was proposed, by the means of an elementary model of the designer’s sign
production activity. To accomplish the mentioned objectives, Semiotics, the classical field on
the study of the several forms of manifestations of languages, was elected as the main
contributor in this reflexive inquiry on the designer’s activity. From the large extension of the
semiotic field, this research focuses on the works of the semioticians Roland Barthes (2009;
2012; 2013) and Umberto Eco (1981; 2004; 2014; 2016) and their inquiries about the
construction of meaning in cultural objects. Therefore, one of the main methodological
resources used in this monograph was a literature review of pertinent works from the cited
authors to the matter in question, along with subsequent enumeration of a series of operational
semiotic concepts, as they are comprehended by the Semiotics field, so that the possibilities and
limitations of their applications to the field of Design can be verified. Consequently, the
efficiency of the use of those concepts in Design was tested by using an analysis of three
artifacts from different systems of objects, namely: The Well-Tempered Chair (1986), by the
designer Ron Arad (1951 –); the automobile Fiat Toro® 2017, produced by Fiat Group; and the
bottle of perfume Araucária, produced by the L’Occitane au Brésil® group. After the analyses,
it was confirmed the communicative power of the artifacts, the possibility of the development
of a specific rhetoric language in the area of Design, as well as the importance of the
management of cultural codes, inseparable from certain contexts and circumstances, in the
construction and interpretation of messages. Finally, based on the discussion of the theoretical
assumptions and the analyses’ results, a model of sign production was proposed in order to
describe the process of structuring messages in Design. The model highlights the relevance of
cultural codes, the consideration of contexts and circumstances, the interdisciplinarity, the
limitations and the designer’s creative options, as well as the influences of external agents to
the process of conception itself, such as advertising and marketing. With the proposal of that
model, this monograph aims to offer a contribution for a reflection about the activity of
designers, from the point of view of its sintatic-semantic communicational aspects.
KEYWORDS: Design, language, Semiotics, communication, sign production, code and
message.
LISTA DE DIAGRAMAS
Diagrama 01: Triângulo de Ogden-Richards e as diferentes nomenclaturas dada a suas partes.
Adaptado de Eco (1981, p.25). ................................................................................................. 49
Diagrama 02: Fronteiras entre diferentes nomes para cores dadas pelo português (esq.) e pelo
galês (dir.). Adaptado de Hjelmslev (2013, p. 58). .................................................................. 53
Diagrama 03: Esquematização do signo hjelmsleviano. Adaptado de Eco (2014, p. 42). ...... 54
Diagrama 04: Esquematização do exemplo do sistema de signos da barbearia...................... 58
Diagrama 05: Conotação. ........................................................................................................ 61
Diagrama 06: Esquematização da fórmula barthesiana ERC para conotação. ....................... 62
Diagrama 07: Metalinguagem. ................................................................................................ 65
Diagrama 08: Esquematização da fórmula barthesiana ERC para metalinguagem. ............... 66
Diagrama 09: Esquematização do semema. Adaptado de Eco (1981, p. 166). ....................... 72
Diagrama 10: Esquematização do exemplo do sol aplicado ao triângulo de Ogden-Richards
(1946)........................................................................................................................................ 86
LISTA DE FIGURAS
Fig 1. Exemplos da implicação do significado dos materiais: Side Chair (1897) do designer
escocês Charles Mackintosh (1868 – 1928) (esq.) e a cadeira de jardim (1825) (dir.) do
designer Karl Schinkel.............................................................................................................. 59
Fig 2 Cellini, Salineira, (1543), 26 cm x 33.5 cm. Kunthistorisches Museum, Vienna ........... 75
Fig 3 The Well-Tempered Chair, 1986, Ron Arad................................................................. 123
Fig 4 Fiat Toro 2017, Fiat Chrysler Automobiles. ................................................................. 124
Fig 5 Colônia Araucária, L’Occitane au Brésil ...................................................................... 125
Fig 6: Ron Arad, The Well-Tempered Chair, 1986, 80 x 100 x 80 cm.................................. 129
Fig 7 Conjunto de vistas do Fiat Toro 2017 na cor “preto shadow”. ..................................... 135
Fig 8 Vista frontal e posterior do frasco de L’Occitane au Brésil Araucária. ........................ 141
Fig 9 Detalhe das folhas de araucária. .................................................................................... 146
LISTA DE QUADROS
Quadro 01 Modelo elementar de produção sígnica proposto para a esquematização da
construção de mensagens no campo do Design...................................................................... 152
LISTA DE SÍMBOLOS
| … | A palavra enquanto significante.
|| ... || Objeto designado pela palavra enquanto significante.
« ... » A palavra, ou objeto designado pela palavra, enquanto o significado que veicula.
... / ... Relação de oposição.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
SEÇÃO I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS .......................................................................... 19
1. DESIGN E LINGUAGEM ................................................................................................. 20
1.1. Design: linguagem e fenômeno de linguagem ............................................................... 23
1.2. As três dimensões semióticas da linguagem .................................................................. 24
1.2.1. Dimensão sintática, semântica e pragmática dos artefatos ..................................... 27
1.3. Aproximações entre Design e Semiótica ....................................................................... 30
2. CONCEITOS SEMIÓTICOS ELEMENTARES ............................................................ 30
2.1. Semióticas? .................................................................................................................... 30
2.1.1. Semiótica e Semiologia ........................................................................................... 34
2.1.2. O projeto semiológico: fundação e críticas ............................................................. 35
2.1.3. Os limites do modelo estruturalista ......................................................................... 39
2.2. O código ......................................................................................................................... 43
2.3. Sobre a definição de signo ............................................................................................. 47
2.3.1. Os diferentes modelos sígnicos ............................................................................... 48
2.4. Expressão e conteúdo ..................................................................................................... 52
2.4.1. Denotação e conotação ............................................................................................ 60
2.5. Unidade cultural, sentido e contexto .............................................................................. 67
2.6. Sistema de signos ........................................................................................................... 76
2.6.1. Sintagma e paradigma ............................................................................................. 77
2.6.2. Um sistema de objetos............................................................................................. 80
3. INTRODUÇÃO A UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESIGN ........................ 81
3.1. Do signo ao texto em Design ......................................................................................... 81
3.1.2. O significante .......................................................................................................... 88
3.1.3. O significado ........................................................................................................... 95
3.1.4. O artefato como um texto ...................................................................................... 100
3.2. Denotação e Conotação em Design ............................................................................. 102
3.2.1. Funções primeiras e funções segundas.................................................................. 102
3.3. Design: um sistema de sistemas ................................................................................... 113
3.3.1. Sintagma e Paradigma em Design ......................................................................... 114
3.4. Algumas considerações sobre a Seção I ...................................................................... 118
SEÇÃO II: ANÁLISE DE TRÊS ARTEFATOS ............................................................... 120
1. PRELIMINARES ............................................................................................................. 121
1.1. Objetivos e limites da análise ...................................................................................... 121
1.2. Critérios de escolha dos artefatos ................................................................................ 122
1.3. Uma análise em três passos.......................................................................................... 125
2. PRIMEIRO ARTEFATO: THE WELL-TEMPERED CHAIR (1986) ......................... 129
2.1. Identificação dos significantes ..................................................................................... 129
2.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias........................................................... 131
2.3. Tentativa de reconstituição dos códigos ...................................................................... 132
3. SEGUNDO ARTEFATO: FIAT TORO (2017) ............................................................. 134
3.1. Identificação dos significantes ..................................................................................... 134
3.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias........................................................... 136
3.3. Tentativa de reconstituição dos códigos ...................................................................... 138
4. TERCEIRO ARTEFATO: L’OCCITANE AU BRÉSIL ARAUCÁRIA .................... 140
4.1. Identificação dos significantes ..................................................................................... 140
4.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias........................................................... 142
4.3. Tentativa de reconstituição dos códigos ...................................................................... 145
5. SOBRE O ESTUDO DA DIMENSÃO PRAGMÁTICA DOS ARTEFATOS ............ 147
SEÇÃO III: PROPOSTA DE MODELO ELEMENTAR DE PRODUÇÃO SÍGNICA NO
DESIGN ................................................................................................................................. 150
1. SOBRE A CONSTRUÇÃO DE MODELOS TEÓRICOS ........................................... 151
2. O MODELO DE PRODUÇÃO SÍGNICA ..................................................................... 153
2.1. O universo dos códigos externos (u) ............................................................................ 153
2.2. O eixo de seleção (a) .................................................................................................... 155
2.3. As diretrizes sintáticas (b) ............................................................................................ 155
2.4. O sintagma (c) .............................................................................................................. 158
2.5. A atividade da publicidade e do marketing (d) ............................................................ 159
2.6. O processo de interpretação (e).................................................................................... 161
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 164
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 167
15
INTRODUÇÃO
Um dos aspectos mais interessantes da área do Design é a sua capacidade de se
comunicar com as mais diferentes áreas, sejam pertencentes às Ciências Humanas ou Exatas: o
designer deve estar sempre aberto à interdisciplinaridade, cada projeto é a possibilidade de se
aproximar de um saber novo, seja formalizado por um campo do conhecimento ou mesmo
aquele proveniente de um estudo empírico das mais diversas situações de projeto. Como um
bom construtor, o designer reflete sobre procedimentos de construção, isto é, planeja, projeta a
partir de abordagens e de diretrizes metodológicas. Ele tenta aproximar-se o máximo de
diferentes materiais a fim de compreender como usá-los, como transformá-los nas formas
desejadas: é uma procura do máximo aproveitamento de suas propriedades. Ele busca
compreender o funcionamento de máquinas, tanto aquelas que vai operar quanto as que
pretende construir e aperfeiçoar. Nesse quesito, ele se aproxima do fazer de uma ciência dura,
calculista. Mas o designer não constrói nada só para si. É um construtor que busca resolver
situações-problema ou questões ao seu redor, o alcance do seu trabalho é social, busca afetar
um conjunto de pessoas por meio de um princípio de socialização e de democratização do
acesso aos artefatos. O trabalho do designer muitas vezes carrega uma mensagem, ele considera
o outro, um sujeito, um receptor.
O designer então não é só construtor das coisas materiais, duras: um conjunto de
intricadas peças intangíveis entra em jogo. Para cada escolha no plano de expressão do projeto
de artefatos, há um correlato que escapa à visão. Material, cores, formas, tamanho, ajustes...
cada uma dessas escolhas é também uma construção imaterial. Ora, o designer tem a noção que
está construindo um discurso do artefato e que pretende encontrar recepção no usuário final.
Sabe que deve levar em consideração as apropriadas conexões entre as partes materiais e o que
implicam no plano dos significados: o designer lida a todo momento com códigos. E não são
poucos. A interdisciplinaridade falada nada mais é do que uma tentativa de melhor entender as
consequências da construção de artefatos de uma determinada maneira, é um estudo de quais
escolhas apropriadas devem ser feitas num dado contexto, é a busca de compreensão de
diferentes códigos para o seu manejo mais eficaz, atendendo a uma determinada função.
No entanto, nem tudo se resume à eficiência e eficácia. Esse discurso que pode aparentar
ser demasiado tecnicista, é ponderado com o outro polo da prática no Design: a criatividade.
Nesse ponto, o designer já não mais pode ser posto como um simples construtor, mas como um
comunicador: o designer lida com a linguagem. Ele desenvolve uma retórica na dupla acepção
16
do termo: constrói um discurso ao redor do objeto e é capaz de fazer usos inesperados do código
instituído.
Assim, da mesma maneira que se pode falar na pintura, escultura, arquitetura, música,
teatro, e tantas outras formas de manifestação, como linguagens, o Design também está em
posição similar. O Design constrói mensagens a partir de uma constelação de códigos de
diferentes procedências. No entanto, assim como a Arte, uma vez construída a mensagem, ela
chega ao intérprete e se abre para a infinidade das interpretações sustentadas por aquele liame
básico codificado na fonte...
O interesse desse trabalho está em justamente estudar a maneira como o designer,
enquanto comunicador, constrói uma mensagem com base em diferentes códigos. Objetiva-se
nesse trabalho propor um modelo elementar de produção sígnica no Design, no que diz
respeito à construção das mensagens a partir do pressuposto de uma linguagem, de um
constante manejo de códigos. Propõem-se, então, a pergunta: como as mensagens são
construídas no Design? Com a ajuda da teoria por excelência de estudo das linguagens, a
Semiótica1, este trabalho terá que refletir sobre a produção do sentido em Design. Portanto, essa
abordagem está no limiar de uma relação entre sintaxe e semântica da linguagem dos objetos e
para estudá-la, a pesquisa apoiar-se-á nas reflexões dos semioticistas Roland Barthes (1915 –
1980) e Umberto Eco (1932 – 2016) no que tange o estudo da linguagem de objetos no seio de
uma cultura.
Do longo trabalho desses autores, um recorte teórico deve ser feito. Em Barthes,
refletimos, principalmente, sobre os trabalhos desenvolvidos em sua fase dedicada ao projeto
semiológico, isto é, obras como Mitologias (1957), Elementos de Semiologia (1964) e Sistema
da moda (1967). Em Umberto Eco, procuramos o balanceamento e uso cauteloso das ideias
estruturalistas. Estudamos, então, os conceitos semióticos desenvolvidos em seus livros A
estrutura ausente (1968), O signo (1973) e Tratado geral de Semiótica (1976).2
1 Nesta monografia, fazemos uso de alguns artifícios gráficos comumente encontrados em trabalhos sobre
Semiótica. Quando nos referirmos a uma palavra, enquanto significante, veículo de um significado, ela aparecerá
entre as barras verticais | |, sem a transcrição fonológica. Quando nos referirmos a qualquer outra entidade enquanto
significante, transcreveremos, por conveniência, o nome que o designa entre barras verticais duplas || ||. Assim,
quando nos referirmos ao conjunto de sons que formam a palavra “luz”, que é veículo de um significado,
escreveremos |luz|. Quando nos referirmos a um objeto, como um automóvel, enquanto significante, escreveremos
||automóvel||. Em todos os casos, entende-se que um dado significante |A| ou ||A|| veicula um significado «A». 2 Portanto, excluímos aqui de Barthes sua fase mais dedicada a aplicação da Semiologia à crítica literária e à
fotografia. De Eco, não nos aprofundamos em seu crescente interesse ao longo do final da década de 1970 em
diante sobre a pragmática e a questão da interpretação.
17
Dessa maneira, o cerce dessa pesquisa diz respeito às questões de produção de
mensagens e, consequentemente, as formas como elas se manifestam. Por outro lado, não
abrangemos com profundidade as discussões na outra ponta do processo comunicacional, a
recepção. Isso quer dizer que, embora a todo momento o designer-comunicador leva em
consideração quem vai receber a mensagem e em que contexto maior ela será inserida, a
problemática de como essas mensagens criadas pelo designer são decodificadas pelos diferentes
sujeitos foi tratada com menos aprofundamento nessa pesquisa por motivos metodológicos (e
quando esse viés é abordado, aparece sempre no âmbito teórico, nunca através da pesquisa
empírica), deixando os problemas pragmáticos da interpretação para um estudo posterior.
Portanto, tenta-se aqui de alguma maneira contribuir para a reflexão epistemológica do trabalho
do designer enquanto produtor de sentido dentro de sua área.
No decorrer desse trabalho, por meio de revisão bibliográfica, buscar-se-á definir
conceitos semióticos básicos, bem como o estudo de sua aplicação de forma adequada ao campo
do Design. Estudar-se-á a visão crítica dos autores citados para, a partir dessas abordagens,
buscar compreender a construção do sentido em artefatos do Design. Será realizada também a
análise de três artefatos pertencentes a três sistemas de objetos3 diferentes, para assim
verificarmos de maneira empírica o uso do referencial teórico consultado.
A realização de todos esses objetivos específicos de forma sequencial é indispensável
para uma construção coerente da proposta geral aqui descrita, por isso, essa monografia está
dividida em quatro grandes seções, cada uma com uma série de capítulos. Na primeira seção,
realiza-se o estudo dos conceitos semióticos considerados chave para atingir o objetivo, bem
como da possibilidade do seu uso no campo do Design.
Logo, a primeira seção está subdividido em três capítulos: Design e linguagem;
conceitos semióticos elementares; e introdução a uma abordagem semiótica do Design.
Na segunda seção, realiza-se uma análise semiótica de três artefatos de três sistemas
diferentes, a fim de verificar a coerência do discurso construído até então.
Na terceira, discutiremos os resultados da análise e da pesquisa feita por meio da
formalização de um modelo de produção sígnica de artefatos no Design, além da discussão de
sua aplicação, limites e provisoriedade.
3 É importante que fique claro que não utilizamos essa expressão aqui tal como entende, por exemplo, Jean
Baudrillard em O sistema dos objetos (2012), mas sim a amplos campos possíveis de atuação do designer, tal
como o mobiliário doméstico ou urbano, automóveis, a moda, entre outros. Cf. I.2.6.2. neste trabalho.
18
Por fim, a última seção destina-se ao apanhado geral de todo o desenvolvimento da
monografia.
Após esta introdução, as próximas páginas serão dedicadas a uma discussão de uma
série de conceitos da Semiótica, este vasto campo que hoje abarca as mais diferentes pesquisas
e métodos de abordagem de tantos objetos de estudo inseridos no seio de nossa cultura.
No entanto, algo desde cedo deve ficar claro: não buscamos aqui reduzir a
Semiótica a uma ferramenta, nem simplesmente a um conjunto de métodos. A Semiótica
não deve ser confundida com uma metodologia de pesquisa, muito embora forneça diversos
conceitos e operações analíticas que permitem o desenvolvimento de algumas pesquisas.
Esta monografia toma a Semiótica justamente como uma importante lente que auxiliará
o objetivo proposto de estudo da linguagem do Design. Um recorte teórico foi realizado, autores
selecionados conforme a coerência e pertinência com a delimitação do objeto de estudo
proposto. Logo, os conceitos que esses autores apresentam serão a base para análises e nossos
próprios postulados acerca da linguagem do Design.
Como um grande ensaio, os procedimentos metodológicos da pesquisa aqui
desenvolvida passam pela leitura, a revisão bibliográfica, recorte e avaliação do conteúdo
apreendido em relação com o tema da pesquisa. A análise que será desenvolvida não está
somente sustentada nos conceitos semióticos estudados, mas servirá de prova final para as
reflexões construídas ao longo destes pressupostos teóricos.
Explicado o percurso metodológico, iniciamos o trabalho a partir da discussão do
pressuposto básico do qual, sem ele, a pesquisa não poderia desenvolver-se da forma como está
posta: o Design é uma linguagem.
20
1. DESIGN E LINGUAGEM
O termo “linguagem” é um termo um tanto complexo de se lidar. Existem muitos
embaraços: seja em razão dos inúmeros fenômenos que são postos sob a alcunha de
“linguagens” ou certas confusões próprias de alguns idiomas ao misturar as noções de “língua”
e “linguagem”. Para partimos desde já de uma compreensão satisfatória do que é linguagem,
vejamos essas duas problemáticas.
Hoje, fala-se sem muita discussão que as mais diferentes formas de manifestação
artística (artes plásticas, teatro, dança, música etc.) são linguagens, do mesmo modo que
também o são a publicidade (linguagem publicitária) e aquele conjunto de instruções dado a um
computador para executar determinada tarefa (linguagem de programação). Mas há também
quem fala de linguagem das abelhas, dos pássaros e tantos outros domínios do reino animal...
mesmo que a linguagem também seja, curiosamente, muitas vezes apresentada como cerne
daquilo que é cultura (e logo, humano). O que há de comum em todos esses casos?
Todas essas formas de linguagem são capazes de criar mensagens baseadas em signos
que, por sua vez, podem ser interpretadas por meio de um processo de decomposição
(decodificação). Como diz Martin (2003, p. 101): “todo sistema de objetos instituídos como
signos é uma linguagem (certos gestos ou certas mímicas, as placas de trânsito, a maneira de se
vestir...). O estudo das linguagens é da alçada da semiótica; a linguística é um aspecto desta,
pois as línguas são, por excelência, linguagens”. Os exemplos dados por Martin (gestos, placas
de trânsito, a moda etc.), são típicos do posicionamento da Linguística, uma vez que para essa
área, de uma maneira geral, não se pode falar em “linguagem animal” num mesmo nível que se
fala de “linguagem humana”. No entanto, ao menos no quesito de formulação de mensagens a
partir de signos, o linguista Émile Benveniste, ao discutir sobre a possibilidade de uma
linguagem das abelhas diz:
Até aqui encontramos, nas abelhas, as próprias condições sem as quais nenhuma
linguagem é possível – a capacidade de formular e de interpretar um “signo” que
remete a uma certa “realidade”, a memória da experiência e a aptidão para decompô-
la. (2005, p. 64)
Benveniste nesse artigo trata de discutir o famoso estudo do zoólogo alemão K. von
Frisch sobre a comunicação das abelhas. Como foi visto, para Benveniste, ao menos no quesito
de uma organização elementar de signos pode-se falar de uma “linguagem animal”, e que seria
o requisito básico para todas as outras; mas, no fim, Benveniste considera o termo “código de
sinais” preferível ao de “linguagem” na comunicação animal em razão da solidez dos
21
conteúdos, da incapacidade dos praticantes realizarem o diálogo e construção de novas
mensagens a partir das já produzidas. Tal discussão, que corre o risco até de abraçar um debate
behaviorista (é comunicação animal ou relação estímulo-resposta?) escapa aos objetivos desse
trabalho e, portanto, devemos nos ater ao princípio básico da linguagem no sentido lato como
sistema de signos.4
As discussões entre os linguistas e os biólogos sobre a linguagem nos lembram ainda o
segundo embaraço que falamos no começo: a confusão entre “língua” e “linguagem”. A língua,
isto é, a linguagem verbal, foi considerada milenarmente como um saber superior a todos os
outros transmitidos via linguagens não-verbais. Como afirma Santaella:
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e de
meio de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um
condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de
conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela
língua. (1995, p. 10-11)
E talvez mesmo por esse pensamento tão antigo, é que em vários idiomas uma mesma
palavra remeta tanto a “língua” como “linguagem”. Isso também é notado por A.J. Greimas e
J. Courtés, no interessante verbete sobre linguagem em seu Dicionário de Semiótica (1979):
Termo da língua natural que é o português, linguagem somente no século XIX
desvencilhou-se definitivamente de sua quase sinonímia com a língua, permitindo
assim uma oposição entre linguagem “semiótica” (ou linguagem no sentido geral) e
“língua natural”. Essa distinção, que seria muito útil, é novamente questionada quando
colocada no contexto internacional em que numerosas línguas possuem apenas uma
única palavra para os dois termos portugueses. (GREIMAS & COURTÉS, 2016, p.
289-290).
Greimas & Courtés definem a linguagem como um “conjunto significante” e como
“biplanas”, isto é, “o modo pela qual elas se manifestam não se confunde com o manifestado”
(p. 290). Ora, nada mais esperado de um sistema de signos, os quais por meio de um plano de
expressão, veicula-se um conteúdo. Levando em conta essas considerações, essa noção básica
de linguagem como sistema de signos pode e deve ser aprofundada na utilização feita aqui neste
trabalho, prevendo que uma linguagem é um sistema de signos que pressupõe um código, que
4 A partir desse princípio básico e, seu território comum às chamadas linguagens animais, é que se desenvolveu
campos como a Zoosemiótica. No entanto, é importante lembrar que essas subáreas dentro da Semiótica partem
da ideia de que algo pode ser considerado signo, mesmo sem que se parta de um emitente humano, bastando ser
interpretado como tal. Assim, nessa compreensão, a Semiótica pode ser alargada para além do ato comunicacional
entre humanos (ECO, 2014, p. 11).
22
por sua vez, cria um sistema de significação. E tal processo, por fim, é a condição básica para
poder estabelecer-se um processo de comunicação.
Por sua vez, a comunicação é posta aqui como uma troca de mensagens que supõe uma
atividade interpretativa de todas as partes envolvidas num dado contexto e momento. Portanto,
estamos além da relação estímulo-resposta e da simples passagem de informação (a qual
poderia ser considerada como troca de sinais e não de signos). E eis aí um fator determinante
da diferença entre a linguagem humana e animal: qualquer linguagem utilizada pelo ser humano
é capaz de ser tratada ao nível da metalinguagem, isto é, a discussão do código que institui
essa mesma linguagem, o que Jakobson (2010) chamou de função metalinguística. É colocando
o código em discussão que se pode compreendê-lo, modifica-lo, expandi-lo etc.5
Não é difícil, então, imaginar o Design também como uma área possível de ser abordada
pelo viés da linguagem e, por conseguinte, da comunicação. Qualquer artefato de qualquer
sistema de objetos, que habitualmente um designer desenvolveria, como o mobiliário doméstico
ou urbano, os veículos, a moda, o design gráfico e tantos outros, podem ser entendidos como
algo que fala mais do que o seu uso prático e imediato: carregam dentro de si o poder de
significar. Em um sentido abrangente, são textos: unidades significantes coerentes que
significam algo, produzidas por alguém num dado momento e num dado contexto e que
pretende alcançar um receptor6, o qual recebe a mensagem também num determinado momento
e contexto. Essa insistência em “momento” e “contexto”, que pode parecer uma redundância,
na verdade, é aspecto fundamental do uso de qualquer linguagem num processo de
comunicação: é aquela dimensão pragmática que, muitas vezes só é associada ao ato da
recepção, mas que também está implicada na produção de mensagens.
No entanto, isso pode gerar algumas dúvidas: o que quer dizer abordar o Design sob o
viés da linguagem? Apresentamos os conceitos de linguagem e comunicação e como ambos
concatenam-se com o Design, é necessário agora explicitar em linhas claras o que é o estudo
do Design enquanto linguagem.
5 Distinção dada por Eco (2014) e que explicaremos numa seção mais adiante deste trabalho. 6 Ao longo do século XX, principalmente após a chamada virada linguística e o fortalecimento de áreas como a
Teoria da Comunicação nos EUA, estabeleceu-se um crescente interesse pela estruturação do processo
comunicacional. Muitas linhas de pensamento ditas funcionalistas e deveras influenciadas pelos avanços
tecnológicos, conceituaram em seus modelos entidades como “emissor” e “receptor”, os quais revelam sua herança
mecanicista. No entanto, com o desenvolvimento das pesquisas sobre o tema da comunicação e o seu papel social,
buscou-se progressivamente uma abordagem mais humana (e dinâmica) da representação desses modelos. Greimas
& Courtés (2016, p. 80-81), já em seu Dicionário de Semiótica no fim da década de 1970, assinalava essa crescente
tendência de humanização dos termos que compõem os modelos comunicacionais, juntamente com o
desenvolvimento de questões pragmáticas.
23
1.1. Design: linguagem e fenômeno de linguagem
A distinção entre linguagem e fenômeno de linguagem, que pode trazer à mente outros
pares como língua/fala e comepetence/performance, nada mais é do que a relação
código/mensagem. O estudo de qualquer linguagem bifurca-se nessas duas abordagens
possíveis. Sobre essa problemática, em passagem bastante elucidativa, Frederico Braida diz
que:
Enquanto a abordagem como fenômeno de linguagem diz respeito a uma operação
metodológica, o estudo da linguagem propriamente dita remete-se à questão
constitutiva, ontológica e epistemológica. Compreender o design como fenômeno de
linguagem é entendê-lo como fenômeno de comunicação, ou seja, que os produtos são
mensagens e/ou produzem mensagens, são constituídos por meio de signos e sistemas
de signos, os quais são capazes de gerar significados. Já investigar as linguagens do
design pressupõe entender como os signos se estruturam dentro desse campo. (2012,
p. 55)
Logo, percebe-se que ambas abordagens são complementares: uma depende da outra.
Não há fenômeno de linguagem se não houver uma linguagem por trás, nem é possível conceber
uma linguagem que não seja utilizada para produzir mensagens (novamente, a relação
código/mensagem). A proposta desta monografia está no limite entre uma abordagem da
linguagem do Design e a sua observação enquanto fenômeno de linguagem. Afinal, a produção
do sentido (termo aqui utilizado por hora de maneira bastante genérica) é equivalente à
produção de mensagens, essas que utilizam os mais diversos signos sob a égide de diferentes
códigos. Em razão disso, não é possível entende-la sem levar em consideração os signos que a
compõem e como esses signos são trabalhados. Os signos, por sua vez, podem ser estudados
sob o ponto de vista de como são criados a partir de códigos, a descrição de suas partes
significantes e as inter-relações dentro do sistema.
Estudar a linguagem do Design seria, principalmente, observar seus significantes, essa
faceta dos signos que chegam aos nossos sentidos. Sobre esse aspecto da linguagem do Design,
Nojima (2008, p. 222-223) afirma que “a mensagem não-verbal do design é a linguagem
codificada em signos, cuja constituição perceptiva se faz por meio dos processos sensoriais do
usuário” (sic). O estudo dos significantes dos signos no Design, por sua vez, pode revelar de
que modo eles implicam e se relacionam na constituição do significado do artefato como um
todo.
Portanto, assim como em toda linguagem podemos observar o par código/mensagem,
toda linguagem também “só pode se revelar como um acontecimento vivo de comunicação se
24
seus dois eixos estruturais – a seleção e a combinação – estiverem em ação contínua e
simultânea” (MACHADO, 2008, p. 61). Fica claro, então, que a relação seleção/combinação é
um viés indispensável, que deve ser levado em conta no estudo da produção sígnica em Design.
O passo posterior para o estudo do Design sob o viés da linguagem é sua abordagem
enquanto fenômeno comunicativo: como uma mensagem lançada num dado contexto e que na
mente dos intérpretes pode gerar tantas outras. É como diz Ferrara (2002, p. 7), em conhecida
passagem, sobre a possibilidade de estudar as várias modalidades produtivas do Design como
“fenômeno de linguagem onde se encontram e atritam a arquitetura, a cidade, o desenho
industrial de objetos, o design gráfico, a comunicação e a programação visual”.
Nesta monografia, aproximamo-nos, portanto, de uma abordagem sintático-semântica
da linguagem do Design dentro do processo de produção sígnica. Esse recorte então diz respeito
principalmente ao estudo da linguagem do Design em si, e nos limites desta monografia, de
como o designer trabalha com ela. Como já dito anteriormente7, não nos estendemos com
profundidade nas discussões pragmáticas, abordando-as apenas no quanto influenciam a
produção das mensagens – deixando para um momento posterior as questões da interpretação.
Entretanto, o recorte e a preferência por trabalhar com determinada dimensão da
linguagem são puramente metodológicos, uma vez que as três dimensões (sintática, semântica
e pragmática) são interdependentes e indissociáveis de uma compreensão completa do que é
linguagem. Para esclarecer a importância dessas questões e como elas influenciam no discurso
aqui construído, o próximo item trata de apresentar o pensamento do semioticista Charles W.
Morris, no que diz respeito à suas reflexões sobre essas três dimensões semióticas da linguagem.
1.2. As três dimensões semióticas da linguagem
Como um dos estudiosos da semiótica peirceana, Charles W. Morris (1901 – 1979)
desenvolveu a noção das três dimensões da semióticas linguagem e/ou da semiose. Embora o
próprio Morris não tenha sido o responsável por cunhar os termos “sintaxe” e “semântica”, ele
partiu desses conceitos linguísticos e os relacionou com a Semiótica. Em um dos seus ensaios
mais conhecidos, Fundamentos da Teoria dos Signos (originalmente publicado em 1938),
7 Cf. Introdução.
25
Morris alia o behaviorismo à pragmática (além de uma boa dose de positivismo) e discorre
sobre três maneiras possíveis de se estudar a linguagem.8
Segundo Morris (1976), são três as dimensões da linguagem: sintática, semântica e
pragmática. A sintaxe estuda os signos e as combinações de signos entre si, através do que o
autor chamou de regras sintáticas: regras de formação e de transformação. Enquanto as
primeiras dizem respeito às regras de combinações entre os signos numa dada linguagem, as
regras de transformação estudam como frases são criadas a partir de outras frases. Em razão
desse viés bastante analítico da linguagem, naturalmente, a dimensão sintática das semióticas
(linguagens) são as mais desenvolvidas. E não poderia ser de outra forma, afinal, o estudo das
outras duas dimensões só pode ser feito uma vez que a sintaxe de uma linguagem for
compreendida.9
A dimensão semântica, por sua vez, diz respeito ao estudo “da relação dos signos com
seus ‘desginata’ e também com os objetos que eles podem denotar ou que realmente denotam”
(MORRIS, 1976, p. 38). No texto de Morris, “designata” é um termo que confunde-se
constantemente com o “designatum”, ambos referindo-se a uma dimensão do ato de referência,
isto é, a relação do signo com o objeto. No entanto, nem designata nem designatum dizem
respeito ao objeto real (o qual Morris chama de “denotatum”). Um designatum, segundo Morris,
“não é uma coisa, mas uma espécie ou classe de objetos – e uma classe pode ter vários membros,
ou um só membro ou nenhum” (p. 15). Desse modo, para Morris a semântica não trata da
relação entre o signo e o seu significado, relação essa usualmente atribuída ao estudo da
semântica. Uma vez que Morris é um seguidor da obra de Peirce, a parte do signo que diz
respeito ao significado é chamada de “interpretante”.10
Essa separação entre “designatum” e “denotatum” dada por Morris, nada mais é do que
uma tentativa de resolução do problema da referência. Existem signos que possuem
“designatum” mas não “denotatum”, isto é, referem-se a uma classe de objetos mas não a um
objeto da realidade. Se, por um lado, essa é uma maneira de solucionar problemas extensionais
8 No ensaio citado, talvez pela própria confusão do idioma inglês quanto ao termo “linguagem”, por vezes ele
aparece como referido a uma noção mais ampla, tal qual definimos anteriormente; noutras aparições, o termo
parece tratar apenas da linguagem verbal. 9 Essa sintaxe, num primeiro momento, é essencialmente formal, isto é, os signos são considerados sem nenhuma
referência à significação. Tal abordagem é complementar ao das sintaxes conceituais que tratam dos signos já
como unidades significantes. Sobre essa definição ver Greimas & Courtés, 2016, p. 472. 10 Segundo Nöth (2005, p. 189), Morris alarga, posteriormente a definição da dimensão semântica, incluindo a
significação dos signos.
26
dentro da Semiótica, por outro, “designatum” pode parecer algo demasiadamente próximo da
noção de significado, mesmo que para Morris, não o seja.
Nessa mesma linha de questões sobre a semântica extensional, Morris (1976, p. 40)
define uma regra semântica como “uma regra que determina sob que condições um signo é
aplicado a um objeto ou situação”. No mesmo texto, mais à frente, Morris diz que: “um signo
denota tudo aquilo que se conforme com as condições estabelecidas na regra semântica, ao
passo que a regra em si expõe as condições de designação e assim determina o ‘designatum’ (a
classe ou espécie de ‘denotata’)” (p. 40). Ora, nessa acepção, se a regra semântica é aquilo que
liga um signo ao seu “designatum” e é formada por seus usuários ou via hábitos
comportamentais, ela é uma tentativa de explicar a arbitrariedade da referência do signo.
Por fim, temos a dimensão pragmática que “designa a relação dos signos com seus
intérpretes” (MORRIS, 1976, p. 50). A pragmática, portanto, ressalta o aspecto da interpretação
e dos usos da linguagem. É uma extensão de um empirismo e de difícil abordagem
metodológica, tendo ainda que aprender muito com a análise sintática. Segundo Morris:
Numa apresentação sistemática da semiótica, a pragmática pressupõe tanto a sintaxe
como a semântica, pois a última pressupõe a primeira, porque para discutir
adequadamente sobre a relação dos signos com seus usuários se requer conhecimento
da relação dos signos entre si e para aquelas coisas às quais eles referem seus
intérpretes. (1976, p. 55).
Morris também chama a atenção a como um dado signo, no momento em que na mente
de um intérprete gera um novo signo (interpretante), o estudo da pragmática toca áreas como a
Psicanálise ou Sociologia, uma vez que “o fato de que um certo signo é usado por alguém
exprime a condição da pessoa, pois o interpretante do signo é parte da conduta do indivíduo”
(1976, p. 62).
Embora Mikhail Bakhtin (1895 – 1975) não foi um entusiasta do objetivismo do
behaviorismo tal como foi Charles Morris, a perspectiva dialógica bakhtiniana dá grande
importância às condições nas quais o intérprete está inserido, assim como o pragmatismo. No
entanto, seu grande destaque está na consideração de que determinado sujeito da enunciação
sempre leva em conta o outro que fala na construção do discurso, perspectiva que também pode
ser considerada como essencialmente uma preocupação pragmática do uso da linguagem:
Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma
coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda
27
inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta
com as reações ativas da compreensão, antecipa-as (BAKHTIN, 1988, p. 98).
Nessa passagem, vemos que podemos estender a compreensão sobre o dialogismo e da
enunciação para qualquer fenômeno de linguagem (incluído aí o Design), uma vez que o
propósito de uma linguagem é produzir mensagens, a fim de promover a comunicação. Dessa
maneira, podemos completar à noção de pragmática focada na interpretação, aspectos sobre a
produção. Afinal, as condições onde o intérprete está inserido influenciam no modo como ele
próprio constrói novos signos e os relaciona com “designatums”. Isso evidencia a grande
complexidade dos estudos da produção e interpretação de mensagens. Logo, a partir dessa
clássica afirmação de que não existe texto sem contexto11 (ou, nesse âmbito, uma forma sem
conteúdo), as reflexões pragmáticas tocam a questão da produção sígnica tratada aqui.
No entanto, deve ficar claro que todas essas dimensões possuem uma relação de
interdependência entre si. Só é possível compreender os usos de uma mensagem se sabe-se o
que ela é capaz de significar; e essa etapa, por sua vez, só é alcançada quando a própria estrutura
da linguagem que gerou a mensagem é entendida. Portanto, análises puramente sintáticas que
pretendem explicar por si só uma linguagem estão fadadas a profundas críticas. Tais análises,
ao recorrem a um formalismo exacerbado ao ponto de ignorar os usos reais da linguagem ou
qualquer outro fator transformador fora dela, devem ter seu rigor metodológico como apenas
uma das etapas do estudo. Como veremos, é nesse ponto, que movimentos como o
estruturalismo mais pecaram.
Ainda sobre as dimensões da linguagem, resta agora observamos como esse estudo foi
aplicado ao Design por alguns autores da própria área.
1.2.1. Dimensão sintática, semântica e pragmática dos artefatos
Compreendidas as três dimensões semióticas da linguagem a partir de suas definições
gerais, que podem ser aplicadas em qualquer linguagem, a aplicação desses conceitos à
linguagem própria do Design não parece estranha.
Se a dimensão sintática diz respeito ao estudo das relações dos signos entre si que
compõem uma dada linguagem, no Design isso equivale ao estudo dos signos que são utilizados
11 A possibilidade de aproximação do dialogismo bakhtiniano ao Design já foi discutido, por exemplo, por Nojima
et al. (2006, p. 64-86). Essa abordagem dialógica do Design ainda poderia lançar luz sobre uma discussão da
impossibilidade de neutralidade da linguagem do Design, tal qual queriam tantos designers radicalmente
funcionalistas no século XX.
28
na estrutura dos produtos. Tomando um artefato como mensagem e, logo, o caminho indicado
para o estudo da linguagem que o originou, uma análise sintática de um produto de Design
implica, segundo Niemeyer (2007, p. 50) “tanto a análise da construção técnica do produto
quanto à análise de detalhes visuais como juntas, aberturas, orifícios, superposições, texturas,
desenhos e cores”. Portanto, já que a dimensão sintática trata de aspectos formais da linguagem,
se aplicada tal análise em um artefato do Design, realiza-se uma análise formal do artefato: que
signos compõem e como se relacionam.
A dimensão pragmática é talvez a mais próxima do dia a dia do designer. É aquela que
analisa um produto “sob o ponto de vista de seu uso – por exemplo, de um ponto de vista
ergonômico ou sociológico (quem usa o produto, em que tipo de situação o produto é usado)”
(NIEMEYER, 2007, p. 51). No entanto, levando em consideração o que foi falado a respeito
do dialogismo como complemento à perspectiva pragmática no polo da produção, uma análise
da dimensão pragmática pode ser feita antes mesmo do produto ser usado por um sujeito, já que
se pode fazer um estudo de como o designer pensou e considerou o uso do artefato por ele
projetado.
Já a dimensão semântica, enquanto incumbida do estudo da relação do signo (a faceta
sensível) com seu significado, Gomes Filho (2006, p. 114) afirma que “em design, a dimensão
semântica é a dimensão do próprio objeto e da coisa significada. É a significação do produto”.
Niemeyer (2007) ressalta a importância de compreender a dimensão semântica dos artefatos
como diretamente relacionada com as outras duas dimensões, uma vez que a configuração
formal de um artefato influencia no que é depreendido dele e os signos escolhidos nessa
composição, por sua vez, devem estar atentos às possíveis interpretações dos consumidores.
Em Design, a abordagem dessas três dimensões muitas vezes foi relacionada com as
divisões triádicas clássicas das funções do produtos industriais, como, por exemplo, a conhecida
divisão de Löbach (2001) entre funções práticas, estética e simbólicas.
Nesse âmbito, é notável o trabalho de Braida & Nojima (2014), que a partir da semiótica
peirceana e morrisiana, descrevem as relações entre três tríades: as dimensões semióticas da
linguagem, os aspectos constitutivos do design (forma, significado e função) e as funções dos
produtos.
Como foi dito na introdução desta monografia, para o modelo de produção sígnica no
Design construído aqui, estamos interessados num estudo sintático-semântico da linguagem do
Design, abordando a dimensão pragmática apenas no que diz respeito aos seus impactos na
29
produção dos artefatos. A abordagem essencialmente pragmática, que já se aproxima do estudo
do Design enquanto fenômeno de linguagem e não mais como linguagem em si, é deixado de
lado. Portanto, nesse estudo, para a dimensão sintática, buscamos entender que tipos signos
formam as mensagens criadas pela linguagem do Design (isto é, os artefatos), como se
relacionam e sua influência na constituição do significado da mensagem. O que nos leva para
a dimensão semântica, que aqui não tratará de verificações extensionais, e sim no que diz
respeito ao uso dos códigos na produção sígnica, o que nos aproxima mais de uma semântica
intensional.12
Por sinal, em relação a essa ligação entre sintaxe e semântica no artefato, Lucy Niemeyer
faz uma interessante observação:
A Semântica do Produto está sujeita a mudanças se o material dele muda. Por
exemplo, um bule pode ser de porcelana ou de aço inoxidável. A função prática é a
mesma em ambos os casos, mas a qualidade dos bules não é a mesma, pois os dois
bules são feitos de materiais diferentes e têm modos também diferentes de expressar
as respectivas qualidades do bule. Portanto, são descritos de modos distintos. (ibid.,
p. 53)13
Ora, o que Niemeyer descreve aqui nada mais é do que algo possível de ser verificado
com a prova da comutação. Embora um termo típico da linguística (o que, com certeza, por
esse simples motivo já causa aversão para alguns), é um procedimento passível de ser aplicado
a qualquer linguagem para verificar quais signos, uma vez modificados, implicam numa
mudança de significado. Esse procedimento é essencial para a determinação das variantes
significantes de uma dada mensagem.
Essa relação, por sua vez, demonstra perfeitamente que, independente da linguagem,
existe um eixo de seleção e de combinação dos signos que deve ser estudado, a fim que essa
mesma linguagem possa ser compreendida. Essa é uma perspectiva notada, por exemplo, por
Escorel (2000) ao tratar das noções de eixo paradigmático e sintagmático no Design. Ao longo
desse trabalho, essa importante abordagem será melhor explicada e levada em consideração
com suas devidas adaptações para o campo do Design, uma vez que a linguagem verbal (Escorel
12 As discussões sobre intensão e extensão relativas à Semântica serão expostas de maneira muito superficial, por
meio do ponto de vista de Eco (2014) ao falar do conceito de “unidade cultural” no item II. 2.5. 13 Embora a ideia geral expressada nesta passagem, explicando a dimensão semântica, seja válida, é inegável que
o material de que é feito um determinado artefato (como no caso do bule citado) pode sim interferir na função e,
principalmente, no modo como o sujeito maneja esse mesmo artefato.
30
baseia-se em Ferdinand de Saussure) é apenas parte da linguagem do Design, de longe não a
representando em sua totalidade.
Por meio de todos esses exemplos, uma vez esclarecida a possibilidade de estudar o
Design sob o viés da linguagem, o próximo item dedica-se a mostrar, por conseguinte a esse
entendimento, como esse estudo pode ser feito a partir de uma aproximação entre o Design e a
Semiótica.
1.3. Aproximações entre Design e Semiótica
Tornado ponto pacífico a possibilidade de abordagem do Design pelo viés da linguagem,
resta agora saber como isso será feito.
Como estudo por excelência das linguagens, a Semiótica nos parece a opção mais viável
para atingir os objetivos propostos. Segundo Santaella, “a Semiótica é a ciência que tem por
objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo os modos
de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de significação e produção de
sentido” (1995, p. 13). Portanto, é por meio dos conceitos da Semiótica que iremos tentar
elucidar a produção sígnica em Design.
2. CONCEITOS SEMIÓTICOS ELEMENTARES
Ao longo dessa primeira parte da seção sobre pressupostos teóricos, uma série de
conceitos foram mencionados sem a sua apropriada definição, agora, o momento é próprio para
defini-los.
A Semiótica, como uma área de grande abrangência, difunde-se nas mais diferentes
abordagens e linhas de pesquisa. É necessário, pois, fazer alguns comentários sobre a trajetória
de tal área e suas mais diferentes vertentes. Não objetivando criar nenhuma disputa ideológica,
todos os conceitos semióticos, independentes de sua procedência, se possíveis de concatenar-
se e ajudarem no desenvolvimento desse trabalho, serão trazidos à baila. Portanto, comecemos
sem mais delongas a segunda parte dos pressupostos teóricos desse trabalho.
2.1. Semióticas?
31
O primeiro conceito a ser definido sobre Semiótica não poderia ser outro: a própria
Semiótica14. Anteriormente, demos uma definição preliminar de semiótica, sintetizada numa
única frase, mesmo que existam estudiosos da área que discordariam de tal definição. Dessa
maneira, esta seção dedica-se a comentar debates importantes ao redor do termo “semiótica”
que ocorreram ao longo do tempo, especificamente, do início do século XX até hoje.
O primeiro embate dessa definição proposta é se podemos de fato dar à Semiótica o
status de Ciência. A discussão existe uma vez que a Semiótica não possui um objeto de estudo
estritamente delimitado ou uma “pureza” em seus métodos tal qual outras ciências já
estabelecidas, como a Física e a Matemática possuem (RAMALHO E OLIVEIRA, 2009). E se
não há consenso quanto ao status científico, ainda se discute se o correto é chamar a Semiótica
de um campo do conhecimento ou uma disciplina. Umberto Eco (2014) prefere posicionar-se
pela denominação de “campo do conhecimento” em razão da confluência de inúmeros estudos
considerados semióticos e até mesmo a desordem na organização da própria área – é com essa
visão que esta pesquisa se identifica.
Embora o começo da formalização de um campo do conhecimento chamado Semiótica
seja recente nas Ciências Humanas, o termo semiótica em si é bastante antigo. Se considerarmos
as reflexões acerca da natureza do signo15, da significação e da relação linguagem-realidade
como preocupações semióticas (como de fato são), então a história desse campo, por muitos
séculos, anda lado a lado com a filosofia da linguagem. É natural, então, encontrarmos a raiz
etimológica da palavra semiótica no grego “semeîon”, que significa “signo”. Assim, é possível
observar não só na Antiguidade filósofos como Platão falando sobre o conceito de signo ou o
uso da palavra pela medicina antiga, mas também ao longo dos séculos seguintes durante o
medievo e a Idade Moderna16, discussões que poderiam ser colocadas sob grande guarda-chuva
da Semiótica.
No entanto, a aproximação de uma definição, tal qual se compreende hoje como
Semiótica, é mais recente. Seria apenas no fim do século XIX, com a chamada “virada
linguística”, que a linguagem entraria, novamente, no centro das discussões da Filosofia.
Segundo a filósofa Inês Araújo (2004, p. 11), “com a virada linguística (linguistic turn), o
14 Neste texto, todas as vezes que o termo semiótica for grafado com inicial maiúscula (Semiótica), está se referindo
a uma área do conhecimento e não sua forma adjetivada, indício de método (como em “análise semiótica”), que
será escrita com inicial minúscula. 15 Por questão de organização, adiamos a definição de signo para um próximo item desse trabalho. 16 Segundo Winfried Nöth (1995), ao discorrer sobre o percurso histórico do termo “semiótica”, o filósofo moderno
John Locke foi o primeiro a tratar de uma semiótica propriamente dita já no século XVII.
32
pensamento ocidental volta-se para o problema da linguagem, o que provocou transformações
rápidas e importantes na linguística e na filosofia da linguagem”. O renovado interesse pela
linguagem faz com que surjam, simultaneamente, em três diferentes locais, a ideia de elaborar
uma teoria semiótica propriamente dita.
Nos Estados Unidos, o filósofo Charles Sanders Peirce (1839 – 1914) com uma
formação em Química, Lógica e Matemática, cria uma teoria geral dos signos baseada no
pensamento lógico aristotélico e na fenomenologia. A fim de abarcar todos os fenômenos
possíveis em sua teoria, Peirce cria as três famosas categorias: Primeiridade, Secundidade e
Terceiridade. Em razão do alto nível de abstração dessa teoria, sua aplicação é vasta aos mais
diferentes fenômenos, o que Winfried Nöth (1995, p. 61) chama de “visão pansemiótica do
mundo”, além de mostrar-se como uma importante contribuição na tentativa de dar à Semiótica
o status de Ciência.
Diferentemente das outras correntes semióticas que veremos a seguir, Peirce postulou,
a partir das categorias citadas, um modelo original para a compreensão do funcionamento do
signo na mente do intérprete (isto é, o processo de semiose), sugerindo um amplo sistema de
classificação dos signos a partir da natureza do fenômeno em questão. Assim, Peirce define
Semiótica como a “doutrina da natureza essencial e das variedades fundamentais de cada
semiose possível” (PEIRCE, 1931, 5.488 apud ECO, 2014).
Do outro lado do globo, na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
desenvolveu-se a chamada Semiótica Russa ou Semiótica da Cultura. Considerando suas
origens no estudo da Poética na literatura, artes plásticas e no cinema, a Semiótica Russa nasceu,
segundo Irene Machado (2003, p. 25), “não como uma teoria geral dos signos e das
significações, mas como uma teoria de caráter aplicado, voltada para o estudo das mediações
ocorridas entre fenômenos diversificados”. Graças ao cerceamento de liberdade durante o
período stalinista na URSS, a organização dos trabalhos semióticos soviéticos foi melhor
proposta apenas nos anos 1960, com a criação da Escola de Tártu-Moscou (ETM). No entanto,
é inegável que antes mesmo da criação da ETM, havia um pensamento semiótico sendo
desenvolvido ao redor de figuras exemplares como Roman Jakobson (1896 – 1982) na
postulação do chamado formalismo russo nos Círculos Linguísticos de Moscou e Praga, tal
pensamento viria ainda a crescer com o de outros pensadores, como Mikhail Bakhtin (1895 –
1975). Os estudos literários formalistas seriam a pequena semente que viria a influenciar
profundamente o desenvolvimento da Linguística na Europa Ocidental, bem como da
Semiologia e do Estruturalismo de ala funcionalista.
33
Por fim, a terceira principal corrente semiótica a surgir no século XX foi a de origem
Linguística.
Figura central na chamada “virada linguística”, o genebrino Ferdinand de Saussure
(1857 – 1913) é considerado o pai da Linguística moderna ao repensar a forma como os estudos
linguísticos deveriam ser levados a cabo. Saussure desenvolveu suas ideias ao longo do curso
que ministrava na Universidade de Genebra entre 1906 e 1911 e, embora nunca tenha escrito
propriamente estas ideias, foram compiladas a partir de anotações de sala de aula por dois
discípulos seus, Charles Bally e Albert Sechehaye, gerando o clássico Curso de Linguística
Geral, publicado após a morte do mestre em 1916. No Cours, Saussure (1995, p. 10) propõem-
se então a um problema que considera básico: a definição da natureza objeto de estudo da
Linguística, isto é, a língua. Num tempo em que predominava a abordagem histórico-
comparativista das línguas, as ideias de Saussure foram muito importantes para reformular o
papel da Linguística. Grande influência a obra do mestre genebrino teria, estendendo-se para
além da Linguística, com o surgimento do Estruturalismo. No entanto, houve uma influência
que Saussure pode prever: o surgimento de uma área a qual ele chamou de Semiologia.
Em famosa passagem do Curso de Linguística Geral, Saussure diz:
Pode-se então conceber uma ciência que estuda na vida dos signos no seio da vida
social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia
geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego sêmeîon, “signo”). Ela nos ensinará
em que consistem os signos, que leis os regem. [...] A Linguística não é senão uma
parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à
Linguística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio mínimo bem definido
no conjunto dos fatos humanos. (1995, p. 24)
Em razão da postulação recente, o termo Semiologia confundiu-se, e até mesmo
rivalizou, com o termo Semiótica postulado por Peirce. Mesmo que cada linha possua suas
peculiaridades, divergências e raros consensos, os estudos semióticos sem dúvida colocam sob
suas lentes certo denominador comum: a linguagem, e por isso ela é um meio fundamental para
se estudar qualquer fenômeno enquanto linguagem, incluído aí o Design. Portanto, quando não
referida uma linha de pesquisa específica, o termo Semiótica é entendido como uma área do
conhecimento com grande confluência de pesquisas e de disciplinas que, em alguma medida,
interessam-se pela linguagem e pela comunicação. Essa compreensão também é decorrente da
proposta de unificação das diversas práticas semióticas sob o termo Semiótica, como previsto
na carta constitutiva da International Association for Semiotic Studies, tal qual como foi
proposta por Roman Jakobson em 1969.
34
Entretanto, neste trabalho, quando necessária a explicitação da diferença entre as duas
linhas de pensamento semiótico (americana e europeia), a antiga distinção entre Semiótica e
Semiologia será utilizada. Acreditando, então, que sejam necessárias algumas palavras para
esclarecer o uso e o embaraço entre Semiótica e Semiologia, o próximo item se dedica a uma
explicitação das diferenças entre esses dois termos.
2.1.1. Semiótica e Semiologia
A primeira grande distinção – e que funda todas as outras – é a origem de cada uma
dessas correntes. Como foi visto, a chamada Semiótica americana foi criada por Charles
Sanders Peirce, a partir de seu embasamento filosófico na Lógica e na Fenomenologia. Já a
Semiologia, tem suas origens a partir dos trabalhos de Ferdinand de Saussure, especificamente,
seu Curso de Linguística Geral. Cada uma dessas linhas semióticas utilizam um determinado
método de procedimento.
Segundo Santaella (2012), a Semiótica pensada por Peirce é apenas uma das disciplinas
que fazem parte de sua “arquitetura filosófica”, uma arquitetura que está alicerçada na
fenomenologia17. Ao criar as três categorias fundamentais (Primeiridade, Secundidade e
Terceiridade), Peirce procura estabelecer as leis gerais do funcionamento do pensamento em
relação a qualquer fenômeno existente, por isso, a Semiótica peirceana é uma lógica em seu
sentido lato. Assim, Peirce divide a Semiótica (ou lógica) em três ramos: gramática
especulativa, lógica crítica e metodêutica.
Enquanto a gramática especulativa se ocupa de estudar todos os tipos de signos e formas
do pensamento (talvez o viés mais conhecido de sua teoria), a lógica crítica busca observar os
tipos de raciocínios que são formulados via esses signos. Já a metodêutica analisa os tipos de
métodos que esses raciocínios dão origem (SANTAELLA, 2012).18
17 Segundo a filósofa Marilena Chauí (2000), a fenomenologia, criada por Edmund Husserl (embora o primeiro a
usar o termo tenha sido o filósofo Friedrich Hegel), é uma corrente de pensamento que busca descrever as
estruturas e o funcionamento da consciência. A fenomenologia considera que a consciência age por meio de
representações singulares de objetos, fatos, pessoas, enfim, qualquer coisa. 18 Assim, a teoria de Peirce é falibilista, isto é, construída a partir de uma série de proposições hipotéticas, e não
de asserções, nas quais a validade dessas hipóteses só pode ser verificada com base em seus resultados, ou seja, a
verificação da situação real. Tal concepção é própria do movimento que Peirce fundou, o pragmatismo, embora
posteriormente o tenha abandonado em decorrência de discordâncias (MARCONDES, 2010). Essa abordagem de
Peirce, mesmo que nunca tenha conhecido Saussure, é uma tentativa de abordar semioticamente o problema da
referência, o qual foi deixado de lado pela Linguística. No entanto, a semiótica peirceana não se aprofunda numa
semântica extensional, apenas considera o referente nos casos especiais de signos como os ícones e os índices.
35
Portanto, a Semiótica americana é passível de ser aplicada a qualquer objeto da realidade
e considerá-lo como uma representação sígnica na mente de um sujeito qualquer: sua principal
preocupação é o processo de semiose. Já o estudo das diferentes abordagens possíveis dos
signos foi desenvolvido com profundidade pelo seguidor de Peirce, William Charles Morris,
responsável pela sistematização das três dimensões semióticas da linguagem anteriormente
expostas19.
No momento em que Peirce considera que qualquer coisa é possível de se apresentar
como signo, temos aí um ponto importante na diferenciação entre Semiótica e Semiologia, uma
vez que a postulação de Saussure não considera, por exemplo, os signos naturais. Assim, a
Semiologia é relacionada com o estudo “dos signos humanos, culturais e, especialmente,
textuais” (NÖTH, 1995, p. 23). O que é compreensível, uma vez que em relação à
fundamentação teórica, enquanto Peirce constrói uma teoria bastante abstrata provinda da
Fenomenologia (embora tenha criado uma terminologia própria), a Semiologia retirará a
maioria dos seus conceitos operacionais da Linguística, desenvolvendo um forte apelo
metodológico. Isso leva a Santaella considerar a Semiologia francesa como uma “semiótica
especial” ou “especializada” (SANTAELLA, 2012, p. XV) se comparada com a Semiótica
peirceana.
Neste trabalho, consideramos que a Semiologia deu importantes contribuições para o
estudo do tema proposto, isto é, a construção do sentido em artefatos do Design, uma vez que
esses, sem dúvida alguma, fazem parte de nossa cultura material. Por isso, o recorte teórico
muitas vezes tenderá a conceitos utilizados por aqueles que foram responsáveis pela ampliação
do projeto semiológico, como Roland Barthes e Umberto Eco. Não obstante, isso não quer dizer
que colocaremos de lado as importantes contribuições do árduo trabalho de C. S. Peirce, muito
menos que ignoraremos os impasses e as críticas dirigidas à Semiologia (muitas vezes
professadas por esses mesmos autores) na segunda metade do século XX.
É por isso que o próximo item tem como objetivo discorrer sobre o desenvolvimento da
Semiologia e como ela pode ser útil para esse trabalho, além de explicitar claramente os limites
dessa teoria, em especial do movimento que com ela desenvolveu-se concomitantemente: o
estruturalismo.
2.1.2. O projeto semiológico: fundação e críticas
19 Cf. supra p. 24.
36
Após a morte de Saussure, a Semiologia foi sendo paulatinamente divulgada e
desenvolvida por linguistas e semiólogos, como Louis Hjelmslev (1899 – 1965), Roland
Barthes (1915 – 1980), Émile Benveniste (1902 – 1976), Roman Jakobson (1896 – 1982), A.J.
Greimas (1917 – 1992), Edgar Morin (1921 –), Umberto Eco (1932 – 2016), entre outros. Todos
esses estudiosos foram essenciais para o estabelecimento da Semiologia e a sua reavaliação.
Misturados dessa maneira, esses nomes podem até parecer que pertenciam a um movimento
homogêneo e compartilhavam um único ponto de vista em razão da influência da Linguística,
o que não é verdade.
Podemos observar discordâncias, por exemplo, na abordagem formalista da Escola de
Copenhague e a funcionalista do Círculo Linguístico de Praga (NÖTH, 2005). Além ainda dessa
diferença de abordagem linguística, enquanto que a Escola de Copenhague, a qual Hjelmslev
pertencia, seguiu religiosamente os conceitos dados por Saussure, Jakobson, como um expoente
da Escola de Praga, fez importantes críticas sobre a questão da arbitrariedade do signo
saussuriano – ponto que, na verdade, foi por vezes criticado por tantos outros autores.
No que diz respeito ao estabelecimento da Semiologia propriamente dita, isto é, a área
que cuida principalmente das linguagens não verbais, Roland Barthes foi uma figura essencial:
a partir de cursos ministrados na École des hautes études, e depois publicado em forma de artigo
na revista Communications, o livro Elementos de Semiologia (publicado originalmente em
1964) organiza os instrumentos teóricos básicos para a condução de uma pesquisa semiológica.
Seguindo a tradição saussuriana, os Elementos propostos por Barthes (2012) estão baseados
nas três dicotomias linguísticas, a saber: língua/fala, significante/significado e
paradigma/sintagma, com a adição de uma outra dicotomia, denotação/conotação. A adição das
questões relacionadas à denotação e conotação demonstram a influência que Hjelmslev teve
sobre o pensamento semiótico de Barthes, o que o levou também a discutir sobre os planos de
expressão e conteúdo. No entanto, Barthes avança e aplica esses conceitos para além do que a
glossemática propôs. Assim, ao longo do desenvolvimento da Semiologia, diversos objetos da
cultura foram levados em consideração para a análise, alguns até propostos por Barthes em seus
Elementos, objetos tais como: o automóvel, o vestuário, a comida, o mobiliário e a
arquitetura.20
20 O desenvolvimento desse tipo de estudo pode ser observado na edição nº13/1969 da revista Communications
publicada pela Editions du Seiul, na França. No Brasil, os artigos publicados nessa edição podem ser encontrados
em Moles et al. 1973.
37
Uma das principais críticas feitas ao estudo semiológico desses objetos é justamente a
adaptação de conceitos linguísticos para sistemas que comunicam por meio da linguagem não-
verbal. Ora, na abertura à edição brasileira dos Elementos de Semiologia, Barthes (2012, p.10)
atenta: “cumpre sem dúvida, manejar com precaução os conceitos transmitidos pela Linguística
na Semiologia, e é essa exigência que buscam atender estes Elementos” ou ainda quando
Barthes fala de “certos problemas” na extensão semiológica do par Língua/Fala (2012, p. 40).
Assim, para Barthes os conceitos aplicados no estudo do sistema da língua, principalmente a
dicotomia língua/fala, seriam suficientemente flexíveis a ponto de servirem de base para o
estudo de outros tipos de linguagem que não a verbal, podendo-se até mesmo a revogar esses
nomes e postularem-se outros:
Postulemos, pois, que existe uma categoria geral Língua/Fala, extensiva a todos os
sistemas de significação; na falta de algo melhor conservamos aqui os termos Língua
e Fala, mesmo se não se aplicarem a comunicações cuja substância não seja verbal.
(BARTHES, 2012, p. 34).
No entanto, é interessante lembrar que Barthes (2012) propõem uma inversão do
postulado de Saussure, considerando que a Semiologia seria apenas um departamento da
Linguística, e não o contrário. Essa afirmação decorre da visão de Barthes de que toda a
realidade é mediada pela língua, e que embora o semiólogo depare-se com substâncias não-
fônicas (visuais, sonoras, materiais), a linguagem verbal sempre estará em seu caminho, que
segundo Barthes:
Essa linguagem, entretanto, não é exatamente a dos linguistas: é uma segunda
linguagem, cujas unidades não são monemas ou fonemas, mas fragmentos mais
extensos do discurso; estes remetem a objetos ou episódios que significam sob a
linguagem, mas nunca sem ela. (2012, p. 15) 21
Mesmo levando em consideração essas ponderações, as críticas permanecem. Os
críticos do projeto semiológico afirmam que ele é baseado em analogias simplistas, ou
evidencia “entre outras coisas, a valorização do signo verbal em nossa cultura e circunscreve-
se dentro de uma série de estudos que visam compreender os códigos não verbais em analogia
rigorosa ao sistema linguístico” (PAULA, 2012 p. 44). De fato, por influência da Linguística
e, principalmente do estruturalismo, procurou-se reduzir todo tipo de linguagem à verbal,
21 Barthes refere-se àquelas asserções as quais Umberto Eco (2014, p. 53) chama de assertivas semióticas: “juízos
que atribuem a uma dada expressão o conteúdo ou os conteúdos que um ou mais códigos usualmente e
convencionalmente lhe atribuem”.
38
cometendo-se equívocos, como por exemplo, assumir que todas as linguagens se fundam a
partir de uma dupla articulação, tal qual a língua.22 Ou ainda mais grave: em razão de seu recorte
metodológico, a Semiologia excluiria o processo de recepção, ala de estudo por excelência da
pragmática.
Entretanto, são inegáveis as contribuições da Semiologia no que tange a investigação
do funcionamento de diferentes sistemas sígnicos, como a publicidade, a moda, o mobiliário,
arquitetura etc. Tais pesquisas mostram que mesmo não se podendo submeter exatamente a
lógica da linguagem verbal a um fenômeno como, por exemplo, a moda, por outro lado, é
totalmente válida a sua abordagem enquanto linguagem. As dicotomias linguísticas, como será
exposto adiante, são conceitos operacionais úteis que ajudam a elucidar a construção e o
funcionamento dos códigos, seja qual for o tipo de linguagem em questão.23 E é por esse motivo,
que consideramos nesse trabalho o projeto semiológico como importante fonte de reflexões
sobre a produção sígnica em sistemas de objetos no Design, principalmente a partir das ideias
de Barthes (2009; 2012) e Eco (2012; 2016). As críticas dirigidas à Semiologia são válidas,
uma vez que o uso e transposição indiscriminada dos termos da linguística para sistemas de
linguagem não verbal acarretam erros grosseiros, deve-se, pois, como aconselhou Roland
Barthes, manejar com cuidado os conceitos entre as diferentes áreas.
A Semiologia ainda percorreu caminhos não necessariamente ligados ao estudo de
objetos, mas também ao processo de significação em si. Esse é o caso, por exemplo, do lituano
A.J. Greimas, semiólogo bastante influenciado pelo formalismo da Escola de Copenhague.
Diferentemente das outras definições de Semiótica dadas até aqui, para Greimas, a Semiótica é
uma teoria da significação.24 Nessa linha de pensamento, a Semiótica greimasiana está
interessada na análise semântica da estrutura dos textos, sendo chamada, portanto, de uma
Semântica estrutural. O desenvolvimento dessa linha de pesquisa levou Greimas a postular o
percurso gerativo do sentido para a análise dos mais diversos textos os quais sempre se
baseiam na oposição entre termos semânticos.
Um outro importante nome para o desenvolvimento da Semiologia foi Umberto Eco.
Embora, assim como Greimas, tenha tido uma grande influência de Hjelmslev, Eco foi um
22 Pensamento este que, por exemplo, Lévi-Strauss (2004) defendia explicitamente, o qual é reavaliado e criticado
por Eco n’A estrutura ausente (2016). 23 Também não se deve pensar no código como forma de encarceramento desses fenômenos e, portanto, inibidor
de criações de novos significados e inesperados percursos do sentido. O homem ao mesmo tempo que está
condenado a depender da linguagem (eis o ponto da psicanálise estruturalista), também é capaz de torná-la seu
objeto e modificá-la a partir de reflexões metalinguísticas ou implicações do contexto. 24 Ver o verbete sobre semiótica (acepção c) em Greimas & Courtés, 2016.
39
importante nome para o desenvolvimento de uma Semiologia mais crítica ao estruturalismo,
além de um dos primeiros a aproximar conceitos da semiótica americana aos trabalhos da
Semiologia no começo da segunda metade do século XX. Assim, sua teoria semiótica tenta
agregar as mais diferentes visões num todo coerente, mesmo que Eco restrinja os objetos de
estudo da Semiótica a tudo o que é da esfera cultural enquanto fenômenos de comunicação,
deixando de lado, por exemplo, os signos naturais.
Um outro grande interesse de Eco foram questões ligadas a interpretação de textos, que
cada vez mais abordadas por meio da semiótica peirceana. Seja nessa segunda fase ou durante
o desenvolvimento de sua fase mais ligada à Semiologia propriamente dita, Eco sempre mostrou
reservas ao movimento estruturalista no seu viés ontológico. Essa discussão sobre uma
aproximação entre Semiologia e estruturalismo ilustra como esses dois movimentos estiveram
muito próximos durante as décadas de 1960 e 1970. Portanto, é importante apresentar as
principais críticas dirigidas ao estruturalismo, uma vez que muitas delas são igualmente válidas
para o projeto semiológico.
2.1.3. Os limites do modelo estruturalista
O desenvolvimento inicial da Semiologia mistura-se com o de outra linha de
pensamento: o estruturalismo. Muitas críticas contundentes e reavaliações foram dirigidas ao
movimento estruturalista, tanto que hoje fala-se em um pós-estruturalismo. Mas o que propôs
o estruturalismo, qual sua relação com a Semiologia e, de uma maneira geral, com este trabalho?
Assim como muitas outras manifestações nas Ciências Humanas ao longo de século XX,
é difícil de falar de uma “corrente de pensamento” homogênea que defina tudo o que foi
considerado um estudo estruturalista. Isso não quer dizer que o estruturalismo não possua
características próprias: o problema reside nas inúmeras apropriações e adequações de termos
em diferentes áreas do pensamento humano. Hubert Lepargneur (1972, p. 4) afirma que todos
esses estudos convergem ao redor “da noção primordial de estrutura, em vários domínios de
investigação”. Essa noção de estrutura, por sua vez, é muito anterior ao desenvolvimento do
estruturalismo nos anos 1960.
A noção de estrutura remonta ao pensamento formalista encontrado nos estudos russos
sobre a Poética na URSS e que, abruptamente interrompidos, levariam alguns anos para serem
disseminados pelo Ocidente. Nesse cenário, Roman Jakobson foi uma figura fundamental para
o surgimento do formalismo russo e, logo, do estruturalismo. Embora Jakobson nunca tenha
tido um pensamento dogmático, como muitos apontaram o estruturalismo de possuir, sua
40
interdisciplinaridade e contato com diversos pesquisadores fez com que ele se tornasse uma
figura importante no estudo das mais diversas manifestações de linguagem.
O outro grande expoente da fundação do pensamento estruturalista é Ferdinand de
Saussure. No entanto, há um fato curioso aí, segundo o linguista Émile Benveniste:
Chamou-se a Saussure, com razão, o precursor do estruturalismo moderno. Ele o é,
seguramente, exceto num ponto. É importante notar, para a descrição exata desse
movimento de ideias que não se deve simplificar, que Saussure jamais empregou, em
qualquer sentido, a palavra estrutura. Aos seus olhos a noção essencial é a de sistema
(2005, p. 98)
Assim, embora Saussure nunca tenha empregado o termo estrutura, seus seguidores
desenvolveram esse conceito basilar do estruturalismo. Para isso acontecer, é importante citar
o surgimento da Fonologia com a chamada Proposição 22, apresentada pelos integrantes do
Círculo Linguístico de Praga (R. Jakobson, S. Karcevsky e N. Trubetzkoy) em Haia, no ano de
1928, durante o I Congresso Internacional de Linguistas.
Segundo Irene Machado (2008), o desenvolvimento das ideias do Círculo Linguístico
de Praga foram essenciais para o desenvolvimento do movimento estruturalista na Linguística
moderna. Afinal, a proposta da Fonologia é estudar o som como traço distintivo a partir de
oposições capazes de distinguir a significação (traços que compõem, por sua vez, os fonemas).
Essa noção, que é um aprofundamento da ideia saussuriana da língua como sistema de
diferenças, seria o pilar fundamental da definição de estrutura, tal qual utilizada pelo
estruturalismo.25
Daí surgem escolas de pensamento propriamente ditas estruturalistas, como a Escola de
Copenhague, tendo Hjelmslev como seu principal expoente. Hjelmslev também foi o
responsável por dar uma conhecida definição de estrutura que se irradiou pelas Ciências
Humanas:
Compreende-se por linguística estrutural um conjunto de pesquisas que repousam em
uma hipótese segundo a qual é cientificamente legítimo descrever a linguagem como
sendo essencialmente uma entidade autônoma de dependências internas ou, numa
palavra, uma estrutura (1944 apud BENVENISTE, 2005, p. 104)
25 Lévi-Strauss (2014, p. 60) dirá que “a fonologia desempenha, em relação às ciência sociais, o papel renovador
que a física nuclear, por exemplo, desempenhou para o conjunto das ciências exatas”.
41
O desenvolvimento refinado de uma entidade “autônoma de dependências internas”
levou a sua transposição para inúmeros trabalhos fora da Linguística Estrutural. O encontro
decisivo em Nova York (EUA) de Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) marca
o início de trocas entre as Ciências Humanas e a Linguística Estrutural. Ao aplicar os conceitos
da Linguística em Etnologia, Lévi-Strauss lança as bases da Antropologia Estrutural, sendo não
só um grande defensor de sua área, mas do movimento estruturalista no geral. No entanto, não
foi só a etnologia que observou o surgimento de linhas estruturalistas na sua área: disciplinas
como a Sociologia e a Psicanálise desenvolveram também fronts estruturalistas, sendo todas
elas grandemente influenciadas pelos estudos matemáticos da época, bem como das então
recém criadas Teoria da Informação (com o conceito de binarismo) e Teoria da Comunicação.
A Semiologia, embora possamos dizer que seja de postulação mais antiga que essas
formas de estruturalismo, ganhou forças e foi muito influenciada por pesquisas nesses diversos
campos do saber humano, nos quais o método estruturalista cresceu.26 Pois que fique claro: o
que há de comum a todos esses movimentos, além do uso variado do termo estrutura, é a busca
do rigor de um método. Como bem observou Santaella (2012, p. XV), o estruturalismo “é
inseparável de um método, ou talvez de fato, a teoria de um método.” Mas não só isso: o
estruturalismo também é marca de uma suspeita da racionalidade do sujeito, no momento em
que todas suas análises partem de um ponto de vista sistêmico-relacional, numa busca a um tipo
de ontologia por meio da linguagem.
A fixação pelo rigor do método garantiu ao estruturalismo muitas críticas sobre uma
pretensão cientificista, além, ainda, de possuir uma metafísica latente. Surgiu assim no fim do
século XX, o movimento que não exatamente se opôs em todos os aspectos ao estruturalismo,
mas o estudou e o colocou no cerne de suas discussões, numa tentativa de redirecioná-lo: o pós-
estruturalismo. Assim como o estruturalismo, o pós-estruturalismo não pode ser dito como um
movimento homogêneo, ele expande-se em direção às mais diferentes áreas do conhecimento.
O pós-estruturalismo também compartilha com o seu antecessor certos pontos de vista como a
suspeita de uma exaltação da consciência humana, a valorização do estudo da linguagem e da
cultura, em que se deve preconizar as relações entre os elementos sobre a abordagem isolada, e
o interesse pelo estudo de sistemas simbólicos (PETERS, 2000).
Por outro lado, o pós-estruturalismo criticou fortemente o aspecto sincrônico das
pesquisas estruturalistas, sua esquiva à consideração do efeito da história nas transformações
26 É dessa época também, por exemplo, o estabelecimento da Semântica Estrutural de A.J. Greimas.
42
da estrutura, o que levou a muitos estruturalistas a levarem a alcunha de anti-históricos. Tais
críticos ainda puseram em discussão o aspecto ontológico de certas postulações estruturalistas,
principalmente, as defendidas por Claude Lévi-Strauss a partir do estudo dos mitos.27 Segundo
Umberto Eco (2016), com seu livro de título emblemático A estrutura ausente, se, por razões
metodológicas, afirmamos a existência de uma “Estrutura Última” ou um “Código dos
códigos”28, ambas entidades não podem ser predicadas. Tal estrutura sempre seria fugidia,
apresentar-se-ia de diferentes maneiras no devir histórico e sempre seriam individuadas a partir
de determinado recorte por um estudioso.29
Tais críticas e ponderações ao estruturalismo são igualmente válidas ao projeto
semiológico, e logo, a esse trabalho que se pretende desenvolver com base em conceitos
também da Semiologia a fim de promover uma reflexão sobre o Design. Portanto, visto que
aqui não objetivamos levar a discussão ao campo da Filosofia, os pormenores das reflexões
metafísicas de ambos os movimentos (estruturalismo e seu sucessor) serão deixados de lado.
No entanto, é essencial ter em mente que de forma alguma o que será proposto aqui, embora
ulteriormente seja um modelo, ele não busca ser definitivo e muito menos avesso a uma
verificação prática, nem imune a novas reconsiderações ao longo do tempo. A proposta de um
modelo de produção de sentido é, como todos os outros modelos, provisório. Como bem disse
Umberto Eco e com ele coadunamos, ao comparar modelos semiológicos com os de ciências
como a Física:
Os modelos semiológicos deverão, como aqueles, explicar uma estrutura sincrônica e
uma processualidade diacrônica dos fenômenos estudados; e como aqueles, deverão
ter a coragem de considerar-se provisórios, mesmo depois de terem permitido
operações concretas coroadas de êxito. (ECO, 2016, p. 374)
Desse modo, só poderemos considerar aqui a utilização e a proposta de um modelo do
ponto de vista metodológico, isto é, um instrumento operacional. O modelo (ou a estrutura lato
sensu) é um método para organizar os elementos da realidade percebida, esta obviamente
27 Ver a Abertura d’O cru e o cozido, de Claude Lévi-Strauss (2004). 28 Lévi-Strauss (2012, p. 474) certa fez a chamou de “ordem das ordens”. 29 Segundo o filósofo Jacques Derrida (1971, p. 230), o qual Eco (2016) chama de um dos “liquidadores do
estruturalismo”, em seu texto A estrutura, o signo e o jogo nas Ciências Humanas, afirma que: “a estrutura, ou
melhor a estruturalidade da estrutura, embora tenha sempre estado em ação, sempre se viu neutralizada, reduzida:
por um gesto que consistia em dar-lhe um centro, em relacioná-la a um ponto de presença, a uma origem fixa. [...]
Mas sobretudo levar o princípio de organização da estrutura a limitar o que poderíamos denominar jogo da
estrutura. É certo que o centro de uma estrutura, orientado e organizado a coerência do sistema, permite o jogo dos
elementos no interior da forma total. E ainda hoje uma estrutura privada de centro representa o próprio impensável.
Contudo, o centro encerra também o jogo que abre e torna possível. Enquanto centro, é o ponto em que a
substituição dos conteúdos, dos elementos, dos termos, já não é possível”.
43
recortada de maneira única pelo próprio pesquisador que executa a análise e que nunca deve ser
posta como definitiva. Portanto, é necessário ressaltar o posicionamento teórico desse trabalho,
uma vez que seria inconsequente aproximar-se de áreas como a Semiologia e utilizar seus
conceitos sem que se tenha a noção do quão arriscadas podem ser suas conclusões quando não
ponderadas com cuidado.
Nesse cenário de síntese dialética entre estruturalismo e pós-estruturalismo, podemos
continuar a série de definições de conceitos semióticos que sustentarão essa pesquisa. O
primeiro conceito essencial, e que servirá de apoio a todos os outros, é um que herda um
entendimento muito próximo do de estrutura: o código.
2.2. O código
Ao falarmos sobre o conceito de linguagem, chegamos ao pressuposto básico de que
toda linguagem é formada por um sistema de signos. No entanto, é essencial entender que a
noção de sistema de signos (assim como a de signo) está baseada num “organizador” que o
compõe: o código.
Segundo Eco (2014), um código é uma regra que associa elementos de um sistema
sintático a elementos de um sistema semântico. Em outras palavras, o código associa
“elementos de um sistema veiculante aos elementos de um sistema veiculado, o primeiro torna
a expressão do segundo, o qual, por seu turno, torna-se o conteúdo do primeiro” (p. 37). É por
isso que a afirmação de Greimas & Courtés (2016) sobre a linguagem ser “biplana” é totalmente
válida: o modo pelo qual ela se manifesta não se confunde com o que se veicula.
Um exemplo pode elucidar melhor essa afirmação. Imaginemos dois caçadores que
estão alojados numa cabine nalgum bosque distante da cidade. Em uma noite, devido à escassez
de alimentos, eles se veem na necessidade de sair para caçar um cervo que possa servir de
alimento. Antes de deixarem a cabine, decidem combinar alguns assovios que os ajudem a
comunicar-se à distância, sem a necessidade de gritos ou quaisquer outras maneiras mais
tumultuosas de comunicação, que possam assustar a presa desejada. Consideremos que os dois
caçadores combinaram três assovios: ||assovio-A||, ||assovio-B|| e ||assovio-C||, que significam,
respectivamente, três instruções: «cervo encontrado», «ajude-me» e «regresso à cabine».
Quando um dos caçadores executa um assovio, o outro caçador não se detém a analisar apenas
o assovio em si, mas leva em consideração o conteúdo atribuído àquele assovio. Essa regra
44
instituída de maneira convencional entre um elemento veiculador (neste caso, o assovio) e um
elemento veiculado (a instrução) é chamada de código.
O termo código, provindo da teoria da informação, pode ser também usado para designar
relações ou regras puramente sintáticas entre termos, isto é, as regras de combinações de signos
entre si, e já não mais a relação que institui o signo propriamente dito. Muitas vezes, essa é a
acepção usada quando falamos, por exemplo, da língua portuguesa como um “código”. É
também nessa acepção que o termo código na dicotomia entre código/mensagem é entendido:
o código é a regra que torna previsível a criação de certas formas de mensagens30, ele diz o que
pode ser combinado para a criação de mensagens dotadas de significado.
Portanto, código pode ser tanto compreendido como a regra relacional entre expressão
e conteúdo, como o sistema geral de combinações de signos (tal qual o estudo dos fonemas
numa língua). Umberto Eco (2014) propõe a distinção entre essas duas compreensões por meio
dos termos código e s-código. Para Eco, os s-códigos são:
SISTEMAS ou ESTRUTURAS que podem muito bem subsistir independentemente
do propósito significativo ou comunicativo que os associa entre si [...]. Eles são
compostos por um conjunto finito de elementos estruturados oposicionalmente e
governados por regras combinatórias mediante as quais podem dar origem a liames
finitos ou infinitos” (p.30).
Assim, fica claro que para Eco os s-códigos são a parte puramente formal, elementos de
um sistema que podem ser utilizados para veicular um outro, exterior àquele. Já “código” é a
regra de correlação entre dados sistemas (s-códigos).31
O código é, portanto, um construto cultural, isto é, instituído mediante convenção
adotada por um grupo, seja por maneiras puramente arbitrárias ou baseado em experiências
prévias assimiladas. Uma relação puramente arbitrária seria o caso do exemplo dos caçadores,
ou o semáforo, já que relaciona determinadas cores a determinados significados (conteúdos).
Um código baseado em experiências prévias é aquele que pode ser visto na sabedoria popular,
principalmente em relação àqueles signos chamados por Peirce de “índices”. Quando se diz,
por exemplo, que “o saleiro entupiu, lá vem chuva”, no momento em que o entupimento do
30 É por isso que Eco (2014; 2016) chama o código como um redutor da entropia na fonte da informação, no
momento em que ele delimita as combinações possíveis que são significantes numa dada linguagem. 31 É interessante notar que essa é uma invenção de Eco, a fim de distinguir entre uma acepção de um termo que
será amplamente utilizado por ele em sua teoria semiótica própria, da acepção corrente na Semiótica sobre o que
é “código”. Segundo Nöth (2005), enquanto a Semiótica tradicionalmente utiliza “código” como o sistema formal
de relações entre signos, Eco cria o termo s-código para essa compreensão e reserva ao termo “código” a regra do
liame entre expressão e conteúdo estabelecida numa cultura.
45
saleiro é capaz de veicular a ocorrência de chuva e, portanto, se estabelece um tipo de regra, é
porque essa relação foi previamente percebida e codificada por um dado grupo.32 Tanto é que,
aquele que desconheça o código do entupimento do saleiro, caso isso seja percebido por esse
sujeito, para ele isso poderia remeter a tantas outras coisas, menos a relação com a ocorrência
de chuva.
É por esse motivo que podemos observar como diferentes culturas individuam certas
cores ou gestos. Enquanto numa cultura, o branco pode ser a cor utilizada por uma noiva numa
cerimônia de casamento, noutra já poderia ser a cor vermelha. Os casos mais notáveis dessa
individuação é o de como cada cultura codifica uma cor como representativa do luto.
No entanto, esses exemplos poderiam levar ao equívoco de considerar o código como
uma regra que relaciona “unidade a unidade” da expressão ao conteúdo, isto é, que essas
unidades são muito bem discerníveis e delimitadas como numa relação ponto a ponto, o que
nem sempre é assim.
Ações e comportamentos inteiros podem ser enquadrados aqui, no momento em que são
compreendidos como culturalmente veículos de um dado conteúdo. Assim, em diferentes
culturas o ato de dormir pode estar individuado de dada maneira, significando, por exemplo,
não só «repouso», mas também uma série de comportamentos típicos do que é entendido pelo
ato de ||dormir||. Pode-se dizer que a Antropologia é a área que, por excelência, descobre esses
códigos nas mais diversas culturas, no momento em que cada grupo de pessoas individua
determinados comportamentos fisiológicos comuns a todo ser humano. Entretanto, as coisas
podem ficar mais complicadas se formos além da particularização do fisiológico, como a forma
de falar ou de usar um dado objeto.
O caso dos objetos é particularmente interessante e, como veremos de maneira mais
detida em outra seção deste trabalho33, mostra como poderíamos falar até de “código do
elevador” ou do “vaso sanitário”, se considerarmos esses objetos como veículos de um
significado em que a função está nele contida, e se caso se desconheça esse código, um sujeito
pode não saber proceder em relação com o objeto, tal como foi “instituído”; noutros casos, um
dado objeto poderia propor uma significação tal qual o sujeito não está habituado ou que é
32 O primeiro sujeito que percebeu essa relação criou aquilo que Eco (2014) chama de “tipo”, isto é, um modelo
abstrato que relaciona um dado significante a um significado. O tipo (type), uma vez individuado, serve como o
identificador de futuras ocorrências (token) similares do mesmo evento ou signo. 33 Cf. II.3
46
totalmente oposta à maneira antes tratada por ele, gerando, portanto, um choque cultural. É
nesse contexto que o estudo de diferentes códigos é pertinente ao designer.
Nesse momento, poder-se-ia cometer um segundo equívoco além daquele de imaginar
o código como uma relação unidade a unidade: que o código é um tipo de dicionário, uma regra
estática.
Os códigos existentes podem, obviamente, serem postos em crise pelos próprios sujeitos
que dele fazem uso. Pode-se alterar um código já estabelecido baseado em novas experiências
ou descobertas ao longo do tempo, um uso num contexto ou numa circunstância específica, ou
mesmo um uso imprevisto pela própria regra no momento de criação estética. O código não é
o fim ou o cárcere de uma linguagem, ele é a base e ponto de partida para todas as possibilidades
inventivas que estão à margem: ao mesmo tempo que é essencial um nível mínimo de
estruturação, uma vez que sem ele, não há significação. O código é um modelo abstrato, como
bem disse Eco (1985, p. 47), um universo que é “estruturável, mas nunca inteiramente
estruturável”.
Assim, toda mudança de código é acompanhada de uma mudança de visão do mundo,
uma vez que ocorre um rearranjo das formas do conteúdo. Em razão do devir do espaço
semântico, Eco (2014, p. 114) diz que todo código na verdade é formado por inúmeros
“subcódigos” entrelaçados, formando um “hipercódigo”. É por isso que decodificar e
interpretar devem ser vistos como dois procedimentos diferentes. Se o código não é uma regra
estática nem liga unidades uma a uma, então utilizamos constantemente apenas porções
pertinentes da regra geral em determinados contextos e circunstâncias. Seguimos um dado
caminho interpretativo, um sentido, que tenta mostrar-se adequado à dada situação em que nos
deparamos com uma mensagem. No entanto, nem sempre temos o conhecimento necessário do
código para a interpretação adequada ocorrer, ou o temos de tal forma que podemos utilizá-lo
de maneira específica numa dada situação antes nunca prevista. Esses dois fenômenos são
denominados por Eco (2014), respectivamente, como hipocodificação e hipercodificação.
A extracodificação (termo dado por Eco para referir-se a ambos os fenômenos
anteriormente citados) é apenas uma das possíveis introduções teóricas que preveem a alteração
do código mediante o uso. É prever que em situações reais, na pragmática, o código não é um
gabarito dogmático e sim apenas ponto de partida.
No entanto, continuar a discussão sobre a modificação e uso dos códigos é insustentável
sem antes definir termos como signo, expressão e conteúdo, denotação e conotação...
47
2.3. Sobre a definição de signo
Se o código é a regra que estabelece a relação entre um elemento de um sistema
veiculador a de um sistema veiculado, podemos falar que a entidade formada por essa relação
é chamada de signo.
Desde a Antiguidade, reflexões sobre o signo já tinham em mente essa dualidade
mínima entre dois planos, que serve para falar de um terceiro elemento: uma expressão que
aparece aos sentidos e o conteúdo que a expressão veicula, o qual gera um pensamento numa
mente qualquer sobre um estado do mundo.
Os Estoicos34 fizeram uma conhecida divisão triádica do signo, que influenciou os
pensadores da linguagem através dos séculos. Num processo sígnico, segundo essa teoria,
podemos encontrar as seguintes entidades: o semaínon, que é a parte física percebida do signo
(o que tínhamos chamado de veiculador ou veiculante), o semainomenon que é o significado
do signo e que não representa a parte física (o veiculado) e o tygchánon que é o objeto ou estado
de mundo ao qual o signo se refere.
Essa tripartição veio a influenciar a conhecida definição de signo dada por Santo
Agostinho (que no texto em questão o autor chama de sinal): “O sinal é, portanto, toda coisa
que, além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento
outra ideia distinta” (AGOSTINHO, 2002, p. 85).
O uso da palavra “sinal” pode causar algumas confusões. Alguns autores, tais como
Umberto Eco (1981; 2014; 2016), influenciados pela teoria da informação, distinguem entre o
conceito de sinal e signo. Para Eco (2014), enquanto o sinal é pura transmissão física que pode
ser quantitativamente computada independente do significado veiculado, o signo é o resultado
da codificação do sinal, ou seja, para um dado fenômeno físico percebido existe uma
significação a ser apreendida. Assim, duas máquinas trocam sinais, porque a resposta de uma
dada máquina ao sinal enviado por outra é medido (e baseado) apenas na quantificação da
transmissão física. O esquema muda se, numa das pontas, colocamos um ser humano e
complica-se ainda mais se tivermos a troca de mensagens entre dois seres humanos.
Nesse quadro, segundo Eco, a troca de sinais entre duas máquinas pode apenas ser
chamada de troca ou transmissão de informação, uma vez que esse processo funciona
34 Sobre a divisão triádica dos estoicos ver Nöth (1995, p. 29) e Eco (1981, p. 23).
48
basicamente uma relação de causa-consequência: a identificação de um sinal físico leva a
máquina a proceder de dada forma, caso não receba, ela não realiza tarefa alguma. Já num
processo comunicacional, um esforço de decodificação entra em jogo: se um ser humano vê
uma máquina transmitir dados sinais e, a partir desses sinais, o sujeito deve proceder de uma
dada maneira, existe aí então uma convenção estabelecida, um código. Nesse caso, Umberto
Eco diz que estamos diante de um processo de comunicação.35
A partir dessa distinção, fica claro que o conceito de signo aproxima-se bastante do de
mensagem. Tanto é que uma mensagem pode ser dita constituída de um único signo (e aí o
próprio signo é uma mensagem, como no caso dos assovios do caçador), mas, também, ela pode
ser formada por um conjunto de signos, num arranjo muito mais complexo (como o são um
discurso, a obra de arte, composições musicais, artefatos de design, entre outros.).
Entretanto, compreender essas mensagens não é tarefa simples sem antes compreender
do que um signo é constituído – o que nos leva de volta àquela tripartição das entidades do
signo anteriormente citadas.
2.3.1. Os diferentes modelos sígnicos
Se, aparentemente, é ponto pacífico a tripartição do signo ao longo do tempo, o mesmo
não pode ser dito a respeito dos nomes dados a cada uma dessas partes.
A partir de estudos da obra de Saussure e Peirce, em 1923, os pesquisadores britânicos
Charles B. Ogden e I.A. Richards propuseram um modelo de tripartição sígnica muito
conhecido e que viria a influenciar tantos outros.
Ogden & Richards (1946) procuravam estudar as conexões entre pensamento e
linguagem partindo do estudo dos signos e como eles funcionam. Para mostrar a confusão da
terminologia (o que contribui para a extrema idiossincrasia da Semiótica), retiramos uma
adaptação do triângulo de Ogden-Richards feita por Eco (1981, p. 25):
35 A apresentação dessa distinção é dada por Eco por meio do famoso exemplo da represa no vale. Esse exemplo
pode ser encontrado tanto em A estrutura ausente (2016) quanto no Tratado geral de semiótica (2014).
49
Diagrama 01: Triângulo de Ogden-Richards e as diferentes nomenclaturas dada a suas partes. Adaptado de Eco
(1981, p.25).
Por vezes, essas distinções são puramente terminológicas, mas há também casos em que
a diferença de termo pode indicar uma profunda diferença de abordagem (como, por exemplo,
colocar a “denotação” como equivalente ao “objeto”).
Pelo discurso que vinha sendo construído aqui, já iniciamos alguns comentários
principalmente sobre o lado esquerdo do triângulo, o qual relaciona expressão e conteúdo. A
respeito desse lado, poderíamos adicionar a esse esquema o termo usado na Semiologia,
provindo da Linguística, para nomear a faceta perceptível do signo: o significante. Diga-se de
passagem que o lado esquerdo do signo é aquele essencialmente levado em consideração pela
Linguística, deixando a verificação do que se diz em relação à realidade como interesse de
estudo de outras ciências. Essa compreensão foi herdada pela Semiologia e podemos vê-la
claramente no pensamento dos autores focados aqui, Barthes e Eco.
Por exemplo, Barthes (2012, p. 51) dirá que um signo é apenas composto pelo
significante e pelo significado. Já Eco (1981) pondera que é trabalho da Semiótica estudar como
a palavra |unicórnio| consegue transmitir seu significado ao ser pronunciada, mas não é trabalho
50
da Semiótica a verificação se de fato existem unicórnios. Essa visão, que distancia a Semiótica
do trabalho de verificações extensionalistas é bastante produtiva do ponto de vista teórico, mas
que leva a profundas reavaliações de fenômenos como os ícones e índices. 36
Nos outros lados do triângulo temos a relação entre significado e objeto, que geralmente
é tida como proveniente da experiência e da observação da realidade, a qual gera uma imagem
mental chamada de significado. Já o elo que liga a faceta visível do signo ao objeto a que ele se
refere é bastante obscuro (por vezes tido como arbitrário e por isso a linha pontilhada) e
inúmeros debates ao longo da história da filosofia da linguagem foram travados a respeito dessa
conexão.
Podemos já adiantar que aí reside um problema epistemológico quando tratamos e
identificamos como signos os artefatos do Design. Se por um lado, é fácil de imaginar o
significado do significante |cadeira|, assim como o objeto real a que podemos reportar esse
significado, a questão fica confusa se tomamos o objeto em si ||cadeira|| como veículo de um
conteúdo. A que significado ||cadeira|| reporta-se? Ora, o significado, sem dúvidas, vai depender
de que cadeira falamos, ao mesmo tempo que poderíamos afirmar certas características comuns
a todas as cadeiras. No entanto e se perguntassem: a que objeto real ||cadeira|| refere-se? Temos
aí uma questão mais difícil de lidar, aparentemente temos um achatamento do triângulo de
Ogden-Richards, pois o objeto ||cadeira|| que é um signo (transmite algum conteúdo) está
coincidindo com aquilo que Ogden-Richards chama de referente.
Para resolvermos essa questão e avançarmos na abordagem semiótica do Design,
devemos nos aprofundar em outros conceitos. Mas antes, retomemos os termos do triângulo
exposto tal como serão tratados aqui:
(i) O significante é aquela faceta material percebida do signo como veículo de
um significado por meio dos sentidos de um sujeito. Portanto, existe uma
diferença, por exemplo, entre o conjunto de sons que formam a palavra |cão|,
analisados por eles mesmos e que é matéria de estudo da Fonética, e aquilo que
é percebido como o veículo do significado «cão», que é propriamente dito o
significante daquele significado por ser considerado parte de um signo.37
36 Como de fato Eco o fez em seus livros; principalmente, em seu Tratado (2014). 37 Em Saussure (1995), o significante é tido totalmente como uma imagem sonora e, portanto, totalmente de ordem
psíquica. Tal noção não é a mais adequada para se levar em consideração na análise de sistemas semiológicos (ou
semióticos). Acreditamos que enquanto é de fato pertinente frisar que a noção de algo como significante de um
signo só se completa por meio de um processo mental, por outro lado e, escapando de cair na armadilha do
mentalismo, é inegável que esse processo só se dá em razão da percepção de uma materialidade real daquilo que
51
(ii) O significado é aquela faceta imaterial de um signo e que está passível de
compreensão mediante o que a cultura de um dado grupo definiu como
pertinente para um determinado significante. Portanto, não é formado de uma
unidade solitária e sua existência é garantida mesmo sem a existência de um
intérprete.38 Enquanto Barthes (2012, p. 55) define o significado como a imagem
psíquica (conceito, na linha saussuriana) de uma coisa, Eco (2014, p. 73) vai
além e afirma que “o significado é uma unidade semântica ‘posta’ num ‘espaço’
preciso dentro de um sistema semântico”.
(iii) O referente (ou objeto real) é aquela entidade pertencente à realidade, podendo
ser uma coisa, um evento ou um estado do mundo que é passível de ser
apreendido por uma linguagem por meio de um processo de abstração. A questão
da abstração do referente já foi tratada quando se mencionou a dicotomia type-
token. Para uma linguagem apreender um objeto e, portanto, poder “falar” sobre
ele, é necessário a identificação de uma série de ocorrências (tokens) no mundo
real que constroem a imagem abstrata de um tipo (type). Assim, o homem
primitivo que viu uma determinada caverna (ocorrência-1) pode depois
encontrar características similares em outros objetos do mundo (ocorrência-n) e
então individuar o tipo geral (type) da caverna, para que toda vez que ao ver
aquele dado objeto real, ele possa reportar ao que é entendido pelo significado
«caverna»39;
(iv) O signo, por fim, é a entidade que envolve esses três relata. No entanto, por
vezes no discurso aqui construído, por simplificação, estar-se-á falando de signo
principalmente em relação ao lado esquerdo do triângulo, postulando que a
correlação significante-significado é governada por um código.
Os conceitos que serão tratados a seguir são um aprofundamento de discussões sobre a
natureza do significante e do significado, proposto por Hjelmslev em sua teoria semiótica.
Tratada apenas na medida em que interessa a esse trabalho, a distinção hjelmsleviana entre
plano de expressão e do conteúdo, bem como suas subdivisões internas, nos ajudará a melhor
virá a tornar-se significante numa mente qualquer. Essa compreensão nos parece útil pois também aproxima-se da
ideia geral peirceana do representamen, e pode até ser explicada de maneira mais clara (mas não menos técnica),
como veremos a seguir, pela diferenciação hjelmsleviana de matéria semioticamente amorfa versus
semioticamente formada. 38 É por isso que Peirce nomeou, em seu próprio triângulo semiótico do signo, como “interpretante” o que acima
colocamos como significado. Segundo Eco (2014, p. 58), “o interpretante é a quilo que assegura a validade do
signo mesmo na ausência de um intérprete”. 39 Exemplo similar ao dado por Eco (2016, p. 189) e melhor reformulado em Eco (2014, p. 17).
52
compreender a dimensão dos problemas relativos ao significante e ao significado dos artefatos
do Design, bem como os fenômenos de denotação e conotação.
2.4. Expressão e conteúdo
Ao que Saussure (1995) chamou de significante e significado, Hjelmslev, em seu ensaio
Prolegômenos a uma teoria da linguagem (2013), rebatizou os dois termos como plano de
expressão e plano de conteúdo. Mais do que incorrer de uma simples mudança terminológica
embaraçosa, essa modificação foi proposta como um meio de aprofundar a teoria do signo
saussuriano.
Conforme Hjelmslev (2013), expressão e conteúdo são dois funtivos de uma função
semiótica, que nada mais é o que institui um signo: aquilo que se veicula não se confunde com
o que é veiculado. Até aqui, presenciamos não mais do que uma nova terminologia para termos
já conhecidos. No entanto, a expressão e o conteúdo que formam, respectivamente, o plano de
expressão e o plano de conteúdo do signo, foram subdivididos por Hjelmslev em dois estratos:
a forma e a substância.
Entre os planos de expressão e de conteúdo, há um homologia interna, isto é, ambos são
igualmente subdivididos nos estratos de forma e conteúdo, mas com estruturas internas
diferentes. Surgem, então, quatro entidades nessa teoria semiótica: a forma da expressão e
forma do conteúdo, substância da expressão e a substância do conteúdo.
Há, no entanto, um outro elemento igualmente comum aos dois planos, mas que está
marginal a eles: aquilo que Hjelmslev denominou de mening, termo do dinamarquês que por
vezes foi traduzido para outras línguas como “sentido”. Como observa Nöth (1996), essa
tradução é passível de gerar muita confusão, em razão dos outros usos desse termo na
Semiótica, que não é nada parecido com o que Hjelmslev tinha em mente.
Eco (2014, p. 42-43) propõe uma desambiguação oportuna ao esclarecer que o termo
“sentido” poderia ser trocado pelo termo “matéria” no texto hjelmsleviano sem muitos
prejuízos. A matéria é, portanto, aquilo que poderia mais aproximar-se do mundo físico-
material, algo que ainda não foi trabalhado por uma linguagem40 e que é chamado, portanto,
de semioticamente amorfo. São exemplos os sons, luzes, papel, tecidos (que estariam
40 Termo que, na terminologia de Hjelmslev, é chamado de semiótica.
53
próximos da matéria da expressão), os pensamentos e acontecimentos psíquicos (que estariam
próximos da matéria do conteúdo); enfim, todo o continuum material.41
A forma da expressão, é aquilo que mais propriamente chamamos de significante. É a
faceta do signo que, juntamente com a substância da expressão, é apreendida pelos sentidos. Já
a forma do conteúdo, trata-se de uma abstração que corta e delimita em partes a matéria
(relacionada ao conteúdo) e a transforma em substância do conteúdo. O famoso diagrama
hjelmsleviano da forma do conteúdo ajuda a entender:
Diagrama 02: Fronteiras entre diferentes nomes para cores dadas pelo português (esq.) e pelo galês (dir.).
Adaptado de Hjelmslev (2013, p. 58).
Nesse esquema, percebemos que a língua portuguesa subdividiu mais o espectro visível
da cor do que a língua galesa. Assim, enquanto para o português existe, por exemplo, uma
divisão entre o que é considerado azul e verde, no galês a mesma palavra denomina o mesmo
fenômeno perceptivo. Por outro lado, o que no português é entendido apenas como cinza, no
galês é dividido em dois termos. Hjelmslev (2013) diz que apenas depois de se ter dividido a
matéria é que as formas do conteúdo são preenchidas pela substância do conteúdo.
A substância do conteúdo é, portanto, nada mais do que as unidades do continuum
material interpretadas. O mesmo vale para a substância da expressão, que é o continuum
material já formalizado.
Essa primazia da forma sobre a substância, típica do posicionamento estruturalista, é
uma inversão da abordagem clássica de que é o reconhecimento da substância que define a
forma. Segundo Nöth:
A visão tradicional da forma como secundária à matéria ou substância é baseada em
uma perspectiva semiogenética: a cognição da substância e matéria do mundo são
ontogenitacamente anteriores à cognição das estruturas semióticas. A visão de
Hjelmslev da primazia da forma sobre a substância parte de um ponto de vista
41 Expressão que é preferida por Eco (2014, p. 42).
54
sincrônico da cognição do mundo. De acordo com essa visão, a nossa estruturação
semiótica ou cultural do mundo determina a nossa cognição das suas substâncias
(1995, p. 63).42
Podemos, então, esquematizar o signo segundo Hjelmslev da seguinte maneira:
Diagrama 03: Esquematização do signo hjelmsleviano. Adaptado de Eco (2014, p. 42).
Segundo essa visão, o signo propriamente dito é a entidade formada pela forma de
expressão e de conteúdo, apontando para duas direções: “‘para o exterior’, na direção da
substância da expressão, ‘para o interior’, na direção da substância do conteúdo”
(HJELMSLEV, 2013, p. 62). Isso quer dizer que a palavra |cadeira| manifesta-se por meio de
uma forma da expressão (o conjunto de sons que a forma) e é particularização de uma dada
substância da expressão (a substância fônica da língua, por sua vez um recorte do continuum
material geral que são os sons). Mas, para a palavra |cadeira| também temos uma forma do
conteúdo, como diria Eco (2014, p. 62), um espaço num sistema semântico, o qual aponta para
aquilo que entendemos do objeto real dado o nome de |cadeira|. Assim, as substâncias da
expressão e do conteúdo, embora já semioticamente formadas, não fazem parte do signo, apenas
são remetidas via suas respectivas formas. Por fim, nas extremidades encontramos o continuum
material semioticamente amorfo.
42 No que diz respeito ao ponto de vista de uma estruturação semiótica ou cultural que é a determinante das
substâncias, é algo que pode ser visto como herdado de Hjelmslev por Eco em sua teoria semiótica delineada no
Tratado geral de semiótica (2014).
55
Feitas essas explicações, há de se perguntar qual é a pertinência dessa complicação do
signo para as linguagens não verbais.
Ora, a passagem da matéria amorfa (a hylé, para os gregos) para a forma é um debate
filosófico bastante antigo, e que foi estudado pela filosofia da linguagem ao longo dos anos em
meio a um emaranhado de acepções para os termos matéria, substância e forma. Matéria e
substância, no debate filosófico clássico, estão muito próximos e, muitas vezes, chegam até a
se confundir. No entanto, como bem afirma Winfried Nöth em citação feita acima, a principal
diferença entre esses conceitos na filosofia antiga e o que Hjelmslev propõe, é a questão da
cognoscibilidade do mundo. Mas, o que realmente interessa do ponto de vista da construção de
uma linguagem, que é o que tentamos aqui nos delimitar, é ver que a matéria amorfa (o
continuum material ou a hylé) é sempre primeiramente cortada e dada a uma forma, que, por
fim, é a dimensão abstrata utilizada por nós, seja lá qual for a natureza dessa linguagem.
Esse discurso, que aqui perigosamente simplificamos, da passagem do amorfo para o
formal, é o que pode ser encontrado em ensaios de Vilém Flusser (2013) sobre a atividade do
designer. Dito isso, poder-se-ia objetar, e com razão, de que a “forma” de que fala Flusser é
diferente daquela de que fala Hjelmslev: de fato, no discurso de Flusser, “forma” está muito
próxima daquilo que Platão entendera como “ideia”; já em Hjelmslev, “forma” é puramente a
abstração necessária, que recorta o continuum material em partes pertinentes, para se tornar
“utilizável” por uma dada linguagem (não tem valor “positivo”, é governada pela oposição
dentro de um sistema). A “forma” de que fala Flusser é de natureza inteligível e permite as
alterações no mundo material. Portanto, ela só pode ser sensatamente comparada com a forma
do conteúdo de Hjelmslev, e não com a forma da expressão, mesmo que ambas (forma de
expressão e forma de conteúdo), sejam ontologicamente abstratas.
Mas ora, “forma” tanto para Flusser e Hjelmslev, não seriam ambas abstrações que
permitem, justamente, o recorte da matéria para sua utilização e, em última instância, é o que
de fato permite a cognoscibilidade de porções da matéria (aqui já entendida da forma mais
elástica possível: a realidade) dentro de uma dada cultura?
A noção de “forma” (no plano inteligível e, portanto, abstrato) como o recorte e
apreensão da matéria nos fará recair, novamente, no conceito de código. Se o exemplo das cores
dado por Hjelmslev é um bom exemplo para ilustrar como diferentes culturas individualizam a
realidade, a ideia geral de que fala Flusser (2013, p. 26), por exemplo, da coisa chamada “mesa”
que também só pode ser entendida dentro de uma dada cultura: o que um dado povo individuou
56
como “mesa” e baseado em que códigos, mesmo que ambas tenham visto, digamos, o mesmo
continuum material que é a realidade e dela construiu algo que se entende por “mesa”.
A ideia geral de Flusser de que o homem modifica a natureza por meio de códigos e
técnicas para dar sentido a ela, não está muito distante, então, da visão semiótica delineada até
aqui, que está baseada puramente no conceito de código como construto cultural, o qual dá
sentido à coisas e eventos do mundo por meio de uma convenção.
O Design, portanto, não se deve ater dogmaticamente nem estritamente aos postulados
de Hjelmslev, mas a suas consequências teóricas. A questão não é simplesmente tomar “mesa”
como um signo dotado de plano de expressão e conteúdo, com suas herméticas subdivisões
internas, tampouco que só se faz design entendendo isso. Deve-se, na verdade, compreender
que só podemos construir um signo se sabemos aquilo que queremos dizer e para quem dizer:
um sujeito pode saber o que quer dizer mas não saber como dizer, por outro lado, é impossível
saber como dizer algo sem nem se saber o que se deseja dizer. Só podemos construir uma
mensagem, um signo, um objeto ou um discurso se já tivermos transformado o que é amorfo
numa forma inteligível.43
Quanto ao plano de expressão, por fim, é mais fácil de entender a sua pertinência ao
trabalho do designer, ao mesmo tempo que logo ficam aparentes suas limitações teóricas.
Considerando a substância da expressão, segundo Hjelmslev (2013), como aquilo que
foi individuado por uma dada cultura, a partir do recorte feito pela forma da expressão no
continuum, a substância da expressão nada mais é do que aqueles materiais que o designer
conhece e tem em mãos para poder produzir seus signo-objetos.44
Enquanto que para o estudo das linguagens verbais a distinção entre forma e substância
de expressão, desde o surgimento da Fonologia (que se opôs a Fonética), já tinha ficado claro
seu impacto e pertinência; para o estudo de outros sistemas semiológicos não verbais, essa
distinção também mostra-se muito importante frisar.
Como afirma Barthes (2012), os sistemas semiológicos não verbais muitas vezes lidam
com signos que trabalham com diversas substâncias em sua constituição. Essas diferenças de
substância podem se alargar por quanto mais dividimos o continuum em diferentes materiais
43 E se tudo isso parece óbvio, na verdade, é assunto imprescindível para entender uma mente que cria, que
individua coisas no continuum que nunca antes foram individuadas. É se baseando nessa abordagem que Eco
(2014) conceituará a produção sígnica de tipo “invenção”. 44 Mas, caso o objeto em questão também lide com signos sonoros (como um celular, por exemplo), esse objeto
em questão também lida com uma substância fônica e não necessariamente o material de que é feito o produto.
57
conhecidos. Assim, em sistemas semiológicos, para evitar uma tautologia e dizer que, os objetos
de uso lidam com uma substância “material” provinda do meio “material”45, é pertinente dizer
que, nesses sistemas, o que é passível de ser chamado de substância da expressão, são os
diferentes materiais conhecidos que são aplicados (e possíveis de dada maneira sabida de o
serem) na construção de um determinado signo-objeto.
Muitas vezes, então, diferentemente da abordagem linguística, é muito difícil de
delimitar a diferença entra forma e substância da expressão em um signo-objeto. Enquanto o
fonema |f| tem uma substância da expressão, que é estudado pela Fonética de uma maneira
desprovida de significado, é impossível em artefatos de design dizer que, embora dada mesa
seja feita de madeira, a madeira em si só ganhe significação por estar presente na mesa (e,
portanto, inserida num dado sistema). Ora, a própria madeira tem significado próprio numa
dada cultura e a forma que irá “adquirir” em qualquer objeto muito mais adiciona uma camada
de significado do que a preenche totalmente.
Poder-se-ia dizer que a madeira pode ser estudada só por ela mesma, seus aspectos
físicos e químicos constitutivos. Mas aí esse seria um estudo, de acordo com a teoria de
Hjelmslev, da matéria amorfa e não uma matéria que foi semioticamente trabalhada, isto é,
usada num sistema de significação (além daquele próprio que simplesmente a nomeou). A
questão é que, diferentemente do som em estado puro que é usado nos fonemas, nenhum
material (usado agora no termo comum) pode ser colocado num sistema semiológico sem se
levar em consideração uma significação anterior a esse próprio sistema em questão.
É claro que poderíamos criar um sistema em que diferentes peças quadradas, totalmente
feitas de diferentes materiais cada, digamos, de plástico, madeira e vidro (com mais nada
inscrito), significariam, respectivamente, «aberto», «fechado» e «volto logo», que seriam
utilizadas por um dono de uma barbearia qualquer numa pequena vila. O barbeiro, obviamente,
se não escreve nada nas placas, ele deve instituir o código e compartilhá-lo por meio da
linguagem verbal, para que mostre que a pertinência das mensagens está na diferença dos
materiais nas placas. Em casos como esse, a pertinência da diferença do material está, de fato,
puramente na diferenciação das mensagens, e o significado de ||madeira|| ou ||vidro|| só é dado
45 É diferente do caso da linguagem verbal em que, claramente, se pode distinguir, sem incorrer a tautologias, que
a língua lida com a substância fônica provinda da materialidade do som, esta que foi delimitada pela forma de
expressão. Nesse caso, não há uma repetição confusa de “matéria” e “material” como ocorre na linguagem não-
verbal.
58
pelo simples fato de o serem desse dado material em oposição aos outros: é a única coisa
relevante para se compreender a mensagem.
SIGNIFICANTES SIGNIFICADOS
Peça de plástico Aberto
Peça de madeira Fechado
Peça de vidro Volto logo
Diagrama 04: Esquematização do exemplo do sistema de signos da barbearia.
Por outro lado, o mesmo não pode ser dito para os artefatos usualmente feitos pelo
designer. Nesse ponto, a teoria semiótica hjelmsleviana paga o preço do seu formalismo, e não
se torna viável para uma aplicação justa ao Design: ao negar que, materiais como a madeira e
o vidro, não têm significados próprios fora de um sistema semiótico de objetos. Pelo contrário:
muitas vezes são escolhidos para o uso num projeto pelo seu significado externo a essa própria
mensagem que está em construção.
Isso quer dizer que, se faço uma cadeira de madeira e outra de ferro, é impossível dizer
que a própria madeira não adicione algum significado à cadeira ou que o ferro também não o
faça, e, portanto é inegável que ambos os materiais tenham valor semiótico nessa mensagem.
59
Fig 1. Apesar das diferenças formais, é inegável que o próprio material de que são feitas essas cadeiras também
não adiciona uma camada de significação. Enquanto a famosa Side Chair (1897) do designer escocês Charles
Mackintosh (1868 – 1928) (esq.), em razão da sua influência do movimento de Arts and Crafts, é uma cadeira
feita puramente de madeira (com exceção ao detalhe do assento em seda), a cadeira de jardim (1825) (dir.) do
designer Karl Schinkel é feita inteiramente de ferro fundido.46
O que acontece, é que o plano de expressão dos signos trabalhados no Design possuem
uma significação, que é anterior ao seu próprio uso em um sistema semiótico criado pelo
Design, isto não quer dizer que os elementos utilizados nesse plano de expressão não estejam
passíveis de sofrerem modificações ou enriquecimentos no momento em que são inseridos em
dado sistema. Mesmo assim, dificilmente algum artefato feito pelo designer seja capaz de
completamente realizar uma neutralização do significante47. Como veremos, podemos falar
46 A imagem da cadeira de Charles Mackintosh está disponível no endereço online do Museu de Arte Moderna
(MoMa): https://www.moma.org/learn/moma_learning/charles-rennie-mackintosh-side-chair-1897 (Acesso em:
12 de abril de 2017). A imagem da cadeira de Karl Schinkel pode ser vista em:
https://www.knoll.com/knollnewsdetail/design-deconstructed-barcelona-chair (Acesso em 12 de abril de 2017). 47 Retiramos essa expressão de Barthes (2009). Em sua análise do sistema da moda, Barthes diz que quando a
revista de moda institui que, por exemplo, o uso de um suéter verde ou azul em dada ocasião “dá no mesmo” ou
que é “permitida ambas as cores”, ocorreu aí uma neutralização dos significantes |verde| e |azul|, que por possuírem
significantes diferentes, poder-se-ia pressupor sua diferença de significado. Fica claro que a análise de Barthes é
extremamente específica e delimita-se às palavras da revista de moda, dificilmente sendo aplicável em situações
60
de níveis de neutralização do significante em objetos de design, mas que a sua total
neutralização é resguardada para casos muito específicos ou situações puramente hipotéticas.48
O que foi dito sobre os materiais, pode ser expandido para todos os outros elementos
que os designers lidam na construção do plano de expressão de um signo. Cores, formas,
imagens: tudo isso possui uma carga semântica, além (leia-se anterior) daquela que será dada
ao entrar num sistema semiótico do design, como o mobiliário, o automobilístico, ou a moda.
Novamente, insistimos: é a noção de código e do designer como aquele que faz um manejo de
diferentes códigos externos, que se mostra a mais formidável dentro desse cenário.
Portanto, fazendo essa breve análise, encontramos aqui um dos limites da teoria
extremamente formalista, que desconsidera aspectos por vezes chamados “extra-semióticos”
ou “além sistema”, evitando lidar com certas questões por motivos de pureza metodológica.
Para uma abordagem semiótica dos objetos de uso como mensagens e de, principalmente, como
são construídas, essa visão precisa ser superada, para a afirmação de uma complexidade própria
desses sistemas semióticos. Afinal, nenhum desses sistemas foram criados de maneira isolada
do mundo, e também, no momento em que foram criados, não permaneceram à margem de
qualquer semantização “mundana”. No continuum material trabalhado pelo designer no plano
de expressão, é muito difícil falar de uma matéria semioticamente amorfa, isto é, que já não
pertença ou tenha pertencido a um outro sistema no decorrer do tempo. Por isso, dizer que seu
uso num novo sistema não venha a influenciar na significação deste, ignorando os usos passados
em outros sistemas, é um pensamento um tanto ingênuo.
Se, por um lado, encontramos essa séria limitação nesse ponto da teoria de Hjelmslev,
por outro, o desenvolvimento de uma abordagem semiótica da denotação e conotação foi muito
frutífero para a análise de diversos sistemas de objetos tidos como linguagem.
2.4.1. Denotação e conotação
Da mesma maneira que pode existir dúvida sobre o aspecto de linguagem nos objetos
em razão de uma visão de superioridade da linguagem verbal, pode-se achar estranho falar de
“denotação” e “conotação” em entidades que não sejam palavras. No entanto, no momento em
práticas, pois, mesmo que a revista tenha dito que o suéter verde e o azul “significam” a mesma coisa, é óbvio que
se podem retirar conotações diversas sobre cada um pelo simples fato de serem de cores diferentes. 48 Tomando o exemplo da barbearia, se, porventura, a placa de vidro que diz «volto logo» quebra-se e o barbeiro
encomenda outra para substituí-la, nesse interim ele substitui a placa de vidro por uma de granito, realizando aí,
nesse sistema, uma neutralização total entre os significantes ||vidro|| e ||granito||.
61
que falamos da possibilidade de linguagem, quando há sistema de signos, e logo, também a
presença de um código, podemos encontrar aí os fenômenos de denotação e conotação.
A denotação de um significante é aquele significado primeiro que um determinado
código institui. No exemplo dos caçadores dado anteriormente, ||assovio-C|| estava para
«retorno» e, portanto, podemos dizer que este é o significado denotado daquele significante.
Entretanto, é possível que essa primeira significação sirva de base para uma segunda
significação, gerando, assim, um significado conotado. No caso dos caçadores, um possível
significado conotado de «retorno» poderia ser «cabine», uma vez que é para lá que eles se
dirigiriam. Mas, também, poderia ser algo próprio fundado a partir da experiência da caça,
quando digamos, após horas sem encontrar nenhuma presa, os caçadores decidissem retornar
para a cabine sem comida, o que «retorno» poderia significar «desistência», «fracasso» ou até
«fome», já que nenhuma caça foi realizada. Todas essas conotações poderiam ser articuladas
ao mesmo tempo ou relacionadas em um sistema opositivo dependendo do repertório codificado
pelo caçador.
Isso quer dizer que a conotação só é possível se baseada numa denotação prévia.
Segundo Eco (2014, p. 46), “o que constitui a conotação enquanto tal é o fato de que ela se
institui parasitariamente à base de um código precedente e não pode ser veiculada antes de o
conteúdo primário ter sido denotado”.
Assim, sob um único significante, adensam-se vários significados. Denotação e
conotação, geralmente, são representadas num conhecido esquema, que aqui ilustramos com o
exemplo dado:
EXPRESSÃO CONTEÚDO
Expressão Conteúdo cabine
assovio-C retorno
Diagrama 05: Conotação.
Barthes (2012), em seus Elementos, explica que todo sistema de significação comporta
um plano de expressão (E) que está em relação (R) a um plano de conteúdo (C), portanto, temos
a fórmula E R C. Quando esse sistema (E R C) está posto como o plano de expressão (E) de um
outro sistema, temos a fórmula (E R C) R C. Barthes acompanha a terminologia de Hjelmslev
(2013), e chama esse tipo de engajamento de sistemas como Semiótica conativa: “um sistema
62
conotado é um sistema cujo plano de expressão é, ele próprio, constituído de um sistema de
significação” (BARTHES, 2012, p. 113).
Diagrama 06: Esquematização da fórmula barthesiana ERC para conotação.
Em razão da simplicidade e também do caráter extremamente específico do exemplo
anteriormente dado dos caçadores, ele é capaz de transmitir que a denotação criaria um tipo de
univocidade do signo, o que seria totalmente enganoso.
Já foi dito aqui que o código não deve ser tomado como algo estático, nem que sempre
relaciona elementos de cada plano do signo “unidade a unidade”. No entanto, o caso da
denotação pode reacender esse debate uma vez que, muitas vezes, o significado denotado de
um signo é tido como o seu significado “real e verdadeiro”.
Essa concepção, provinda muitas vezes de um positivismo, que adentrou-se por muito
tempo na Hermenêutica e na Filologia49, é a busca de uma linguagem “científica” em oposição
a uma que seja capaz de expressar estados emotivos. Como bem disse Barthes (1994, p. 67):
“denotação seria aqui um mito científico: aquele de um estado ‘verdadeiro’ da linguagem,
como se toda frase tivesse dentro de si um étimo (origem e verdade)” 50 (grifo nosso).
Se disséssemos que todo significante teria apenas um significado, aquele que foi
originalmente e primeiramente delimitado pelo código, sem dúvida estaríamos facilitando o
trabalho da Semântica, ao mesmo tempo que uma perigosa redução: essa redução é a exclusão
da Pragmática. Segundo Eco (1981, p. 143), “a semântica em sentido restrito, sem a pragmática,
49 Ou melhor dizendo, a influência do positivismo das ciências exatas nas ciências humanas, como diz Eco (1983,
p. 142): “os resultados do neopositivismo foram fecundos para as ciências exactas, mas enganadores (ou até
perigosos) para as ciências humanas”. 50 No original: “denotation would be here a scientific myth: that of a ‘true’ state of language, as if every sentence
had inside it an etymon (origin and truth)”.
63
mais não é do que uma lexicografia degenerada, para uso dos compiladores de dicionários de
bolso, os quais, para cada significante, têm de registrar a sua denotação mais óbvia”.
É interessante observar que se para a linguagem verbal essa discussão parece bastante
pertinente e evidente, ela também pode ser percebida (mesmo que não aparente à primeira vista)
no discurso sobre os objetos. Como veremos, é pela denotação e conotação que iremos estudar
a dimensão do significado (ou o plano do conteúdo) em artefatos de design. Qual o significado
denotado de |cadeira| ou, sem correr nenhum risco de prejuízos, do objeto-mensagem ||cadeira||?
Não há dúvidas de que essa descrição do significado denotado «cadeira» irá passar pela sua
função. Ora, pode-se até dizer que é o que essencialmente a define, pois é também aquilo que
a fundou enquanto tal, isto é, que levou a sua concepção: sem entender para que serve uma
cadeira, nunca poderíamos dizer que se compreendeu totalmente o significado «cadeira».51
Essa pode ser uma das origens da dificuldade de perceber alguns objetos de uso
cotidiano como comunicadores de algo, para além de sua função: geralmente, eles são tidos
como coisas que, antes de tudo, funcionam e que servem para funcionar e não comunicar.
Uma escova de dentes é vista antes de tudo como algo que serve para escovar os dentes, por
outro lado, no extremo oposto, existem objetos que sem dúvida são feitos essencialmente para
comunicar algo, que se diga até que sua função é “comunicar” (objetos usados em rituais
religiosos, por exemplo). Mas o que dizer daqueles objetos que estão a “meio caminho”? Que
dizer de um trono? Ele serve para sentar mas também serve para significar tantas outras
coisas...52 Ou ainda, o que dizer dos tantos objetos que nos cercam no dia a dia que, muitas
vezes, são ostentações de poder aquisitivo ou falam algo sobre nós que os escolhemos e
compramos, como as roupas?
Tentaremos responder essas questões sobre um ponto de vista semiótico mais à frente,
no momento em que são pertinentes para a caracterização (e compreensão) do signo em
artefatos de design. Entretanto, tais questionamentos desde já precisam ser levantados ao se
discutir o significado denotado de objetos, pois é impossível ignorá-los.
51 É por isso que Barthes (2012, p. 43) diz que “desde que haja sociedade, qualquer uso se converte em signo
desse uso”. 52 O caso do trono é exemplar: é uma cadeira que simboliza tantas outras coisas a tal ponto que “sentar” não é sua
principal função. Talvez seja esse o motivo da língua ter dado um nome totalmente novo ao invés de chamar
simplesmente de “cadeira do líder”, por exemplo.
64
Se falarmos agora de fenômenos de conotação em objetos, isto é, um significado que se
constrói a partir da sua função primária (que é o significado denotado), as coisas poderiam ficar
mais claras, ou até já nos mostrar uma pista para a solução teórica dos problemas propostos.
A conotação, portanto, é capaz de exercer bastante influência no uso de um objeto ou
mesmo, de uma palavra, se voltarmos a falar da linguagem verbal. Ela pode aparentar ser
“natural” ou “original”: a conotação pode ter tanta força devido ao seu uso recorrente que a
denotação pode ser escamoteada.
Qualquer palavra ou objeto, quando parte de uma língua ou da cultura material de dada
sociedade, torna-se permeável ao sentido, àquele aspecto fugidio, que torna impossível a sua
estruturação total da linguagem. Por isso que, mesmo numa conversa corriqueira em que se
possa prevalecer o significado denotado do que é dito, a conotação sempre está presente. Ela é
recurso típico da mensagem estética, da retórica e qualquer outra forma de trabalho da
linguagem. Nessa compreensão, ela também é ideologicamente manipulável e, no momento
em que um determinado significado conotado é trazido à baila por razões ideológicas (muitas
vezes organizadas em eixos axiológicos de «bem» e «mal»), e posto como “natural” ou como
se fosse o significado denotado, temos o que Barthes chamou de mito.
No entanto, que fique claro que Barthes em suas Mitologias (2013) nunca chamou o
mito como simples “conotação” de um discurso denotado (nem usou a expressão denotação),
mesmo que, inegavelmente, o esquema na obra citada mostra a estrutura do mito (p. 205)
idêntica à estrutura de uma Semiótica conativa. O mito, para Barthes, é uma inversão dos
sistemas: a conotação aparece como o primeiro sistema, tenta apresentar-se como “natural”, e
a denotação incorre de ser um simples aditivo da mensagem para o leitor do mito.
Barthes (2013, p. 221) diz que não é que o mito seja um enganador, mas está mais para
um deformador: “o mito nada esconde e também nada ostenta; o mito não é uma mentira nem
uma confissão: é uma inflexão”. Por outro lado, Barthes por vezes dirá que o mito tenta passar
uma imagem de si como inocente, naïf, na expressão francesa. Ele também “rouba uma
linguagem” (p. 223), como ocorre em todo processo de conotação e, portanto, não está
circunscrito à linguagem verbal: mitos também podem ser criados a partir de imagens, gestos e
objetos.
O método pelo qual Barthes abordou os mitos, como os desestruturou, seria igualmente
utilizado em tantos outros trabalhos seus, como o notório artigo Retórica da imagem (1990),
65
em que podemos dizer que Barthes desmitificou o mito da “italianidade”.53 Nesse artigo,
Barthes fala claramente de uma mensagem denotada, que serve de base para a conotada.
Uma frase clara que poderia associar uma vez por todas o mito ao estudo da denotação
e conotação viria muito depois, quinze anos depois de Mitologias (2013) ser publicado. No
artigo Change object itself: mythology today (1977, p. 165-169), Barthes reavalia o mito e o
modo como a Semiologia deve abordá-lo. Já nas últimas linhas, Barthes diz que: “não é mais
tão simples inverter (ou endireitar) a mensagem mitológica, fazê-la erguer-se sob seus pés, com
a denotação na base e a conotação no topo, natureza na superfície e interesse de classe no fundo”
(BARTHES, 1977, p. 169) 54
É interessante observar que esse amadurecimento de ideias levou Barthes a, igualmente,
duvidar da naturalidade e inocência da própria denotação, afirmando que:
A denotação não é o primeiro significado, mas finge sê-lo, sob esta ilusão, é, em
última instância, não mais do que a última das conotações (aquele que parece tanto
estabelecer quanto fechar a leitura), o mito superior pelo qual o texto finge retornar à
natureza da linguagem, à linguagem como natureza. (BARTHES, 2002, p. 9)55
Assim, fica claro a crescente desconfiança de Barthes em relação ao uso do significado
denotado, sendo ele mesmo, passível de verificação. Mas, como esse tipo de análise é feita?
Se na conotação observa-se que um plano de expressão em relação com um plano de
conteúdo torna-se mero plano de expressão de um outro conteúdo veiculado, na chamada
metalinguagem nós temos a situação inversa:
EXPRESSÃO CONTEÚDO
Expressão Conteúdo
Diagrama 07: Metalinguagem.
Quando um signo (relação E R C) é utilizado como conteúdo (C) de um outro signo (E
R C), ou de maneira mais simples, quando um signo fala de outro signo, nós temos uma
53 Esses neologismos seriam muito comuns na análise barthesiana dos mitos. 54 No original: “no longer simply to upend (or right) the mythical message, to stand it back on its feet, with
denotation at the bottom and connotation at the top, nature on the surface and class interest deep down”. 55 No original: “denotation is not the first meaning, but pretends to be so, under this illusion, it is ultimately no
more than the last of the connotations (the one which seems both to establish and to close the reading), the superior
myth by which the text pretends to return to the nature of language, to language as nature”.
66
metalinguagem escrita pela relação E R (E R C). Portanto, a metalinguagem é o típico
procedimento da linguagem científica, que explica termos por meio de outros termos: ela elege
uma linguagem-objeto para “se falar sobre”, por meio de uma metalinguagem. Esta
monografia, por exemplo, é uma metalinguagem, uma vez que explicamos continuamente uma
série de termos, e os artifícios gráficos, tais como as barras | |, nada mais são do que justamente
auxiliadores visuais para demonstrar que estamos falando dos signos que as palavras
representam e, não, simplesmente o significado delas no encadeamento deste texto.
Diagrama 08: Esquematização da fórmula barthesiana ERC para metalinguagem.
Desestruturar (ou desmitificar) as conotações sempre será um exercício metalinguístico.
No entanto, expor os significados denotados e conotados é, ao mesmo tempo, estabelecer uma
relação que pode ser cristalizada e incorporada aos significados revelados. Dessa maneira, as
próprias metalinguagens devem ser continuamente postas em questão e é nessa dialética que
tipicamente as Ciências Humanas avançam: questionamento de proposições teóricas sobre
fenômenos observados.
Como foi mencionado acima, uma reflexão sobre a formação de significados primeiros
(denotados) e segundos (conotados) nos será bastante útil para a análise de artefatos do design
enquanto mensagens. Entretanto, saber que existe tal estrutura dos sistemas de significação por
si só não é o bastante, pois não podemos reduzir a análise semântica de um artefato (ou do
código) a um gabarito previsto num dicionário. As denotações e, principalmente, as conotações
são estabelecidas mediante contextos, formando o que Eco (1981; 2014; 2016) chama de
“unidade cultural” e, de acordo com o autor, a “leitura” de uma unidade cultural permite
diferentes caminhos, diferentes sentidos.
67
A possibilidade de considerar um artefato, ele mesmo, como uma unidade cultural é
fator essencial para o presente estudo sobre a produção sígnica em Design e é por isso que o
próximo item irá introduzir esses termos no que diz respeito à Semiótica.
2.5. Unidade cultural, sentido e contexto
A unidade cultural é um conceito bastante usado por Umberto Eco (1981; 2014; 2016)
em sua teoria semiótica e, de certo modo, é um aprofundamento teórico feito por ele daquilo
que Hjelmslev entendia por “forma do conteúdo”.
Partindo da ideia de que a forma do conteúdo é aquela segmentação feita por uma cultura
daquilo que é apreendido da realidade, formando, assim, os significados (a substância em si),
Eco (2014) irá “liberar” a denotação de relações com o referente, pois, para ele, “toda tentativa
de estabelecer o referente de um signo nos leva a defini-lo em termos de uma entidade abstrata
que representa uma convenção cultural” (p. 56) e, portanto, “o significado de um termo (isto é,
o objeto que o termo ‘denota’) é uma UNIDADE CULTURAL” (p. 56).
A partir dessa compreensão, as unidades culturais são um postulado teórico que elimina
problemas de semântica extensional da teoria semiótica de Eco. A semântica extensional lida
com a verificação de proposições e suas correspondências a estados do mundo e, logo, podem
ser Falsas ou Verdadeiras. Verificar se o enunciado |isto é um gato| é Verdadeiro ou Falso (se
a coisa referida nesta situação é um gato ou não), é dito como um problema “extensional”.
Umberto Eco, por meio do conceito de unidade cultural, nega que a denotação tenha
qualquer coisa haver com o ato de referência: saber se a coisa indicada é ou não um gato, é um
ato de verificação se o objeto percebido ||gato|| pode ser atribuído ou não ao significado «gato»,
tal como ele é entendido em dada cultura.
Então, sobre a unidade cultural, Eco postula que:
Em qualquer cultura, uma unidade cultural é simplesmente algo que aquela cultura
definiu como unidade distinta, diversa de outras, podendo ser assim uma pessoa, uma
localidade geográfica, uma coisa, um sentimento, uma esperança, uma ideia, uma
alucinação. (2014, p. 56-57)
É por isso que, para Eco (2014), a Semiótica estuda tudo aquilo que possa ser usado
para mentir. Se não podemos de algum modo comunicar uma mentira, então não podemos
comunicar também nenhuma verdade e, no fim, não podemos comunicar nada. O que pode
parecer uma afirmação boba, nada mais é do que a síntese de uma Semiótica que de fato se livra
68
da responsabilidade de verificar estados do mundo: independente de algo ser dito e esse algo
condizer com a realidade, o simples fato de ter sido possível comunicar algo é o que é
semioticamente relevante.
Seguindo esse raciocínio, Eco (2014) fala então de duas falácias que podem perturbar
sua teoria semiótica: a falácia referencial e a falácia extensional. A primeira supõe que um
sistema semiótico só funcione se o que é comunicado seja de fato condizente com um estado
do mundo. No exemplo dos caçadores, o código instituído dizia que o ||assovio-A|| deveria ser
executado para comunicar que um cervo foi encontrado, isto é, o significado que condensamos
como «cervo encontrado». Um dos caçadores poderia executar o citado assovio, mas quando o
outro caçador chegasse ao local e não encontrasse nenhum cervo, sem dúvidas, teríamos aí o
que equivaleria a uma proposição falsa, uma mentira. No entanto, isso não muda o fato de que
ocorreu um processo de significação e, logo, de comunicação: o funcionamento semiótico desse
sistema independe dos fatos de mundo.
A falácia extensional, por sua vez, é o que mais propriamente estávamos falando: o
significado de um significante não depende do seu referente. Assim, o significado denotado
não deve ser entendido como algo que aponta, necessariamente, para aquele referente que
poderia ser dito seu “exemplo” (ou seja, um token, uma ocorrência), mas a uma unidade
cultural.
A unidade cultural está posta, portanto, como uma grande “forma do conteúdo” de uma
cultura: tudo aquilo que ela repartiu e individuou semanticamente, e é por isso que Eco (1981;
2014) também a chama de unidade semântica. Segundo Eco (1981, p. 159) “o sistema das
unidades semânticas representa o modo como uma certa cultura segmenta o universo
perceptível e pensável e constitui a Forma do Conteúdo”.
No entanto, é possível que dentro de uma mesma cultura existam diferentes níveis de
segmentação do campo semântico56: um pintor saberá distinguir muito mais matizes de cores
do que um sujeito qualquer, da mesma forma que um zoólogo sabe de muito mais características
científicas (e logo, significados denotados) de um rato do que um sujeito qualquer, ou mesmo,
o conhecimento que um designer tem das mais diversas propriedades sobre um material comum,
como o plástico.
56 Eco (1981;2014) tanto utiliza a expressão “campo semântico” como “sistema semântico” para se referir ao
conjunto de unidades culturais de uma dada cultura.
69
Dentro de uma mesma cultura, a segmentação interna do campo semântico entre
diferentes sujeitos pode ser explicada, segundo Eco (2014), em razão das necessidades
circunstanciais, por exemplo, relativas ao trabalho desempenhado por dado sujeito que requer
que ele possa determinar quantas unidades culturais forem possíveis para um dado significante
a fim de melhor compreendê-lo. Por outro lado, a situação é mais complexa se analisamos e
tentamos explicar como e por que certas culturas ora segmentam de maneira tão similar a
realidade, outras de maneira tão distinta.
Umberto Eco (2014, p. 68) se posiciona dizendo que ao invés de delegar esses problemas
como “extra-semióticos”, tal discussão estaria mais próxima de uma verificação do nível de
analiticidade que diferentes sociedades põem suas unidades culturais e como as interpreta. Eco
exclui, portanto, a consideração de condições materiais como determinantes e acha mais sensato
afirmar que “existe uma relação muito estreita, e em muitas direções, entre a visão do mundo,
o modo pelo qual uma cultura pertinentiza suas próprias unidades semânticas e o sistema dos
significantes que as nomeiam e interpretam” (p. 69).
Esse posicionamento distancia-se de uma psicologia da percepção e da indagação de se
existem formas universais de percepção dos fenômenos e até que ponto fatores externos a
influenciam. Mais do que levar a um debate do problema dos universais (nominalismo,
realismo, conceitualismo), o que está em discussão é como o significado é construído a partir
da percepção do mundo.
Se por um momento afirmamos um universalismo do modo perceptivo do ser humano,
seria acenar para um acordo com teorias hoje amplamente desenvolvidas, por exemplo, da
psicologia das cores: haveriam efeitos que as cores percebidas causam independente dos
significados dados a elas por uma dada cultura? Até que ponto dizer que o amarelo é energético
e o azul passa calma seria algo a ser levado em conta semioticamente?
Alguns autores (FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006) tentam realizar um equilíbrio entre
as duas visões, afirmando que “mesmo que haja uma parte instintiva na reação à cor, é
indiscutível que o homem vai acumulando em sua memória experiências que o definem e o
fazem agir de determinadas maneiras no decorrer de sua vida” (p. 94), no entanto, de toda
maneira o problema continua posto ao afirmar que existe uma parte “instintiva na reação à cor”.
No Tratado geral de semiótica (2014), Eco prefere, por exemplo, dar o benefício da
dúvida ao eventual intérprete de um quadro de Kandinsky, pois mesmo que o pintor tenha usado
o amarelo puro para atingir determinado efeito em quem observasse seu quadro (e Kandinsky
70
foi conhecido por suas teorizações dos efeitos não só da cor como também de formas), saber se
tal efeito causado foi de fato realizado não é totalmente previsível.
Na verdade, nesse caso, se o pintor usou determinada cor esperando um tipo de efeito
fisiológico, que adicionasse algo à mensagem construída, no momento em que o intérprete,
porventura, não afirme que de fato “sentiu isso” ou, mais confusamente, não “interpretou” a
sensação em seu corpo. Mesmo que, um conjunto de fios ligados ao cérebro desse intérprete
afirme que ele de fato teve a resposta fisiológica esperada. O que importa, ao menos
semioticamente falando, é que tal sujeito não associou essa impressão ao conteúdo geral da
mensagem veiculada, ou mesmo nem chegou a codificar tal estímulo como pertinente à
mensagem.
É por esse motivo que Eco (2014) falará que esses signos, produzidos por alguém que
tem determinada intenção estimulante, mas que a verificação do estímulo em si como algo
interpretado em conexão com a mensagem não é nada previsível, são de um tipo de produção
chamada de “estímulos programados” (p. 207). Segundo o autor, o falante tem dúvida se
determinada expressão deve ser tida como artifício semiótico, isto é, que está ligada a um plano
de conteúdo definido e, portanto, tentará a todo momento realizar o trabalho interpretativo de
instituição de um código: identificar a regra que liga o dado plano de expressão a um plano de
conteúdo.
A discussão do estabelecimento da unidade cultural, portanto, é mais sensata
restringindo-se, como foi proposto, apenas ao que é culturalmente instituído como significado
de um significante e que o número de unidades culturais dadas a determinado significante é
variável conforme necessidades circunstanciais em que se encontra um sujeito – ao menos no
que diz respeito à Semiótica. A unidade cultural é, assim, o significado primeiro de um
significante em uma cultura, instituído por um código e que sua multiplicação é variada e
discutida, juntamente com o próprio código: a modificação em qualquer medida de uma unidade
cultural ou a segmentação do campo semântico em mais unidades culturais, é também uma
modificação do código instituído.
Fica mais claro, então, a definição anteriormente dada de significado, da maneira como
está sendo usada aqui, proposta por Eco (2014, p. 73) que diz que “o significado é uma unidade
semântica ‘posta’ num ‘espaço’ preciso dentro de um sistema semântico”.
71
Até agora, falamos da unidade cultural no que tange o significado denotado de um
significante. Mas o que dizer daqueles significados que se constroem a partir do denotado, ou
seja, as conotações?
Embora esse questionamento já nos aproxime de questões que nos desviam do objetivo
geral desta monografia, pois levam a uma análise componencial semântica, é importante
demonstrar a esquematização da unidade cultural com suas marcas denotativas e conotativas.
Afinal, ela irá nos ajudar na própria esquematização de um modelo de produção de sentido nos
artefatos de Design.
Para Eco (2014, p. 74), marcas denotativas são aquelas que compõem o significado que
correspondem “em primeira instância” à unidade cultural, e no qual estão construídas as
sucessivas conotações. Logo, as marcas conotativas são aquelas que constituem os significados
conotados. O conjunto dessas marcas em relação a uma unidade cultural formam o semema
desta.
O semema é a “árvore hierárquica dos interpretantes possíveis da unidade cultural”
(ECO, 1981, p. 166). A utilização do termo peirceano “interpretante” por Eco, ao invés de
“significado”, não é por acaso. Eco (2014) irá encaixar a teoria da semiose ilimitada peirceana57
em sua noção de campo semântico: toda unidade cultural pode ser “explicada” em outras
unidades culturais, isto é, em outros significados. Essa propriedade de recursividade dos
significados em uma linguagem é aquilo mesmo que permite o processo de semiose acontecer.58
Já a noção de “árvore hierárquica” nada mais aponta para o fato de que os significados
denotados são a base de construção para significados segundos, as conotações, o que não
implica, em termos práticos, que a denotação seja o sema (o significado que compõe o semema)
que é recorrentemente usado em dada linguagem verbal ou não verbal.59
57 Por sinal, uma apropriação do termo peirceano feita por Eco (2014), criticada por Santaella (2013). 58 É essa noção também que mostra que toda tentativa de apreender os significados de uma linguagem num
esquema estático está fadada ao fracasso. Essa indefinível tradução de signos em signos, esse infinito “adiamento”
que faz o sentido fluir (e fugir) aproxima-se da definição de différance de Jacques Derrida (1973), a qual pode ser
uma indicação de influência do pensamento de Peirce na obra de Derrida. 59 Aqui nos vemos afetados, novamente, pela confusa idiossincrasia variável da Semiótica. Termos como semema,
sema e lexema são amplamente utilizados pela Semiótica na teoria da significação, a qual tem A.J. Greimas como
um dos seus principais nomes. O próprio Greimas utilizou esses termos, os quais Eco também fez uso, no entanto,
há diferenças entre eles, que para evitar confusões, tentamos aqui esclarecê-los. Enquanto ambos os autores
concordam com a designação de sema como unidade mínima da significação, lexema, para Greimas (2016), é, em
seu estado virtual, o conjunto de percursos discursivos possíveis de uma palavra, o que para Eco (1981; 2014),
equivaleria ao semema. Já para Greimas (2016), o semema é um dos conjuntos de semas possíveis dentre tantos
outros virtualmente presentes no lexema (tal como ele o entende): é apenas uma das acepções. Portanto, o semema,
em Greimas, é a combinação de um núcleo sêmico com semas contextuais (RECTOR, 1978).
72
A esquematização simplificada do semema é feita por Eco (1981) da seguinte maneira:
Diagrama 09: Esquematização do semema. Adaptado de Eco (1981, p. 166).
Neste esquema, na ponta esquerda, temos um significante qualquer |s| que veicula um
significado denotado total composto pelo significado dos semas «α 2» e « β 2», a partir dos
quais semas segundos são associados a eles, formando os significados conotados. 60
O significante |cadeira|, por exemplo, teria em seu semema, no âmbito das denotações,
semas como «inanimado», «espaldar» e «assento». As conotações variam de acordo com as
situações, mas há também aquelas que em razão do uso constante ganham força e agem como
se fossem significados primeiros: a partir do sema «assento», se tem a ideia de que |cadeira| é
algo que pode ser ocupado e, portanto, é uma palavra por vezes utilizada para referir-se a cargos
e postos titulares de membros de alguma corporação (o parlamento, academias etc.). Nesses
casos, encontramos semas como «prestígio», «autoridade» e «mérito», sobrepostos ao
significado denotado.
Essa segunda acepção é chamada, usualmente, de “sentido figurado” o que nada mais é
do que o significado conotado, pois não se refere ao que é dito “literal” daquilo que o
significante veicula, ou seja, aquilo que o código instituído primeiro lhe atribui como
significado.
60 Este é um esquema muito elementar de representação do semema, Eco viria a propor um muito mais complexo
(além de uma proposta de esquema para análise componencial semântica) em seu Tratado Geral de Semiótica
(2014, p. 94 - 110).
73
Percebemos então que o significado denotado é composto, por mais das vezes, de
propriedades e é a partir delas que as definições científicas são construídas. A atribuição dessas
propriedades está sujeita, naturalmente, à modificações ao longo do tempo, principalmente no
que diz respeito ao avanço dos meios da própria ciência em observar a realidade. Eco (2014)
irá propor, portanto, o semema como uma enciclopédia e não como simples dicionário. O termo
enciclopédia, diferentemente do dicionário, trata dos saberes humanos acumulados e é capaz de
mostrar objetos diferentes contextos (passados e atuais) de aplicação do termo em questão.61
As conotações, por sua vez, estão sujeitas a uma variabilidade diretamente proporcional
à das denotações: se comparadas com o ritmo que as denotações mudam, os significados
conotados são muito mais suscetíveis de uma volatilidade não só ao longo do tempo, mas de
aplicação em contextos e circunstâncias próprias, constantemente enriquecendo o código
estabelecido.62
A escolha de uso e compreensão de um determinado significado em detrimento de
outros, é chamado de sentido. O sentido, e aqui a língua portuguesa permite uma frutífera
ambiguidade, é escolha de um caminho interpretativo de um significante dentro de um semema
(ECO, 1981; 2014).
A escolha desse caminho-acepção depende de um contexto e/ou circunstância
específica. Eco, em seu Tratado (2014), explica rapidamente a distinção entre esses dois
termos. Enquanto o primeiro está associado a sua acepção comum, de referência a um dado
espaço num dado momento onde um código está estabelecido culturalmente, o segundo diz
respeito às situações específicas que podem ocorrer dentro desse contexto. As circunstâncias,
portanto, estão associadas ao encontro de um objeto ou presença/realização de um evento que
pede uma determinada leitura do semema de um significante (muitas vezes, um desvio do
61 Por esse motivo Eco (2014, p. 74) dirá que: “(a) uma denotação é uma unidade cultural ou propriedade semântica
de um dado semema que é ao mesmo tempo uma propriedade culturalmente reconhecida do seu possível referente;
(b) uma conotação é uma unidade cultural e propriedade semântica de um dado semema, veiculada pela denotação
precedente, e não necessariamente correspondente a uma propriedade culturalmente reconhecida do seu possível
referente”. 62 Por outro lado, se pusermos as alterações dos significados (denotados e conotados) em comparação com a dos
significantes ao longo do tempo, veremos que é muito mais custosa e lenta as mudanças de um significante sem
alteração precedente do campo semântico a ele correspondente: pelo contrário, é muito mais comum o
empilhamento de significados conotados em cima de um mesmo significante. No entanto, ao menos no caso da
língua, um significante pode carregar significados conotados tão distintos que seu uso se mostra inconveniente em
certas ocasiões: é nesse ponto que neologismos entram, assim como questões de eufemismo e “politicamente
correto”. Quando o setor de vendas automobilístico cria uma nova “categoria” para carros chamada de
“seminovos” como intermediária a “usados”, nada mais faz do que uma escolha de significantes baseada em
significados conotados, em que um possui uma carga semântica negativa menor do que o outro. Entretanto, no
fim, ambos partem de uma mesma denotação básica que poderíamos dizer que trata-se do sema «-intacto» (já
tiveram um dono anterior).
74
sentido convencional) (p. 95). Dentro de um dado contexto, podem existir n circunstâncias; do
mesmo modo que uma dada circunstância é capaz de ocorrer em n contextos: numa teoria dos
códigos, um termo é indissociável do outro.
No caso da linguagem verbal, isso será facilmente identificado nas mais diversas
situações em que encontram-se os falantes. Já em sistemas de linguagem não verbal, não só a
situação é determinante (tanto para a produção quanto recepção das mensagens), mas a própria
forma de apresentação do significante e sua força para apontar para significados conotados ao
invés do simples denotado.
É verdade que áreas como a Paralinguística estudam, no uso da linguagem verbal, os
diferentes tons de se dizer uma palavra que influenciam no modo como ela será interpretada. E
mesmo que se fosse possível considerar uma palavra abstraída de sua entonação feita por um
emitente, ela ainda teria grande potencial comunicativo de significados conotados.
Entretanto, para as linguagens não verbais como artefatos e imagens, a forma de
expressão é muitas vezes tida como “natural” (apontando, assim, para o significado denotado)
e a não ser que a forma de expressão esteja organizada de tal maneira muitas vezes excêntrica,
é que os significados conotados de objetos de uso serão imediatamente privilegiados no
processo interpretativo acima dos denotados – como por exemplo, no famoso saleiro do escultor
italiano Benvenuto Cellini (1500 – 1571).
75
Fig 2: Cellini, Salineira, (1543), 26 cm x 33.5 cm. Kunthistorisches Museum, Vienna63
Essa discussão deságua, mais uma vez, na consideração ingênua de objetos de uso como
simples realizadores de funções e não como mensagens. A abrangência do conceito de unidade
cultural postulado por Eco, é um importante artifício teórico para a superação dessa visão, uma
vez que qualquer significante, no momento em que está inserido no seio de uma cultura, é
veículo de significados denotados e conotados. Entender que a unidade cultural carrega o
semema de um significante organizado de maneira hierárquica nos será bastante útil para
entender características próprias da linguagem do Design.
Mas não é só isso. A segmentação interna da unidade cultural e sua variação dentro de
uma mesma sociedade, faz-nos refletir sobre a possibilidade de um léxico dentro da área do
Design (assim como o biólogo o tem, o artista, o geógrafo etc.), que incidiria diretamente na
relação que o designer estabelece entre significantes e significados denotados dos artefatos:
63 Fotografia aqui apresentada está disponível em: https://goo.gl/5wNJ4n.
76
entender que determinado artefato foi concebido para tal função ou que é compreendido de dada
maneira num contexto, é competência da atividade do designer.64
Mesmo que essa seção possa ter parecido extremamente marginal ao objetivo geral aqui
proposto, ela é importante para acertar o uso de determinadas expressões que vinham sendo
utilizadas de maneira deliberada, como sentido e contexto. Se a análise do campo semântico
por si só, isto é, das relações das unidades culturais entre si, foge dos objetivos anteriormente
traçados, por outro lado, o estudo da relação dos signos entre si, de maneira sistêmica, é assunto
imprescindível.
2.6. Sistema de signos
Anteriormente, no início deste trabalho, estabeleceu-se o pressuposto básico da
linguagem como um sistema de signos. Até agora, não nos aprofundamos em nenhum aspecto
de como um conjunto de signos formam um sistema, ou que tipo de relações os signos
estabelecem entre si dentro de um sistema, para, assim, formar uma linguagem.
No entanto, dissemos que toda linguagem também possui uma outra característica
básica: a presença de um eixo de seleção e combinação. Saussure (1995) nomeou esses eixos,
respectivamente, como o eixo paradigmático e o sintagmático, terminologias que aqui
intercambiaremos sem prejuízos.
O estudo das relações internas entre os signos em cada um desses eixos foi amplamente
realizado na linguagem verbal, o que a Semiologia, timidamente, herdou em alguns aspectos.
Entretanto, enquanto, na linguagem verbal, diferentes linhas de pensamento viriam a concordar
com certas classificações de relações (embora muitas vezes difiram na terminologia usada)65, a
Semiologia só conseguiu aproveitar esse conhecimento de maneira muito forçosa.
Nesse ponto, as críticas à Semiologia ou a uma Semiótica demasiadamente inspirada no
modelo linguístico se fazem justas: a ilusão (ou pretensão) de imaginar que, necessariamente,
todos sistemas semiológicos devem ser analisados em analogia à língua, mostra uma
subestimação da variedade e riqueza própria desses sistemas.66
64 Retomamos essa discussão mais adiante neste trabalho. Cf. p. 102. 65 Segundo Barthes (2012, p. 76): “as relações sintagmáticas são relações em Hjelmslev, contiguidades em
Jakobson, contrastes em Martinet; as relações sistemáticas são correlações em Hjelmslev, similaridades em
Jakobson, oposições em Martinet”. 66 Isso pode ser verificado nos Elementos (2012) de Barthes, em que ele enumera alguns tipos de relações
opositivas internas do eixo paradigmático e que todos os exemplos dados são baseados na linguagem verbal.
77
Não nos incumbiremos de fazer uma verificação sobre quais sistemas essa adaptação
daria certo e em quais não, e, portanto, nesse trabalho, não nos aprofundaremos nos diversos
tipos de relações internas aos eixos sintagmáticos e paradigmáticos. Por outro lado, existem
certas características fundamentais intrínsecas a essas relações que merecem ser citadas,
visando o objetivo deste trabalho de estudo da linguagem do Design na produção de mensagens.
Portanto, antes de entrarmos propriamente na abordagem semiótica do Design, vejamos
o que esses conceitos têm a oferecer de pertinente para esta pesquisa.
2.6.1. Sintagma e paradigma
O eixo sintagmático, segundo Saussure (1995, p. 143), aparece in praesentia, isto é, dois
ou mais signos estão igualmente presentes numa série efetiva. É por isso que esse eixo também
é chamado de eixo de combinação, pois estabelece relações entre signos formando um tipo de
cadeia, chamada de sintagma.
A característica típica do eixo de combinação é que elementos menores organizam-se
em elementos maiores e mais complexos, formando, por fim, todo o encadeamento de uma
mensagem. Por esse motivo, diz-se que existem relações sintagmáticas tanto entre signos, como
internamente ao signos, que seria, por exemplo, o que Morris (1976) chamava de dimensão
sintática.
É verdade que existe uma estreita relação entre sintaxe e a formulação dos sintagmas,
afinal, no que diz respeito à linguagem verbal, a sintaxe é aquela parte da gramática que estuda
as relações de concordância, hierarquia e ordem dentro de uma frase. No entanto, não se deve
confundir os dois: a sintaxe não é mais do que uma parte do estudo do eixo sintagmático. Ela
é, como diz Barthes (2012, p. 86-87), o vigia da liberdade combinatória de um falante.
Nesse ponto, fica claro que essa ordem que delimita a possibilidade combinatória de
signos (e, no caso da língua, das unidades de articulação) está intimamente relacionada com a
noção de código (na acepção clássica dentro da Semiótica).67
Mesmo que, nesse livro, o próprio Barthes pondere sobre as consequências teóricas do binarismo em sistemas
semiológicos, propondo uma solução intermediária (pois ele não o nega completamente em alguns casos), que ele
utilizará em Sistema da Moda (2009). 67 Esse código de relação entre signos de um dado sistema, é o que Eco (2014; 2016) chamou de s-código. Como
já foi mencionado, esse termo foi criado por Eco para abranger as relações de signos entre si (que é a acepção
comum de código em Semiótica e é a que está sendo usada nesta seção), enquanto a noção de código (sem s-)
fundamenta, para esse autor, apenas a relação significado-significante.
78
Na linguagem verbal existe claramente uma série de diretrizes combinatórias dos
elementos de uma palavra ou frase provindas do código da língua. Noutros sistemas
semiológicos, que não possuem uma instituição de código assim formulada, como as relações
sintagmáticas ocorrem?
Primeiro, deve ficar claro que se as mensagens verbais, como um enunciado ou uma
frase, são tidos como sintagmas, por serem decomponíveis em partes menores as quais
estabelecem uma relação entre si, o mesmo pode ser dito dos objetos. No entanto, evitamos
entrar, nesse momento, em uma discussão sobre a articulação da linguagem em sistemas de
objetos. Embora não delimitando elementos de articulação dessa linguagem (que muito
provavelmente, na discussão sobre articulações, é mais seguro falar de várias linguagens), é
certo que podemos considerar que todo signo-objeto, considerado enquanto mensagem, é um
sintagma constituído.
Se considerarmos, por exemplo, uma cadeira e as partes que a compõe, o que impede
que uma dada cadeira tenha três ou cinco pés com rodinhas ao invés de quatro? Obviamente,
não existe uma instituição nesse caso: pelo contrário, muitas vezes esses são pontos passíveis
de alteração em que encontramos não apenas variações formais dos artefatos, mas a própria
inventividade. Noutros casos, poderíamos, ainda, dizer que não são escolhas baseadas na
estética, mas seguem necessidades delimitadas pelas circunstâncias.
Os objetos ainda poderiam ser analisados em suas relações entre si e que formam, num
todo, uma mensagem. É o caso da moda, tal como foi estudada por Barthes (2009). Para o autor,
o que podemos ali chamar de um sintagma é o conjunto de peças do vestuário usadas por um
sujeito, e ele é decomponível, justamente, nessas mesmas peças de roupa.
Em casos como esse, da combinação de peças de roupas ou de um conjunto de móveis
numa sala, Barthes (2012, p. 84) dirá que o semiólogo depende de certas “instituições
mediadoras” ou “metalinguagens”, capazes de mostrar como as partes significantes se
concatenam. Como será posteriormente exposto, nas seções adiante, em que discutiremos
especificamente as questões dos eixos de combinação e seleção aplicados na linguagem do
Design, essa compreensão tem limitações preocupantes.
79
Já no eixo da seleção, isto é, o eixo paradigmático68, as coisas se mostram mais simples
tanto na linguagem verbal quanto na não verbal.
A noção de eixo da seleção está intimamente ligada a de um repositório de onde os
elementos utilizados pelo sintagma serão “pescados”. Toda linguagem possui um conjunto
virtual de elementos, que podem ser utilizados para a formação de uma mensagem, esse
repositório é usualmente chamado de paradigma ou sistema.
Assim como no sintagma, todo elemento constitutivo do paradigma está em relação com
outros elementos ali presentes.
As relações sintagmáticas estão sujeitas a uma regra de combinação entre si, que na
linguagem verbal, acontecem em diferentes níveis, do fonológico ao sintático (CARVALHO,
1997); e na linguagem não-verbal, falamos, anteriormente, de partes constitutivas até as peças
entre si. Tais relações, mais do que previstas num código, recebem influências externas diretas:
seja de circunstâncias que levam a sua escolha, sejam das relações semânticas que os
significantes carregam.69
As relações paradigmáticas, por sua vez, não sofrem esse tipo de pressão, já que não são
evidentes a partir da observação de uma única mensagem. Por outro lado, o paradigma, esse
repositório virtual, estabelece dentro de si inúmeras relações entre seus elementos, geralmente
chamadas de correlações, similaridades ou oposições – dependendo do autor em questão.
Seja qual for o termo escolhido, é certo que há entre os elementos do paradigma relações
que tanto aproximam elementos, quanto os repele. Na língua, podemos aproximar ou afastar
elementos dependendo da relação que estabelecemos, por exemplo, se é proximidade ou
distanciamento fônico (|educação|, |acomodação|; |pé|, |mais|) ou as mesmas relações sob uma
perspectiva semântica (|agradável|, |prazeroso|; |bem|, |mal|), além de tantas outras como a
presença de radicais, desinências, etc.
Na linguagem não verbal, podemos traçar, também, relações de proximidade e
afastamento entre os elementos de um paradigma, por exemplo, objetos de mesma finalidade
primeira (lápis, caneta, nanquim, giz, pedaço de tijolo = escrever), ou que sejam formalmente
68 Saussure (1995) chamou esse eixo de “associativo”, mas Hjelmslev (2013) o rebatizou como “paradigmático”,
por ser constituído de um paradigma. 69 É por esse motivo que Eco (2014, p. 82) diz que certas marcas semânticas exercem direta influência sobre as
marcas sintáticas, ambas podendo até possuir homonímia metalinguística. Eco dá o exemplo |o trem deu à luz a
um menino| que é sintaticamente correto, mas em razão da marca semântica «inanimado» do significado «trem»,
essa frase não é construída por um falante qualquer, a não ser em casos extraordinários (loucura, fantasias etc.).
80
parecidos ou distintos (oposição quadrado-círculo), entre tantos outros critérios associativos.
Portanto, a organização do eixo paradigmático nesses tipos de sistema vai variar muito de
acordo com o objeto de estudo em questão.
Em ambos os casos, a organização do eixo paradigmático parte da observação cuidadosa
das mensagens construídas, isto é, do sintagma. É a partir do recorte do sintagma e do uso de
artifícios como a prova da comutação e substituição, que é possível identificar as partes
significantes que compõem o paradigma.
A mensagem, portanto, aponta tanto para fora de si quanto para dentro de si. Ela
demonstra tanto as formas que a constitui, quanto ao uso que levou à escolha de certos
elementos em detrimentos de outros (ou seja, também aponta para o contexto em que foi
emitida). Como bem disse Jakobson (2010, p. 51): “os constituintes de qualquer mensagem
estão necessariamente ligados ao código por uma relação interna e à mensagem por uma relação
externa”.
2.6.2. Um sistema de objetos
Partindo dessas considerações, fica claro, então, que podemos considerar as relações de
objetos entre si ou mesmo das partes constituintes desse objeto enquanto mensagem, como um
sistema.
No entanto, mais do que o reconhecimento de uma relação sistêmica das mensagens e
entre elas próprias, considerar um conjunto de objetos enquanto sistema é um recurso
metodológico, que nos ajuda a delimitar melhor as diferentes manifestações da linguagem do
Design.
A delimitação de sistemas de objetos, tais como o mobiliário (doméstico, para o trabalho
ou urbano), os automóveis, a sinalização, a moda, e tantos outros, realizada, sobretudo, graças
a diferentes desígnios (funcionalidades) mas também aspectos formais intrínsecos, não quer
dizer que uma linguagem básica não possa ser encontrada aí, que não há um meio comum de
trabalho com a linguagem em todos esses sistemas.
Isso poderia levar o questionamento se não estaríamos falando, nesse momento, sobre
uma possível estrutura da linguagem do Design. O termo estrutura, sem dúvidas, está muito
próximo da noção de sistema, por vezes, fala-se em “estruturação do sistema” ou de “estrutura
do sistema”.
81
Mas, não está nos objetivos desse trabalho a estruturação de um sistema A ou B. O que
podemos estruturar aqui é uma noção mínima da linguagem do Design por meio da observação
de diferentes mensagens provindas de diferentes sistemas. Afinal, nossa pergunta é “como as
mensagens são construídas no Design?” e não “como as mensagens se organizam entre si de
maneira sistemática?”.
3. INTRODUÇÃO A UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESIGN
Todas as definições dadas ao longo dos capítulos anteriores estão intimamente
conectadas, é uma cadeia de conceitos que entram em cena para, cada vez mais, revelar a
complexidade da constelação dos signos em uma linguagem. É a partir deles que iremos
construir um modelo teórico preliminar de produção de mensagens e é, também por eles, que
faremos uma abordagem semiótica possível do Design.
3.1. Do signo ao texto em Design
Quando um artefato é construído pelo designer, uma série de escolhas são feitas:
material, formas, cores, tamanho, acabamento, elementos gráficos e tantos outros que,
conjuntamente, formam o artefato enquanto mensagem num todo coerente.
Cada uma dessas escolhas, feitas a fim de se veicular alguma informação ou significado,
é um signo. Por sua vez, todos esses signos estão, muitas vezes, tão intimamente relacionados
e integrados num todo, que tomamos o artefato, ele próprio, como um único signo.
No entanto, em razão dessa complexidade da mensagem, é impossível compreendê-la
sem antes a fragmentarmos em suas partes constituintes. Isso quer dizer que, para
compreendermos a mensagem construída pelo designer, a fim de poder vislumbrar a linguagem
que está por trás, teremos que estudar cada dimensão do signo nos artefatos.
Devemos estudar o que é um significante no contexto dos artefatos, como se estruturam
seus significados e, por fim, o que esses signos formam quando estão relacionados entre si.
Essa é uma passagem da unidade mínima da significação, isto é, o signo, para uma forma
mais complexa, mas não menos coerente: o texto.
82
3.1.1. Objeto, artefato e comunicação
O primeiro passo desse processo de decomposição do signo na linguagem do Design é
se perguntar: o que estamos analisando? Coisas, produtos, objetos ou artefatos? É uma questão
de esclarecimento terminológico, que nos ajuda a manter uma coerência no discurso. Nesta
monografia, todos esses termos foram usados como se estivessem dentro de uma escala de
generalização, partindo de “coisa” como algo generalizado (seja resultado da ação humana ou
não) até o “artefato” (essencialmente caracterizado pela ação humana).
No entanto, é necessário esclarecermos mais ainda o uso desses termos. Aliás, essa
divisão terminológica não é nova, diversos autores da área do Design a fazem por motivos de
delimitação da própria área.
O engenheiro e filósofo Abraham Moles (1973, p. 15) distingue, por exemplo, os termos
coisa e objeto. Enquanto o primeiro refere-se àquilo que pertence à materialidade natural do
mundo (pedras, rãs, árvores etc.), objeto está para aquilo que é resultado da ação humana, é um
produto do Homo faber.70
Por outro lado, outros autores propriamente da área do Design, como, por exemplo,
Rafael Cardoso (2012, p. 47), fazem oposição entre o objeto natural, aquilo próprio da natureza
(pedras, árvores, montanhas) e o artefato, o objeto que é feito por meio da incidência da ação
humana. Para fazer essa diferenciação, o autor recorre à raiz etimológica da palavra artefato
que, segundo ele, “está no latim artefactus, ‘feito com arte’; e ela está na origem do termo
‘artificial’, ou seja: tudo aquilo que não é natural”.
Há também os autores que não estabelecem uma divisão muito clara entre esses termos,
mesmo embora pareçam relegar o termo objeto para aquilo que é usado cotidianamente pelas
pessoas. É o caso de Vilém Flusser (2013, p. 194), que, em interessante ensaio sobre objetos de
uso, simplesmente colocará o objeto, partindo de sua raiz etimológica, como “algo que está no
meio, lançado no meio do caminho”.
Neste trabalho, evitamos o uso de “coisa” em razão de comumente estar atribuído a um
sem fim de entidades da realidade no discurso comum, às vezes até usado para algo material ou
não. E quando esse termo apareceu, justamente, seguiu essa acepção generalizada. Já o termo
“objeto” foi relegado para a generalização de entidades materiais que, em razão do próprio tema
70 Nessa mesma linha de pensamento, poderíamos também citar que, para Baudrillard (2012), o objeto é sempre
considerado como cultural, mas que se opõe a noção simplificada de mercadoria, pois o objeto (cultural) é um
signo estabelecido.
83
deste trabalho, muitas vezes esteve relacionado com a área do Design. No entanto,
naturalmente, “objeto” também é um dos polos do triângulo da estrutura do signo, muito
embora, por mais das vezes nos referimos a essa parte como “referente”, seguindo a tradição
dos semioticistas aqui focados.
Portanto, nas páginas anteriores, o uso do termo “objeto” esteve, na maioria das vezes,
relegado para designar o conjunto de elementos que constitui um dado sistema, como uma
classe: objetos do mobiliário, objetos como carros dentro do automobilístico, e, logo, falamos
de “sistema de objetos”. É por esse motivo que falamos de “signo-objeto”71, uma maneira
generalizada de referir-se aos objetos, em sua totalidade, enquanto signos pertencentes a um
sistema.
Quando, por fim, referimo-nos (e continuaremos a assim nos referir) ao termo artefato,
estamos enfatizando um único objeto, fruto da atividade humana, e, portanto, de uma ação
pensada. O artefato, pois, esteve sempre equiparado à mensagem, como um substituto
equivalente, que acreditamos poder gerar o par código/artefato sem problemas.
Essa atividade humana, que, no discurso aqui presente, está circunscrevendo-se ao
(enorme) mundo da atividade do designer. Talvez, seja até mesmo pertinente trazer à baila o
próprio termo “design”, relacioná-lo com o artefato e, assim, melhor entendê-lo.
São diversas as acepções do termo “design”. Sejam provindas de autores da própria área
ou aquelas decorrentes do uso cotidiano da palavra por pessoas comuns. Muitos autores, como,
por exemplo, Flusser (2013), buscam na etimologia da palavra meios de melhor definir esse
termo. Flusser (2013, p. 181) lembra os vários significados possíveis na língua inglesa:
propósito, plano, intenção, meta, forma; mas também, conspiração e esquema maligno. E,
segundo esse autor, “todos esses e outros significados estão relacionados a ‘astúcia’ e a
‘fraude’”. Nesse ensaio de Flusser, ele ressaltará o design como um atividade produtora de
objetos artificiais, que muitas vezes, “enganam” ou “contornam” certas leis naturais – como
uma alavanca que funciona contra a gravidade.
Ainda poderíamos citar outras acepções relacionadas a palavra muito comuns, como a
noção de design como uma ação profissional (o trabalho do designer), como uma ação
71 Mas, também no uso desse termo há uma influência da própria terminologia de Barthes (2012), que aqui
respeitamos.
84
específica de concepção (o projeto), uma qualidade, um desenho ou configuração formal, além
ainda da noção de desígnio, atrelada à função, ou propósito.
Seja considerando, na língua inglesa, como substantivo ou verbo, temos uma certeza
sobre o termo design: a atividade do designer é uma atividade de modificação da natureza. É a
utilização de uma técnica (techné), aplicada num matéria amorfa (hylé) a fim de “fazer
aparecer” ou “imprimir” uma forma a partir de uma ideia. 72
É por esse motivo que o Design (inscrito com inicial maiúscula quando falamos o termo
nos referindo à área em si), é uma disciplina essencialmente semiótica. O modo como a técnica
é realizada, e a conexão estabelecida entre forma e ideia (entre significante e significado) é
cultura e gera cultura. Para aqueles que entendem a Semiótica como uma disciplina por
excelência do estudo da cultura (como Umberto Eco e outros semiólogos), o Design com
certeza é uma das áreas de grande interesse semiótico.
Essa modificação da realidade com o objetivo de criar uma mensagem, isto é, o artefato
final, só é possível de ocorrer graças ao conhecimento que o designer dispõe de uma série de
códigos base, a partir dos quais ele pode inovar, e pode até fazer de sua atividade uma poiesis
(MOURA, 2008).
Entretanto, se está tão clara a relação do artefato com a mensagem, por que também, por
vezes, o potencial comunicativo de certos objetos é subestimado?
Talvez, falte aos objetos de uso comum uma “franqueza” do ato comunicativo, tal qual
Barthes (1990, p. 27-28), indagando-se sobre “como o sentido chega às imagens”, escolheu a
mensagem publicitária por ela ser “franca”: ela mostra seu intento comunicativo de maneira
muito clara.
Ora, por extensão, poderíamos falar também de uma clara subestimação do poder
comunicativo dos objetos. É o que Umberto Eco (2016, p. 188) observa sobre a Arquitetura:
“Por que a Arquitetura levanta desafios à Semiologia? – Porque os objetos arquitetônicos
aparentemente não comunicam (ou pelo menos, não são concebidos para comunicarem) mas
funcionam”.
72 É por isso que outro uso bastante comum do termo design é simplesmente uma menção a uma configuração
formal ou estética de um artefato. Nessa acepção, quase banalizada, fala-se frases do tipo “gostei do design daquele
carro” ou “o design dessa cadeira é desconfortável”. Neste texto, evitamos tal uso do termo, utilizando design com
inicial minúscula em expressões como “artefatos de design”, para referirmo-nos ao produto da atividade do
designer.
85
Em seu texto sobre a Semiologia da Arquitetura, n’ A estrutura ausente (2016), Eco
utiliza o termo “arquitetura” de maneira bastante ampla e genérica, abarcando, segundo o autor,
também os objetos de design. Na passagem anteriormente citada, Eco fala da funcionalidade de
objetos no seu sentido mais recorrente, de função prática exercida: um guarda-chuva protege
da chuva, uma coluna sustenta um teto etc. Mais à frente em seu texto, Eco se indaga se não
haveriam problemas em considerar a própria função do objeto como algo que é comunicado.
O que para esse autor pode parecer uma necessidade metodológica para poder abordar
os objetos semioticamente, é algo que há muito tempo na história do design já estava firmado.
Principalmente decorrente das escolas funcionalistas, um postulado havia sido posto: o objeto
deveria ter uma configuração de tal maneira que um sujeito qualquer fosse capaz de, apenas o
olhando, entender para que servia e como utilizá-lo.
A máxima de Louis Sullivan, “a forma segue a função”, estaria aqui não mais do que
ressaltando que a dimensão de significante do objeto deve comunicar claramente o seu
propósito e manuseio.73
Assim, é possível dizer, a partir da abordagem funcionalista, que, no mínimo, os objetos
comunicam suas funções. No entanto, como qualquer observação rápida da realidade ao nosso
redor pode atestar, os objetos comunicam muito mais do que suas funções, seja
intencionalmente desde o momento de sua concepção, ou a partir daquela semantização
inescapável que todo objeto sofre mediante seu uso em sociedade (BARTHES, 2012, p. 53-54).
Ou ainda, poderíamos citar aqueles usos demasiadamente específicos ou particulares dos
objetos em certas circunstâncias, que diferentes sujeitos os submetem. Como veremos de
maneira mais detida à frente, em situações como essas, os usos específicos nada mais são do
que um tipo de segmentação da unidade cultural por certos indivíduos.
No entanto, se podemos, sem muitos problemas, afirmar o potencial comunicativo dos
objetos, e logo, a possibilidade de considerá-los como signos, um aparente problema
epistemológico surge, ao tentarmos encaixar um objeto qualquer dentro do triângulo de Ogden-
Richards.74
Não há dúvidas de que se tomamos um desenho num papel, de um círculo com linhas
retas ao seu redor, temos aí o desenho de um sol. Endereçamos, facilmente, que o desenho do
73 Essa afirmação é, semioticamente, bastante interessante, pois sugere, em alguma medida, um grau de motivação
entre o plano de expressão e o de conteúdo. 74 Sobre o triângulo de Ogden-Richards e a estrutura tripartida do signo, Cf. p.49.
86
sol é um significante (||sol desenhado||) que está para um significado «estrela do sistema
planetário em que se encontra a Terra, etc.», e que remete a um referente, o corpo celeste que
chamamos de sol. Nesse exemplo, todas as três entidades do triângulo estão claras, o
significante (desenho), o significado (o que o desenho expressa) e o referente (a que objeto real
esse significado é atribuído).
Diagrama 10: Esquematização do exemplo do sol aplicado ao triângulo de Ogden-Richards (1946).
A mesma facilidade seria encontrada se considerássemos o significante |sol|, seja sua
vocalização ou a palavra escrita. Entretanto, a situação se mostra mais confusa quando tomamos
um objeto em si como o significante de um significado.
É sobre o que Eco (2016) reflete, afirmando:
Digamos, por exemplo, que uma porta deve ser considerada como símbolo ao qual
corresponde, no vértice do conhecido triângulo, a referência “possibilidade de
acesso”: ver-nos-íamos de pronto embaraçados para definir o referente, a suposta
realidade física a que se referia o símbolo. A não ser que afirmemos que a porta se
refere a si mesma, denota a realidade “porta”, ou então se refere à função que permite;
nesse caso, teríamos um achatamento do triângulo, decorrente da coincidência da
referência com o referente (p.193).
87
Mais à frente, nesse mesmo livro, Eco (2016) irá propor uma solução que é considerar
os objetos arquitetônicos, eles mesmos, como “formas significantes” (p.198), o que poderia,
por outro lado, levar a afirmação que o autor achatou o triângulo em outro ponto: coincidência
do significante com o referente.
De fato, Umberto Eco não irá dirigir muitas páginas a esse problema, seja n’A
Estrutura Ausente (2016) ou no Tratado (2014), em razão até de uma delimitação proposta,
na fase destes livros citados, de uma teoria semiótica que coloca os problemas de referência em
segundo plano. Muito embora, apesar dessa valorização significante-significado por uma teoria
dos códigos, a pequena solução dada pelo autor de consideração dos objetos como significantes,
não seria algo muito diferente do que, anos mais tarde, o autor viria a propor de maneira mais
detalhada.
Em textos como Kant e o Ornitorrinco (1998), já mais próximo da teoria semiótica
peirceana, Eco irá propor que a nossa percepção das entidades da realidade (isto é, do Ser)
engatam o processo semiótico em nossas mentes, ao prover uma imagem dessas entidades
mediante o “filtro” dos nossos sentidos. Esse posicionamento não só lembra dos problemas de
cognoscibilidade da coisa em si, como até o título do livro sugere ao tratar de Kant, mas que
apenas certos fragmentos do objeto real como um todo são apreendidos pela mente: é parcial a
consideração das qualidades dos objetos que tomamos como significantes.75
É claro que a solução epistemológica de um problema como esse, interessa muito mais
à Semiótica do que ao Design, que continua a realizar suas atividades sem problemas. Embora
isso seja verdade, para o presente trabalho é necessário construir nossas reflexões numa base
com um mínimo de firmeza, por mais que essas questões ainda continuem em aberto.
Nos atemos então à esse reforço da definição do significante como algo que é
percebido pelos sentidos e não confunde-se com a coisa real em si, muito embora sejam
esses entes da realidade, aí incluídos os artefatos, que nos provém as facetas do signo a que
chamamos de significantes.
Iniciemos, por fim, o estudo da linguagem do Design caracterizando seus signos e cada
uma de suas dimensões.
75 No livro citado, Eco trabalha com termos da Semiótica peirceana que, embora facilitem a compreensão do
problema (para aqueles que entendem os termos), evitamos aqui usá-los para não fazer uma grande confusão
terminológica. Também é uma escolha que tenta respeitar o recorte teórico proposto dos autores aqui estudados.
Ao mesmo tempo que seria irresponsável não fazer uma mínima menção à solução de certos problemas propostos
pelos autores, que são encontradas em escritos fora do nosso recorte.
88
3.1.2. O significante
Anteriormente, vimos que o significante é aquele funtivo de um signo correspondente à
sua dimensão perceptível. Isso quer dizer, que algo só é considerado como significante se, além
de percebido, é considerado por um sujeito qualquer como um veículo de um significado.
Um problema com essa definição, que pode ser posto agora, que já nos aproximamos
de exemplos e aplicações práticas, é sobre como se dá essa percepção dessa faceta material do
signo.
A Semiótica e a Psicologia da percepção são duas áreas que possuem um ponto de
contato, algumas vezes abordando um mesmo problema de maneira diferente, mas, na maioria
das vezes, com abrangências diferentes de seus objetos de estudo. O limite entre essas duas
áreas e como uma exerce influência sobre a outra (ou até como uma está disposta a aceitar os
postulados da outra), é aquilo que Umberto Eco, em seu Tratado (2014), chamou de uma das
soleiras da Semiótica e que, portanto, problemas de percepção são considerados extra-
semióticos.76
Logo, não nos perguntaremos aqui sobre como os significantes dos artefatos são
percebidos, sob uma perspectiva fisiológica, mas, sim, que é inegável o fato de o serem,
recorrendo a um dos cinco canais perceptíveis disponíveis em nós, seres humanos: visão,
audição, tato, olfato e paladar.
As partes pertencentes a um artefato que são percebidas por nossos sentidos são várias:
material (que implica questões de peso, flexibilidade, relevo, textura etc.), forma, cor, palavras
inscritas, tamanho, ajuste (no caso das vestimentas), sabores, odores, alertas sonoros; enfim, a
lista continua por quanto mais segmentamos o artefato em partes, que podem entrar em contato
com um dos cinco sentidos.
Neste ponto, poder-se-ia indagar se tudo que é passível de ser percebido pelos sentidos
num artefato é considerado como significante de um significado. O material de que é feito o
frasco de desodorante, sem dúvidas, possui um gosto, mas ninguém (em situações comuns) o
prova, pois o gosto desse material não é considerado como significante pelo sujeito: o produtor
desse frasco não pretendia veicular nenhum significado pelo gosto. No entanto, é claro que se
76 E também, por vezes, em veredas comuns caminham pesquisas do pragmatismo e da filosofia da mente.
89
um sujeito decidisse por degustar tal material, o gosto sentido seria automaticamente
relacionado com algum significado, provindo da experiência anterior dele.
Estamos diante de um problema de pertinência do significante das linguagens não-
verbais que lidam, muitas vezes, com substâncias de expressão mistas, capazes de
potencialmente “apelar” para diversos de nossos sentidos, como é o caso dos artefatos. Afinal,
do mesmo modo, uma escultura de Rodin com certeza tem um gosto, mas esse gosto, nesse
caso, não é pertinente à mensagem que o emitente desejou veicular.
É diferente de um processo comunicativo baseado totalmente na linguagem verbal, pois,
no exercício da fala, a vocalização de sons apela para um único sentido, e negar a substância
dessa expressão, seria como negar totalmente a mensagem. Expressões faciais e gestos do
emitente, naturalmente, adicionam uma complexidade e, muitas vezes, até enfatizam o que é
dito. A visão ajuda na intepretação da mensagem, mas nem sempre essa possibilidade ocorre
efetivamente – é o caso de uma conversa por telefone, por exemplo, em que, no máximo, o tom
é um próprio “aditivo” significante da forma de expressão.
Por outro lado, existem objetos da cultura em que o gosto ou o cheiro são essenciais
para a compreensão da mensagem. Podemos considerar, com segurança, que a culinária é um
fato de cultura e que as mensagens produzidas por essa área, têm significantes, nos quais a sua
percepção está essencialmente baseada no paladar, no olfato e até na visão. Assim como
artefatos de design, diferentes pratos e refeições podem ser encontrados em diversas culturas, e
cada um deles é regido, também, por uma relação significante-significado sob o respaldo de um
código.
Dependendo da cultura em questão, envolver o tato numa refeição pode ser um
disparate, mas, noutras, é algo normal. Fica claro então que diferentes objetos de cultura,
provenientes de diferentes sistemas e com uma considerável variabilidade cultural, estabelecem
diferentes pertinências para a leitura dos significantes.
Cabe esclarecer, então, como somos capazes de saber o que é pertinente ou não na
mensagem veiculada por um artefato.
Os conceitos de código e de unidade cultural, tal como o definimos nas páginas
anteriores, podem nos ser útil para jogar luz nessa questão. Se tomamos, por exemplo, um
ventilador e a compreensão sobre seu significado tal como nossa cultura o definiu, sabemos que
nessa unidade cultural não há o sema «comestível». Isso se dá porque, normalmente, um
90
ventilador não é feito de nenhum material, em que possamos encontrar esse sema. É fato que
um ventilador de material comestível poderia ser criado e nós teríamos aí uma situação
extraordinária e até uma revolução no código, pois, a partir deste momento, em certos casos,
ventiladores seriam comestíveis.
O fato de compreendermos o ventilador como algo não comestível, nos afasta, por
hábito77, da consideração do seu gosto como um significante pertinente para a mensagem que
o fabricante, por ventura, desejou passar ao projetá-lo. Por outro lado, aspectos essencialmente
visuais do material e seu acabamento, muito embora não comestíveis, são de extrema
importância para a mensagem.
A solução para a questão proposta passa, então, pelo reconhecimento prévio do artefato
em questão, do estabelecimento da relação entre o artefato, ele todo, como um único
significante e o significado (ou mais adequadamente, a unidade cultural) a ele correspondente
dentro de um campo semântico.78
No entanto, novamente, frisamos: a todo momento a atividade criativa põe em questão
o código. Afinal, hoje existe roupa íntima comestível, coisa que séculos atrás não encontramos
registros. Sem entrar nos pormenores motivacionais dessa revolução, uma coisa é certa: no
momento em que a roupa íntima comestível surgiu, sem dúvidas, ela teve de ser apresentada
enquanto tal de uma maneira muito clara. A sua criação, muito provavelmente, até hoje, aponta
para o não usual, o exótico e, talvez por isso, ao erótico, por justamente ser uma revolução no
código.
Em casos emblemáticos como esse, é impossível dizer que, dentre os significantes da
roupa comestível, não esteja o gosto. Há uma clara pertinência do gosto e do cheiro do material
de que são feitas essas roupas, além dos típicos sentidos envolvidos, no que tange a percepção
de materiais, como a visão e o tato.
77 E aqui não é um uso desproposital do termo: hábito, tal como Peirce o entende, será um conceito muito útil para
compreender certos comportamentos gerais observados numa cultura no ato de interpretação de mensagens e na
maneira como sujeitos interagem com objetos. Mas, claro, aqui também já estamos entrando num dos limites desta
monografia, pois tal conceito já é uma preocupação essencialmente pragmática: não diz mais respeito à construção
da mensagem, mas a sua interpretação. 78 Eis a razão de que, em desenhos animados, quando um dado homem pré-histórico é retirado do seu espaço de
tempo e levado ao futuro, o desconhecimento dele frente tantos objetos é, usualmente, retratado com a tentativa
desse sujeito fazer tais objetos entrarem em contato com todos seus sentidos, os mordendo, lambendo, cheirando
etc. Afinal, esses são comportamentos, tal como diria Peirce, típicos do momento da Primeiridade do processo de
semiose.
91
A abordagem do material enquanto significante nos permite essas discussões, uma vez
que podemos entrar em contato com a substância física de um artefato utilizando quatro sentidos
(única exceção é a audição). No entanto, não podemos dizer o mesmo de outros significantes
dos artefatos, tais como as formas e as cores.
É bem verdade que esses significantes, muitas vezes, aparecem embutidos junto com o
material, quase levando a sua leitura a considerá-los como único significante. Isso acontece, no
caso da forma, porque ela é um conceito abstrato, impossível de se efetivar sem uma
substância.79 E, uma vez que essa efetivação ocorre, o reconhecimento de uma forma parte da
intelecção de certas propriedades dessa substância, percebidas apenas pelo tato e visão.
Não podemos falar de um “gosto de um círculo”, “som de um quadrado” ou “cheiro de
um triângulo”, a não ser por intermédio do material, ou em situações de uma poética sinestésica
dos artefatos...80
Embora seja verdade essa forte ligação entre a forma do material e a sua substância de
expressão, a forma em si (um quadrado ou triângulo), refere-se a uma unidade cultural e, logo,
deve ser considerada como uma porção significante própria na mensagem. Por exemplo:
existem diferenças evidentes de significado entre um carro de formas arredondadas e outro de
formas quadrangulares, independente do material usado.
Mas, é necessário explicar os diferente significantes provindos de uma mesma
substância da expressão.
Imaginemos a carcaça de um carro construído puramente de alumínio, seguindo as
formas de um dado modelo, mas sem aplicar a ele nenhum outro material, cor ou acabamento
qualquer. Que fique claro que o material de que é feita essa carcaça e tudo aquilo que compete
a ela própria que está à amostra é um único significante (é forma de expressão e substância de
expressão), muito embora possua diferentes maneiras de entrar em contato com ela: a cor do
material, seu cheiro, gosto e sensação tátil.
A possibilidade de diferentes maneiras de perceber esse plano de expressão não altera o
fato de que estamos lidando com um único significante no mundo. Para cada um desses pontos
de contato, diferentes significados podem vir a mente, que construirão uma ideia total da
79 Mesmo que o conceito de “círculo”, por exemplo, nos seja dado apenas verbalmente: nossa imaginação
necessariamente tentará preencher esse conceito com alguma substância. E, nesse quesito, a teoria hjelmsleviana
sobre a forma de expressão mostra-se bastante pertinente. 80 A cor é mais restrita ainda, é um fenômeno óptico e, portanto, apenas identificado, a nível fisiológico, pela visão.
Qualquer indicação de cor por outro sentido é uma questão que a Psicologia da percepção lidará como sinestésica.
92
experiência tida com aquele signo. Ou seja: um mesmo plano de expressão é capaz de servir
para diferentes significados, mediante as diferentes “porções” de como ele é percebido pelos
sentidos. A cor percebida do material pode lembrar uma panela, mas seu gosto pode lembrar
qualquer outra coisa (incluindo ou não aí a mesma panela) para um sujeito.
Portanto, determinar a pertinência dos significantes num artefato passa pela
compreensão do próprio artefato que o sujeito tem diante de si. A questão não é simplesmente
saber que, já que se sabe o que é o objeto chamado ventilador, não devemos mordê-lo, mas sim
que o gosto, nesse caso, muito embora possa ser considerado dentro de uma função sígnica, não
foi tomado em conta na construção desta mensagem.
É necessário enfatizar: não estamos negando a possibilidade do gosto do material de que
é feito o ventilador seja capaz, ao ser experimentado, de significar algo para um sujeito. Nem
muito menos que é só através do conhecimento prévio da unidade cultural ligada ao significante
||ventilador||, que podemos compreender o seu aspecto não comestível. Afinal, com base na
experiência, podemos desconhecer um ventilador e provar seu gosto, sentir algo que não nos
agrada ou até ingerir o material e passarmos mal, situações que muito provavelmente irão levar
à mesma conclusão de que o ventilador não é comestível. Por outro lado, outras experiências
poderiam constatar que ele é muito útil para aliviar a sensação de calor: mediante o
conhecimento do código de funcionamento do ventilador.
É óbvio que essa é uma situação absurda, que poderíamos endereçar, no máximo, às
crianças que ainda estão a descobrir o mundo a sua volta. Em casos como esse, temos aí um
simples desconhecimento do código (aliado com uma arcada dentária em crescimento), que a
todo momento é lembrado pelos pais, por meio de exclamações repreensivas: “não coloque a
boca nisso!”.
Percebemos, então, que a questão da pertinência do significante está diretamente
relacionada com o intento comunicativo do emitente. Ninguém sairá criticando o gosto do
material do frasco de desodorante, pois se tem como óbvio que o intento desse material não é a
degustação, por meio do conhecimento da unidade cultural do que é um frasco de desodorante.
Seja qual for o material empregado aí, sabe-se que sua função nos limites do artefato é tanto de
ordem prática (maleabilidade para a forma, custos de produção etc.) e de ordem estética (forma
“adquirida”, cores, sensação ao toque etc.).81
81 Se a questão do gosto nesse exemplo pode parecer absurda, já não seria o caso se considerássemos o cheiro
desse material. Tomando a função do desodorante, um frasco que possuísse cheiro desagradável muito
93
Por outro lado, quando temos a situação corriqueira e sabemos muito bem quais porções
dos significantes são pertinentes ou não na mensagem veiculada por um artefato já conhecido,
temos aí um estudo ou tipo de análise muito comum no Design.
Observar formas, materiais, cores entre outros aspectos físicos e descrever essas
características, participa do dia a dia do designer, o qual a todo momento treina seu olhar.
Esse tipo de análise também está muito próxima de um estudo da dimensão sintática da
linguagem dos artefatos tal como Niemeyer (2007, p. 50) a entende: “a dimensão sintática inclui
tanto a análise da construção técnica do produto quanto a análise de detalhes visuais como
juntas, aberturas, orifícios, superposições, texturas, desenhos e cores”.
No entanto, temos aí, igualmente, uma questão sobre a pertinência do significante. A
descrição das partes internas de um produto, como as peças de um carro, por exemplo, embora
passíveis de serem descritas, não são consideradas como “significantes primeiros” de uma
mensagem por não serem percebidas.
Pelo contrário, todas as máquinas no geral, dos veículos aos eletrodomésticos, dos
celulares aos computadores, encobrem suas partes internas, seja por questões de proteção, mas
principalmente, de estética (entendido aqui na dupla acepção de percepção e beleza). Afinal,
poder-se-ia fazer uma linha inteira de celulares e notebooks com um material transparente que
nos permitisse ver seus circuitos internos e, em alguns casos, isso até acontece. Por exemplo,
alguns gabinetes de computador são totalmente transparentes, revelando toda engenhosa
concatenação de seu maquinário, possibilidade estética que permite, justamente, o
enaltecimento desta mesma máquina e sua potência.
Nessas situações, não obstante a possibilidade de ver os mecanismos internos do objeto
em questão, é inegável que o próprio material que ao mesmo tempo reveste o objeto e permite
ver o que há internamente, é a parte mais relevante na consideração dessas mensagem:
primeiramente, sem esse material transparente, o circuito interno não poderia nem ser visto. A
possibilidade dada por um fabricante de poder se observar as entranhas de uma máquina, é um
recurso retórico: possui um intento comunicativo baseado na quebra de uma expectativa e
inversão de valorização do que é externo ao que é interno.
provavelmente repeliria os consumidores (sujeitos que conhecem sua função), seja por duvidarem da eficácia do
produto ou simplesmente por atestarem uma contradição óbvia.
94
Poder-se-ia objetar que o conhecimento sobre as partes internas dessas máquinas são
levadas em consideração no ato de compra por um sujeito, pois, no fim das contas, são capazes
de serem descritas. De fato, o eventual consumidor de um notebook está interessado nessas
questões, mas, geralmente, o notebook por ele mesmo, não comunica essas especificações,
mesmo se fosse feito de uma carcaça transparente.
A linguagem verbal irá, como acontece em tantos outros sistemas semióticos, realizar
uma intervenção. No caso do notebook, a linguagem verbal será o artifício que permitirá a
descrição das funcionalidades e especificidades do aparelho, por meio daquele típico léxico da
informática. E mesmo em casos em que se será possível observar as partes internas, um sujeito
com conhecimento ou não do que cada uma daquelas peças é, dificilmente terá todas as
informações sobre aquele objeto apenas olhando-o, como quantidade de memória e velocidade
de um processador. Essas informações são transmitidas por meio da linguagem verbal, seja com
legendas no ponto de venda, adesivos no aparelho ou pela publicidade. Em última instância,
todas essas informações dizem respeito a uma linguagem sobre o objeto e não mais do
objeto.82
No discurso construído aqui até agora, falamos várias vezes da consideração de
diferentes significantes em um mesmo artefato. Entretanto, é importante lembrar que esses
significantes passíveis de serem exaustivamente descritos (formas, cores, material, tamanho
etc.) são significantes parciais ou constitutivos de uma mensagem maior. O conjunto desses
significantes constrói aquilo que entendemos como o artefato em si, como um todo.
Esses significantes constitutivos, eles mesmos, são partes de signos, veiculam um dado
significado, em dado contexto e circunstância. O artefato é, portanto, construído sobre uma
concatenação de diferentes signos, muitas vezes instituídos por meio de diferentes códigos.
Consideramos aqui que as escolhas desses significantes nas mensagens construídas são sempre
propositais e não acidentais: um significante é escolhido porque deseja-se, por meio dele,
veicular dado significado que está atribuído, dentro de uma cultura, àquele significante. Mas,
não neguemos o fato de que existem situações de projeto que impõem escolhas sob o designer,
escolhas em que o material desejado não estava disponível ou que o maquinário disponível não
conseguiu imprimir a forma desejada.83
82 Trataremos sobre essa distinção em outra parte mais adiante do trabalho. 83 Uma discussão mais detida sobre as delimitações que podem reger a atividade de combinação de signos do
designer encontra-se em II. 3.3.1.
95
Seja como for, o resultado dessas escolhas (idealmente propositais), forma um signo
complexo, em que se misturam diferentes significados que são capazes de chegar a nós com
alguma coesão. Ao mesmo tempo que existem diretrizes gerais para o entendimento do que é
uma cadeira ou ventilador, ainda assim, a infinita possibilidade de variação de significantes
propõe um complexificação até do mais simples dos artefatos, sob um ponto de vista da análise.
Essa complexidade do significado das mensagens é um convite instigante à
consideração e à percepção dos artefatos, para além das funções práticas, sem que, claro,
também não as neguemos.
3.1.3. O significado
Seja qual for a linguagem estudada, a dimensão do significado sempre impõe desafios
à análise. Não só em razão da multiplicidade das situações pragmáticas (diferentes contextos e
circunstâncias), mas pela própria dificuldade metalinguística, que toda linguagem enfrenta para
circunscrever uma linguagem-objeto. Como muito bem disse Barthes (1994, p. 159): “a
linguagem é incapaz de delimitar a própria linguagem”.84
Nesta seção, não pretendemos descrever exaustivamente o significado de um punhado
de objetos, mas sim, discutir alguns problemas do estudo dessa dimensão dos signos-objeto.
Logo, o ponto de partida é justamente lembrar que nenhum significante pode ser
considerado como “forma vazia” nos sistemas de objetos em que o Design atua.85
Anteriormente, já havíamos exposto algumas ressalvas ao exacerbado formalismo
hjelmsleviano, o qual afirma que dada substância da expressão só ganha sentido ao ser utilizada
em dado sistema (isto é, ao ser delimitado pela forma), negando, portanto, toda a carga
semântica atrelada a ela, em razão do seu uso anterior em tantos outros sistemas.
Dizer que a madeira de que é feita uma cadeira só pode ser considerada nos limites
daquela própria cadeira ou do sistema geral dos mobiliários, é uma redução que na prática não
acontece.
84 No original: “language is impotent to close language”. 85 É importante notar que essa expressão não deve ser entendida tal qual Eco (2014, p. 127) a usa para se referir
ao poder de uma mesma mensagem gerar inúmeros significados dependendo dos contextos e circunstâncias em
que é veiculada.
96
Pelo contrário, e aqui enfatizamos algo já dito, muitas escolhas de significantes a serem
usados numa dada mensagem (artefato), acontece em razão de um significado além-sistema.
Esses significados podem ser propriedades intrínsecas ao material e, portanto,
significados denotados escolhidos em decorrência de um requisito projetual, ou, em outros
tantos casos, em razão de algum significado conotado estabelecido culturalmente num dado
contexto.86
Ainda hoje, por exemplo, é muito comum pianistas debaterem sobre a existência de uma
superioridade das teclas de piano feitas de marfim sobre as teclas de plástico. Por mais que se
possa argumentar que o marfim possui propriedades diferentes do plástico, a escolha do marfim,
quando teclas de piano ainda eram feitas desse material, seguia a diretriz da “nobreza” atrelada
a ele.
É certo que a produção barateada do plástico demorou a acontecer, se comparada com
a extração do marfim na virada do século XX, isto é, o auge da extração dos dois materiais não
aconteceu concomitantemente. No entanto, isso não muda o fato de que também outros
materiais (famosos no mesmo período), como o abeto e o cedro, foram utilizados na produção
de teclas para piano. Portanto, é inegável que um dos motivos da escolha de aplicação do
marfim nesse caso se dava, também, por significados conotados ao material.
Se considerarmos os materiais de que são feitas as teclas de piano (ou as teclas de piano
em si com todas suas variações) como um pequeno sistema, é óbvio que, de fato, o marfim, ou
cada um dos materiais considerados, possui um valor dentro desse sistema. Entretanto, esse
valor não deve se confundir com a unidade cultural correspondente ao material, unidade esta
que está colocada num sistema semântico muito maior: o de uma cultura.
Lembramos que uma situação totalmente extraordinária a esses problemas aqui
descritos seria o exemplo já apresentado das placas da barbearia: a relevância das mensagens
está simplesmente no aspecto diferencial entre os materiais. Naquele exemplo, quaisquer
materiais poderiam ser utilizados, conquanto que sejam diferentes para o funcionamento
semiótico do sistema.
86 Um exemplo notável é a madeira dita “ecologicamente correta”, provinda, muitas vezes, de parques de
reflorestamento. Um produto com um selo que identifique tal procedência da madeira utilizada como matéria-
prima, ganha toda uma conotação atrelada ao combate à degradação do meio ambiente, que, por sua vez, outros
significados poderiam ser daí sugeridos sobre aquele que usa um produto “ecologicamente correto”.
97
No caso das teclas de piano ou qualquer outro artefato que entramos em contato no dia
a dia, o uso de um material não é uma relação puramente diferencial. Mesmo que percebamos
um aspecto negativo do significado dos materiais (isto é, identificar a madeira e saber
diferenciá-la do vidro), a carga positiva do significado (o que é a madeira ou o que é o vidro)
está igualmente presente, agindo com muito mais força.
Um exemplo claro da faceta positiva das unidades culturais são as cores. Por mais que
possamos conjecturar sobre uma dimensão fisiológica da percepção, que induz a certas reações,
o uso de cores num artefato está muito atrelado ao que dada cor, enquanto significante, é capaz
de veicular numa cultura.
Apesar desses impasses, a consideração do significado de um outro significante dos
artefatos levanta muito mais problemas: a forma.
Num artefato, a questão da forma é quase que paradoxal: podemos dizer que dada
cadeira possui “formas arredondadas” ou “quadrangulares” e que esses significantes implicam
dados significados. Ao mesmo tempo, podemos igualmente dizer que a cadeira em si, ela
mesma, é uma “forma”.
Reconhecemos uma cadeira porque conhecemos o conjunto de propriedades que
“formam” a “forma” a que atribuímos o significante ||cadeira||. Não queremos aqui fazer,
necessariamente, uma aproximação com o platonismo, propomos que dado artefato ou qualquer
coisa é reconhecida pela percepção de um conjunto de características e propriedades, a que
podemos remeter a uma unidade cultural num campo semântico de dada cultura.
A frase pode ser extensa e demorada, mas, na prática, esse processo se dá na escala dos
milissegundos. E isso é algo que ocorre em qualquer linguagem (verbal ou não) e o fenômeno
de desengate, aquela pausa para uma reflexão maior sobre a coisa que está diante de nós, só
acontece quando encontramos uma situação extraordinária, muitas vezes um uso inovador do
código ou quando não conseguimos reportar o percebido a nenhum código87. É aí que entra a
retórica, a arte, a poesia: esses que são alguns dos meios para realizar essa desautomatização da
linguagem, algo que já há muito tempo teorizava, por exemplo, Roman Jakobson (2010, p. 150).
É conveniente, então, diferenciarmos a forma enquanto significante constitutivo ou
parcial da forma “inteira” do significante percebido num todo, como o artefato em si, e que é
87 Tal qual a situação de espanto diante do ornitorrinco descrita por Eco (1998).
98
relacionado a uma unidade cultural. Para a primeira, daremos o nome de forma constitutiva e,
para a segunda, de forma total.
As formas constitutivas, juntamente com materiais, cores, tamanho e outros, podem ser
consideradas variantes dentro de uma forma total. Existem muitas maneiras de se construir uma
cadeira respeitando as propriedades gerais que caracterizam a unidade cultural correspondente
à ||cadeira||: diferentes materiais, cores, formas constitutivas, ideogramas, acabamentos,
acolchoados, etc.
O significado veiculado pelas formas constitutivas muitas vezes derivam da própria
relação com o significado culturalmente estabelecido de formas mais gerais (quadrados,
círculos, triângulos), independente do sistema em que estão inseridas. Isso quer dizer, que é
muito provável, que o uso de formas arredondadas num carro e na cabeceira de uma cama
adicionem uma camada de significado similar (mas nunca inteiramente igual) para ambos os
casos.
Isso se dá porque as formas geométricas em si estão associadas a determinados
significados dentro de uma cultura. Assim como as cores, existem objeções de que as formas
geométricas incitam certas respostas instintivas mediante sua percepção. No entanto,
consideramos aqui com muito mais peso a carga semântica dessas formas provenientes do seu
uso ao longo da história. Em suma, queremos dizer que as formas geométricas que constituem
um artefato são, elas mesmas, também regidas por códigos.
E quanto à forma total, o que dizer sobre seu significado? O reconhecimento de um
artefato ou qualquer coisa da realidade, passa, igualmente, pela questão do código.
Se o amálgama das qualidades e propriedades percebidas de um dado significante pode
ser atribuído a uma unidade cultural conhecida, então, certamente, o sujeito reconhecerá a coisa
ou artefato diante de si.
Em casos de desconhecimento ou incerteza, o sujeito pode tentar fazer aproximações
entre o que é percebido e o que é sabido, mesmo não havendo correspondências diretas. No
caso específico dos artefatos, essa discussão desembocará na consideração das funções do
artefato em questão, em dado contexto e circunstância. Uma vez que em objetos de uso
99
cotidiano, muitas vezes, é a função que funda esses objetos, logo, ela será algo imprescindível
para a sua definição.88
Podemos dizer que a unidade cultural a que corresponde um dado artefato irá sempre
conter sua função, finalidade, uso; enfim, qualquer coisa que aponte para o seu propósito
enquanto tal. Muito embora, tal função não seja imutável ao longo do tempo: uma cultura pode
re-significar funções e, logo, atualizar o entendimento que se tem de um dado artefato.
Nesse ponto, poder-se-ia objetar que, seguindo essa lógica, as árvores também realizam
uma função no meio ambiente, ou que o cálcio no organismo humano desempenha também um
papel e, logo, as definições desses entes deveriam conter essas funções.
Ora, lembramos que nosso recorte teórico se dá sobre os artefatos de Design, produtos
da ação humana e, logo, pertencentes à cultura. Mas não só isso: o objetivo geral desse trabalho,
é o estudo da linguagem do Design e aqui estamos enumerando várias características próprias
dos signos que a compõem. Explicar porque definimos uma árvore de dada maneira e um
artefato de outra, sem dúvidas, é um problema semiótico, e até interessante para o estudo da
cultura material, mas esse não é o objetivo primário deste trabalho.
A única conjectura que poderíamos fazer é que os artefatos foram criados com um claro
desígnio funcional (resolução de situações-problema), seja essa função puramente prática ou
simbólica, e, portanto, é muito mais fácil defini-los baseado nesse momento de criação. A
nomeação e definição de estados do mundo estão muito mais baseadas em suas propriedades
percebidas e sentidas. Sobre esses estados do mundo, nós podemos interferir e, por vezes,
utilizá-los para nossos intentos, ou até replicá-los graças ao conhecimento de leis naturais,
muito embora ainda existam tantos outras desconhecidas que impedem certas manipulações
artificiais (como a clonagem de seres humanos). Afinal, na história do homem, o fogo
desempenhou um papel fundamental, do mesmo modo que a roda; mas, enquanto o primeiro é
tido como “natural”, sua definição passa essencialmente por características sensitivas,
diferentemente do segundo, essencialmente um produto da ação humana.89
88 No entanto, identificar não implica, necessariamente, que o sujeito possa exercitar aquela função. Podemos
identificar o significante ||cadeira|| miniaturizado, isto é, a miniatura de uma cadeira, mesmo que não possamos
sentar. Ou mesmo, podemos nos deparar com uma cadeira feita inteiramente de papel, que não suportaria nosso
peso. Em ambos os casos, a forma total pode sugerir a possibilidade de algo sentar, seja uma versão encolhida de
nós ou algo extremamente leve. 89 Essas são questões debatidas de longa data na história da Filosofia ocidental, que aqui fazemos apenas menção.
Para uma leitura específica do posicionamento de Eco sobre a questão das definições, ver o capítulo treze de A
vertigem das listas (2010).
100
No entanto, nem sempre um artefato desempenha uma mesma função, ou ele pode até
ser criado para dada função e acabar desempenhando outra, seja prática ou não. É preciso,
portanto, melhor compreender a estrutura da unidade cultural a qual correspondem os artefatos.
3.1.4. O artefato como um texto
Antes de iniciarmos o detalhamento da estrutura da unidade cultural dos artefatos, faz-
se necessário reconhecer por definitivo a complexidade da mensagem dos artefatos. Ao invés
de simplesmente os considerar como signos, acreditamos que seja uma posição mais adequada
chamar os artefatos de textos.
Naturalmente, não queremos dizer aqui o texto verbal ou escrito, acepção comumente
utilizada do termo. Na verdade, texto – e aqui aproximamo-nos de uma perspectiva da
Semiótica da cultura – é qualquer unidade significante coerente. Assim, a imagem também é
um texto, uma escultura, uma sinfonia e os objetos do universo do Design.
Essa posição é compartilhada, por exemplo, por Eco (2014, p. 221) ao afirmar que
qualquer constructo arquitetônico, por mais simples que seja, é produzido por meio de diversos
trabalhos semióticos, isto é, um conglomerado de funções sígnicas diferentes.
Nesse texto citado, Eco faz uma correção do que anteriormente havia exposto n’A
estrutura ausente (2016), ao não considerar objetos da Arquitetura como signos únicos
formados por pequenas partes (primeira e segunda articulação), mas sim, agora, por meio de
uma perspectiva da produção sígnica, tese defendida em seu Tratado (2014).
Mais do que uma simples mudança terminológica, a consideração dos artefatos como
textos tem importantes consequências teóricas. A primeira, diz respeito a um afastamento de
paralelismos diretos entre o signo linguístico e os signos formados em linguagens não verbais.
Afirmar que um artefato é um texto, isto é, conjunto de signos, e não um único signo, é
dizer que dificilmente é possível encontrar nesses mesmos sistemas semióticos uma articulação
tal qual vemos na língua. Quebrar uma cadeira em suas partes constitutivas é revelar os signos
que formam esse texto provindos de diferentes processos, não unidades mínimas de significação
com valor puramente opositivo, tal como faríamos ao decompor a palavra |cadeira|.
É por esse motivo que, em nota de rodapé, Eco (2014, p. 221) pede uma reconsideração
do que escreveu n’A estrutura ausente, não tomando traves e colunas numa construção
arquitetônica como simples signos elementares, mas como “modalidades produtivas”. Afastar-
se de uma perspectiva da mensagem arquitetônica ou do Design como constituída de unidades
101
sígnicas mínimas, permite que possamos considerar os signos que compõem o texto, como cada
um deles adicionando algo ao sentido geral da mensagem de maneira “positiva”.
A segunda consequência teórica está justamente relacionada à noção do trabalho da
produção sígnica. A construção do texto não verbal exige a concatenação de significantes de
diferentes substâncias, relacionados a diferentes significados mediante tantos outros códigos.
Para cada signo constituído desse texto, diferentes produções sígnicas entram em ação:
estímulos programados, vetorizações, unidades pseudocombinatórias etc.
É importante notar que não estamos aqui nos contradizendo com o que foi discutido na
seção sobre o significante em Design: podemos ainda considerar, sem prejuízos, a totalidade
do que é percebido do artefato como um único significante, que veicula um significado também
total e geral. Isso não quer dizer, necessariamente, que o texto inteiro seja composto de um
único signo (o que em termos de artefatos é algo impensável), mas que a totalidade percebida
desse texto pode ser considerada como um único significante. No entanto, esse “significante
total” só pode ser percebido, e seu “significado total” apreendido de maneira coesa, graças a
identificação dos signos que compõem a mensagem.
Essa é uma característica muito interessante da linguagem dos artefatos. Pois mesmo
que, na linguagem verbal, tenhamos de identificar fonemas e, para a compreensão total do
significante da palavra dita, a sua consideração isolada como significante não é feita: a
pertinência da mensagem verbal está na palavra completa. Ao mesmo tempo que é óbvio que
certos modos de dizer uma palavra podem ressaltar dados fonemas (como um /r/ retroflexo), e
isso é algo que possui pertinência no processo comunicativo.
Entretanto, se tomamos um carro de dado modelo e cor, suas partes constitutivas estão,
a todo momento, incitando, por elas mesmas, uma semiose, ao mesmo tempo que o conjunto
dessas partes também o está.
Não queremos aqui propor uma discussão sobre a articulação das linguagens não
verbais, por acreditarmos que é impossível encerrar as linguagens não verbais, definitivamente,
em uma categorização de número de articulações, principalmente, por quanto mais complexo é
o sistema observado.
Mesmo que, por vezes todas as partes constitutivas do texto de um artefato possam
parecer elementos de primeira articulação, talvez em outro nível de análise isso não seja
verdade.
102
Como disse Eco (2014, p. 201): “é, portanto, difícil fixar abstratamente os diversos
níveis de articulação dos vários sistemas. Em certos casos, o que de um ponto de vista aparece
como elemento de primeira articulação converte-se em elemento de segunda, de um outro ponto
de vista”.
Esclarecida a importância da consideração do artefato como um texto, voltamos para
uma reflexão sobre o significado. Se a mensagem do artefato é um grande texto, que possui um
significado coerente, vejamos a que significados denotados e conotados podemos dizer que essa
mensagem reporta.
3.2. Denotação e Conotação em Design
Vimos que os fenômenos de denotação e conotação nada mais são do que uma
hierarquização dos significados dentro do semema de um dado significante. Portanto, por mais
que esses termos estejam, usualmente, atrelados à linguagem verbal, seu uso para qualquer
sistema semiótico é igualmente válido.
A discussão sobre os significados denotados e conotados da unidade cultural de um
artefato recai, necessariamente, em aspectos funcionais desse mesmo objeto. Como dito
anteriormente, é muito difícil falar da definição (e, logo, a identificação) de um artefato que não
passe pela sua função.
Mesmo que um mouse totalmente excêntrico nos transmita uma mensagem para além
de sua função, esse significado, antes de tudo, foi construído em cima da “coisa básica” a que
podemos chamar e identificar como mouse.
A abordagem dos artefatos sob um prisma, essencialmente, de uma teoria dos códigos
nos fará refletir não só sobre antigas questões no Design, como funções práticas e simbólicas,
mas também os usos imprevistos a que um artefato é submetido.
3.2.1. Funções primeiras e funções segundas
Se o significado denotado é aquele remetido “em primeira instância” por um código a
um dado significante, qual seria o significado denotado do objeto ||automóvel||?
Num primeiro momento, poderíamos nos referir apenas ao ||automóvel|| de uma maneira
geral, a “todos os automóveis”, isto é, uma classe de objetos. Se não estamos lidando com esse
ou aquele automóvel em uma dada circunstância específica, temos de nos delimitar, no mínimo,
a um contexto.
103
Mesmo assim, suponhamos o automóvel como objeto bastante conhecido e difundido
ao redor do mundo, com algumas marcas denotativas (globais) comuns através das culturas.
Consideremos que três dessas marcas denotativas fundamentais para a definição do significado
denotado de ||automóvel|| são «terrestre» e «locomoção por motor».90 Essas marcas denotativas
constroem o significado denotado que conhecemos para o automóvel: algo que serve para o
transporte terrestre de cargas e que a sua locomoção acontece por motor.
Ora, esse significado denotado coincide com aquilo que entendemos como a função do
automóvel e aquilo que motivou a sua concepção tal como o entendemos. Por esse motivo, o
significado denotado de ||automóvel|| nada mais parece do que sua definição, significado esse
que poderia ser posto de maneira equivalente ao significante |automóvel|.
Portanto, vemos aí o trabalho do código de instituir convencionalmente a relação entre
dois significantes (o objeto e o verbal) e um mesmo significado denotado. Entretanto, ao ver
um automóvel podemos não pensar exatamente em sua função, mas nessa definição geral que
está baseada na função. Segundo Eco (2016, p. 198), “quando olho uma janela na fachada de
uma casa, não penso, o mais das vezes, na sua função; penso num significado-janela, que se
baseia na função, mas que a absorveu a ponto de esquecê-la [...]”.
Esse é um posicionamento muito próximo ao de Barthes (2012, p. 53), o qual já
mencionamos neste trabalho, sobre os funções-signos. Para o autor, encaixam-se nessa
classificação todos os objetos de uso cotidiano, os quais, a partir da sua vivência na sociedade,
são capazes de apresentarem-se como signos das próprias funções que desempenham: eis o seu
significado denotado.
Assim, poderíamos dizer que, em uma dada sociedade, um código institui que o
significado denotado de um artefato está atrelado ao propósito que essa mesma sociedade faz
uso do objeto. O que não quer dizer, necessariamente, que o significado denotado de um
artefato, para um dado grupo de pessoas, é correspondente à função que o fundou originalmente.
Teríamos aí, justamente, um caso típico de instituição de um código, em que um sujeito, ao
desconhecer um determinado objeto realiza um tipo de raciocínio (basicamente induções e
abduções) e atribui àquele significante percebido a um significado denotado suposto (leia-se
função).
90 Como dissemos, essas são apenas algumas das marcas denotativas desse objeto. Afinal, essas marcas são comuns
a outros objetos os quais o carro se opõe semanticamente, como por exemplo, motos e ônibus. Estes veículos são
ambos terrestres e motorizados, mas possuem certas marcas denotativas que também os diferenciam do carro,
como o tamanho e o número de assentos, entre outros.
104
Para ilustrar situações como essa, Umberto Eco (2016, p. 200) apresenta um caso
interessante mas não menos jocoso, em que certas populações rurais foram beneficiadas por um
programa do governo italiano com casas modernas dotadas de banheiros com privadas. Como
conta Eco:
As populações locais, habituadas a fazer suas necessidades no campo e despreparadas
ante a chegada misteriosa das bacias sanitárias, usavam-nas como caixas de limpeza
para azeitonas: suspendendo uma redezinha onde eram postas as azeitonas, davam a
descarga e assim procediam a limpeza dos vegetais (2016, p. 200).
Eco argumenta que os camponeses do citado exemplo não possuíam o código do vaso
sanitário, tal como foi instituído pelos seus criadores. No entanto, tendo em vista esse caso,
talvez seja útil para o Design propor uma reflexão: considerando um ponto de vista
extremamente funcionalista, haveria alguma “culpa” a ser atribuída também aos projetistas do
vaso sanitário? Quer dizer, se a forma de um objeto tem que ser apresentada de tal maneira que
sua função possa ser facilmente depreendida, tentemos entender o que aconteceu nesse caso.
O dizer cânone dos anos da abordagem essencialmente funcionalista em Design, “a
forma segue a função”, parte de uma relação externo-interno: o aspecto externo e tangível do
produto, de algum modo, consegue transmitir aquilo que lhe é “interno” e “intangível”, isto é,
seu significado denotado, a função – em dada cultura e dado contexto.
Não há dúvidas de que existem formas, principalmente no que diz respeito à utensílios
manuais, que exprimem muito bem a maneira de que devem ser manejados, algo que, mesmo
não sendo totalmente equivalente a exprimir uma função, é algo próximo. No entanto, não é
próximo o bastante a ponto de falarmos de uma motivação entre os planos de expressão e
conteúdo, embora um isomorfismo, como vimos, esteja presente. Esses formatos funcionam
quase num sistema chave-fechadura: a forma de um mouse dito ergonômico, juntamente com
a disposição dos seus componentes, convida a mão a pegá-lo de um dado modo.
Entretanto, esse processo mental de encaixes entre formas, como na relação entre uma
luva e a mão, não necessariamente implica o conhecimento da função desempenhada pelo
objeto – nem muito menos é uma certeza absoluta do próprio modo de “pegar” o objeto. Por
exemplo, podemos ver o formato ergonômico de um mouse, mas uma criança poderia pegá-lo
de uma maneira totalmente diversa da “induzida” pela sua forma, por não conhecer a unidade
cultural a que corresponde o significado «mouse» em determinada cultura.
105
Parece-nos que a solução mais sensata para esse problema, ao menos em termos
semióticos, é aquela proposta por Eco (2016, p. 200): “a forma denota a função só com base
num sistema de expectativas e hábitos adquiridos, e portanto, com base num código”.
Nesse ponto, as máximas “não existe texto sem contexto” e “nada surge do nada”, são
de grande pertinência. Nenhuma forma, isolada de um contexto, é capaz de aludir a um
significado: dizer isso seria negar todos os postulados que mencionamos até agora do código
como o elo convencional e culturalmente estabelecido que liga significante e significado.
Por outro lado, essa afirmação não deve ser levada ao outro extremo: o código não é um
cárcere, ele não encerra relações; ele é um organizador, um alicerce, uma base que convém
infinitas mudanças.91 Portanto, isso não quer dizer que, pelo fato de existir um código que me
permite associar um significante a uma dada unidade cultural «cadeira», que todas mensagens
que partam do significante ||cadeira|| estejam condenadas a uma esterilidade. Isto é, só porque
podemos identificar um objeto como cadeira não implica, necessariamente, que todas as
cadeiras sejam completamente iguais ou que transmitam os mesmos significados; embora,
paradoxalmente, existem certas marcas no semema desses variados significantes que são
comuns e é o que nos permite chamá-las de cadeiras.92 Assim, a grande variabilidade das
mensagens e a inovação de novas formas, seja para novas funções ou não, também só
acontecem com base em códigos preexistentes.
Poder-se-ia questionar que estamos definindo o significado denotado de um artefato,
por meio de uma abordagem funcionalista sectária, essa mesma que já endereçamos algumas
críticas, por negar o poder simbólico dos artefatos.
Para diferenciar significados denotados (que são essencialmente baseados numa função
desempenhada pelo artefato) dos seus significados conotados (que podem ser inúmeros e
partem da sua vida em sociedade), Eco (2016) propõe a diferenciação entre funções primeiras
e funções segundas.
Entretanto, a terminologia pode ser enganosa. Não devemos considerar que uma é mais
importante que a outra: a função primeira de um artefato não é, obrigatoriamente, aquilo que
pode mais chamar à atenção. Os termos “primeiras” e “segundas” são usados por Eco em uma
91 Afinal, “a certeza de que tudo está escrito nos anula ou faz de nós fantasmas” (BORGES, 2016, p. 78). 92 Não queremos propor aqui fazer uma ontologia dos objetos, ou aquele tipo de estruturalismo ontológico o qual,
anteriormente, criticamos (Cf. II. 2.1.3). No entanto, é um fato de que existem certas diretrizes gerais de
reconhecimento dos objetos ou de qualquer coisa conhecida de nossa realidade, independente da sua variabilidade
dentro de um mesmo grupo.
106
alusão à própria estruturação dos significados denotados e conotados: a conotação só existe se
previamente há uma denotação estabelecida, um significado primeiro. É a partir dessa
compreensão que os termos funções primeiras e funções segundas deve ser entendido.
A função primeira de um automóvel é, por exemplo, o transporte terrestre motorizado,
mas também um automóvel pode ser usado como objeto de ostentação, de indício de um poder
aquisitivo, por exemplo. Essas funções que partem da compreensão primeira do que é um
automóvel e do seu uso, são algumas funções segundas conhecidas desse objeto em nossa
sociedade.
Ora, da mesma maneira que um significado denotado não é universal e pode variar
conforme diferentes circunstâncias, nem sempre um mesmo objeto desempenhará a mesma
função em diferentes situações.93
Não nos referimos aqui a somente situações de desconhecimento de código, como por
exemplo, o caso dos vasos sanitários no conjunto habitacional italiano. Naquele caso, de fato,
os camponeses deram ao vaso sanitário uma função primeira baseada em um significado
denotado suposto por eles. E ainda poderia existir o caso de que, mesmo esses sujeitos sabendo
o uso designado do vaso sanitário, utilizassem-no como um local para depósito de azeitonas.
Afinal, por mais desconfortável que possa ser, um sujeito pode usar uma chave de fenda
para coçar o ouvido, seja sabendo que aquele objeto não foi projetado para isso (mas mesmo
assim o usando para tal finalidade) ou, por desconhecimento do que é o objeto, o utilizá-lo
daquela maneira e naquela circunstância por uma suposição ou uma indução pela forma do
objeto.
Ainda há mais: o que dizer então, dos inúmeros objetos que podem servir como um peso
de papel? Ou ainda, por falta de um marca páginas de um livro, utilizar qualquer outro objeto
que possa destacar a página desejada?
Podemos dizer que esses casos tratam-se de um desvio da função designada
originalmente para o objeto, isto é, tal como foi em primeira instância instituído por um código
em uma cultura, a partir da atividade de um inventor, designer, arquiteto, engenheiro, entre
outros. Esse desvio pode ocorrer por desconhecimento do código ou não: o que o caracteriza
93 Ainda há o peso da marca ou empresa que produziu determinado artefato: muitas vezes, dois artefatos podem
realizar a mesma função e possuir similaridades visuais tão grandes que o principal diferenciador entre os dois é
simplesmente a marca. Portanto, a marca é, sem dúvidas, uma importante camada de complexidade do significado
de qualquer artefato.
107
essencialmente é o surgimento de uma denotação ou marca denotativa circunstancial94, que
pode ser bastante particular de um indivíduo ou uma prática já em vias de absorção pelo código.
Por exemplo, utilizar um estojo de lápis como peso de papel, é uma prática comum, um
solução de certa maneira já codificada. Outro forte exemplo da codificação de um uso não
designado originalmente, é usar uma mesa para sentar. Ora, o propósito inicial de uma mesa,
não é o sentar, muito embora, possamos fazê-lo. Nesse caso, o significado denotado não muda
totalmente, ocorre aí a adição do sema «possibilidade de sentar-se» ao semema geral de ||mesa||,
que é puramente circunstancial: afinal, não definimos uma mesa pela sua possibilidade de nela
sentar-se.
Por outro lado, utilizar uma chave de fenda como ferramenta para coçar os ouvidos, é
algo bastante atípico.
A partir dessa discussão, é possível, então, se questionar: e como um determinado sujeito
consegue pensar nesses determinados usos? Por que uma chave de fenda pode levar à ideia de
“ferramenta para coçar os ouvidos”, mas não o estojo de lápis, ou um celular, ou um mouse?
A pergunta pode parecer um devaneio ou quebra do bom senso, mas que, na verdade,
nos propõe (mais uma vez) uma reflexão sobre como percebemos os objetos. Umberto Eco ao
refletir sobre essas diferentes maneiras que podemos nos aproximar dos objetos, diz que:
Isto não é a prova de que tudo serve, mas sim de que os objetos podem ser focalizados
do ponto de vista das características – ou pertinências – relevantes que apresentam.
[...] Só podemos considerar relevantes ou pertinentes as características detectáveis por
um observador normal – mesmo que ninguém as tenha detectado até então – e só
podemos isolar as características que parecem ser perfeitamente relevantes do
ponto de vista de um determinado propósito. (2005, p. 170, grifo nosso)
Portanto, a questão está em tornar pertinentes certas características que podem ter sido
desconsideradas anteriormente, visando, agora, novos propósitos. A chave de fenda pode ser
posta em cavidades pequenas e, logo, pode-se igualmente pensar em inseri-la no ouvido ou
numa narina – até mesmo pela similaridade do formato com o dedo. Obviamente, algo que não
pode ser dito de um mouse ou celular. A chave de fenda, por sua vez, é uma ferramenta afiada
e que pode facilmente machucar um ouvido ou uma narina, sendo esse um uso extremamente
desconfortável, mesmo que possível. Como diz Eco (2005, p. 171), existem “pertinências
94 Sobre contextos e circunstâncias neste trabalho, cf. p. 73.
108
impossíveis” e “pertinências absurdas”. Assim, podemos até usar a chave de fenda para coçar
o ouvido, mas dificilmente poderíamos utilizá-la como um cinzeiro.
O uso da chave de fenda como ferramenta para coçar o ouvido, ainda, poderia ser
identificado como possível, por um sujeito por um fenômeno de similaridade com objetos que
ele tem o conhecimento, que servem a esse propósito, como aquela fina haste flexível dotada
de algodão nas duas pontas. Isso quer dizer, que certos semas comuns aos sememas da chave
de fenda e dos cotonetes foram percebidos pelo sujeito e, logo, duas unidades culturais foram
comparadas e aproximadas por esse sujeito, naquele momento.
No entanto, não devemos nos apressar e afirmar que o conhecimento do que é um
cotonete condicionou o uso da chave de fenda daquela maneira, independentemente desse
sujeito possuir o código ou não da própria chave. No máximo, poderíamos dizer que possuir
ambos os códigos ou só o código do cotonete, levaria ao sujeito, no momento em que percebe
a chave de fenda, assimilá-la ao cotonete e realizar uma indução sobre um possível uso de modo
mais rápido.
No âmbito dessa discussão, seria mais pertinente dizer que esse sujeito adicionou uma
segmentação particular à unidade cultural correspondente ao significante ||chave de fenda||,
isto é, adicionou aquele significado denotado circunstancial. Ou, no caso do total
desconhecimento da chave de fenda, ele atribuiu a esse significante uma unidade cultural, que
contém o uso da chave como algo para coçar ouvidos.
Num caso ou noutro, poderíamos dizer que ocorreram aí, respectivamente, fenômenos
de hipercodificação e hipocodificação (ECO, 2014). O uso particular e inovador de um
significante com base em uma regra já dada, é o típico fenômeno de hipercodificação, tal como
o entende Eco, em seu Tratado (2014). Já a hipocodificação caminha na direção contrária: em
razão do desconhecimento de uma regra geral, trata-se de codificar casos específicos que se
sabe “mais ou menos” seus significados.95
É assim que enquadramos, semioticamente, os fenômenos de usos não designados e
usos imprevistos de artefatos feitos por vários sujeitos em seu dia a dia. Os signos produzidos
pela linguagem do Design, assim como qualquer outra linguagem humana, permitem esses
fenômenos. Existem certos usos que, embora não designados no ato do projeto de um dado
95 Quando discutimos sobre o código, rapidamente apresentamos esses dois fenômenos. Cf. p. 46.
109
artefato, podem ser previstos pelo designer. Mas, há também tantos outros casos de usos não
designados totalmente imprevistos.
Esses usos podem tanto decorrer de uma particularização circunstancial do código,
quanto uma indução ou abdução em razão do desconhecimento do código. Sendo ambos,
passíveis de passar do particular ao geral, no momento em que um código absorve essas
práticas e as torna “comuns”.
Entretanto, existem casos totalmente atípicos, como aqueles decorrentes de movimentos
de vanguarda, como, por exemplo, os ready made. Marcel Duchamp (1887 – 1968) pega um
artefato totalmente funcional e com uma função denotada bastante clara por ele, como o urinol,
e o coloca num museu, o elegendo como obra de arte. Ou ainda, o caso da obra chama A Real
Work of Art de Mark Wallinger (1959 –), um cavalo de corrida que foi exposto como obra de
arte, no ano de 1991 (WARBURTON, 2003, p. 2).
Em ambos os casos, poder-se-ia afirmar que a nova função desempenhada no museu
nada tem a ver com a sua anterior (mesmo que um cavalo não seja definido por uma função).
Afinal, como dizer que a nova função exercida é uma particularização do significado denotado
do mictório, se esse significado não mantém nenhuma relação com a Arte?
Ora, eis o ponto de Duchamp. Sem dúvidas, o próprio fato daquele artefato ser um urinol
adiciona uma complexidade à situação, mas se fosse um lavabo ou uma torneira teríamos uma
situação parecida, de todo modo. Eco (2016, p. 209) diz que em casos excepcionais como esse,
estamos diante do deslocamento de uma função primeira para uma função segunda.
É justamente pelo motivo do mictório ou do cavalo serem entendidos, usualmente, de
um dado modo, que eles foram escolhidos para desempenharem, ousadamente, o papel de obras
de arte. O fato de eles serem o que comumente não se atribuía a uma obra de arte, é, justamente,
o significado conotado desta mesma obra que passam a ser: estão postos como obras “ousadas”,
“de vanguarda”, “questionadoras”.
Esses significados só podem ser construídos (culturalmente) a partir da própria
denotação do que é uma obra de arte, que nesse caso trata-se, precisamente, de um convite a
sua discussão. O caso atípico aqui é que esse significado conotado foi, anteriormente, um
significado denotado.
110
Mas, as funções segundas não manifestam-se sempre assim, de maneira tão excêntrica.
As funções segundas, sustentadas a partir dos significados denotados (funções primeiras), são
decorrentes da semantização dos objetos dentro de uma sociedade.
As conotações dos objetos de uso estão atreladas às suas condições de uso, às condições
de sua produção, às consequências do seu uso, ao seu uso histórico, ao seu uso por determinadas
pessoas, entre outros. É impossível de todo delimitá-las: elas podem ser tanto particulares a um
sujeito em razão do conjunto de experiências dele com o objeto, ou socialmente codificadas.
As funções segundas, muitas vezes, desempenham um papel tão marcante numa
sociedade, que são consideradas mais importantes que as funções primeiras. Umberto Eco
(2016, p. 202) dá o exemplo de um trono, o qual é possível utilizar sua função primeira, que é
sentar, muito embora o seu uso principal não seja simplesmente sentar. Um trono, em razão de
uma série de significantes, é capaz de conotar certo prestígio, dignidade e autoridade.
Uma dada cadeira, pode também ser constituída de significantes, que carreguem grande
poder conotativo de status social, riqueza e prestígio. Ou ao contrário, simplicidade, rusticidade
ou até mesmo pobreza. É importante notar que, muitas vezes, conotações desse tipo surgem em
razão dos próprios significantes parciais utilizados na construção de um artefato. Esses
significantes podem possuir, eles mesmos, uma carga semântica precedente ao objeto, cheia de
conotações, e daí transmitir isso ao artefato.
O poder dessas conotações pode ser tão grande, ou assim estimulado por construtores
de discurso sobre o objeto (como a mídia e a publicidade), que a função primeira é totalmente
esquecida. Nessa inversão, em que a conotação aparenta ser aquilo que é expresso em primeira
instância pelo objeto, nada mais seria do que um tipo de mito, no sentido barthesiano.96
No entanto, não devemos de todo nos confundir e achar que está relegado apenas às
funções conotadas um propósito simbólico. Uma tribo em local distante pode instituir que
determinadas bandanas devem ser usadas por todos os homens, e em cada uma delas haja uma
inscrição que identifica classes específicas a que cada um desses homens pertence. No exemplo,
o uso de determinada bandana indica o papel desempenhado por dado homem na tribo.
96 Sobre o mito barthesiano, neste trabalho, cf. p.64.
111
Para a tribo, as bandanas foram criadas com um propósito essencialmente de
demarcação, de diferenciação. Não é a função primeira das bandanas proteger a testa ou a
cabeça do sol, mas sim marcar.
De igual maneira, a faixa usada por um capitão de um time de futebol ou vôlei, tem o
mesmo papel. Ela puramente demarca, simboliza, pede uma leitura para muito além do que
simplesmente é: em casos como esse, o poder comunicativo dos objetos não é posto em
discussão.
Em ambos os casos, o significado denotado desses objetos colocariam como sua função
primeira a demarcação de um sujeito. Essa demarcação, embora em alguma medida visível,
realiza sua função de maneira puramente inteligível.
Inúmeras situações podem surgir em que objetos são criados desde um primeiro
momento para a finalidade de simbolizar e marcar. É uma atividade antiguíssima na história da
humanidade, principalmente no âmbito litúrgico: o papel da hóstia, embora seja comestível e
deva ser ingerida em certas situações, sua função primeira não é alimentar, é simbolizar.
A esse ponto, poder-se-ia objetar que o trono de que falamos, também demarca e
diferencia: quem o usa está acima de outros. Do mesmo modo alguém poderia conceber uma
mesa e instituir que ela foi feita para simbolizar a comunhão. No entanto, em ambos os casos,
essas funções estão baseadas em um significado primeiro, que institui o que compreendemos e
podemos identificar por “objeto para sentar” e “objeto para apoiar refeições” em uma dada
cultura.
No caso da faixa de capitão, por exemplo, esse objeto, ele mesmo, foi criado
inicialmente sob o simples propósito da diferenciação. Se essa faixa foi criada inspirada em
outros objetos que demarcam, isso não implica que sua função dependa desses outros objetos.
Nesse caso, a própria função de diferenciação é sua função primeira.
Entretanto, distinções entre tipos de funções não é algo novo ao Design. Löbach (2001)
propôs uma classificação entre os tipos de funções desempenhadas pelos objetos de acordo com
sua “configuração formal”: funções práticas, estéticas e simbólicas. Essa famosa distinção está
112
essencialmente baseada, segundo o autor sempre repete, em relações entre os usuários e os
objetos. 97
Enquanto para as funções práticas haveria uma relação entre necessidades fisiológicas
do sujeito e o objeto que é capaz de supri-las, o autor coloca a função estética como “a relação
entre um produto e um usuário em níveis sensoriais” (2001, p.59). Uma afirmação sem dúvidas,
que pode confundir, afinal, na relação com todos objetos há uma atividade sensorial por parte
do usuário.
Löbach tenta se referir à estética como uma organização do que é percebido,
principalmente das informações. Mas, no fim, acaba por associar à expressão a noção daquilo
que é belo. Pelos exemplos dados em seu livro (2001, p. 62-63), a função estética é fator
diferencial entre produtos que desempenham funções práticas similares, destacando-se aquele
que apresenta uma configuração formal visualmente mais “trabalhada”.
Por fim, a função simbólica é a mais complexa de se tentar descrever precisamente.
Löbach (2001) diz que objetos que exaltam essa função, ao serem percebidos, estimulam “a
espiritualidade do homem”. Ele exemplifica um caso de destaque de função simbólica num
objeto por meio da famosa cadeira Barcelona de Mies van der Rohe. Segundo o autor, essa
função é completamente dependente e derivada, hoje, dos aspectos estéticos e condicionada por
experiências prévias dos usuários.
Löbach argumenta que essas três funções estão sempre presentes em um objeto, apesar
de esta manifestação ser em diferentes intensidades. Não menos complexa do que instável, essa
classificação apresenta uma lógica, mas é estabelecida em linhas gerais nebulosas e formais.98
Mesmo assim, consideramos que o caminho traçado aqui, de explicação das diferentes
funções e usos de um objeto, baseado nos conceitos de código, unidade cultural, denotação e
conotação, são extremamente oportunos e seguros para o estudo da linguagem do Design.
Depois de toda essa discussão acerca da estrutura dos significados dos objetos, é
necessário frisar um ponto: nenhum objeto é unicamente definido por sua função.
97 As reflexões de Löbach (2001) sobre o Design estão marcadas pelo viés funcionalista e de uma análise puramente
formal dos objetos, mesmo que exista a chamada por ele “função simbólica”, pois, para esse autor, ela está
essencialmente submissa à questões formais – deixando de lado questões culturais. 98 Interessantes postulados teóricos semióticos foram construídos a partir dessa distinção, tais como Braida e
Nojima (2014), que relacionam as três categorias peirceanas às três funções propostas por Löbach (2001).
113
Conjecturamos aqui que a função desempenhada por ele é uma marca semântica essencial ao
significado, mas não sua única.
Isto quer dizer que não é preciso afirmar que só porque uma cadeira serve para sentar,
que tudo aquilo em que podemos sentar é uma cadeira. Não só existem, como vimos, usos não
designados, mas também tantos outros objetos que servem para sentar além da cadeira, como
bancos, tamboretes e tantos outros que, em razão de sua estrutura, permite-nos essa ação.
Dentro dos significados dos objetos de uso, em alguma medida, também existem
aspectos formais característicos incorporados ao semema, pois da mesma maneira que um carro
é um veículo terrestre motorizado, também o é uma moto e um ônibus, sendo alguns aspectos
formais grandes diferenciadores entre esses objetos.
Não é o nosso objetivo aqui realizar uma análise componencial semântica dos objetos,
nem exaurir a discussão sobre a sua percepção. Esta seção buscou apresentar a estrutura básica
do significado de um artefato enquanto significante inserido em uma cultura. O estudo dos
fenômenos de denotação e conotação são apenas a base fundamental para a compreensão da
construção de mensagens na linguagem do Design, que vai tornando-se cada vez mais complexa
à medida que nos aproximamos da abordagem pragmática.
Agora, esclarecidas algumas questões sobre o significado, completamos as discussões
sobre a faceta díade do signo, significante-significado. Um estudo pormenorizado dos códigos
que juntam essas duas facetas no Design só será apresentado em outro momento desta
monografia. Desta maneira, passamos agora para o estudo das relações dos signos entre si na
linguagem do Design: as relações sintagmáticas e paradigmáticas.
3.3. Design: um sistema de sistemas
Um dos conhecidos motivos da dificuldade de definição de um objeto fixo de estudo
para o Design, é a sua relação com tantas outras áreas (Antropologia, Sociologia, Biologia,
Engenharia, entre outras). Além disso, como já discutimos, são vários os sistemas de objetos
abarcados pelo fazer do designer: mobiliário (doméstico, urbano e para o trabalho),
eletrodomésticos, veículos motorizados, veículos de tração humana, a moda, os sistemas de
informação, sites, identidade visual, sinalização, enfim, a lista parece interminável.
Cada um desses sistemas compreende uma porção da linguagem do Design, uma das
maneiras em que ela se manifesta. Todos possuem certas particularidades, mas estão muito
114
longe de serem isolados uns dos outros. Afinal, não é de hoje que se diz que as formas dos
automóveis influenciam a dos eletrodomésticos, ou que a moda influi no design gráfico.
Como manifestações da linguagem do Design, todos esses sistemas constroem-se por
meio de relações de seleção e combinação de significantes. Vejamos algumas características
próprias dessa linguagem que poderíamos elencar para seus eixos sintagmáticos e
paradigmáticos.
3.3.1. Sintagma e Paradigma em Design
Uma aproximação entre os eixos da linguagem descritos por Saussure e o Design, não
é algo novo: podemos ver uma discussão introdutória sobre o assunto em Escorel (2000, p. 62).
Embora a autora se posicione contrária a uma abordagem multidisciplinar do Design –
ponto que, sob um ponto de vista da teoria dos códigos, defendemos – a sua fala sobre os eixos
da combinação e seleção são pertinentes. Segundo Escorel:
Como toda linguagem, o design possui, basicamente, duas possibilidades de
articulação: uma que se realiza no sentido horizontal e que tem propriedades
combinatórias, outra que se realiza no sentido vertical, em profundidade, e que tem
propriedades associativas. As relações combinatórias determinam os aspectos formais
do produto; as relações associativas, seus aspectos simbólicos. O significado do
produto, como um todo, resulta da soma desses dois aspectos ou eixos de significação.
(2000, p. 64)
A única passagem confusa dessa citação é considerar as relações paradigmáticas como
determinantes dos “aspectos simbólicos” do produto. Uma vez que as relações paradigmáticas
estão organizadas basicamente por aproximações e oposições, muitas vezes semânticas, a
autora, talvez por isso, tenha as definido como determinantes do simbolismo possível de um
artefato.
No entanto, a perspectiva de que as relações paradigmáticas em uma linguagem não
verbal como o Design está sustentada apenas sob uma perspectiva semântica, é enganosa.
Considerando o eixo da seleção aquele arcabouço virtual de signos o qual retiramos as partes
constitutivas99 de um artefato, podemos relacionar os significantes desse repositório de
diversas maneiras.
99 Sobre significantes constitutivos ou parciais, cf. p. 91-94.
115
Portanto, as considerações feitas acerca da natureza do significante nos signos utilizados
e criados pelo designer são pertinentes aqui. Podemos associar dois significantes não só por
similitude semântica (isto é, uma “sinonímia” possível) por meio de comparação de códigos,
mas também por uma similaridade visual, tátil, olfativa etc.
Se, um designer tem em mente um determinado material que deseja utilizar numa parte
da mensagem construída, mas nem sempre o pode utilizar (seja por razões de economia ou
viabilidade da obtenção), então, pode buscar outros materiais parecidos sob um dado aspecto
desejado. Se o material foi escolhido em razão de suas propriedades, por exemplo, de resistência
e retenção de calor, então outros materiais que possam ser assim associados serão procurados.
Se a questão não é exatamente propriedades físicas, mas ópticas, isto é, como o material se
apresenta à visão, então, a busca será por uma similaridade do aspecto visual.
Essas são consequências esperadas da natureza dos significantes da linguagem não
verbal. De modo oposto, numa língua, a aproximação de dois significantes de um signo
linguístico pode ocorrer em razão de sua forma de expressão, isto é, dos fonemas que os
compõem100; mas, também, em virtude do significado que veiculam. Na linguagem não verbal,
as aproximações ou afastamentos dos significantes dentro do eixo de seleção101 ocorrem para
além de associações sonoras, apelando também para todos os outros sentidos pertinentes à
ocasião.
Como dissemos anteriormente, ao primeiro apresentar as noções de sintagma e
paradigma, não objetivamos aqui uma classificação exaustiva dessas relações, mas não as
negamos. Cabe dizer, que as associações de aproximação ou distanciamento entre dois signos
no eixo paradigmático, na linguagem do Design, pode ser de natureza semântica ou perceptiva,
dependendo do aspecto comparado. Esta é uma hipótese que aqui levantamos como uma das
características do eixo paradigmático na linguagem do Design.
Já as relações sintagmáticas, na linguagem do Design, possuem certas características
mais específicas. Para o estudo dessas relações devemos refletir sobre o que motiva a
combinação de signos de uma dada maneira no Design.
Apesar de na construção de mensagens no Design não existirem “regras formalizadas”
tal como na sintaxe de uma linguagem verbal, existem certas delimitações que, ora estão além
100 Note-se que por esse mesmo motivo, a aproximação pode também ocorrer de um ponto de vista da grafia, isto
é, do significante do significante (a grafia ou letra que representa um som). Alguns poemas concretos se baseiam
nesse jogo de similaridades. 101 Cf. II. 2.6.1.
116
da vontade do designer e noutras que partem do seu juízo crítico na combinação de certos signos
em um determinado contexto.
A primeira delimitação é de ordem tecnológica, e logo, algo que está além do poder de
decisão do designer. A essa delimitação chamamos de restrição tecnológica. Que fique claro
que utilizamos o termo “tecnologia” de modo bastante genérico, abrangendo modos de
produção, relação dos materiais com as técnicas e esses modos de produção, ferramentas e
saberes que permitem a criação e/ou construção de um artefato.
As restrições tecnológicas podem ser globais ou circunstanciais. Isso quer dizer que,
mesmo que há 50 anos atrás se desejasse criar a tela de um televisor capaz de ser dobrável, isso
era algo inviável. Naquela época, até então, não se conhecia um meio de dar ao vidro, quando
já resfriado, uma característica de maleabilidade. Logo, essa era uma restrição global, a qual,
hoje em dia, estamos em via de superação. Mas isso não se aplica somente a uma forma, que
possa se desejar dar a um material que a tecnologia ainda não conseguiu prover: poder-se-ia
desejar a concatenação de diferentes partes de uma máquina que ainda não se tem o
conhecimento de como realizar isso.
Uma restrição tecnológica circunstancial é aquela em que uma dada tecnologia existe,
mas que não está ao alcance do sistema produtivo a sua utilização. Essa restrição circunstancial
pode acontecer por diversos motivos, sejam em razão do custo que não convém à produção, ou,
dentro de um contexto específico, pela falta de máquinas ou mão de obra capaz de realizar a
tarefa.
Outras delimitações quanto à combinação de signos numa mensagem, dizem respeito à
própria vontade de juízo do designer, aliado à suas expressões particulares. Embora em um
determinado período e contexto da história do Design houve um esforço para o eleger enquanto
ciência, o Design sempre terá aquela dimensão pessoal inerente à todo ato de criação. Uma total
imparcialidade da escolha, aplicação e execução de um projeto nos parece ilusória.
Nesse ponto, é válido lembrar que não são regras combinatórias (no sentido estrito e
ligado a uma noção de sintaxe) certos ditames internos da área, que afirmam que não se deve
misturar duas cores numa relação figura-fundo, ou que uma cadeira não deve ter a terminação
da base do assento reta, porque obstrui a circulação do sangue nas pernas, por exemplo. Essas
são recomendações baseadas no estudo e na observação de diversos projetos ao longo da
história do Design, um conjunto de conhecimentos que um designer pode ou não ter
conhecimento e, também, pode ou não aplicar a um projeto.
117
A aplicação desses conhecimentos específicos da área, e que visam a uma melhor
execução de um projeto, embora importantes diretrizes para uma a obtenção de um bom
resultado, não implicam uma anulação comunicacional do artefato. Mesmo que um cartaz seja
feito com contraste de cores inadequado, tornando-o ilegível, ainda assim, estaria, no mínimo,
comunicando a ilegibilidade daquela composição sígnica.102
Fora isso, a atividade criativa do designer impede que certas regras sintáticas dogmáticas
possam ser descritas.103 A combinação dos signos pode ignorar até mesmo certas delimitações
dadas por um código, mesmo que essa combinação leve a sua desestruturação. Pode-se colocar
um par de hélices naquele conjunto formal de pernas, base e espaldar a que chamamos de
cadeira, e, num movimento de revolução do código, continuar chamando aquilo de cadeira.
Pode-se, ainda, dar a esse artefato fictício um novo nome, diferi-lo da cadeira e propor uma
nova categoria de objetos.
Uma questão difícil seria nos perguntar se ao propor uma cadeira com hélices mas sem
um espaldar, poderíamos, ainda assim, chamar esse artefato de uma cadeira. Eis mais uma vez,
o fantasma de uma ontologia dos objetos de Design pairando sobre este trabalho.
Embora essa não seja uma questão que nos propomos a resolver aqui, uma solução
teórica preliminar poderia ser a consideração da existência de um léxico próprio da área, o qual
entende certos significantes totais constituídos de certos significantes constituintes
característicos, principalmente, no que diz respeito às formas.
Nessa suposição, certas características formais seriam reconhecidas enquanto tais como
pertencentes a um tipo de objeto (algo que nos faz reconhecer uma cadeira ou ventilador por
mais extravagante que seja) sem a intervenção da linguagem verbal. Afinal, podemos criar a
mais surreal das cadeiras e outros a reconhecerem como tal apenas porque dissemos que aquilo
é uma cadeira.
102 E aqui entramos numa daqueles axiomas clássicos da Teoria da Comunicação: é impossível não comunicar
(WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967). 103 Por vezes, é até comum a manifestação de uma linguagem do Design por meio de uma estilística típica de certos
designers, que vem a influenciar tantas outras gerações (SUDJIC, 2010). Uma determinada maneira consagrada
que um designer concatenou alguns signos, muitas vezes influenciará a construção de tantos outras mensagens,
ou, de modo dialético, mensagens que seguem uma direção oposta. Nesse ponto, fica clara a influência histórica
na construção de certos artefatos num dado período, e a relação dialética entre gerações. Esse é um fenômeno
esperado, uma vez que, essencialmente, em qualquer linguagem humana, nenhuma construção intencional de
mensagens pode ser desatrelada da sua dimensão ideológica.
118
Naturalmente, essas diretrizes básicas da organização de um sintagma (isto é, de uma
mensagem, um artefato) em Design são muito gerais, basta ver, ao longo da história, quantas
formas diferentes uma cadeira ou uma chaleira assumiu.
Uma última consideração a ser feita sobre o sintagma na linguagem do Design é
justamente sobre a abrangência desse termo. Alguns autores, tais como Barthes (2012) e
Baudrillard (2012), utilizam esse termo para referir-se ao conjunto de artefatos em um dado
espaço, como, por exemplo, uma sala ou uma cozinha mobilhada. Para eles, isso seria um
sintagma do sistema (paradigma) composto de objetos típicos do mobiliário doméstico.
Nesta seção, utilizamos a noção de sintagma relegada apenas àquele conjunto de
significantes parciais, que constituem o significante total percebido como artefato. O que não
exclui a pertinência da abordagem de Barthes e de Baudrillard, pois, um determinado arranjo
de objetos num espaço gera uma ambiência (BAUDRILLARD, 2012).
No entanto, tomar o sintagma como apenas o conjunto de objetos, é considerar como
unidades mínimas de significação esses mesmos objetos, e não as partes que os constituem e
que são dotadas de significação própria. Como vimos, esse conjunto de signos tecem a malha
textual do artefato, e é uma redução perigosa não considerar tais signos por eles mesmos.
Logo, embora essa consideração do conjunto de objetos como um sintagma seja válida,
a exclusão do próprio artefato como um longo sintagma (o texto) não pode ser posta em segundo
plano.
3.4. Algumas considerações sobre a Seção I
Neste trabalho, até o presente momento, discorremos sobre alguns termos que
consideramos essenciais para a construção de uma possível resposta ao problema proposto
sobre a construção do sentido em artefatos de Design. Fizemos uma apresentação desses termos
tanto em seu habitat original, quanto a uma aplicação adequada ao estudo da linguagem do
Design. Em ambos os casos, o referencial teórico sempre esteve apoiado nos autores
selecionados, Umberto Eco e Roland Barthes.
Ao longo da discussão, buscamos levantar algumas hipóteses no que diz respeito à
características próprias da linguagem do Design, seja em relação ao significante e significado
ou às relações paradigmáticas e sintagmáticas.
Nesse momento, aproximamo-nos agora de uma nova etapa, que foi desenvolvida tendo
em mente a verificação dos postulados apresentados, bem como um aprofundamento de
119
questões relativas à complexidade dos códigos e dos significados atrelados a eles, na área do
Design.
Temos em mente que existem tantos outros caminhos de se estudar os objetos de uso
que são complementares às teorizações da Semiótica propostas aqui: vieses históricos,
antropológicos, sociológicos, econômicos, produtivos, além de outras abordagens de análise.
Na verdade, é impossível se fazer uma análise semiótica sem se ter um repertório mínimo de
saberes que apontem para todas essas áreas, uma vez que os signos constitutivos das mensagens
estudadas estão fundados em códigos culturais. De outro modo, seria cair nas abordagens
extremamente formalistas a que fizemos algumas críticas.
É interessante observar que essa necessidade de fazer conexões com diferentes áreas a
fim de compreender uma dada mensagem, é algo que merece uma atenção especial no Design.
Afinal, o Design lida com objetos que não estão unicamente dentro do seu domínio: tal como
falamos na introdução deste trabalho, a constante interdisciplinaridade dentro de qualquer
projeto faz com que a consideração dos códigos seja crucial.
Mesmo assim, é natural que toda análise não seja capaz de abordar ou esgotar, em sua
totalidade, todas essas dimensões da mensagem, um ou outro viés acabará por ser descrito com
mais exaustão do que outro. Todas essas questões antropológicas ou históricas, produtivas ou
econômicas, findarão sendo uma preterível sobre a outra sob o quesito da pertinência.
Quanto mais uma dessas questões nos oferecer alguma contribuição, para jogar luz na
construção dos signos que compõem dado artefato, mais presente ela estará.
Ao fim da análise, retomaremos algumas discussões e faremos as adições necessárias às
hipóteses trabalhadas, com o objetivo de, finalmente, propormos um modelo de produção
sígnica em Design.
121
1. PRELIMINARES
Esta seção está relegada a apresentar o percurso de uma breve análise de três artefatos
de Design provenientes de distintos sistemas de objetos. A esta altura do trabalho, esperamos
que os conceitos previamente expostos estejam suficientemente claros, pois, agora, é o seu viés
mais operatório que será explorado em benefício de uma aplicação prática. Isso quer dizer, que
suas definições não foram repetidas aqui, e que esta análise preconiza se ater a somente os
conceitos previamente discutidos.
1.1. Objetivos e limites da análise
Na seção anterior, a explicitação de alguns conceitos semióticos aplicados ao Design
aconteceu com a ajuda de exemplos propostos a partir de situações hipotéticas ou exercícios
mentais. Mesmo que esta monografia se desenvolva numa perspectiva de reflexão
epistemológica sobre a área do Design, é indispensável, para a asseveração da ideia aqui
desenvolvida, a verificação desses postulados teóricos numa análise prática de alguns artefatos.
Portanto, como mencionado, esta seção discorre sobre a análise de três artefatos de
sistemas de objetos da área do Design. O objetivo é observar como aqueles termos semióticos
podem ser utilizados no estudo de determinado artefato, para melhor compreendê-lo enquanto
mensagem construída de uma linguagem. Em última instância, esta análise serve como o
segundo pilar (ao lado dos pressupostos teóricos), que sustentam o objetivo final desta
monografia: a proposta de um modelo elementar de produção sígnica, que se aplique a qualquer
sistema de objetos.
No entanto, não se pretende desenvolver uma análise profunda, muito menos uma capaz
de exaurir as possibilidades interpretativas que os artefatos possam carregar. Tais análises
pecam em profundidade, porém, tentam compensar com a simplicidade da elucidação de como
esses artefatos compartilham, num dado nível, um tipo de linguagem.
Considerando esse enquadramento da análise, os artefatos escolhidos são analisados
mediante fotografias e não a partir do contato direto do analista com eles. Naturalmente, parte
do potencial da análise é reduzido, mas considerando o intento desta investigação, acreditamos
que é suficiente a busca por informações acerca dos artefatos, conjuntamente com a observação
de imagens que os representam. Por outro lado, o procedimento de análise desenvolvido não
impõe qualquer restrição de aplicação a qualquer objeto físico que o analista tenha em mãos.
122
A limitação da análise também ocorreu em razão dos conceitos aplicados. Muitos termos
e propostas metodológicas de diversos autores (semioticistas ou não) poderiam entrar para
garantir um estudo mais aprofundado. No entanto, isso implica uma longa lista de pressupostos
teóricos ou falta de coesão entre as partes deste trabalho, isto é, apresentar conceitos operatórios
na análise que não foram previamente introduzidos.
A delimitação do uso dos conceitos de significante, código, significado, denotação e
conotação, restringem o estudo dos artefatos a um interesse em observar como essas mensagens
estão estruturadas, a fim de tentar contemplar o modo como foi feita essa mesma
estruturação.104
Tendo em vista o objetivo final deste trabalho, essa é uma delimitação válida; entretanto,
é inegável a incompletude das análises. Elas são apenas um ponto de partida e estão abertas a
um aprofundamento, na medida em que não há qualquer impedimento de concatenação de seu
método com conceitos de outras correntes semióticas, tal como a peirceana, mais comumente
utilizada em análises semióticas.
1.2. Critérios de escolha dos artefatos
Outro ponto que reforça a delimitação planejada da análise conforme os objetivos da
pesquisa, é o critério de escolha do corpus.
O preceito básico de escolha dos artefatos, que compõem o corpus, foi a distinta
procedência entre eles: cada artefato deve “representar” um dos sistemas de objetos em que o
designer pode exercer sua atividade. Desse modo, é possível, justamente por meio da análise,
demonstrar como existe uma linguagem comum a todos eles.
Já a escolha do sistemas de objetos em si, que veio a fornecer um determinado exemplar,
não seguiu qualquer critério específico. Pelo contrário, não há qualquer predileção de um sobre
outro, pois, levando em conta uma linguagem comum entre os artefatos de diferentes sistemas,
estes estão sendo considerados de modo equiparado. No entanto, a escolha dos três artefatos
buscou, cada um a seu modo, a sua capacidade de ressaltar um aspecto do trabalho com a
linguagem não-verbal.
Como representante do mobiliário doméstico, o primeiro artefato escolhido (Fig 3) foi
a The Well Tempered Chair, do designer Ron Arad (1951-), concebida em 1986. Com a
104 “Estruturação” não necessariamente no sentido estruturalista, mas na sua acepção mais aberta do termo, a qual
aproxima-se do uso do termo organização.
123
excentricidade típica das peças desenvolvidas por Ron Arad, esse artefato pode levantar
algumas discussões acerca da nossa capacidade de reconhecer os objetos.
Fig 3 The Well-Tempered Chair, 1986, Ron Arad. 105
O segundo artefato (Fig 4), um representante dos veículos terrestres motorizados, é o
automóvel Fiat Toro, lançado no mercado no ano de 2016 e produzido pela Fiat Chrysler
Automobiles, conhecida também por Grupo Fiat. Uma vez que a concepção desse artefato,
basicamente, está fundada numa metáfora, o mesmo pode servir de exemplo do potencial
trabalho retórico da linguagem do Design.
105 Imagem disponível em: http://ronarad.archivestudio.co.uk/studio-pieces/well-tempered-chair/. Acesso em: 15
de agosto de 2017.
124
Fig 4 Fiat Toro 2017, Fiat Chrysler Automobiles.106
Por fim, como representante do universo do design de embalagens, o terceiro artefato
(Fig 5) é um frasco de perfume da empresa multinacional de cosméticos, L’Occitane en
Provence, da linha Araucária produzida por sua filial brasileira, L’Occitane au Brésil. Este
106 Imagem disponível em: http://toro.fiat.com.br/versoes. Acesso em 15 de agosto de 2017.
125
artefato pode suscitar uma discussão sobre a incorporação de códigos culturais na construção
de uma mensagem, que leva em consideração um dado destinatário.
Fig 5 Colônia Araucária, L’Occitane au Brésil
Apresentado o corpus, passamos para a descrição do procedimento metodológico da
análise.
1.3. Uma análise em três passos107
A primeira possibilidade de escolha de uma metodologia a ser aplicada na análise é
considerar os autores aqui trabalhados, Umberto Eco e Roland Barthes. Embora ambos tenham
107 É importante ressaltar que muitas análises semióticas já foram feitas sobre artefatos do Design, bem como de
áreas próximas, como a Arquitetura. Dentre os principais autores brasileiros, que empreenderam e se dedicaram a
aplicação de análises semióticas em objetos do universo do Design, podemos citar as professoras Lucrécia
D’Aléssio Ferrara, Lucia Santaella, Lucy Niemeyer, Vera Nojima; além também de Décio Pignatari.
126
sido ponto de partida na fundamentação teórica, nenhum deles fornece um modelo específico
que use os conceitos anteriormente mencionados.
Mesmo que os conceitos operacionais trabalhados aqui tenham seguido, principalmente,
o posicionamento de Umberto Eco em sua teoria semiótica, em nenhum momento ele os aplica
de um modo “direto”, ou para casos tão específicos, como aqui estão.
Ao escrever o Tratado (2014), Eco estava muito mais preocupado na estruturação de
uma teoria semiótica ou (como o nome do livro sugere) a apresentação de um estado da arte da
Semiótica naquele período. Nesse livro, quando quaisquer exemplos práticos do funcionamento
desses conceitos aparecia, estavam sempre relacionados a uma elucidação de sua própria
definição, e não o empreendimento de uma análise detalhada de qualquer objeto. E mesmo
quando Eco postulou análises em livros anteriores, como n’A estrutura ausente (2016) ou As
formas do conteúdo (2004), principalmente no que diz respeito à Arquitetura, sempre foi de
um modo preliminar.
Já no caso de Roland Barthes, é imprudente afirmar que ele não propôs um método de
análise detalhado e rigoroso de um sistema de objetos. O longo estudo de como a moda é
descrita nas revistas francesas, relatado em Sistema da moda (2009), é um dos grandes
exemplos da prática semiológica estruturalista, o que não significa, necessariamente, que seja
o melhor exemplo a ser seguido.108
Nessa obra citada, embora a abordagem de Barthes busque também a caracterização de
uma linguagem, juntamente com a ideia basilar que aquele sistema esteja numa sobreposição
de denotações e conotações, toda a série de conceitos utilizados na análise do sistema da moda
se distancia do que foi aqui apresentado.109
Obviamente, isso não quer dizer que esses autores não realizaram grandes análises
semióticas ao longo de sua produção intelectual ou que, de um modo geral, o percurso que está
proposto aqui não tenha, também, sido influenciado por eles ou outros semioticistas. A questão
é simplesmente de pertinência do encontro de um método para a situação.
Entretanto, é preciso que fique bastante claro: não está dentre os objetivos dessa
monografia a proposta de um método de análise semiótica. Se de algum modo delineamos
108 Anos mais tarde, o próprio Barthes chamaria essa grande empreitada de “delírio científico” (PERRONE-
MOISÉS, 2015, p.45) 109 No entanto, uma pequena menção às chamadas “variantes” encontradas por Barthes na análise do sistema da
moda será feita na próxima seção deste trabalho.
127
um método de análise aqui, ele é, sem dúvidas, bastante incipiente e foi um efeito colateral
apenas da concatenação de uma série de reflexões contidas nos pressupostos teóricos, os quais
pedem por uma verificação prática.
Vejamos, então, os passos seguidos na análise dos artefatos:
(i) Identificação dos significantes: comumente presente em análises semióticas, o
primeiro passo consiste na observação e descrição do objeto de estudo, a fim de
identificar os significantes que o constituem. Neste primeiro ponto, é importante
tentar expor todos os significantes do objeto que estejam em contato com os
sentidos do analista ou aqueles fornecidos por informações da constituição do
produto.
(ii) Delineamento do contexto e das circunstâncias: uma vez apontados os
significantes do objeto de estudo, cabe fazer o primeiro julgamento de quais
significantes são pertinentes à mensagem e quais não o são. Muitas vezes, essa
determinação já aparece como óbvia a partir da identificação do significante
total, que, mediante um código conhecido, tem seu significado compreendido.
No entanto, como existem situações extraordinárias e de inovação do código, é
essencial a determinação da situação comunicativa, na qual o objeto de estudo
está inserido. Isso significa a compreensão do contexto (ou contextos) e das
circunstâncias nas quais o objeto foi produzido e interpretado por um sujeito.
Esta segunda etapa serve de base fundamental para a identificação dos possíveis
significados pertinentes da mensagem (logo, os níveis de denotação e
conotação), que estão sustentados por um código.
(iii) Tentativa de reconstituição dos códigos: compreendidos o contexto e
circunstância de produção e interpretação da mensagem, é possível realizar
inferências abdutivas a respeito dos códigos que regem a construção da
mensagem. Como toda abdução110, esse é um processo que busca a explicação
de um dado caso (a mensagem analisada), por meio da formulação de um
hipótese sobre uma determinada regra existente (código). É nesta etapa que uma
série de conceitos históricos, sociológicos e antropológicos, mediante a restrição
do contexto e circunstância, podem ajudar na reconstituição dos códigos.
Chamamos a esta etapa de “tentativa” em razão da incapacidade de se poder
110 Expressão aplicada aqui com base na acepção peirceana (PEIRCE, 2015).
128
afirmar, na maioria dos casos em que se analisa uma dada mensagem, de maneira
totalmente inequívoca, as motivações e significados pretendidos desta mesma
mensagem.111 É claro que, em algumas situações, é possível que o destinador112
explicite abertamente o processo de construção da mensagem (suas intenções,
códigos utilizados, efeitos interpretativos desejados), no entanto, em outras
tantas situações em que isso não acontece, o analista (posto na posição de
destinatário) é deixado apenas com suas hipóteses. Essas hipóteses podem ser
eventualmente comparadas com as de outros analistas e um consenso geral sobre
a interpretação da mensagem pode ser alcançado, identificando leituras válidas
e absurdas.113
Uma observação atenta dessas etapas poderia levar ao comentário que elas não passam
de mais uma variação das categorias peirceanas. De fato, elas têm algo em comum com o
processo de semiose descrito por Peirce, pois esse percurso nada mais descreve do que a
passagem do particular ao geral. Entretanto, apesar dessa semelhança, nenhum paralelo
rigoroso foi intencionalmente traçado entre as duas propostas.
Poderíamos dizer que é, no mínimo, normal a tendência de uma racionalização que
procure a aplicação de leis gerais ao particular, e verificar esse comportamento nos códigos que
regem os signos a tecer a malha do texto dos artefatos, está de acordo com a noção de código
enquanto uma “regra”.114
De todo modo, é a partir desse prototípico método que se tentou revelar a linguagem
trabalhada em cada um dos artefatos escolhidos.
111 Lembramos que num estudo analítico, identificar essas motivações leva em conta reflexões do tipo “por que
acontece deste modo e não de outro?”, que no caso dos artefatos aqui analisados, essa pergunta se transfigura em
questionamentos sobre os significantes, como, por exemplo, “por que esta cor e não outra?”. Devemos pensar que
a escolha dos significantes não foi aleatória e que existe um motivo para a linguagem do artefato ter sido construída
de dado modo e não de outro. 112 Sobre uma discussão no que diz respeito aos nomes dos participantes do processo comunicativo, cf. p. 22 desta
monografia. 113 Uma interessante reflexão sobre o trabalho do analista, especificamente daquele que estuda as imagens e obras
de artes, foi feita por Joly (2012, p. 41) sob o tópico “A recusa da análise”. 114 Cf. I.2.2.
129
2. PRIMEIRO ARTEFATO: THE WELL-TEMPERED CHAIR (1986)
O primeiro artefato analisado é um bom exemplo como nossa percepção pode ser
desafiada mediante uma apresentação de um significante diferente para um significado já
conhecido.
Fig 6: Ron Arad, The Well-Tempered Chair, 1986, 80 x 100 x 80 cm.115
2.1. Identificação dos significantes
Seguindo as etapas apresentadas da análise, comecemos o primeiro ponto: a
identificação dos significantes, por meio da pura e simples descrição do que é observado.
115 Neste trabalho, consideramos a tradução direta e literal da palavra chair para “cadeira”, muito embora o artefato
lembre muito mais uma poltrona, que no inglês é comumente referida como arm chair.
130
Um modo eficaz de se realizar uma descrição pura é tentar tomar o objeto de análise
como sendo algo nunca visto antes, ou mesmo imaginar um observador que descreve o artefato
para um outro sujeito que nunca o viu, por exemplo. Assim, pode-se evitar que certos traços
que nossa percepção possam porventura considerar óbvios e, logo, de menção não relevante,
sejam omitidos.
Considerando, então, que nesse momento não tenhamos qualquer conhecimento acerca
do artefato (seu nome, sua função, seu criador, etc.), vejamos uma possível descrição.
Uma das primeiras impressões ao observar o artefato é a de que ele é constituído por
um único material, em razão da sua uniformidade de cor e textura. Tal uniformidade da cor
aparenta ser unicamente quebrada graças ao efeito de reflexo das luzes do ambiente, promovido
pela superfície lisa do artefato, que aliado ao seu aspecto acinzentado, revelam o conjunto de
características de um tipo de metal polido, como o aço.
Outra particularidade do artefato que chama atenção, são as suas formas. Embora com
extremidades de um arredondamento suave, existem partes retilíneas, como aquelas que o
sustentam no chão, além de sua parte posterior. E logo um olhar mais atento revela que o
artefato é edificado a partir de quatro lâminas idênticas que foram cuidadosamente dobradas,
de tal modo, que seja possível criar um volume nessas extremidades arredondadas.
As dobras das lâminas estão unidas graças a uma série de parafusos apertados com
porcas visíveis, garantindo uma sensação de tensão do aço trabalhado. Pelo arranjo de como as
lâminas foram justapostas, é possível intuir o que elas conjuntamente tentam expressar quase
num tipo de abstração, ao mesmo tempo que a partir daí a “função” de cada uma das lâminas
parece ficar mais clara.
Se considerarmos que o observador virtual desse artefato já viu outras entidades da
realidade, que possuem um arranjo formal parecido, ou sendo mais específico, que
conheça o que é uma cadeira ou poltrona, ele será capaz de perceber que é justamente esse
objeto que o artefato é.116
Não entraremos numa discussão sobre a problemática da cognoscibilidade dos entes
pelos sujeitos nessa situação, isto é, como se é possível identificar uma cadeira ou uma poltrona
116 Nos termos da semiótica peirceana, aqui já estamos muito distantes da simples Primeiridade, uma vez que se
identificou uma dada ocorrência de uma regra geral.
131
(ou a diferença entre os dois).117 Simplesmente, dizemos que se um determinado sujeito possui
um repertório, e nesse sentido, um tipo de competência, de experiências passadas com objetos
semelhantes, ele será capaz de realizar uma referência feliz e chamar o artefato em questão de
uma cadeira ou um poltrona.
Nesse repertório está contido o código que o permite identificar (e conectar) um
significante total como uma variação do significado ou conjunto de interpretantes que
constroem a ideia de cadeira.
Desse modo, já desde esse exame preliminar, o eventual observador possui meios de
formular suas hipóteses interpretativas e, até mesmo, mediante códigos conhecidos, identificar
o tipo de objeto que tem diante de si, além do material, por exemplo.
A identificação do artefato em questão, que está ligada à interpretação de um possível
significado denotado (isto é, o de cadeira) para aquele significante, é ainda uma leitura
incipiente do significado maior daquela mensagem. Um sujeito poderia identificar uma cadeira
por reconhecer um encosto, assento e dois apoios para as mãos ou braços, mas se perguntar se
tem diante de si uma cadeira, que no semema do significado denotado, está a possibilidade de
sentar-se. Ou, se seria à maneira dos ready-made, apenas um objeto de uso imbuído de uma
significação muito mais simbólica.
2.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias
Para avançar na construção de uma interpretação mais fidedigna com aquela
possivelmente desejada pelo destinador da mensagem, é preciso buscar informações sobre a
situação de produção da mensagem ou quaisquer outras “pistas” sobre ela. Esse é o segundo
passo da análise, a consideração do contexto e circunstâncias.
Levando em conta que só agora o sujeito observador entra em contato com o nome do
artefato e do seu criador, sua compreensão sobre a mensagem já aumenta consideravelmente.
The Well-Tempered Chair, para aqueles que conhecem a língua inglesa, sem dúvidas, já
confirma o fato de que o artefato é uma cadeira (ou no mínimo, assim também o é nomeado por
117 No máximo, poderíamos dizer que levando em consideração as hipóteses sobre esses problemas levantadas por
Eco (1998), conseguimos identificar uma cadeira, mesmo que quase já abstraída, por possuirmos um tipo cognitivo
(TC) já há muito alimentado por diversos conteúdos nucleares (CN).
132
seu criador), além de apontar para o modo como ela foi feita118, o que também corrobora suas
hipóteses sobre o material que a constitui.
Conhecer o designer que a produziu, juntamente com outros projetos e artefatos
concebidos, contribuem para a descoberta do possível intento comunicativo de Ron Arad, por
trabalhar a linguagem de um dado modo em detrimento de outro.
Poderíamos apontar características típicas de Arad, como trabalhos de experimentação
com as possibilidades dos materiais, formas excêntricas e releituras incomuns de arquétipos de
objetos (para usar a expressão de Deyan Sudjic, 2010) já saturados na memória dos indivíduos.
Ainda, há o fato de que muitas de suas criações já foram expostas em museus e viraram
miniaturas decorativas, o que poderia reforçar a interpretação de que a função daquele artefato
é muito mais reflexiva e simbólica do que prática.
Poder-se-ia mencionar ainda, o período em que o artefato foi projetado. Já em meados
dos anos 1980, abordagens funcionalistas no Design perdiam força e, justamente, davam espaço
para o desenho de formas cada vez mais ousadas para os mais diferentes artefatos. Neste ponto,
o analista poderia recorrer a um estudo histórico das vertentes chamadas pós-modernas no
Design, com o objetivo de aprofundar a compreensão contextual sobre a mensagem.
2.3. Tentativa de reconstituição dos códigos
Por fim, chegando ao terceiro e último ponto da análise, podemos supor que os códigos
que regem esse artefato originalmente, ou melhor, um dos sentidos de leitura mais cabíveis à
interpretação, estão intimamente relacionados com justamente a experimentação de um novo
significante total para um objeto já bastante conhecido de outro modo.
O nome do artefato nos fornece as informações basilares para a sua compreensão, isto
é, que de fato as formas apelam iconicamente para um tipo de poltrona e que o diferencial dessa
peça é o trabalho com a ductilidade do aço pelo processo de revenir (tempering, no inglês).
Sobre esse termo, é importante ressaltar que well-tempered, mesmo para aqueles que
conheçam a língua inglesa, pode ser associado a uma determinada acepção (como a de
equilíbrio) e não a de um processo metalúrgico, o que compromete uma compreensão mais
acurada sobre o artefato. Já no caso do sujeito que desconheça a língua inglesa, uma série de
118 Mas há também na língua inglesa um significado atribuído à essa expressão, que diz respeito a, basicamente,
qualquer coisa que possua um equilíbrio de distribuição. É nessa acepção, por exemplo, que o termo foi utilizado
na música, no famoso livro de J.S Bach (1685 – 1750), The Well-Tempered Clavier.
133
inferências poderiam ocorrer, como por exemplo, para o falante do português, pensar
erroneamente em tempered como um cognato de “tempero”.
Portanto, o conhecimento e compreensão desses dois códigos, o da poltrona e o do
revenir do aço, guiam uma interpretação cabível119 dos significantes em si, mas não revelam
nenhum conhecimento profundo acerca das motivações do destinador.
Afinal, está bastante claro que as formas excêntricas da Well-Tempered Chair podem
apelar iconicamente para uma poltrona já beirando a abstração, mas as motivações que levaram
a serem construídas desse dado modo só podem ser reveladas pelo estudo de outros tantos
códigos. Alguns permanecerão obscuros até a própria elucidação do criador do artefato.
Quanto às possíveis conotações construídas pelo sujeito, podem estar tanto diretamente
relacionadas com os significados denotados «cadeira» ou «poltrona», mas como também de
«aço». Poder-se-ia até supor o surgimento de significados que apontam para direções opostas,
como a ideia de «conforto» relacionada à «poltrona» conjuntamente com o de «dureza» em
«metal», e que o surgimento dessa contradição foi muito provavelmente planejado e desejado
por Ron Arad.
Além desses, naturalmente, há um sem número de conotações associadas muito
particulares e impossíveis de listar, pois variam de acordo com a correlação do que é visto com
as experiências passadas dos sujeitos. Há, também, o sem fim de situações em que um indivíduo
pode entrar em contato com o artefato, o que pode guiar a preferência por um determinado
percurso do sentido sobre outro.
Esse pequeno trabalho com a linguagem, a criação de uma nova possibilidade formal
para um objeto bastante conhecido, e que suscita uma série de contradições com o próprio
significado culturalmente atribuído a esse significado, é um dos grandes cernes dessa
mensagem.
Ainda, poder-se-ia procurar mais informações sobre o processo de construção da
mensagem, tais como as motivações que levaram ao destinador a construir a mensagem de um
dado modo e não de outro. No entanto, na situação em questão aqui, um estudo da formação do
119 Essa é uma expressão muito difícil de lidar e até perigosa. O que é uma “interpretação cabível” e uma que não
é? Há sem dúvidas um problema relativo à Pragmática aí, que não exploraremos. Simplesmente, referimo-nos
aqui, que existem certos limites interpretativos do que se pode tirar de uma mensagem e atravessar esses limites
muitas vezes acontece em razão de ignorância, ou é feito de maneira propositadamente fantasiosa, cômica ou por
escárnio. Por exemplo, seria muito estranho afirmar que o artefato em questão seja um marco em exaltação à
Napoleão Bonaparte, pois não há quaisquer códigos que nos possam guiar nessa direção.
134
designer Ron Arad, do contexto histórico e dos pormenores da encomenda específica da Well-
Tempered Chair, já é um aprofundamento e enriquecimento da leitura do artefato, que não cabe
a esta análise. Passamos, então, para o trabalho com a linguagem realizado no próximo artefato.
3. SEGUNDO ARTEFATO: FIAT TORO (2017)
O segundo artefato escolhido ressalta as possibilidades do desenvolvimento de uma
retórica no Design, para além da área gráfica. Desde a segunda metade do século XX, tornou-
se recorrente estudos que visam identificar figuras de retórica em manifestações da linguagem
visual, principalmente na publicidade120. Por outro lado, não é tão comum, a pesquisa sobre a
manifestação, por exemplo, de hipérboles, metáforas e metonímias em artefatos.
3.1. Identificação dos significantes
Seguindo o procedimento de análise descrito, iniciamos com a observação do artefato
escolhido. No entanto, tal qual a análise anterior, tentamos descrever o que teria notado um
sujeito virtual, que nunca antes tivesse visto ou tido qualquer conhecimento sobre o automóvel
Fiat Toro. A observação está focada nos aspectos exteriores do artefato, pois são eles que estão
diretamente relacionados com a breve discussão que se deseja suscitar aqui sobre retórica.
Assim, deixou-se de lado não só a menção às características internas do automóvel, mas
qualquer tópico relacionado às tecnologias presentes no artefato.
Ressaltamos também, que a cor do artefato é variável: para o ano de 2017, o automóvel
pode aparecer em vermelho, preto e marrom, com duas possibilidades de intensidade para cada
cor. Segue um conjunto de imagens com diferentes ângulos do artefato, todos na mesma cor,
tal como fornecido pelo site da montadora:
120 Podemos citar, por exemplo, alguns autores ligados à Semiologia como Jacques Durant (1974), Roland Barthes
(1990), Martine Joly (2012) e Umberto Eco (2016).
135
Fig 7 Conjunto de vistas do Fiat Toro 2017 na cor “preto shadow”.
Diferentemente da Well-Tempered Chair, é muito provável que um grande número de
observadores conheçam o código do automóvel e sejam capazes de identificá-lo. Nesta primeira
etapa da análise para o artefato em questão, é muito mais produtivo levar em consideração um
sujeito que possua tal código. Se, porventura, esse não for o caso, é difícil prever exatamente
quais características poderiam chamar a atenção do sujeito, que estariam, no fundo, dentro do
amálgama da surpresa dele diante do artefato. Nessa situação, seria pertinente procurar entender
qual a sua história, e o porquê dele não conhecer um código já tomado no mundo globalizado
como básico. Isso garantiria uma série de informações a serem levadas em consideração nesse
específico processo interpretativo.
Já numa situação probabilisticamente maior, um observador que conheça o código do
automóvel, e de fato reconheça essa ocorrência específica como tal, é possível supor quais
traços do artefato chamem sua atenção. Entretanto, estamos aqui, novamente, excluindo desta
análise uma discussão detalhada sobre como essa observação foi capaz de identificar um carro
e, não, digamos, um barco.
Tentemos descrever, então, as primeiras impressões desse sujeito naquele instante
inédito para ele, em que vislumbrou o artefato, mas ainda não o tinha identificado (as puras
qualidades, na acepção peirceana).
136
Poderia surpreendê-lo uma quase completa uniformidade do preto, uma forma em que
predomina a horizontalidade, um grande retângulo com cantos suavemente arredondados e que,
se visto de determinado ângulo, parece levemente inclinado. Notaria uma parte, na qual se
encontra uma superfície pela qual a luz é capaz de atravessar, além da existência de quatro
círculos que sustentam o artefato, e uma linha em uma tonalidade mais clara, que contorna a
parte mais baixa do corpo do artefato.
Talvez não percebesse de imediato outros detalhes, mas seria possível que esse sujeito
identificasse pequenas partes que espelham o que está ao redor, principalmente, em uma das
faces do artefato. Veria que essas partes estão “incrustadas” no corpo “da coisa” e que possui
contornos angulares e verificaria, também, a existência de alguns nomes escritos em lugares
específicos. E ainda poderiam ser notados tantos outros detalhes, sejam em relação a uma parte
específica, ou reflexões sobre as formas em si.
A essa altura, todos esses detalhes teriam sido organizados em sua mente e, o observador
conhecedor do código do automóvel, já teria constatado que seus sentidos lhe captam essa
entidade. A capacidade de distinguir que tipo de automóvel tem diante de si, ou seja, a distinção
do tipo de carroceria, poderia garantir-lhe uma classificação ainda mais acurada do artefato.
E mesmo que nosso observador virtual não tivesse conhecimento das possíveis
nomenclaturas de carros, ele poderia aplicar seus próprios critérios categorizadores, baseados,
majoritariamente, em simples comparações dos que ele já conhece.
3.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias
Agora, foquemo-nos, no segundo ponto da análise, complexificando um pouco mais a
situação, ao definir um contexto e supor circunstâncias.
Interessado pelo o que vê, nosso observador procura mais informações a respeito do
automóvel e descobre que ele é um dos modelos mais novos no mercado, produzido pela Fiat,
que a equipe de designers que o projetou já ganhou importantes prêmios e, claro, que possui o
curioso nome de Fiat Toro.
Considerando que sua pesquisa parasse por aí, esse sujeito poderia se propor
compreender a razão do nome e o que seu projeto tem de tão especial para ganhar tantos
prêmios.
Se falante de alguma língua latina (as chamadas línguas indo-europeias), muito
provavelmente, assimilaria sem problemas a palavra “Toro”. Se desconhecesse a palavra, seja
137
lá qual for a razão exata, e, ainda assim, não procurasse compreendê-la, sua intepretação da
mensagem intencionada pelo destinador seria prejudicada.
Do mesmo modo que o artefato anterior, o nome é um grande revelador do significado
construído, tanto a denotação quanto as conotações. Embora “Toro” não aponte para o que o
artefato é (um automóvel)121, essa palavra é a chave para revelar o uso retórico da linguagem
nessa situação122: Toro, na língua espanhola, é um cognato para a palavra portuguesa touro.
Entretanto, o estudo do contexto não se delimita ao estudo do nome do artefato.
Considerando que o objeto de análise é um produto criado para a produção e venda em massa,
para aprofundar-se ainda mais nos contextos e circunstâncias da produção da mensagem, o
sujeito poderia recorrer às peças publicitárias em que o Fiat Toro é descrito.
Sejam cartazes ou pequenos curtas, a empresa posiciona o Fiat Toro como uma pick-up
destinada tanto ao uso na cidade, estrada e solos irregulares. Mas, principalmente, suas
principais características estão relacionadas à potência, força, brutalidade, resistência e a beleza.
O discurso construído pela publicidade123 garante uma nova camada retórica sobre o
produto e que, com certeza, garantiria por si só uma análise. No que tange ao estudo que estamos
fazendo aqui, sua menção é inevitável, uma vez que ela oferece importantes informações sobre
o artefato/mensagem.
Na verdade, as peças publicitárias sobre o Fiat Toro, por estarem construídas na relação
entre seu nome, sua aparência e suas características, realiza o papel de esclarecimento da
retórica, que o próprio artefato havia construído. Assim, o nosso observador virtual, ao entrar
em contato com essas informações, sente que aquilo que antes observara começa a “fazer
sentido”: as escolhas dos significantes do artefato não são vistas como aleatórias, mas, pelo
contrário, que seguem uma intenção específica de significado, baseado em determinados
códigos.
No entanto, para o caso do automóvel, certos significantes podem nos parecer já tão
“saturados” no universo automobilístico, que não são considerados de imediato relevantes ou
possuidores de um código inovador. Por exemplo, formas que, historicamente, culturalmente e
cientificamente, estão associadas ao que se considera “aerodinâmico” e, cada vez, mais
121 Ao contrário da palavra “Fiat”, que reasseguraria ao observador, que identificou com sucesso um carro. 122 Poderíamos até dizer, sem grandes prejuízos, que a relação entre o signo linguístico “Fiat Toro” e o significante
||Fiat Toro|| é muito parecida com o que Barthes (1990) chamou de função de fixação. Afinal, no caso em questão,
a palavra está cerceando e indicando um caminho interpretativo, para um outro signo próximo a ela. 123 O qual discutiremos em outra parte deste trabalho, sobre o título de “discurso sobre o artefato”.
138
aparentam ser indissociáveis da morfologia de um carro. No caso do Fiat Toro, podemos
considerar, para citar alguns exemplos, a angulação das formas dos vidros, o ângulo obtuso
formado entre o capô e o vidro frontal, os detalhes na parte superior do automóvel e o corte da
linha dos faróis. Todos esses significantes são capazes de sugerir à nossa percepção uma ideia
de movimento, aliado ao que já se foi culturalmente assimilado como formas aerodinâmicas em
um carro e, logo, características formais “comuns”.
3.3. Tentativa de reconstituição dos códigos
Por fim, levantemos algumas hipóteses sobre a construção dessa mensagem de maneira
particular. Ao mesmo tempo, é claro que as duas questões chave dessa mensagem, a metáfora
e a comparação, particularmente no que diz respeito à afirmações sobre a força de algo, são
tropos já muito conhecidos, e que algumas de suas manifestações já beiram a catacrese. No
entanto, não tomemos como fato óbvio a relação de força com pick-ups, por exemplo, a ponto
de ignorar a sua menção.
Essa analogia parece sensata entre pick-ups e, neste caso específico, o Fiat Toro, com
um animal tido como forte, porque certas características perceptivas já estão codificadas e são
convencionalmente traduzidas de um dado modo.124 A imponência, o tamanho, a aparência de
pesado; todas essas características são transpostas entre as formas que constituem o automóvel
e aquelas que se observa num touro. Sob um asepecto até mais abstrato, poderíamos relacionar
até a leve inclinação do carro percebida na descrição, como uma postura de investida, tal como
a do animal.
Mas o grande destaque metafórico é a escolha das formas dos faróis. Os faróis de
um carro são de longa data já referidos como os olhos da máquina (como tantas vezes já foi
assim representados em desenhos animados), até mesmo por sua função ser auxiliar a visão do
motorista.
No Fiat Toro, os faróis foram delineados, de tal modo, que suas formas angulares são
capazes de sugerir uma agressividade, quase uma malícia, que naturalmente atribuímos a algo
que esteja vivo, e não simplesmente uma máquina. Apostar num trabalho cuidadoso dos faróis,
parte já bastante antropomorfizada dos carros, ressalta a correlação com o animal touro – o que
nesse caso implica uma zoomorfização.
124 Que fique claro que “tradução” está aqui para o termo “representação”, como, por exemplo, no caso da
representação da ideia de movimento em um desenho estático no papel. Sobre o reconhecimento do signo icônico
nesses termos, bem como uma crítica à noção peirceana de ícone, ver Eco (2016, p. 107).
139
As cores em que está disponível o automóvel (vermelho, preto e marrom), podem até
reforçar essa atitude de agressividade que se deseja encalcar no Fiat Toro, pois essas cores estão,
principalmente no Ocidente, relacionadas culturalmente àquilo que é agressivo, mau, sério,
sóbrio, entre outros significados125. No entanto, isso não retira o apelo estético do automóvel,
uma vez que, como diz uma de suas peças publicitárias126, esse é um carro “brutalmente lindo”.
Os principais códigos necessários para uma interpretação mais profunda ou acurada em
relação ao que se pretendeu originalmente dizer sobre essa mensagem, e que explicam a escolha
de certos significantes (incluídos aí os faróis), giram em torno da metáfora. Essa figura de
retórica procura relacionar semas entre dois sememas de entidades distintas (ECO, 2004; 2014),
que, neste caso, gira ao redor de pôr lado a lado semas denotativos do semema de ||touro|| e
semas conotativos do semema de ||automóvel|| ou, mais especificamente, de ||pick-ups||.
Para o caso do automóvel, significados como «potência» e «força», partem do
significado denotado do que é um automóvel, que estão subordinados, por exemplo, ao de
«máquina», «motorizado», «combustão», entre outros. Já para o touro, atendo-se a definições
biológicas, semas como «grande porte físico» ou «vigor» estão no nível denotativo, mas
também estão, culturalmente, os semas de «força» e «potência».127
Embora o trabalho com a metáfora tenha sido bem executado pelos desenvolvedores do
artefato, é importante lembrar, que o caso do Fiat Toro não é o primeiro, em que um automóvel
é posto comparativamente a um animal. Os atributos como força, resistência e potência, são
comumente exaltados no discurso publicitário e do Design, vinculados a uma identidade ou
uma marca; muitas vezes utilizando paralelos com seres vivos.128
O interessante do Fiat Toro, e que, provavelmente, lhe tenha garantido os prêmios de
design, é que esse jogo com as figuras retóricas não ficou relegado somente ao nível dos
anúncios. Neste caso, o automóvel não foi primeiro concebido e depois um discurso o
125 Cf. Farina; Perez; Bastos (2006, p. 98 – 101). 126 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zv7m3zLcKnU. Acesso em: 26 de agosto de 2017. 127 Como dito na seção anterior deste trabalho, quais semas figuram a um nível denotativo em um semema de um
significante pode variar de acordo com o sujeito e sua cultura. É muito comum, em diversas culturas, a descrição
do touro como forte, entendendo a força como uma qualidade intrínseca a esse animal. Outras características para
alguns sujeitos, como a agressividade, podem estar a nível denotativo ou, num nível conotativo, partirem,
justamente, do sema «força». No entanto, não há dúvidas que levando em consideração esses semas como
denotativos, para nós e vários outros animais, existe a conotação, por exemplo, de «animal perigoso», uma vez
que essa mesma característica de força implica a capacidade de infligir sérios ferimentos. 128 No meio automobilístico, existe o emblemático exemplo da empresa Jaguar Land Rover Limited, produtora
dos carros que carregam as marcas Jaguar e Land Rover. Este é um exemplo em que o nome também faz
explicitamente uma relação com um animal, neste caso, exaltando as qualidades de agilidade, beleza e velocidade.
140
preencheu, com o intuito de caracterizá-lo para a venda: pelo contrário, o projeto de design que
foi construído em cima de um tropo, e dele a publicidade criou seu discurso. O trabalho direto
com o material, com o artefato enquanto coisa física, de um modo retórico, e não delegar esse
uso unicamente para a linguagem verbal ou gráfica, é seu grande diferencial.
Sem dúvidas, estamos falando aqui de um trabalho sutil e que ainda está muito
dependente da linguagem verbal e do apoio da publicidade. Afinal, apesar da zoomorfização
dos faróis, é muito improvável que sem conhecer o nome ou qualquer outra informação acerca
do projeto do Fiat Toro, um sujeito olhasse para a pick-up e dissesse “isso parece um touro!”.
Por outro lado, a sutileza é compreensível: quando um carro for projetado para se assemelhar
morfologicamente a um touro de maneira fiel, ou, no mínimo, que possua chifres, eis aí uma
revolução do código.
4. TERCEIRO ARTEFATO: L’OCCITANE AU BRÉSIL ARAUCÁRIA
Embora não tão extensa, a análise do último artefato escolhido busca enfatizar a
importância do estudo de códigos próprios de uma cultura, tanto para a produção, quanto para
a interpretação de mensagens num processo comunicativo.
4.1. Identificação dos significantes
Mesmo sendo um artefato de aspectos formais mais imediatos do que os anteriores, é
importante continuar a realizar uma descrição completa do que se vê (ou, se próximo ao
artefato, também informações provindas dos outros sentidos), não subestimando o poder
comunicativo da mensagem.
Novamente, consideramos um observador virtual que, pela primeira vez, encontra o
artefato: um frasco de desodorante colônia da linha Araucária, produzido por L’Occitane au
Brésil, como exposto na imagem seguinte.
141
Fig 8 Vista frontal e posterior do frasco de L’Occitane au Brésil Araucária.129
Iniciando sua observação, o sujeito pode dar-se conta do tamanho do artefato em si, e
julgá-lo pequeno o bastante para poder manuseá-lo. Observaria sua forma: faces de base menor
que a região superior, com um contorno arqueado; além da base do artefato em si, que é
retangular, mas de contornos arredondados e projeta-se, levemente, para o interior do frasco.
129 Imagens retiradas de https://goo.gl/xLaK4K. Acesso em 02 de setembro de 2017.
142
Notaria que todas essas formas estão unidas e compartilham do mesmo material
translúcido; veria ainda (e, se possível, sentiria) demarcações nas faces do frasco. São pequenas
linhas, veios, que irradiam de um eixo central, perpendicular à base do artefato.
Não atendo seus olhos somente à essa região, perceberia que o topo do artefato é feito
de um material diferente, de forma cilíndrica, e muito menor se comparado com o resto do
frasco. É possível que chamasse a atenção as pequenas encravações nesse material, que estão
próximas do ponto em que ele e o translúcido se encontram.
Por fim, provavelmente não passaria desapercebido os signos linguísticos inscritos
numa das faces do artefato, ambas inseridas dentro de uma pequena etiqueta, sendo uma de cor
verde posicionada no centro de uma face, e a outra, preta, na base dessa mesma face.
A essa altura da observação, muito provavelmente, o sujeito já teria, no mínimo,
identificado o que tem diante de si como um recipiente de algo, ao notar que há um líquido
esverdeado no interior do artefato. As próximas inferências exatas do seu conteúdo viriam de
acordo com o seu conhecimento do que está escrito na etiqueta presente no frasco ou,
simplesmente, do contato direto com a substância resguardada.
4.2. Delineamento do contexto e das circunstâncias
Desconsiderando uma situação atípica, em que um determinado sujeito desconheça o que é
um frasco ou recipiente seja ele relacionado a fragrâncias, produtos de limpeza ou qualquer
outro tipo de produto comumente contido num frasco como o do artefato em questão,
dificilmente ele teria dificuldades de identificar o que tem diante de si.
Focando-se somente nas características do frasco, e não exatamente no conteúdo, podemos
dizer que a compreensão da escolha dos significantes que o constituem requerem o
conhecimento de certos códigos específicos de uma cultura ou região.
O observador, mesmo desconhecendo o que significa os signos linguísticos presentes
no frasco (|araucária|, |L’Occitane|, |au| e |Brésil|), ao realizar suas inferências abdutivas,
procuraria uma conexão entre esses signos e os aspectos formais do artefato. Ele consideraria
que um ou todos esses nomes é o “título” da mensagem, e que está intimamente relacionada
com o modo pelo qual ela se apresenta. Sendo assim, tomaria como relevante o conhecimento
dos signos linguísticos, para a compreensão do artefato.
Afinal, as formas desenhadas no vidro do frasco são muito genéricas, e embora para
quem possa compreender o significado das palavras ali inscritas, a associação é quase
143
instantânea, para um total desconhecido da língua portuguesa e francesa, juntamente sobre a
marca L’Ocitanne, as formas poderiam remeter a um sem fim de coisas: luz ou brilho irradiando
de um objeto, espinha de um animal, a chuva, lanças, entre outras associações.
Vale ressaltar que as associações são infinitas e impossíveis de se delimitar, seja para
um sujeito que conheça a unidade cultural, que equivale ao significado «araucária» ou não, pois
esse é o processo semiótico por excelência. No entanto, a questão é, na busca pelo sentido
intendido, se associações pertinentes à mensagem surgiram. Em última instância, não importa
se a associação entre as formas observadas e a folha de araucária foi a primeira ou a última,
mas, em termos de compreensão do porquê daquele significante estar ali e não outro, o que vale
é que a associação foi feita com o contexto e as prováveis intenções do destinador.
E para compreender que a forma que se vê deve ser interpretada de dado modo e não de
outro, os signos linguísticos realizam uma função muito importante: eis mais um caso em que
o signo linguístico realiza função de fixação no processo interpretativo da mensagem130, sendo
assim, importantes indicadores do contexto dos significados pretendidos.
Por outro lado, não há dúvidas que, mesmo que alguém desconheça por completo uma
araucária (nunca viu, principalmente sua folha, ou nem mesmo sabe ao que essa palavra
remete), pudesse ter entendido as formas no frasco como folhas, até mesmo graças a um outro
significante: a cor verde.
Não é que a cor verde realize um função de fixação tal qual o signo linguístico, mas, em
inúmeros contextos culturais, ela pode ser facilmente associada aos termos pertinentes a essa
mensagem, tais como natureza, vegetação, plantas e folhas. É a identificação de um universo
de associações comuns entre as formas no frasco e a cor verde, que pode levar a uma suposição
acurada dos códigos que regem esses significantes.
Além de |araucária|, os outros significantes verbais se mostram relevantes na
delimitação do contexto em que o significado da mensagem foi construído: tanto |L’Occitane|
quanto |Brésil|.
Se o sujeito, independentemente de sua nacionalidade, conhece a marca L’Occitane e
sabe que se trata de uma empresa de cosméticos e perfumes131, poderia assumir que as
130 Tal como foi descrita por Barthes (1990). 131 Além de, claro, saber o que são perfumes e fragrâncias enquanto objetos, isto é, ter em seu universo semântico
uma unidade cultural que defina o que é um perfume e saiba que são comumente feitos e armazenados de um dado
modo. Assim, mesmo sabendo que o vidro é um significante do artefato analisado, uma discussão detalhada sobre
ele foi deixada de lado, pois, do mesmo modo que certas partes do automóvel já são tidas como comuns e explicar
144
encravações no vidro sugerem a planta que serviu de base para a fragrância. Mesmo que suas
hipóteses interpretativas possam não levar a associar que o significante |araucária| se refere
justamente ao nome dessa planta, mas, simplesmente, um nome qualquer para o perfume, esse
sujeito teria mais pistas confiáveis para a reconstituição dos códigos de produção dessa
mensagem do que um outro sujeito que desconheça por completo todos os signos linguísticos
presentes no frasco.
Já no que diz respeito ao significante |Brésil|, se considerarmos que o nome “Brasil” e
suas pequenas variações noutros idiomas, é bastante conhecido ao redor do mundo, isto é, que
o sujeito saiba que esse significante se refere ao nome de um país, esse substantivo próprio
exerce um poder de influência no processo interpretativo.
Dentre as características e estereótipos internacionalmente bem difundidos do que é ou
do que existe no Brasil, está a sua rica fauna e flora em razão, principalmente, da floresta
Amazônica, o clima tropical, as praias, entre outros tantos relacionados à natureza.
Novamente, encontramo-nos na posição de que seria provável a suposição das formas
no frasco como relativas a uma planta graças a um signo linguístico; hipótese essa que ganharia
força com a observação da cor verde.
A essa altura, poder-se-ia perguntar se não é possível a relação contrária entre os
significantes: que seja a forma a responsável por ajudar nas inferências sobre o porquê da cor
verde, como se todas as indagações anteriores feitas neste texto partissem primeiro da cor e não
da forma. Na verdade, em termos práticos, ambos os significantes parciais, quando levados
em consideração conjuntamente por pertencerem a um significante maior (o frasco como
um todo), estão concomitantemente “pedindo” ao sujeito que realize caminhos
interpretativos nos quais o uso dos dois seja considerado. Não considerar uma relação
entre os dois seria assumir uma aleatoriedade na construção da mensagem, e não sua
elaboração intencional. No entanto, isso não quer dizer que esse caminho, necessariamente,
tenha que tratar dos significados dos significantes parciais de modo semanticamente
“harmônico”.132 A escolha metodológica de se referir à forma com mais frequência, neste texto,
deu-se, principalmente, por considerar que as configurações formais daquele artefato podem
o seu uso seria retroceder na história do artefato, que não necessariamente implique uma adição ao significado da
mensagem em questão, o mesmo está sendo considerado, neste caso, para o vidro usado nos perfumes. 132 Afinal, vimos com a cadeira de Ron Arad que um artefato pode ser construído a partir de relações semânticas
opostas no semema de dois significantes distintos postos num único sintagma. Imperando aí, portanto, um tipo de
contradição que não anula a interpretação da mensagem como algo que intencionalmente propôs esse choque de
significados.
145
levar a um universo de associações um pouco menor do que simplesmente a cor verde pura,
não querendo implicar uma hierarquia de leitura ou subordinação entre esses significantes.
A última situação possível, e a mais cômoda do ponto de vista de quem faz a
interpretação, seria reconhecer todos os signos linguísticos (inclusive o |au| que não
mencionamos nos parágrafos anteriores), pois eles são capazes de fornecer importantes
delimitações contextuais acerca da intenção significativa da mensagem.
Entretanto, isso não quer dizer que um sujeito não possa associar as formas no frasco
com os veios de um vegetal, independente do seu conhecimento acerca dos significados aos
quais os significantes verbais se referem. De todo modo, é inegável que são facilitadores na
tentativa de reconstituição dos códigos utilizados na construção da mensagem.
4.3. Tentativa de reconstituição dos códigos
Embora todos os artefatos anteriores tenham também sido construídos a partir de certos
códigos difundidos numa cultura (afinal, não poderia ser de outro modo), talvez o frasco de
perfume de L’Occitane seja o que mais evidencia a necessidade do conhecimento de um
contexto específico, para melhor decifrar a mensagem.
Graças aos signos linguísticos discutidos na seção anterior, não há muitas dúvidas sobre
o que os significantes do frasco queriam passar133, seja sua forma geral um tanto imponente, os
detalhes no vidro ou a cor verde: são referências muito sutis à araucária.
A araucária é bastante conhecida por ser uma espécie de árvore encontrada quase que
unicamente no Brasil, cerceando o conhecimento sobre essa entidade, principalmente, àqueles
que habitam o seu país de origem, botânicos ou outros entusiastas de curiosidades sobre
determinados países.
Considerando que a filial brasileira da L’Occitane é um caso especial, já que a empresa
farmacêutica não criou outras divisões similares em outras nações, é uma atitude muito sábia
procurar criar produtos que reflitam a realidade local, procurando dialogar com o contexto
cultural de seus consumidores.134
133 No entanto, tomamos aqui que seja improvável que aqueles signos linguísticos tenham sido postos para criar
uma confusão interpretativa da mensagem, esta que é uma possibilidade de criação, principalmente estética, de
certas expressões artísticas baseadas na contradição, ironia e enigmas, como, por exemplo, a obra Gift (1921) de
Man Ray (1890 – 1976). 134 Vale lembrar que essa é uma escolha já embutida na própria marca da L’Occitane: trabalho com biomas
específicos dos países em que atua. É uma atitude de seus projetos que está acima da escolha individual de um ou
outro designer empregado da empresa.
146
Mesmo assim, para o sujeito que desconhece a araucária, é evidente que o frasco não é
detalhista em suas formas a ponto de servir de um ícone, que tenha tal idiossincrasia em sua
forma, a ponto desse sujeito imaginar que o frasco remete a uma planta específica.
Por outro lado, aquele que conheça os detalhes formais da folha da araucária, ajudado
pelos signos linguísticos, pode relacionar o modo como os feixes irradiam à maneira que as
folhas da araucária crescem, tal como a fotografia a seguir pode mostrar:
Fig 9 Detalhe das folhas de araucária. Foto retirada de https://goo.gl/6nT5Jk e fotografada por Mateus Hidalgo,
protegida sob licença de Creative Commons.
Novamente, a questão está em identificar a intenção original de quem construiu aquela
mensagem, e para o sujeito inserido no contexto em que araucárias é algo próximo de sua
realidade135, essa tarefa é menos trabalhosa.
Esse trabalho com códigos específicos de uma dada cultura, muitas vezes, é realizado a
partir do estudo de um determinado contexto cultural para dar características típicas a um
135 Expressão utilizada aqui com elasticidade: “próximo” não necessariamente ao sujeito que possui uma araucária
em seu quintal, mas que pertence a uma região, sobretudo do sul e sudeste brasileiro, ou mesmo o país, em que
essa árvore é típica.
147
artefato, como é o caso do frasco L’Occitane au Brésil Araucária. O uso de tais códigos,
dependendo de sua especificidade, ao mesmo tempo que delimita consideravelmente os
intérpretes capazes de associar os significantes aos significados pretendidos pelo designer, faz
com que aqueles que conseguiram ler a mensagem “de um modo apropriado”, sintam-se como
que a mensagem foi especialmente direcionada a eles.
Se a identificação do significado denotado do significante |araucária| pode já ser um
grande mistério para um grande número de sujeitos, esse sentimento de uma mensagem
direcionada para um determinado indivíduo parte do seu conhecimento, mesmo que parcial, do
semema dos significado «araucária». Mas não só do sema «araucária» em específico, e sim,
também de todos os semas hierarquicamente subordinados a esse, que carregam informações
específicas sobre a planta, como o aspecto da folha, seu caule e a copa. Se o sujeito não sabe o
sema «árvore brasileira típica» que, digamos, o botânico muito provavelmente sabe, mas que
não é exclusivo de seu universo de saberes, para um leigo, toda a retórica do frasco de perfume
pode estar se referindo a uma árvore qualquer. No entanto, não há dúvidas de que se possa fazer
a inferência de que a araucária é uma planta típica de uma região do Brasil (graças ao
significante |Brésil|) mesmo que não se saiba isso com certeza.
Considerando que as principais observações sobre os códigos que constituem essa
mensagem foram discutidos, partimos para um pequeno apanhado sobre o que foi possível
observar das análises realizadas.
5. SOBRE O ESTUDO DA DIMENSÃO PRAGMÁTICA DOS ARTEFATOS
Na introdução desta monografia, definiu-se que questões relativas a uma análise
pragmática dos artefatos ou, de um modo geral, de um estudo da dimensão semiótica pragmática
das mensagens produzidas na área do Design, seriam bastante delimitadas.
A complexidade e multiplicidade de pontos a serem levados em consideração na
produção e interpretação de mensagens são dois fatores que tornam análises pragmáticas
bastante desafiadoras. E mesmo que sejam aprofundadas, não há análise que escape a uma
simplificação das inúmeras situações possíveis num processo comunicativo.
Na restrição das análises contempladas aqui, buscou-se mostrar como o conhecimento
de certos códigos em algumas situações são chaves para a compreensão do processo produtivo
e interpretativo de mensagens. O designer, como produtor de mensagens no desenvolvimento
de um projeto, muitas vezes por meio de uma pesquisa, estuda e colhe diferentes códigos,
148
assimilam dados significantes a determinados significados que este profissional julga serem
conhecidos pelo seu destinatário, além de combiná-los de um modo sujeito a certas restrições136.
Já no processo interpretativo, nós temos um intérprete com um determinado repertório, inserido
num contexto e em certa circunstância, tentando reconstituir os códigos originais; e se não isso,
no mínimo, procurando dar algum sentido ao que vê.
Em todas as análises, tentamos fazer a reconstituição desses códigos originais, buscando
a leitura pretendida pelo seus produtores. No exemplo da cadeira de Ron Arad, temos um jogo
com códigos mais gerais, como o de identificação de uma cadeira, além do conhecimento de
certos materiais e de processos produtivos. E, mesmo que não haja dúvidas que o primeiro
artefato requeira, também, saberes específicos para a decodificação e posterior interpretação,
não se compara, por exemplo, com a especificidade dos códigos usados no terceiro artefato.
A especificidade desses casos pode nos levar a falar em “código cultural”, mas no
âmbito semiótico que discutimos aqui, a expressão chega a ser praticamente um pleonasmo.
Nenhum significante escolhido para um artefato, utilizado com a pretensão de poder levar um
sujeito a associar aquilo a determinado significado, está alheio à noção de um código inserido
numa cultura.
É certo que, como já foi discutido, existem diferentes graus de difusão de certos códigos
numa cultura, fazendo com que possamos falar até mesmo em códigos muito próprios de um
dado segmento daquela cultura. E no diz respeito ao Design nessa discussão, por comparação,
não esqueçamos as reflexões de Umberto Eco n’A estrutura ausente (2016) e n’As formas do
conteúdo (2004) sobre, justamente, a possibilidade da Arquitetura ter certos códigos
“internos”, de sua própria área.
E embora possamos afirmar que existam esses códigos, certas estruturas básicas que seu
conhecimento é demasiado tecnicista e próprio do arquiteto, Eco argumenta que, mesmo assim,
a Arquitetura não escapa à consideração de códigos externos, anteriores aos saberes dela
própria, e que o planejamento adequado de um projeto, estaria no equilíbrio entre os dois “tipos”
de código (externos e internos) (ECO, 2016, p. 232-233).137
Tal equilíbrio nada mais é do que justamente a consideração do repertório dos
destinatários, seja em relação à Arquitetura ou ao Design. Na perspectiva, por exemplo, do uso,
136 Como as tecnológicas, discutidas neste trabalho na seção I, item 3.3.1. 137 Além do texto em si dessas páginas, referimo-nos também à imprescindível nota de rodapé que Eco adiciona
na página 233.
149
deve-se lembrar que o conhecimento da função de um objeto e do modo de usá-lo, será sempre
posto no plano de fundo do repertório cultural do sujeito.
O choque de códigos construídos na produção da mensagem, e os supostos na ponta da
interpretação, são comuns: constituem o inescapável ruído das mensagens, mas também a
riqueza interpretativa e inovação do código. O uso de metáforas e sinédoques, tal como o Fiat
Toro e o frasco de perfume Araucária, mesmo que simples, dão uma margem maior à
desentendimentos entre produção e interpretação. No entanto, a construção de uma retórica é,
também, sinal que determinada linguagem tem a capacidade de tornar-se mais complexa e mais
interessante.
Cabe à Pragmática aprofundar-se nesses possíveis desentendimentos, explorar o
significado em ação, num contexto, sem nunca esquecer os pontos de partida dados pela
Semântica e as restrições dadas por uma Sintaxe própria: e eis aqui, novamente, a indissolúvel
tríade das dimensões semióticas da linguagem.
Assim, as análises realizadas também nos permitiram um importante lembrete: do ponto
de vista da produção sígnica, essa tríade nunca poderia ser desconsiderada. O modelo proposto
que será exposto no próximo item, é a sintetização de todo o estudo aqui realizado, que se focou
na construção sintático-semântica dos artefatos, mas, também, das suas implicações
pragmáticas. É por meio dessa esquematização que, por fim, sugerimos uma resposta à pergunta
base: como as mensagens são construídas no Design?
151
1. SOBRE A CONSTRUÇÃO DE MODELOS TEÓRICOS
Neste trabalho, quando as limitações do modelo estruturalista foram discutidas (cf. I.
2.1.3), tentamos deixar bastante claro, que todo modelo teórico postulado não é infalível nem
imutável, uma vez que se trata de uma simplificação da realidade observada por um
pesquisador.
Levando em consideração essas limitações, mesmo que se possa suscitar um
questionamento sobre a importância da utilização de modelos teóricos em um estudo científico,
atemo-nos aqui à convicção, em concordância com a de Eco (2016), já expressada
anteriormente, da utilidade desses modelos do ponto de vista metodológico: eles são um meio
de organização e exploração de um dado fenômeno.
Considerando o fenômeno e objeto de estudo eleito aqui como a produção de sentido
dos artefatos de Design, e a Semiótica como a grande aliada nessa pesquisa, o modelo
apresentado é o resultado de toda a discussão teórica realizada nesta monografia. A validade
desse modelo poderia ser questionada e posta em um debate sobre como os conceitos semióticos
podem elucidar a questão proposta e, principalmente, se as etapas de produção sígnica descritas
podem ser de fato estendidas a qualquer projeto feito por um designer.
Entretanto, após as duas seções anteriores sobre a discussão de uma linguagem própria
do Design, demonstramos que essas duas inquisições não invalidam o modelo proposto: se o
Design pode ser compreendido como linguagem, então, a Semiótica pode, sim, ajudar a
compreender melhor o processo de construção de mensagens realizado pelo designer sob um
determinado ponto de vista.138 Além disso, embora seja indubitável a idiossincrasia de certos
sistemas de objetos, todos os artefatos compartilham uma mesma linguagem fundamental, e
logo, há de existir etapas comuns na produção sígnica dessas mensagens.
Assim, a figura a seguir (Fig 10) mostra a esquematização do modelo de produção
sígnica no Design, sendo cada uma das etapas referidas por uma letra entre parênteses, que
serve de legenda para a explicação detalhada do modelo.
138 Sem esquecer o cuidado para evitar tornar uma área uma mera ferramenta de outra, algo já discutido neste
trabalho (cf. Introdução).
152
Quadro 01 Modelo elementar de produção sígnica proposto para a esquematização da construção de mensagens no campo do Design.
153
2. O MODELO DE PRODUÇÃO SÍGNICA
Conforme o quadro anterior (Quadro 01), o modelo apresenta quatro divisões, sendo
apenas uma delas, juntamente com suas subdivisões, correspondente à atividade do designer
propriamente dita. No entanto, todas essas divisões constituem o processo de construção do
sentido dos artefatos pertencentes ao universo do Design. Vejamos cada uma delas.
2.1. O universo dos códigos externos (u)
A primeira parte do modelo abarca o grande arcabouço de códigos, que são ou foram
instituídos pelas mais diferentes culturas ao longo do tempo, os quais permitem ou permitiram,
em algum momento, a correlação entre significantes e significados139. Embora seja inegável a
sua existência, é uma simplificação teórica a sua postulação de um modo formal e contido, com
o objetivo de ilustrar a infinidade de saberes para a leitura de certos significantes em
determinados contextos e circunstâncias.
Uma vez que todo signo é regido por um código, é natural que a consideração de um
universo de códigos seja tomada como ponto de partida para qualquer tipo de produção sígnica.
Como já foi discutido140, por mais que uma mensagem traga em si a possibilidade de inovação
de um código, sua construção deve partir de alguns códigos já conhecidos, a fim de que a mesma
seja inteligível para outros sujeitos que não o produtor.
No que diz respeito a esses códigos, eles estão sendo aqui considerados como “externos”
por dois motivos: primeiro, sua instituição e modificação podem até depender dos sujeitos para
acontecer, mas os códigos “vivem” ou continuam a existir independente desses mesmos
sujeitos. Nesse sentido, o universo dos códigos está equiparado ao conceito de linguagem e,
principalmente, à noção saussuriana de língua. O segundo motivo é a consideração específica
da produção signica no Design como centro da questão, o que implica admitir que existe um
sem fim de informações, que estão além daquilo que se considera um conhecimento próprio da
área do Design.
Desse modo, existem códigos bastante conhecidos e trabalhados pelo designer,
intimamente ligados ao seu ofício, que tal como a discussão no item anterior sobre a
139 No modelo de produção sígnica, para fins de ilustração e melhor compreensão do processo, os significantes
foram representados por pequenos hexágonos em cinza escuro, e os significados, como círculos em cinza claro. A
linha tracejada que une significantes a significados (que por sua vez, no processo de semiose, podem levar a outros
significados) representa o elo convencional que os liga dentro de uma cultura, isto é, o código propriamente dito. 140 Cf. I.2.2.
154
Arquitetura141, poderíamos dizer que constituem códigos internos da área. No entanto, para a
efetivação de uma mensagem que leve em consideração um processo comunicacional dialógico,
isto é, que tenha plena consciência de quem é o enunciatário, deve-se construir um discurso do
objeto, que esteja além do que é puramente tecnicista – ou exclusivamente delimitado às
opiniões particulares do designer.
O designer deve, então, entrar em contato com uma série de códigos que foram
identificados e descritos por diversas áreas, a partir do estudo e observação de diferentes
culturas. É nesse ponto que entra em ação a interdisciplinaridade: o Design, como área do
conhecimento, troca informações de interesse comum com outras áreas, para assim desenvolver
seus projetos.
Os diálogos mais comuns, embora não se restrinjam apenas a esses, ocorrem entre o
Design e a Arquitetura, a Comunicação, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e a História.
Todas essas áreas, seja diretamente ou indiretamente, por meio de seus estudos, são capazes de
apresentar informações sobre como determinada cultura compreende e interpreta os mais
diferentes significantes que o designer pode trabalhar ou criar.142
Na atividade projetual, o contato do designer com o conhecimento construído por outras
áreas, idealmente, acontece durante as primeiras fases: por meio do estudo da situação-
problema do projeto em questão, é revelada uma complexa teia de fatores (antropológicos,
sociológicos, psicológicos, entre outros) ligada, imediatamente ou não, ao objeto de estudo. A
constatação dessas múltiplas facetas do problema leva ao designer recorrer, por exemplo, ao
trabalhos das Ciências Humanas, Sociais e das Exatas, muitas vezes até mesmo incorporando
seus métodos de pesquisa e observação.
No entanto, além dos códigos conhecidos a partir do estudo de outras áreas, existem
também aqueles que são conhecidos, por meio da própria experiência do designer em uma
cultura. Provindos ou não de um aprendizado empírico, esse conjunto constitui o pequeno
universo dos códigos conhecidos pelo designer.
141 Cf. II. 5. 142 No entanto, certas informações não relacionadas diretamente aos significantes trabalhados no artefato também
contam e devem ser estudadas: um estudo da receptividade, por exemplo, de um novo modo de realizar dada tarefa
por intermédio de um artefato, que poderia ser bem recebida em um determinado meio ou não. Embora nessa
situação hipotética, o estudo do hábito não se traduza, necessariamente, em um significante, ela é imprescindível
para o sucesso da compreensão e circulação da mensagem construída pelo designer em um determinado ambiente.
155
Mesmo que seja muito menor do que o universo de todos os códigos externos, o
pequeno conjunto de códigos que são conhecidos pelo projetista constitui e oferece uma rica
referência para ser utilizada na construção do artefato em si. A esse grupo de códigos utilizados
em um determinado projeto, retirado do manancial daqueles que são conhecidos, chamamos
aqui de repertório.
2.2. O eixo de seleção (a)
Após a pesquisa exploratória do problema, o designer se vê diante de um punhado de
códigos estudados, que potencialmente podem ser utilizados na construção do artefato. A
escolha de quais códigos compõem o repertório de determinado projeto em detrimento de
outros, é o que está sendo chamado aqui de eixo de seleção.
O eixo de seleção é um procedimento complementar à pesquisa, que serviu para o
aumento do número de códigos conhecidos pelo designer. No modelo exposto (Quadro 01), o
eixo de seleção está sendo considerado como a primeira fase propriamente dita de um trabalho
direto sobre a mensagem, chamada de atividade do designer.
Essa atividade, enquanto abarca três diferentes momentos de construção da mensagem,
ela mesma está contida em um plano maior: o do contexto e das circunstâncias de produção,
isto é, a cultura, o tempo e todas as condições que influenciam e delimitam as escolhas
realizadas pelo designer na concepção do artefato.
O procedimento de escolha de quais códigos são privilegiados para o uso num projeto,
passam, essencialmente, por filtros específicos de cada situação de projeto, intimamente ligados
à questões de pertinência: saber que determinada cor simboliza tal significado no Japão, por
exemplo, pode não ser uma informação a ser considerada num projeto para o interior de um
estado brasileiro que não possua qualquer descendência nipônica.
O repertório constitui, pois, um eixo paradigmático geral, contendo os mais diferentes
significantes e o conhecimento primordial de seu potencial semântico. A partir dos significantes
elencados como pertinentes para a mensagem, nem todos, muitas vezes, são capazes de serem
utilizados no artefato final. A essas restrições impostas ou deliberadas, que guiam a produção
do artefato de um dado modo, foram chamadas de diretrizes sintáticas.
2.3. As diretrizes sintáticas (b)
A expressão “diretriz sintática” está sendo utilizada de uma maneira ampla: não se
objetiva dizer que existam regras sintáticas na produção de um artefato do mesmo modo que há
156
na construção de mensagens na linguagem verbal. Entretanto, isso não significa que não
existam também certas instruções e restrições dos mais diferentes tipos no processo produtivo
de artefatos.
Desse modo, a coluna que ilustra as diretrizes sintáticas está dividida por dois filtros,
que tomam os significantes escolhidos anteriormente no repertório do projeto, e os organizam
numa configuração final do significante do artefato terminado: são as restrições e as escolhas
deliberadas.
Em relação às restrições, quando apresentamos a noção de paradigma e sintagma no
âmbito de uma abordagem semiótica do Design143, foi mencionado um dos principais tipos de
restrição à atividade de projeto do designer: as restrições tecnológicas. No mais das vezes,
esse tipo de restrição é bastante conhecida pelo responsável por um determinado projeto, sejam
elas diretamente relacionadas à disponibilidade de máquinas ou simplesmente financeiras.
Ainda sobre esse tipo de restrição, existem também aquelas relacionadas aos saberes do
designer ou do produtor na execução do projeto de um dado modo. O conhecimento de certas
técnicas necessárias para o trabalho com determinados materiais ou formas, por exemplo, é
variável entre diferentes contextos e circunstâncias de produção.
O conhecimento de todas essas restrições impostas sobre a criação de um artefato devem
ser conhecidas pelo designer e, portanto, fazem parte aqui do processo de produção sígnica.
Afinal, não estamos lidando aqui com a concepção puramente teórica dos artefatos, isto é,
apenas as ideias, o que significaria a criação de qualquer tipo de mensagem independente da
sua realização prática. No modelo de produção sígnica proposto, tentamos nos aproximar de
uma situação real, o que implica a consideração de projetos exequíveis.
As informações sobre essas restrições tecnológicas são conhecidas pelo designer a partir
do estudo das possibilidades de produção do artefato, além da consciência do capital financeiro
disponível (seja o do cliente ou do produtor). Em outras palavras, esses são dados
essencialmente levantados no momento do briefing.
Além das restrições puramente tecnológicas, existem restrições intimamente
relacionadas a questões “lógicas” na criação de qualquer produto: um artefato não pode ser ao
mesmo tempo pesado e leve, ou possuir uma superfície enrugada concomitantemente a uma
sensação de liso. São escolhas que estão organizadas de modo opositivo, em que a optar por um
143 Cf. I. 3.3.1.
157
caminho significa a exclusão de outro. Mesmo que isso possa parecer simplesmente óbvio e
bom senso, esses são processos considerados na construção de um signo não-verbal, pois
provocam mudanças no significado que se deseja transmitir.
Barthes, por exemplo, em seu Sistema da moda (2009) organizou uma interessante
série de atributos, compreendidos como imateriais, mas inteligíveis, chamados por ele de
“variantes”144. As variantes dariam toda a carga semântica das famosas matrizes desenvolvidas
no estudo barthesiano da moda. Atributos como comprido, justo, transparência, curvo, e tantos
outros, seriam os responsáveis por preencher as peças do vestuário, estas, segundo Barthes,
vazias de significado por si só.
O grande arcabouço das variantes foi imaginado por Barthes (2009) como o eixo
paradigmático da construção de roupas, e, assim como na linguagem verbal não se é possível
pronunciar dois fonemas ao mesmo tempo, certos atributos não podem estar presentes de
maneira simultânea no sintagma de indumentária.
Todas essas variantes listadas por Barthes (2009), poderiam ser aqui consideradas de
um modo mais resumido como significantes veículos de um significado. No entanto, o
importante da menção do estudo realizado em O sistema da moda (2009), é que existem certas
escolhas de significantes que implicam, necessariamente, a exclusão de outros. Mesmo que
seja uma restrição óbvia, ela também deve ser considerada como delimitadora e organizadora
da configuração final do artefato.
Ademais, um outro tipo de diretriz sintática caminha na direção contrária das restrições:
são as escolhas deliberadas, ou seja, escolhas realizadas pela vontade manifestada do designer,
sem que nenhuma restrição eventual as possa impedir.
É certo que existem soluções já codificadas no campo do Design, no que diz respeito a
um arranjo “otimizado” de certos significantes, como, por exemplo, instruções ergonômicas e
de programação visual, que buscam um equilíbrio das informações. No entanto, não só o
designer, sabendo ou não dessas informações, pode optar por não utilizá-las em um projeto,
mas também, cada situação de projeto é capaz de ser resolvida por soluções muito específicas
e que não estejam necessariamente descritas em livros acadêmicos de Design.
144 Infelizmente, a lista da categorização de variantes criadas por Barthes (2009) é tão rica que apresenta-la em
detalhes seria exceder os limites desta monografia. A título de menção, são mais de trinta tipos de variantes
organizados em dois grandes grupos, que se dividem em outros subgrupos contendo as variantes: as variantes de
ser (variantes de identidade, configuração, matéria, medida e continuidade) e as variantes de relação (variantes de
posição, distribuição, conexão e variante de variantes).
158
Logo, não neguemos o aspecto humano e autoral dos trabalhos em Design, um tipo de
marca ou maneirismo próprio de certo designer trabalhar e solucionar problemas, escolhas
derivadas até mesmo de uma sensibilidade interna.
Levantar a bandeira de uma neutralidade ou imparcialidade total do designer na
mensagem que ele constrói, é uma atitude um tanto ingênua. Afinal, há muito tempo o aspecto
ideológico de toda mensagem da linguagem verbal foi elucidada (a citar, por exemplo, os
trabalhos de Mikhail Bakhtin145 (1895 – 1975), e, portanto, não deveria ser estranho direcionar
igual cuidado para o estudo das linguagens não verbais.
Percebidas as restrições e definidas as escolhas possíveis, a mensagem é construída: um
amálgama de significantes fazendo referência a um conjunto de significados previstos, e uma
infinidade de processos interpretativos imprevistos.
2.4. O sintagma (c)
As mensagens construídas no âmbito do Design, isto é, os artefatos, foram considerados
aqui como tanto como sintagmas quanto textos, o que implica um conjunto de signos
relacionados de um modo coerente. No entanto, muitas vezes em análises ou exercícios em
metalinguísticos como este trabalho, é conveniente considerar o próprio artefato como um único
signo.
Por esse motivo, na coluna do sintagma, dentro do esquema do modelo de produção
sígnica (Quadro 01), por simplificação, o artefato finalizado foi considerado como um único
signo dividido em significante e significado.
Em relação ao significante, na apresentação de um abordagem semiótica do Design,
como foi mostrado, consideramos útil a divisão entre significante total e significantes parciais
(ou constitutivos)146, estes últimos indicados no esquema pela abreviação Stc.
No que diz respeito ao significado, do ponto de vista do produtor da mensagem, existem
aqueles significados intencionais que a mensagem carrega, isto é, o caminho interpretativo
construído e desejado do ponto de vista do designer ao combinar uma série de significantes;
além ainda daqueles que são imprevisíveis, pela própria natureza da semiose infinita.
145 Como exposto no clássico, Marxismo e filosofia da linguagem (1988). 146 Cf. 3.I.2.
159
Aos significados que o designer tentou inculcar na mensagem, e que espera que o
enunciatário os tome como intencionais e, logo, ideais, chamamos de significados previstos
(Sdp).
Nesse primeiro “conjunto” de significados esperados e arquitetados, estão as funções
primeiras e segundas do artefato que foram designadas pelo designer. Essas são funções que se
espera que sejam desempenhadas, a partir dos significantes usados e, principalmente, do
pressuposto que o enunciatário tenha o conhecimento dos códigos de construção147. Mas não
só essas, pois é possível que o produtor da mensagem seja capaz de prever uma série de usos
não designados do artefato em certas circunstâncias, e, portanto, devem ser considerados como
significados previstos.
No entanto, existe também um sem fim de significados que podem ser evocados pelos
mais diferentes enunciatários, dependendo do seu repertório, do contexto e das circunstâncias
em que ocorre o processo de leitura da mensagem. A esse conjunto de significados da natural
fluidez do sentido, é dada a abreviação Sdn, como está representado no modelo.
Após todo esse processo de construção da mensagem pertinente ao trabalho do designer,
é possível que o artefato ainda passe por outros subsequentes enriquecimentos do significado
carregado. Trata-se do trabalho de áreas como a publicidade e o marketing, que criam um
discurso sobre o objeto.
2.5. A atividade da publicidade e do marketing (d)
Embora o fim da atividade do designer implique o término de um manejo direto com os
signos constitutivos do artefato, existe uma outra etapa, do ponto de vista da produção de
147 É importante lembrar que, embora nesta explicação estejamos trabalhando com expressões como “significante
total” e “significado total”, ou mesmo o artefato como um único grande signo, isso não quer dizer que um único
código faz o elo entre esses dois relata. De acordo com a discussão apresentada na seção anterior, durante as
análises dos artefatos, é mais seguro assumir, que um conjunto de códigos regem a relação significante-significado
de um artefato. Naturalmente, é possível recorrer à abstração e perguntar-se “que significa ‘carro’?”, o que
garantiria uma resposta regida, praticamente, por um único código, o da língua, pois conecta significantes muito
específicos a certos significados. No entanto, diferentemente do signo linguístico, o inescapável modo de
manifestação dos artefatos in praesentia, com toda sua riqueza de atributos (formas, cores, texturas etc.) aciona
uma série de inferências abdutivas no trabalho interpretativo de um sujeito. Por outro lado, é certo que se alguém
apontasse para um carro e perguntasse a um outro sujeito que entidade da realidade é aquela, o sujeito que
respondesse poderia dar uma explicação simples e que não se aprofundasse em elucubrações sobre a motivação de
cada significante do artefato, apenas o considerando como um todo, uma mera ocorrência (token) de um tipo (type)
geral.
160
mensagens148, que exerce grande influência nas subsequentes leituras que um sujeito fará da
mesma: trata-se da construção do discurso publicitário e do marketing.
Após os signos constitutivos do artefato serem organizados numa determinada
configuração, pode-se requisitar, principalmente por motivos de dar visibilidade e de despertar
o desejo pelo consumo, que determinados signos sejam postos em destaque. Ou, até mesmo, a
divulgação de alguns códigos que constituem o artefato, com o objetivo de que certos
significados sejam claramente apreendidos pelos sujeitos.
A esse conjunto de práticas que trabalha com ou a partir de uma linguagem já
arquitetada, e, portanto, trata-se de uma retórica sobre uma retórica pré-concebida (a própria do
artefato), chamamos aqui de discurso sobre o objeto.149 Ou seja, trata-se, aqui, do discurso
publicitário ou do marketing elaborado a partir da retórica do artefato de design. Por esse
motivo, no modelo (Quadro 01), esse discurso está sendo representado como uma moldura
sobre o artefato.
Assim, a partir do discurso do artefato em si, a publicidade e o marketing se encarregam
de ressaltar alguns atributos presentes no produto (sejam eles físicos, simbólicos ou
emocionais), muitas vezes os associando a valores louvados na sociedade em que a mensagem
é veiculada. O discurso sobre o objeto procura tornar evidentes principalmente os significados
conotados dos significantes presentes no artefato, realizando a inversão no nível de
importância entre funções primeiras e segundas.150 Daí a publicidade ser uma das grandes
fomentadoras e criadora de mitologias, no sentido barthesiano do termo.
O conhecimento de certos códigos pode, sem dúvidas, levar ao enunciatário a identificar
significados conotados na mensagem que foram intencionados pelo produtor. No entanto, é
inegável que a publicidade e as estratégias de marketing de aproximação do sujeito com o
artefato sejam também responsáveis pela divulgação e priorização de leitura desses significados
148 O processo de enriquecimento do significado de uma mensagem, uma vez lançada, acontecerá por si só, nos
variados usos da mensagem em diferentes situações, além das inúmeras correlações entre signos realizado na
semiose. Portanto, o discurso publicitário está sendo considerado aqui como um tipo de enriquecimento da
mensagem, quando ela ainda está essencialmente no domínio do enunciador, e não do enunciatário. 149 Assim, a polissemia da preposição é útil: é um discurso “sobre” o artefato tanto no sentido de algo que se fala
a respeito de uma outra coisa, quanto no de estar embasado, acima, de algo (no caso, o discurso do próprio artefato).
Quanto ao termo “objeto”, recuperamos aqui para indicar a abrangência do trabalho da publicidade aos produtos
no geral, e não em uma mensagem específica, por isso se preferiu não utilizar a expressão “discurso sobre o
artefato”. É importante lembrar ainda que essa é a expressão utilizada por Baudrillard (2012, p. 173) para tratar da
publicidade. Na verdade, Baudrillard chama a publicidade tanto de “discurso sobre o objeto” quanto “objeto” ela
própria, uma vez que, como coloca o autor, ela é apenas um meio para atingir um fim. No entanto, esse termo é
empregado aqui desprovido de toda a carga crítica que Baudrillard dá. 150 Cf. I. 3.2.1.
161
sobre outros. Ora, a publicidade não só fornece os códigos para uma facilitação da leitura151,
mas também é capaz de instituir códigos, atribuir novos e complexos valores a determinados
significantes: ela é capaz de criar tendências.
Nesse ponto, uma série de considerações poderiam ser feitas sobre as virtudes e efeitos
maléficos da publicidade. Entretanto, uma vez que esse não é o objetivo deste item, apenas
mencionamos que uma grande complexificação do artefato ocorre quando esse discurso difusor
do produto entra em ação.
Além disso, diferentes pontos de tensão e de concordância podem ser levantados entre
as atividades do designer e do publicitário propriamente ditas; e no que diz respeito,
especificamente, à construção do significado, essas tensões estão igualmente presentes. Afinal,
por um lado, um grupo de designers pode ter em mente uma determinada abordagem sobre seu
produto, que certos significados conotados fossem notados que não foram aqueles privilegiados
pelo discurso midiático da publicidade.
Por outro lado, um projeto em que todas as equipes do processo de construção do
artefato se comuniquem e cheguem a um consenso, evita que possíveis frustrações de qualquer
parte possam surgir.
De todo modo, se a publicidade pode até não participar ativamente na construção direta
do significado potencial que um artefato carrega, não há dúvidas que ela realiza, em todos os
casos, um direcionamento da leitura desses significados, sejam eles condizentes ou não com a
proposta inicial da mensagem. Enfim, ela indica um sentido, na dupla acepção desse termo.
2.6. O processo de interpretação (e)
Naturalmente, ao falar de interpretação, já estamos fora do terreno de produção da
mensagem propriamente dita. No entanto, a ilustração do processo interpretativo no modelo de
produção sígnica (Quadro 1) busca ressaltar que os significados e os caminhos de leitura da
mensagem (leia-se sentido), estão em constante construção.
Desse modo, a linha tracejada, representada no Quadro 01, separa as operações de
produção sígnica típicas, da parte essencialmente relacionada à interpretação. O processo
interpretativo, assim como o de produção, está inexoravelmente relacionado a um contexto e
151 Naturalmente, o designer também pode realizar esse papel. No momento em que uma interface digital simula,
por exemplo, a aparência de um botão analógico para o sujeito reconhecer uma determinada funcionalidade de
maneira mais fácil, há aí uma tentativa de facilitar a leitura de determinados signos por meio da confiança de que
esse mesmo sujeito esteja familiarizado com tais botões, reduzindo possíveis ruídos comunicacionais.
162
uma circunstância em que o enunciatário se encontra. Tomado isso em consideração, a divisão
numérica em 1, 2 e 3 no quadro, refere-se às etapas de leitura da mensagem elencadas na seção
anterior desta monografia152: identificação dos significantes, delimitação dos contextos e
circunstâncias e tentativa de reconstituição de produção.
Seja considerando essa divisão realizada aqui ou mesmo outra (tal como a da semiótica
peirceana), é interessante notar a passagem do particular ao geral, ponto comum, geralmente,
nos mais diversos modelos de interpretação.
Observando, então, o início do exercício de produção sígnica e a sua subsequente
tentativa de interpretação ao buscar os códigos originais utilizados pelo enunciador, existe aí
uma simetria. Da escolha e delimitação particular dos significantes que constituem o artefato
mediante certos significados que se deseja transmitir, até a reconstituição das regras gerais
(códigos), que regem aqueles significantes em relação aos significados, vemos que o percurso
de construção do sentido é um fluxo de particularização do geral por meio de recortes nos
primeiros passos da produção, para, logo em seguida, uma volta às generalizações originais no
processo interpretativo.
É um trajeto de partida e retorno ao universo dos códigos, afinal, não há como instituir
signos sem uma relação significante-significado, e nem interpretá-los sem considerar essa
mesma relação.
Embora o processo de produção de sentido numa perspectiva elementar e descritível
pare por aí, é certo que a riqueza dos significados a serem relacionados aos significantes daquela
mensagem, é de um crescimento interminável. As inúmeras possibilidades de recepção da
mensagem, os inimagináveis usos e menções que um sujeito pode fazer com o artefato, fazem
com que, ao longo do tempo, camadas e mais camadas de significados sejam adensadas aos
significantes originais de produção.
Mais do que o processo de semiose infinita ou o interminável adiamento da differánce
(DERRIDA, 1973), trata-se da constante e inevitável semantização de toda mensagem no
momento em que é lançada no mundo.
Sim, a tentativa de generalizar o caso específico em uma regra geral, sejam os códigos
originais recuperados ou não no processo interpretativo e seja qual for o evento que um sujeito
152 Cf. II.
163
tem diante de si (desconhecido ou não), leva ao já discutido fenômeno da recursividade contínua
do sentido153.
No entanto, dizer que esse é o único motivo do enriquecimento contínuo dos
significados de um artefato ou de qualquer tipo de mensagem, seria afirmar a existência de um
movimento de autorreferência restrito apenas a linguagem em si, tal como ela se encontra em
um dado momento. Isso implica desconsiderar a própria “vida” de uma linguagem, dada a ela
pelos seus próprios falantes nas mais variadas situações. Isto é, a linguagem deve ser
considerada como um produto de uma sociedade e cultura em dado espaço-tempo, e, portanto
dinâmica.
Dificilmente qualquer modelo seria capaz de pormenorizar e detalhar todas as possíveis
vicissitudes da realidade. Realizar tal façanha seria, como diz uma antiga fábula, criar um mapa
tão preciso de uma cidade que, no fim, seria a própria cidade. 154
O modelo construído aqui (Quadro 01) deve ser considerado como ponto de partida,
uma descrição simplificada dos primeiros passos da produção sígnica no Design, mas nunca
esquecendo a típica uberdade de qualquer estudo, quando se discute sobre os significados, sobre
os múltiplos sentidos.
153 Cf. I. 2.5. 154 Referimo-nos ao pequeno conto de Jorge Luis Borges, escrito na forma de uma falsificação literária, que pode
ser encontrado no livro O fazedor (2008, p. 155).
164
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do pressuposto inicial do Design como linguagem até o movimento final de postulação
de como essa mesma linguagem é trabalhada, a discussão feita nesta monografia tomou o
designer essencialmente como um comunicador. Mas não somente isso: a questão é refletir
como o designer, num processo comunicacional, é capaz de construir suas mensagens; como o
designer cria um artefato; e de como ele, um profissional, reflete sobre o modo de se atribuir
significados ao artefato criado.
À primeira vista, perguntar-se como certas formas ou cores são escolhidas em
detrimento de outras, tendo em vista uma intenção comunicativa, pode soar óbvio para aquele
que a todo momento lida com essas escolhas. Ora, talvez para um sujeito bastaria dizer que, por
exemplo, a edição especial de determinado produto para o dia dos namorados é vermelho, pelo
simples fato de que o vermelho simboliza o amor.
E, então, de certo modo desafiando essas respostas óbvias, neste trabalho tentamos
responder não exatamente os porquês da questão (“por que o vermelho simboliza o amor?”)
mas, sim, o como: como o vermelho é capaz de ser identificado como símbolo de determinado
sentimento, tanto por aquele que produz a mensagem quanto por aquele que a recebe?
Essa é uma “pergunta semiótica” por excelência, pois questiona os modos de
funcionamento de uma determinada linguagem. Mas não só isso: a questão igualmente suscita
uma visão mais cuidadosa sobre a relação do trabalho do designer com os códigos que ele utiliza
a todo momento. No entanto, isso não anula as possíveis investigações que outras áreas já
fizeram ou possam ainda realizar acerca da mesma problemática. Como já dito aqui, a Semiótica
é apenas um caminho para a resposta da pergunta proposta e, ainda assim, um caminho que se
beneficia de uma série de conversas com outras áreas do conhecimento humano.
Conforme foi apresentado, objetivando a formulação de uma resposta a essa questão,
pelo caminho oferecido pela Semiótica, uma série de conceitos foram definidos, principalmente
sob a visão de Roland Barthes (2009; 2012; 2013) e Umberto Eco (1981; 2004; 2014; 2016)
Uma vez definidos na própria complexidade de seu campo de origem, verificou-se as
possibilidades e limitações de aplicação desses conceitos no estudo da atividade do designer.
Por um lado, algumas limitações foram identificadas, como, por exemplo, as
consequências de um rigor extremo na consideração de sistemas de signos fechados na teoria
165
hjelmsleviana. Tal visão poderia levar à armadilha da não consideração de fatores históricos
nas possíveis interpretações, que poderiam ser feitas de determinados significantes.
Por outro lado, conceitos como os de unidade cultural e significados primeiros e
segundos, foram de importante ajuda, no viés semiótico, para o esclarecimento de certos
problemas de significação e de reconhecimento dos artefatos.
A partir desses conceitos, questionar-se sobre uma abordagem semiótica do Design nos
levou também a uma reflexão sobre se existem características próprias da linguagem do Design.
Principalmente no que diz respeito às repartições hjelmsleviana do signo, constatamos que a
substância de expressão das mensagens produzidas pelo designer é de natureza mista e de leitura
sincrônica, englobando até mesmo outros signos complexos como imagens e frases inteiras.
Em relação ao plano de conteúdo, vimos que esses significados, na maioria das vezes,
carregam, em primeira instância, as funções do produto, mesmo que essas funções possam
variar mediante determinadas circunstâncias, seja por motivos práticos ou por razões
ideológicas, quando, por exemplo, um significado conotado é posto como “natural”.
Em seguida, por meio das análises, vimos como esses conceitos podem contribuir na
investigação do processo interpretativo dos artefatos, com o objetivo de tentar reconstituir os
códigos originais de sua produção. Ainda, pudemos observar como designer cria um tipo de
retórica própria, seja com simples operações metafóricas e metonímicas, ou, de um modo mais
complexo, com a mistura de semas provenientes de sememas de unidades culturais distintas –
muitas vezes posicionadas de maneira opositiva num eixo semântico.
Dessa maneira, ficou clara a importância dos códigos na construção do sentido e da
consideração de contextos e circunstâncias não só de leitura, mas também de produção da
mensagem.
O que nos leva à resposta da pergunta inicial. Nesta monografia, a resposta se encontra
destilada ao longo das páginas do trabalho, mas que culmina na postulação modelo de produção
sígnica apresentado, e que, resumidamente, reafirmamos: o designer constrói suas mensagens,
por meio da utilização de uma série de códigos por ele conhecidos e que ele julga que seu
interlocutor também conheça. Logo, o artefato é uma complexa malha de signos, que são
regidos por códigos que ligam determinados significantes, os quais o projetista tem ou não à
disposição para trabalhar, graças a diferentes motivos, a certos significados. Por sua vez, espera-
se que esses signos sejam interpretados pelo destinatário, inserido num determinado contexto e
166
numa circunstância de leitura. Além disso, todo esse discurso do artefato é ainda revestido por
outro, proveniente da ação da publicidade e do marketing.
Tais palavras, e muito menos o modelo, não pretendem congelar a atividade do designer
ao que foi descrito. A provisoriedade e o aspecto reducionista da realidade que é próprio dos
modelos, não anula sua validade de estudo e de pesquisa. Como disse Lévi-Strauss, na Abertura
do livro O cru e o cozido (2008), embora a empreitada da formalização de um modelo da
realidade “chega a ser desprovida de sentido, já que se trata de uma realidade instável,
permanentemente à mercê dos golpes de um passado que arruína e de um futuro que a modifica”
(2008, p. 21), é válida, pois “mesmo uma gramática parcial, ou um esboço de gramática,
representam preciosas aquisições quando se trata de línguas desconhecidas” (2008, p. 26). Ou
nas palavras de Roland Barthes, mais dramático, mas não menos incisivo: “semiólogo é aquele
que expressa sua morte futura nos próprios termos que ele nomeou e compreendeu o mundo”
(2009, p. 432).
De todo modo, o modelo proposto nos permite observar que a principal característica
do trabalho dessa linguagem é o manejo dos códigos externos à área do Design ou, de um modo
mais generalista, de diversos conhecimentos provindos de diferentes áreas, o que ressalta a
interdisciplinaridade já comentada nesta pesquisa. Como todo processo comunicacional, na
atividade do designer há uma complexidade que não deve ser ignorada ou subestimada.
E é justamente sobre essa complexa atividade, que esperamos que esta monografia possa
ter oferecido uma contribuição. Uma tentativa de contribuição a uma reflexão sobre o fazer do
designer, para além de um ponto de vista de uma metodologia a ser seguida na realização desse
ou daquele projeto: de estudos sobre como proceder ou fazer de um ponto de vista prático, há
farta literatura.
O estudo que foi realizado preocupa-se com a construção do artefato como mensagem,
e esse fazer semiótico, “construir mensagens”, é resultado final comum a todos processos, a
metodologias e as atividades em Design; estejam elas declaradamente cientes disso ou não.
167
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