celia luiza andrade prado

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    Clia Luiza Andrade Prado

    PS-COLONIALISMO E O CONTEXTO BRASILEIRO: HAROLDO DE CAMPOS, UM TRADUTOR PS-COLONIAL?

    So Paulo 2009

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    PS-COLONIALISMO E O CONTEXTO BRASILEIRO: HAROLDO DE CAMPOS, UM TRADUTOR PS-COLONIAL?

    Clia Luiza Andrade Prado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Estilsticos e Literrios em Ingls, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientadora: Prof Dr Lenita Maria Rimoli Esteves

    So Paulo

    2009

  • Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo ____________________________________________________________________________

    PRADO, Clia Luiza Andrade Ps-colonialismo e o contexto brasileiro : Haroldo de Campos, um tradutor ps-

    colonial? / Clia Luiza Andrade Prado ; orientadora Lenita Maria Rimoli Esteves. -- So Paulo, 2009.

    131 f.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Estudos Estilsticos e Literrios em Ingls) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    1. Colonizao. 2. Colonialismo Teoria e histria. 3. Traduo. 4. Tradutores

    Brasil. 5. Campos, Haroldo de, 1929-2003. I. Ttulo. II. Esteves, Lenita Maria Rimoli.

  • 9

    Para Marcela e Rogrio.

    Em memria de minha irm.

  • 10

    AGRADEO

    minha orientadora Prof Dr Lenita Maria Rimoli Esteves pelo incentivo proposta do trabalho e pela leitura precisa e preciosa. Ao Prof. Dr. Almiro Pisetta pelas sugestes no Exame de Qualificao. Prof Dr Norma Goldstein pela orientao na anlise da traduo de poemas. Prof Dr Elis de Almeida Cardoso sugestes no mbito da Estilstica na anlise das tradues por Haroldo de Campos. minha amiga, colega e professora Prof Dr Alzira Allegro a maior responsvel pelo rumo que minha carreira tomou. s minhas colegas do GTG pela generosa acolhida no grupo. Carmen de Arruda Campos, Ivan Campos, Marcelo Tpia e Thelma Mdici Nbrega pelo privilgio de me convidarem a participar de suas reunies sobre Haroldo de Campos. Aos meus pais por me proporcionarem acesso cultura e s lnguas.

  • 11

    e comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e arremesso e aqui me meo quando se vive sob a espcie da viagem o que importa no a viagem mas o comeo da por isso meo por isso comeo escrever mil pginas escrever milumapginas...

    galxias Haroldo de Campos

  • 12

    PRADO, Clia L. A. Ps-colonialismo e o contexto brasileiro: Haroldo de Campos um um tradutor ps-colonial? 2009, 131 f. Dissertao (Mestrado em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    Resumo: A dissertao tem como objetivo principal investigar a relao do ps-colonialismo com o contexto brasileiro, instanciada pelas referncias teoria de traduo de Haroldo de Campos por parte de tericos dos Estudos da Traduo. Se, por um lado, o reconhecimento internacional da teoria de traduo de Campos mais que merecido, por outro, consider-lo ps-colonial reduz a dimenso e complexidade de seu pensamento, que permeia toda a sua produo intelectual e criativa como poeta, crtico e tradutor. A pesquisa apresenta duas linhas de investigao: a teoria ps-colonial, nos seus aspectos histricos e tericos e o trabalho e pensamento do tradutor Haroldo de Campos. Apesar de aparentemente paralelas elas convergem para a comprovao, ou no, da seguinte hiptese: a prtica tradutria de Haroldo de Campos apresenta uma preocupao mais de cunho artstico que poltico. Palavras-chaves: Colonizao, ps-colonialismo, traduo, transcriao, Haroldo de

    Campos.

  • 13

    PRADO, Clia L. A. Postcolonialism and the Braziliam context: Haroldo de Campos, a poscolonial translator? 2009, 131 p. Dissertation (Mestrado em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Abstract: The main purpose of this dissertation is to investigate the relation of Postcolonialism with the Brazilian context, motivated by the references to Haroldo de Camposs translation theory by Translation Studies theoreticians. On the one hand, if the international recognition of Campos's translation theory is deserved, on the other, to consider him "postcolonial" narrows the dimension of Campos's reflections, which pervade all his production as poet, critic, translator and theoretician, and cannot be considered separately. The research will follow two parallel lines of investigation: post-colonial translation theory, its historical and theoretical aspects, and Haroldo de Camposs translation theory, which will converge towards the hypothesis: Camposs translation theory advocated new aesthetic information, rather than a political message. Key words: Colonization, postcolonialism, translation, transcreation, Haroldo de Campos.

  • 14

    SUMRIO Introduo................................................................................................................................. 9

    1. Teoria viajante .................................................................................................................... 21

    1.1. A teoria fora do lugar ....................................................................................................21 1.2. Ps-colonialismo ...........................................................................................................23

    1.2.1. Aspectos histricos .................................................................................................24 1.2.2. Aspectos tericos....................................................................................................26

    1.3. Colonizao e descolonizao na Amrica Latina ........................................................29 1.3.1. Aspectos histricos .................................................................................................30 1.3.2. Aspectos tericos....................................................................................................32

    1.4. Desconhecimento de causa............................................................................................42 1.5. Consideraes Finais .....................................................................................................45

    2. Traduo e ps-colonialismo ............................................................................................. 50

    2.1. A traduo no contexto ps-colonial .............................................................................50 2.2. sia................................................................................................................................52 2.3. frica .............................................................................................................................56 2.4. As "colnias brancas"....................................................................................................59 2.5. Hispano-Amrica...........................................................................................................65 2.6. A traduo no Brasil ......................................................................................................68 2.7. Consideraes Finais .....................................................................................................74

    3. Antropofagia: os mltiplos caminhos da metfora ......................................................... 77

    3.1. S a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente...........77 3.2. Antropofagia ou canibalismo?.......................................................................................81 3.3. Da metfora ao clich ....................................................................................................84 3.4. Antropofagia e a traduo .............................................................................................88 3.5. Consideraes finais ......................................................................................................96

    4. Muito alm da antropofagia .............................................................................................. 99

    4.1. A fortuna crtica do tradutor Haroldo de Campos .........................................................99 4.2. Esse homem um imenso poeta-pensador que sabe tudo .......................................106 4.3. Uma potica da traduo .............................................................................................112 4.4. Consideraes finais ....................................................................................................122

    Concluso...............................................................................................................................118 Bibliografia............................................................................................................................124

  • 15

    INTRODUO

    A pergunta presente no ttulo deste trabalho reflete a estranheza instanciada pelas

    referncias a Haroldo de Campos por renomados tericos dos estudos da traduo,

    principalmente britnicos e americanos, inserindo-o na teoria ps-colonial. Se, por um lado, o

    reconhecimento internacional da teoria de traduo de Haroldo de Campos mais que

    merecido, por outro, consider-lo "ps-colonial" causa bastante estranheza. Primeiramente,

    porque se questiona at que ponto a teoria ps-colonial pode ser aplicada ao contexto

    brasileiro. Alm disso, conhecendo-se a dimenso do pensamento de Haroldo de Campos, que

    permeia todas as suas reas de atuao poesia, crtica, traduo parece que sua

    preocupao mais de natureza esttica e artstica que poltica.

    O grande responsvel pela divulgao da teoria de traduo de Haroldo de Campos em

    nvel internacional foi um artigo publicado em lngua inglesa de autoria de Else Vieira: "A

    postmodern translational aesthetics in Brazil", de 1994. Essa publicao parte de sua tese de

    doutoramento, Por uma teoria ps-moderna da traduo, de 1992. Nela, Vieira faz uma

    reflexo sobre os aspectos inovadores da teoria de traduo dos irmos Campos, em especial

    Haroldo, que contriburam para a mudana de paradigma da traduo literria no Brasil. Essa

    nova maneira de entender o processo tradutrio rompe com o pensamento tradicional, que

    considera o texto traduzido qualitativamente inferior ao original.

    Para descrever o ato tradutrio, em vez de conceitos como fidelidade, literalidade,

    adequao e equivalncia, Haroldo de Campos (1981, p. 180) fala em transcriao,

  • 16

    vampirizao, transluciferao de um texto que "se recusa a servir submissamente a um

    contedo, que se recusa tirania de um Logos pr-ordenado". Essa posio vai ao encontro do

    questionamento da Teoria Ps-Colonial, que repensa a traduo no mais partindo das

    definies e paradigmas europeus e contesta a ideia do original como sendo superior ao texto

    traduzido, at ento relegado condio de cpia.

    Sem dvida a reflexo sobre traduo de Haroldo de Campos inovadora. Vieira (1992, p.

    44) confirma a dimenso poltica da ruptura com "com o paradigma de pureza absoluto" ao

    demonstrar que esse processo de desierarquizao "limita a universalidade do original ao

    inscrever a diferena" colocando superiores e subordinados em p de igualdade. Contudo,

    rotular Haroldo de Campos de tradutor ps-colonial uma atitude reducionista que parece

    desconhecer a dimenso do seu trabalho criador de poeta, tradutor e crtico literrio.

    Uma das razes dessa insero pode estar ligada ao fato de que h algum tempo a ateno

    por parte dos intelectuais tem se voltado para as chamadas "periferias", sejam elas

    econmicas, sociais, ou culturais, resultado da dispora de povos outrora colonizados pelos

    pases do primeiro mundo, provocada por guerras, pela fome, enfim pela ausncia de

    perspectiva em seus pases de origem. Esses povos contriburam para a formao de

    sociedades multiculturais. Nesse contexto, a sociedade rejeita uns elementos culturais e

    valoriza outros, que se no forem aceitos por todos os seus membros geram conflitos entre

    diferentes crenas e tradies. Dessa forma, uma teoria que no incio tinha por objeto a

    exceo pode, com o tempo, se tornar mainstream.

    Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a preocupao com os aspectos histricos e

    tericos das manifestaes culturais produzidas nesse contexto multicultural, at ento

    desconsideradas pelo pensamento crtico hegemnico, tem sido a tnica da teoria ps-

    colonial. Diferentes questes decorrentes da confluncia de culturas tm sido investigadas por

    muitos intelectuais de diversas reas e nacionalidades.

  • 17

    O ps-colonialismo mudou o foco de classe e nao para etnicidade, conceito que

    transcende o de etnia ao relacionar-se com os padres culturais de um grupo, representando

    uma passagem da poltica para a cultura. A questo da identidade cultural subjaz ao

    pensamento intelectual e artstico dos povos colonizados, que ao questionar o universalismo

    europeu suscita reivindicaes relativas aceitao da alteridade e pluralidade.

    Dessa forma, o ps-colonialismo pode ser entendido pelos seus aspectos histricos e

    tericos. O aspecto histrico tem como base o perodo depois da Segunda Guerra Mundial,

    marcado pelo declnio do imperialismo europeu, notadamente o britnico e o francs. Foi um

    "perodo de reabilitao poltica, cultural e psicolgica dos povos colonizados: africanos,

    rabes e asiticos" (CABAO & CHAVES, 2004, p. 69). Os aspectos tericos tm como

    objeto os novos movimentos sociais e culturais, investigando os conceitos de identidade, raa

    e etnicidade, e, ainda, a relao de linguagem e poder sob as condies assimtricas do

    imperialismo.

    Na concordncia com essa nova maneira de entender a cultura, a traduo passa de canal

    indispensvel da conquista, ocupao e manuteno da colnia, para uma forma de resistncia

    e oposio cultura do colonizador, propiciando a superao de barreiras inter- e

    intraculturais. Vinculados a esse pensamento, acham-se outros movimentos como os estudos

    culturais (Cultural Studies) e os estudos subalternos (Subaltern Studies), que tambm

    contestam a Europa e os Estados Unidos como sendo o centro irradiador do conhecimento e

    da cultura.

    A colonizao foi decisiva na formao da identidade tanto nacional quanto cultural dos

    povos dominados, entretanto, h um debate sobre a quais pases, ou culturas, podem-se aplicar

    os conceitos da Teoria Ps-Colonial, principalmente levando-se em conta que trs quartos do

    mundo foi em algum momento colnia. As diferenas temporais, espaciais e de

    descolonizao evidenciam a impossibilidade de o colonialismo europeu ter sido uma

  • 18

    empreitada monoltica. Mesmo assim, muitos intelectuais contemporneos mantm posies

    generalizadoras quando partem de uma colonizao especfica em certo tempo e espao para

    analisar outros contextos. Outros consideram o termo inadequado para definir realidades

    contemporneas de muitos pases que um dia foram colnias.

    Como a nova tendncia dos estudos da traduo num contexto ps-colonial de analisar o

    ato tradutrio em sua relao com o imprio, questionando o universalismo europeu e a

    correspondncia assimtrica entre original e texto traduzido, e de associar a traduo ao

    fenmeno da formao da identidade cultural, decorrente das dominaes, dos deslocamentos

    e do multiculturalismo, aplica-se um "modelo" terico importado ao nosso contexto. Mesmo

    tomando a teoria ps-colonial de uma perspectiva mais ampla, relacion-lo ao contexto

    nacional uma atitude bastante controversa e, por vezes, tida como simplista.

    O olhar distanciado das culturas hegemnicas tende a ter uma viso estereotipada e

    homognea da Amrica Latina ao considerar somente alguns aspectos das nossas questes

    culturais, como no caso da insero da teoria de traduo de Haroldo de Campos nos ps-

    colonialismo, por meio de sua associao metfora da antropofagia como prtica tradutria.

    Isso leva-nos a refletir sobre as seguintes questes: primeiramente, pode-se aplicar os

    conceitos do ps-colonialismo ao contexto latino-americano? Em segundo lugar, seria a teoria

    de traduo de Haroldo de Campos tributria de uma teoria ps-colonial ou ele buscava

    primordialmente o efeito esttico?

    O objetivo geral do trabalho desenvolver um pensamento crtico em relao aceitao

    de teorias elaboradas a partir de um contexto alheio e aplicadas nossa prpria realidade, sem

    nenhum questionamento. Os objetivos especficos so apontar na trajetria da colonizao e

    descolonizao do Brasil as diferenas com relao a outros contextos, inclusive dos outros

    pases latino-americanos, resultando em controvrsia sobre o escopo do ps-colonialismo, e

  • 19

    ressaltar a complexidade da teoria de traduo de Haroldo de Campos, que no se limita

    metfora da antropofagia como querem alguns estudiosos.

    Consequentemente, a pesquisa apresenta duas linhas de investigao: a teoria ps-

    colonial, nos seus aspectos histricos e tericos e o trabalho e pensamento do tradutor

    Haroldo de Campos. Apesar de aparentemente paralelas elas convergem para a comprovao,

    ou no, da seguinte hiptese: a prtica tradutria de Haroldo de Campos apresenta uma

    preocupao mais de cunho artstico que poltico.

    O trabalho se inscreve num mbito interdisciplinar. Assim, a histria, os estudos culturais,

    a crtica literria, a teoria ps-colonial e os estudos da traduo fornecero os pressupostos

    tericos. No que se refere teoria de traduo de Haroldo de Campos, foram consultados

    alm de seus prprios textos sobre traduo, as teses de doutoramento de Else Vieira, Por

    uma teoria ps-moderna da traduo, de Thelma Mdici Nbrega, Sob o signo dos signos:

    uma biografia de Haroldo de Campos, e de Silene Moreno, Ecos e reflexos: a construo do

    cnone de Augusto e Haroldo de Campos a partir de suas concepes de traduo.

    No plano metodolgico dividimos este trabalho em quatro partes, nas quais as teorias

    pertinentes so problematizadas, buscando-se responder s perguntas de pesquisa. O primeiro

    captulo apresentar uma reflexo sobre a circulao de ideias e teorias no tempo e no espao,

    que passam de pessoa para pessoa, de uma situao para outra, questionando at que ponto

    sua aplicao adequada ao nosso contexto. Essa discusso estar centrada na teoria ps-

    colonial e discutir sua relevncia para o contexto latino-americano por meio da anlise de

    aspectos da colonizao e descolonizao e da reflexo sobre a identidade cultural no

    continente latino-americano. A importncia da investigao da teoria ps-colonial neste

    trabalho reside na necessidade de amealhar argumentos para sustentar a hiptese. Nesse

    captulo buscaremos entender por que tericos estrangeiros fazem afirmaes acerca de nossa

    realidade que nos causam estranheza.

  • 20

    O segundo captulo tratar da traduo e sua relao com o ps-colonialismo, analisando

    diferentes contextos onde a traduo apresentou uma motivao poltica, e foi usada como

    fora opositora e de resistncia ao colonizador, e comparando-os com o contexto brasileiro.

    No se pretende aqui elaborar uma anlise profunda e abrangente da questo da traduo ps-

    colonial, mas elencar alguns estudos de caso famosos a ttulo ilustrativo.

    No terceiro captulo sero discutidas, ainda, as diferentes interpretaes da antropofagia e

    sua apropriao como metfora de traduo, uma vez que pela associao dessa metfora

    com a teoria de traduo que Haroldo de Campos ser considerado um tradutor ps-colonial.

    O quarto captulo buscar na teoria de traduo de Haroldo de Campos argumentos que

    corroborem a hiptese de que ele buscava primordialmente o efeito esttico no sendo

    tributria da teoria ps-colonial e verificar de que maneira sua atividade de poeta, tradutor e

    crtico literrio se acham ligadas. A partir dos seus escritos apontaremos os tericos que

    contriburam para a elaborao de seus conceitos. Por fim, a concluso faz um fechamento do

    estudo, seguida pela bibliografia.

  • 21

    1. TEORIA VIAJANTE

    Theoretical closure, like social convention or cultural dogma, is anathema to critical consciousness, which loses its profession when it loses its active sense of an open world in which its faculties must be exercised. 1

    Edward Said

    1.1. A teoria fora do lugar

    Ideias, conceitos, teorias circulam no tempo no tempo e no espao, passando de pessoa

    para pessoa, de uma situao para outra, algumas exercendo maior influncia no meio

    receptor que outras. Segundo Edward Said (1983, p. 227), uma "teoria viajante" (traveling

    theory) segue uma trajetria de alguns estgios: o ponto de origem e as circunstncias da

    gnese; a distncia espacial e temporal percorrida, movendo-se sob presso dos vrios

    contextos, ganhando novos contornos e notoriedade; as condies para a recepo ou

    resistncia que possibilitam a sua aceitao ou tolerncia. Por fim, a incorporao total ou

    parcial da ideia, transformada pelos novos usos e pelo novo contexto. No entanto, no se trata

    de um processo homogneo, isto , nem todas as teorias cumprem a mesma trajetria.

    Faz-se necessrio especificar que tipos de movimentos so possveis, a fim de questionar se ao passar de um lugar para outro e de uma poca para outra, uma ideia ou teoria ganha ou perde fora, e se uma teoria em determinado perodo histrico e cultural nacional torna-se totalmente diferente em outro perodo e situao 2 3 (SAID, 1983, p. 226).

    As teorias podem ser tanto importadas quanto exportadas. Roberto Schwarz descreve em

    As ideias fora do lugar como e com que resultados o Brasil adotou, no sculo XIX, a

    1 A clausura terica, assim como as convenes sociais ou dogmas culturais, um antema do pensamento crtico, que perde sua profisso quando perde percepo de um mundo aberto onde a reflexo deve ser cultivada. 2 One should go on to specify the kinds of movement that are possible, in order to ask whether by virtue of having moved from one place and time to another an idea or a theory gains or loses in strength, and whether a theory in one historical period and national culture becomes altogether different for another period or situation. 3 As tradues que no constarem da bibliografia so de nossa autoria..

  • 22

    "universalidade de princpios" da Europa, levando a um confronto o liberalismo e a

    escravatura: "As ideias liberais no se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo

    indescartveis" (2000, p. 26). O problema da adoo de teorias alheias nossa realidade que

    elas "no descrevem sequer falsamente a realidade" (Ibid, p. 18), pois, ao serem

    transplantadas para um outro contexto, as teorias polticas, econmicas, sociais ou culturais

    "envolvem processos de representao e institucionalizao diferentes daqueles do ponto de

    origem" (SAID, 1983, p. 226) 4.

    Esse processo de circulao de teorias em todo o mundo pode ser considerado tanto de

    maneira positiva quanto negativa. Para Said (1983, p. 226) a circulao de ideias alimenta e

    sustenta a vida intelectual e cultural de maneira consciente ou inconsciente, seja por meio de

    "emprstimo criativo ou apropriao total" 5. Esse movimento de ideias e teorias um "fato

    da vida" que favorece a atividade intelectual.

    A questo torna-se problemtica quando a teoria aplicada de forma indiscriminada e

    generalizada, pois a realidade fundamentalmente descontnua e heterognea. A esse respeito

    Carlo Ginzburg, em entrevista de 2007 6, ressalta que "nenhuma concluso alcanada a

    propsito de um determinado mbito pode ser automaticamente transferida para um mbito

    mais geral", corroborando a postura crtica que muitos intelectuais adotam com relao a

    teorias estrangeiras importadas.

    Partindo do pressuposto de que a Teoria Ps-Colonial resultado de circunstncias

    histricas especficas, o que acontece teoria quando em circunstncias diferentes e por novas

    razes adotada? A Teoria Ps-Colonial pode ser aplicada ao contexto latino-americano?

    Para podermos avaliar tal questo, seguiremos a trajetria do Ps-colonialismo enquanto

    "teoria viajante". O termo ps-colonialismo virou "moeda corrente" no meio acadmico desde

    que foi cunhado. Rajagopalan (2007, p. 170) argumenta que o simples fato de no se ter mais 4 It involves processes of representation and institutionalization different from those at the point of origin. 5 creative borrowing or wholesale appropriation. 6 Fico x realidade. O Estado de So Paulo, 28/08/07.

  • 23

    a necessidade de colocar hfen no termo em ingls (postcolonialism) uma evidncia clara de

    que foi totalmente incorporado ao jargo crtico. Para esse autor, o Ps-colonialismo no

    mais um movimento marginal, pois j faz parte do establishment, mesmo que at hoje a

    inteno seja de trazer ateno do pblico questes de interesse marginal.

    Para Milton (2009, p. 11), ideias que viram moeda corrente percorrem caminhos

    tortuosos e raramente seguem um plano, ou programa, definido. Parece ter sido esse o caso da

    metfora da antropofagia, que virou lugar-comum quando se refere traduo no Brasil,

    principalmente relacionada a Augusto e Haroldo de Campos: No entanto, esse termo

    [canibalismo], que virou moeda corrente nos crculos dos Estudos da Traduo difere muito

    do que se acha nos trabalhos deles publicados no Brasil. 7 Ainda segundo Milton, a

    disseminao do termo decorrente do interesse de alguns tericos em promover

    internacionalmente a traduo do Brasil, que ocorreu no pela publicao da teoria de

    Haroldo de Campos em ingls, mas por meio de uma corrente de contatos pessoais. 8

    Primeiramente, com relao ao ponto de origem, apresentaremos um breve painel da

    Teoria Ps-Colonial, seus aspectos histricos e tericos. A seguir, apontaremos alguns

    aspectos da colonizao e descolonizao da Amrica Latina e a sua importncia na reflexo

    sobre a identidade cultural e nacional. E por fim, criticaremos algumas posies reducionistas

    e generalizadoras, pois se a teoria certamente necessria, "o reconhecimento crtico de que

    no h teoria capaz de abranger, delimitar e prever todas as situaes s quais ela pode ser

    til" (SAID, 1983, p. 241) ainda mais imprescindvel.

    1.2. Ps-colonialismo

    7 However this particular term, which has gained a certain currency in Translation Studies circles is very different from what can be found in their work in Brazil. 8 was done through a chain of personal contacts.

  • 24

    O ps-colonialismo um termo usado para indicar um perodo marcado por mudanas

    polticas com a independncia de colnias europias, sobretudo na frica e sia, acarretando

    a formao de novas identidades nacionais e culturais. Portanto, o termo engloba aspectos

    histricos e tericos.

    O aspecto histrico tem como base o declnio do imperialismo europeu, notadamente

    britnico e francs. Os aspectos tericos tm como objeto os novos movimentos sociais e

    culturais, investigando os conceitos de identidade, raa e etnicidade, e, ainda a relao de

    linguagem e poder.

    A questo da identidade cultural subjaz ao pensamento intelectual e artstico dos povos

    colonizados, que, ao questionarem o universalismo europeu suscitam reivindicaes relativas

    aceitao da alteridade e pluralidade.

    1.2.1. Aspectos histricos

    Aps a Segunda Grande Guerra, uma srie acontecimentos de ordem poltica, social e

    econmica marcou o declnio do imprio europeu redesenhando o mapa-mndi. Apesar do

    grande prestgio alcanado pela Gr-Bretanha aps o conflito mundial, a nao estava

    econmica e politicamente debilitada e buscava uma soluo para a ndia que clamava por

    independncia. A Frana, Holanda e Blgica, que tambm possuam colnias, sofriam

    consequencias da invaso germnica. De todos os continentes a frica foi o que mais se

    modificou no sculo passado. Na dcada de sessenta, trinta e dois pases se tornaram

    independentes. No incio do sculo XX, o nico pas independente era o Imprio da Abissnia

    (hoje Etipia) 9.

    No perodo ps-guerra, os movimentos de independncia da ndia e da Arglia levaram ao

    questionamento de conceitos como nacionalidade, identidade e raa. A preocupao com tais

    9 A respeito da presena europia na frica ver: Thomas PAKENHAM. The scramble for Africa: white man's conquest of the dark continent from 1876 -1912.

  • 25

    questes pode ser notada na exigncia por parte da liderana indiana de separar o Paquisto,

    de maioria muulmana. Seguiram-se srios confrontos entre hindus e muulmanos vitimando

    sete mil pessoas e culminando com o assassinato de Gandhi no dia 30 de janeiro de 1948. O

    Visconde de Mountbatten, que havia assumido o posto de vice-rei na colnia em maro de

    1947, aps vrias reunies com lderes polticos locais, decidiu pela separao da colnia em

    dois estados, que provocou massacres migrao em massa de ambos os lados. Em agosto de

    1948 foi declarada a independncia da ndia e do Paquisto 10.

    Por sua vez, a guerra de independncia da Arglia foi longa, de 1954 a 1962. Nesse

    perodo confrontaram-se de um lado o exrcito francs, apoiado por guerrilhas formadas pelos

    pied-noirs (colonos de origem francesa) e, do outro lado, a Frente de Libertao Nacional. A

    luta se acirrou com a entrada de uma terceira fora separatista, mas no aliada FLN, o

    Movimento Nacional Argelino. Nesse quadro de violncia, destaca-se a figura de Frantz

    Fanon (1923-1960),

    personagem fundamental na independncia da Arglia e referncia incontestvel do debate e da ao que acompanharam o fim dos imprios coloniais [...] ele foi uma voz responsvel e reconhecida do "terceiro-mundismo" radical, que associou ao trabalho cientfico a prtica militante, e sobre essa experincia de vida construiu o seu pensamento poltico (CABAO E CHAVES, 2004, p. 69).

    Para Fanon no havia um caminho pacfico e, ao mesmo tempo que denunciava a

    violncia colonial, ele pregava a violncia como ao libertria, pois acreditava que a no-

    violncia era uma forma de "cumplicidade passiva".

    A independncia das colnias se deu em diferentes datas, porm todas apresentam um

    trao comum: guerras fratricidas e ditaduras corruptas. O velho colonialismo deu lugar ao

    neocolonialismo e o poder poltico foi substitudo pelo econmico, mas foi a partir da

    independncia da ndia e da Arglia que surgiram as primeiras reflexes sobre a condio do

    indivduo ps-colonial.

    10 Fonte: Encyclopaedia Britannica.

  • 26

    1.2.2. Aspectos tericos

    Fanon foi um dos primeiros a se ocupar da questo do sujeito colonial que experimentava

    a inferioridade econmica, poltica e social de tal forma que seu prprio senso de identidade

    era afetado. Ou seja, a inferioridade material criava um senso de inferioridade racial e

    cultural. Nesse processo de subjugao, a imposio da lngua imperial desempenhou papel

    importante colocando as lnguas nativas em situao de inferioridade, quando no eram

    simplesmente eliminadas.

    Na sequncia do pensamento de Fanon, alguns intelectuais discutiram o impacto europeu

    na formao das identidades "terceiro-mundistas" em populaes cada vez mais

    multiculturais. Edward Said, morto em 2003, considerado um dos precursores dos estudos

    ps-coloniais. Palestino de cidadania norte-americana, julgava-se, assim como Salman

    Rushdie, uma identidade "fora do lugar". Depois da publicao de Orientalismo, em 1978,

    onde estabelece a conexo entre a empreitada e o discurso do colonizador, que cria

    representaes e esteretipos como parte de dominao de terras distantes, Said comea a

    refletir sobre a relao do imperialismo com a cultura. Em quase todo o mundo no-europeu,

    a vinda do homem branco gerou uma cultura vigorosa de resistncia e oposio:

    Juntamente com a resistncia armada em lugares to diversos como a Arglia, Irlanda e Indonsia do sculo XIX, houve, tambm, um esforo considervel de resistncia cultural em quase toda parte, a afirmao de identidades nacionais, e, na esfera poltica, a criao de associaes e partidos cujo objetivo comum era de autodeterminao e independncia nacional. (1994, xii).11

    Trabalhando a questo da identidade a partir de um corpus literrio, Said chama a ateno

    para a aspirao soberania e dominao de todas as culturas "nacionalmente definidas", por

    outro lado acrescenta que,

    11 Along with armed resistance in places as diverse as nineteenth-century Algeria, Ireland, and Indonesia, there also went considerable effort in cultural resistance almost everywhere, the assertions of nationalism identities, and, in the political realm, the creation of associations and parties whose common goal was self-determination and national independence.

  • 27

    paradoxalmente nunca estivemos to cientes como agora de quo estranhamente hbridas so as experincias culturais e histricas, e de como compartilham de muitas experincias e campos frequentemente contraditrios, cruzam fronteiras nacionais, desafiam a ao policialesca do dogma simplista e do patriotismo gritante (Idem, p. 15).12

    Homi Bhabha tambm lana mo do conceito de hibridismo em oposio ideia de uma

    cultura monoltica, autnoma, excludente e pura. Bhabha, partindo do pressuposto de que a

    cultura que o colonizador representava no escondia suas afiliaes e interesses, investiga o

    discurso colonial na produo literria de Conrad, Kipling, Rushdie, entre outros, e

    documentos oficiais britnicos sobre a ndia e a questo da nacionalidade em uma relao de

    desigualdade e subordinao. Essa relao cria um espao intersticial, o entre-lugar, que o

    "cadinho para o hibridismo" onde "coexistem de maneira pouco pacfica mais de um conjunto

    de valores, de cultura, de signos, de lnguas" (MENEZES DE SOUZA, 2004, p.129). Bhabha

    contesta as posies essencialistas, homogeneizadoras e totalitrias em relao cultura,

    ressaltando que "um aspecto importante do discurso colonial sua dependncia do conceito

    de fixidez na construo ideolgica da alteridade" (Ibid, p.105).

    Tributrios desse pensamento acham-se outros movimentos como os Estudos Culturais e

    os Estudos Subalternos que contestam a Europa como sendo centro irradiador do

    conhecimento e da cultura e as posies essencialistas, homogeneizadoras e totalitrias em

    relao cultura. Para Terry Eagleton (2005, p.26-27), a grande conquista da teoria cultural

    foi elevar condio de legtimos objetos de estudo o gnero, a sexualidade e as

    manifestaes da cultura popular e consider-los "como questes de persistente importncia

    poltica". A Teoria Ps-Colonial mudou o foco de classe e nao para etnicidade, conceito que

    transcende o de etnia ao relacionar-se com os padres culturais do grupo, e essa mudana de

    12 paradoxically, we have never been as aware as we now are of how oddly hybrid historical and cultural experiences are, of how they partake of many often contradictory experiences and domains, cross national boundaries, defy the police action of simple dogma and loud patriotism.

  • 28

    foco representou uma passagem da poltica para a cultura. Para Eagleton, a mudana foi

    excessiva, descaracterizando o movimento:

    [...] os problemas especficos da cultura ps-colonial foram, com frequencia, falsamente incorporados questo muito distinta de "poltica de identidade" do Ocidente. Dado que a etnicidade , em grande parte, uma questo cultural, essa mudana de foco representou tambm uma passagem da poltica para a cultura. De alguma forma, isso refletiu mudanas reais no mundo. Mas tambm ajudou a despolitizar a questo do ps-colonialismo e a inflar o papel da cultura dentro dele (2005, p. 26).

    Uma das evidncias de que o ps-colonialismo vai alm de um movimento que buscava

    trazer para o "centro" as "margens da cultura" ilustrada por Douglas Robinson (1997, p. 13)

    em sua anlise das diferentes maneiras em que se circunscreve o objeto de estudo:

    (1) O estudo das antigas colnias da Europa desde a independncia; como as colnias suplantaram, responderam, acomodaram-se ou resistiram ao legado cultural do colonialismo durante a independncia. 'Ps-colonial', nesse caso, refere-se a culturas depois do fim do colonialismo. O perodo histrico cobre, grosso modo, a segunda metade do sculo XX.13

    (2) O estudo das antigas colnias da Europa desde a colonizao; como as colnias suplantaram, responderam, acomodaram-se ou resistiram ao legado cultural do colonialismo desde sua implantao. 'Ps-colonial', nesse caso, refere-se ao incio da colonizao. O perodo histrico cobre, grosso modo, a era moderna, comeando no sculo XVI.14

    (3) O estudo de todas as culturas/sociedades/pases/naes em sua relao de poder com outras culturas/etc; como as culturas conquistadoras submeteram as conquistadas sua vontade; como as culturas conquistadas suplantaram, responderam, acomodaram-se ou resistiram a tal coero. 'Ps-colonial', nesse caso, refere-se nossa perspectiva de final do sculo XX sobre as relaes de poder cultural. O perodo histrico coberto toda a histria da humanidade. 15

    13 (1) The study of Europe's former colonies since independence; how they have responded to, accommodated, resisted or overcome the cultural legacy of colonialism during independence. 'Post-colonial' here refers to cultures after the end of colonialism. The historical period covered is roughly the second half of the twentieth century. 14 (2) The study of Europe's former colonies since they were colonized; how they have responded to, accommodated, resisted or overcome the cultural legacy of colonialism since its inception. 'Pot-colonial' here refers to cultures after the beginning of colonialism. The historical period covered is roughly the modern era, beginning in the sixteenth century. 15 (3) The study of all cultures/societies/countries/nations in terms of their power relations with other cultures/etc; how conqueror cultures have bent conquered cultures to their will; how conquered cultures have responded to, accommodated, resisted or overcome that coercion. 'Post-colonial' here refers to our late-twentieth-century perspectives on cultural power relations. The historical period covered is all human society.

  • 29

    A questo seria definir de qual dessas perspectivas partem os tericos que relacionam a

    teoria de traduo de Haroldo de Campos ao ps-colonialismo. A primeira corresponde ao

    perodo das independncias da sia e frica, que originou as primeiras reflexes sobre a

    condio ps-colonial, conforme descrito no incio deste captulo. A segunda tem relao com

    a colonizao da Amrica, no entanto, no se aplica a um tradutor contemporneo. A ltima,

    com a ampliao do escopo do estudo, tanto no aspecto temporal quanto espacial, seria

    aplicvel ao contexto brasileiro, mas tambm seria ao resto do mundo, pois "existiu qualquer

    cultura que no tivesse sido controlada por outra, em algum momento da histria?"

    (ROBINSON, 1997, p. 14). Essa terceira definio questionvel, parecendo excessivamente

    generalizadora, pois parte de uma teoria desenvolvida a partir de um processo de colonizao

    especfico para analisar outros contextos.

    Uma das muitas crticas dessa generalizao parte de Leyla Perrone-Moiss, que ao

    discutir o esvaziamento conceitual de termos como cultura, alteridade, identidade,

    nacionalismo, nos discursos acadmicos atuais, argumenta que,

    O colonialismo, liquidado historicamente como prtica geopoltica, tem sido com frequncia transformado nos estudos ps-coloniais" num rtulo extensivo a prticas interculturais de diferentes tipos e pocas, referentes a um indistinto "colonizador" e a um "ex-colonizado" igualmente genrico (2007, p. 10).

    A teoria ps-colonial est ligada, no obstante a ampliao do campo de investigao, a

    determinadas condies histricas. Para muitos tericos, imperialismo define colonialismo, e,

    consequentemente, ps-colonialismo. Assim sendo, analisaremos, a seguir, alguns aspectos

    histricos e culturais da Amrica Latina, para verificar se os seus conceitos aplicam-se ao

    contexto latino-americano e especialmente brasileiro.

    1.3. Colonizao e descolonizao na Amrica Latina

  • 30

    1.3.1. Aspectos histricos

    Parece existir uma tendncia de generalizar o processo de colonizao na Amrica Latina

    que carece de uma reflexo mais cuidadosa. Ao olharmos o passado histrico das colnias

    hispnicas e da portuguesa na Amrica, observamos diferenas que nos levam a questionar a

    aplicao indiscriminada da Teoria Ps-Colonial nesse contexto geopoltico.

    A interao poltica e cultural entre Brasil e a Amrica Hispnica s se deu na Pennsula

    Ibrica durante o domnio espanhol. "Em nossa identidade no se inclui ser um pas 'latino-

    americano'. [...] nossas referncias identitrias apontam para a Europa Portugal e Frana e

    para nossas origens na mestiagem ndios e negros" (SADER, 2006, p.177), talvez devido a

    "histricas rivalidades metropolitanas, ao esteretipo, que dificultou, na regio hispano-

    americana, a compreenso de uma cultura cuja riqueza e complexidade aparecem como de

    impossvel acesso com a desculpa do idioma" (PIZARRO, 2004, p. 30). Os prprios pases de

    colonizao hispnica apresentam uma heterogeneidade que escapa ao olhar estrangeiro.

    No sculo XVI, sob a gide da Igreja e interesses mercantilistas, Portugal empreende a

    "aventura do descobrimento". A pennsula ibrica, com a expulso dos rabes, passa de

    periferia do mundo muulmano para plo construtor de outra periferia. Como em outros

    processos de colonizao caracterizados pelo monoplio da metrpole na posse,

    administrao e fiscalizao dos territrios conquistados, o domnio ibrico no Novo Mundo

    possibilita o surgimento de naes da atual Amrica Latina custa do "encobrimento do

    outro", da espoliao das riquezas e da explorao do trabalho nativo.

    Logo de incio, a expanso lusa diferenciou-se da espanhola. Determinada pelas

    caractersticas peculiares da realidade da colnia portuguesa, privilegiou-se a agricultura,

    enquanto nas colnias espanholas a principal atividade era a mineradora. Embora algumas

    pepitas tivessem sido encontradas em So Paulo, no final do sculo XVI, a partir do final do

    XVII que se inicia a corrida do ouro. Em consequncia da introduo da cana de acar, em

  • 31

    1523, institui-se o trfico negreiro e a escravido, pois diferentemente das colnias espanholas

    no foi possvel a utilizao em larga escala da mo-de-obra indgena. Pelo menos no a

    longo prazo, visto que na colnia (a essa altura j denominada Brasil), a populao nativa era

    relativamente pouco numerosa e foi rapidamente exterminada na faixa litornea. 16

    Em 1808, o desequilbrio poltico na Europa, provocado por Napoleo, forou a

    transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil, elevando a colnia condio de

    metrpole. Transformado em capital do imprio, o Rio de Janeiro passa por uma revoluo

    urbana, cultural e social. Os Bragana contriburam para a unio do pas, num momento em

    que as colnias espanholas passavam por um perodo de desagregao. Com a volta da corte a

    Portugal e a proclamao da independncia, apesar de rompidas as amarras do pacto colonial,

    os interesses da aristocracia local so mantidos, inclusive a escravido, base da ento

    economia brasileira.

    A dinmica de descolonizao no Brasil difere daquela da Amrica Espanhola. Enquanto

    os movimentos de independncia, que varrem o continente americano quase

    concomitantemente, instauram a repblica, no Brasil o nosso "libertador" um prncipe que

    instaura um imprio, conforme esclarece Adauto de Oliveira (2006, p. 25-26):

    Somos (Brasil) o nico pas de fala portuguesa; nosso desenvolvimento poltico deu-se ps-independncia, sob uma forma monrquica de governo, enquanto toda a Amrica optou pela repblica. Pela prpria histria colonial e por diferenas no processo de independncia, nossos pais fundadores no nos so comuns: enquanto boa parte da Amrica do Sul cultua Bolvar, San Martin, Sucre, O'Higgins e Miranda, nosso heri da independncia foi o prprio herdeiro da Coroa portuguesa.

    Esses aspectos histricos que diferenciam a brasileira de outras lutas de independncia

    podem contribuir para que o "sentimento de colonizado" no esteja latente no Brasil. Quando

    Roberto Schwarz afirma que

    Sem prejuzo de os brasileiros termos traos ndios, ou negros (ou italianos ou judeus), j no somos os ndios e africanos da primeira poca, de modo

    16 Fonte: Claudio VICENTINO; Gianpaolo DORIGO. Histria Geral e do Brasil.

  • 32

    que h tambm ingenuidade e mitificao em considerar o colonizador como outro, com quem ns, povos colonizados no temos parte (1993, p. 14),

    est criticando posies essencialistas e dicotmicas que parecem subjazer Teoria Ps-

    Colonial, que coloca em oposio colonizador e colonizados. A contribuio de vrios povos

    na formao da populao brasileira anula esse confronto e ressalta a peculiaridade do

    contexto brasileiro. Para Lia Wyler (2003, p.57), "o fenmeno de estrangeiramento das elites

    brasileiras no se enquadrou no modelo milenar de dominao em que a cultura do

    colonizador se sobrepe do colonizado".

    Como pudemos ver, a investigao dos aspectos histricos aponta para diferenas

    importantes no processo de colonizao e descolonizao, o que nos leva a crer que a Teoria

    Ps-Colonial, como foi concebida originariamente, no se aplica ao nosso contexto.

    1.3.2. Aspectos tericos

    No centro do debate sobre o impacto da empreitada colonial na cultura e identidade latino-

    americana acha-se a investigao sobre as desigualdades culturais, sociais e econmicas do

    passado e do presente. Muitos so os estudiosos que trataram da questo. Segundo Perrone-

    Moiss (2007, p. 44), "se as primeiras consideraes dos latino-americanos sobre sua

    identidade se apresentavam em termos de comparao com a Europa, no decorrer de nosso

    sculo, numerosos intelectuais a pensaram em termos de miscigenao cultural".

    A identidade latino-americana tem sido objeto de pesquisa interdisciplinar, que inclui a

    antropologia, histria, sociologia e a crtica literria, levando a conceitos como negritude,

    crioulidade, heterogeneidade, transculturao e hibridismo. Esses conceitos resultam de uma

    reflexo de mbito continental na busca dos "fundamentos e mecanismos com que esta

    sociedade construiu simbolicamente a vida" 17 (PIZARRO, s.d., p. 103).

    17 los fundamentos y mecanismos con que esta sociedad ha ido contruyendo simblicamente su vida.

  • 33

    Dentre os muitos estudos, h posies bastante controversas, umas por buscarem uma

    essncia ou matriz cultural sepultada e esquecida 18, no levando em conta o resultado do

    encontro das culturas, ibrica, indgenas e negra, como no caso do indianismo e do

    hispanismo, e outras porque mesmo aceitando uma matriz cultural hbrida, "fixam-se

    historicamente num certo perodo e se negam a considerar o impacto de novos aportes" 19

    (LARRAIN, 1996, p. 127).

    A crtica a essas posies instanciada pela percepo da identidade como sendo um

    processo contnuo e no uma construo fixa e imutvel. Alm disso, a contribuio para o

    processo identitrio latino-americano deve-se no somente ao encontro

    colonizador/colonizado per se, mas tambm escravatura, imigrao de outros povos da

    Europa e sia e ao modelo cultural francs, e, mais recentemente, aos Estados Unidos, cuja

    cultura, ao lado do poder econmico (sem considerar o blico) constituem elementos de um

    neocolonialismo. Para Sader (2006, p. 177), "nossa identidade contempornea est permeada

    pela globalizao".

    Anterior atual liderana norte-americana, a Frana, do sculo XIX at comeo do XX,

    exerce forte influncia na vida pblica e cultural da Amrica Latina. Segundo Denis Rolland

    (2005, p. 19), as elites olharo "para os regimes polticos, para a legislao, para a maneira de

    viver a religio ou o laicismo, a arte, a moda, as maneiras" e ainda "as sociabilidades, a

    maonaria, at mesmo modalidades de organizao operria". No Brasil, a cultura francesa foi

    to importante que "na Constituinte de 1823, o francs competiu com o portugus e o tupi

    pelo privilgio de ser escolhido lngua nacional" (WYLER, 2003, p. 57-58).

    s concepes elitistas do incio do sculo XX, com sua viso eurocntrica, contrape-se

    o pensamento do dominicano Pedro Henriquez Urea, um dos primeiros a criticar o

    positivismo na Amrica Latina. Urea defendia a ideia de integrao do continente como

    18 un esencia o matriz cultural, sepultada y olvidada, que hay que recuperar 19 se fijan histricamente en un cierto perodo y se niegan a considerar el impacto de neuvos aportes.

  • 34

    soluo para os problemas genuinamente americanos, pois advogava que as necessidades

    sociais no podiam ser resolvidas com padres importados. Nuestra Amrica, como

    denominava Urea, era tema central de sua obra.

    Nomear a Amrica no significa somente nomear um continente, mas tambm um

    conceito. Professor de literatura e crtico literrio, Urea via a Amrica como sendo um texto

    que devia ser explicado. Considerava a linguagem um dos instrumentos principais na

    transformao social. A necessidade de integrao social discutida em Ensayos crticos,

    onde aconselha a buscar solues consoantes com nossa prpria histria.

    Juntou-se a Juan Enrique Rod, de quem foi discpulo, na crtica ao que Rod chamou de

    "nordomania", em referncia influncia norte-americana, e valorizao do estrangeiro em

    detrimento dos valores locais. Segundo Larrain,

    Rod reivindica o sentimento e as virtudes da raa latina, e sustenta que a Amrica Latina possui uma maior sensibilidade cultural e um maior sentido idealista da vida que os Estados Unidos, excessivamente materialistas e utilitaristas (1996, p. 151).

    A crtica literria na Amrica Latina tem como ponto de partida a reflexo de intelectuais,

    como Rod e Urea, que se ocuparam da questo da identidade nacional e cultural. Nos anos

    60, "desenvolve-se um discurso que aponta para a necessidade de descolonizao" (NITRINI,

    2000, p. 64), ou seja, deixar de analisar e interpretar a literatura latino-americana soma de

    tendncias clssicas, vinculadas s europias, e locais passando-se a levar em conta as

    especificidades.

    A necessidade de elaborar uma teoria literria que, com seus princpios e mtodos fosse capaz de dar conta da especificidade da literatura produzida na Amrica Latina se constituiu, naquela poca, em um dos temas centrais na agenda de um grupo de intelectuais latino-americanos, entre os quais se achavam ngel Rama, Roberto Fernandez Retamar, Antonio Candido e Antonio Cornejo Polar. Tal atitude estava determinada pela necessidade de tomar distncia crtica dos pressupostos tericos elaborados na Europa e dominantes nos mbitos acadmicos e intelectuais latino-americanos (ORTIZ, 2005, p.143).

  • 35

    Para explicar "um processo pelo qual duas culturas em situao de encontro ou confronto

    resultam modificadas, dando origem a algo novo, original e independente" (AGUIAR e

    VASCONCELOS, 2004, p. 87), o cubano Fernando Ortiz, investigando a questo da

    mestiagem no livro Contrapunteo Cubano del Azcar y del Tabaco, cria o termo

    "transculturao". O termo, que define um processo sempre em movimento, ope-se ao

    conceito de aculturao e assimilao, superando a ideia de uma relao unilinear entre as

    culturas de contato.

    ngel Rama transpe o conceito para a obra de fico e passa a usar "transculturao

    narrativa" para definir o processo pelo qual uma produo literria integra as novas estruturas

    e formas de vanguarda sem abandonar as prprias tradies. Tal pensamento foi instanciado

    pelos conceitos de sistema literrio e de formao propostos por Antonio Candido em

    Formao da Literatura Brasileira, e que levaram o crtico uruguaio a pensar a produo

    literria como um todo, como sendo um processo de transculturao, e no apenas as obras ou

    autores de forma individual.

    Estabelece-se uma estreita relao entre o pensamento de Rama e de Candido. A reflexo

    de Candido, embasada na sociologia, parte da situao de subdesenvolvimento da Amrica

    Latina e sua relao de dependncia cultural da Europa, apontando a repercusso que isso

    acarreta na conscincia do escritor. Ao ressaltar a importncia do regionalismo para a

    literatura latino-americana, Candido vai ao encontro daquilo que Rama define como processo

    de transculturao narrativa.

    Contudo, a essa corrente sociolgica de pensamento crtico ope-se Haroldo de Campos,

    que publica O Seqestro do Barroco na Formao da Literatura Brasileira O Caso Gregrio

    de Matos, onde refuta a tese de Candido de que a nossa histria literria inicia-se no

    Romantismo e de que nossa literatura e de que seria "galho secundrio da portuguesa, por sua

    vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas" (CANDIDO, 1981, p. 9).

  • 36

    Se h um problema instante e insistente na historiografia literria brasileira, este problema a "questo da origem". [...] Estamos diante de um verdadeiro paradoxo borgiano, j que "questo da origem" se soma a da identidade ou pseudoidentidade de um autor "patronmico". Um dos maiores poetas anteriores Modernidade, aquele cuja existncia justamente mais fundamental para que possamos coexistir com ela e nos sentirmos legatrios de uma tradio viva, parece no ter existido "em perspectiva histrica" (CAMPOS, 1989a, p. 7-8).

    Essa discrdia expe o pensamento crtico de duas correntes: "uma formada por

    socilogos da literatura, mais interessados nos processos histricos e sociais que a explicam, a

    outra formada por poetas mais interessados na arquitetura interna das obras e em questes de

    linguagem" (MOTTA, 2007). Isso evidencia a preocupao de cunho esttico, em detrimento

    do poltico, de Haroldo de Campos em sua prtica tradutria.

    A literatura sempre foi indispensvel na reflexo sobre a identidade cultural. Na Amrica

    Latina, apesar da contribuio dos estudos antropolgicos, os mais renomados tericos

    debruaram-se sobre a obra literria para desenvolver seus conceitos.

    Se as teorias desenhadas por Rama e Candido se afinam e se complementam de forma to exemplar, pode-se, tambm, afirmar que a complexidade cultural latino-americana nunca deixou de referir-se transculturao narrativa como ferramenta de anlise. Em muitos aspectos a categoria heterogeneidade, proposta por Antonio Cornejo Polar, dialoga com as teses levantadas por Rama (REIS, 2005, p. 481).

    Ainda procurando dar conta da especificidade da produo literria na Amrica Latina, a

    reflexo do peruano Antonio Cornejo Polar tem como ponto de partida o mundo andino, que

    apesar da aparente homegeneidade, espao de manifestao da heterogeneidade, e se

    contrape ao que na poca era considerada "literatura nacional": produo em lngua

    espanhola seguindo o cnone das elites, que tinham por modelo os padres europeus. Polar

    pe em relevo a viso homogeneizadora das culturas hegemnicas com relao Amrica

    Latina.

    Em janeiro de 1992, no Congresso Estado Actual de los Estudios Literarios

    Latinomericanistas, na Universidade de Granada, Cornejo Polar (1999, p. 13) reivindica "a

    condio mltipla, plural, hbrida, heterognea ou transcultural dos diferentes discursos e dos

  • 37

    vrios sistemas literrios que se produzem em nossa Amrica" 20. Polar demonstra a

    preocupao de muitos intelectuais com a imagem monoltica da literatura latino-americana e

    chama a ateno para a maneira como essa imagem se fixou pelos seguintes conceitos

    restritivos que condicionavam sua existncia: devia ser "(1) escrita, (2) em espanhol, e (3) sob

    cdigos estticos derivados da alta literatura europia" 21. E conclui:

    Como disse outras vezes, assim se lograva construir um corpus unitrio, coerente, mas custa de se marginalizar, por razes estticas ou sociais, ou ambas, uma imensa quantidade de discursos. O que fazer, por exemplo, com a literatura oral em quechua ou aymara que se produz nesses pases? No literatura? No socialmente representativa da nao? 22

    Tambm em oposio ao pensamento homogeneizador com relao Amrica Latina, o

    argentino Nstor Garcia Canclini vai aprofundar, a partir de estudos interdisciplinares, a

    anlise de "culturas hbridas" para "resgatar a vitalidade das contradies e da multiplicidade

    (COSER, 2005, p. 184) e coloca assim sua proposta:

    Vou ocupar-me de como os estudos sobre hibridao modificaram o modo de falar sobre identidade, cultura, diferena, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas cincias sociais: tradio-modernidade, norte-sul, local-global (CANCLINI, 2006, xx).

    Todavia, enquanto Polar investiga o hibridismo debruando-se sobre a anlise da

    produo literria, Canclini amplia seu campo de reflexo para "as fuses entre culturas de

    bairro e miditicas, entre estilos de consumo de geraes diferentes, entre msicas locais e

    transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes cidades" (Ibid, xxix). Para Canclini o

    termo "hibridao", em vez de hibridismo, parece mais adequado para nomear esse fenmeno

    que acontece em campos to diferentes como religio, tecnologia e processos sociais, pois

    perde a sua ressonncia biolgica.

    20 la condicin mltiple, plural, hbrida, heterognea o transcultural de los distintos discursos y de los varios sistemas literrios que se producen en nuestra Amrica. 21 (1) escrita, (2) en espaol, y (3) bajo cdigos estticos derivados de la alta literatura europea. 22 Como otras veces he dicho, de este modo se lograba construir un corpus unitrio, coherente, pero a costa de marginalisar por razones estticas o sociales, o por ambas, a una inmensa massa de discursos. Qu hacer, por ejemplo, con la literatura oral en quechua o aymara que se produce en estos pases? No son literatura? No son socialmente representativas de la nacin?

  • 38

    "Mestiagem" ao lado de "hibridismo" so termos chaves nos estudos ps-coloniais. O

    conceito de hibridismo no pensamento de Bhabha surge no mbito de pensar a relao entre

    culturas que no se fundem e no se mesclam. Seria uma ausncia de pureza em todas as

    culturas, at das hegemnicas, mesmo que estas no reconheam. Em contrapartida, "para os

    latino-americanos o conceito de hbrido remete longa histria de mestiagem e sincretismo

    que caracteriza tanto os ideais nacionais quanto suas mais profundas divises e

    desigualdades" (COSER, 2005, p. 164).

    O termo "mestiagem" surge inicialmente de um discurso colonial que privilegia a ideia

    de pureza racial e significa, semanticamente, mistura de raas e/ou culturas, mas sempre de

    maneira assimtrica na relao de poder. Segundo a obra Post-colonial studies: the key

    concepts (2006, p. 136), esse termo se refere somente colonizao espanhola e portuguesa

    nas possesses sul e meso-americanas. Devido ao fato de as colnias terem chegado

    independncia muito antes daqueles estudos que levaram teoria ps-colonial, o discurso

    latino-americano da ideia de "mestio" torna-se um sinal cultural nacional com conotao

    positiva, pois reflete a percepo de que a miscigenao produziu uma forma sinergtica

    poderosa. Esse parece ser o fio condutor de todo o questionamento sobre identidade do

    continente latino-americano.

    A ideia de que a mestiagem se deu isenta de conflitos ao longo de toda nossa histria vai

    ao encontro da propaganda salazarista em Portugal, conforme atesta em entrevista o dirigente

    portugus em 1962: "Estes contatos jamais envolveram a menor ideia de superioridade racial

    ou discriminao [...] a primazia que sempre demos e continuaremos a dar intensificao

    do valor e da dignidade do homem, sem distino de cor ou credo." 23

    No Brasil, a partir dos anos 30, celebra-se positivamente a contribuio de negros e ndios

    na formao da cultura. Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala aponta para a tolerncia

    23 Cf Charles R. BOXER, Relaes raciais no imprio colonial portugus, p. 35.

  • 39

    racial na colonizao do Brasil, cunhando a expresso de carter conciliador "democracia

    racial". Para o autor, na sociedade brasileira a miscigenao entre senhores e escravas,

    europeus e ndias, devido escassez de mulheres brancas teria sido harmoniosa:

    Da escassez das mulheres brancas resulta a possibilidade de 'confraternizao entre vencedores e vencidos', gerando-se filhos do senhor com escrava, operando a miscigenao como corretor da distncia social entre a casa grande e a mata tropical; entre a casa grande e a senzala (BASTOS, 1999, p. 219).

    Srgio Buarque de Holanda (2006, p. 52-66), por sua vez, atribui o xito da miscigenao

    ndole do colonizador portugus, desprovido "de qualquer orgulho de raa". A total

    adaptao dos portugueses terra colonizada teria resultado na mestiagem, que no

    "fenmeno espordico", mas sim "processo normal".

    Entre ns, o domnio europeu foi, em geral, brando e mole, menos obediente a regras e dispositivos do que lei da natureza. A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora, das dissonncias sociais, raciais, e morais.

    Entretanto, para que a miscigenao ocorresse de forma natural e harmnica devia ser

    aceita por ambas as partes e "a suavidade dengosa e aucarada" viria a contribuir para essa

    "extraordinria plasticidade social". Apesar de ser uma obra que gerou controvrsia, Razes do

    Brasil atesta a importncia do legado colonial para nossa maneira de ser: "o fruto de nosso

    trabalho ou de nossa preguia parece participar de um sistema de evoluo prprio de outro

    clima e de outra paisagem" (2006, p. 31).

    Contudo, a mestiagem nem sempre foi considerada de maneira to positiva. Alfredo Bosi

    (2006, p. 21) descreve a colonizao como tendo sido "uma empreitada brutal que submetia

    gentios, negros e mestios, e fazia retroceder a formas cruentas o cotidiano vivido pelos

    dominados". Tambm Charles Boxer (1967, p. 153) enfatiza que o preconceito e a tenso

    racial eram muito mais fortes do que modernamente alguns fazem crer. Ainda esclarece que a

    "legislao colonial era mais discriminatria com pessoas que tinham uma parcela de sangue

  • 40

    negro, mais que mamelucos e outros cruzamentos entre brancos e ndios", numa distino

    ilgica e injustificada.

    No sculo XIX, a mestiagem, influenciada pelas teorias raciais surgidas na Europa, foi

    hierarquizada em cores e ratificada pelos censos. A humanidade foi dividida em raas. Sob

    um pretenso cientificismo perpetrava-se a ideologia colonial de raa pura, que "alm de sua

    definio biolgica acabou recebendo uma interpretao sobretudo social" (SCHWARZ,

    1993, p.17). No Brasil, exaltao da mistura seguiu-se uma ideologia de excluso, que

    determina o "puro" e o "impuro", a que reage Adauto Novaes:

    Um captulo especial poderia ser aberto migrao dos negros da frica, transformados em escravos. Mas, tendo chegado ainda no sculo XVI, eles de fato so co-fundadores do Brasil, tanta a presena do negro em nossa formao, que ficaria artificial consider-los uma "nacionalidade" parte que colocasse problemas para sua integrao. Sabe-se que custou aos negros o oprbrio do duro regime escravista, mas esse oprbrio foi parte da formao dos "brasileiros". O que no alivia a questo, mas por sua singularidade destaca-a de qualquer considerao no meio de outros processos de intercmbio (2006, p. 23).

    Mesmo admitindo-se que a questo racial no Brasil no tenha sido aquela da "democracia

    racial" preconizada por Freire, ela no foi determinante no movimento anticolonial como

    ocorreu em lugares to distantes como a ndia, Indochina, Arglia. O nacionalismo nascente

    das colnias da sia e frica, que se tornaram independentes no sculo passado, era

    frequentemente visto em termos de conflito racial.

    A percepo da condio mestia dos povos e das culturas comum aos pases latino-

    americanos. Apesar de os conceitos de transculturao, hibridez e heterogeneidade suporem

    um exerccio terico da reflexo e da circulao das ideias e da troca de experincia entre

    intelectuais latino-americanos dotados de uma conscincia continental, no se pode pensar a

    crtica latino-americana como um "raciocnio em bloco" ou em termos globalizantes, nem

    mesmo quando se refere somente aos pases de lngua espanhola.

  • 41

    Por muitas razes dimenso territorial, rivalidades econmicas, diferena linguistica e

    diferente trajetria histrica a relao da Amrica Hispnica com o Brasil "foi

    historicamente um grande parntese e, ainda que em menor medida, essa relao tambm se

    deu ao inverso" (PIZARRO, 2004, p. 30).

    Se as diferenas entre os pases da Amrica Latina devem ser consideradas, mais ainda

    elas importam em relao aos outros pases colonizados. Isso nos leva a crer que uma teoria

    elaborada a partir de um contexto especfico torna-se inadequada para aplicao outros. Para

    Said (1983, p.241), "uma vez que uma teoria entra em voga porque claramente efetiva e

    poderosa, pode, provavelmente, durante a peregrinao ser reduzida, codificada e

    institucionalizada".

    O olhar distanciado das culturas hegemnicas tende a ter uma viso estereotipada e

    homognea da Amrica Latina ao considerar somente alguns aspectos das nossas questes

    culturais, como no caso da insero da teoria de traduo de Haroldo de Campos nos Estudos

    Ps-Coloniais. A Teoria Ps-Colonial rapidamente alcanou o "status de autoridade" (SAID,

    2003, p. 247), mas sua aplicao em diferentes contextos tem sido bastante questionada como

    sendo uma forma de imperialismo cultural.

    Para Perrone-Moiss,

    Nao e identidade nacional so "grandes narrativas", e paradoxal que estudiosos que se dizem ps-modernos usem esses conceitos como positivos, quando aplicados a naes, identidades, e culturas "subalternas", sem ver que eles so ilusrios e complexos para qualquer tipo de cultura, hegemnica ou dependente. (2007, p.14).

    A reviso da Teoria Ps-Colonial em relao ao continente latino-americano poderia

    buscar subsdios na micro-histria, responsvel no somente por "uma reviso das questes

    relacionadas s fontes e aos arquivos, mas tambm pela redefinio da relao com o passado

  • 42

    enquanto dilogo fragmentado" (ADAMO, 2006, p. 82).24 A proposio metodolgica da

    micro-histria baseia-se no recorte temtico em um assunto bastante especfico levando ao

    abandono da certeza na "verdade histrica" e ao questionamento da periodizao tradicional

    de temas, no caso a colonizao.

    1.4. Desconhecimento de causa

    Frequentemente vemos intelectuais serem contestados porque suas afirmaes parecem

    inadequadas, de segunda mo ou manipuladas de forma a convirem a uma teoria. O

    historiador mexicano Claudio Lomnitz, por exemplo, questiona os aspectos conceituais e

    histricos da tese de Benedict Anderson, na celebrada obra Imagined communities, de que o

    centro irradiador do nacionalismo foi o mundo colonial latino-americano. Depois de uma

    anlise detalhada da obra de Anderson, Lomnitz conclui que o problema est na

    generalizao, pois h vrias formas de nacionalismo:

    No incio do perodo moderno, devemos distinguir entre o nacionalismo de um povo especfico, como o da Espanha, e o nacionalismo defensivo dos britnicos e holandeses, que criaram ideias nacionalistas a fim de afirmar o direito de manter e santificar suas tradies. Ambas as formas contrastam com as formulaes excessivamente instveis da Amrica hispnica no incio do perodo ps-colonial (1999, p. 353) 25.

    O nacionalismo estaria ligado a condies de tempo de espao e, tambm, a motivaes

    polticas. Para Lomnitz, muito da ideologia nacionalista moderna produto da independncia

    e no sua pr-condio.

    24 a rethinking of issues regarding sources and archives, but also a redefinition of the relationship with the past as a fragmentary dialogue. 25 In the early modern period, we must distinguish between the nationalism of a chosen people, such as that of Spain, and the defensive nationalism of the British and Dutch, who created nationalist ideals in order to affirm their right to maintain and to sanctify their own traditions. Both of these forms contrast with the highly unstable nationalist formulations of early postcolonial Spanish America.

  • 43

    Por que um historiador de prestgio como Benedict Anderson contestado? Uma razo

    poderia ser a inexistncia de "uma verdade histrica" e a necessidade de constante reviso de

    conceitos, outra seria a carncia de uma pesquisa mais cuidadosa e aprofundada.

    Segundo George Bastin, em artigo intitulado "Subjectivity and Rigour in Translation

    History: the Case of Latin America", a falta de acuidade estaria,

    nas pesquisas histricas que tendem a adotar estruturas universalistas da histria europia e agrupam os sculos em perodos clssico (as primeiras migraes humanas), medieval (civilizaes indgenas) renascena (adoo do capital intelectual e cultural europeu) e moderno (timidamente admitido) (op. cit. p. 115).26

    Paradoxalmente, no mesmo texto Bastin afirma que "antes de 1980, os estudos culturais

    da Amrica Latina sejam histricos, literais, sociolgicos ou polticos refletem

    essencialmente uma viso eurocntrica do subcontinente e de seus povos" (2006, p. 114).27

    Como vimos anteriormente neste estudo, as primeiras reflexes sobre a questo cultural

    latino-americana datam do incio do sculo passado, o que nos leva a crer que nesse

    comentrio Bastin est se referindo a tericos estrangeiros que investigam questes latino-

    americanas. De fato, mais adiante ao citar o "atual estado dos estudos culturais" Bastin critica

    alguns autores (Buzelin, Laplantine, Nouss, Chaunu) pela "viso tipicamente reducionista"

    que no d conta da complexidade das culturas e insistem em consider-las primitivas.

    Todavia, ele est mesmo se referindo aos intelectuais latino-americanos:

    Foi somente a partir de 1980 que uma gerao de pesquisadores apareceram crticos literrios em sua maioria (Angel Rama, Antonio Cornejo Polar, Nestor Garcia Canclini, Beatriz Gonzlez Stephan, entre outros) para melhor refletir sobre as complexidades da realidade da Amrica Latina que escapou do modelo cannico ou oficial europeu binrio e homogenizador (op. cit. p. 117).

    26 Historical survey have tended to adopt the universalistic structures of European history and have grouped the centuries into classical (the firs human migrations), medieval (indigenous civilization), Renaissance (adoption of European cultural and intellectual capital), and modern (timidly conceded) periods. 27 Prior to the 1980s, cultural studies of Latin America whether historical, literary, sociological, or political reflected an essentially Eurocentric vision of the subcontinent and its people.

  • 44

    Grave engano, pois ngel Rama ministrou um curso na USP na dcada de 60, Cornejo

    Polar tornou-se professor da Universidade de San Marcos, em Lima, em 1966 e Canclini

    lanou seu primeiro livro Arte popular y sociedad en Amrica Latina, em 1977. Vale a pena

    lembrar que Fernando Ortiz publica a obra Contrapunteo cubano del tabaco y el azcar em

    1940 e Pedro Henriquez Urea escreve os Ensayos crticos, em Cuba, entre 1904 e 1906.

    Outro "deslize" que nos faz desconfiar de que muitas das referncias carecem de

    investigao o fato de Susan Bassnett grafar de maneira errada o nome de Haroldo de

    Campos:

    [...] says the great Brazilian translator Haraldo de Campos [...] (1999, p. 5).

    Haraldo and Augusto de Campos have been the principal practitioners and theoreticians [...] (1998, p.154).

    Haraldo and Augusto de Campos use translation as a way of [...]" (Idem, p.157). 28

    s vezes, o que pode parecer ausncia de pesquisa ou de embasamento pode ser simples

    reproduo de um erro na fonte consultada. Esse seria o caso de Gentzler que se refere a

    Sousndrade como pai da traduo criativa no Brasil, que inseria formas poticas de

    Cames, Francisco Manoel de Melo, Antonio Ferreira, e outros, em suas tradues [..] 29

    (2008, p.91). Pergunta-se onde Gentzler foi buscar tal informao, pois no se tem notcia de

    que Sousndrade fosse tradutor ou terico da traduo. O autor reproduz o que Vieira afirma

    em sua tese de doutoramento, referindo-se a Haroldo de Campos: Tradutor transformador, a

    exemplo tambm do que fazia Sousndrade, o patriarca da traduo criativa (1992, p. 43).

    Tal afirmao decorrente de uma leitura descuidada do texto de Campos:

    O nosso Odorico Mendes, pai rococ (Sousndrade) e patriarca da traduo criativa, interpolava, quando lhe parecia bem, em suas tradues homricas, versos de Cames, Francisco Manoel de Melo, Antonio Ferreira, Filinto Elsio (1986, p.191).

    28 Grifo nosso. 29 Sousndrade (1833-1902) father of creative translation in Brazil, who would insert verse formas of Cames, Francisco Manoel de Melo, antonio Ferreira, and others in his translations.

  • 45

    Odorico Mendes tornou-se famoso pela sua traduo da Odissia, que muitos crticos

    consideraram monstruosidade devido singularidade de suas criaes lexicais e sintticas,

    mas que para Haroldo de Campos seria a demonstrao que o portugus era capaz de tanta

    ou mais conciso do que o grego e o latim (2004, p. 38). Para Campos, esse poeta/tradutor

    teria sido o primeiro terico da traduo. Sousndrade sofre influncia de seu conterrneo

    maranhense Odorico Mendes, a quem chama de pai do rococ, na sua poesia da segunda

    gerao romntica, perseguindo uma sonoridade grega (Ibid, p. 42).

    1.5. Consideraes Finais

    Se por um lado o interesse da crtica estrangeira pelas nossas questes um sinal de

    reconhecimento da nossa importncia, por outro devemos adotar uma postura crtica para no

    corrermos o "risco do retorno a uma dependncia cultural: perceber o prprio com lentes

    alheias" (GULDBERG, 1999, p. 45).

    Os estudos ps-coloniais, quando partiram de questes locais, como ndia e Arglia, e

    evoluram para questes globais acabaram institucionalizados nas academias do ocidente.

    Segundo Ania Loomba (2005, p. 2), "o termo 'ps-colonialismo' tornou-se to heterogneo e

    difuso que impossvel descrever satisfatoriamente o que envolveria seu estudo" 30. Essa

    dificuldade talvez esteja no fato do ps-colonialismo apresentar um aspecto interdisciplinar,

    envolvendo estudos sociais, antropolgicos, lingusticos e literrios.

    O pensamento ps-colonial permitiu novas leituras de seus conceitos revelando "a

    cultura como operao ampla de traduo que opera em mbito transnacional, translingstico

    e trans-histrico" (PAGANO, 2000, p. 158). No entanto, muitos argumentam que no se

    podem aplicar totalmente os conceitos da Teoria Ps-Colonial a qualquer realidade

    30 The term 'postcolonialism' has become so heterogeneous and diffuse that it is impossible to describe satisfactory what its study might entail.

  • 46

    multicultural. Com o apagamento de seus limites definidos, a teoria ps-colonial perde a fora

    contestatria e o seu carter alternativo, tornando-se mainstream.

    Essas posies so bastante questionadas, pois podem ser excessivamente generalizadoras

    quando partem de uma colonizao especfica em certo tempo e espao para analisar outros

    contextos. Adriana Pagano (2000, p. 158) adverte que

    A condio ps-colonial da Amrica Latina objeto de controvrsia, especialmente quando se aplica ao seu estudo uma matriz utilizada para analisar realidades to diversas, como, por exemplo, a da ndia, da frica do Sul ou da Arglia.

    Silvia Molloy (2005, p.370) esclarece que o "desconforto" que muitos intelectuais latino-

    americanos sentem ao serem rotulados de "ps-coloniais" deve-se ao fato de ser

    [...] um ps-colonialismo que formulado "l" (com isso quero dizer a academia norte-americana) significa uma coisa, enquanto "aqui" (na Amrica Latina, ela prpria lugar de mltiplas enunciaes) significa algo bastante diferente, ou melhor dizendo, significa muitas coisas diferentes .31

    Se "colonizao" significa o domnio de um povo, nao, pas sobre outro povo, sua

    cultura, sua organizao poltica e sua economia, ento observamos que trs quartos do

    mundo foram em algum tempo colnia. O colonialismo est longe de ser um processo igual

    nas diferentes partes do mundo, mas em todo lugar aprisionou os habitantes numa teia de

    relaes complexas e traumticas (LOOMBA, 2005, p. 8).

    As diferenas temporais, espaciais e de descolonizao seriam, ento, o motivo pelo qual

    se torna questionvel a aplicao dos conceitos da teoria ps-colonial a diferentes contextos e

    pocas. Os aspectos tericos do ps-colonialismo, se aplicados dessa maneira abrangente,

    descaracterizam-se e perdem fora argumentativa. O ps-colonialismo passou a investigar um

    conjunto de objetos heterogneos que h muito no tm ligao com uma histria colonial e

    corre o risco de se tornar uma ao neocolonial da academia dos pases hegemnicos.

    31 [...] it is a postcolonialism that formulated "over here" (and by this I mean the U.S. academy), signifies one thing while "over there" (in Latin-America, itself a site of multiple enunciations), signifies something quite different; or, better said, signifies many different things.

  • 47

    Para Perrone-Moiss (2007, p. 22)

    As recentes teorias ps-coloniais praticadas nos pases anglfonos s nos convm em parte. Para compreender em que as culturas latino-americanas se distinguem de outras culturas ps-coloniais, certos fatores devem ser considerados. [...] Nos pases em que se mantiveram traos das culturas autctones, aos quais se acrescentaram mais tarde as marcas das culturas africanas e dos pases imigrantes, so as misturas efetuadas que constituem nossa originalidade com relao aos pases colonizadores.

    O prestgio dos pases que elaboram as teorias tem, em grande parte, importncia na

    aceitao de "teorias viajantes", que muitas vezes se distanciam da realidade de quem as

    adota. Para Roberto Schwarz (1987, p. 30), trata-se de um "esforo de atualizao e

    desprovincianizao" por parte das naes perifricas. Ainda segundo esse autor, o

    processo de mudana de uma teoria, ou escola, para outra no fruto do "esgotamento de um

    projeto", antes se deve "ao prestgio americano ou europeu da doutrina seguinte", resultando

    em uma "impresso decepcionante da mudana sem necessidade interna, e por isso

    mesmo sem proveito".

    O ps-colonialismo, sendo ao mesmo tempo uma teoria de reao e reabilitao, pois

    contesta o eurocentrismo e reabilita as culturas "subalternas", propicia um exerccio de mea

    culpa aos intelectuais hegemnicos; no entanto, se imposto indiscriminadamente, e aceito

    acrticamente, pode levar a um "imperialismo intelectual".

    Ainda persistem no discurso ps-colonial conceitos dicotmicos como centro/margem,

    ocidente/oriente, primeiro mundo/terceiro mundo. Maria Tymoczko (2007 p. 15)

    problematiza a questo da terminologia:

    Existe uma dificuldade bvia com os termos ocidente e oriente, ambos implicam uma perspectiva e uma posio. Ocidente e oriente em relao a que? Na tradio chinesa onde a China o "reino do meio", ndia o ocidente, mas para os britnicos, ndia fazia parte do "oriente". 32

    32 There is an obvious difficulty with the terms East and West, both of which imply perspective and position. East or west of what? In Chinese tradition where China is the "Middle Kingdom", India is "the West", but for the British India was part of "the East".

  • 48

    Com esse binarismo terminolgico, ocorre uma generalizao daquilo que estaria fora das

    "esferas eurocntricas" apagando as diferenas entre um grande nmero de culturas. Para o

    chins Eoyang (2003, p. 67), a classificao de pases como primeiro, segundo e terceiro

    mundo so atualmente instveis e considera a diviso das colnias decorrente do pensamento

    cartesiano: no pode haver nada mais arbitrrio, menos situacional, mais impessoal, menos

    histrico que dividir os povos conforme os clculos de linha reta de um topgrafo 33 (Idem,

    p. 75). No modelo da dialtica ocidental com relao ao resto do mundo, as "linhas divisrias

    definidas so meras manifestaes cartogrficas dessa maneira de mapear territrios a partir

    de uma viso maniquesta do mundo" (Ibid) 34, perpetuando, de certa forma, os padres

    coloniais.

    O ps-colonialismo tem sua reflexo fundamentada no paradigma hegemnico, no

    assumindo, consequentemente, uma postura neutra, mas a de "hegemonistas anti-hegemnicos

    do pensamento contemporneo" 35 (EOYANG, p. 67). Eoyang critica a anlise que Jameson

    faz da literatura chinesa pela sua atitude tendenciosa e generalizadora:

    O que me surpreende nessas passagens a arrogncia da atitude de Jameson em relao ao Terceiro Mundo, a condescendncia para com povos atrasados, a incontestada suposio da superioridade ocidental e a utilizao de critrios ocidentais para julgar textos no ocidentais (EOYANG 2003, p.72). 36

    A crtica de Eoyang leva Esteves (2008) seguinte reflexo:

    Ser que existe em ns uma tendncia a no aceitar uma classificao feita por algum de fora, do grupo deles? Parece ser o caso de Eoyang, e fica fcil observar essa reao quando ela parte de um deles. E o que acontece quando a classificao atribuda a ns?

    33 There can be nothing more arbitrary, less situational, more impersonal, less historical than to divide people according to the straight line calculations of a surveyor. 34 Straight-line divisions are merely the cartographic manifestation of this way of "mapping" territories according to a Manichean vision of the world. 35 the anti-hegemonic hegemonists of contemporary thought. 36 What strikes me in these passages is the arrogance of this attitude towards the Third World, the condescension toward backward peoples, the unchallenged assumption of Western superiority and the use of Western criteria in judging non-Western material.

  • 49

    Portanto, no se pode simplesmente desprezar a investigao dos tericos hegemnicos do

    ps-colonialismo com relao ao Brasil, mas tampouco se deve aceitar acriticamente seus

    postulados.

  • 50

    2. TRADUO E PS-COLONIALISMO

    Parece-me gente de tal inocncia que, se ns entendssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristos, visto que no tm nem entendem crena alguma, segundo as aparncias. E portanto se os degredados que aqui ho de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, no duvido que eles, segundo a santa teno de Vossa Alteza, se faro cristos e ho de crer na nossa santa f.

    Carta de Pero Vaz de Caminha

    2.1. A traduo no contexto ps-colonial

    A lngua, e consequentemente a traduo, desempenha papel fundamental na colonizao

    e descolonizao. Como esses processos variaram de pas para pas, a traduo nesse contexto

    apresenta caractersticas e objetos de estudos diferentes. Subjacente reflexo sobre o ato

    tradutrio nesse contexto acham-se os mesmos questionamentos relacionados com a

    identidade cultural e nacional.

    O colonialismo envolve, alm da dominao territorial, e, consequentemente, da

    dominao econmica, a dominao cultural: no modelo colonial, uma cultura dominante e

    a outra subserviente. Nesse contexto, a traduo pode reforar tal poder hierrquico, pois o

    texto traduzido provavelmente ter um carter inferior e ancilar e essa situao assimtrica

    canal indispensvel na conquista e ocupao. Segundo Vieira (1992, p. 15),

    Ela [a traduo] pode reforar o movimento histrico unidirecional dos pases hegemnicos para as naes perifricas, ou ela pode acentuar a carga atvica de sculos de solido engendrada pelos diversos tipos de monoplio impostos Amrica Latina colonial, ou ela pode silenciar ainda mais a voz abafada da cultura local.

  • 51

    Se a traduo no contexto colonial um instrumento de dominao, no contexto ps-

    colonial uma ao afirmativa da liberdade, independncia e identidade cultural. De uma

    perspectiva "ps-colonial" a traduo passa de instrumento da conquista e ocupao para

    forma de resistncia e oposio cultura colonizadora, propiciando a superao das barreiras

    interculturais e intraculturais na relao assimtrica de poder.

    Para Robinson (1997, p. 31), a traduo se insere nos estudos ps-coloniais de trs

    maneiras:

    - como canal de colonizao, coexistente com e ligado educao e ao controle, velado ou declarado, de mercados e instituies.

    - como pra-raios para desigualdades culturais que persistem aps o colapso do colonialismo

    - e como canal de descolonizao. 37

    Com as mudanas histricas, o estabelecimento dos Estudos da Traduo como disciplina

    levou ao desenvolvimento de teorias "anti-hegemnicas" 38 (ROBINSON, 1997, p. 13)

    ocasionando o afastamento das teorias de traduo dos modelos normativos e prescritivos, que

    envolvem conceitos como equivalncia, fidelidade, adequao e a hierarquizao entre

    original e traduo.

    interessante notar que, mesmo quando a reflexo sobre a traduo deixa as academias

    europia e norte-americana, desenvolvendo-se em pases fora do circuito "Elisabeth Arden",

    as teorias so escritas em "lnguas hegemnicas", pois no tero o mesmo impacto e alcance

    se forem publicadas em "lnguas subalternas", o que seria "talvez a maior ironia ps-colonial"

    39 (EOYANG, 2003, p. 68). As