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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA
NÚCLEO DE DOGMA
CELIA SOARES DE SOUSA
MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE
MURILO MENDES
São Paulo, 2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
CELIA SOARES DE SOUSA
MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE
MURILO MENDES
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Teologia Sistemática na área de
concentração em dogma, sob orientação do Prof.
Dr. Antonio Manzatto.
São Paulo, 2013
SINOPSE
A presente dissertação tem como objetivo contribuir com a reflexão teológica a partir
do diálogo já existente entre Teologia e Literatura. Buscou promover uma relação entre a
poesia de Murilo Mendes e mística cristã, focando em uma leitura interpretativa da sua poesia
onde se afirmam não apenas a qualidade da sua poesia, mas sua leitura do humano e do
divino. A poesia de Murilo Mendes que abundantemente trata de Deus, da Palavra de Deus,
da religiosidade, do cristianismo e da Pessoa de Jesus marcou a temática humana a partir da
abordagem pelo universo literário. Constatamos a urgência da redescoberta da mística para
uma vivência mais comprometida com o Reino de Deus para sair da inércia e mergulhar no
mistério, tomar consciência que precisamos da presença amorosa do Cristo no nosso no
cotidiano para enfrentar com ternura, porém, com firmeza, os desafios que a modernidade nos
impõe.
Palavras-Chaves: Teologia e Literatura, mística, poesia, Murilo Mendes.
SYNOPSIS:
The following dissertation has as an objective to contribute to the theological thinking on the
already existing dialogue between Theology and Literature. It sought to promote a relation
between Murilo Mendes’s poetry and Christian mystical, focusing in an interpretive reading
of his poetry, where are affirmed not just the quality of it, but also his reading of the human
and the divine. Murilo Mendes’s poetry, which abundantly talks about God, God’s words,
religiosity, Christianity and about the Person of Jesus, marked the human theme from the
approach through the literary universe. We found the urgency of the mystical rediscovery for
an experience more compromised with the Reign of God, to come out of the inertia and dive
into mystery, acknowledge that we need the loving presence of Christ in our days to face with
tenderness, but also with firmness, the challenges that modernity imposes to us.
Keywords: Literature and theology, mysticism, poetry, Murilo Mendes.
SINOSSI
L´obiettivo di questa tesi é um contributo alla riflessione teologica pensando nel
dialogo che giá esiste tra la Teologia e a Letteratura. Há voluto sviluppare uma relazione tra la
poesia di Murilo Mendes e la mística cristiana, attraverso uma lettura interpretativa della sua
opera poética non solo a rispetto della qualitá della poesia stessa ma soprattutto della lettura
del dato umano e divino.
La poesia di Murilo Mendes, che parla diffusamente di Dio, della Parola del Signore,
di religiositá, di cristanismo e della persona di Gesú, sviluppó la temática umana com um
approccio próprio dell´ universo letterario.
Troviamo nella sua poesia l´urgenza di riscoprire la mística come mezzo per vivere
com impegno l´esperienza del Regno di Dio, per uscire dall´attivismo e immergersi nel
mistero, per capire che abbiamo bisogno della presenza amorosa di Cristo nel quitidiano e per
affrontare com tenerezza, e al tempo stesso com forza, le sfide che la modernitá ci impone.
Parola-chiave: Letteratura e teologia, mistica, poesia, Murilo Mendes.
__________________________________ Orientador
__________________________________ 1º examinador
__________________________________ 2º. examinador
Agradecimentos
Trago agradecimentos porque Deus tem sido sempre muito generoso comigo, guiando-me por
caminhos sempre novos, para novas descobertas no campo da espiritualidade e da vivência no
seguimento a Jesus, o que tem feito da minha pessoa uma mulher com uma certeza maior do
Amor de Deus por mim e por Sua criação. Muitas pessoas participaram deste momento
maravilhoso do qual tive oportunidade de vivenciar e faço aqui meus agradecimentos:
- Um agradecimento especial a Deus, pelo dom da minha vida e por tantas oportunidades.
Com certeza Ele tem feito muito mais do que prometeu (Sl 134,2)
- Agradeço aos meus pais que me acolheram com amor e desde o seio materno me falavam de
Deus.
- Agradeço aos meus familiares por todo interesse em me ajudar de alguma forma.
- Outro agradecimento especial ao meu esposo e aos meus filhos por acreditarem em mim,
pela paciência e ânimo de cada dia.
- Agradeço ao Prof. Dr. Padre Manzatto que com sabedoria e docilidade me abriu caminhos
nesta pesquisa e com todos os méritos de um excelente amigo e orientador.
- Agradeço ao corpo docente desta Instituição, especialmente Prof. Dr. Pe. Valeriano Costa;
Prof. Dr. Matthias Grensler, Profa. Dra. Ir. Maria Freire, Prof. Dr. Pe Marcial
Maçaneiro.
- Agradeço à equipe de secretaria e biblioteca que de forma muito prestativa contribuiu para
soluções administrativas.
- Agradeço aos padres da Diocese de Guarulhos por todo o apoio, incentivo e ajuda
financeira.
- Agradeço aos alunos da Escola de Ministérios Pe. Fernando de Brito – Diocese de
Guarulhos que, me fazem redescobrir a importância da Teologia na minha vida e na vida da
Igreja.
- Agradeço aos amigos da Comunidade Santa Edwiges (Guarulhos) pelo companheirismo e
por me ensinarem a viver na pequena comunidade.
- Agradeço à Pastoral da Juventude, ao Movimento dos Focolares, e à Equipe da Lectio
Divina que me despertaram para uma espiritualidade encarnada, favorecendo uma formação
humana integral.
- Agradeço à Escola Nova Lourenço Castanho pela trajetória de uma vida.
SIGLAS
Cat. – Catecismo da Igreja Católica
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CL – Christifideles Laici
Dap – Documento de Aparecida
DV – Dei Verbum
FR – Fides et Ratio
GS – Gaudim et Spes
MC – Marialis Cultus
NMI - Novo millenio ineunte
VB – Verbum Domini
SUMÁRIO
Introdução 11
CAPÍTULO I: TEOLOGIA E LITERATURA
Introdução 14
1. Teologia 16
1.1 Teologia moderna 17
1.2 Teologia na América Latina 17
1.3 Desafios atuais para a Teologia 20
2. Literatura 21
2.1 Relações entre Teologia e Literatura 23
2.2 Teologia e Literatura no mesmo percurso de busca 24
3. Teologia, poesia e mística 27
3.1 Compreensões da mística 27
3.2 Mística do seguimento de Jesus 32
3.3 Teologia da mística 34
3.4 Mística e teopoética 40
3.5 Poesia: o sagrado toque da alma 42
Conclusão 44
CAPÍTULO II: Uma vida na arte
Introdução 46
1. Biobibliografia sintética de Murilo Mendes 47
1.2 Murilo Mendes e a linguagem religiosa 54
2. Em Murilo Mendes e poesia caminham juntas 57
2.1 Questões de fé na arte 59
2.2 Mística em comunhão com a vida 61
3. A religiosidade na arte de Murilo Mendes 64
Conclusão 69
CAPÍTULO III: Uma mística na arte
Introdução 74
1. Jesus como companheiro de jornada 78
1.1 Pai Nosso e Meu Pai 80
1.2 Palavra de Deus 85
2. A teologia que se depreende dos poemas e da mística 88
2.1 Comunhão com Deus 89
2.2 Comunhão com os irmãos 91
3. Contribuições específicas para a Teologia na América Latina 92
3.1 Missão dos leigos, sonho do poeta 99
Conclusão 101
Conclusão Final 104
Anexos 108
Bibliografia 113
11
Introdução
A Teologia, enquanto ciência, se vê desafiada a apresentar ao mundo a Revelação de
Deus, que se tornou Palavra e veio morar no meio de nós. Quando em diálogo com outros
saberes, além de enriquecer-se, ela terá um descortinar-se de possibilidades para deixar Deus
mais próximo da realidade humana. A literatura fala do humano e tem se revelado, portanto,
uma aliada da Teologia na sua tentativa de responder aos anseios do homem. Assim, a
abordagem desta dissertação se faz a partir do interesse de diversos pesquisadores em apontar
as contribuições advindas desse diálogo entre Literatura e Teologia, ambas se enriquecendo
mutuamente.
Particularmente nos deteremos em aprofundar a mística cristã como meio de viver o
cristianismo em plenitude e, para tanto, usaremos a beleza ‘mística’ da poesia de Murilo
Mendes. Acreditamos que uma reflexão teológica a partir dos escritos desse poeta mineiro é
capaz de oferecer um diálogo que não fere a identidade e o objetivo de cada uma das áreas do
conhecimento. Pelo contrário, a arte de Murilo Mendes vem comprovar que a Comunhão com
Deus é indissociável da comunhão com as pessoas, e que o trabalho do poeta e teólogo,
quando em mutualidade, tende a ser mais profícuo no enfrentamento das realidades que
desafiam o homem no seu encontro com Deus, com o outro e consigo próprio. Entrelaçadas,
sem sobreposição ou amarras, a Poesia ‘poderá sinalizar o invisível’, e a Teologia terá mais
subsídios para responder ao seu desafio de dar sentido à caminhada de fé.
O teólogo tem o dever de conhecer a Palavra de Deus e a realidade do mundo,
essenciais para poder apresentar ao homem de hoje uma proposta que não é sua, mas de Deus.
O campo de ação da Teologia é o mundo, pois todo o universo é criação de Deus. Neste
sentido, enquanto ciência, nada mais natural que dialogue com as demais ciências que
habitam essa “casa comum”. De modo particular, a Teologia presta um serviço à Igreja e
contribui com a reflexão sobre Deus e sua presença na história humana, enquanto a Literatura,
como arte, trabalha com a palavra escrita, e está presente em todos os escritos teológicos,
inclusive na própria Bíblia, com seus vários gêneros. A Literatura não pretende criar uma
nova cultura, mas tem como influenciar as pessoas, a sociedade, da mesma forma em que é
influenciada pelo meio em que vive.
12
Essa visão de conjunto só começou a ser vislumbrada com algum interesse por parte
da Igreja a partir do advento das ciências humanas e com a chegada do século XX. A “virada
antropológica”, que trataremos no capítulo primeiro, foi um dos elementos fundamentais para
a teologia a partir do século XX, especialmente para a teologia latino-americana, carente
ainda hoje de uma urgente prática evangélica. Neste percurso, a Antropologia terá uma
importância significativa para o diálogo convergente entre Teologia e Literatura, na busca de
compreender Deus a partir do humano e compreender o humano a partir de Deus. A Teologia,
a partir do Concílio Vaticano II, se permitiu dialogar com as ciências e com a cultura, e
retomou igualmente o interesse pela espiritualidade e mística, ainda que desde os tempos mais
remotos do cristianismo a experiência mística já estivera presente.
Ao reconhecer a mística enquanto entrega de si mesmo, aquele que tem Jesus como
exemplo é capaz de perceber sinais de vida onde não há mais esperança. Para que a reflexão
teológica seja capaz de manifestar no povo brasileiro e latino-americano o desejo de agir com
justiça, viver a solidariedade e a fraternidade e não se conformar com nenhum tipo de
exclusão, esta pesquisa propõe que a mística cristã seja pautada nos diversos ambientes
eclesiais e sociais. É urgente que haja um despertar em cada pessoa e em cada um desses
ambientes, para que se possa (re)descobrir a alegria de ver Jesus como companheiro de
jornada; de viver em comunhão com Deus e com os irmãos. Esse é o desejo de Jesus, e é o
sonho do poeta.
O poeta mineiro comunicou por meio de seus poemas a reviravolta que o encontro
com Cristo provocou em sua vida. A poesia muriliana é resultado do encontro do universo
literário com uma mística cristã encarnada, que foi capaz de subverter o modo de o poeta
comunicar sua arte, considerando que o que se esperava dele era uma arte literária mais
voltada aos problemas de seu tempo - o início do século XX. E Murilo Mendes fez da poesia
uma arte dinâmica, soube expressar em seus poemas tanto a memória da sua infância como o
momento atual que vivia à luz do Evangelho. Essa dinâmica é fundamental para que a
Teologia não perca sua identidade: rever o passado para preservar a memória dos
acontecimentos da história do povo de Deus, olhar o presente à luz do Evangelho e motivar a
Igreja para promover ações necessárias para que o Reino de Deus aconteça já.
A primeira parte da pesquisa busca apresentar de uma forma geral o caminho que tem
sido percorrido na relação entre Teologia e Literatura. Aplicaremos essa relação a partir da
13
temática da mística cristã, perpassando pelos exemplos de místicos desde o início do
cristianismo. Por entender que é urgente a retomada da experiência mística, faremos isso
dialogando com a poesia, que igualmente provoca no humano uma transcendência.
A partir da biobibliografia de Murilo Mendes, na segunda parte, a pesquisa procura
fazer uma leitura interpretativa da sua poesia de onde se afirmam não apenas a qualidade de
sua poesia, mas sua leitura do humano e do divino: como ele apresenta o ser humano, Deus e
a relação entre eles enquanto constitutivo do ser humano, aplicando esses critérios para
verificar de que forma a leitura do poeta pode proporcionar uma mística.
A terceira parte procura fazer uma reflexão teológica a partir das poesias de Murilo
Mendes citadas na segunda parte, para verificar a teologia que daí decorre, sobretudo no que
se refere ao ser humano. E, a partir do viés antropológico, indagar como as poesias de Murilo
Mendes poderão proporcionar reflexões místicas e partir daí quais as contribuições específicas
para a elaboração da teologia latino-americana.
14
CAPITULO I
TEOLOGIA E LITERATURA
Introdução
É perceptível em todo o mundo um renovado interesse pela espiritualidade e suas
expressões religiosas. O homem de hoje carece de entender a ação de Deus na alma humana,
necessidade talvez provocada pela rapidez e intensidade das mudanças culturais, que têm
levado a uma crise da racionalidade e à necessidade de respostas imediatas. A mística,
compreendida como uma experiência profunda de Deus revelada a partir da experiência
humana, pode levar a pessoa a olhar para esse outro rosto de Deus que se faz presente em uma
realidade desumanizadora, de injustiças, opressão e sofrimento. Um místico, na sua
concepção, tende a assumir como sua a missão de Jesus de apresentar um Deus amoroso e
acolhedor à pessoa que sofre e, assim, vivenciar na prática uma espiritualidade encarnada a
partir de Jesus Cristo.
Esse renovado interesse pela espiritualidade e suas expressões religiosas é entendido
por muitos como uma “revanche do sagrado”. A mística cristã, que por um longo período na
vida da Igreja foi desprezada e elitizada, vem adquirindo desde o início do milênio um caráter
dialogal, atraindo mais e mais cientistas da religião e estudiosos de disciplinas afins,
provocando uma significativa e salutar abordagem interdisciplinar também e principalmente
no meio acadêmico.
A presente dissertação pretende promover um diálogo entre Literatura e Teologia, um
caminho de certa forma recente e, por isso, ainda passível de novas descobertas
epistemológicas. A Teologia pós-Concílio Vaticano II apreende ganhos no diálogo com
outros saberes: Ecologia, Ciências Humanas, Antropologia. O ser humano deixa de ser visto
como o receptor de diretrizes e normas e passa a ser visto como o sujeito. Nesse sentido,
escolhemos a Antropologia, por entender que ajuda a situar o humano como lugar da
revelação divina. Assim dará enorme contribuição às pesquisas que tiverem como focos a
pessoa, a presença de Deus nele e tudo o que a circunda.
15
Da Teologia, destacaremos a mística; e da Literatura, a poesia, mais propriamente a
poesia de Murilo Mendes (1901-1975), poeta que integrava o chamado ‘grupo espiritualista
da segunda geração’; foi um dos poetas que encontraram no cristianismo a resposta para os
dilemas de sua época, dilemas que ainda hoje nos rondam: a crise econômica, política e
ideológica, o analfabetismo, o preconceito e a indiferença. Essa "conversão" deve ser
compreendida não como a simples aceitação do catolicismo, mas como a proposta de um
catolicismo mais voltado para os problemas humanos, terrenos. O chamado grupo
espiritualista da segunda geração contaria ainda com Vinicius de Moraes e Cecília Meireles.1
Mas, por que relacionar Teologia e Literatura? Ou contrapor Mística e Poesia? A
Literatura é uma arte. E todo artista quer comunicar algo à pessoa em seu contexto, a partir do
seu mundo, das suas experiências. Toda obra literária afeta a pessoa, ou seja, propõe,
questiona, emociona, faz vibrar, ou simplesmente a leva a se identificar de alguma maneira
com a obra. Estes aspectos interessam à Teologia, especialmente a uma Teologia que pretende
se colocar em diálogo permanente com o ser humano; dar atenção às suas indagações de fé, de
mundo, de futuro, e fazer com que também as artes, e por que não a Literatura, contribuam
para a sua realização como pessoa.
A pesquisa realizar-se-á a partir da bibliografia relacionada à Teologia e Literatura, à
mística cristã e à poesia de Murilo Mendes. A profunda experiência mística de Murilo
Mendes, que de uma maneira tão particular soube conjugar teologia, mística e literatura
poética, tornou esse tripé a base de seu encontro com o divino, um encontro partilhado com o
outro, o necessitado, o marginalizado.
Pretende-se a partir de uma Teologia poética tentar agregar mais uma dimensão do
humano à reflexão teológica e abrir-se às novas possibilidades de transmitir a experiência de
fé cristã. O caráter místico da obra de Murilo Mendes acentua ainda mais as afinidades com o
contexto contemporâneo da sociedade.
1 Literatura Brasileira. Disponível em:
http://www.literaturabrasileira.net/index.php?option=com_content&view=article&id=129:murilo-mendes-1901-
1975&catid=14:todos&Itemid=27. Acesso em: 04/03/2013.
16
1. Teologia
A Teologia é elaborada a partir do horizonte da fé, é discurso a partir da fé. O sentido
e significado da Teologia é acreditar, confiar em Deus. Conforme Afonso Murad e Libanio, o
termo ‘teologia’ significa etimologicamente “um discurso, um saber, uma palavra, uma
ciência de ou sobre Deus”.2
O ser humano busca a compreensão da fé: a fé que procura entender (fides quarens
intellectun), conforme expressão de Anselmo de Canterbury.3 Para isso, busca meios para
aprofundar, sistematizar a fé que o liga a Deus. Neste sentido, o que se pretende é esclarecer
seu ato de fé nele, em Deus. Como afirma Santo Tomás: “O ato do que crê não termina no
enunciado, mas na coisa.”4
Crer em Deus é assumir a sua Palavra revelada na humanidade. A teologia define-se
como a reflexão crítica sistemática sobre a intelecção de fé. 5 Não há como fazer teologia sem
um mínimo de adesão ao Deus da Revelação, ao contrário, quem se arriscasse a tal feito seria
um mero pesquisador, sem qualquer envolvimento com a experiência de fé em Deus, e de
Deus na história da humanidade.
Por um longo período na vida da Igreja, o termo Teologia correspondeu à Escolástica
– período em que os cristãos vivenciaram muito mais uma fé a partir dos manuais, o que
provocou um afastamento da vivência a partir da experiência do Êxodo, da Libertação, dos
profetas e da Fé no Deus libertador.
Após o Concílio Vaticano II, a teologia dos manuais deixa de ser atraente e, sobretudo,
eficaz para os acontecimentos que o modelo de sociedade centrada na economia impõe
principalmente à vida dos mais pobres, esquecidos e excluídos.
Com um olhar mais voltado para o humano, a Teologia recebeu uma grande
contribuição de Karl Rahner, teólogo alemão que se serviu da base antropológica para sua
2 LIBANIO, João Batista & MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo:
Edições Loyola, 1996. p. 63. 3 TAMAYO, Juan José (org.) Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009. p. 524.
4 Santo Tomás. Summa teológica II.
5 LIBANIO, João Batista & MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. p. 102.
17
teologia, consagrando o termo “virada antropológica” Ele parte de uma teologia aberta e
profundamente tradicional, mas fortalecida com um novo alento de vida e cultura moderna.6
1.1 – Teologia Moderna
Karl Rahner abre caminhos para uma teologia “que se alinha sempre em torno dos
problemas do homem de hoje, e o objetivo prático com que procura fazer sua teologia.”7
Convencionou-se chamar sua teologia de “virada antropológica”, pois Rahner aponta a real
necessidade do compromisso de cada pessoa com a transformação de uma sociedade injusta e
desigual para um lugar em que cada pessoa se identifique com o projeto de uma vida melhor
para todos. O que move cada pessoa a fazer a adesão a esse chamado são os elementos da fé
cristã que estão centrados na temática da salvação. Afirma Gutierrez: “Salvação de todo ser
humano, centrada em Cristo Libertador.”8
Neste período, os temas da criação e salvação passam a ser vistos a partir da
experiência do Êxodo. Para Rahner, o homem é ouvinte da Palavra, e quando há vivência em
comunidade no respeito, gesto de gratuidade e alteridade, a história da salvação se concretiza.
O ato de se pôr a caminho foi uma reflexão posterior ao evento do Êxodo, e levou aqueles que
abraçaram a fé a se permitir conhecer o Projeto de Libertação oferecido por Deus.
1.2 – Teologia na América Latina
Na década de 70 a novidade que surge na América Latina é a Teologia da Libertação,
e sua proposta é uma nova maneira de fazer teologia.9 A reflexão crítica da práxis histórica é
uma marca essencial da maneira de se fazer Teologia da Libertação, uma teologia da
transformação libertadora da história da humanidade que se faz, não a partir de um gabinete,
mas a partir do concreto da vida, dos conflitos, da pobreza e das diversas formas de opressão,
iluminados com a Palavra de Deus que aponta sempre o caminho da terra prometida.
6 Teologia Contemporânea. Disponível em: http://teologia-contemporanea.blogspot.com. Acesso em:
15.10.2012. 7 KASPER, Walter. Cristologia abordagens contemporâneas. São Paulo: Edições Loyola, 1990. p. 65 “A virada
antropológica de K. Rahner na Teologia assinala um traço particularmente característico do pensamento
moderno. Este último, enquanto se desagrega a dimensão cosmológica, coloca o homem no centro e procura
compreender toda a realidade a partir dele”. 8 GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 199.
9 GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 73.
18
A Teologia como instrumento de libertação oferece caminhos por diversos interesses
que passam das individualidades ao ser relacional. Toda esta ênfase deve despertar em cada
pessoa, cada grupo, cada organização o sentimento de responsabilidade do outro, pela vida de
todos, e que seja uma vida saudável e digna.
A Teologia da Libertação é uma reflexão que necessariamente deve buscar a
compreensão do ser humano. Ao falar de uma sociedade nova e de um homem novo é
imprescindível a elaboração de uma antropologia que responda ao projeto salvífico de Deus
para a humanidade.10
Esta teologia continua ainda hoje como apelo e deve ser esta a opção da
Igreja, ou seja, oferecer esperança para os pobres, como sinal de sua grande responsabilidade
social e histórica.
O processo histórico-crítico da Teologia da Libertação imprime na Igreja e na
sociedade uma especial atenção ao pobre como sujeito da história, e um forte desejo de que a
igualdade seja realidade a todo custo. O que distingue a Teologia da Libertação é justamente o
seguimento incondicional de Jesus Mestre por ser Ele o que mais se identifica com o pobre –
mais que isso, Ele foi o Pobre entre os pobres. “Seguir Jesus é refazer em cada momento da
história a atitude fundamental de Jesus. E sua atitude fundamental foi a de ler nos
acontecimentos a vontade do Pai”.11
No entender de um dos maiores teólogos de nosso tempo, Jon Sobrino, a Igreja
encontrará o caminho da salvação somente nos pobres, entendidos por ele como os povos
crucificados de nossa sociedade moderna, verdadeiros servos de Javé pelo sofrimento e pela
possibilidade de salvação. O teólogo espanhol ressalta que nos pobres irrompe o mistério da
realidade e neles irrompe a realidade do próprio Deus. E acrescenta “Deus quer sua salvação e
libertação e faz a opção por eles”.12
Na América Latina, a tomada de consciência surge a
partir da organização dos pobres: “É primeiro aos povos pobres que compete realizar sua
própria promoção”.13
10
VD, 9 – Bento XVI afirma que “a realidade nasce da palavra como creatura Verbi, e tudo é chamado a servir a
Palavra. A criação é lugar onde se desenvolve toda a história do amor entre Deus e sua criatura: por conseguinte,
o movente de tudo é a salvação do homem”. 11
LIBANIO, João Batista. & ANTONIAZZI, Alberto. Vinte anos teologia na América Latina e no Brasil. São
Paulo: Vozes, 1994. p. 41. 12
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 43 13
Mensage de lós bispos..., em Signos. “Devem contar consigo mesmos e com as próprias forças antes que com
a ajuda dos ricos” devem unir-se. Carta de 80 sacerdotes bolivianos; em Signos 1968 In: Teologia da libertação.
GUTIERREZ, Gustavo, p. 182.
19
O Concílio Vaticano II afirma que a Igreja deve, como Cristo, realizar sua missão “em
pobreza e perseguição”.14
Não é essa a imagem que a comunidade latino-americana apresenta
ao mundo. As consequências na América Latina das Conferências episcopais de Medellín e
Puebla destacam a situação de pobreza e opressão sobre os mais fracos e apontam para a
necessidade de uma Igreja mais acolhedora e disposta a transformar esta realidade, uma tarefa
para as estruturas eclesiais e os leigos.
A Teologia na América Latina fermentou e abriu os caminhos para uma práxis, não
primeiramente a partir da reflexão da fé, mas a partir do compromisso com o chamado de
Jesus para que o Reino aconteça já e entre nós. As Conferências Episcopais de Medellín e
Puebla convocaram a Igreja latino-americana a estar no mundo sem ser do mundo, isto é, a
estar no sistema sem ser do sistema. Chamaram homens e mulheres a experimentar a fé no
Deus do Reino e no Reino de Deus a partir das necessidades do humano. As diretrizes das
Conferências Episcopais e a Teologia da Libertação provocaram em inúmeros leigos,
sacerdotes e bispos o desejo de ser Igreja a partir da compaixão com os mais pobres e
marginalizados e levá-los a uma vida melhor.
Para Jon Sobrino15
, essa busca incessante do divino no humano, de revelar Deus em
tudo, é primeiramente e principalmente obra do humano, e para isso é preciso que esteja
revestido do divino. Assim, suas ações, sua fala, seus sentimentos se configuram não apenas
na compreensão da fé como “Inteligência”, mas como vivência transformadora da fé. Sobrino
chamou isso de mística que se revela em “amores”. Nesta perspectiva de fé, os cristãos
sentem muito claramente que não podem ser cristãos sem assumir um compromisso
libertador.16
1.3 - Desafios atuais para a Teologia
As mudanças na sociedade moderna do século XX contribuíram de certa forma para o
questionamento de diversos paradigmas das ciências, assim como lançaram indagações à
própria Teologia. A Teologia traz como tema central a Revelação e aponta a experiência cristã
como o Caminho da realização humana em todos os sentidos, porém, as promessas da
14
LG, 8. 15
SOBRINO, Jon. O princípio da misericórdia. Descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis: Vozes, 1994.
p. 47. 16
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 197.
20
modernidade e atualmente a situação social da pós-modernidade17
respondem por tal
comportamento desumano desencadeado pelos sintomas das Grandes Guerras no século XX e
século XXI que conferiram às pessoas e ao conjunto da sociedade uma postura mais explícita
de indiferença e individualismo.
Com o advento do século XXI fez-se necessário procurar respostas para como a
Teologia poderá apontar pistas para os desafios de uma sociedade pluralista, porém que
sugere fortemente o individualismo.18
Temas como pobreza, diálogo religioso, marketing e
meios de comunicação, presença da mulher na sociedade e na Igreja, relação com Deus hoje e
disputa de poder entre países e no meio das religiões desafiam a Teologia, que tem como
dever apresentar o rosto de Deus para a humanidade.
A proposta do Concílio Vaticano II de abertura ao diálogo com a sociedade, tratada no
item 62 da Constituição Gaudium et Spes, aponta também para a questão da literatura e das
artes como uma possibilidade de diálogo da Teologia com outros saberes na perspectiva de
expressar-se e dialogar com eles por meio das artes.19
“A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é
própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas
dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à
experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si
mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no
universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e
energias, e desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a
vida humana, que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os
tempos e lugares.”20
17
A pós-modernidade pode ser entendida como um movimento intelectual e cultural característico da sociedade
pós-industrial que emerge nas décadas de 60 e 70 muitas vezes associada a um projeto de sociedade que se
propõe a superar a sociedade moderna. (...) Para usar uma expressão do pensamento pós-moderno, a
modernidade pode ser definida por tudo aquilo que constitui objeto da “desconstrução”. Dicionário Brasileiro de
Teologia. Outras definições consultar A modernidade e a Igreja, Urbano Zilles, EDIPUCRS. p. 10. 18
COMBLIN, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo: Paulus, 2005. p. 36. 19
ASSEMBLÉIA PLENÁRIA DOS BISPOS. Via Pulchritudinis. O caminho da Beleza. São Paulo: Edições
Loyola, 2007. A Via Pulchritudinis é um caminho pastoral que não se pode reduzir a um approche (toque/
acesso) filosófico. Mas o olhar do metafísico nos ajuda a compreender por que a beleza é um caminho régio para
conduzir a Deus. (...) Percorrer a Via Pulchritudinis implica empenhar-se em educar os jovens para a beleza,
ajudá-los a desenvolver um espírito critico em face da oferta da cultura da mídia e plasmar sua identidade e seu
caráter para elevá-los e conduzi-los a uma real maturidade”. pp.17-18. 20
GS, 62.
21
Os escritos bíblicos são Palavra de Deus,21
Palavra que se fez linguagem para se
aproximar do humano. Afirma Mônica Campos: “A Bíblia é literatura, e sendo Palavra de
Deus infere a Deus uma condição de contador de histórias. O Deus Encarnado que habitou
entre nós é um contador de parábolas”.22
As afirmações e provocações da Teologia em um cenário social em que o relativismo
prevalece têm exigido desta um dinamismo para lidar com uma realidade em constante
mudança. Conscientes desse desafio, alguns teólogos vêm desenvolvendo pesquisas no campo
da Teologia e Literatura, a partir de uma perspectiva interdisciplinar.
2 - Literatura
O contato com a leitura poderá proporcionar à pessoa a possibilidade de acumular
conhecimentos, pois as obras literárias nos ajudam a compreender sobre nós mesmos e sobre
as mudanças do comportamento do homem ao longo dos séculos, podendo nos fazer
acrescentar ou mudar nossos valores, conforme afirma Manzatto,
A Literatura é um olhar sobre o mundo, sobre seus valores, suas condições.
Ela é também, mas não formal nem diretamente, um juízo de valores, pois
ela toma uma posição ante os mitos, coisas e realidades da vida e da
sociedade; ela denuncia ideologias, sofrimentos, hipocrisias, falsos valores,
opressão, e prega novos valores.23
No senso comum, a Literatura é definida como a arte das palavras. Enquanto
instrumento de comunicação, ela transmite os conhecimentos e a cultura de uma comunidade.
A obra do escritor é fruto de sua imaginação, embora seja baseado em elementos reais. Da
concretização desse trabalho surge, então, a obra literária.
21
DV, 9. 22
CAMPOS, Mônica Baptista. Possibilidade de encontros teológicos-poéticos a partir da mística na obra de
Adélia Prado In: Teologias e Literaturas. Alessandro Rocha, Eliana Yunes e Gilda Carvalho (orgs.). São Paulo:
Fonte editorial, 2011. p. 61. 23
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 38.
22
A literatura é uma manifestação artística. E difere das demais pela maneira como se
expressa; sua matéria-prima é a palavra, a linguagem. O texto literário se caracteriza pelo
predomínio da função poética. O caminho que a literatura percorre é este.24
Amora25
afirma que a obra literária se caracteriza pelo tipo de conhecimento que
transmite – intuitivo e individual. E acrescenta que só é literatura quando o conteúdo dessa
expressão é uma intuição profunda e original da realidade. Neste aspecto, se difere do
conhecimento racional e universal, como o das Ciências Humanas e Naturais.
Para ele, Amora, o que caracteriza a obra literária são, em princípio, o conteúdo e a
forma:
A forma de linguagem é mais rica e mais variada que a do homem, o que é
mais compreensível, pois o artista, isto é o poeta, o ficcionista, o teatrólogo,
sente a existência com mais sensibilidade, vê as cousas com mais acuidade,
pensa a problemática da vida com mais inteligência; e quem tem mais o que
dizer diz com mais palavras e em mais complexa expressão. ”26
É Manzatto que, baseado em uma fala de Jorge Amado, diz:
eu não sei se esta história é verdadeira ou não, eu sei que ela é bonita”, diz
Jorge Amado em vários de seus romances. Se a literatura é uma arte, ela
deve ter relações com o belo; enquanto arte ela não pode abstrair de sua
realidade estética, e isso em sua forma e em seu conteúdo.27
A finalidade da Literatura não é a de apresentar uma nova cultura. A literatura pode
ser compreendida como uma das formas de conseguirmos expor nossos pensamentos mais
íntimos. Por meio da leitura, torna-se possível descobrirmos a nós mesmos, nos entendermos
melhor e, quem sabe, mudar, quando necessário, já que ela não falaria só à razão, mas ao ser
humano integralmente. Uma boa leitura pode nos proporcionar emoções jamais imaginadas
como: “ver” imagens jamais conhecidas, “sentir” odores nunca cheirados, “degustar” pratos
nunca até então imaginados.
24
O que é Literatura? Disponível em: http://www.brasilescola.com/literatura/o-que-e-literatura.htm. Acesso em:
01.02.2013. 25
AMORA, Antonio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 52. 26
AMORA, Antonio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. p. 53. 27
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 24.
23
Importante frisar que a literatura “pode ser teologicamente importante na medida em
que se ocupa da problemática humana”.28
Se a problemática humana interessa ao autor e este
dedica tempo e inspiração para uma possível representação da realidade, também interessa à
teologia, pois tudo o que se refere ao humano interessa à teologia, ainda que o autor não
professe alguma experiência religiosa. Este é o caráter antropológico da literatura que é
importante para a teologia.29
2.1- Relações entre Teologia e Literatura
A literatura, em princípio, é uma relação com a beleza e com o estético, enquanto a
teologia procura se relacionar com a verdade, com a questão do conhecimento.
Uma obra literária não tem como objetivo específico descrever a realidade, como o faz
a ciência, mas ela busca a compreensão, por meio da apresentação que mostra da realidade ou
de um possível sentido da realidade. Assim, a obra não descreve o real, mas a ele se refere,
não no aspecto de descrição fenomenológica, mas na tentativa de compreensão de fenômenos.
Desse modo, pode-se afirmar que a literatura possui referência com a verdade, pois ela, ao
imaginar o que pode ser real, traça um caminho de afirmação da verdade.
Para Paul Ricouer, “qualquer texto está inserido num contexto mais amplo, um
contexto de vida, do qual emerge e para o qual retorna ao ser compreendido”.30
Compreender
que o texto refere-se a alguma coisa e não se esgota em si mesmo é reconhecer que é próprio
da linguagem remeter a um além de si mesma.
A tarefa hermenêutica, para Ricouer, será possível a partir da compreensão do sentido
de uma obra literária. Assim elucida Gentil o ponto de vista de Ricouer:
“O que uma obra de ficção diz não é nem simples cópia de uma realidade já
existente anteriormente fora dela, nem pura invenção, exercício de
imaginação descolado de qualquer relação com o mundo exterior a ela: trata-
28
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 68. 29
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 69. 30
GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade. Uma aproximação à arte do romance em Temps et
Récit de Paul Ricoer. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 55.
24
se de um discurso que é feito por alguém, que nasce portanto de uma
determinada experiência da realidade, que diz algo dessa experiência e dessa
realidade e o diz para alguém, alguém que também vive numa determinada
(outra) realidade, tem sua experiência dessa realidade e vai assimilar o que
lhe é dito de alguma maneira”.31
O que o texto poderá provocar no leitor não está ao alcance ou atrelado à intenção do
autor. O contato da obra literária poderá provocar uma viagem a um mundo antes
inimaginável e realizar descobertas no mundo interior ou exterior ao leitor. Ricouer classifica
esta provocação com a expressão: “do texto em direção ao mundo que ele abre.”
A possibilidade da via hermenêutica, que desperta a relação da obra literária com o
autor, ao mesmo tempo abre um caminho de possibilidades para a relação com a Teologia. A
Revelação de Deus se fez primeiramente por meio de palavras. É compreensível que Deus
tenha privilegiado esta forma de comunicação para que, ao se fazer entender, pudesse garantir
adesão radical ao caminho apresentado por ele. Afirma Manzatto que a Bíblia não é um livro
científico e por isso a importância de “ir além e chegar até os gêneros literários da Bíblia”,
como poemas, orações, sermões, narrativas históricas, provérbios, romances, novelas. Neste
sentido, ela é literária. As narrativas do Primeiro e do Segundo Testamento são referências
fundamentais da fé cristã, afirmadas por meio de um procedimento literário, para falar de
Deus através de forma humana, e para falar do humano que se reveste do Divino. O ser
humano é uma das preocupações da literatura. Seja pela ficção ou pela poesia, ela retrata a
vivência do humano, com suas ansiedades e expectativas, na sua busca do sentido da vida e de
suas relações consigo próprio e com os outros seres. Por outro lado, “a teologia é uma melhor
compreensão da fé e, à sua luz, do homem, do mundo, do universo, da vida”32
, o que
demonstra uma grande proximidade entre teologia e literatura.
2.2 – Teologia e Literatura no mesmo percurso de busca
Vários são os autores que se debruçaram sobre a estreita relação entre poesia e
teologia em busca do sentido da vida. O trabalho de Karl-Josef Kuschel, na Alemanha,
apresenta-nos o método de analogia estrutural, que busca constatar correspondências e
31
GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade. Uma aproximação à arte do romance em Temps et
Récit de Paul Ricoer. p. 55. 32
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 39.
25
diferenças entre elas na interpretação da realidade. Na América Latina, a obra de Hugo
Baggio, em 1974: A experiência de Deus no poeta. Outro nome é Juan Carlos Scannome, com
o artigo “Poesia popular e teologia: a contribuição de Martin Fierro a uma teologia da
libertação”, na Revista Concilium em 1976. Este artigo busca refletir o valor da poesia
popular para a construção de uma teologia que pretende assumir a sabedoria dos povos.
Outros nomes que publicaram textos na relação teopoética foram: Gustavo Gutierrez,
Pedro Trigo e José Arguello, presentes na obra organizada por Pablo Richard: “Raízes da
Teologia Latino-Americana.” No Brasil, de Norte a Sul, tem crescido de forma célere e com
valorosas contribuições de pensadores e pesquisadores das mais diversas universidades
brasileiras o trabalho de compreensão do texto literário a partir do diálogo com diversas áreas
das ciências humanas, especialmente com a Teologia. Os Encontros teopoéticos e teoliterários
com o objetivo de aprofundar e divulgar a pesquisa em Literatura e Teologia têm como
referências, na região sudeste, os nomes de Eliana Yunes e Maria Clara Bingemer (ambas da
PUC-RJ), Antonio Manzatto, Luiz Felipe Pondé e Waldecy Tenório (PUC-SP), Terezinha
Zimbrão e Faustino Teixeira (ambos da UFJF); no nordeste, Antonio Magalhães e Eli Brandão
(ambos da UEPB); no sul, Rafael Camorlinga Alcaraz e Salma Ferraz (os dois da UFSC), Paulo
Soethe (UFPR) e Kathrin Rosenfield (UFRS); no norte, Douglas Rodrigues da Conceição
(UEPA), e mesmo das associações internacionais como a ALALITE (Associação Latino-
Americana de Literatura e Teologia)33 e a ISRLC (International Society for Religion, Literature
and Culture), ou os Grupos de Trabalhos da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura
Comparada) e da ENANPOL (Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Letras e Linguística).
Antonio Manzatto é quem inaugura no Brasil essa possibilidade de diálogo entre
Teologia e Literatura.34
A partir dos romances do escritor baiano Jorge Amado, Manzatto
reflete a Revelação a partir da visão antropológica.35
Com ele, essa linha de pesquisa começa
e crescer, e outros pesquisadores, como Antonio Magalhães, na obra “Deus no espelho das
33
Realizou-se o IV Colóquio Latino Americano de Teologia e Literatura, sob o tema Literatura e Teologia em
diálogos e provocações. Organizado pela Alalite (Associação Latino Americana de Literatura e Teologia) em
conjunto com o grupo de pesquisa Lerte da PUC-SP, na PUC-SP entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, contou
com mais de cem participantes de várias regiões do Brasil e do exterior. 34
Sobre esse tema, veja-se Edson Fernando de ALMEIDA & orgs. Teologia para quê?, Instituto Mysterium, Rio
de Janeiro, 2007. Artigo Literatura e Teologia, de José Carlos BARCELLOS. pp. 113-128. 35
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. São Paulo: Loyola, 1994.
26
palavras”36
, irão trabalhar o método da correlação baseada no pensamento do teólogo alemão
e pastor luterano Paul Tillich, um dos mais influentes teólogos protestantes no século XX. Os
trabalhos de José Carlos Barcellos, que estuda a “aproximação” da teologia com a literatura a
partir do fenômeno das “linguagens de empréstimo” da teologia atual, irão demonstrar o
modo de falar de Deus a partir da literatura, que parece ser o ponto em comum da
teopoética.37
Barcellos comenta sobre “um crescente interesse pela aproximação entre
teologia e literatura, tanto no âmbito dos estudos literários, quanto no dos estudos
teológicos”38
, e destaca os ganhos e os desafios para este “processo de constituição de um
campo interdisciplinar”.39
Para Eliane Yunes, “vem se configurando um diálogo promissor, pois o ponto de
partida, a matéria-prima, é o Verbo”.40
Propõe repensar Verbo divino e verbo humano: “Estas
práticas de pensar a literatura e a teologia à luz do verbo humano provocam o repensar o
Verbo divino, o sopro de espírito sobre os mortais: sua expiração é a nossa inspiração”.
Maria Clara afirma que, “com a colocação do humano no centro do pensar teológico,
assim como a consideração da experiência como um convite a fazer teologia, a literatura
passou a ser vista como um campo fértil de diálogo com a Teologia”.41
Rubem Alves não se
propõe a discutir método, e fala sobre teopoética através de um discurso poético. Para ele, a
teopoética é a fala do corpo. Fala da beleza que “mora em nossos corpos”.42
Sugere que a
palavra teologia seja substituída pela palavra teopoesia: “nada de saber, o máximo de
Beleza”.43
Alex Villas Boas, em sua obra “Teologia e Poesia”, irá desenvolver a temática da
Teopoética a partir da “Busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poético teológico”.44
Ele acredita que “a
36
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo. São Paulo:
Paulinas, 2000. 37
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo. p. 46 38
ALMEIDA, Edson Fernando de & NETO & Luiz Longuini (orgs.). Teologia Para Quê? In: BARCELLOS,
José Carlos. Literatura e Teologia. Rio de Janeiro, Instituto Mysterium, 2007. p. 113. 39
ALMEIDA, Edson Fernando de & NETO & Luiz Longuini (orgs.). Teologia Para Quê? In: BARCELLOS,
José Carlos. Literatura e Teologia. p. 113 40
YUNES, Eliana. “et alii” (orgs.) Murilo, Cecília e Drummond 100 anos com Deus na poesia brasileira. São
Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 9. 41
BINGEMER, Maria Clara. A literatura como um campo fértil de diálogo com a teologia. Disponível em:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1640&secao=251. Acesso
em: 14.11.2012 42
ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria meditações sobre a poesia. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 40. 43
ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria meditações sobre a poesia. p. 40. 44
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia – A busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poético religioso. Sorocaba: Crearte Editora, 2011.
27
poesia pode reconciliar-se com a Teologia quando o sonho de ambas é o de uma nova
humanidade”. No universo teológico apresentado por Villas-Boas45
é possível verificar um
caminho de encontro e de construção já iniciado e percorrido entre Teologia e Literatura. É
um caminho aberto, possível de encantamento e descoberta da forma de apresentar (ou
encontrar) Deus através das palavras.
3 - Teologia, poesia e mística
Para relacionar Teologia, mística e poesia buscar-se-á um estudo sobre as diferentes
compreensões de mística na história, ressaltando o distanciamento e sua reaproximação a
partir das suas matrizes.
Normalmente a mística cristã é definida como a forma e o grau de intensidade que
atingem a experiência e o conhecimento de Deus. Pode-se dizer que a mística é a experiência
de Deus como uma dimensão humana. Deus está presente no profundo de cada ser humano.
Ele envolve, penetra e mora em cada homem e mulher. Qualquer pessoa pode fazer a
experiência com Ele na simplicidade do dia a dia.
3.1 - Compreensões da Mística
Na Patrística, Orígenes é referência, e para ele a vida mística é como uma espécie de
conhecimento experimental da realidade divina. A partir dessa crença, irá desenvolver a
doutrina dos sentidos espirituais. Ele acredita, ainda, que a conversão é a primeira etapa do
itinerário espiritual, ou seja, o retorno do homem a si mesmo. A segunda etapa é simbolizada
por Orígenes no Êxodo: a saída da escravidão do Egito e a entrada na terra prometida.46
Orígenes nasceu em Alexandria do Egito por volta do ano de 185 d.C. Aplicado aos
estudos da Bíblia, tem como exemplo de vida o pai, assassinado em Alexandria durante uma
perseguição aos cristãos no ano de 202 d.C. Os ensinamentos de Orígenes visam
45
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia – A busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poético religioso. pp. 25-54. 46
VANNINI, Marco. Introdução à mística. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p.43.
28
exclusivamente ao progresso espiritual do homem, e se tornam muito inovadores em relação
aos dados da tradição.47
Como grande estudioso, com critério científico das Sagradas
Escrituras, apresenta a alegoria como método de interpretação bíblica e também faz uma
analogia com o corpo humano, para nos fazer entender a interpretação literal da Bíblia. Bogaz
afirma que a doutrina de Orígenes lhe faz merecer o título de “fundador da mística cristã”.48
A realidade divina é um tema presente na Teologia de Orígenes. Vannini afirma que
Orígenes apresenta a vida mística como uma espécie da realidade divina, dando início assim à
doutrina dos sentidos espirituais, que permite provar, tocar e ver as realidades divinas.49
No
caminho para Deus, Orígenes apresenta duas etapas do itinerário espiritual: a conversão, ou
seja, o retorno do homem para Deus, e o caminho do Êxodo: sair da escravidão do pecado,
dos vícios e das concupiscências da carne, despojando-se da vida carnal para chegar
progressivamente à vida espiritual.50
Bogaz traz à tona o tema do pecado em Orígenes da
seguinte forma:
Todos os seres humanos tendem ao Sumo bem, que é Deus.
Aos poucos cada ser humano vai se identificando com Deus. Pelo
pecado, o ser humano perde sua imagem divina. De fato, a imagem
não foi perdida, segundo Orígenes, mas somente silenciada pelo
pecado.51
Se Bogaz considera Orígenes o “fundador da mística cristã”, a tradição indica
Gregório de Nissa como “pai da mística cristã”. Ele que nasceu no ano de 335 na Ásia menor,
escreveu muito em vários campos – teológico, exegético, pastoral -, mas é justamente no
âmbito místico, sem dúvida, que deu sua contribuição mais significativa. Gregório aponta
para o epéktase, ou seja, o fato de Deus estar sempre além, e por isso a necessidade de ir para
frente para alcançar a meta, evocando o texto Paulo de Fl 3,13-14 – “esquecendo o que fica
para trás, com todo o meu ser continuo correndo para a frente. Esforço-me para alcançar a
meta (...)”.
47
BORRIELO, L., CARUANA, E., DEL GENIO, M.R.; & SUFFI,N. Dicionário de Mística. São Paulo: Edições
Loyola, 2003. p. 812. 48
BOGAZ, S. Antonio; COUTO A. Márcio. & HANSEN H. João. Patrística caminhos da tradição cristã. São
Paulo: Paulus, 2008. 49
VANNINI, Marco. Introdução à mística. p.45. 50
VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 45. 51
BOGAZ, S. Antonio; COUTO A. Márcio. & HANSEN H. João. Patrística caminhos da tradição cristã. p.
127.
29
A mística ocidental latina (séc. IV-V), por sua vez, reconhece como seu mestre Santo
Agostinho.52
É uma mística do conhecimento, remonta a Platão, e seus expoentes no
cristianismo são Agostinho e Santo Tomás. A mística de Santo Agostinho está fundamentada
na Encarnação do Verbo na história. Como exemplo desta espécie de mística temos um trecho
das Confissões, de Santo Agostinho:
Ó Deus! Formosura sempre antiga e sempre nova – quão tarde Te amei!...Tu estavas
em meu coração – e eu Te buscava lá fora... Tu estavas comigo mas eu não estava Contigo...
e, então, Tu me chamaste em altas vozes... Rompeste a minha surdez... relampejaste e
afugentaste a minha cegueira...recendeste suave perfumes em torno de mim, e eu os sorvia –
e,agora, vivo a suspirar por Ti... Saboreei-Te, e, agora, tenho fome de Ti... Tocaste-me de
leve – eu me abrasei em tua paz. Quanto mais possuo, tanto mais Te procuro... Que eu me
conheça a mim para que Te conheça a Ti.53
O primeiro a falar de Teologia Mística é Pseudo-Dionísio54
, herdeiro de uma tradição
anterior. Conforme Costa, “toda a sua obra está voltada para o problema do conhecimento de
Deus”.55
Um escritor de língua grega, por volta do século V, provavelmente siríaco, compôs
quatro tratados e dez cartas, afirmando terem sido redigidos por Dionísio. Vannini comenta
que “o fato é que os textos atribuídos a Dionísio são postos como fundamento da mística no
Ocidente”. Ele acrescenta que “a um desses textos, o mais breve, mas talvez o mais
importante, a Teologia mística, deve-se inclusive ao próprio fato de o termo ‘mística’ ter
entrado no uso corrente”.56
Para Dionísio, o conceito fundamental de mística é que “à causa de todas as coisas,
que é superiora a todas as coisas, nenhum nome se destina, e a ela se destinam todos os nomes
das coisas que são”.57
Ou seja, a realidade de Deus é absolutamente transcendente, além de
todo nome, mas cada homem colhe de Deus aquilo que é capaz, na medida em que seu amor –
o ágape cristão – é mais ou menos perfeito.
Inácio de Loyola se destaca pela sobriedade e pela vontade missionária. No “relato de
um peregrino”, ele desenvolve uma espantosa amplitude de experiência interior com a
52
VAZ, Henrique C. de Lima. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Edições Loyola,
2000. p. 37. 53
PERINE, Marcelo (org.). Diálogos com a cultura contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2003. pp. 128-
129. 54
VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 49. 55
COSTA, Ricardo da. O Pseudo-Dionísio Aeropagita In: Mística e Paideia. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2004_07.pdf. Acesso em: 24.06.2012. 56
VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 49. 57
VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 49.
30
presença amorosa de Deus. Relata que as suas mais fortes experiências visionárias (Trindade,
Criação e Eucaristia) ocorreram na época da sua conversão, por volta de 1522-1523,
fortemente marcada pela ascese.
Desde os primeiros séculos, o cristianismo defrontou-se com grandes desafios: a crise
interna causada pelas primeiras heresias, os ataques dos filósofos pagãos, a perseguição do
Império Romano e a oposição ao judaísmo. O Cristianismo não nasce nem se apresenta como
uma filosofia. Nasce como uma religião baseada na fé e na revelação divina; anuncia uma
mensagem nova para dentro de um mundo velho, estrutura-se em comunidades, cuidando dos
mais pobres. Jesus, o humilde artesão da Galileia, anuncia a Boa-Nova e instaura o Reino de
Deus para todos os homens. A doutrina cristã respondeu não só às exigências religiosas e
místicas da época, mas também às exigências éticas.
A teologia monástica medieval tem como meta última a contemplação de Deus, ou
seja, a experiência de Deus. Afirma Zilles: Nessa teologia acentua-se a humanidade de Cristo
para restabelecer a unidade originária entre Deus e o homem. A descrição psicológica chega a
um ponto culminante nos tempos modernos com Teresa de Ávila e São João da Cruz.58
O
objetivo da mística é, pois, o itinerário do homem a Deus através das realidades sensíveis e da
Bíblia. Tenta-se conhecer a luz de Deus através da obscuridade humana.
A Escolástica – “ciência que se ocupa em fundamentar e explicar o saber revelado e os
dogmas aceitos pela Igreja”59
– em todo seu desenvolvimento se manteve no terreno do
conhecimento teórico e especulativo da investigação da verdade divina, enquanto a mística
persegue um conhecimento de Deus e de sua presença na profundidade íntima da alma,
baseado numa relação interior e sobrenatural com a divindade, um conhecimento
experimental de Deus, afirma Zilles. A escolástica recebeu esse nome graças às artes
ensinadas nas alturas pelos acadêmicos teólogos e filósofos nas escolas medievais.
Neste período, duas dimensões importantes centralizaram os ensinamentos e os
debates: a fé e a razão. A novidade será a harmonização dessas duas esferas. Agostinho irá
defender uma subordinação maior da razão em relação à fé, enquanto Tomás de Aquino
58
ZILLES, Urbano. Fé e razão no pensamento medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 60. 59
ZILLES, Urbano. Fé e razão no pensamento medieval. p. 56.
31
apresenta certa autonomia da razão, na obtenção de respostas, por força da inovação do
aristotelismo, apesar de em nenhum momento negar tal subordinação da razão à fé. 60
A partir dessas esferas, a relação entre razão e fé, filosofia e teologia encontra nova
participação de ordens religiosas: a escola franciscana e a escola dominicana. A decadência da
escolástica ocorreu por volta dos séculos XIV e XV, depois da morte de Duns Escoto.61
Nessa
época surgem grandes místicos. Para aqueles que não encontravam respostas na razão o
caminho era o da mística.
Na busca de uma compreensão da relação entre Teologia e mística é preciso verificar
que “a mística cristã se caracteriza por sua relação com o mistério de Cristo”.62
N’Ele e com
Ele todas as coisas alcançam seu desígnio.
A relação entre Teologia e Mística é estreita. O termo teologia, originário do grego,
compõe-se etimologicamente de dois termos: theós + logia = Deus + ciência. Tem por objeto
principal Deus. “Coloca-se Deus em discurso humano. Um saber, uma palavra, uma ciência
de ou sobre Deus”, enquanto o termo mística é a forma grega adjetivada mûstikos do verbo
mûo, que significa fechar os olhos e calar a voz para penetrar no mistério impossível de ser
categorizado, e do verbo mûien, que significa a iniciação, a subida ou ascese. 63
Na Bíblia não encontramos o termo mística, porém, no cristianismo, ela é entendida
como a experiência daqueles que buscam mergulhar no Amor de Jesus derramado.
Normalmente a mística cristã é definida como a forma e o grau de intensidade que atingem a
experiência e o conhecimento de Deus. A mística é um conceito fundamental do cristianismo
como o é de toda religião que admite em seu âmbito o mistério. O místico indica a teologia
60
A Escolástica pré-tomista. Disponível em: http://www.mundodosfilosofos.com.br/escolastica.htm. Acesso em:
01.04.2012. 61
Ele nasceu provavelmente em 1266, em um povoado que se chamava precisamente Duns, nas proximidades de
Edimburgo. Atraído pelo carisma de São Francisco de Assis, entrou na família dos Frades Menores e, em 1291,
foi ordenado sacerdote. Dotado de uma inteligência brilhante e levada à especulação – essa inteligência pela qual
mereceu da tradição o título de Doctor subtilis, “Doutor sutil” -, Duns Scoto foi dirigido aos estudos de filosofia
e de teologia nas célebres universidades de Oxford e de Paris. Concluída com êxito sua formação, dedicou-se ao
ensino da teologia nas universidades de Oxford e de Cambridge, e depois de Paris, começando a comentar, como
todos os Mestres do seu tempo, as Sentenças de Pedro Lombardo. Disponível em:
http://www.franciscanos.org.br/?p=4351. Acesso em: 13.02.2013. 62
SILVA, Maria Freire da. Espiritualidade e Mística em Perspectiva Trinitária. In: Revista de Cultura
Teológica v.13. nº 50 Jan/Mar 2005. 63
SILVA, José Candido da Silva. Teologia e Mística. Revista Semestral do Instituto Santo Tomás de Aquino –
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos – ISTA In Horizonte Teológico Dez/2002. Ano I nº
02. Belo Horizonte-MG.
32
como um discurso fundamentado, e uma vivência da experiência de fé cristã como
consequência de uma teologia que encontra sua raiz no mistério pascal. A experiência mística
nasce de um processo que exige a conversão como ponto de partida para o seguimento de
Jesus. No adjetivo mystikós vive-se a verdadeira mística. Então, a mística é, sobretudo, a
transformação disso em experiência: é viver na presença de Deus, é encontrar Deus em todas
as coisas.
A mística é uma atitude diante da vida por parte de quem se permite à entrega do
mistério e se deixa transformar por ela na vida concreta. É essa atitude fundamentada no
mistério, vivida em profundidade, que é chamada de mística. Quando Karl Rahner chama os
cristãos do futuro de místicos, ele quer dizer que eles viverão nessa verdade.64
3.2 - Mística do seguimento de Jesus
Convocado pelo chamado: “Vem e segue-me”, o cristão sente-se impelido a fazer a
experiência profunda e marcante no seguimento a Jesus, “a chave e a síntese da existência
cristã”.65
No “arder do coração”, aqueles que caminham com Jesus aprendem a ouvir, a
acolher, a partilhar e a testemunhar as maravilhas que Jesus reserva para os que o abraçam e o
seguem. O seguimento de Cristo é uma exigência de fé.
Para Jon Sobrino, “o seguimento é categoria cristológica fundamental, lugar
primigênio de toda epistemologia teológica cristã e princípio hermenêutico fundamental”.66
A
vida do cristão torna-se uma marca quando o compromisso de lançar as sementes e de cuidar
delas o leva a abraçar o projeto do Reino de Deus, atuante na história, sobretudo, na vida e na
história daqueles a quem foi negado o direito à vida plena e feliz. (Jo 10,10 e Mt 5,1ss) Os
místicos vivem a dinâmica da entrega de si mesmo, e atualizam o sentimento do apóstolo: “Já
não sou eu quem vivo; é Cristo que vive em mim”.(Gl 2,20)
64
BORRIELO, L., CARUANA, E., DEL GENIO, M.R.; & SUFFI,N. Dicionário de Mística. p. 397. 65
BOMBONATTO, Vera Ivanise. O compromisso de descer da cruz os pobres. Disponível em:
http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-
content/uploads/2009/06/02ocompromissodedescerdacruz.pdf. Acesso em: 13.02.2013. 66
BOMBONATTO, Vera Ivanise. O compromisso de descer da cruz os pobres.
33
Aceitar o seguimento a Jesus “supõe a coragem de aceitar o desafio de lutar contra as
forças propulsoras do Anti-Reino”.67
Comprometido com o mandato de Jesus “Ide por toda a
terra e anunciai o evangelho a todas as criaturas”(Mc 16,15), mesmo diante dos desafios e
perseguições, o místico é aquele que encontra “luz diante das trevas” e sente-se chamado a
fazer uma profunda experiência de Deus.
Para a teologia, a vida é o que de mais precioso Deus nos reservou, e por isso declarou
a existência humana fruto do seu trabalho e criação (Gn 1). Neste sentido, o cuidado, ele o
encarrega a todo ser vivo, para que não haja necessitados de qualquer espécie. Jesus ordenou
aos discípulos dar de comer à multidão, e não mandá-la embora: “Dai vós mesmos de comer”
(Mt 14,13-21).
A mística cristã imbuída da mensagem de Jesus implica neste compromisso de
transformação social, na busca da realização da justiça para os pobres e para toda a criação.68
A mística não é privilégio de alguns, mas uma dimensão humana à qual todos tem acesso.
Karl Rahner inaugura uma maneira de compreender a experiência mística e afirma que a
mística não pode ser elitista. Todo cristão é chamado a ser místico. Gustavo Gutierrez, em
uma das suas obras mais místicas, afirma: “Seguir a Jesus define o cristão”.69
Os pobres
surgem como questão central da mística: “Com quem me identifico?” O Reino de Deus é dom
gratuito e leva à transformação da pessoa que se identifica com o seguimento de Cristo e se
coloca a caminho para contribuir nesta missão.
A mística do seguimento de Cristo implica abertura ao chamado, colocar-se, sentir-se
participante e disposto a viver no aqui da história as Bem-aventuranças que Jesus prometeu.
Acomodação e descompromisso, portanto, não se inserem na mística do seguimento. Não há
espaço para atitudes contrárias.
67
BOMBONATTO, Vera Ivanise. O compromisso de descer da cruz os pobres. 68
BETTO, Frei & BOFF, Leonardo. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 44. 69
GUTIERREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. São Paulo: Edições
Loyola, 2000. p. 11.
34
3.3. - Teologia da mística
O núcleo místico do cristianismo se evidencia a partir da mensagem essencial de
Jesus: o Reino de Deus está presente e se encontra dentro de vocês.70
Em sua pregação, Jesus
não anunciou a si mesmo nem a Igreja, mas o Reino de Deus. Ele realizou-se em si. Viveu
com intensidade e com imenso amor a serviço do Projeto Divino do Pai: o Reinado de Deus.
A obediência – escutar – de Jesus ao Pai, por amor, estabelece na relação do Pai com o
Filho o desejo de servir: “Cristo se fez obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8); “Desci
do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou” (Jo 6,38); e “O
mundo saberá que amo o Pai se faço como o Pai me ordenou.” (Jo 14,31). Toda entrega,
escuta e obediência que Jesus anunciou e realizou por causa do Reino tiveram inspiração em
sua experiência mística, na união com o Pai.71
A presença ativa das três pessoas divinas nos místicos é uma verdade intensamente
vivida,72
para que possam “ir e dar frutos” (cf. Jo 15), e se deixem transformar pelo amor
divino experimentando Deus manifestado no seu amor e por sua graça.
O Catecismo da Igreja Católica73
aponta o Cristo como centro da catequese. São
diversos os documentos da Igreja no Brasil e na América Latina que destacam a importância
do seguimento a Jesus, vivenciando, anunciando e testemunhando a pessoa de Jesus – assim
como suas palavras, gestos e sua história – a fim de que muitos possam fazer o encontro
pessoal com Ele. Para o místico, o seguimento a Jesus é comprometimento, “procurando
reproduzir a mística e a conduta do Mestre”.74
Os evangelhos sinóticos destacam que o lugar da pregação de Jesus foram os pobres,
como representantes de uma classe social desprovida e desprotegida pela elite dominante da
época. Era o reinado dos grandes e poderosos. Em contraposição a essa tal elite e porque veio
“dar vida para todos” (cf. Jo 10,10), Jesus anuncia o Reino de Deus. No anúncio da pessoa do
Pai, Jesus O chamou de “Abba”, Pai amoroso. A intimidade de Jesus com o Pai, núcleo de sua
70
GRÜN, Anselm. Mística descobrir o espaço interior. São Paulo: Vozes, 2012. p. 29. 71
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. São Paulo: Vozes, 1995. p. 63. 72
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 161. 73
Cat., 426. 74
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 161.
35
mística, é a chave para anunciar libertação (cf. Lc 4), anunciar as bem-aventuranças (cf. Mt
5), como demonstração de que acredita na justiça de Deus aos pequenos. O místico cristão, no
seguimento a Jesus e na sua dedicação ao compromisso com o Reino de Deus, precisa buscar
a “eficácia histórica75
a fim de que o ‘Deus do Reino’ possa realizar historicamente sua
vontade para com a humanidade”.76
O Reino de Deus foi anunciado aos discípulos em parábolas para que compreendessem
(Mt 13-31,35), e Jesus sempre comparava com situações do seu tempo. Mas é fato que o
Reino de Deus se constrói no dia a dia, em palavras, atitudes, gestos de amor, de vida, de
perdão, gestos de levantar os caídos “à beira do caminho”. (cf. Lc 10,25-37)
Para a experiência mística de cada pessoa são necessários o interesse pelo Reino de
Deus e a experiência do amor, da doação e do serviço. Como disse Jesus: “Se alguém quer ser
o maior, seja aquele que serve”. (Mc 9,30-37) Esta é a mística do Reino: “Eu tive fome e me
deste de comer. Tive sede e me deste de beber” (Mt 25,31-46).
Ao longo da trajetória do cristianismo muitos místicos, pessoas que experimentaram
uma profunda relação com Deus, foram manifestando em suas vidas e no seu tempo um
êxtase do amor de Deus. Muitos deles viviam em conventos ou monastérios e a partir da
experiência de revelação de Deus em sua vida foram orientados a escrever o que de
extraordinário lhes acontecia.
Na história do Cristianismo, desde o início encontramos exemplos de homens e
mulheres que vivenciaram profundamente o Evangelho. Para os cristãos, é nele que se
encontram os fundamentos da mística cristã. Por este motivo, é interessante notar como
cristãos profundamente interessados em problemas sociais do seu tempo são conhecidos como
os grandes místicos da história. No período antigo, vários são os místicos de referência. Para
citar alguns: Inácio de Antioquia (35 d.C – 107 d.C.) e Gregório de Nissa (330-395), no
Período da Patrística; Bernardo de Claraval77
(1090-1153), Hildegarda de Bingen78
(1098-
75
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 164. 76
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 164. 77
LYON, Henry, L. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1990. p. 259. 78
Carta apostólica Santa Hildegarda de Bingen de Bento XVI em memória perpétua Em 1979, por ocasião do
800º aniversário da morte da Mística alemã, Hildegarda de Bingen (1098-1179), o Beato João Paulo II a definiu
como “luz do seu povo e do seu tempo”. Além de mística, teóloga e pregadora, foi poetisa e compositora
talentosa. Foi no ano de 1584, sem cerimônia oficial, que seu nome foi incluído no Martirológio Romano como
36
1179), Juliana de Norwich (1342-1416), São Francisco de Assis (1181-1226) e Mestre
Eckhart (1260-1328), no Período Medieval; e no início da Modernidade, Santa Teresa de
Ávila (1515-1582), São João da Cruz (1542-1591) e Santo Inácio de Loyola (1541-1556). Um
recente exemplo de doação e entrega foi Madre Tereza de Calcutá (1910-1997), que fez da
mística uma vivência. Como afirma Gutierrez, antes de tudo, a mística é um encontro
profundo com o Senhor e sua vontade79
, e são nas situações concretas da vida que este
encontro ocorre. Bernard, ao tratar do divórcio entre a fé e a modernidade, destacou que o
testemunho dos santos e dos mestres espirituais a partir dos condicionamentos naturais da
vida moral e espiritual, que denominou de “realismo sadio”, “não os impediu de nenhuma
maneira de perceber também a ação de Deus ao longo de toda sua existência”.80
Somente a partir do século XVII a mística irá ganhar espaço como área de estudo
dentro da teologia. A Teologia como ciência irá ler esses relatos e interpretar a biografia de fé,
apontando como Deus entrou nesta biografia e fez algo de novo. No cristianismo é comum
encontrar as narrativas: os judeus narram os acontecimentos à luz da Aliança com Deus, os
apóstolos narram as experiências com Jesus de Nazaré, as primeiras comunidades narram as
suas experiências de fé a partir do Ressuscitado e como se organizaram em comunidades de
fé. Os místicos deixam verdadeiras narrativas de salvação. A biografia e a experiência de
relação com Deus vivida pelos místicos são como afirma o apóstolo Paulo na 2Cor 3,3 – “De
fato, é evidente que vocês são uma carta de Cristo, da qual nós fomos o instrumento; carta
escrita não com tinta, mas nas tábuas de carne do coração de vocês”.
A partir das narrativas dos místicos é possível identificar como se falar de Deus a
partir dos êxtases de uma vida concreta, pois a vida do místico é um êxtase, um êxodo de si
mesmo, para o encontro com uma alteridade, com o mistério divino, sobretudo no encontro
com o outro, o mais pobre, o mais infeliz.
santa. Em 2012 o papa Bento XVI reafirmou oficialmente sua santidade e a proclamou Doutora da Igreja. A
Carta apostólica Santa Hildegarda de Bingen de Bento XVI em memória perpétua afirma: “O olhar da Mística
de Bingen não se limita a enfrentar questões individuais, mas pretende oferecer uma síntese de toda a fé cristã.”
E acrescenta: Hildegarda apresenta a si mesma e a nós a questão essencial se é possível conhecer Deus: é esta a
tarefa fundamental da teologia. A sua resposta é plenamente positiva: mediante a fé, como através de uma porta,
o homem é capaz de se aproximar deste conhecimento. (...)Em Santa Hildegarda de Bingen revela-se uma
extraordinária harmonia entre a doutrina e a vida quotidiana. Nela a busca da vontade de Deus na imitação de
Cristo expressa-se como uma prática constante das virtudes, que ela exerce com suma generosidade e que
alimenta nas raízes bíblicas, litúrgicas e patrísticas à luz da Regra de São Bento: resplandece nela de modo
particular a prática perseverante da obediência, da simplicidade, da caridade e da hospitalidade. 79
GUTIERREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. p. 52. 80
BERNARD, Charles André. Teologia Mística. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 31.
37
Os místicos da contemporaneidade são místicos de olhos abertos, atentos, vigilantes.
Estão vulneráveis e expostos a situações mais diversas. Onde a pessoa em geral só verá
destruição, o místico irá ver situações de esperança e de vida. Os místicos são ensinados por
Deus, na oração, a decifrar a linguagem do Amor Divino. Jesus entendeu que o que o Pai
queria era que os pobres, as crianças, os leprosos, os marginalizados estivessem junto de si,
para que, curados de todo tipo de mal e de doenças do seu tempo, pudessem viver
dignamente.
Jesus é o exemplo para os místicos cristãos para perceber os sinais de esperança onde
não há mais sinais de vida; mostrar que a vida é bela onde não há mais desejo de recomeçar.
Hoje os místicos contemporâneos fazem seus claustros nas favelas, na luta política, nas
mediações entre conflitos; nas situações problemáticas dão testemunho. As prisões, os
hospitais e as mais diversas situações de conflito podem ser vistas como novos claustros de
místicos da contemporaneidade para responder aos apelos de Deus com toda sua vida.
A ambiguidade em que vivem os místicos da contemporaneidade os torna atraentes
porque os tornam mais humanos para o homem e a mulher de hoje. Esses místicos assumem o
conflito na sua vida, e o seu testemunho ganha configuração nova, arrastam mais pessoas,
vivem as ambiguidades e levam muitos a se identificar com Jesus Cristo.
A afirmação de São Jerônimo: «Ignoratio enim Scripturarum, ignoratio Christi est»
(Quem não conhece as Escrituras não conhece Cristo)81
revela para o místico cristão a sua
intimidade com a Palavra de Deus. Ao ler as narrativas bíblicas, os místicos cristãos se
identificam e tomam na carne o verdadeiro sentido do caminho do amor que “Deus derramou
em nossos corações”. Ao descobrir o sentido da vida, os místicos buscam compreender o que
Deus espera de cada um e de todos, e como uma grande oferta entregam suas vidas a este
desejo “de ir e dar frutos, e que o fruto de vocês permaneça” (cf. Jo 15), transformando a sua
vida no compromisso, na aliança firmada com Deus.
“Será que é possível construir homens e mulheres novos sem falar de mística? A
mística está para esta questão assim como a química do solo para produzir bons frutos”,
afirma Betto.82
A redescoberta da Bíblia a partir do Concílio Vaticano II tem feito com que
81
DV, 25. 82
BETTO, Frei & BOFF, Leonardo. Mística e espiritualidade. p. 81.
38
pessoas e comunidades descubram que Deus criou o mundo, mas não apenas isto - que este
Deus caminha e “Está no meio das gentes, em todos os lugares” e quer que muitos o
conheçam e se comprometam com Seu desejo de justiça para todos, que haja esperança em
meio aos fracassos e que não haja competições.
A leitura do texto bíblico é fundamental para o estudo exegético ou orante – Lectio
Divina. Um novo olhar para a Bíblia entrelaçando Teologia e Literatura pode contribuir para a
mística na contemporaneidade como instrumento de aproximação entre o que “a literatura
pode falar da significação do humano e do mundo, e então navegar pelas mesmas águas da
teologia que, ela também, fala do humano e de seu sentido no mundo”.83
A Constituição Dogmática Dei Verbum alerta para a necessidade de se levar em conta
os “gêneros literários” e descobrir a intenção dos autores sagrados. Com efeito, a verdade é
proposta e expressa de modos diferentes, se trata de gêneros históricos, proféticos, poéticos ou
outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo, em
determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu
exprimir e de fato exprimiu servindo-se dos gêneros literários então usados.84
Neste sentido, buscamos compreender a mística na relação com a teologia latino-
americana. Mística que é experimentar a ação de Deus presente na história, que é se alimentar
da sua Palavra, da comunhão com aqueles que aderiram ao Projeto de Deus, se realizando no
hoje da nossa história sem deixar de buscar na história do Povo da Bíblia, na Eucaristia e na
Palavra as razões das nossas esperanças.
Como compreender a mística a partir do conflito? Como encontrar Deus na pobreza,
na perseguição, nas injustiças? Boff afirma que “a mística só existe para nos ensinar a lidar
com o conflito e para fazer com que, dentro dele, não sejamos enganados, mas estejamos
acima ou numa relação que não nos quebre a harmonia e a relação com os outros”.85
Esta
experiência pode ser vivenciada a partir de ritos celebrativos e do mistério da fé para o
cristianismo – mistério cristão, Santíssima Trindade, encarnação e Graça, etc.
83
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da Antropologia contida nos
romances de Jorge Amado. p. 89. 84
DV, 12. 85
BETTO, Frei & BOFF, Leonardo. Mística e espiritualidade. p. 33.
39
Nas pegadas de Jesus, o místico centra sua vida na experiência teologal; sua conduta e
sua crença derivam dessa relação de amor que tem com Deus.86
Assim podemos afirmar que o
místico é por natureza um inquieto, um angustiado profético, subversivo diante de qualquer
compromisso que esvazie a totalidade da vida.
A exigência do amor no místico o leva a uma profunda consciência de que o mistério
do Amor revelado na Trindade é que o faz viver a experiência da graça, da beleza e do
encanto. Mística é abandonar-se no Cristo crucificado e ressuscitado.87
Na economia da salvação a mística cristã é fonte que jorra vontade e coragem para o
cristão viver profundamente a intimidade com Cristo, Aquele que por compaixão desce às
dores da humanidade para resgatá-la de todo mal. Espeja afirma que “para a experiência
mística de cada pessoa, se faltar o interesse pelo Reino de Deus, a mística não será cristã”. 88
As Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil89
, ao citar o Documento de Aparecida,
recordam que vivemos um tempo de transformações profundas que afetam não apenas este ou
aquele aspecto da realidade, mas a realidade como um todo. Continua afirmando que estamos
diante de uma globalização que não é apenas geográfica. Estamos, na verdade, diante de
transformações que atingem também todos os setores da vida humana, de modo que já não
vivemos uma “época de mudanças, mas uma mudança de época”.
A experiência do encontro pessoal e comunitário com Jesus90
é a chave da alegria91
na
vida de quem pratica profundamente sua fé. Este, por sua vez, busca aprofundar o Mistério
86
BETTO, Frei & BOFF, Leonardo. Mística e espiritualidade. p. 81. 87
“Portanto, o místico é alguém que faz a experiência da unidade-comunidade-presença, enraizado no Cristo
crucificado e ressuscitado. Por ser uma pessoa de fé, vive o sentido da aliança, consciente de que Deus-Pai é o
Deus da misericórdia revelada em Jesus e derramada no Espírito Santo. O místico é alguém que tem consciência
de viver sob a misericórdia e a graça divina. Tem o sentimento de gratidão, de disponibilidade diante da livre
iniciativa de Deus, da necessidade do perdão e da renovação da esperança confiante. Regida pela caridade, a
experiência mística cristã demonstra definitivamente o conhecimento do mistério da caridade, aberta ao
movimento de entrega de si segundo a medida de Cristo.” Revista de Cultura Teológica. V.13 n. 50 – Jan/Mar
2005. Espiritualidade e Mística em Perspectiva Trinitária. Profa. Dra. Ir. Maria Freire da Silva. 88
ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 165. 89
CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da igreja no Brasil 2011-2015, 94 90
Dap, 11 – A V Conferência geral do episcopado Latino Americano e Caribe - 2007, apresenta, entre outras
urgências, a mais relevante que é a de levar os batizados a fazer o despertar da fé a partir de um encontro pessoal
e comunitário com Jesus Cristo, que desperte discípulos e missionários. Afirma o documento que “isso não
depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e
novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino, protagonistas de uma vida nova para
uma América Latina que deseja reconhecer-se com a luz e força do Espírito”.
40
para nele encontrar a beleza. Afirma Oliveira que “a experiência mística pode ser entendida
como um envolvimento de toda a vida da pessoa no mistério da Trindade e na realidade da
salvação que o Filho nos trouxe”.92
De fato, a pessoa envolvida no mistério faz a experiência
de ser amada, com o amor da Trindade se ocupa em amar e espalhar o verdadeiro amor, e que,
a partir disso, se pode dizer que o místico é um crente, isto é, pessoa de fé que faz experiência
da graça e da misericórdia de Deus.
É tarefa da Teologia possibilitar que a pessoa na sociedade atual encontre motivo para
crer e, assim, alimentar a mística, não somente a sua “fides quae” enquanto conteúdo da fé,
mas sim com a sua “fides qua”, seu ato de fé que o abre para a dimensão eclesial da fé.
3.4 – Mística e Teopoética
Redescobrir o caminho da mística bem como ressaltar sua contribuição em meio a
uma sociedade que tratou de abandonar Deus e toda relação com o humano que Seu projeto
propõe implicam uma tarefa para a Teologia disposta a apresentar o conteúdo da fé por meio
de novas linguagens.
Sudbrack ressalta que “ao longo das últimas décadas a palavra ‘mística’ passou de
uma depreciação injusta, como sentimental e anticientífica, a ponto central do interesse”.93
No
início deste milênio, o tema da mística passou a estar presente em pesquisas acadêmicas e no
diálogo entre culturas e religiões. Para a Teologia, este tema tem sido um desafio. Comblin
afirma que “desde a Idade Média, no magistério e na teologia oficial, há grande desconfiança
em relação aos místicos e aos escritos dos místicos”.94
A mística poderá enriquecer-se do
diálogo entre Teologia e Literatura. Afirma Gaspari95
:
Porém, mesmo tendo a religião uma forma diferente de encarar a
verdade, isso não significa que ela só possa existir em oposição à
91
Dap, 29: “A alegria do discípulo é antídoto frente ao mundo aterrorizado pelo futuro e oprimido pela violência
e pelo ódio. A alegria do discípulo não é um sentimento de bem-estar egoísta, mas uma certeza que brota da fé,
que serena o coração e capacita para anunciar a boa nova do amor”. 92
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira. Na órbita de Deus. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 46. 93
SUDBRACK, Josef. Mística a busca do sentido e a experiência do absoluto. São Paulo: Edições Loyola,
2007. p. 19. 94
COMBLIN, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? p. 35. 95
GASPARI, Silvana de. Tecendo comparações entre Teologia e Literatura. In: Anais do III Encontro Nacional
do Gt História das Religiões e das Religiosidades – ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das
religiões e religiosidades. In: Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011.
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html. Acesso em: 27/01/2013.
41
ciência ou às artes. E a Teopoética é um exemplo disso, mostrando-
nos que a religião, a teologia e a literatura têm muito em comum,
podendo dialogar e interagir de forma a enriquecer o mundo com suas
indagações.
A Teopoética96
– estudos comparados entre teologia e literatura97
- não se limita
apenas ao conteúdo bíblico. A teopoética não é crítica literária, não tem como fonte de
pesquisa um autor nem necessariamente um poema, uma novela, um conto, um romance ou
outra forma de literatura qualquer; enquanto literatura, ainda que leve em conta a sua forma,
procura na obra e no autor elementos teológicos.
A teopoética visualizará na obra literária a presença de Deus não como parte de um
conteúdo da área teológica, mas sim como um texto que apenas debate a insurgência do divino na
esfera humana. A teopoética, desta forma, não descambará para o lado das críticas literárias e
jamais também para os aportes de análises críticas de cultura feita pelos teólogos. Como projeto
de interpretação/criação poética, afirma Villas Boas: “a questão da teopoética não se reduz a
fazer poesia com conteúdos teológicos”.98
3.5 – Poesia: o sagrado toque da alma
A Poesia provavelmente é a mais antiga das formas literárias. Etimologicamente, o
termo poesia provém do grego e significa criar.99
Segundo Paz, “a poesia é revelação de nossa
condição e, por isso mesmo, criação do homem pela imagem”.100
96
Termo cunhado pelo pensador germânico Karl-Josef Kuschel com o intuito de não ser mera teologia
explicativa da arte literária, pelo contrário, a teopoética visa “não a substituição do Deus de Jesus Cristo pelo dos
diferentes poetas, mas a questão da estilística de um discurso sobre Deus que seja atual e adequado”. Portanto,
Kuschel se depara com uma poética que reflete as preocupações últimas do homem, o conhecimento que se
busca advém do diálogo frutífero entre o estilo, e não o conteúdo somente, do texto literário de forma a expressar
Deus. A teopoética, assim sendo, não partirá da teologia para chegar à arte, como o queria Tillich, mas parte da
arte poética para alcançar o sagrado. KUSCHEL,K. J. Os Escritores e as escrituras. Retratos Teológicos
Literários. Edições Loyola. 1999, p. 31. . 97
FERRAZ, Salma. A esfinge pejada de mistérios: travessias e travessuras de Judas. In: Estudos da Religião,
São Bernardo do Campo, ano 20, dez. 2006, p. 236. 98
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia – A busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poético religioso.p. 44. 99
Escola virtual. O Texto poético. Disponível em: http://www.escolavirtual.pt/assets/conteudos/downloads/10por/otextopoetico.pdf. Acesso em: 11.02.2013. 100
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. (Coleção Logos).
Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859. Dossiê Tolerância e
Intolerância nas manifestações religiosas.
42
A partir da sua experiência, das suas emoções, sentimentos, revoltas, enfim a partir de
algo que experimentou ou deseja vivenciar, o poeta expressa através do texto poético uma
linguagem que se distancia de uma linguagem racional101
para expressar uma visão de mundo.
Na verdade, o texto poético exprime o estado de alma do poeta, isto é, o seu mundo interior.
O seu discurso é claramente emotivo e redundante, pois pretende intensificar a emoção, em
vez de acrescentar informação.
Os poetas e místicos mergulhados na profundidade do que buscam expressar estão
distantes daquilo que se pensa que estão, ou seja, estão distante da realidade e, portanto, da
ação e da presença humana em cada situação atual. Afirma Teixeira102
que “a palavra é frágil
instrumento para expressar a dimensão e o horizonte daquilo que se busca”. Mesmo
reconhecendo a incapacidade de a linguagem comunicar a intensidade da experiência, os
poetas e místicos sabem que apenas através das palavras é que poderão atingir seu objetivo.
Diferentemente do texto narrativo, a poesia poderá comunicar o inexprimível de tal
forma que o leitor não exitará em imaginar tal situação comunicada pelo poeta. Afirma
Manzatto, “(...)uma linguagem que utiliza metáforas e por isso mesmo é a forma mais
adequada para falar do mistério e da experiência religiosa(...) Por isso a poesia pode favorecer
a mística e ajudar na comunicação da experiência espiritual, que não se transmite através de
conceitos”.103
Neste sentido, poesia e mística se entrelaçam porque poderá revelar uma
experiência mística da fé.
O poeta, através da arte que lhe inspira ao captar o real, irá vislumbrar o transcendente
presente na história. Os poemas não se esgotam em si, ao mesmo tempo tocam a realidade e
um algo que a transcende a partir dela. Comunicam a partir da narração e, portanto, podem
levar a uma aproximação do Mistério. Comenta Manzatto que “A poesia expressa de maneira
101
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da Antropologia contida nos
romances de Jorge Amado. p. 77. 102
TEIXEIRA, Faustino. O mistério e a palavra In: Poesia Sempre. nº 31, ano 16, 2009. Ministério da Cultura.
Fundação Biblioteca Nacional. p. 9. 103
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da Antropologia contida nos
romances de Jorge Amado. p. 78.
43
absolutamente nova o mistério e, através da estética dos versos, convida à contemplação.
Dessa forma, aproxima-se da mística religiosa e teológica”.104
A relação da poesia e a Teologia na América Latina surge a partir deste olhar para o
poeta, assim como para os místicos, que entraram em comunhão com Deus e, ao mergulhar no
Amor manifestado por Deus, se deixaram seduzir para a causa dos pobres na busca da
libertação. Assim define Transferetti:
Sendo o poeta o “testemunho de seu tempo”, ele carrega em si as
marcas mais profundas da vida e da morte do seu povo. Enamorado
das lutas de libertação, amante da causa maior – Deus forasteiro –
pequenino errante solitário, caminha como um monge pelas estradas
da liberdade.105
É possível afirmar que há algo que une a poesia e a mística: a experiência amorosa, o
enamoramento das pequenas e grandes coisas e a atenção aos sinais do cotidiano.106
A título
de ilustração, exemplos muito relevantes destes aspectos encontramos nos poemas de São
João da Cruz e Santa Tereza D’Ávila.
No prólogo do Cântico espiritual, João da Cruz assinala a impossibilidade de explicar
com clareza, por meio de palavras, as expressões amorosas da inteligência mística.
O ponto de partida para a relação entre a poesia e a mística está justamente no
reconhecimento da capacidade daquela em superar a linguagem e assim desvelar o que está
além desta. Neste sentido, há uma estreita vinculação entre poesia e mística. Afirma Teixeira:
“O místico, como o poeta, vive na espreita de um mistério maior,
alimenta-se também do ar, das rochas, do ferro e do carvão. Ele sabe
que é no mundo que o mistério exerce o seu assédio, penetrando e
modelando quem vem tocado por sua graça”.107
104
MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama de teologia e literatura. In Teologia e Arte. Expressões de
transcendência, caminhos de renovação. MARIANI, Ceci Baptista e VILHENA, Maria Angela. São Paulo:
Paulinas, 2011. p. 11. 105
TRANSFERETTI, José Antonio. Entre a Po-Ética e a Política. Teologia Moral e Espiritualidade. Petrópolis:
Vozes, 1997. p. 58. 106
Sobre Literatura e vida mística (iniciação aos autores monásticos da Idade Média p. ex. São Jerônimo, São
Gregório, São Bernardo, São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila) ver Jean LECLERCQ. O amor às letras e o
desejo de Deus. São Paulo: Paulus, 2012. pp. 301-318. 107
TEIXEIRA, Faustino. O mistério e a palavra In: Poesia Sempre. nº 31, ano 16, 2009. Ministério da Cultura.
Fundação Biblioteca Nacional. pp. 11-12.
44
O mesmo autor108
acena para a relação da linguagem artística com a linguagem
poética para tratar da mística, no entanto, cita o diálogo de Thomas Merton109
quando
recordava a seus noviços que a vida contemplativa não podia separar-se de nenhum interesse
humano. “Tratava-se (sic) de algo muito simples e sensível; simplemente viver como peixe na
água”.
Relacionar “A Idade do Serrote”, do poeta Murilo Mendes, com a mistíca cristã,
objeto desta pesquisa, é afirmar o diálogo promissor e aberto entre Teologia e Literatura, sem
necessariamente que uma se sobreponha à outra. A Teologia não irá deixar de ser Teologia, e
a Literatura não deixará de ser Literatura, mas ambas poderão ser relidas a partir do aspecto
antropológico, tendo o ser humano como ponto fundamental, ou seja, de quem se fala e para
quem se fala.
Conclusão
Apropriar-se de uma elaboração teórica capaz de agregar na pessoa, no seu contexto,
não apenas conhecimentos, mas despertá-la para uma experiência profunda de Deus é
preocupação da Teologia. Diante da complexa realidade que temos hoje, a Teologia sente-se
desafiada a dialogar com outros saberes para anunciar o que há de belo e o que essa beleza
manifesta também através da mística, como ressalta Bertelli:
A beleza de Deus se revela na música, na recitação poética dos salmos e
hinos, na dança, pintura e escultura, no rito, celebração e festa, que
inauguram uma dimensão de gratuidade na vida humana, condição para a
eficácia de todas as nossas ações.110
A poesia, através da sua linguagem singular, comunica a beleza interior e exterior a
partir da realidade do poeta, e leva o leitor a vivenciar um “outro mundo” jamais por ele
108
TEIXEIRA, Faustino. O mistério e a palavra In: Poesia Sempre. pp. 11-12. 109
Thomas Merton, um dos maiores místicos do século XX, como um dos precursores da espiritualidade da paz
na América do Norte e da teologia da libertação latino-americana. A teologia espiritual de Merton faz a síntese
harmônica entre espiritualidade e solidariedade, contemplação e ação, tendo por eixo o encontro existencial com
o mistério sublime de Deus, da criação e do ser humano. No encontro com esse tríplice mistério, o ser humano se
constitui como tal. Sem ele, a vida perde profundidade e transparência. Pois ainda hoje, em plena era espacial,
ecológica e nuclear, o centro do universo continua a ser o coração humano, feito para o Transcendente. Cf.
Getúlio Antônio BERTELLI, Mística e Compaixão. A teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton. São
Paulo: Paulinas, 2008. 110
BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e Compaixão. A Teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton.
p. 93.
45
imaginado. Perceber que os místicos manifestaram sua experiência profunda de Deus,
deixando-nos um legado poético, é reconhecer uma unidade na diversidade, que harmoniza,
aproxima, e envolve Literatura e Teologia. E “quando a teologia se aproxima da arte e a arte
da teologia, nasce uma obra capaz de falar sobre a vida no contexto de Deus”.111
O percurso desta pesquisa, com um olhar particular para a mística cristã, e que será
desenvolvido a partir das poesias de Murilo Mendes, quer ser uma reflexão sobre essa
aproximação. Ambas comunicam ao humano por meio de linguagens, no entanto, a palavra
por excelência é o instrumento capaz de levar o humano a interagir a tal ponto de fazê-lo
sonhar e ser feliz.
Ao ler as poesias de Murilo Mendes, poeta e católico convertido, perceber-se-á a
importância deste gênero literário e como a vivência do catolicismo e uma mística da fé cristã
o influenciaram em seus escritos. É o que trataremos no Capítulo II.
111
MARIANI, Ceci Baptista e VILHENA, Maria Angela. Teologia e Arte, tudo a ver! In: Teologia e Arte.
Expressões de transcendência, caminhos de renovação. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 11.
46
CAPITULO II
UMA VIDA NA ARTE
Introdução
O poeta que, ao falar da vida e da própria vida, faz da arte da poesia um caminho
dinâmico, belo e inovador apresenta-se vulnerável a arrancar aplausos ou “virarem-lhe as
costas”.112
Murilo Mendes não se considera modernista, mas sua visão caminha à frente de
seus pés; onde ele mesmo não alcança, suas palavras atingem um alcance muito maior que o
desejado, pois têm o poder de tocar o íntimo de cada pessoa que toma contato com sua poesia.
Ele mesmo ressalta: “não existe cultura sem penetração individual”. (dE 692) A capacidade
de encantar-se por algo distante da sua realidade de menino fez com que o poeta reconhecesse
o “algo mais” reservado a ele, e decidiu comunicar as suas experiências em poesia e prosa:
“cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível”. (is 170)113
A
sede do poeta em ver, compreender, comunicar todas as realidades a quem atinge e a quem
não atinge o leva a buscar uma significação da sua vida na arte, o que representa não apenas a
sua realização como pessoa, como também alguém que se identifica com a Pessoa do Cristo:
“O Cristo não tem personalidade. Ele a abandonou para desposar toda a humanidade. Ele é
uma Pessoa”. (dE 642)
É certo que o leitor, ao ser tocado pela poesia, aquilo que era “meu” transfigura-se
naquilo que é nosso, e o que era íntimo assume qualidades que possibilitam alcançar a
coletividade. A obra se concretiza quando há comunicação de duas intimidades, intimidade
112
ANDRADE, Mario Raul Moraes de. A volta do Condor. Diário de Notícias. Rio de Janeiro. 30.06.1940 In:
Vida literária. São Paulo: Edusp, 1993. pp. 220-221. O autor critica severamente o trabalho e o pensamento de
Murilo Mendes: “Já várias vezes tenho sido de indiscreta impertinência com os nossos poetas católicos que, para
ao mesmo tempo se conservarem católicos e se realizarem em boa poesia, mergulham acintosamente nas
nebulosas convulsivas do misticismo. (...) que tem com isso, realizado ótima poesia, me alegro em afirmar. Mas
que hajam realizado ótimo Catolicismo já me parece bem mais duvidoso. (...) Entenda-se: não estou exigindo
que nossos poetas católicos virem versejadores de cromos para revistas paroquiais. Assusta-me verificar que,
excetuados dois ou três, a conjugação que se está fazendo de Catolicismo e lirismo não me parece sadia, não é
varrida por uma clara consciência nem por uma ideologia mística pessoal. O misticismo de tais poetas não deriva
de nenhum sistema orgânico; é, na verdade, sentimentalismo.” As novidades parecem não tão bem-vindas assim.
O mesmo ocorreu com Jesus: em referência ao texto do Evangelho de Jo 6,66 quando os discípulos o
abandonaram ao não aceitarem sua proposta. 113
Nota de esclarecimento: Para referir-me às obras de Murilo Mendes - O discípulo de Emaús (dE) e A idade do
serrote(is), utilizarei as siglas dE seguida do número do aforisma, e is seguido do número da página.
47
daquele que escreve e intimidade daquele que lê. Nessa perspectiva, escrever é socializar, e a
poesia é a possibilidade de fazer com que a lembrança individual alcance uma irradiação
infinita, irradiação que corresponde ao ímpeto de vencer a morte. Na poesia muriliana, o
anseio de “ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever” de forma
envolvente é explicado por ele como “o prazer, a sabedoria de ver chegavam a justificar
minha existência”.114
Desde menino Murilo Mendes contempla o mundo desumanizado e se solidariza com
as suas dores. A dura realidade o faz refletir, e, mais do que se sensibilizar com ela, assume a
função de denunciar o caos através da escrita, mas justifica: “o olho armado me dava e
continua a me dar força para a vida”. Enquanto outros poetas buscavam as primeiras páginas
das revistas, ele entendeu que poderia buscar a sua sustentação em Deus. “Deus passou a ser
para mim não o corregedor moral, o severo guardião da lei, mas o Ser infinitamente variado
na sua unidade (...) único ator que não repete diariamente seus papéis”. (is 172) Esse olhar do
humano como uma relação íntima com o sagrado nas obras de Murilo Mendes permite-nos
buscar extrair uma antropologia contida em sua obra.
1. – Biobibliografia sintética de Murilo Mendes
O poeta Murilo Mendes faz parte de um grupo de intelectuais que, na década de 30,
encontraram no cristianismo a resposta para a crise econômica, política e ideológica que o
mundo atravessava. Essa "conversão" deve ser compreendida não como a simples aceitação
do catolicismo, mas como a proposta de um catolicismo mais voltado para os problemas
humanos. Criado no catolicismo, Murilo, embevecido pela juventude rebelde, questionadora e
anarquista de sua época, se vê afastado da Igreja Católica, mas, graças a uma grande amizade
nos idos de 1921, retoma sua fé.
Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora (MG), no ano de 1901 exatamente
no dia 13 de maio - "dia do aniversário da Abolição da Escravatura", como ele gostava de
notar. Mal completara um ano, sua mãe, a Sra. Eliza M. de Barros Mendes, morre de parto aos
vinte oito anos de idade, em 20 de outubro de 1902. Quando tinha nove anos Murilo viu o
mundo parar pra ver a passagem do cometa Halley e, segundo ele, foi a visão do cometa que o
114
ANDRADE, Jorge. Labirinto. São Paulo: Manole, 2009. p. 75.
48
despertou para a poesia. Ele mesmo assim escreveu: “Levo uma vida secreta, começo a
ruptura com o mundo, sou tocado todos os dias pela visão do cometa Halley(...)”(is 167) e no
poema publicado em 1929, na Revista da Antropofagia, nº 14, ele demonstra a importância
desse acontecimento na sua vida:
NOVA CARA DO MUNDO
O cometa Halley vai passar
Toda cidade acorda pra ver o cometa
Ele é enorme e fabuloso
Destrói idades pensamentos de homem(...).
O cometa me traz o anúncio de outros
mundos
e de noite eu não durmo
atrapalhado com o mistério das coisas
visíveis,
No rabo imenso do cometa
passa a luz, passa a poesia, todo mundo passa!115
Murilo começou a Faculdade de Farmácia em 1916, abandonando o curso logo no
segundo ano. No colégio interno de Niterói, iniciou a atividade literária. Comunicou à família
que se recusaria a continuar estudando. Virou problema: o jovem que queria ser poeta. Ele
mesmo relata a sua decisão:
“Não revelo vocação para nenhum ofício, divirto-me em contrariar a opinião comum,
prego partidas a quase todos; padres e professores perdem a cabeça comigo. Declaro
sistematicamente que só quero ser poeta, nada mais.” (is 167)
Em 1917, Murilo vai para o Rio, para o Colégio Santa Rosa, em Niterói, de onde foge
para ver Nijinski dançar no Municipal: "Nijinski dançando no arco-íris / Reconcilia céu e
terra”, outra revelação poética. O pai e a madrasta tentaram colocá-lo em algum emprego, e
Murilo experimentou várias profissões: telegrafista, prático de farmácia, guarda-livros,
funcionário do cartório do pai, professor de francês na cidade mineira de Santos Dumont.
Tentativas inúteis. Em 1921 foi morar definitivamente no Rio de Janeiro com um irmão, que
conseguiu empregá-lo como arquivista de uma repartição pública. Colaborou com alguns
jornais e, em seguida, com a Revista de Antropofagia. Em 1930, seu pai, Onofre Mendes,
115
MENDES, Murilo. Nova cara do Mundo. Revista de Antropofagia, ano 2. nº 14, julho 1929. Disponível em:
http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/060013-24#page/1/mode/1up. Acesso em: 12.08.2013.
49
conforma-se com o destino do filho e patrocina a publicação do primeiro livro “Poemas”.
Com ele, Murilo conquista o prêmio Graça Aranha.
A década de 20 marca o início do movimento modernista, que eclode com a Semana
de Arte Moderna, em São Paulo, no ano de 1922. Murilo, já no Rio de Janeiro, tem o seu
primeiro contato com poesia modernista brasileira.116
Sem se envolver muito, o poeta admite
ter ficado sensível ao movimento: “Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com
simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o
que sempre me impediu de fazer parte de qualquer grupo”.117
Não demorou muito o pintor
Ismael Nery118
aparece na vida dele e acaba gerando uma grande influência em seu espírito
católico essencialista119
. Aliás, em 1934, foi o próprio Nery que, no leito de morte, provocou
essa reconversão em Murilo em meio a uma grande crise religiosa. Na Revista Ordem, de
fevereiro de 1935, Murilo resgata dois poemas, considerando Ismael Nery e ele próprio
portadores de “uma atmosfera única na poesia brasileira”. Murilo admite:
Ismael Nery conservou-se sempre cristão. A época em que ele viveu
era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram, na
grande maioria, agnósticos, comunistas ou comunizantes (...). A religião
parecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassada.
(...) Não era possível, sobretudo a uma pessoa de bom gosto, ser católica.
Nós todos éramos delirantemente modernos, queríamos fazer tábua rasa dos
antigos processos de pensamentos e instalar também uma espécie de nova
ética anarquista.(...) Mas (Ismael) permanecia firme na sua fé, que
considerava apoiada sobre um valor absoluto, definitivo, eterno. (...)
116
DIAS, André Luiz de Freitas & SILVA, Frederico Spada. Os arquivos de Murilos Mendes: Biblioteca e
filioteca . Disponível em: http://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero44/mmendez.html. Acesso
em: 14.05.2013. 117
FRIAS, Joana Matos. O erro de Hamlet: poesia e dialética em Murilo Mendes. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2002. p. 23. Este trabalho recebeu em 2001 o Prêmio de Literatura Murilo Mendes, categoria ensaio, concedido
pelo Centro de Estudos Murilo Mendes – UFJF. 118
Ismael Nery foi não só artista como homem de vanguarda: desenhista, pintor e arquiteto, filósofo e poeta.
Diferente dos outros artistas da Primeira Geração Modernista, ele não buscava uma identidade nacional; antes se
aproximava de valores universais, internacionalistas, de acordo com sua ideias filosóficas e místicas. Disponível
em: http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo2/modernismo/artistas/nery/index.htm.
Acesso em: 30.07.2013. O depoimento sobre a rara e fervorosa entre os dois artistas pode ser lido nos escrito de
Murilo Mendes: MENDES, Murilo & JUNIOR, Davi Arrigucci. Recordações de Ismael Nery. São Paulo:
EDUSP, 1996. 119
A arte de Ismael Nery, diz-nos Jorge Burlamaqui, “não é só uma percepção da vida pelos sentidos. A grande
produção artística deixada por Ismael obedece a um conjunto filosófico gerado de um pensamento
constantemente preocupado com o absoluto, o essencial e com a unidade”. Esse “conjunto filosófico” foi
batizado por Murilo Mendes de essencialismo. (Essencialismo: busca da essência maior de todas as coisas.
Aragem do Sagrado. Deus na Literatura brasileira contemporânea. São Paulo, Edições Loyola, 2011. p. 119).
Não é fácil, no entanto, dizer em que consiste essa filosofia. Ismael não nos deixou nada substancial escrito sobre
o tema. Dizia que “se suas ideias eram verdadeiras, haveria de se transmitir na sucessão das idades, não
importando que aparecessem com o nome dele ou de outro”. Disponível em:
http://escamandro.wordpress.com/2011/11/28/o-essencialismo-de-ismael-nery/. Acesso em: 18.04.2013.
50
Apresentava-nos o Cristo não só na sua divindade, mas também na sua
humanidade, mostrando-nos constantemente a verdade da encarnação e,
ainda, o Cristo como filósofo e modelo supremo dos poetas e artistas (...).
Pouco a pouco, apesar de nossa rebeldia e nossas indecisões, começamos a
perceber que o evangelho não era um livro remoto e superado, mas uma
fonte de vida, pois contém a doutrina d’Aquele que se declarou a própria
vida.120
A poesia da geração de 30 surgiu imbuída de grande preocupação social, e isso é
especialmente perceptível na poesia de Murilo Mendes, que analisa o destino do ser humano
como um todo. Em 1932, escreve o poema "História do Brasil". Em 1934, desenvolve temas
religiosos e, em 1935, com o poeta alagoano Jorge de Lima, escreve "Tempo e Eternidade". O
título faz referência a uma passagem bíblica, e narra um episódio de solidariedade ao Cristo.
Com esta obra, Murilo parece ter abandonado para sempre o culto do epigrama cortante121
,
que todos retinham na memória e todos os amigos do humor repetiam. Na obra vamos
encontrar, ainda, uma poesia totalmente voltada a Deus; ao contato de Deus, tudo se diviniza.
Todo o seu fervor, todo o seu grande deslumbramento vem de Deus e vai para Deus. É dali
que vem o sentido universal, amplo, envolvente e grandioso da poética de Murilo Mendes,
atento a todas as virtudes cristãs, especialmente a piedade. O coautor da coletânea, Jorge de
Lima, é conhecido como o poeta da serenidade, da majestade e do amor a Deus, o poeta do
deslumbramento divino. Em 1936, Murilo publica “O sinal de Deus”, em sintonia com os
traços religiosos já encontrados em outras obras. Couto comenta que:
O projeto cultural pessoal de Murilo Mendes, compartilhado com outros
artistas como Ismael Nery e Jorge de Lima, comporta concepções que
partem dos arquétipos bíblicos e dos dogmas católicos que, reelaborados na
poesia, são transformados em princípios de exercício crítico e alcançam a
tipificação de apostolado e de messianismo artístico.122
Na Revista A Ordem, edição de 1936, encontramos a publicação de dois poemas que
retratam essa mudança na vida do poeta:
120
NERY, Ismael. Recordação de Ismael Nery. Folha de São Paulo, Folhetim, 28.10.1984. 121
Epigrama (Grego: ἐπί-γραφὼ, literalmente, "sobre-escrever"), é uma composição poética breve que expressa
um único pensamento principal, festivo ou satírico, de forma engenhosa. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Epigrama. Acesso em: 06.08.2013. 122
COUTO, Alda Maria Quadros do. O sinal de Deus na cartografia crítica de Murilo Mendes. Tese de
Doutorado em Letras. Campinas, 1997. Disponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=000120840.
Acesso em: 08.08.2013.
51
ALPHA E ÔMEGA
Eu amo o princípio e o fim das coisas
Gostaria de estar presente no instante do FIAT
E de assistir ao mesmo tempo
A destruição do mundo pelo fogo do Espírito Santo
Eu mesmo sou o princípio e o fim
Sou a construção e a destruição ao mesmo tempo
Porque trago comigo o orgulho, a concupciência da vida
Que dá a graça e me dará um dia a Glória.
DIANTE DO CRUCIFIXO
Meu Deus, porque me fizestes junto de Ti em oposição a Ti,
Porque me criastes com o céu e o inferno dentro de mim,
Porque me fizestes nascer sobre o signo do amor ideal,
Porque me destes a sede do inatingível e do absoluto
E porque não me integraste desde o princípio,
Através dos tempos e até a consumação dos séculos,
Na Tua verdade, na Tua essência e na Tua vida!... 123
Um ano depois, escreve “A Poesia em Pânico” que recebeu aplauso de Mário de
Andrade. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão124
e, em 1947, casa-se com ela. Com
“O Visionário” (1941), Murilo retoma alguns temas já apresentados no seu livro de estreia, ao
questionar o mistério do tempo, “...que se manifesta simbolicamente na mulher, guardiã, em
seu corpo, da semente que faz brotar a vida, pois seu ventre é o depositário do passado e do
futuro, amadurecendo e se renovando a cada gestação”. Sua produção continua com “As
Metamorfoses” (1944) e “Mundo Enigma” (1945). Neste último encontra-se uma coleção de
poemas dedicados à mulher, Maria da Saudade Cortesão.
Sua primeira tentativa na prosa é “O discípulo de Emaús” (1945), composto de
algumas centenas de aforismos, em que diz: “Passaremos do mundo adjetivo para o mundo
substantivo”. É nessa época que o poeta colaborou com frequência na imprensa brasileira,
escrevendo muito sobre música, como no suplemento Letras e Artes, do jornal A Manhã.
Publicou uma longa série de artigos, intitulada Formação de Discoteca, em que revelou seu
123
Disponível em:
http://www.obrascatolicas.com/livros/Revista%20A%20Ordem/Revista%20Completa%20A%20Ordem%20Jane
iro%20de%201937.pdf. Acesso em: 01.04.2013. 124
Maria da Saudade Cortesão, filha do historiador e poeta português Jaime Cortesão (1884-1960), exilado no
Brasil por se opor à ditadura de Antonio Oliveira Salazar (1889-1970).
52
atuante e profundo conhecimento de música, além de escrever também sobre artes
plásticas.125
Em 1947, publica “Poesia Liberdade” e, em 1949, “Janela do caos”. Em 1952, faz sua
primeira viagem em família à Europa, e inicia amizade com André Breton, René Char,
Camus, Magritte126
e outros. Entre 1953 e 1956, o poeta ministra conferências em
universidades na Bélgica e Holanda. Com “Contemplação de Ouro Preto” (1954), o autor
inaugura uma nova fase em sua poesia: o reencontro com a verdade aparentemente
contraditória de que a tradição pode ser um atalho para o Absoluto. Instala-se na Itália127
(1957), aos 56 anos de idade, contratado pelo Departamento Cultural do Itamaraty para
ministrar aulas de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma e afirma-se como crítico de
arte. Com o poema “Tempo espanhol” (1959), Murilo Mendes demonstra sua paixão pela
Espanha, país onde poderia ter se estabelecido em 1956 – um ano antes de radicar-se
definitivamente em Roma – se a Espanha não lhe tivesse negado a residência no país.128
Publica, ainda em 1959, "Siciliana", texto bilíngue traduzido por G. Ungaretti, e, em 1965,
"Italianíssima: 7 murilogrammi". Com sua mulher, a também poeta Maria da Saudade
Cortesão, recebe escritores, artistas, cineastas e intelectuais em seu apartamento da Via Del
Consulato. Muitos deles serão evocados por Murilo em seu “Retratos-relâmpago” (1973).
Mas, afinal, o que o poeta pretendia encontrar na Europa? Vejamos o que diz Fiorezi:
Exatamente as sombras amadas de tudo aquilo que leu, de toda a sua
formação, notadamente francesa. Ele espera encontrar tais sombras
amadas de toda tradição literária, na qual vai se iniciar em seu período
de formação, ainda em Juiz de Fora, e com a qual vai ter contato
125
GILFRANCISCO. Murilo Mendes: Um poeta visionário. Disponível em:
http://www.germinaliteratura.com.br/literaturagfesp_agosto2006.htm. Acesso em: 01/05/2013. 126
André Breton foi um escritor francês, poeta e teórico do surrealismo. 1896-1966, Paris-
França.Obras: Nadja, Manifesto do surrealismo; René Char foi um poeta francês, inicialmente ligado ao grupo
surrealista de Paris, tendo publicado livros em coautoria com alguns destes, como Ralentir Travaux, com André
Breton e Paul Éluard.1907-1988. Paris, França; Albert Camus, foi um escritor, romancista, ensaísta, dramaturgo
e filosofo francês nascido na Argélia. Foi também jornalista militante engajado na Resistência Francesa e nas
discussões morais do pós-guerra. 1913-1960, Villeblevin, França; René François Ghislain Magritte foi um dos
principais artistas surrealistas belgas, ao lado de Paul Delvaux, 1898-1967, Lessines, Bélgica. Obras: The Son of
Man, La trahison des images, Golconda. Disponível em: http://pt.wikipedia.org. Acesso em: 14.07.2013. 127
LUCAS, Fábio. Murilo Mendes: poeta e prosador. São Paulo: EDUC, 2001. “Lírico e prosador
revolucionário de poéticas fortes e chocantes, foi homem de gestos e corajosos e ousados. No dia da entrada das
forças alemãs na Áustria, telegrafou a Hitler protestando em nome de Mozart. E, ao chegar a Roma, declarado
persona non grata pela Espanha, quando o Brasil já mergulhara no pântano da ditadura militar, levantou um
brinde ao fim de todas as ditaduras”. 128
SCHWARTZ, Jorge. Da antropofagia Brasil, 1920-1950. Museu de Arte Brasileira. São Paulo. p. 157-158.
53
através de alguns artistas europeus que conhece no Rio de Janeiro,
como Vieira da Silva, Arpade Arsenes, entre outros.129
O poeta retorna às suas origens no livro “A idade do serrote”, escrito entre 1965 e
1966, e publicado em 1968. Em 1970, publica “Convergência”. Conforme Santos, “na obra,
percebe-se um diálogo que abarca as obras anteriores do poeta em um processo intratextual e
intertextual com os escritores e artistas de diferentes épocas do ocidente e do oriente e com
pessoas queridas”.130
Como um poeta que busca inovar, Murilo escreve “Poliedro” (1972).
Menezes destaca que nesta obra, “além de variadas memórias e citações de outros autores, o
poeta se reinventa biograficamente por meio de seus animais”.131
Em 1972, Murilo recebe o
Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina, o maior concedido a um poeta na Itália. Neste
mesmo ano Murilo Mendes fez a última visita ao Brasil, após 17 anos de ausência. Fioreze
acrescenta que Murilo, além da sua vida modesta, com enormes dificuldades financeiras, no
Rio de Janeiro, viajava pouco, ou seja, “seus deslocamentos eram restritos a uma pequena ida
à Bahia, a algumas estações em Petrópolis e a uma permanência um tanto desagradável em
Juiz de Fora”. O ano de 1972 foi igualmente importante para o poeta, pois é o ano que
coincide com a publicação do livro de Laís Corrêa de Araújo132
dedicado à obra muriliana.
Era um bom motivo para reerguer o ânimo do poeta uma vez que um sentimento de angústia
tomava conta dele, pois esperava ver publicada a sua obra completa no Brasil, onde seu nome
caíra no esquecimento. Seu desejo era de que a Imprensa Oficial de Belo Horizonte viesse a
editar seus poemas.133
Por iniciativa do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, sai a
primeira série do livro “Retratos-relâmpago” (1973); a segunda série seria publicada no ano
da morte do poeta. Murilo Mendes veraneava em Portugal, na casa de seu sogro Jaime
Cortesão, quando, em 13 de agosto de 1975, acometido por uma fulminante síncope cardíaca,
falece em Lisboa, cidade descrita em seu livro “Janelas verdes” (1989), publicado
postumamente, como "consabidamente bela”.
129
FIOREZI, Fernando In: Murilo, Cecília e Drummond 100 anos com Deus na poesia brasileira. São Paulo:
Edições Loyola, 2004. p. 108. 130
SANTOS, Rita de Cassi Pereira dos. Diálogo Poético. In: Revista do Grupo GT Teoria do texto Poético, vol.
9, 2010. Disponível em: http://www.textopoetico.com.br. Acesso em: 08.08.2013. 131
MENEZES, Felipe Amaral Rocha de. Animais biográficos: um estudo de Poliedro, de Murilo Mendes.
Dissertação de Mestrado em Letras, Minas Gerais, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/ECAP-
867M3U. Acesso em: 08.08.2013. 132
Poetisa, escritora e jornalista Laís Corrêa de Araújo Ávila, além de artigos de crítica literária, publicou um
livro de ensaios sobre o poeta Murilo Mendes, com quem manteve intensa correspondência. Faleceu em Belo
Horizonte, aos 78 anos. Enciclopédia Itaú Cultural Literatura Brasileira. Disponível em: http://itaucultural.org.br.
Acesso em: 14.04.2013. 133
Murilo Mendes: Modernista desarticulado. Disponível em: http://www.terra.com.br/tremdeminas/murilo.htm.
Acesso em: 01.04.2013.
54
Deixou mais de vinte livros publicados em português, italiano e francês, bem como
uma vasta biblioteca e uma importante coleção de arte, coleção preciosa, nascida toda da
amizade e do convívio com grandes artistas brasileiros e europeus. Uma parte desses arquivos
- livros e obras de arte - encontra-se no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes (MAM),
criado pela Universidade Federal de Juiz de Fora para abrigá-los.
No ano de 1977, dois anos após a morte de Murilo Mendes, a Universidade Federal de
Juiz de Fora recebeu a biblioteca do poeta, composta de mais de 2.800 volumes das mais
diversas áreas (literatura, artes plásticas, música e filosofia), pelas mãos de sua viúva Maria da
Saudade Cortesão Mendes, fazendo cumprir o testamento do poeta, que destinara seu acervo
pessoal à instituição. O acervo de artes plásticas do escritor, proveniente da Fundação
Calouste Gulbenkian, de Lisboa, só em 1994 veio para Juiz de Fora, por interferência do
governo brasileiro, constituindo, então, o Centro de Estudos Murilo Mendes (CEMM),
abrigado na casa onde o poeta nascera e passara a infância e parte da adolescência.134
1.2 - Murilo Mendes e a linguagem religiosa
Linguagem é o sistema através do qual o homem comunica suas ideias e sentimentos,
seja através da fala, da escrita ou de outros signos convencionais.135
Religiosa: adjetivo de religião (do latim religio, -onis: re-ligar ou ligar novamente), é
conjunto cultural susceptível de articular todo um sistema de crenças em Deus ou num
sobrenatural, e um código de gestos, de práticas e de celebrações rituais.136
Para Finley, “a linguagem religiosa tem um propósito específico: possibilitar que as
pessoas conversem sobre a experiência religiosa humana, em particular, para os cristãos (...),
para que falemos dos mistérios centrais da fé cristã”.137
Finley acrescenta, ainda, que “a
134
DIAS, André Luiz de Freitas & SILVA, Frederico Spada. Os arquivos de Murilos Mendes: Biblioteca e
filioteca Disponível em: http://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero44/mmendez.html. Acesso
em: 14.07.2013. 135
Revista de estudos literários, 2010. Disponível em: http://www.significados.com.br/linguagem. Acesso em:
02.06.2013. 136
BARBOSA, Leila Maria Fonseca & RODRIGUES, Marisa Timponi Pereira. Arte e Espiritualidade – O
discurso religioso na obra de Murilo Mendes. Revista Magis Cadernos de Fé e Cultura, nº 04, 1995, Centro
Loyola de Fé e Cultura. Disponível em: http://www.clfc.puc-rio.br/pdf/fc04.pdf. Acesso em: 05.03.2013. 137
FINLEY, Mitch. O que a fé não é. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 8.
55
linguagem religiosa pode tanto revelar como esconder; ela é tudo que dispomos para falar de
Deus e da experiência religiosa”. No parágrafo 40, do Catecismo da Igreja, encontramos a
afirmação:
Como nosso conhecimento de Deus é limitado, também é limitada nossa
linguagem sobre ele. Só podemos falar de Deus tomando as criaturas como
nosso ponto de partida, e segundo nosso modo humano limitado de conhecer
e pensar.138
Nas obras de Murilo Mendes a linguagem religiosa cristã é sempre recorrente.
Percebe-se, em grande parte dos seus poemas, a inspiração no Verbo de Deus Encarnado, de
quem apreende a Poesia Máxima.139
Não é de se estranhar que as poesias do período de 1930-
1950 buscavam expressar, de forma mais densa, a verdade humana ou social de cada artista,
fato que levou alguns poetas modernos a entenderam a arte de fazer versos como uma
atividade de caráter religioso, conferindo à poesia a temática religiosa, especificamente a do
pensamento cristão-católico.
É célebre a afirmação de Manuel Bandeira ao apreciar as poesias do autor de “As
Metamorfoses”: “Murilo Mendes é um dos quatro ou cinco bichos-de-seda da nossa poesia,
isto é, os que tiram tudo de si mesmos.”140
A aproximação de Murilo com o Cristo
companheiro e o Cristo da Escritura deixa entrever em seus poemas o interesse em aprender
do Cristo o Caminho e a Vida. Para Murilo, “O espírito de Emaús é o espírito de
companheirismo com o Cristo” (dE 746), e “Ser amigo é repartir a vida” (dE 746). Desta
forma, em seus poemas, ele expõe o que experimentou ao aprofundar no conhecimento da
Escritura: “A vida da Escritura consiste Nele (na pessoa de Cristo), desde a primeira palavra
do Genesis até a última do Apocalipse”. (dE 232)
“Tirar tudo de si mesmo” faz alusão ao Cristo Crucificado na experiência de
esvaziamento para servir mais a Deus. Murilo é um poeta que, na busca da Verdade, de poeta
essencialista para católico convertido e fervoroso, se encontrará criando uma nova linguagem
religiosa – a poesia com profundos traços antropológicos e religiosos. Ele fala a partir da sua
experiência e da sua visão de mundo para o homem moderno, e muitos se identificarão com
138
Cat., 40. 139
SILVA, Francis Paulina In: MORI, Geraldo De., SANTOS, Luciano., & CALDAS, Carlos.(orgs.). Aragem do
Sagrado. Deus na Literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 115. 140
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da Poesia Brasileira In: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1990. pp. 630-631.
56
esse novo jeito de olhar a pessoa no mundo, porque de certa forma ele fala a partir da pessoa
nas suas mais diversas realidades, conforme afirma Rodrigues141
:
A obra de Murilo Mendes é composta de prosa poética e de versos, sendo,
pois, uma obra literária. E literatura é uma prática através da qual o homem,
como indivíduo, realiza sua necessidade de permanência, de imortalidade.
Nela, ele se coloca por inteiro, em toda sua complexidade, ao elaborar o
texto, o tecido, a tecitura que pressupõe os vários fios - sociológicos,
ideológicos, históricos, filosóficos, estruturais, religiosos - que constituem a
unidade Homem.
Ao destacar alguns aspectos da vida e das obras de Murilo Mendes percebemos que há
neste autor, poeta, brasileiro, mineiro, católico, ou como ele mesmo afirmou em
“Microdefinição do autor”: “dentro de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um
indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador”, uma preocupação com a pessoa
e sua relação com o mundo. Essa relação interessa à presente pesquisa, que busca perceber na
poesia de Murilo Mendes a mística cristã a partir da Antropologia.142
O tempo de convivência de Murilo com a mística católica culminou na morte de
Ismael Nery, e na conversão de Murilo a um catolicismo entusiasta e messiânico143
, disposto a
“restaurar todas as coisas em Cristo”, como o próprio Murilo se propunha em “Tempo e
Eternidade”. A religiosidade na obra do poeta divide espaço com uma temática cósmica,
social e mística. A figura do poeta como testemunha de Deus ecoa no poema. Murilo se
reconhece como da “raça do Eterno”:144
Eu sou da raça do eterno
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim órfãos de poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.
(Filiação)
141
RODRIGUES, Marisa T.P. & BARBOSA, Leila M.F. Revista Magis Cadernos de Fé e Cultura, nº 04, 1995,
PUC/RIO. In: O Discurso Religioso na Obra de Murilo Mendes. Disponível em: http://www.clfc.puc-
rio.br/pdf/fc48.pdf. Acesso em: 14.03.2013. 142
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 93. 143
SILVA, Francis Paulina In: MORI, Geraldo De., SANTOS, Luciano., & CALDAS, Carlos.(orgs.). Aragem do
Sagrado. Deus na Literatura brasileira contemporânea. p. 115. 144
SILVA, Rosana Rodrigues da. Tempo e Eternidade: a poesia religiosa de Jorge de Lima e de Murilo Mendes.
In: Revista de Estudos Literários Terra roxa e outras terras. Vol. 3.2003. p. 120. Disponível em:
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol3/vol3_te.pdf. Acesso em: 15.04.2013.
57
Aparentemente hermético Murilo Mendes é um dos nossos poetas que viveram em
comunhão mais estreita com o mundo, com as variações sociais, políticas e morais do tempo.
Esta era uma das características de seu trabalho desde “Poesia Liberdade” (1943-1945),
publicada em 1947. Nesse livro, Murilo Mendes apresenta duas séries de poemas enfeixados,
que testemunham e refletem o que houve de mais terrível nesses dois anos: a guerra e as
decepções provenientes dos efeitos da própria guerra e da paz ainda longínqua. Murilo sabe
que a função do poeta é a de ser aquele ouvido resistente que poderá perceber “o choque do
tempo contra o altar da eternidade”145
.
Bosi afirma que “Murilo perfura a crosta das instituições e dos costumes culturais”146
para irromper a linguagem religiosa que de tal modo se configura como sua linguagem
poética. “A poesia pode favorecer a mística e ajudar na comunicação espiritual, que não se
transmite através de conceitos”147
comenta Manzatto, e, neste caso, Murilo Mendes expressa
sua mística religiosa numa linguagem mística, que é também poética. À afirmação de Bosi de
que “a linguagem religiosa faz a ligação do homem com sua totalidade”,148
complementamos
afirmando que religião, mística e poesia contribuem para que a pessoa enxergue o humano na
sua totalidade. Quando esses elementos se separam, deixam de prestar um serviço ao
individuo e à coletividade. Muito mais que isso, nem a religião, nem a mística e nem a poesia
existem para afastar a pessoa do real; quando a afastam, existem problemas. Para Murilo,
deixar de promover a profunda relação entre mistério e vida partindo do cotidiano, das crises
e dos questionamentos é romper com a possibilidade de uma dimensão nova de abertura das
pessoas entre si, com o mundo e com Deus.
2. - Em Murilo Mendes, vida e poesia caminham juntas
“Se não nos elevamos, o peso do mundo nos esmagará.”
A poesia de Murilo Mendes, com características do cristianismo, mantém-se de mãos
dadas com a realidade. Em 1945 torna-se visível a aproximação do poeta com a passagem
145
MENDES, Murilo. Poesia Liberdade. Rio de Janeiro: Agir, 1947. 146
BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 447. 147
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teologia contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 77. 148
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. p. 447.
58
neotestamentária do evangelho de Lucas. Murilo Mendes escreve o poema “Emaús” e a obra
“O discípulo de Emaús”, deixando transparecer que faz experiência semelhante à relatada no
texto bíblico em que aquele forasteiro, que vai abrindo os ouvidos e depois os olhos, se toma
como o discípulo de Emaús.149
Para Yunes: “O discípulo vai resgatar o ‘espírito de Emaús’
para poder pensar o mundo moderno, as relações entre arte, poesia, pintura, música, dança,
arquitetura e a fé, a Igreja católica, a vida material e a eterna, principalmente”.
Escrita em prosa, a obra O discípulo de Emaús, através de suas comparações, indica
mais semelhanças que diferenças entre o religioso cristão e o poético. Murilo Mendes
demonstra que o caminho proposto pelo Cristo é o que há de melhor a ser anunciado e a ser
seguido. Para ele, “o espírito de Emaús é o espírito de companheiro com o Cristo” (dE 234):
O espírito de Emaús é o contrário do espírito de gabinete e de laboratório: é o
espírito antitécnico, de desprendimento, de improvisação e de fraternidade no essencial.A
vida poética pela contemplação das obras divinas, pelo aprofundamento das Escrituras, o
companheirismo a céu aberto, o pão eterno, uma posta de peixe e um favo de mel. É o
complemento e a plenitude do espírito do Sermão da Montanha, o mais alto e perfeito
exemplo de vida poética jamais proposto aos homens.
Benício comenta que “o espírito de Emaús, contrário a todo academicismo, foi o que
inspirou Murilo Mendes a escrever O discípulo de Emaús” 150
. Fomentando em seu artigo um
diálogo entre Jesus Cristo e Murilo Mendes, apresenta-nos o poeta como “essencialmente
cristocêntrico, declarando-se eternamente seduzido pela humanidade do Filho de Deus”, ou
seja, assumindo uma vida poética compatível com a teologia.
Murilo encontra sentido no entrelaçamento das relações dos diversos “mundos” e,
principalmente, no que se refere à religião. Esta não deve ser estanque, mas relacional, a fim
de contribuir excepcionalmente com o desenvolvimento da pessoa, do contrário: “Os que
persistem em considerar a religião, a arte e a ciência como compartimentos estanques pouco
avançarão no conhecimento do universo”.(dE 562)
149
YUNES, Eliana. (org.). Murilo, Cecília e Drummond. 100 anos com Deus na poesia brasileira. p. 101. 150
BENÍCIO, Paulo José. Cristo e o discípulo de Emaús. In: Fides Reformata6/1.2001. Disponível em:
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_VI__2001_/Benicio.pdf. Acesso em:
01.04.2013.
59
2.1 – Questões de fé na Arte
Nas poesias de Murilo Mendes, especialmente a partir da sua conversão ao
catolicismo, verificamos muitos relatos de uma vivência religiosa, ou ao menos de um
interesse por questões da fé, porém, como afirma Junior: “Os modos murilianos de
representação do sagrado não se fazem convencionais, uma vez que divergem daquilo que
está colocado pelo discurso religioso tradicional”.151
Junior acrescenta: “nota-se que o poeta não quer formular respostas religiosas”152
, fato
que identificamos em suas poesias, porém, ao resgatar aspectos contemporâneos, o poeta
ressalta alguns elementos fundamentais para a Teologia:
o cristianismo,
a Igreja,
o Reino de Deus,
o mundo moderno,
a aceitação da cruz de Jesus,
a criação,
Filiação – Deus-Pai,
A relação humano e sagrado,
Palavra de Deus,
A teologia
Percebe-se que há um esforço entre irromper através das palavras a busca da
humanidade para encontrar a mensagem do evangelho que, segundo ele, “antes de ser escrito
foi encarnado, vivido, sentido, anunciado, crucificado e ressuscitado” (dE 547) mas que
continua indecifrável. A resposta para a pergunta fundamental que tantos ainda hoje fazem:
“Onde encontrar o Cristo?” (dE 745), para o poeta, “está no Cristianismo, que ultrapassou
qualquer doutrina, para ser o caminho, a verdade e a vida”. (dE 201) Para ele, a modernidade
é tida como uma perda de referencial do sagrado, e, portanto, uma perda da ação do bem. Para
151
JUNIOR, Edson Munck. A heterodoxia muriliana na dança com o sagrado. Anais da III Jornada Interna do
PPG Letras: Estudos Literários da UFJF, realizada na Universidade Federal de Juiz de Fora de 05 a 09 de
novembro de 2012. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina/files/2013/04/do.pdf. Acesso em: 17.07.2013. 152
JUNIOR, Edson Munck. A heterodoxia muriliana na dança com o sagrado.
60
Murilo, “o mundo moderno perdeu a crença no Espírito Santo e no mal. Por isso a ação do
primeiro sofre constrangimento, e o segundo pode operar à vontade”. (dE 205)
Merquior153
salienta que a ética da caridade, que permeia toda a poesia de Murilo
Mendes e que está presente na mensagem do cristianismo, é tão atual hoje como foi nos
tempos de Jesus. Trata-se de uma ética que vê os indivíduos como dependentes uns dos outros
e, sendo assim, impossibilita pensar nos “outros” como estranhos. O crítico salienta que nossa
sociedade “planetária” não admite (ou não deveria admitir) qualquer visão que rejeite o outro.
Como dependentes uns dos outros, somos impelidos a tratar o outro como semelhante.
A temática do reino de Deus presente na obra de Murilo demonstra que a experiência
pessoal é condição para um alcance coletivo: “se o reino de Deus não estiver em cada um de
nós, não poderá estar na coletividade”. (dE 287). Como um cristão convertido não se exime
de expor abertamente através de sua poesia a missão do Cristo, para ele, “O Cristo veio
anunciar a caridade e a justiça individual, social e cósmica”. (dE 238)
No artigo intitulado O Discurso religioso na obra de Murilo Mendes154
, Marisa
Rodrigues e Leila Barboza afirmam que a religião, para o menino Murilo, não era quase
nunca carregada de repressão ou terror, mas doutrina forte e plena de ensinamentos
proveitosos para sua vida. É na obra “A idade do serrote” que Murilo expressa sua relação
com o culto: “Não topo o culto de São Luís de Gonzaga, modelo suave demais proposto aos
alunos; de resto, o padre Julio Maria já me imunizara contra e pieguice e o
sentimentalismo”.(is 53 )
Interessante acrescentar o que Manzatto expõe: “Podemos identificar aqui um real
campo de interesse da literatura para a teologia, até porque as referências fundamentais da fé
cristã estão afirmadas através de um procedimento eminentemente literário”.155
Também para
os poetas e místicos, a palavra é o singular instrumento, afirma Teixeira156
, e apresentam-se
indícios muito fortes nos poemas de Murilo Mendes de que a sua linguagem poética quer
153
MERQUIOR, José Guilherme. Notas para uma muriloscopia. In: Murilo Mendes poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 154
RODRIGUES, Marisa T.P. & BARBOSA, Leila M.F. Revista Magis Cadernos de Fé e Cultura, nº 04, 1995,
PUC/RIO. In: O Discurso Religioso na Obra de Murilo Mendes. Disponível em: http://www.clfc.puc-
rio.br/pdf/fc04.pdf. Acesso em: 10.04.2013. 155
VILHENA, Maria Ângela & MARIANI, Ceci Baptista. Teologia e Arte. Expressões de transcendência,
caminhos de renovação. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 90. 156
TEIXEIRA, Faustino. O mistério e a Palavra, In Poesia Sempre. N. 31. p. 9.
61
comunicar uma realidade que ele mesmo experimentou: ele “deixou-se conduzir para as
coisas do alto”157
, acenando para uma visão de mundo além do que ele viveu na carne. Murilo
“viveu na carne” essa experiência tumultuada quando entendeu que Deus quer muito mais que
uma religião sentimentalista: Deus quer atitudes e chama cada pessoa a experimentar a alegria
e a vida que Ele oferece.
2.2 – Mística em comunhão com a Vida
A poesia de Murilo Mendes ainda na juventude retrata a inquietude que conclama
mentes e corações para reconhecer a vívida presença de Deus entre os homens, um sentimento
tão intenso que o poeta se sente comovido e busca na poesia a forma de expressar de maneira
absolutamente nova esse mistério.
Murilo Mendes, ao escrever "A idade do serrote", seu livro de
memórias, vai resgatar a sacralidade na medida em que busca a
restauração de forças exauridas, recupera a pureza de sua infância e
adolescência, utiliza o lúdico e tudo aquilo que se reveste de
felicidade. O sagrado é uma categoria da sensibilidade sobre a qual
repousa a atitude religiosa.158
A experiência mística cristã não é desligada da história e convoca a pessoa a assumir
um compromisso de solidariedade para com os pobres, assim como o próprio Jesus. Implica
no compromisso de transformação social, e a partir desta prática podemos afirmar que o
místico é por natureza um inquieto, um angustiado profético, subversivo diante de qualquer
compromisso que esvazie a totalidade da vida.
Em sua obra “A idade do serrote”, Murilo Mendes apresenta-nos a pessoa como “ator
teológico”, ou seja, aquele que faz da compreensão da fé não apenas uma obrigação, mas uma
busca incessante do Deus que se revela a cada um. A linguagem mística brota de uma
experiência particular, mesmo assim Murilo, em suas poesias, busca comunicar a experiência
contida na alma. Nesta obra “A idade do serrote”, faz o resgate da sua trajetória poética. Na
autobiografia muriliana, destaca: as lembranças da meninice; a saudade da mãe; a afeição pela
157
CRUZ, São João da. Poema “Noite escura” In TEIXEIRA, Faustino. O mistério e a Palavra. In Poesia
Sempre. N. 31. p .9 158
YUNES, Eliana. Dimensões da fé na Poesia Modernista Brasileira. In: Teoliterária. v1 n. 1, 2011. Disponível
em: www.teoliteraria.com.br. Acesso em: 15.05.2013.
62
segunda esposa de seu pai; a ternura da família; os costumes da terra mineira; a religiosidade,
que lhe foi comunicada na mais remota idade; a passagem do cometa Halley, que marca
profundamente a alma do menino, como momento epifânico da poesia; a adolescência
rebelde.
A grande parte dos capítulos desta obra recebe como título o nome de pessoas com as
quais Murilo Mendes teve algum tipo de relação e que, de alguma forma, contribuíram para
seu percurso existencial, semelhança possível com os livros bíblicos sagrados intitulados com
nomes próprios de pessoas que marcaram a vida do povo da Bíblia e se comprometeram com
o projeto de Deus.
Importante relação se observa porque, ao falar do outro, o autobiógrafo fala de si
mesmo, ou seja, o outro é um espelho: desvelando o outro, desvela-se a si mesmo. Outro
aspecto diz respeito à importância do outro no percurso poético de Murilo Mendes. Não resta
dúvida de que o amadurecimento do sujeito se dá no contato com o outro; esse processo fica
evidente na organização do relato. A aproximação entre o que nos sugere a obra muriliana e
os objetivos da Teologia nos remete à Revelação. Deus, ao se revelar ao humano, mostra um
caminho de vida. O contato com os textos bíblicos leva o leitor a compreender algo maior que
ele mesmo, ou seja, conhecendo a Deus, ele conhecerá a si mesmo.
No poema Dudu, o poeta faz uma aproximação com a parábola do Bom Samaritano
em Lc 10,25-37. Ao sair para passear, o pai encontra um mendigo ameaçado por três
meninões. O pai de Dudu, o senhor Onofre, liberta e adverte os agressores: “Tratem de
respeitar o próximo, estão ouvindo? Este homem, como vocês, como qualquer outro, foi
criado à imagem e semelhança de Deus”.(is 34)
A preocupação do autor visa à transformação do ser humano. Do ponto de vista
antropológico, a poesia de Murilo Mendes apresenta a denúncia de uma sociedade que trata o
ser humano com profundo descaso:
O destino e a sociedade reduziram Dudu ao estado vegeto animal. Não chega a ser um corpo,
não chega a ser uma fisionomia; é um resto de pessoa, um resto de roupa, um resto de nome. Saberá
ler? Não, a fome é sempre analfabeta.(is 34)
63
Dudu como personagem, pode ser relacionada com a figura de tantos homens e
mulheres a quem o destino lhes reservou uma vida ingrata. Murilo chama a atenção em sua
poesia que a vida das pessoas não poderia jamais estar reduzida ao estado vegeto animal e
reflete sobre o mundo em caos, onde seres iguais, semelhantes a Deus, recebem tão diferentes
destinos. Para o poeta, independentemente da nacionalidade, os pobres, os loucos e os
desvalidos ocupam uma posição marginal.
O poeta presenciou a morte de muitas pessoas queridas, e essas perdas o levaram a
refletir sobre o sentido da vida e da morte. No poema Claudia, ele conta: “Era a terceira
maravilhosa morta em minha vida; depois de minha mãe e de Prima Julieta”.(is 66).
Acrescenta Murilo:
A morte de uma pessoa amada não só nos confronta com o absoluto, como nos
fornece uma experiência antecipada da nossa própria morte. O choque então recebido
provém de que passamos da comunidade com a vida à comunidade com a morte. (dE 608).
Murilo utilizou-se de nomes de pessoas para compor “A idade do serrote”, e uma das
exceções nesta obra é o titulo A Lagartixa. O poeta questionou-se diante da lagartixa: “Que
brinquedo propor à lagartixa? A lagartixa não tem mãos como as nossas. Além disto, trata-se
de uma anarco-individualista: nunca vi lagartixas em bando; magnificamente só”. (is 109) Ao
falar da lagartixa relembra sua infância, assim como muitos de seus poemas. Ao mesmo
tempo nos faz pensar no individualismo de pessoas-lagartixas que se encostam a pedras ou
caminham isoladas.
Ao relatar como vê a experiência do mistério divino no humano, Murilo Mendes
expressa um sentimento de intimidade e de encanto em relação a Deus, e contagia o leitor
com a alegria dessa descoberta. Mais que isso, com sua obra, descortina um panorama para se
pensar a Revelação a partir do humano, e este movimento impulsiona quem o lê a também
buscar redescobrir o significado de ‘ser humano’ no mundo. A Escritura Sagrada afirma que é
no humano que Deus se revela, por este motivo compreendê-lo bem é exigência para se
compreender a Revelação.159
Para a obra muriliana, falar da criação e da presença de Deus é
159
“A própria revelação cristã, que nos fala de Jesus Cristo como o Filho de Deus encarnado e de nosso encontro
com Ele na fé, pressupõe um conhecimento e uma experiência do que significa ser humano como sujeito livre e
64
revelar um Deus livre, criativo, presente e apaixonado pelo ser humano, e que, através deste
humano, se revela. Este aspecto permite-nos afirmar que “o humano expresso pela literatura
poderá ser, então, o revelador de Deus, e a teologia que daí decorre se constituirá em relação
com o literário”.160
3 – A religiosidade na arte de Murilo Mendes
De resto penso que fomos feitos para pesquisar o que existe de humano em
Deus e de divino no homem.(is 65)
Como vimos, a poesia de Murilo Mendes é a expressão da experiência interior do
sujeito. É uma força que vem de dentro, revelando sentimentos e uma mistura de impulso
humano com o que ele, Murilo, herdou da educação religiosa. A relação humana confunde-se
com o mistério divino. Para o poeta, a religião promove a ligação entre o homem e Deus,
entre a vida humana e a vida eterna.
Educam-me na religião católica, aos seis anos meu pai e o catequista transmitem-me uma
informação fundamental, todos os homens são filhos do Pai celeste, iguais diante dÊle, irmãos,
remidos pelo sangue do Cristo,sem diferença de raça, credo, classe ou ideologia, mais tarde leio
bibliotecas sobre religião cristã e outras, nenhuma doutrina me pareceu tão atual como aquela;(...)
(is 52)
Do pai, Murilo recebe desde criança diversas lições. É orientado, por exemplo, para o
respeito à opinião de pessoas de outras crenças, sem exceção, seja “um ateu, um positivista,
um maçom, um espírita”. A prática de “assistir diariamente à missa sem entender o rito”(is
52) fazia com que o menino ficasse pensando em outras coisas – ironiza ele: “até hoje! depois
de instruído em liturgia” costumava dizer. Ficava observando as decorações da capela,
“figuras inspiradas no profeta Ezequiel, quatro rostos juntos, quatro asas, rodas, animais,
línguas de fogo, triângulos, há também peixes(...)” A luta contra a dispersão dos pensamentos
tinha lá suas razões e ele conferia análises aos detalhes que considerava ‘perturbadores’:
o anjo da guarda é nosso cúmplice ou dorme muito: aos domingos suporto melhor a
obrigação do rito(...) celebro então a glória de Deus(...) detesto a música dita religiosa,
responsável por si mesmo”. LADARIA, Luis. F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Edições
Loyola, 1998. p. 12. 160
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 41.
65
antigregoriana, em particular o cântico delambido “com minha mãe estarei”; aprovo o incenso que
entretanto às vezes me enjoa; admiro as roupas litúrgicas(...)(is 53)
Murilo Mendes repugnara a ideia de uma religião sentimentalista, vazia e desligada da
realidade. Os padres citados em “A idade do serrote” deixam rastros importantes no
aprendizado de Murilo Mendes, motivo pelo qual ele os cita em suas recordações. O primeiro,
O padre Matias, redentorista alemão de alta estatura, arregaça a batina para vir à casa do
meu pai na rua alagada. Afirma Teixeira que Padre Matias “ligado ao arco-íris de após o
temporal, seria o mediador entre o céu e a terra”.161
Outro é Padre Alberto, que surge no relato da morte de uma pessoa muito querida da
família, Sebastiana. No poema que leva o nome da mulher, Murilo relembra que “Sebastiana
morre cercada pela nossa família, seu corpo vira um jardim(...)”. Padre Coelho é citado como
aquele que é desafiado por “Amanajós, bêbado, grandão, sinistro,(...) Tem muitos apelidos:
lobisomem, bode, cachorrão, flagelo de Deus; já que usa voz atenoarada, alguns também
chamam-no o tenor da cachaça”. (is 26)
No poema “Julio Maria”, Murilo deixa-nos uma fugaz impressão de que o poeta tenta
justificar tal relevância desta figura religiosa e pública na sua iniciação ao religioso: “O Padre
Julio é um dos personagens mais presentes à memória reconstituída da minha infância e
adolescência”:
O padre Julio Maria servira-me o vinho forte, desmamando-me para sempre da elite de uma
religião afeminada e frouxa. Comecei aos poucos a compreender que a fé não nos traz o descanso,
mas sim uma inquietude que somente cessará no último dia. Ou quem sabe nos sobreviverá? (is 45)
Murilo Mendes retoma a lembrança da religião em que foi educado desde criança e
confessa que “repugna a ideia de Deus como uma espécie de cabide onde pendurar nossos
problemas”. (is 53) Interessante notar a visão de Deus e de religião que o autor apresenta: um
cristianismo incapaz de responder aos problemas humanos. O poema “Julio Maria” parece ser
uma forte denúncia do que lhe representava a religião católica:
(...) o padre Julio Maria saboreava o café despedindo raios contra certos colegas acusados de
deformar a religião, contra o beatério, os políticos, o governo. Abominando as figurações correntes
do Cristo meigo Nazareno e da virgem moça pálida de olheiras vestida sempre de azul ou cor de rosa,
161
TEIXEIRA, Elisângela Rodrigues. O poeta Murilo Mendes na revelação autobiográfica de A idade do
serrote. Tese para Mestrado em Letras na Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Agosto/2005.
Disponível em: http://www.ppgletras.furg.br/disserta/elizangelateixeira.pdf. Acesso em: 13.01.2013.
66
o padre desenhava de maneira forte a fisionomia dessas pessoas sagradas, com as citações do Novo
testamento; além dos Evangelhos, apoiava-se nas epístolas de São Paulo e no Apocalipse. Condenava
certos teólogos que a partir da Reforma alteraram a versão do Cristo e da Virgem como a Escritura
nos propõe. (is 43)
De fato, em relação à Virgem Maria, que, segundo Murilo, ela “é o maior teólogo” (dE
395)162
, a Encíclica Marialis Cultus do Papa Paulo VI nº 37 reconhece que “ Maria é uma
mulher forte, que conheceu de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio”. A Encíclica
ainda convoca a “mulher contemporânea desejosa de participar com poder de decisão nas
opções da comunidade” a observar o exemplo de Maria de Nazaré que:
Apesar de absolutamente abandonada à vontade do Senhor, longe de ser uma
mulher passivamente submissa ou de uma religiosidade alienante, foi, sim,
uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador dos humildes
e dos oprimidos e derruba dos seus tronos os poderosos do mundo.163
A relação com Deus e com o sagrado, em Murilo Mendes, vai se desenvolvendo por
meio de pessoas inseridas no catolicismo e outras não. Os diversos ensinamentos que recebera
da própria família, por meio de exemplos do pai, da mãe e de pessoas que se preocupavam
com o próximo, muda a espiritualidade do menino para uma espiritualidade encarnada. E seu
compromisso com a religião torna-se bem cedo muito mais do “simplesmente” ir à missa. Ele
relembra Padre Julio repudiando a atitude de beatas que permaneciam na Igreja mesmo após o
término da missa:
Chega de reza, vão para casa trabalhar, vão tratar de seus maridos, de seus filhos, de quem
precisar de assistência: esta é a melhor maneira de servir a Deus. Rezar quer dizer ajudar o próximo.
(is 44)
A força mística contagiante relatada por Murilo demonstra uma espiritualidade
desinstaladora que também para ele irrompeu como uma novidade: “O sermão abriu um
caminho de fogo no meu espírito: comecei a perceber a grandeza, a virilidade de uma religião
que suscita ao longo da história as questões mais altas e dramáticas”. (is 45)
Padre Julio pregava o juízo final e a Segunda vinda de Cristo e foi, para Murilo, o
inaugurador do elenco de homens que o fariam enxergar a substância do catolicismo vivo:
162
MENDES, Murilo. A idade do serrote. A expressão literal do poeta é: “A Virgem Maria é o maior teólogo”. 163
MC, 37.
67
alguns padres professores da Academia do Comércio de Juiz de Fora; Ismael Nery; os abades
beneditinos, Dom Tomaz Keller e Dom Martinho Michler; o padre Paulo Lecourieux, vigário da
Igreja de São Paulo Apóstolo em Ipanema; além de alguns outros. (...) Mas o padre Julio Maria, a
quem pude conhecer de perto num momento decisivo para a formação do meu espírito, (...) foi o
primeiro portador do fogo, o destruidor da imagem convencional do suave Nazareno e da lânguida
Madona, o anunciador do catolicismo como força violenta destinada a subverter a nossa
tranquilidade e as próprias bases do mundo físico; o speaker164
do Apocalipse. (is 46)
Murilo comenta que só depois de adulto aprendeu, informado por dois teólogos
beneditinos, que “a confissão se define como um ato litúrgico de reconhecimento da
divindade de Jesus Cristo”. (is 100). Achava justo participar da confissão, mas, segundo ele,
“o confessionário era escuro que nem ventre de baleia, e não dispunha da técnica de Jonas a
se mover ali”, e segue descrevendo as diversas dificuldades para cumprir o sacramento da
confissão.
Ozana afirma que “o pensamento de São Paulo influenciou sobremaneira a concepção
religiosa muriliana, principalmente no que concerne à solidariedade, à insubmissão à lei e à
admiração pela figura messiânica de Cristo”.165
O respeito, a caridade e o amor ao próximo
foram elementos importantes ensinados pelo próprio pai, o que fez com que ele pudesse
projetar no presente, para o passado e para o futuro, a valorização da pessoa a partir da
imagem do Cristo. Sacramento supõe que “a noção de caridade, em Murilo Mendes, atende
àquele seu desejo de transformação social profunda, porque ela deve fazer com que o homem
ultrapasse aquilo que o escraviza ou o leva a oprimir o outro em direção à liberdade e à
solidariedade de onde nasce uma sociedade justa e humana”.
Para Murilo Mendes, dialogar com Deus é dialogar com o tempo presente. Por isso,
seu Deus não exige que se recorra à memória de um passado, mas permite que o homem se
abra para o horizonte totalizante do presente, que se apresenta como tempo eterno e mesclado,
pois conjuga em seu interior o passado, o presente e o futuro, o início e o fim. O Deus clássico
da revelação cristã se apresenta como um Deus excessivamente histórico e pessoal. É o Deus
de um povo, particular, revelado aos hebreus, aos cristãos, projetado, portanto, no tempo
passado de um povo. A divindade em Murilo Mendes rompe com a imagem do classicismo
164
Speaker: locutor, narrador, orador, falador, aquele que fala. Disponível em:
http://www.dicionariodoaurelio.com/Speaker.html. Acesso em: 01.06.2013. 165
SACRAMENTO, Ozana Aparecida. A memória solidária: Uma leitura de A idade do Serrote de Murilo
Mendes. Em TESE. Belo Horizonte V.4, p.1-96, dez/2000. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2004/Ozana%20Aparecida%20do%20Sacra
mento.pdf. Acesso: em 23.06.2013.
68
cristão, com a figura de Deus criada pela escolástica ocidental, ao mostrar um Ser que se
entrega à experiência, mesmo que seja no mundo do sonho.
Os temas ligados à fé percorrem toda a obra do poeta mineiro e facilmente percebemos
as marcas em sua poesia da relação com o sagrado. Publicado na coletânea Poemas (1925-
1929), o poema “Vidas Opostas de Cristo e de um homem” transcende a relação horizontal
com Cristo e propõe um diálogo a partir de uma realidade, em que o homem das palavras,
enquanto poeta, é capaz de dialogar com o “Senhor do Mundo” como verificamos no poema:
Senhor do mundo,
Cada vez que ressuscitas um homem, me destruo a mim mesmo.
Enquanto o demônio te tenta no deserto
Eu sonho com os corpos que a terra criou.
Enquanto passas fome e sede quarenta dias
Os meus sentidos se desalteram.
Cada vez que cais ao peso da cruz
Eu caio com uma mulher de última classe
Enquanto te multiplicas na humanidade
Não saio dos limites de minha pessoa
Depois da morte voltas pra absolver o justo e o pecador,
Eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo.
Senhor do mundo,
Me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo.
(Poemas 1925-1929)
O poeta parece abrir um diálogo ao utilizar a expressão “Senhor do mundo”, ao
mesmo tempo em que permite que seu poema seja lido como a sugestão de uma pretensa
prece. Outra percepção que o poeta deixa transparecer é o contraste entre o sentimento e as
ações humanas, ao compará-las ao Deus-homem Jesus Cristo. O uso das expressões “cada
vez”, “Enquanto” e “Depois” aponta para um paralelismo entre homem e Cristo. O tempo,
portanto, promove a comparação entre o finito e o infinito, entre o limitado e o ilimitado,
entre o chronos e o kairós.
69
As referências aos textos bíblicos permeiam mais este poema muriliano. A
ressurreição de Lázaro é evocada mediante o verso “cada vez que ressuscitas um homem”; a
tentação de Cristo no deserto se ‘presentifica’ em “Enquanto o demônio te tenta no deserto e
Enquanto passas fome e sede de quarenta dias”. Os versos “Cada vez que cais ao peso cruz”,
“Enquanto te multiplicas na humanidade” e “Depois da morte voltas pra absolver o justo e o
pecador”, por sua vez, fazem ecoar, respectivamente, as passagens da via crucis, mediante o
testemunho dos discípulos, e a volta de Cristo, parousia, no final dos séculos.
Em meio às marcas de textualidade bíblica, o poeta se deixa levar pela coloquialidade
de sua dicção modernista e, quem sabe, por sua espiritualidade subversiva, construindo uma
confissão de sua humanidade sem o uso dos chavões e/ou repetições que permeiam o discurso
religioso. Reinventando ou reforçando o vigor da fala com o Senhor com a divindade, o poeta
solta o verbo: “me destruo a mim mesmo”; “eu sonho com os corpos que a terra criou”; “os
meus sentidos se desalteram”; “eu caio com uma mulher de última classe”; “não saio dos
limites de minha pessoa”, “eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo”.
Esse embate entre o profano e o sagrado, que é intensificado mediante a confissão das marcas
tipicamente humanas, é, justamente, o traço que gera a concepção religiosa de mundo no texto
do poeta. Concluindo sua oração de confissão, o poeta dirige uma petição paradoxal a Deus:
“Senhor do mundo, / me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo”.
Conclusão
A partir do apresentado neste Capítulo acerca da linguagem religiosa na poesia de
Murilo Mendes, torna-se perceptível a preocupação do poeta em deixar claro que teve uma
educação religiosa católica e que foi por meio dela que suas descobertas da religião e da
profissão encontraram sentido para o seu desenvolvimento como um ser humano questionador
diante do ritualismo católico, porém disposto a compreender a mística e assim mergulhar no
mistério de Deus. Neste sentido, sua contribuição como poeta ultrapassa a singular
importância de cunho literário, um fato, por si só, de relevância significativa. O poeta, assim
como os místicos tomados de admiração e amor pelas coisas sagradas, traduz em palavras um
amor radical pelos pequenos e grandes sinais do cotidiano e tudo o que nele existe. E ao
mergulhar na profundidade da presença de Deus em todas as coisas passa a partilhar, por meio
70
da sua criação literária, aquilo que guardava em seu interior, para que outros descubram e se
identifiquem com a beleza de um Deus acolhedor e amoroso.
A concepção muriliana de Deus vai além de uma fé baseada em ritos ou milagres e
missas dominicais. Para o poeta, a religião o levaria a colocar em prática a ajuda ao próximo e
o cuidado com as pessoas mais humildes e a preocupar-se com a comida para todos. A
educação religiosa que Murilo Mendes recebeu contribuiu para que vivesse uma experiência
de Deus a partir da pessoa e do cotidiano, e isso fez com que tivesse uma relação com Deus
bem diferente daquela de grande parte dos católicos da época, que enxergavam apenas os
rituais e viviam a religião de aparências, sem a preocupação de uma profunda conversão,
mudança de vida, do ponto de vista social, político e cultural.
E essa descoberta de uma maneira diferente de enxergar o divino se deu para Murilo
no início do século XX, quando o mundo se via diante de descobertas na economia, na
indústria, na cultura e na ciência. A passagem do cometa Halley foi um aspecto fundamental
na mudança de visão de mundo e de Deus para Murilo Mendes que, com sua sensibilidade
singular, consegue ir decifrando em seus poemas a necessidade de a pessoa se identificar com
uma fé, no seu caso o cristianismo a partir da religião católica. Na mão inversa do
Modernismo, Murilo usa a poesia como subterfúgio para refirmar Deus, vale-se de uma
linguagem suave para falar de uma realidade profunda. Nosso século busca e não encontra,
insiste e não vê que Deus não está nas práticas do individualismo, do fechamento sem a
disposição do diálogo, e nem mesmo nos diversos significados que o mundo moderno atribuiu
a Ele, tais como a teologia da retribuição irá mencionar. Tão atual, Murilo insiste que não há
como seguir vivendo da mesma maneira e provoca o leitor para romper a mesmice em direção
ao mistério maior que o convoca. Retoma uma práxis baseada no encontro e no encanto das
ações de Jesus, sobretudo da partilha do pão e de toda a sua vida - certo de que, ao assumir a
condição de assemelhar-se ao Cristo, “o que é humano em Cristo será divino no homem”. (dE
117)
A poesia de Murilo Mendes revela que ele foi uma pessoa profundamente convertida
ao seguimento de Jesus, uma pessoa capaz de fazer das suas palavras uma revelação, um
anúncio da Palavra de Jesus, ou melhor, da pessoa de Jesus Cristo. Murilo evoca em sua
poesia aquilo que é o centro da Teologia cristã: a pessoa de Jesus Cristo, Verbo de Deus feito
carne, reconhecido como Filho de Deus e Deus mesmo pela comunidade cristã, desde os
71
primeiros tempos, comenta Bingemer.166
Esta forma de fazer poesia, além de expressar um
sentimento, traz afirmações de fé no Cristo presente e vivo que caminha com as pessoas e faz
um chamado a transformar sua vida, como Ele mesmo prometera: “Eis que estarei com vocês
todos os dias, até os fins dos tempos”. (Mt 20,20).
Murilo Mendes promove uma verdadeira catequese poética. Para ele, “O Cristo
transforma o mundo, não menos pela sua vida obscura que pela sua vida pública”. (dE 745)
Acredita ser a ação o melhor aprendizado, o testemunho, beber da própria fonte, por isso, “é
necessário tocar de qualquer maneira o Cristo”. (dE 716) Conviver com o Cristo é como ouvir
música, compara o poeta. “Não basta ouvir uma música assim como se ouve um eco distante:
é necessário participar da sua vida própria, fazê-la circular dentro de nós” (dE 704), na busca
do essencial, pois “o supérfluo do místico e do poeta é o essencial de muitos outros homens”.
(dE 702).
Podemos notar que a poesia de Murilo Mendes não é um tratado sobre mística, porém
seus versos e prosas são carregados de uma mística cristã, despojando-se da preocupação de
púlpito e se permitindo dialogar com Jesus a partir de uma sensibilidade que procura verificar
mais semelhanças do que diferenças entre o religioso cristão e poético. Para ele, “o maior
púlpito do mundo é a cruz, de onde Cristo disse as sete palavras essenciais”. (dE 261) Muitos
místicos têm apontado um caminho para se chegar à verdade, mas, para Murilo Mendes,
“Cristo é a verdade, o próprio Caminho, a Verdade e a Vida” (dE 525) A conversão para essa
verdade ele a assume sem medo: na poesia, na prosa, sem temor de afirmar no que crê e
como, através da sua poesia, poderá alcançar um limite inimaginável de anúncio da sua
compreensão do Verbo.
Murilo Mendes aproximou Deus da poesia. O poeta entende que é neste mundo que a
pessoa deve crescer, encantar-se e espalhar a beleza e, por isso, conclama a todos a
reconhecer a grandeza de Deus para não se deixar corromper pelas situações de desânimo,
injustiças e de morte. Entende que precisamos de Deus para ser mais humanos, por isso é
necessário falarmos de Jesus, da Palavra de Deus, vivermos e seguirmos seus ensinamentos.
Diz Murilo: “Se não nos elevamos, o peso do mundo nos esmagará”. (dE 324)
166
YUNES, Eliana. “et alii” (orgs.) Murilo, Cecília e Drummond 100 anos com Deus na poesia brasileira. p. 93.
72
Murilo declara abertamente no que crê, e em seus poemas deixa as marcas de uma
espiritualidade encarnada, como alguém que busca encontrar na vida a presença da relação
com o sagrado. Enxerga em um irmão necessitado mais próximo o sofrimento de Cristo na
cruz, o que, para a Teologia católica, é união de mística e compaixão.167
O texto bíblico de Lc 24,33-35 relata que Jesus teve muita dificuldade para abrir o
coração dos discípulos a um amor que não buscasse o próprio interesse, mas sim uma nova
forma de agir. Tomemos por exemplo Jesus ressuscitado com os discípulos na partilha do pão
em Emaús: os olhos dos discípulos se abriram, pois estavam cegos sem reconhecer o Cristo
no sinal mais evidente que Jesus deixou na partilha do pão, do amor, da doação, da entrega de
si mesmo.168
Eles precisavam vê-lo com os olhos da compaixão e da fé. Em sua obra “Os
discípulos de Emaús”, Murilo põe Deus para caminhar com a gente e Deus mesmo se revelar
pelas linhas da poesia. Com ousadia, audácia, Murilo revela-se um porta-voz da poesia para
conduzir o leitor a enxergar Deus na sua existência. Ele desnuda o Cristo para o leitor,
expressa de maneira absolutamente nova o mistério e, através dos versos, convida à
contemplação169
, a abrir os olhos e sentir a aproximação e o aconchego de um Deus próximo,
que se põe a caminhar com seu povo: “Os discípulos de Emaús reconheceram o Cristo no
partir do pão, isto é, na Eucaristia, na observação da Lei e da unidade” (dE 233). Reconhecer
Cristo exige do discípulo uma atitude nova de imitar o Mestre nos gestos de partilha e de
compaixão com os que mais sofrem, e a poesia, como já afirmamos, é um convite ao leitor a
desvendar essa dimensão profunda da mística cristã, como fez Murilo:
Onde encontrar o Cristo?
Encontrei-o na Igreja Católica. Encontrei-o no evangelho, na revelação da doutrina integral,
mantida ininterruptamente, através dos séculos, pela sucessão apostólica; na comunicação
sacramental e litúrgica; nos atos e nos escritos dos mártires, santos e doutores, membros gloriosos do
Corpo místico; na solidariedade sobrenatural que circula entre os fiéis, participantes de um só Deus,
uma só fé, um só batismo; na universalidade do espírito fecundo da igreja que extrai o homem da
rotina e o estabelece como centro de relações, imprimindo-lhe, sem cessar, o movimento e a vida; em
alguns sacerdotes exemplares; na fisionomia de certos pobres; em qualquer lugar onde existe alguém
167
BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e Compaixão. A Teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton.
São Paulo: Paulinas, 2008. Este é um livro que presta à teologia e à espiritualidade no Brasil e fora dele uma
contribuição à altura dos desafios de nosso tempo, não como livro de receitas, mas de grande iluminação para a
presença fecunda do cristão no coração do mundo, presença mística e profética. A mística do seguimento de
Jesus leva à compaixão pela humanidade e por todas as criaturas, num dos frutos mais maduros da mística de
Merton, e desdobra-se no empenho em promover a paz, a justiça e o cuidado responsável pela criação/ecologia.
Revista de Cultura Teológica - v. 16 - n. 65 - OUT/DEZ 2008. 168
HERBSTRITH, Waltraud. Demorar-se com Deus. São Paulo: Edições Loyola, 1987. p. 24. 169
VILHENA, Maria Ângela & MARIANI, Ceci Baptista. Teologia e Arte. Expressões de transcendência,
caminhos de renovação. p. 91.
73
que sofre, que necessita de um copo de água ou de uma palavra de ânimo; enfim, em todos aqueles
que, segundo a expressão sublime de S. Paulo, completam na sua carne o que falta à própria Paixão
do Cristo.(dE 749-750)
74
CAPITULO III
UMA MÍSTICA NA ARTE
Introdução
A Teologia que nasce da reflexão das poesias de Murilo Mendes remete às
necessidades humanas sejam espirituais, materiais. São expressões fortes que marcam a
realidade social na América Latina. Neste continente, falar de Jesus de Nazaré
necessariamente implica olhar para uma realidade de pobreza e de injustiças. A Teologia da
Libertação, há décadas motivando cristãos a se engajarem na transformação por uma
sociedade mais justa e mais humana por meio da produção de uma vasta literatura teológica
latino-americana, propunha trazer Deus para perto do homem, para que cada pessoa O
reconhecesse como Ele é: O Deus Libertador. Era preciso dar consciência aos leigos do seu
direito de participação no meio eclesial; para muitos, isso já era uma realidade no meio social;
para outros, nem tanto. A presença e a participação dos leigos nas Comunidades de Base, nos
grupos de reflexão bíblica, nos movimentos sociais despertaram muitos homens e mulheres
para uma fé ativa e atuante – ou militante, como se costumava dizer, militante no que diz
respeito a questões como o resgate da dignidade humana, o anúncio do Reino de Deus aqui e
agora, a presença da mulher na Igreja, as relações de opressão e exploração no mundo do
trabalho, na política e nos diversos ambientes da sociedade, assim como o diálogo com outras
religiões, preocupações nascentes deste momento histórico da Igreja. Murilo Mendes, que não
respirou desta “atmosfera”, pois precede este “novo jeito de ser Igreja”, desnuda em seus
poemas e com singular leveza essa mesma necessidade de uma Igreja Povo de Deus que, a
partir do modelo da Trindade, viva em comunhão com Deus e com os irmãos.
Por isso, associar Teologia e poesia ajuda a desvendar uma linguagem, há muito
conhecida na história da Igreja, porém retomada com uma tônica dialogante para tentar
responder aos anseios do homem na modernidade. Se há o interesse do teólogo neste diálogo,
fica mais fácil falar de Deus a partir do humano que a Literatura nos apresenta, e é preciso
reconhecer que quando a Teologia se propõe a trilhar esse caminho ela também estará mais
75
enriquecida com essa proposta. Se a poesia é a voz da alma170
e é no ser que habita Deus
(1Cor 6,19), então, não há como negar a relevante contribuição advinda do entrelaçamento
entre Teologia e Literatura.
Tudo na arte de Murilo Mendes remete ao humano e ao divino; o poeta tinha claro que
falar do humano sem afirmar o que de divino nele existe é negar a sua existência a partir da
concepção de Deus. A arte de Murilo Mendes apenas comprova que a Comunhão com Deus é
indissociável da comunhão com as pessoas, e que o trabalho do poeta e teólogo tende a ser
mais profícuo quando em mutualidade, quando em diálogo entre si e o mundo e voltado para
as realidades que desafiam o homem no seu encontro consigo, Deus e o outro. Só assim,
entrelaçadas, sem sobreposição ou amarras, a Poesia ‘poderá sinalizar o invisível’, deixando
para a Teologia o papel de dar sentido à caminhada de fé rumo ao sagrado.
É nesse viés que a mística cristã marcou a trajetória pessoal e artística do poeta. A
conversão ao catolicismo foi fundamental para uma “virada” não só à religião católica, mas a
uma aproximação maior com a Palavra de Deus. Atraído pela espiritualidade cristã, ele se
entrega a uma relação íntima de amizade com o Cristo, e a partir deste encontro imprime em
seus poemas expressões tão belas e profundas do ponto de vista da fé. Esse movimento de
busca da comunhão com o Mistério e mística encarnada lhe permitiu afirmar e viver sua fé em
diálogo com o mundo. De acordo com Carvalho:
A apologética muriliana não cai no proselitismo, mas antes serve de meio
para vivenciar a fé cristã: “A prática da vida cristã de Murilo consistia
justamente no fazer poético”. Em outras palavras, a “regra monástica”
seguida pelo poeta era aquela que enxergava na poesia uma prática ascética.
“O Murilo dizia ‘ver é tocar’. É justamente isso que fazia em sua obra:
sinalizava que pela poesia o homem pode ver o invisível. E isto é o
sagrado”.171
Como o povo do Êxodo – na Bíblia – fez a experiência do Deus-Libertador, e deixou
evidente o quanto é necessário investir em uma Teologia que fale do Deus da vida, do Deus
que cria, que dialoga com os homens, que desce para vivenciar as dores e alegrias de cada
vivente porque os conhece, um Deus caminheiro presente em cada passo das travessias do
170
PEIXOTO, Sergio Alves. A consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao simbolismo. São Paulo:
Annablume, 1999. p. 99. 171
CARVALHO, Luiz Fernando Medeiros. Religiosidade na poesia de Murilo Mendes. Museu de Arte Murilo
Mendes. Juiz de Fora/MG. Disponível em: http://www.ufjf.br/secom/2013/03/26/religiosidade-na-poesia-de-
murilo-mendes-e-tema-de-palestra-no-mamm/. Acesso em: 20.07.2013.
76
caminho. A ação de Deus é sempre uma ação voltada para a vida; Ele quer que cada pessoa se
identifique e se realize na sua existência. A existência para o ser humano é oferecido como
dom, como graça de Deus. A graça de Deus é para que cada pessoa se sinta como que
abraçada por Ele, amparada em todas suas necessidades. Deus não quer a vida ameaçada.
Neste sentido, na América Latina, palco de tantas situações degradantes da vida humana, onde
imperam a pobreza, a exclusão social, o desrespeito ao papel da mulher, a falta de
oportunidade para jovens, a exploração sexual de crianças e o trabalho infantil172
, a Teologia
deve levar a pessoa a acreditar na presença de um Deus-Amor que exige o compromisso de
cumprir o que Ele antes nos ordenou: amor a Deus e amor ao próximo (Mc 12,33), porque ele
nos amou por primeiro (1Jo 4,19). Aqui se defende um amor capaz de afetar todas as
dimensões do ser, como afirmou São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive
em mim” (Gl 2,20), para comprometer-se com os fatos do cotidiano. Bertelli, ao questionar
qual é a vocação dos seguidores de Jesus hoje, irá ressaltar que, “num mundo de violência e
injustiça, devemos implantar o Reino de Deus de justiça e paz”. E acrescenta:
Atualmente, precisamos resistir também à contrautopia manifestada na
religião do mercado, que apresenta uma mística intramundana, e uma visão
beatífica não de leite e mel, mas de consumo beatífico. Para isso, é
fundamental a conversão pessoal a uma vida mais simples e pobre, que
elimine o supérfluo. Enfim, somos convidados a levar uma vida mais
evangélica, que nos capacite melhor ao seguimento de Jesus hoje.173
Assim, a conversão é a primeira resposta ao convite que Deus faz. Ele ama e conhece
cada pessoa, respeita suas escolhas, mas, espera um Sim como resposta (Lc 1,38), para que
assim possa viver na perfeita liberdade de filhos e filhas de Deus (Rm 8,21). Mais que isto,
Ele ama de forma incondicional e não cessa de estar atento à sua criação. Deus se revela na
história e o faz através da comunicação verbal com o ser humano, para que a pessoa possa de
fato compreendê-Lo e aderir ao Seu convite. Deus foi revelado em Jesus de Nazaré, que
morreu e ressuscitou para a salvação de todos. Ele não tem preconceitos e não faz acepção de
172
Acrescenta Feller: A crise da modernidade, a injustiça social, o terrorismo, a violência urbana e rural, o
narcotráfico, a corrupção política, o fracasso da ciência e da técnica na solução efetiva de doenças e problemas
crônicos, a destruição do meio ambiente, os males cometidos contra as crianças, entre outros, são problemas
próprios de nossa época que demandam uma resposta salvífica da parte das religiões. FELLER, Vitor Galdino. O
sentido da salvação. Jesus e as religiões. São Paulo: Paulus, 2005. p. 102. 173
BERTELLI, Getúlio Antônio. Thomas Merton: um precursor da espiritualidade da libertação. Ciberteologia
Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 13. Disponível em:
http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/06/03thomasmerton.pdf. Acesso em:
18.07.2013.
77
pessoas porque faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e faz chover sobre os justos e
os injustos.174
Afirma Feller:
Deus é fonte primária e permanente de salvação e de revelação. Poder--se-ia,
então, dizer: quanto mais Deus se revela, mais o ser humano se liberta e, ao
inverso, quanto mais o ser humano é libertado, mais Deus é revelado em seu
ser e em sua ação salvífica. Irinei de Lião175
tornou precisa essa relação com
a sentença admirável: “A glória de Deus é a vida do ser humano e vice-
versa”.176
No Antigo Testamento, a conversão é uma exigência para mudar de rumo, ou seja,
obediência à vontade de Deus e confiança nele, renunciando a todo mal (Os 14,1). No Novo
Testamento, a exigência de Jesus é “Convertei-vos” (Mc 1,15). O chamado e a exigência de
Jesus têm um sentido preciso: a fé como condição fundamental para o perdão e a salvação177
,
e o seguimento como opção fundamental para deixar-se modelar por seus ensinamentos.
Para que a Teologia dê sentido à caminhada de fé, a adesão ao convite de Jesus “vem e
segue-me” (Mt 4,21) deve ser carregada de uma mística de olhos abertos, capaz de atuar nas
diversas situações de dor, sofrimentos e alegrias; em outras palavras, uma mística encarnada,
engajada, de pessoas cheias de esperança, e com alegria na busca de colher frutos de paz e
justiça; com a mesma esperança de Paulo apóstolo quando diz que “a esperança não
decepciona” (Rm 5,5). É este mesmo sentimento que deverá mover o coração de cada pessoa
ligada ao Deus da vida. Foi esta mística engajada, encarnada, que norteou os escritos poéticos
de Murilo Mendes, deixando para trás “o homem velho” (Ef 4,22-24) e assumindo um Cristo
amigo.
174
PRETTO, Hermilo Eduardo. Um Deus misericordioso e compassivo. Ciberteologia - Revista de Teologia &
Cultura - Ano VIII, n. 38. Disponível em: http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-
content/uploads/downloads/2012/03/01-Um-Deus-misericordioso-e-compassivparte06.pdf. Acesso em:
18.07.2013 175
BORRIELO, L. “et alli”. Dicionário de mística. “Irineu de Lião nasce provavelmente por volta no ano 130
d.C., na Ásia Menor. Não é filosofo, mas é pastor e homem de Igreja. Contra o dualismo dos gnósticos, Irineu
enfrenta diretamente o tema da bondade da carne. Põe o fundamento do ser cristão na regra recebida com o
Batismo. Para ele existe o dom da caridade e da profecia, viver é participar da vida de Deus, o importante é
relacionar-se com Deus.” 176
FELLER, Vitor Galdino. O sentido da salvação. Jesus e as religiões. São Paulo: Paulus, 2005. p. 103. 177
BAUER, Johannes Baptist. Dicionário Bíblico-Teológico. São Paulo: Edições Loyola, 2000. pp. 68-69.
78
1. – Jesus como companheiro de jornada
Murilo expressa a pessoa de Jesus como amigo, como companheiro. Para ele, “ser
amigo é repartir a vida” (dE 746). Retomando o texto bíblico, encontramos no evangelho de
São João a palavra de Jesus que diz: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que
seu senhor faz; mas eu vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a
conhecer” (Jo 15,15). Ele também se mostrou atento ao Cristo Pobre: “Poucos poetas, em
todos os tempos, terão compreendido e amado tão bem o Cristo como Pobre” (dE 677). A
pessoa de Jesus de Nazaré a partir dos textos bíblicos nos é apresentada como uma pessoa
obediente ao Pai (Jo 6,38), ativa e constantemente em defesa da vida (Jo 10,10). Sua missão é
sempre em favor dos menos favorecidos (Lc 4,18-19), tem compaixão com os que sofrem,
com os maltratados, com os abandonados à beira do caminho (Lc 10,25-37), pois entende que
a vida é dom e graça de Deus e deve ser vivida de forma digna. Afirma que serão benditos os
que acolherem os estrangeiros, sem roupa, sem comida e sem casa, e malditos os que não
fizerem nada para um de seus irmãos (Mt 25,31-46). O “Cristo Pobre” assumiu as dores da
humanidade para resgatá-la de todo mal. Em outras palavras, para Murilo, “O Cristo não tem
personalidade. Ele a abandonou para desposar toda a humanidade. Ele é uma Pessoa” (dE
642). Murilo Mendes, diferentemente dos poetas do seu tempo, se permite experimentar a
beleza e o Amor do Cristo e o evoca em suas poesias, contemplando a Criação, a pessoa, o
Criador-Deus, e o entrelaçamento dessas realidades. O reconhecimento da pessoa de Jesus,
para Murilo Mendes, torna-se um alicerce, como afirma Silva:
Essas bases cristãs católicas sempre emergem na escrita muriliana, evocando
o cristianismo das origens, fundado na essência do evangelho. O poeta
elabora sua cristografia evocando e convocando a Cristo, como essência da
Vida, da Poesia, Deus e Homem, para quem tudo converge.178
Na Bíblia encontramos narrativas de Marcos (8,29) e Mateus (16,15) que se
caracterizam por mostrar Jesus, antes do anúncio a seus discípulos de sua paixão iminente,
fazendo-lhes a seguinte pergunta decisiva: “E vós, quem dizeis que eu sou?”179
Neste diálogo,
dirão para Jesus que “alguns o consideram João Batista, Elias ou alguns dos profetas”. Mas a
profissão de fé vinda de Pedro irá confirmar a missão de Jesus: “Tu és o Cristo o filho do
178
SILVA, Francis Paulina In: MORI, Geraldo De., SANTOS, Luciano. & CALDAS, Carlos(orgs.). Aragem do
Sagrado. Deus na Literatura brasileira contemporânea. p. 135. 179
DUPUIS, Jacques. Introdução à Cristologia. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 7.
79
Deus vivo” (Mt 16,16)180
. Jesus, ao revelar o mistério do Pai, assumindo sua missão como
Filho, apresenta o Caminho de uma vida em que todos são amados; em que aqueles que não
têm poderão viver com dignidade, poderão ser chamados de filhos; os frutos do trabalho serão
acolhidos pelo Pai; os erros serão perdoados; e todos os que fizerem a vontade do Pai poderão
fazer parte desta grande família. Afirma Quevedo: “O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo.
Com toda tradição cristã, nós cremos que, no nome Jesus de Nazaré, Deus se tornou
presente”.181
Ele, que aprendeu do Pai o Caminho, a Verdade e a Vida, revela e convida cada
pessoa a fazer a experiência de trilhar o caminho de realização. Desta forma, a cristologia
remete não apenas a uma “teoria sobre como deveria ser a vida do Filho de Deus, mas ela
parte de Jesus, Filho de Deus encarnado na história e na condição humana”.182
Se a mística
cristã imbuída da mensagem de Jesus implica compromisso de transformação social, busca da
realização da justiça para os pobres e para toda a criação, como afirmamos anteriormente,
torna-se vital o conhecimento da Pessoa e do testemunho de Jesus Cristo. A prática que se
espera de um cristão é baseada no Projeto que Jesus anunciou: Ele chamou de Reino de Deus,
que é para todos, ricos e pobres e para pessoas de todas as religiões. Jesus é a comunicação do
Pai com a humanidade, e quer que todos participem do seu reinado, como afirma Rubio:
Jesus vive e anuncia a chegada do Reino, em íntima união com Deus
invocando como “Abba” Paizinho. O anúncio da chegada do Reino de Deus
vem acompanhado de sinais que demonstram já, agora, a atuação desse
reinado. O anúncio e os sinais do Reino estão a serviço da libertação de cada
ser humano, especialmente dos marginalizados de todo tipo.183
A mística cristã, portanto, não poderá estar desligada do mistério e da comunhão com
o divino, que se realiza no humano, especialmente nos mais necessitados. A realização efetiva
da promoção e dignidade humana é pressuposto para uma espiritualidade que permita ver no
180
“O Cristo, o Senhor, o Filho de Deus, esses três títulos constituem o núcleo da fé cristológica primitiva e
evidenciam claramente o lugar central que essa confissão ocupou, desde o início, na fé da igreja cristã. O
essencial consiste em atribuir ao homem Jesus, cujo nome próprio era Yeshua (Yesua), um título particular
(Masiah, o ungido, o Cristo), emprestado da terminologia teológica do Antigo Testamento. Nasceu assim a
confissão da fé “Jesus é o Cristo”, que só mais tarde evoluiria, semanticamente, para a aposição “Jesus, o Cristo”
e, posteriormente, para o nome composto “Jesus Cristo”. RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo
vivo. Um ensaio de cristologia para nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 8. 181
QUEVEDO, Luiz Gonzalez. Experiência de Deus: presença e saudade. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p.
57. 182
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 230. 183
RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para nossos dias. São
Paulo: Paulinas, 2001. pp. 25-26.
80
rosto de cada irmão a alegria de viver. Fazer com que a vida transcorra de forma plena é
missão dos que vivem as dimensões da mística cristã, capaz de “ver além das aparências”
(1Sm 16,7) aquilo que Deus tem a oferecer à humanidade.
1.1 - Pai Nosso e Meu Pai184
A revelação que “Deus é amor” (1Jo 4,8) foi manifestada pelos atos e palavras de
Jesus. Ela foi de tal modo vivenciada para que outros também pudessem acolher em sua vida
o amor oferecido incondicionalmente por Ele a todos, em todo o tempo, na integridade do ser
delas. Assim como Ele nos chama, quer também que permaneçamos no seu amor, aponta
exigências e garante alegria plena, o que, para a Teologia, é a salvação.
Diante de tantos caminhos que o ser humano pode escolher – e a escolha também é
dom de Deus, na liberdade –, Ele quer que se escolha a “melhor parte” (Lc 10,42), ou seja,
que o ser humano esteja disponível, aberto a aceitar sua proposta de ação salvífica e a se
comprometer no seguimento de Jesus. Na escuta dos ensinamentos de Jesus, a comunidade
dos discípulos mostrou que uns poucos lhe eram fiéis, enquanto outros escolheram seguir por
outro caminho, até mesmo deixar para trás a garantia da vida eterna para continuarem
apegados a seus bens (Mt 19,16-22). Jesus falava com clareza sobre as renúncias e sobre a
solidão que seus seguidores poderiam encontrar no Caminho, porém, apontou a certeza de
estar presente para toda a eternidade com aqueles que escolheram permanecer com Ele (Mt
28,20).
O Concílio Vaticano II, em sua Constituição Dogmática Gaudium et Spes, põe no
centro da concepção cristã do homem a condição de ser criado à imagem e semelhança de
Deus. Evidencia a capacidade humana de conhecer e amar o Criador, a capacidade de
relacionar-se com Deus, de entrar em comunhão com Ele. A isso se soma o que diz o nº 12
dessa mesma Constituição: “A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ‘à imagem
de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as
criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus” (GS 12). Além de
ser criada à imagem e semelhança do Criador, a criatura humana é “a única criatura sobre a
terra, querida por Deus por si mesma” (GS 24). Diz o CIC em seus números 356, 357 e 359:
184
MENDES, Murilo. MEU PAI. Anexo 1.
81
De todas as criaturas visíveis, só o homem é ‘capaz de conhecer e amar o seu
Criador’; ele é ‘a única criatura na terra que Deus quis em si mesma’; só ele
é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e o amor, a vida de Deus. Foi
para este fim que o homem foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua
dignidade (356). Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a
dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de
conhecer-se, de possuir--se e de doar-se livremente e entrar em comunhão
com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor, que ninguém
mais pode dar em seu lugar. Deus criou tudo para o homem, mas o homem
foi criado para servir e amar a Deus e para oferecer-lhe toda a criação (357).
Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no
mistério do Verbo Encarnado. Jesus Cristo é a máxima prova do amor do Pai
pelos seres humanos. É só n’Ele que o homem descobre sua vocação
sublime. Em Cristo, Deus Pai ‘nos reconciliou consigo e uns com os outros e
nos arrancou da escravidão e do pecado’ (GS 22). Por sua morte e
ressurreição, a vida e a morte são santificadas e recebem um novo sentido. É
Ele quem nos revela nossa vocação divina (359).185
Vimos que os místicos são pessoas que fizeram essa experiência de conhecer e amar
Deus: ao contemplarem o mundo sabem que o fazem com os olhos de Deus e com o sonho de
Deus; ao se questionarem diante das situações da falta de fé, de conflitos e desesperanças,
imaginam como Deus se aproximaria das pessoas para uma comunicação capaz de ir ao fundo
do coração e contagiar do mais simples ao mais intelectual, para assim participar da
construção de um mundo melhor para todos, o Reino de Deus anunciado por Jesus. Os
místicos, na sua cotidianidade, buscam não perder a semelhança com o Criador, uma vez que
somos todos criados à imagem de Deus – “o imago Dei”. É a semelhança com os gestos e
atitudes de Jesus que revela o humano ao divino e o divino ao humano.
Um alimento para fortalecer a fé e a comunhão com Deus é a oração. É por ela que
Deus nos concede generosamente e em abundância a sua graça e nada nos nega se o pedirmos.
O maior exemplo de como viver em oração vem do próprio Jesus. Aos 12 anos deixa pai e
mãe para orar no Templo de Jerusalém (Lc 2,41-52); durante o batismo, ora (Lc 3,21); antes
de iniciar a vida pública procura a solidão para entregar-se a Deus. Em várias passagens na
Bíblia vemos um incansável caminhante em oração. Ficou em oração até o fim. Na condição
de homem, Jesus teve medo e, por um instante, implorou ao Pai que afastasse dele o cálice,
para depois entregar-se aos seus desígnios. Passou seus angustiantes momentos na Cruz em
oração. E mesmo quando vê Maria e João ao pé da Cruz, o bom ladrão, quando pede perdão
pelos seus algozes, deixa de lado sua dor e ora pela humanidade que representam.
185
Cat., 356, 357 e 359.
82
Conforme o Catecismo da Igreja Católica, “É que Deus, nosso Pai, transcende as
categorias do mundo criado. Transpor para Ele, ou contra Ele, as nossas ideias neste domínio
seria fabricar ídolos, a adorar ou a derrubar”.186
O desejo de Jesus é de que cada pessoa o
reconheça como Pai, se encante e em comunhão com Ele e com o seu Filho Jesus Cristo
cumpra os desígnios de Deus – e isso só é possível pela oração. Acrescenta o Catecismo:
“Orar ao Pai é entrar no seu mistério, tal como Ele é e tal como o Filho no-Lo revelou”.
Ao ensinar aos seus discípulos a mais bela oração, Jesus tirou Deus da posição de
justiceiro implacável e lhe conferiu um caráter amoroso de pai, derrubou qualquer convenção
e revelou-nos um Deus próximo e disposto a nos ouvir como filhos que somos. Santo
Agostinho, depois de ter mostrado como os Salmos são o alimento principal da oração cristã e
convergem para as petições do Pai-nosso, conclui, referindo-se à oração do Pai-Nosso:
“Percorrei todas as orações que existem na Sagrada Escritura; não creio que possais encontrar
uma só que não esteja incluída e compendiada nesta oração dominical”.187
Na Bíblia, encontramos citada a expressão Pai/pai 1288 vezes, o que demonstra a
importância da relação paterna, seja Deus, o Pai, seja o pai da família humana. Quando chama
Deus de Pai-nosso (Mt 6,9), Jesus inclui todos na sua família, doa a todos a condição de
participar dessa realidade: ter um Deus como nosso Pai. Portanto, ninguém é órfão, pois Deus
é aquele que abraça e acolhe a todos. Ele é Santo, e Santo é seu nome. Ora, se o Pai é santo e
acolhe a todos como filhos, logo todos são chamados à santidade (Mt 5,48). Assim todos
podem vivenciar a alegria de caminhar com Jesus e descobrir no caminhar de cada dia a
vontade do Pai.188
Jesus ensina a pedir o pão e o perdão e a não desanimar diante das tentações. Na sua
vida pública, narrada nos Evangelhos, encontra-se o relato dos discípulos e das primeiras
comunidades. Jesus traduz o pão não apenas como alimento para o corpo, do qual o ser
humano tem significativa necessidade, mas revela o alimento necessário, como o seguimento
à Sua Palavra, a obediência ao Pai e a missão de curar, de libertar e especialmente de amar ao
próximo. Jesus adverte que é preciso perdoar infinitamente para garantir a liberdade e para
que prevaleça o Amor traduzido no perdão. Muitas opções e estilos de vida oferecidos ao
186
Cat., 2779-2881. 187
Cat., 276. 188
MAGAÑA, José. Jesus Libertador dos Oprimidos. São Paulo: Edições Loyola, 1990. p. 144.
83
povo do passado (e dos tempos atuais) não os levavam (e não os levam) ao compromisso com
a partilha, com a compaixão, com o acolhimento e particularmente com a opção por seguir a
Jesus. Então, o Mestre afirma que é preciso escolher entre a porta larga sem renúncias, mas
que leva à perdição, e a porta estreita, deixar tudo para seguir a Jesus e garantir a vida. (Mt
7,13-14) Jesus viveu em profunda relação com o humano, seja em família seja na grande
comunidade, na tentativa de levar o ser humano a compreender que o próprio Deus viveu em
comunidade na Trindade Santa. Portanto, a partir de seu santo exemplo, nossa vida não é para
ser vivida de forma isolada, mas em contínua relação com o outro.
Feller afirma que “em toda a sua vida Jesus faz referência absoluta a Deus-Abbá, que é
para ele sua bússola, seu norte, seu eixo de compreensão da vida e de compromisso com sua
missão”.189
Para compreender a Palavra e as ações de Jesus, é preciso conhecer o rosto que
Deus-Pai apresenta. Através de Jesus é possível conhecer melhor o Pai. Como ele disse,
“Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6) e “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Por sua
unidade com Deus, Ele revela o Deus verdadeiro. Feller acrescenta:
Jesus conheceu, pela educação recebida na família e na sinagoga, as
múltiplas imagens que o povo de Israel havia elaborado sobre Deus no
decorrer de seus doze séculos de história, desde o tempo dos patriarcas até a
época da apocalíptica: o Deus ligado às pessoas, dos pais, de Abraão, Isaac e
Jacó; o Deus ligado a lugares como o deserto, o oásis e os montes; o Deus da
terra, do êxodo, do Sinai e da Aliança(...) o Deus que defende os pobres, os
órfãos e os estrangeiros, o Deus do direito e da justiça, o Deus que condena
os latifundiários e opressores, o Deus que critica o culto falso e vão,
anunciado pelos profetas; (...) o Deus do cotidiano, do bem-viver, da
moralidade familiar e comunitária, o Deus que não cria para a morte, mas
para a vida.190
As grandes mudanças sociais e culturais ao longo dos séculos “têm exigido uma
atenção muito especial por parte da Igreja, dos teólogos e dos homens de fé, motivada pelo
estabelecimento de um mundo secularizado, à elaboração e à compreensão de uma doutrina
sobre Deus”.191
Em nossa sociedade, percebe-se cada vez mais a busca pelo estilo de vida
pessoal e independente, pelo ter em detrimento do ser, e a crescente desvalorização de
instituições tidas antigamente como sólidas e respeitáveis para a formação do indivíduo, como
189
FELLER, Vitor Galdino. O sentido da salvação. Jesus e as religiões. São Paulo: Paulus, 2005. p. 166. 190
FELLER, Vitor Galdino. O sentido da salvação. Jesus e as religiões. p. 168. 191
LAVALL, Luciano Campos. A afirmação de “Deus Pai” na Teologia Rahneriana. Revista Perspectiva
Teológica 18 (1986) 193-213. Disponível em:
http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/viewFile/1820/2138. Acesso em: 16.06.2013.
84
a família e a escola. Essa mudança de foco dos interesses coletivos distancia mais e mais as
tradições religiosas dos costumes modernos, como destaca o Documento 80 da CNBB:
A afirmação de um estilo de vida independente, autônomo, caracterizado por
escolhas livres, deu origem a um indivíduo instável, de convicções voláteis e
compromissos fluidos. Por isso, o indivíduo pós-moderno não quer conviver
com disciplinas e enquadramentos, com a obediência a prescrições antigas.
Os sistemas ideológicos muito estruturados não cessam de perder autoridade,
configurando-se uma desafeição pelos sistemas de sentido. Não somente os
valores das tradições religiosas foram perdendo terreno, mas qualquer
sistema de significado que exigisse disciplina, rigor, sacrifício, fidelidade
aos compromissos assumidos começou a ser posto de lado.192
Um grande desafio é o de apresentar a pessoa do Pai para o homem e a mulher de
hoje: “Como falar de Deus quando as questões do homem são mais urgentes?”193
Lavall,
pesquisador da fundamentação teológica de Karl Rahner sobre a afirmação de Deus Pai na
Teologia, afirma que esta é a tese fundamental de Rahner que vem elucidada no estudo de
quase todos os textos neotestamentários em que o problema entra em discussão:
O conceito cristão de Deus aparece, pois, na revelação e na
experiência da realidade do Pai vivenciada pelos homens bíblicos,
sobretudo os do Novo Testamento que, na plenitude da revelação
trazida pelo mistério do Filho encarnado, significam com o nome "ó
Théos" a pessoa do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só o nome
"Pai" pode manifestar a novidade do Deus de Jesus Cristo. De tal
modo a Encarnação trouxe, por meio do Verbo, a revelação de Deus
Pai que, quando o Cristo se revelou aos homens como Filho de Deus,
não fez outra coisa senão revelar o mistério do Pai, qual princípio sem
princípio da realidade divina, em sua inefável monarquia, ao qual ele
chamou propriamente com o nome de "Deus”.194
Falar de Deus é falar do homem e das suas necessidades e realizações, por isso é
possível afirmar que o testemunho de vida daqueles que vivem os valores do Reino de Deu, e
com isso revelam o rosto de Deus, deixa transparecer Jesus e reconhecer verdadeiramente
Deus, “o outro sempre maior”195
, no encontro com os irmãos pequeninos da América Latina.
Ao contrário de uma sociedade que os exclui, que considera os pequeninos gente sem valor,
192
CNBB. Evangelização e missão profética da Igreja. p. 43. 193
CNBB. Evangelização e missão profética da Igreja. p. 43. 194
LAVALL, Luciano Campos. A afirmação de “Deus Pai” na Teologia Rahneriana. 195
SUDBRACK, Josef. Mística a busca do sentido e a experiência do absoluto. p. 55.
85
para Jesus não é assim: ele ama, acolhe e se faz pequeno com os pequeninos e exige dos seus
seguidores uma postura coerente com sua pregação. (Mt 25, 31-46)
No poema Meu Pai, Murilo Mendes evoca a figura do pai carregada de um grau de um
encantamento. As palavras do poeta revelam a importância que ele, o pai, teve como
referência, como modelo e como motivador na sua vida e nas suas decisões. O encantamento
brota especialmente do desprendimento e da disponibilidade do seu pai em colaborar com
obras sociais para acolher os pobres, cuidar dos doentes, e dar-lhes “injeções de vida”.
Murilo fala do pai como um ser quase perfeito, pois de certo deveria ter defeitos como
qualquer outra pessoa, mas a paixão que revela por um grande homem e, muito mais, por suas
opções e atitudes o leva a uma profunda admiração.
Os escritos deixam entrever que o poeta herda do pai a sensibilidade, o respeito e o
amor que move a dedicação ao próximo. Ao relembrar detalhes da história de seu pai, que
provavelmente foram contados pela família, já que se referem a um período anterior ao seu
nascimento, Murilo destaca as qualidades que, na sua formação, ele mesmo tenta incorporar.
Sudbrack afirma que “precisamos da poesia e da música para tocar no mistério de Deus, para
fazer jus a ele”; sendo assim, a poesia de Murilo diz o que a alma vive, o que o ser todo
experimenta, e ele traduziu na pessoa do seu pai o que de Deus ele manifestava através de
uma práxis. Para a Teologia, essa relação com Deus Pai é tida como mistério da fé, e se
realiza efetivamente quando há no ser humano a disposição de despojar-se e deixar ser
plenamente humano. Como afirmou Leonardo Boff a respeito de Jesus, que viveu plenamente
sua humanidade: “Tão humano assim, só Deus mesmo”.
1.2 - Palavra de Deus
O anúncio do cristianismo é afirmar Jesus Cristo como o Logos, aquele se encarnou e
veio habitar neste mundo, a fim de que todos conheçam o rosto de Deus. A Palavra que se faz
carne (Jo 1,1) comunica, interage, emociona e transforma. Gutiérrez afirma que “Comunicar
essa alegria é evangelizar. Trata-se de transmitir, comunitária e pessoalmente, a Boa-Nova do
86
amor de Deus que se transformou em vida”.196
A teologia, disposta a prestar este serviço na
proclamação do Reino de amor e de justiça, aponta na Palavra de Deus o centro da missão do
cristão, por ser esta que revela Deus presente na história.
A Palavra de Deus é promessa e realização, por isto, a teologia afirma que ela é
cristocêntrica. Em Jesus, o Verbo, a Palavra encarnada, realiza-se a promessa de vida, pois a
Palavra é viva. A Dei Verbum197
não só diz que Deus se revelou em Cristo, mas que ele é a
Revelação por ser ao mesmo tempo revelador e revelado. Ele é e realiza a Revelação, isto é, a
salvação. "Consuma a obra salvífica que o Pai lhe confiou", a saber: "que Deus está conosco
para libertar-nos das trevas do pecado e da morte e para ressuscitar-nos para a vida eterna".
Diaz-Mateos, ao tratar da Palavra Cristocêntrica, afirma:
Colocar no centro a Palavra é deixar-se julgar por ela, fazer um ato de
pobreza e de obediência para deixar-se transformar por seu dinamismo e
invadir por seu poder de dar a vida. Por isso a citação seguinte de São João
não é simples citação, é proclamar a irrupção, na história dos homens, de
uma Palavra que é vida. Já desde o começo nos é dita qual a concepção que
tem o Concílio sobre a palavra: cristocêntrica, encarnada, histórica e
poderosa. “A vida se manifestou" (1 Jo 1,2).198
O próprio Concílio se pôs a escutar a Palavra e a ela se submeteu em busca de uma
profunda conversão e transformação para responder às exigências do mundo
contemporâneo199
, conforme DV nº 1: “O Concílio se põe à escuta da Palavra de Deus para
proclamá-la como anúncio de salvação a fim de que o mundo inteiro, ouvindo, creia; crendo,
espere; esperando, ame”.200
A grande conquista do Concílio Vaticano II foi sem dúvida colocar no centro da vida
da Igreja a Palavra que dá vida, juntamente com a consciência de que o povo unido em torno
da Palavra e da Eucaristia é a força viva da Igreja. Para Altemeyer, “o Evangelho torna-se um
alimento diário e familiar de todo o povo de Deus, torna-se palavra viva e uma porta de
196
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 38. 197
DV, 4. 198
DÍAZ-MATEOS, Manuel. A vinte anos do Concílio. A Palavra de Deus no Concílio Vaticano II. Disponível
em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/viewFile/1819/2137. Acesso em:
26.07.2013. 199
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II - Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Edições
Loyola, 2005. pp. 87-88. 200
DV, 1.
87
diálogo para penetrar nos segredos de Deus”.201
Conhecer a Palavra de Deus desperta na
comunidade reunida “o compromisso de uma Igreja consciente da necessidade de proclamar e
construir uma paz baseada na justiça para todos, especialmente para aqueles que hoje mais
sofrem”.202
Neste sentido, torna-se imperativa a ação de levar a Palavra a todos, como afirma
a Encíclica Fides et Ratio, do Papa João Paulo II: “A Palavra de Deus não se destina apenas a
um povo ou só a uma época”.203
É fundamental compreender que Deus não se limita ao tempo
e espaço estabelecido pelo humano, mas ele é presença em cada pessoa. Aceitar essa verdade
muitas vezes torna-se um desafio para as Igrejas que se sentem detentoras da graça de Deus.
Torna-se boa a teologia que se alimenta da Palavra da Salvação, a escuta, nela crê e
nela vive. Quando esta teologia se apresenta de forma compreensível e próxima das pessoas,
deixa de ser interesse exclusivo dos acadêmicos, deixa de ser “patrimônio” das universidades;
e ao chegar às mãos e ao coração do povo, “deixa” Deus comunicar a sua Boa Notícia a todos
e saciar a fome de Deus e da sua Palavra, como afirma Díaz-Mateos:
Mas é sobretudo na Bíblia onde aprendemos que o homem vive da "palavra
de Deus" (Dt 8, 4 ; Jo 6). O pão é então um símbolo eloquente para falar do
poder, da força e da vitalidade da palavra. Como o pão é a vida do homem, e
ganhar o pão é assegurar a vida, a palavra é pão de vida para um mundo
faminto. É imensa a responsabilidade de uma Igreja, esposa e servidora da
Palavra que é pão da vida, num mundo que morre de fome: de fome material
e de fome de justiça, de dignidade, de Deus. A Palavra de Deus vem saciar a
fome mais radical do homem, a fome de Deus e de sua palavra na qual
encontra a vida (Am 8, 11). Mas a própria Palavra de Deus, sobretudo a
Palavra encarnada em Cristo, nos remete à história dos homens na qual a
Palavra encarnada se fez solidária com a fome e com a dor dos pobres (Mt
25, 31s).204
É certo que Murilo Mendes insistia em se aprofundar no conhecimento da Escritura,
porém é salutar considerar que não o fazia pelo cunho teológico ou pelo prazer de escrever.
Como vimos, sua formação religiosa contribuiu para uma espiritualidade encarnada e
contemplativa e de cunho místico, capaz de olhar o sofrimento do outro e ter compaixão;
preocupar-se com o próximo nas pequenas situações da vida e reconhecer em Jesus o Filho de
Deus, vivo e atuante na história da humanidade. Mas o que significa Escritura na concepção
teológica muriliana? Ele afirma que “O evangelho é o único livro que age, ensina, transforma
201
JUNIOR, Fernando Altemeyer. Concílio Vaticano II. Disponível em:
http://familiacrista.org.br/blog/3316.html. edição Julho/2013. Acesso em: 26.07.2013. 202
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 39. 203
FR, 95. 204
DÍAZ-MATEOS, Manuel. A vinte anos do Concílio. A Palavra de Deus no Concílio Vaticano II.
88
e ama – exatamente como uma pessoa” (dE 561). Tratar o Evangelho como Pessoa, como faz
Murilo, é reconhecer o Cristo na Palavra. Ele afirma que Cristo é uma Pessoa. (dE 642). Para
ele, “A Palavra de Jesus Cristo brota tanto do evangelho como do nosso próprio coração” (dE
543), ou seja, para aqueles que abriram a porta e deixaram Jesus entrar, a Palavra pode sair de
dentro de si. Em sintonia com as afirmações da Igreja, Murilo também compreende que A
Palavra de Cristo é propriedade de todos. (dE 162) Demonstra-se preocupado com a falta de
crença que alguns demonstravam:
É necessário que todos os que possuem um resto de crença rezem para que o mundo futuro se
revista do ESPÍRITO DE EMAÚS – isto é, para que se lhe abra o entendimento, e ele se penetre no
sentido da Escritura. (dE 231)
Murilo refere-se ao Evangelho como algo íntimo, próximo dele e do seu
conhecimento, não apenas intelectual ou literário, mas da proximidade que buscava ter com a
Palavra de Deus. Tanto que ele afirma que “O Evangelho antes de ser escrito foi encarnado,
vivido, sentido, comunicado, crucificado e ressuscitado” (dE 547) e também “O evangelho é
uma vasta oração em marcha: e nada existe nele que não seja essencialmente vital”. (dE 696)
Os bispos, na 48º Assembleia Geral da CNBB no ano de 2010, motivaram toda a
Igreja para que todos “deixemo-nos cativar pela Palavra. Ela faz arder nossos corações, abrir
nossas mãos e torna velozes os nossos pés na missão”. A fim de que todos descubram a
presença imanente de Deus, o Papa Bento XVI, na Encíclica Verbum Domini, exorta os
cristãos:
Não podemos guardar para nós as palavras de vida eterna que recebemos no
encontro com Jesus Cristo: são para todos, para cada homem. Cada pessoa
de nosso tempo – quer o saiba quer não – tem necessidade deste anúncio. A
nós cabe a responsabilidade de transmitir aquilo que por nossa vez tínhamos,
por graça, recebido.205
Murilo não se sente envergonhado ao expor em seus poemas a alegria de conhecer e
apaixonar-se por esse Deus presente nessa Palavra, que encanta, que move os corações, que
aquece e traz esperança.
205
VD, 91.
89
2.- A teologia que se depreende dos poemas e da mística
A Teologia como um discurso que se propõe a falar sobre Deus pode e deve falar para
o humano, na sua vivência, na sua realidade. O que se almeja é uma Teologia que alcance o
mais profundo do ser humano, para que se possa reconhecer e encontrar Deus em todas as
coisas, como um Deus que pode ser reconhecido e vivenciado206
, onde tudo flui com amor –
mas um amor que não pode ser fixado em conceitos, conforme expressou Dionísio. Tendo o
Amor como elemento fundante da mística cristã, aquele que se revela na comunhão com Deus
e na comunhão entre as pessoas, a teologia fará sua reflexão para despertar no humano o que
está escondido (debir) no seu eu mais profundo. É o ponto de encontro entre o imanente e o
transcendente.207
2.1 - Comunhão com Deus
O ser humano preso aos limites de tempo e espaço busca compreender a dimensão da
sua vida. Ao reconhecer Deus como o Autor da vida e da criação, aquele que busca fazer o
encontro com Jesus poderá experimentar uma novidade jamais imaginada: o jeito próprio de
Jesus de falar, de ensinar e de acolher cada um, especialmente os mais pobres. O encontro
íntimo com Jesus transforma a vida da pessoa e esta é chamada a colocar em prática o amor e
a caridade manifestados em seu coração. Esta é a mística que irrompe e leva a pessoa a uma
vivência amorosa, tal qual o próprio Jesus. O ser humano é limitado e não é Deus, afirma a
Teologia, mas na profunda comunhão com Deus, na pessoa do Filho Jesus Cristo, ele é capaz
de transcender seus limites humanos para testemunhar o amor de Deus, pois “ele foi
derramado em nossos corações”.
Sabemos que a Teologia afirma as verdades da fé cristã, e esta nos revela o Pai
Criador, o Filho Jesus Cristo, Salvador da humanidade, e o Espírito Santo, Santificador,
Inspirador e Motivador para os que aderem ao cristianismo como forma de vida. A Teologia
da Trindade, das três pessoas em um só Deus, comunica a profunda comunhão existente em
‘os Divinos três’, e os reafirma como modelo para os cristãos. Sciadini afirma que “Deus é
206
SUDBRACK, Josef. Mística a busca do sentido e a experiência do absoluto. p. 128. 207
CATALAN, Josep Otón. A Experiência mística e suas expressões. São Paulo: Edições Loyola, 2008. p. 16.
“Essa dupla conotação de debir, por um lado, aquilo que está oculto, e por outro, o sagrado onde se manifesta a
Presença divina – evoca o interior humano por sua dimensão inconsciente e misteriosa e também por ser
santuário e morada de Deus”.
90
modelo de nosso amor humano e referencial de todo nosso agir. No entanto, não é possível
viver a plenitude da comunhão com Deus sem deixar-se possuir pela Três Divinas
Pessoas.”208
A teologia afirma a presença no meio da humanidade de um Deus comunidade;
ora, ninguém está só, porque é parte integrante desta comunidade de amor que se realiza no
amor e que se doa.
Na poesia muriliana, encontra-se o apelo desta comunhão com Deus, vislumbra--se
um cristão que, longe de apenas conhecer a teoria da sua fé, vive uma relação de amizade e
amor em nome do Deus, comunidade perfeita209
. Para o poeta, “A religião católica começa na
sociedade perfeita das Três Pessoas Divinas”. (dE 560)
A experiência do encontro com Deus leva o místico a não fechar os olhos para a
beleza de Deus. Ele enxerga a partir da contemplação de olhos abertos, denunciando todas as
atitudes que desfiguram a imagem de Deus em cada ser. O nº 43 da Carta Novo Millennio
Ineunte ressalta a necessidade da espiritualidade da comunhão para dar sentido às ações
humanas:
Antes de programar iniciativas concretas, é preciso promover uma
espiritualidade da comunhão, elevando-a ao nível de princípio educativo em
todos os lugares onde se plasmam o homem e o cristão, onde se educam os
ministros do altar, os consagrados, os agentes pastorais, onde se constroem
as famílias e as comunidades. Espiritualidade da comunhão significa em
primeiro lugar ter o olhar do coração voltado para o mistério da Trindade,
que habita em nós e cuja luz há de ser percebida também no rosto dos irmãos
que estão ao nosso redor. Espiritualidade da comunhão significa também a
capacidade de sentir o irmão de fé na unidade profunda do Corpo místico,
isto é, como « um que faz parte de mim », para saber partilhar as suas
alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às
suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade.
Espiritualidade da comunhão é ainda a capacidade de ver antes de mais nada
o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de
Deus: um « dom para mim », como o é para o irmão que diretamente o
recebeu. Por fim, espiritualidade da comunhão é saber « criar espaço » para
o irmão, levando « os fardos uns dos outros » (Gal 6,2) e rejeitando as
tentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo,
suspeitas, ciúmes. Não haja ilusões! Sem esta caminhada espiritual, de pouco
servirão os instrumentos exteriores da comunhão. Revelar-se-iam mais como
estruturas sem alma, máscaras de comunhão, do que como vias para a sua
expressão e crescimento.210
208
SCIADINI, Patrício. Uma hora com Elisabete da Trindade. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 53. 209
MENDES, Murilo. Luminárias de Ouro Preto. O poeta em prece ao Deus trinitário. Murilo Mendes, Poesia
completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. ANEXO II. 210
NMI, 44.
91
2.2 - Comunhão com os irmãos
Um dos pontos altos da poesia muriliana é a tentativa de sobressaltar a sensibilidade
ao citar em seus versos a solidariedade e a caridade como essência do cristianismo. Esses
aspectos do cristianismo, como vimos, converteram o homem e o poeta para o seguimento de
Jesus, já que Murilo Mendes não se contentava com uma religiosidade descompromissada
com Jesus e com o próximo. A compreensão de Jesus como servidor expressa em seu poema
um Cristo que se coloca a serviço e ensina seus discípulos a imitação radical de seus gestos e
palavras.211
A Sagrada Escritura narra a dificuldade de os discípulos compreenderem a paixão
de Jesus anunciada por Ele mesmo, o que levou muitos deles a agir de forma contrária ao que
Jesus pretendia. Neste poema, Murilo Mendes expressa uma reação semelhante das pessoas
do seu tempo:
O Cristo declarou expressamente que veio a este mundo para ser o Servidor do Homem. É tão
espantoso o alcance desta palavra que seu destino revolucionário não tem sido por culpa nossa
devidamente cumprido. (dE 440)
A mudança de comportamento que se espera de um cristão, para Murilo Mendes, é
motivada “pela palavra de Jesus Cristo que brota tanto do Evangelho como do nosso coração”
(dE 543) quando o humano se abre e se permite acolher o Evangelho, que, para o poeta,
“antes de ser escrito foi encarnado, vivido, sentido, comunicado, crucificado e ressuscitado”.
(dE 547)
A pedagogia de Jesus foi ensinar para cada um assimilar em si e no próximo a pessoa
do Pai, ponto central para construir o reino de paz e de justiça no hoje da história, a partir da
necessidade do próximo. Ele mesmo questiona o cego: “Que queres que eu te faça” (Mc
10,46-52), como quem está preocupado com a realização do outro. A mística cristã não se
realiza sem uma vivência amorosa na presença do Cristo ressuscitado e no acolhimento mútuo
entre irmãos, por isso, o “outro” é lugar teológico. Neste sentido, a solidariedade exigida por
Jesus é compromisso primeiro de cada cristão empenhado por concretizar uma ordem de Jesus
aos discípulos. Referindo-se à multidão que caminhava com eles, ao anoitecer, os discípulos
sugeriram que Jesus a dispensasse, mas ele disse aos seus seguidores: “vocês é quem têm de
lhes dar de comer” (Mc 6,37). Ainda hoje a fome, as injustiças e toda forma de exploração
211
BARBOSA, Francisco de Barros. A experiência do “Cristo Servo” na América Latina. Uma cristologia de
serviço e de seguimento. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 17.
92
renegam aos mais pobres e sofridos o direito a uma vida digna. Murilo, olhando para a
realidade do seu tempo, também exclamou: “É tão necessário saciar a fome e a sede” (...). (dE
554)
Mediante uma cultura do imediatismo, do individualismo, do ter mais do que do ser,
do sucesso e da produção da moda, o cristão não deve submeter-se a tais exigências, a fim de
não sufocar a beleza de Deus, da criação e do humano.212
É nessa dimensão de abertura para o
outro que a fé em Deus desenvolve a nossa profunda identidade em resposta à sua Palavra.
Sabemos que a fé cristã fundamenta-se em Deus, e não nos homens, Deus, porém, espera o
engajamento humano para realizar sua entrega total. Zilles, ao destacar a participação do
humano neste movimento, afirma:
Crer em Deus significa encontrar um sentido e um valor profundo para o
mundo, o qual deixa de ser uma máquina abandonada a seu próprio
movimento e começa a ser uma realidade destinada ao amor. (...) Mas crer
em Deus significa também crer no próximo, no mundo e em si mesmo. Crer
em Deus significa reconhecer-se e aceitar-se na fragilidade; significa ser
livre para construir sua vida. Quem crê em Deus não pode aceitar a
escravidão e o totalitarismo.213
A experiência de comunhão com os irmãos far-se-á a partir da comunhão do encontro
com Deus. Essa comunhão exige um dinamismo de nossa parte, pois não é uma realidade
estática. São Paulo é quem descreve mais explicitamente essa experiência. E a doutrina sobre
o dinamismo da vida cristã, através da expressão “tornar-se adultos em Cristo”, quer significar
a maturidade cristã como comunhão de vida com Cristo (Ef 4,11-16). Ser um cristão adulto
significa aderir a Cristo e deixar-se guiar por seu Espírito.214
Para Murilo Mendes, “Só Jesus
Cristo pode ser, para o homem que chegou à madureza de espírito, a exata medida do valor
absoluto, o único mestre, o supremo modelo do humano e do divino”. (dE 214)
3. - Contribuições específicas para a elaboração da teologia latino-americana
No seguimento de Jesus, Murilo Mendes se compreende como cristão católico. Para
ele, viver a religiosidade e a mística é ser solidário aos ideais de libertação do povo
212
BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e Compaixão. A Teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton.
p. 92. 213
ZILLES, Urbano. A modernidade e a Igreja. EDIPUCRS, 1993. p. 10. 214
PALAORO, Adroaldo. A experiência espiritual de Santo Inácio e a dinâmica interna dos exercícios. São
Paulo: Edições Loyola, 1992. p.16.
93
oprimido215
. A partir do seu grande desejo de mudança, destaca seu entendimento sobre a
essência do papel dos teólogos. Na visão de Murilo:
Os teólogos têm justamente insistido na necessidade de acompanhar o Cristo nos seus
sofrimentos, paixão e morte. Mas é também necessário acompanhá-lo nas suas alegrias – que não
podemos, de resto, separar da sua paixão (...). (dE 598)
Acompanhar o Cristo, para o poeta, em seu catolicismo engajado e consciente, estava
muito mais voltado para a interpelação de Cristo no rosto e na vida dos mais pobres e
oprimidos. Murilo, que “apesar de ter nascido e vivido muito antes em que na América Latina
se configurou a Teologia da libertação”,216
trazia em seus poemas a interlocução entre Cristo e
a humanidade.217
Encantado com as palavras e com os gestos de Jesus, ele se permite
questionar e até mesmo se considerar “Mau samaritano”.
Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim, que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.218
No evangelho de Lucas (Lc 17,21) Jesus disse aos seus discípulos que o Reino de
Deus está próximo, e no mesmo evangelista encontramos outra expressão em que Jesus
afirma que o Reino de Deus está no meio de vós (Lc 10,11). Na poesia muriliana, pode-se
verificar a importância destas duas passagens do Evangelho. O poeta irá afirmar que O reino
de Deus está em nós (dE 33), em sintonia com o apóstolo Paulo. Os seguidores de Jesus hoje,
comprometidos com a mesma missão d’Ele de dar de comer a quem tem fome, dar de beber a
quem tem sede, vestir os nus, acolher os estrangeiros, libertar os prisioneiros, dar vistas aos
cegos, devem primeiramente estar dispostos a implantar o Reino de Deus de justiça e paz. O
próprio Jesus, enquanto ensinava aos seus discípulos, explicou através de parábolas o Reino
de Deus e o fez a partir da realidade e das necessidades do seu povo e do seu tempo: doentes,
órfãos, mulheres e crianças, parte da sociedade excluída dos seus direitos sociais e religiosos,
e mostrou a importância de cada pessoa assumir a concretização do “novo céu e da nova
215
SILVA, Francis Paulina Lopes In: Aragem do Sagrado. Deus na Literatura brasileira contemporânea. p. 120. 216
BINGEMER, Maria Clara. A argila e o espírito. Ensaios sobre ética, mística e poética. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004. pp. 134-135. 217
MENDES, Mendes. O Cristo da pedra Fria e Cristo subterrâneo. ANEXO III. 218
MENDES, Murilo. A poesia em pânico. Rio de Janeiro: Cooperativa Cultural Guanabara, 1938. Disponível
em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/mu4.html. Acesso em: 03.08.2013.
94
terra” (Is 65,17) no hoje e aqui da história. Jesus não se distanciou da vida e da caminhada do
ser humano. Ele, Deus feito homem, sentiu as dores e as alegrias, caminhou com o povo, foi
humilhado, perseguido, caluniado, assumiu sua cruz como sinal de entrega e de amor a Deus e
à sua criação e ordenou: “Vá e faça a mesma coisa” (Lc 10,37).
A gritante realidade de pobreza e exploração na América Latina, acobertada por uma
produção midiática que valoriza a religião do mercado, em que o consumo desenfreado
procura mascarar a identidade de um povo, desvalorizando a pessoa e sua cultura, afronta a
pastoral219
que pretende acolher e acompanhar as pessoas nas suas mais diversas necessidades
humanas, sociais e especialmente religiosas. Em um século marcado pelo individualismo, a
Igreja Católica motiva seus fiéis a intensificar a vida em comunidade, e de forma integrada
com as demais, ser “comunidades de comunidades”. O documento de Aparecida destacou a
necessidade de renovação, revitalização e mesmo transformação das estruturas da Igreja, a
começar pela Paróquia, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil teve o mesmo tema em
sua assembleia no ano de 2013, e indicou pelo menos sete desafios especialmente para a
Igreja católica:
o desafio da vida urbana;
o desafio da identidade;
o protagonismo dos leigos;
novas expressões;
novos métodos;
novo ardor (família e missão), e
anúncio e catequese.220
Recentemente em visita ao Brasil, o Papa Francisco, em suas colocações claras e
profundas, comentou alguns aspectos, por exemplo, sobre o papel da Igreja na América
Latina:
Quero que as Igrejas saiam às ruas, quero que nos defendamos de tudo que
seja mundanismo, do que seja instalação, do que seja comodidade, do que
seja clericalismo, do que seja estar fechados em nós mesmos. As paróquias,
as escolas, as instituições são para sair; se não o fizerem, tornam-se uma
ONG, e a Igreja não pode ser uma ONG. 221
219
As pastorais são uma ação concreta de evangelização da Igreja do Brasil e na América Latina, contando com
pessoas de boa vontade, comprometidas com o Evangelho de Jesus Cristo e chamadas a ser fermento na massa. 220
Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/articulistas/dom-pedro-luiz-stringhini/12007-comunidade-de-
comunidades-uma-nova-paroquia. Acesso em: 04.08.2013. 221
Palavras do Papa FRANCISCO no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 44.
95
Assim como a poesia muriliana encontrou nos discípulos de Emaús um novo impulso,
o Papa Francisco reanima toda a Igreja a estar presente, de olhos e ouvidos abertos e atentos.
E, como Jesus, caminhar com os aflitos, descobrindo novas maneiras de aquecer o coração e
fazer da Igreja a casa do acolhimento mútuo e da amizade, para voltar hoje a Jerusalém, não
mais o lugar geográfico, mas a todos os lugares onde haja conflitos, injustiças, ódio e
opressão. Diz o Papa Francisco, de certo modo poético, mas também profético:
Precisamos de uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da
simples escuta; uma Igreja que acompanha o caminho pondo-se em viagem
com as pessoas; uma Igreja capaz de decifrar a noite contida na fuga de
tantos irmãos e irmãs de Jerusalém; uma Igreja que se dê conta de como as
razões, pelas quais há pessoas que se afastam, contém já em si mesmas
também as razões para um possível retorno, mas é necessário saber ler a
totalidade com coragem. Jesus deu calor ao coração dos discípulos de
Emaús.
O Papa conclamou os jovens na Jornada Mundial da Juventude Rio 2013 para “pôr
Cristo em sua vida” e “Deixar-se amar por Jesus, pois ele é um amigo que não desaponta”. E
acrescentou: “Amigos queridos, a fé é revolucionária e eu lhe pergunto, hoje: está disposto,
está disposta a entrar nesta onda da revolução da fé? Só entrando, sua vida jovem terá sentido
e, assim, será fecunda”.222
Na cidade de Aparecida, o Papa disse que “precisamos transmitir
aos nossos jovens os valores que farão deles construtores de um País e de um mundo mais
justo, solidário e fraterno” e chamou a atenção de todos para três posturas: conservar a
esperança; deixar-se surpreender por Deus; viver na alegria”.223
No discurso aos participantes
do Congresso Eclesial da Diocese de Roma, o Papa Francisco pediu que “não tenhais medo
do diálogo com outras comunidades”:
A Igreja esteve sempre presente nos lugares onde se elabora cultura. Mas o
primeiro passo é sempre a prioridade aos pobres. Devemos ir também às
fronteiras do intelecto, da cultura, na altura do diálogo, do diálogo que traz a
paz, do diálogo intelectual, do diálogo racional. O Evangelho é para todos!
Foram muitos os questionamentos sobre a presença contagiante do Papa Francisco
com seu jeito simples, humilde e amoroso. A identificação com a pessoa do Papa aproximou
as pessoas especialmente da Pessoa e da mensagem de Jesus, pois se apresentou não apenas
como um bom comunicador, mas como um evangelizador e seguidor de Jesus. A presença do
Papa no Brasil demonstrou a necessidade de uma mística encarnada, pois ele, ao dirigir-se aos
222
Palavras do Papa FRANCISCO no Brasil. p. 57. 223
Palavras do Papa FRANCISCO no Brasil. p. 22.
96
mais pobres, ofereceu alegria e clamou por resistência contra todo tipo de violência e
injustiças. Atualmente as relações profundamente fragilizadas pela concorrência e competição
impedem muitas vezes de as pessoas sensibilizarem-se com o sofrimento ou conquistas de
outrem, o que causa uma carência não apenas material, mas também afetiva e espiritual.
Exemplos como o do Papa, que ao chegar ao Brasil pediu licença para entrar224
, mostram
como a compaixão e o acolhimento devem ser vertentes fundamentais da ação pastoral no
Brasil e na América Latina.
Para que a ação pastoral provoque efetivamente uma mudança na vivência comunitária
e social implica assumir efetivamente e afetivamente a Pessoa do Cristo no próximo, em todos
os momentos, assim como quando fazemos memória do sofrimento, a paixão e a Páscoa de
Jesus. Disse o Papa Francisco que viver a Semana Santa é “sair de nós mesmos para ir em
direção à periferia e ao encontro dos mais afastados, dos esquecidos, dos que necessitam de
compreensão, consolo e ajuda”.225
A pobreza não é desejo de Deus, pois impede de se viver dignamente; e a expressão de
amor mais latente é viver a solidariedade em forma de protesto contra a pobreza. Como diz
Paul Ricouer, não se está realmente com os pobres senão lutando contra a pobreza.226
Jesus
falou do Reino de Deus, e um dos critérios para se entrar nesse Reino é o desprendimento dos
apegos contra o espírito da pobreza evangélica.227
Nas “bem-aventuranças” (Mt 5,3) Jesus
falou dos “pobres em espírito” e que o Reino dos céus pertence a eles. Os “pobres em
espírito” estão de coração aberto, disponíveis para deixar tudo, para, na sua humildade, seguir
a Jesus. Os pobres são a base teológica já que é neles, por eles e para eles que Deus se revela
na história humana.228
Uma teologia a serviço da vida precisa estar atenta e disposta a cuidar
224
Palavras do Papa FRANCISCO no Brasil. pp. 15-16. “Aprendi que para ter acesso ao povo brasileiro é
preciso ingressar pelo portal do seu imenso coração; por isso, permitam-me que nesta hora eu possa bater
delicadamente a esta porta. Peço licença para entrar e transcorrer esta semana com vocês. Não tenho ouro nem
prata, mas trago o que de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo! Venho em seu nome, para alimentar a chama
de amor fraterno que arde em cada oração; e desejo que chegue a todos e a cada um a minha saudação: a paz de
Cristo esteja com vocês!” 225
Primeira Audiência Geral do Papa Francisco: Disponível em:
http://www.news.va/pt/results?q=sair+de+n%C3%B3s+mesmos+para+ir+em+dire%C3%A7%C3%A3o+%C3%
A0+periferia+e+ao+encontro+dos+mais+afastados%2C+dos+esquecidos%2C+dos+que+necessitam+de+compre
ens%C3%A3o%2C+consolo+e+ajuda. Acesso em: 01.08.2013 226
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. p. 361. 227
Cat., 2544. 228
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge
Amado. p. 229.
97
de duas fomes: “uma de pão, que é saciável, e outra de beleza, insaciável”.229
A fome de pão
não implica somente distribuir o alimento, pois “só podemos falar de libertação do pobre
quando o pobre mesmo surge como sujeito principal de sua caminhada, mesmo apoiado por
outros aliados”230
, a conseguir o alimento, o emprego, a casa e outros direitos.
A busca da beleza, também compreendida como “a busca do sentido da vida como
exercício de liberdade”231
, transcende o olhar aparente e as palavras, para ecoar no interior de
cada um, através do silêncio e da contemplação, o agir amoroso de Deus. Bingemer ressalta
que “graças à espiritualidade, a poesia entra no jogo inventivo do espírito e da beleza que se
comunicam através das palavras”232
, assim a espiritualidade, área da teologia que estuda a
relação do ser humano com Deus, terá sentido se guiar a pessoa para encontrar o belo em uma
mística e em uma práxis, a partir de Jesus, através de uma maneira nova de se relacionar com
Deus, experimentando os frutos de uma a espiritualidade que anima e motiva a vida cristã.233
A Lumen gentium convida-nos a buscar em Cristo o sentido mais profundo da pobreza cristã:
Como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, a
Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho para comunicar aos homens
os frutos da salvação. Cristo Jesus “que era de condição divina... despojou-se
de si próprio tomando a condição de escravo” (Fil. 2, 6-7) e por nós, “sendo
rico, fez-se pobre”(2 Cor. 8,9): assim também a Igreja, embora necessite dos
meios humanos para cumprir sua missão, não foi instituída para buscar a
glória terrestre, mas para proclamar a humildade e a abnegação, também
com o seu próprio exemplo.234
Viver essa pobreza cristã é Acompanhar o Cristo desde a sua encarnação, que se
realizou como um ato de amor para toda a humanidade em toda sua vida pública até o
calvário, morte e ressurreição, como fazia Murilo Mendes, que procurou viver plenamente o
cristianismo buscando inspiração no Cristo e em sua Palavra. Havia em Murilo um sentimento
que o instigava a acompanhar a vida toda do Cristo. Essa exigência nasce de uma mística que
o faz uma pessoa mais sensível aos apelos do homem e da mulher do seu tempo. Porque
incomoda ver o sofrimento, a exclusão, doentes abandonados, enquanto cristãos deveriam
229
ANJOS, Marcio Fabri dos. “et alli” (org.) Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p.
81. 230
ANJOS, Marcio Fabri dos. “et alli” (org.) Teologia e novos paradigmas. p. 82. 231
BOGAZ, Antonio S. & COUTO, Marcio A. “et alli” (orgs.) Vinho novo, odres velhos. São Paulo: Edições
Loyola, 200. p. 31. 232
BINGEMER, Maria Clara. A argila e o espírito. Ensaios sobre ética, mística e poética. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004. p. 126. 233
MURAD, Afonso & MAÇANEIRO, Marcial. A espiritualidade como caminho e mistério. Os novos
paradigmas. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 15. 234
LG, 8.
98
estar comprometidos com a própria causa de Jesus Cristo. O poeta irá, ele mesmo, fazer a
experiência de “acompanhar o Cristo” na cruz dos que sofrem, pois deseja ver uma sociedade
mais justa e mais humana.
Morrer e ressuscitar com Cristo é vencer a morte e entrar em uma vida nova (Rm 6,6-
11), na qual a cruz e a ressurreição selam nossa liberdade. Porém, os primeiros discípulos de
Jesus tiveram dificuldades em compreender e aceitar a Cruz de Cristo. A rejeição se deu
porque os discípulos entenderam a cruz como sinal de fracasso do homem em quem tinham
colocado todas as suas esperanças de vida; na verdade demoraram a crer que até mesmo o
Filho de Deus sofreria a tão humilhante morte de cruz. Na verdade, os discípulos representam
todos aqueles que ignoram a cruz de Cristo, ou utilizam-se dela como meio de alcançar seus
desejos imediatos, pois estarão “desvirtuando a cruz de Cristo” (1Cor 1,17) e por isso mesmo
distorcendo o cristianismo.235
A cruz de Jesus é sinal de anúncio de felicidade somente para
aqueles que conseguem enxergar nela a novidade do Reino de Deus, que se encontra na
renúncia de bens e de satisfação pessoal.
Jesus, ao compreender sua missão como Filho de Deus, levava a Boa Notícia a todos.
Porém, como seu anúncio exigia, para alguns, renunciar a farturas que acumulavam, estes não
queriam deixar sua riqueza e seus excessos para seguir Jesus. Foram os pobres e
marginalizados os que o compreenderam e se sentiram acolhidos pelas palavras e ações do
Mestre. O seguimento no caminho de Jesus, porém mostrava-se exigente também para os
pobres - que pouco possuíam para renunciar do ponto de vista material, mas, ainda assim lhes
era exigido renunciar a outros “deuses” para servir a um só Deus. Essa decisão talvez não
fosse também muito fácil para os mais pobres, que se encontravam subordinados ao poder
vigente e eram seduzidos em troca de “pão e circo”, preservando a pobreza da maioria dos
excluídos da época de Jesus e ao mesmo tempo se aproveitando dela. Pagola comenta que
“colocar a cruz de Cristo no centro do cristianismo não significa centralizar o cristianismo no
sofrimento, renunciando a toda busca de felicidade”.236
A cruz de Cristo exige renúncia a uma
felicidade egoísta e aponta para uma realização do ser humano, exige compromisso com o
bem e a felicidade do outro. Reduzir o sofrimento provocado por um sistema de exploração,
promover a dignidade humana, construir a paz e a justiça, acreditar e espalhar a alegria que
nasce do encontro fraterno, acreditar na vida são compromissos de quem assume a cruz de
235
PAGOLA, José Antonio. É bom ter fé – uma teologia da esperança. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p. 66. 236
PAGOLA, José Antonio. É bom ter fé – uma teologia da esperança. p. 67.
99
Cristo, e devem estar certos de que não estarão privados de perseguição e sofrimento. A
certeza da vitória sobre todo tipo de mal levou Paulo apóstolo a afirmar que “outra coisa não
quero senão Jesus Crucificado e Ressuscitado” e é esta mesma certeza que anima homens e
mulheres a “acompanhar os passos do Senhor Jesus”, da Encarnação à Morte, da Cruz à Vida,
do humano ao Divino, das trevas à Luz, do sofrimento à alegria, como ressaltou Murilo, no
lugar de se debruçar no sofrimento e esquecer-se de promover a vida de tantos que necessitam
de uma Boa notícia em sua vida. Forte expressa a profundidade da experiência da cruz: “No
silêncio da cruz, Deus fala. Na morte, a vida vence”.237
3.1 – Missão dos leigos, sonho do poeta
O interesse do poeta pela religião e especialmente pela vida de Jesus assemelha-se ao
que os documentos da Igreja, especialmente a partir do Concílio Vaticano II, especificam
como missão dos leigos. A Lumen Gentiun oferece a compreensão que o Concílio Vaticano II
tem dos leigos:
Pelo nome de leigos aqui são compreendidos todos os cristãos, exceto os
membros da ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. Estes fiéis
pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de Deus e a
seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo,
pelo que exercem sua parte na missão de todo povo cristão na Igreja e no
mundo.238
O Concílio Vaticano II afirmou que a vocação/missão do leigo é sua índole secular.239
O leigo é chamado a testemunhar sua fé e a ser luz do mundo nos diversos campos da
sociedade, como na saúde, política, educação, artes, vida internacional, meios de comunicação
social e, ainda, em outras realidades abertas para a evangelização, como a família, a educação
das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento240
, para que a Igreja
possa promover um diálogo com a sociedade e assim oferecer uma resposta evangélica aos
seus anseios. Os leigos são convocados a transformar o mundo, pois o Evangelho, inspiração
e força de todo cristão, deve penetrar e aperfeiçoar as realidades terrenas.
237
FORTE, Bruno. Teologia em diálogo. Para quem quer saber e para quem não quer saber nada disso. São
Paulo: Edições Loyola, 2002. p.76. 238
LG, 32. 239
GS, 62. 240
CL, 23.
100
A Christifidelis Laici, exortação apostólica pós-sinodal, define que a identidade dos
leigos só pode ser compreendida a partir da comunhão na Igreja,241
e da participação da
missão da Igreja, colaborando com os pastores. Dos leigos espera-se que sejam protagonistas
e, em certa medida, criadores de uma nova cultura humanista. O leigo deve viver o evangelho
servindo à pessoa e à sociedade para que o Reino se torne, de fato, fonte de libertação e de
salvação total para todos os homens.242
Como vimos anteriormente muitos que marcaram a história da mística cristã tiveram
uma trajetória de vida mais ligada a mosteiros ou a conventos, porém, com um olhar mais
voltado para as realidades temporais que os levaram a experimentar Cristo nos diversos
desafios. No contexto das transformações do mundo da economia e do trabalho, os leigos
devem empenhar-se na solução dos problemas do crescente desemprego, lutando em favor da
superação das injustiças, assumindo o dever de serem construtores da paz.243
Diante de tais desafios, o mundo é o locus da mística cristã especialmente para os
cristãos que se sentem chamados a fazer uma profunda experiência do chamado de Deus no
seguimento a Jesus, refazendo, na sua atividade cotidiana, a unidade de uma vida que
encontra no Evangelho inspiração e força para se realizar em plenitude.244
A superação do
relativismo entre o sagrado e o profano, existente desde os tempos mais remotos do
cristianismo, continua sendo um dos desafios para o cristão consciente da sua missão
profética. O despertar dos cristãos para a necessidade de fazer ressoar a mensagem de fé – em
Jesus e na sua mensagem – torna-se um imperativo a fim de desabrochar uma vivência mística
a partir, principalmente, da religião e da religiosidade.245
A essência da religião para Murilo Mendes é ser cristão. Ele ressalta que “Poeta
cristão não é sempre o que escreve versos sobre assuntos religiosos: é o que opera como
cristão ante qualquer tema profano”. (dE 434). Na visão do poeta, “a religiosidade ultrapassa
o nível de doutrina para ser Caminho, Verdade e Vida”, realidade que exige uma
compreensão muito mais profunda. Em consonância com o documento Evangelização e
missão profética da Igreja, destacamos:
241
CL, 113. 242
CL, 36. 243
CL, 42. 244
CL, 34. 245
BOGAZ, Antonio S. & COUTO, Marcio A. “et alli” (orgs.) Deus Onde está?A busca de Deus numa
sociedade fragmentada. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 129.
101
Faz-se necessário aprofundar a dimensão profética da ação evangelizadora
diante dos desafios que a nova cultura coloca. Sobre isso nos alerta João
Paulo II: “uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida,
não inteiramente pensada e nem fielmente vivida”.246
Todo cristão é ungido pelo Espírito, no batismo, para que sua vida seja configurada a
Cristo, por ele e nele plenificado pelo Espírito. Como porção do povo de Deus247
, nenhum
batizado tem o direito ao descompromisso, porque é chamado a viver em serviço e
comunhão248
. Como já afirmamos anteriormente, a exigência que se impõe ao cristão de viver
profundamente uma mística cristã para responder primeiramente ao apelo de Deus e ao
mesmo tempo os clamores da atualidade é um desafio; no entanto, deve ser maior a alegria de
contemplar o mundo movido pelo Espírito.
Murilo Mendes demonstra em seu poema a necessidade de tirar do papel o
aprendizado da Palavra, a necessidade do ser católico e deixar-se mover pela novidade de
Deus, de fazer a experiência do encontro com o Cristo ressuscitado e Nele e a partir dele
tornarmo-nos melhores pessoas, para que o mundo seja um lugar melhor para se viver, sempre
no seguimento a Jesus:
Essa pequena aldeia de Emaús é a tenda da catolicidade, onde aprendemos a
compreender tudo o que é útil ao aperfeiçoamento do nosso espírito.
Passamos a perceber a totalidade e a universalidade da Pessoa de Cristo, e
que a vida da Escritura consiste Nele,249
desde a primeira palavra do Gênesis
até a última do Apocalipse.(dE 232)
Conclusão
Importante ressaltar que a experiência mística que, por sua vez, se esforça por atingir o
real em si mesmo, captado como um absoluto, não se fixa na razão. A exigência é de colocar-
se na presença de Deus; dispor-se à escuta e ao acolhimento. Bernard escreveu: “Tal é a
atitude que distingue radicalmente o metafísico, que se esforça por pensar Deus, e o homem
246
CNBB, Evangelização e Missão da Igreja, 22. 247
LIBANIO, João Batista. Concilio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Edições
Loyola, 2005. p.115. Libanio desenvolve a importância da expressão povo de Deus porque influenciou muito a
eclesiologia do Vaticano II. “Esse chamado de Deus a toda humanidade para ser povo de Deus e viver em
comunhão filial com ele afeta cada indivíduo na sua realidade ontológica. K. Rahner vai chamá-lo de existencial
sobrenatural” 248
FORTE, Bruno. A Igreja ícone da trindade – breve eclesiologia. São Paulo: Edições Loyola, 1987. p. 47 249
VD, 7 – “A expressão “Palavra de Deus” acaba aqui por indicar a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai,
feito homem.”
102
religioso, que se situa numa atitude de disposição e de receptividade a qual, nos místicos,
toma a forma de passividade”.250
A experiência mística não vive de uma ideia de Deus, mas mergulha em uma
receptividade radical em relação a uma realidade transcendente e desta nasce o testemunho
dos místicos que, com simplicidade, “julgam que sua união com Deus radica-se na fé; eles
não possuem a Deus, mas Deus se lhes dá por graça e da maneira que ele quer”.251
Contudo,
para chegar à elaboração de uma teologia mística, existiram esforços para uma unificação
doutrinal,252
pois a reflexão da experiência mística movida pela fé passa necessariamente pela
ideia de Deus elaborada pelo sujeito, assim como toda a Teologia. No entanto, a vida mística
não se reduz a um conhecimento, mas engloba uma instância afetiva, o que se torna um
desafio para uma Teologia que, para sobreviver, deve tornar-se receptiva a uma realidade
dinâmica em que a linguagem do amor seja um elemento de unidade.
A Teologia mística, por meio do método antropológico, irá demonstrar que o teólogo
só é verdadeiramente teólogo quando se colocar em posição de humildade na certeza de que
Deus poderá lhe revelar algo de grandioso por meio de suas pesquisas e conhecimento, mas a
real necessidade é a de vivenciar o mistério de Deus.253
Essa constatação permite ao místico
alguns questionamentos que contribuirão de forma mais efetiva na sua elaboração teológica:
O místico não pode escapar de um questionamento fundamental: que relação
estabelece a sua experiência com sua vida de fé essencial e permanente?
Consequentemente, como conceber uma relação com Deus diferente por sua
modalidade da relação que assegura o exercício comum da fé? Todo místico
cristão abordou estas questões de um modo ou de outro. Nenhum jamais
viveu no nível puramente empírico. Ele necessariamente passa ao plano da
reflexão crítica e, de bom grado ou não, chega ao nível teológico.254
A sede da presença de um Deus libertador, um Deus amoroso, um Deus presente e um
Deus Fiel desafia nosso continente latino-americano a “encontrar uma linguagem sobre Deus
que nasça da situação e dos sofrimentos criados pela pobreza injusta em que vivem as grandes
maiorias, e ao mesmo tempo um discurso alimentado pela esperança que levante um povo
250
BERNARD, Charles André. Teologia Mística. p. 29. 251
BERNARD, Charles André. Teologia Mística. p. 53. 252
BERNARD, Charles André. Teologia Mística. p. 107. 253
SUDBRACK, Josef. Mística a busca do sentido e a experiência do absoluto. p. 56. 254
BERNARD, Charles André. Teologia Mística. p. 107.
103
rumo à libertação”.255
Na poesia de Murilo Mendes verificamos que o poeta, encorajado pelo
espírito de Emaús, deixou a experiência - mística - cristã traduzir-se em versos, desta forma,
levando ao íntimo das pessoas a beleza do mistério de Deus. Esse diálogo promissor entre
Teologia e Literatura tem demonstrado avanços para a Teologia que pretende interagir com o
mundo, a fim de que ele seja transformado num Reino de Amor, de paz e de liberdade, por
meio da vivência amorosa de Deus.
Bernard comenta que “A afirmação antropológica cristã fundamental é que o homem
foi criado à imagem e semelhança de Deus e situa-se diante dele como alguém capaz de
responder pelo seu próprio destino”.256
Percebemos que a poesia auxilia na aproximação do
homem moderno com a mística cristã, por meio de uma linguagem artística que esconde o que
pretende revelar, porém, profunda porque fala de Deus, e este se revela também por meio da
poesia.
Murilo Mendes nos revela, no movimento de sua poesia, um Deus que se quer
próximo de nossos anseios, e que se faz humano na partilha.
255
GUTIERREZ, Gustavo. A verdade vos libertará. Confrontos. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p.72. 256
GUTIERREZ, Gustavo. A verdade vos libertará. Confrontos. p. 33.
104
CONCLUSÃO GERAL
Apesar de existir uma vasta literatura sobre a mística cristã, ela é muito mais para ser
vivenciada do que para ser estudada. Os escritos de Murilo Mendes não versam sobre a
mística em si, mas são um sinal de como vivê-la em plenitude, ou seja, a serviço do outro.
Diante dos desafios de sua época, tão próprios também dos nossos dias, ele, mais do que
imprimir em versos toda sua indignação com a indiferença, a pobreza, a desigualdade, tornou-
se adepto de uma religião a serviço da vida, voltada para os problemas humanos, terrenos.
Mística é isso: atitude diante do outro, diante da natureza e diante de Deus, é compromisso
com o Deus da vida, com a Cruz de Jesus como significado da Sua entrega em favor da
humanidade. Desde os primeiros séculos do cristianismo muitos homens e mulheres
dedicaram sua vida a colocar em prática a vontade do Pai revelada por Jesus. Este revelou,
por meio de palavras e ações, que a vontade do Pai é a “libertação aos presos, aos cegos a
recuperação da vista e a libertação dos oprimidos”. (Lc 4,18-19)
Os místicos se empenham em dar um sentido autêntico à vida, exigência fundamental
para os que decidiram seguir Jesus Cristo como único Mestre e Senhor. Esta oração que Jesus
rezou resume a maneira como vivem o discipulado e contribuem para que o Reino de Deus se
realize na história: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas
coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”. (Mt 11,25-27)
Por ser o seguimento de Jesus, para os cristãos, a maneira mais autêntica de viver a
existência humana, seja no âmbito pessoal e familiar, seja no engajamento sociopolítico, é
urgente e desafiador o que o apóstolo Paulo escreveu: “Tenham em vós os mesmos
sentimentos de Cristo”. (Fl 2,5) Quando o homem assumir os mesmos sentimentos e atitudes
de Cristo, acolhendo os pequeninos e ao compadecer-se de suas dores, tomar a coragem de
levantar todos os caídos do caminho, poderá afirmar que compreendeu o verdadeiro sentido
da mística cristã, pois é no encontro com o próximo que se encontra Deus.
Encontrar Deus que “está no meio de nós” é “deixar-se seduzir”(Jr 20,7) por seu
chamado, é encantar-se diante da beleza e das maravilhas da criação; é cuidar para não ser
seduzido por ídolos e não permitir que atitudes contrárias ao Projeto de Deus se oponham à
105
concretização do Seu Reino, atitudes como a indiferença diante da vida ameaçada por tantas
situações degradantes como as que vivemos hoje.
Deus não quer a vida ameaçada. Neste sentido, na América Latina, palco de tantas
situações degradantes da vida humana, onde imperam a pobreza, a exclusão social, o
desrespeito ao papel da mulher, a falta de oportunidade para jovens, a exploração sexual de
crianças e o trabalho infantil,257
a Teologia deve levar a pessoa a acreditar na presença de um
Deus-Amor que exige o compromisso de cumprir o que Ele antes nos ordenou: amor a Deus e
amor ao próximo.
Ao “deixar-se seduzir por Deus”, Murilo entendeu que o Evangelho anunciava um
Novo Caminho, um novo jeito de viver, e este novo jeito incluía comprometer-se com o que
Ele antes nos ordenou: amar a Deus e amar ao próximo. Ele, que vivia em meio a agnósticos,
comunistas ou comunizantes, e se considerava delirantemente moderno, confessa que via a
religião como algo obsoleto, ultrapassado. Ele, que nascera em berço católico, admitia o quão
difícil era entender como alguém de bom gosto pudesse ser católico. Mas foi pelo exemplo de
um católico que se permitiu descobrir Deus como um Pai amoroso, e Jesus como o Amigo a
ser seguido; permitiu-se, assim, contaminar pela solidariedade e compaixão de Jesus para com
as pessoas, especialmente para com os mais pobres e sofridos. É somente a partir da prática de
sua descoberta que Murilo consegue fazer ecoar em sua poesia a mística cristã. Essa mística
percebida na poesia de Murilo Mendes tem motivado pesquisadores de diversas áreas do saber
(Literatura, Teologia, Ciências da Religião, Antropologia) a verificar em suas obras o que
levou o poeta a uma conversão ao cristianismo: uma conversão que o encorajou a falar de
Deus sem preocupar-se com os coloquialismos literários da sua época.
A beleza própria da poesia muriliana possibilitou uma compreensão da mística muito
mais a partir do cotidiano e das coisas pequenas da vida, do que exigências restritas a
tradições e ritualismos sejam na poesia ou no cristianismo. A poesia de Murilo Mendes que
abundantemente trata de Deus, da Palavra de Deus, da religiosidade, do cristianismo e da
Pessoa de Jesus marcou a temática humana a partir da abordagem pelo universo literário.
257
Acrescenta Feller: A crise da modernidade, a injustiça social, o terrorismo, a violência urbana e rural, o
narcotráfico, a corrupção política, o fracasso da ciência e da técnica na solução efetiva de doenças e problemas
crônicos, a destruição do meio ambiente, os males cometidos contra as crianças, entre outros, são problemas
próprios de nossa época que demandam uma resposta salvífica da parte das religiões. FELLER, Vitor Galdino. O
sentido da salvação. Jesus e as religiões. p. 102.
106
Como a poesia é a voz da alma, Murilo além de compreender a dinâmica do que a
poesia pode causar em sua vida, fez dela um livro aberto ao fazer memória da sua vida e da
experiência de Deus. Essa abertura é fruto do Espírito Santificador que o levou a amadurecer,
compreendendo o papel do ser humano no mundo e sua efetiva contribuição com Deus, no
seguimento a Jesus e fazendo da poesia uma oportunidade para falar de Deus e do seu infinito
Amor.
A Palavra de Deus que desentranhada em forma de poesia e prosa nas obras de Murilo
Mendes demonstrou um homem muito mais que convertido: um apaixonado por Cristo. É esta
necessidade que se impõe para a Teologia hoje: contribuir para que seja apaixonante descobrir
Deus, seguir Jesus, buscar a justiça, o amor ao próximo e amar a vida e a criação como dom
de Deus. Se assim for, esse seguimento e amor poderão se traduzir em gestos de partilha e
solidariedade.
É graças a escritos como os de Murilo Mendes que percebemos a recuperação da
Mística em nosso dias, essa mesma mística que por séculos despertou homens e mulheres
para testemunharem uma experiência profunda de Deus e igualmente por outros séculos foi
rejeitada pela Igreja. Os desafios para esse resgate da mística parecem maiores em nossos
tempos do que foram em outros. Um deles apresentado ao cristianismo e aos que desejam
viver em seguimento de Jesus nos nossos dias é o desvio de interesses. O ser humano torna-se
mais vulnerável e deixa de se importar com a essência das coisas, sua busca desenfreada é por
prazer e satisfação pessoal e essa atitude reflete também na escolha da sua vivência
religiosa.258
A experiência de Deus a partir dos pobres que a Teologia pós-Concílio Vaticano
II, na América Latina, despertou na Igreja e em diversos movimentos sociais foi o motor da
retomada da mística cristã, de uma mística encarnada na realidade para comunicar Deus de
diversos modos, com o desejo da realização da justiça e da paz em lugares que apresentam
situações tão opressoras e injustas. Enquanto a sociedade mercantilista trata a pessoa como
mercadoria, a mística cristã abre um Caminho para o ser humano reconhecer o brilho nos
olhos de Deus e sentir-se amado por Ele.
Nesta análise da mística cristã ficou claro o que disse Karl Rahner “o cristão do futuro
será místico ou não será”, porque é preciso sair da inércia e mergulhar no mistério, tomar
258
FONTES, Sonia. Problemas do Cristianismo na Pós-Modernidade. Centro Loyola, Rio de Janeiro.
Disponível em: http://www.clfc.puc-rio.br/artigo_fc48.html. Acesso em: 12.08.2013.
107
consciência que precisamos da presença amorosa do Cristo no nosso no cotidiano para
enfrentar com ternura, porém, com firmeza, os desafios que a modernidade nos impõe.
Constatamos a urgência da redescoberta da mística nos leigos cristãos, para uma vivência
mais comprometida com o Reino de Deus, e um processo de metanoia259
a fim de evitar os
exageros em ritos vazios, superficiais que não dizem nada à sensibilidade de hoje e por outro
lado demasiadamente espiritualizantes, marcas de uma Igreja descomprometida com a
pregação e exemplos de Jesus. Esta é a nossa tarefa como “Igreja” de hoje.
259
FORTE, Bruno. Teologia em diálogo. São Paulo, Edições Loyola, 2002. p. 151 Metanoia: em grego
conversão, mudança de mentalidade. Ver também Lexicon Dicionário teológico enciclopédico , 2003. p. 487
ANEXO I
Meu Pai
Meu pai deixa cedo a fazendola familiar em
Santo Antonio da Pedra, no Oeste de Minas. Impele-o entre menino
e adolescente o desejo de ajudar meu avô que por motivo de saúde
descuidara-se de seus bens: interrompendo os seus estudos
emigra para a zona da Mata.
Possuindo inteligência intuitiva,
força de vontade, amor ao trabalho e o dom da comunicação,
dentro de poucos anos fixa-se, funcionário público, em Juiz de Fora,
casando-se (duas vezes) numa das mais antigas famílias do Brasil.
Desenvolvendo suas qualidades de simpatia humana e senso de
solidariedade com o próximo, torna-se um personagem querido (...)
Depois de determinada época, dispondo de situação segura,
poderia escolher o descanso.
Mas, prefere movimentar-se, tomar iniciativas, colaborar em obras sociais. É um dos
fundadores do Politeama, o vasto cinema-teatro local; faz abrir algumas ruas; ajuda a
liquidar a mendicância, à frente da criação, nos arredores da cidade, de um asilo em moldes
modernos; propõe melhoramentos que, por demais ousados, nem sempre se realizam.
Pensando na educação dos filhos, liga-se aos homens mais cultos de Juiz de Fora.
Independente por tendência e convicção, vive alheio à política; ignora o aulicismo1. (...).
Perdoa sempre.
Lê habitualmente vidas de santos ou de grandes figuras leigas do catolicismo, sabe de cor
histórias de São Vicente de Paulo, São João Bosco (então dom Bosco), Fréderic Ozanam,
humanista comentador de Dante, fundador das Conferências vicentinas.
Uma vez, sendo eu já moço, criticando diante de meu pai esta associação que ele presidia em
Juiz de Fora, respondeu-me com lucidez que Ozanam ao criar aquela entidade não pretendia
resolver a questão social, mas por seus membros e contato imediato com a realidade da vida,
fazendo-os tocar a miséria, treinando-os para futuros samaritanos.
Reportei-me então a uma época anterior, quando meu pai nos levava (cada semana um filho,
rotativamente) a uma ampla casa onde se recolhiam doentes, paralíticos, aleijados, tortos,
manetas, pernetas, cancerosos, (...), todos sustentados pela Conferência vicentina.
Meu pai (...) toma mil providências, trata-os com carinho, dando-lhes injeções de vida.
Alimentado (...) do leite da ternura humana, não se contenta em pastorear seus filhos. Tendo
dois de seus irmãos enviuvado, faz vir do interior alguns sobrinhos que recebe em nossa
casa, instruindo os à sua custa nos melhores colégios; isto durante vários anos.
1 Aulicismo: do latim “aulicus”, de “aula” = corte; frequentador da corte. Os áulicos eram os parasitas que
infestavam as cortes dos reis e viviam exclusivamente dos seus favores. Desempenhavam uma tríplice função:
contribuir para o esplendor da corte, lisonjear os monarcas e, eventualmente, participar das maquinações
políticas e conchavos de bastidores.
Fonte: Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo – Fundação Nacional de Material Escolar – Rio de Janeiro –
1972
Meu pai é de uma paciência absoluta com o adolescente estranho que sou (...)prego partidas
a quase todos: padres e professores, perdem a cabeça comigo. Declaro sistematicamente que
só quero ser poeta, nada mais.
(...) pergunto-me como seria minha mãe, morta no meu primeiro ano de idade;(...)
Mais tarde alegra-se diante do sucesso dos filhos. (...) quanto a mim, alheio às maquinações
literárias, (...) ele me manda então para o rio uma bela carta, reclamando que eu deveria
escrever mais, publicar outros livros, fazer frutificar meus dons.
Meu pai morre imprevistamente aos 70 anos, cercado do afeto de todos; sendo seu corpo, a
pedido da Câmara Municipal, conduzido a pé ao distante cemitério a fim de que o povo possa
acompanhá-lo. Para que apoteose ao que sempre se distribuiu pelos outros; ao que, tendo
seguido a lição do samaritano, prolongou além da sua casa o círculo da família, sem jamais
fechar ao pobre o olhar e a bolsa.
Que me legou meu pai de grande e permanente? Sem dúvida a religião católica, apresentada
por ele, ao invés de certos padres, mais na flexibilidade do que na sua rigidez, incluindo o
respeito pelas crenças ou descrenças alheias; o interesse pela pessoa espantosa de Jesus
Cristo; a sensação, sempre renovada no catolicismo, de que me acho diante de questões
formidáveis. Moviam meu pai, conservador-progressista, a tradição, a grandeza de ânimo, a
tolerância, a ternura antissentimental, o bom senso. Ouvindo-o nunca reparei que lhe faltava
o canudo de doutor. Praticou a paz, não a paz telegráfica e a de comícios, viveu a paz em
musica de câmara, amando-a total na sua carne e no seu espírito.
ANEXO II
Luminárias de Ouro Preto
No amor ocultas,
Ó planetárias!
Tu, Pai antigo,
Pastor eterno;
Geraste a luz;
Roda gigante,
Moves o mundo,
Nume pensante,
Grão propulsor,
Que tudo podes,
Menos parar,
Tu, Jesus Cristo,
Verbo encarnado,
Louco da Cruz,
Deus Alumbrado
Traz nova luz:
Lumeia logo
Toda a criação
Que vem ao mundo,
Segundo João;
O santo Espírito
Dos dois procede
Sopra a verdade,
Solda a unidade
Que liga os Dois;
O amor gerando
ANEXO III
O Cristo da Pedra Fria
O Cristo da pedra fria
Sentou-se agora aqui em frente
Com a chaga do ombro aberta.
O mundo do demônio cai no chão,
O Cristo de manhã
Sentou-se na pedra fria,
O frio que sinto pela queixa dos mortos,
O frio da fome dos outros,
O frio do extremo desconsolo
Do desconsolo do Cristo em mim, em vós, em todos,
Na pedra fria, nossa alma
Que omite, que espanca.2
Cristo Subterrâneo
Descubro um Cristo secreto
Que nasce na Espanha súbito
Não é o Cristo vitorioso
Dos afrescos catalães,
Nem o Cristo de Lepanto
Suspenso por uma torre
De espadas, velas, paixões,
Não investe uma colina,
Não brilha no meio do altar
Entre ornamentos de prata.
Nem, no palácio dos ricos,
Nem no báculo dos bispos.
É um Cristo quase secreto
Que nasce das catacumbas
Da Espanha não-oficial.
Nasce da falta de pão
Nasce da falta de vinho,
Nasce da funda revolta
Contida pela engrenagem
Da roda de compressão
Nasce da fé maltratada,
Vagamente definida.
É um Cristo dos operários
Atentos, em pé de greve,
Filhos de outros operários
Mortos na guerra civil.
É um Cristo dos estudantes
2 Disponível em: http://uol.amaivos.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=3520&cod_canal=30.
Acesso em: 01.08.2013
Sem dinheiro para as taxas.
É um Cristo dos prisioneiros
Que no silêncio cultivam
A pura flor da esperança.
É um Cristo de homens-larvas,
Famintos, inacabados,
Morando em covas escuras
De Barcelona e Valência.
É um Cristo da experiência
De padres inconformistas
Que não abençoam espadas
Nem incensam o ditador,
É um Cristo do tempo incerto,
É um Cristo do vir-a-ser,
Formado nos corações
Da Espanha que não se vê.
11
BIBLIOGRAFIA
1. DE MURILO MENDES
Poemas, 1930
História do Brasil, 1932
Tempo e Eternidade, 1935 (em colaboração com Jorge de Lima)
O sinal de Deus – 1936
A Poesia em Pânico, 1937
O Visionário, 1941
As Metamorfoses, 1944
O Discípulo de Emaús, prosa, 1945
Mundo Enigma, 1945
Poesia Liberdade, 1947
Janela do Caos, 1949
Contemplação de Ouro Preto, 1954
Poesias (1925-1955), 1959
Siciliana – 1959
Tempo Espanhol, 1959
Poliedro, 1962
Alberto Magnelli – 1964
Italianíssima (7 murilogrammi) – 1965
Calderara: pitture dal 1925 al 1965 – 1965
Idade do Serrote, memórias, 1968
Convergência, 1970
Poliedro – 1972
Retrato Relâmpago, 1973
Marrakech – 1974
MENDES, Murilo & JUNIOR, Davi Arrigucci. Recordações de Ismael Nery. São Paulo:
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Livros publicados postumamente
Ipotesi, Org. de Luciana Stegagno Picchio 1977
Transistor. Seleção do autor e de Maria da Saudade Cortesão Mendes – 1980
Janelas verdes (primeira parte). Ilustração de Vieira da Silva – 1989
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2. SOBRE MURILO MENDES
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