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Resumo Este artigo constitui uma contribuição para o entendimento das relações entre centralidade e acessibilidade a partir da análise do sistema de transportes na cidade do Rio de Janeiro. Examina-se o esforço sistemático de se considerar a rede de transporte como elemento “natural”, como se tal rede pudesse assumir um papel supremo na estruturação do espaço. Discute-se a evolução do sistema de transporte e seu papel nas condições de acessibilidade na escala intra-urbana. O período analisado, os anos de 1960, corresponde à ruptura no padrão de circulação da cidade. Explica-se, assim, a decadência de alguns subcentros e o surgimento de outros, bem como a emergência de novas e diferenciadas centralidades. Palavras-chave: sistema de transportes, centralidade, Rio de Janeiro. Introdução O termo centralidade provoca nos estudiosos do espaço urbano em geral, e nos geógrafos em particular, uma forte lembrança da célebre Teoria dos Lugares Centrais de Walter Christaller. É sabido que a concepção de Christaller não esgota as possibilidades de compreensão do fenômeno da centralidade. A geografia humanística e a geografia cultural, por exemplo, têm trazido novas contribuições teórico-metodológicas para o estudo dos lugares centrais, de modo a contemplar as várias dimensões da centralidade, sobretudo a partir do enriquecimento do conceito de lugar na geografia. Centralidade, acessibilidade e o processo de reconfiguração do sistema de transporte na metrópole carioca dos anos de 1960 Ronaldo Goulart Duarte * An attempt was made to summarize the growing/declining importance of different means of transportation to provide accessibility, inside the urban area of Rio de Janeiro, along the time. Special attention was given to the decade of 1960 when an important change in the patterns of intra-urban circulation have occurred. Keywords: system of transports, centrality, Rio de Janeiro Centrality, accessibility and the changes in the transportation system of Rio de Janeiro in the decade of 1960. By writing this paper the author aims to offer a contribution to the understanding of the linkage between centrality and accessibility, provided by different means of transportation, in the city of Rio de Janeiro. An effort is made to avoid “naturalizing” the transportation network, as if it had a supreme power to structure space. It is society that is the sole responsible for this. * Mestre pelo PPGG-UFRJ, Professor Assistente do Cap-UERJ Centralization, accessibility and the reconfiguration of Rio de Janeiro’s metropolitan transportation system in the sixties

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Resumo

Este artigo constitui uma contribuição para o entendimento das relações entrecentralidade e acessibilidade a partir da análise do sistema de transportes na cidade do Rio deJaneiro. Examina-se o esforço sistemático de se considerar a rede de transporte como elemento“natural”, como se tal rede pudesse assumir um papel supremo na estruturação do espaço.Discute-se a evolução do sistema de transporte e seu papel nas condições de acessibilidade naescala intra-urbana. O período analisado, os anos de 1960, corresponde à ruptura no padrão decirculação da cidade. Explica-se, assim, a decadência de alguns subcentros e o surgimento deoutros, bem como a emergência de novas e diferenciadas centralidades.

Palavras-chave: sistema de transportes, centralidade, Rio de Janeiro.

Introdução

O termo centralidade provoca nos estudiosos do espaço urbano em geral, e nosgeógrafos em particular, uma forte lembrança da célebre Teoria dos Lugares Centrais de WalterChristaller. É sabido que a concepção de Christaller não esgota as possibilidades de compreensãodo fenômeno da centralidade. A geografia humanística e a geografia cultural, por exemplo,têm trazido novas contribuições teórico-metodológicas para o estudo dos lugares centrais, demodo a contemplar as várias dimensões da centralidade, sobretudo a partir do enriquecimentodo conceito de lugar na geografia.

Centralidade, acessibilidade e o processo dereconfiguração do sistema de transporte na metrópole

carioca dos anos de 1960

Ronaldo Goulart Duarte *

An attempt was made to summarize thegrowing/declining importance of differentmeans of transportation to provideaccessibility, inside the urban area of Rio deJaneiro, along the time. Special attention wasgiven to the decade of 1960 when an importantchange in the patterns of intra-urbancirculation have occurred.

Keywords: system of transports, centrality, Riode Janeiro

Centrality, accessibility and thechanges in the transportation system of Riode Janeiro in the decade of 1960.By writing this paper the author aims to offera contribution to the understanding of thelinkage between centrality and accessibility,provided by different means of transportation,in the city of Rio de Janeiro. An effort is madeto avoid “naturalizing” the transportationnetwork, as if it had a supreme power tostructure space. It is society that is the soleresponsible for this.

* Mestre pelo PPGG-UFRJ, Professor Assistente do Cap-UERJ

Centralization, accessibility and the reconfiguration of Rio de Janeiro’smetropolitan transportation system in the sixties

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A despeito desse fato, é inegável que uma parcela considerável da compreensão docaráter central de um espaço está associada à sua acessibilidade1, enquanto fator primordial paraqualificarmos sua localização. Aliás, concordamos com VILLAÇA (1998:74) quando afirma quea própria terra urbana “(...) só interessa enquanto “terra-localização”, ou seja, enquanto meio deacesso a todo o sistema urbano, a toda a cidade. A acessibilidade é o valor de uso mais importantepara a terra urbana” .

Partindo dessa premissa, segue que a possibilidade de acesso a um determinado ponto doespaço varia na razão direta dos atributos das redes técnicas de transporte2 que para ele convergem.

Não é nosso objetivo neste artigo fazer a apologia da importância do sistema detransporte para a compreensão do espaço urbano. Muito menos estamos entre aqueles queconferem a esse sistema técnico uma autonomia em relação à sociedade que ele não possui.Esse determinismo tecnológico dos transportes, entendidos como condicionantes da organiza-ção do espacial, já foi desmascarado por seu reducionismo, podendo-se exemplificar com ascríticas de GOTTDIENER (1997: 26, 49).

Apesar disso, não podemos deixar de lembrar que, particularmente no caso das análisesespaciais na escala intra-urbana, a importância dos sistemas de transporte não pode sermenosprezada. Mais uma vez recorremos a VILLAÇA (1998:20):

“A estruturação do espaço regional é dominada pelo deslocamentodas informações, da energia, do capital constante e das mercadorias em geral—eventualmente até da mercadoria força de trabalho. O espaço intra-urbano, aocontrário, é estruturado fundamentalmente pelas condições de deslocamentodo ser humano, seja enquanto portador da mercadoria força de trabalho—como no deslocamento casa/trabalho— seja enquanto consumidor —reprodução da força de trabalho, deslocamento casa-compras, casa-lazer,escola, etc. Exatamente daí vem, por exemplo, o enorme poder estruturadorintra-urbano das áreas comerciais e de serviços, a começar pelo própriocentro urbano”. (grifo nosso)

Este quadro analítico de referência precisa incorporar também o processo histórico, ouseja, o caráter diacrônico da centralidade. Essa variável pode oscilar em função de fatores diversos,especialmente por alterações na topologia e nos atributos técnicos da rede de circulação, o quecontinuamente redefine a acessibilidade a um ponto do espaço em particular.

Dessa forma, a investigação do urbano a partir dos transportes e do binômio centralidade/acessibilidade é uma das possíveis perspectivas de análise do que é a cidade, estando esta, por suavez, inserida na totalidade que lhe confere significado. Essa afirmativa está vinculada à idéia deque a organização espacial intra-urbana é fortemente afetada pelos seus padrões de circulação, osquais impactam diretamente sobre a posição relativa dos seus subespaços e sobre as própriasinterações sócio-espaciais entre eles.

2 Estamos trabalhando com a concepção de que a rede de transporte é um dos elementos (o suportematerial) do sistema de transporte sendo este, portanto, muito mais amplo do que aquele por abarcartambém todo o sistema de ações que envolve a circulação.

1 Estaremos trabalhando aqui com a definição de BARAT (1975:14), que entende a acessibilidadecomo a “disponibilidade de infra-estrutura viária e sistemas operacionais adequados à circulação debens e pessoas”.

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É a partir dessa perspectiva que nos propomos a fazer uma breve análise da diacroniada relação entre centralidade e acessibilidade proporcionada pelos meios de transporte na cidadedo Rio de Janeiro. Em particular iremos concentrar nosso foco em um recorte temporal crucial naredefinição dos padrões de circulação de pessoas no interior da cidade do Rio de Janeiro e nosatributos das centralidades de seu tecido urbano. Trata-se da década de 1960, momento quemarcou o ápice da reconfiguração do sistema de transporte carioca, conferindo-lhe os elementosestruturais fundamentais que ele ainda hoje conserva.

Rio de Janeiro, uma cidade que se movimentava sobre trilhos

Seguindo o padrão das demais cidades do mundo, o Rio de Janeiro apresentou durantecerca de trezentos anos um padrão urbano que correspondeu àquilo que SCHAEFFER e SCLAR(1975) chamaram de The Walking City e BOAL (1970) denominou The Pedestrian City, o quenos dois casos poderia ser traduzido por cidade dos pedestres. Tratava-se, no caso em tela, deuma cidade com ruas estreitas, constituindo um acanhado núcleo multifuncional, de ocupaçãodensa e conteúdo social heterogêneo.

Iniciando com a chegada da família real mas intensificando o processo a partir dadécada de 30 do século XIX, as classes com maior poder de mobilidade começaram a fugirdesse núcleo urbano tão pouco acolhedor. Mudavam para os seus arrabaldes, transformandoantigas chácaras de veraneio em residência permanente. Nessa ocasião, valeram-se tanto dosseus meios privados de locomoção quanto dos primeiros meios de transporte público da cidade,surgidos para atender à crescente demanda oriunda dos novos fluxos. Foi o caso das primeirasconcessões de serviços de navegação a vapor e das linhas de gôndolas e omnibus3.

Porém, o grande momento de alteração das possibilidades de deslocamento de pes-soas na cidade do Rio de Janeiro ocorreu por volta da década de 1870. A partir dessa época, asredes de carris e as ferrovias passaram a constituir os meios técnicos primordiais para aviabilização dos fluxos de pessoas no espaço urbano em questão.

Os novos meios técnicos alteraram substancialmente a morfologia urbana do Rio deJaneiro, em função da expansão horizontal da urbe que eles proporcionaram. Esse processo foipotencializado pela localização excêntrica do núcleo urbano original e pela topografia da cida-de. O resultado foi uma urbanização axial, particularmente ao longo dos eixos ferroviárioslocalizados ao norte e a noroeste da Área Central. Na Zona Sul, a inexistência do trem e ovirtual monopólio do bonde (enquanto transporte coletivo) possibilitou uma urbanização maisdensa, em função da maior capilaridade da rede de carris. Esse novo padrão possuía uma certasemelhança com o “padrão-estrela” da “cidade dos trilhos” (The Tracked City para Schaeffer eSclar ou Wheel-Track City de Boal).

É nesse quadro que a cidade do Rio de Janeiro passou por uma profunda mudançaestrutural, uma vez que o aumento das distâncias em relação à área central estimulou o surgimento

3 O vocábulo omnibus é de origem latina e significa “para todos”, expressando a idéia do caráter coletivodesse meio de transporte. O prefixo em questão pode ser omni ou oni (como em onipresente), grafia queacabou predominando e foi submetida às atuais regras ortográficas de acentuação.

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de novas centralidades, o que conduziu à uma estrutura policêntrica, substituindo a cidadeunicêntrica que existiu até então.

Os subcentros comerciais desenvolveram-se no Rio de janeiro a partir da década de1930. A correlação entre a gênese dos subcentros e a acessibilidade proporcionada pelos diver-sos meios de transportes é enfatizada por todos aqueles que se ocuparam dos processos espaci-ais intra-urbanos de descentralização, dentre os quais destacamos os comentários de BERRY(1963:363), COLBY (1933:290-291) BOAL e JOHNSON (1965:371), KELLEY (1955:211),HOYT (1964:86), VANCE (1958:223), DUARTE (1974:55), BARAT (1975:82).

Dessa forma, mesmo reiterando que o sistema de transporte não é o único elementopara explicar a centralidade dos subcentros (sejam eles planejados ou espontâneos), é inegávela contribuição da acessibilidade para a explicação do surgimento desses focos de convergência/divergência de pessoas na escala intra-urbana. Se nos ajuda a entender as interações espaciais,auxilia, por conseguinte, a dar inteligibilidade às formas espaciais da cidade.

Temos assim que, pelo menos até o final da II Guerra Mundial, o espaço urbanocarioca e as centralidades existentes em seu interior eram em boa medida explicados pelaspossibilidades de deslocamento de pessoas viabilizado pelos transportes sobre trilhos. Segundodados de BARAT (1975), trens e bondes eram responsáveis por 83,47% dos passageirostransportados na cidade, no ano de 1940. Sem dúvida, os principais subcentros daquele momentotinham sua acessibilidade fortemente relacionada ao trem (Madureira e Méier) e ao bonde(Tijuca e Copacabana).

O pós-guerra e o declínio dos transportes sobre trilhos

O impacto altamente benéfico do processo de eletrificação e modernização da linhatronco da EFCB, cujo primeiro trecho (Central-Madureira) foi inaugurado em 1937, teve alcancetemporal limitado. O grande aumento da demanda durante os anos 40 (período de grandecrescimento demográfico na nascente região metropolitana, especialmente em sua periferia),aliado à falta de investimentos no sistema, contribuíram para a sua aceleradaobsolescência. O resultado é que, no início dos anos 50, apenas dois terços dos trenspodiam funcionar ao mesmo tempo.

A insatisfação popular expressou-se de várias formas. A mais radical foi através dos“quebra-quebras”, como os de 1953 e 1956 (SILVA:1992). A mais pacífica pode ser medidapelo declínio do número de passageiros transportados pelos trens na cidade. Após acentuadocrescimento nos anos de 1937 a 1949 (quando chegou a transportar cerca de 220 milhões depassageiros), o volume foi reduzido gradativamente até o montante de 190 milhões em 1953.Isso em um período no qual a população da cidade crescia rapidamente, em função das mudançaspelas quais passava o país.

Fica por demais evidente que havia um forte anseio por parte da população do entãoDistrito Federal por uma alternativa ao transporte ferroviário, cujas condições de tráfego muitocontribuíram para a visão depreciativa que se consolidou até nossos dias acerca desse meio decirculação. Contribuiu também para a associação deste com os subúrbios enquanto local deresidência da população pobre da cidade (elementos básicos na composição do conceito carioca

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de subúrbio de SOARES, 1987/1960). Andar de trem na cidade do Rio de Janeiro passou a estarassociado, no imaginário local, a baixo status social, o que, sem dúvida, passou a constituir umelemento poderoso no sentido de estimular a procura por opções alternativas de transporte.

No que toca aos bondes, o pico histórico desse transporte na cidade do Rio de Janeirofoi alcançado em 1944: 709 milhões de passageiros (BARAT, 1975:147). Desse ano até aextinção do sistema, vinte anos depois, os números apresentados por BARAT e FREIRE (1992)indicam contínua redução.

GAWRYSZEWSKI (1995:205-206) apresenta dados indicando que, no período 1945-50, o número de carros teve um aumento ínfimo, de apenas 35 unidades (5,7% do total de carros).Além disso, a extensão das linhas foi reduzida de 558 para 489 Km. Nesse ínterim, a populaçãoda cidade cresceu cerca de 40%. O mesmo autor destaca a baixa qualidade do serviço noperíodo, com bondes que “costumavam andar superlotados, com horários irregulares, comespaços de tempo muito grandes entre um e outro e maquinário obsoleto”.

Mas se o bonde era o meio mais importante de circulação na cidade, com algo próximode 80% dos passageiros transportados no final da Guerra, por que ele entrou em declínio?

As causas são várias e não faz parte de nosso objetivo nos estendermos na suaexplicação. Iremos apenas destacar os aspectos mais gerais, que nos ajudem a compreender opanorama da transição que ocorria nos transportes públicos da cidade.

Primeiramente, havia a questão da lucratividade do serviço, comprometida pelocontrole de tarifas realizado pela Prefeitura e que já há tempos corroia a margem de lucro daempresa controladora, a Light. O poder público municipal em uma fase de regime mais democrático,como foi o período 1946-1964, sabia da importância do custo do transporte para a reprodução daforça de trabalho e também dos efeitos negativos que os aumentos de tarifas produziam sobre suapopularidade. Dessa forma, exercia rigoroso controle sobre o preço das passagens, comprimindoas margens de lucro da operadora.

O malogro das iniciativas de monopolizar os transportes coletivos na cidade, e aaproximação do término das concessões da empresa para a exploração dos serviços de carris(previstos para 1960 e 1970), ajudam a entender o crescente desinteresse da Light pelos transportescoletivos, preferindo priorizar seus investimentos em outros setores mais atraentes(fundamentalmente o de distribuição de energia elétrica).

Além disso, a partir dos anos 50, a empresa de bondes começou a sentir, de formamuito mais intensa, a concorrência de um novo meio de transporte, o automóvel, o qual se faziacada vez mais presente justamente naquela porção da cidade que constituía o filet mignon dacompanhia, ou seja, o eixo Centro-Zona Sul. A frota de automóveis da cidade, que era de37.784 unidades em 1947, passa para 83.735 em 1959, com um total estimado de passageirostransportados de 113.042.060, segundo dados e estimativas realizadas por BARAT (1975:179).

Por tudo o que foi dito acima, desenvolveu-se ao longo dos anos 50 uma crescenteassociação do bonde com atraso e congestionamento do tráfego, tornando cada vez mais negativa aimagem desse meio de transporte junto à opinião pública em geral. A ideologia desenvolvimentista,forte a partir do governo de JK, enxergava o bonde como um anacronismo, um verdadeiro obstáculoao progresso, o qual deveria ser substituído por meios de transporte mais modernos e velozes.

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O rodoviarismo e os tempos do mundo e do Estado-Nação

Em contraste com o que ocorreu com o transporte sobre trilhos, os anos de 1946 a1964 constituíram-se como um período de rápida ampliação do transporte rodoviário. O inte-ressante desse processo, quando comparado à expansão do transporte sobre trilhos no final doséculo XIX e início do XX, é que ele se fez presente em toda a cidade e não apenas em umaparte dela. É verdade que, até o início da década de 1950, as linhas de ônibus suburbanas eramminoritárias, porém eram as que apresentavam maior crescimento.

As causas para essa “explosão rodoviária” são muitas e referem-se a temporalidadesdistintas, as quais, atuando sincronicamente, explicam a mudança ocorrida nos transportespúblicos da cidade.

No que se refere ao tempo do mundo, o pós-guerra constituiu a fase do boom doautomóvel no mundo, em particular nos Estados Unidos. Esse fato, conforme era de se esperarno caso de uma economia dependente como a brasileira, não tardaria a ter seus reflexos poraqui, ainda que as peculiaridades da formação social brasileira em geral, e carioca em particular,tenham imprimido a esse processo características próprias.

A situação do transporte por ônibus era muito ruim ao término da II Guerra. Asrestrições impostas ao setor durante o conflito resultaram em um serviço deficiente, com veículosobsoletos, lentos, desconfortáveis e que viviam superlotados.

Mesmo assim, o período em questão foi inegavelmente marcado pela expansão dosistema, assinalando o início da transição do transporte urbano baseado nos trilhos para aquelesobre rodas de borracha. Para isso contribuiu a legislação de importações extremamente liberalimplantada pelo governo Dutra, que facilitou as importações de veículos automotores.

Todo esse panorama articulava-se a uma política nacional crescentemente rodoviarista,em consonância, reafirmamos, com as mudanças no paradigma tecnológico que ocorriam nospaíses centrais.

O rodoviarismo e o tempo do lugar: as políticas locais quefavoreceram a expansão do sistema urbano de

transporte rodoviário

Na esfera do poder local, o rodoviarismo ficava claramente manifesto nas políticasmunicipais implementadas após 1945 para o setor de transportes urbanos. FREIRE(1992:191)destaca em seu estudo que se a fase até 1945 foi marcada pelo intervencionismo,“... a segunda, a partir dessa data, estimulava o surgimento de novas empresas de ônibus elotações, favorecendo assim a liberalização do serviço”.

Um ingrediente que pode ser adicionado a essa receita do poder municipal no campodos transportes é indicado por Freire, o qual sugere o interesse dessa esfera governamental emreduzir a influência da Light e seu poder de barganha, estimulando o surgimento de novos

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interlocutores no setor. Na prática, a legislação excessivamente liberal dos anos 50 retardou esseprojeto na medida em que a excessiva pulverização do sistema acabou enfraquecendo o grupo deempresários de ônibus que havia se fortalecido no imediato pós-guerra, e que lutava para ocuparesse espaço político.

Paralelamente a isso, a “febre viária” expressava-se, sobretudo, através das muitasobras destinadas à circulação dos automóveis, tais como viadutos, vias expressas, túneis, etc.

No Rio de Janeiro, à semelhança do que ocorreu nos países desenvolvidos, em especialnos Estados Unidos, foi através do transporte rodoviário que ocorreu o processo de preenchimentodos espaços urbanos que permaneciam vazios entre os “braços” do padrão estrela das “cidadesdos trilhos” (Tracked City de Schaeffer e Sclar).

Porém as semelhanças param aí. Primeiramente porque o conteúdo social das novasáreas ocupadas era radicalmente distinto daquele verificado nas metrópoles dos EUA, e daíresulta um grande número de diferenças. Segundo, o transporte rodoviário suburbano, no casocarioca, foi a dupla ônibus/lotação e não o automóvel particular.

Todavia, as especificidades desse meio de transporte mostraram-se tão ou maisadequadas às características do processo de ocupação suburbano nos anos 50, quanto o automóvelo foi para a sua contrapartida estadunidense. Vejamos alguns aspectos.

Como é sobejamente reconhecido, não houve qualquer planejamento na urbanizaçãodos subúrbios. Não houve um plano diretor ou urbanístico que buscasse coordenar cronológicae espacialmente os loteamentos e arruamentos que surgiam a partir de iniciativascorporativas ou individuais, um verdadeiro estado de laissez-faire4, como expressou-seBARAT (1975:69) a respeito.

Dessa forma, somente um meio de transporte capaz de alterar seus itinerários comcerta facilidade, seria capaz de adaptar-se continuamente à ocupação desordenada e à contínuaalteração da malha viária dessa porção da cidade. As empresas de transporte sobre trilhos, poroutro lado, teriam dificuldades muito maiores para adaptarem-se sem comprometer suascaracterísticas operacionais e o retorno financeiro para os seus controladores (quando privadas).

Assim, apenas o ônibus/lotação, com seu baixo custo operacional e grande númerode paradas, estava habilitado a oferecer uma densa rede de linhas de curta e média extensão,capazes de viabilizar a ocupação dos espaços interferroviários, alguns dos quais esparsamentepovoados (a área servida pela E.F. Rio d’Ouro é um ótimo exemplo).

Outro aspecto a ser levantado é o reduzido investimento inicial necessário aoempreendimento. Nesse campo, MELLO (1981) lembra muito apropriadamente que esse modalpossibilitava a melhoria das vias por etapas. Em outras palavras, era possível iniciar o serviço apartir de um pavimento de terra e, a medida que o fluxo de tráfego aumentasse, seria possível agradativa implantação de revestimentos de melhor qualidade e maior custo. Já o transporte sobretrilhos requer um investimento inicial muito maior pois desde o início da operação há a necessidade

4 A partir de 1902 passou a haver, pelo menos, a exigência do Plano de Alinhamento paraas novas ruas.

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de implantação de completa infra-estrutura. Tudo isso, tornou possível aos pequenosempreendedores a alocação de seus capitais no transporte rodoviário, facilitando enormementesua disseminação.

No tocante à questão da rapidez, os ônibus e lotações, mesmo com um grande númerode paradas, tendem a ser os mais rápidos para pequenas e médias distâncias. Contudo, elesperdem para os meios de transporte de massa no caso dos deslocamentos envolvendo grandesdistâncias (típicas dos movimentos pendulares). No caso do Rio de Janeiro, essa diferença afavor do trem é atenuada pela proximidade entre as estações ferroviárias, reduzindo a velocidademédia das composições.

Outro fator que ajuda a explicar a emergência da era rodoviária, no contexto em análise,foi a transformação da estrutura interna da cidade e de seus fluxos. À medida que uma metrópolemuda sua estrutura de unicêntrica para policêntrica, ela torna-se muito mais complexa e a variedadede motivos de viagens, origens e destinos aumenta brutalmente. Tal aglomerado urbano tende a termais fluxos não-pendulares, como aqueles destinados a compras, lazer, consumo de serviços,consultas e profissionais liberais, etc. O modal rodoviário, em função de suas característicasoperacionais anteriormente apresentadas, é o mais adequado para atender esses deslocamentosque cresciam rapidamente no Rio de Janeiro dos anos de 1950.

Acrescente-se que os novos lugares centrais na escala intra-urbana são também, àsemelhança da área central, pontos de convergência de fluxos pendulares em função da grandeconcentração de oportunidades de trabalho. Tais fluxos não necessariamente reproduziriam opadrão axial daquele existente em direção ao Centro, o que significa que os trens não estariamautomaticamente em condições de atendê-los. A rigidez da rede ferroviária impossibilitou suaadequação às novas demandas de deslocamento.

Esse processo de mudança foi reforçado ainda pela associação do transporte rodoviário(incluindo aí o ônibus) com modernidade, conforto e prestígio social. Esse componente doimaginário da época é reconhecido por BARAT (1975:20) “Os habitantes mais favorecidos dossubúrbios passaram a utilizar-se dos ônibus, inclusive como afirmação de status social”.

Ainda que não caiba nos limites deste trabalho detalhar o processo em tela, é oportunolembrar que ele ocorreu de forma espacial e cronologicamente diferenciada. Um primeiroexemplo é a constatação de que nas áreas de urbanização mais antiga, correspondente aoseixos urbanos Centro-Zona Sul e Centro-Tijuca, o crescimento do transporte rodoviário precedeusua contrapartida suburbana, uma vez que além de todas as vantagens anteriormente apontadas,foi favorecido também pelo maior poder aquisitivo da população residente.

Dessa forma, o panorama geral que emerge das páginas anteriores atesta o processode ampla transformação na matriz dos transportes públicos da cidade em direção a um papelcada vez mais central dos ônibus e lotações na configuração dos fluxos de pessoas na metrópolecarioca nos anos de 1945-60.

Os anos de 1960 e a primazia do transporte rodoviário

O início dos anos de 1960 marca a agonia dos bondes como meio de transporte nacidade. As razões são várias e já foram, em grande parte, apontadas neste trabalho.

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A decadência do sistema contribuiu para que o bonde, símbolo do progresso no iníciodo século, ganhasse no imaginário coletivo a imagem oposta. Desconforto, atraso, lentidão eobstáculo ao tráfego tornaram-se parte do conceito que o carioca possuía do bonde, o que, semdúvida, muito contribuiu para a decisão do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, deextinguir os carris no ano de 1964. Nessa época eles transportavam cerca de 200 milhões depassageiros/ano, número muito inferior aos mais de 700 milhões do final da II Guerra.

No caso das ferrovias, se ao longo dos anos de 1950 elas experimentaram umadegradação acentuada na qualidade do serviço, paralela a uma curva de comportamento geralascendente quanto ao número de passageiros transportados, na década seguinte o sistema conheceum acentuadíssimo declínio, reduzindo de 300 para 190 milhões o total de passageiros/anoentre 1960 e 1965.

A opção rodoviária enquanto uma política de Estado:justificativas

Um aspecto que precisa ser lembrado para compor o quadro da crise dos transportesdos anos de 1950 e a sua “solução” nos anos de 1960 está na natureza da transição rodoviáriados anos 50. O fato de que esse modal estava gradativamente substituindo o transporte sobretrilhos não significa que esse processo foi linear ou que o novo meio de transporte que emergiafosse um modelo de qualidade e eficiência.

O transporte coletivo rodoviário dos anos de 1950 avançava cada vez mais em direçãoum modelo extremamente pulverizado nos lotações. Uma mesma linha era explorada pornumerosos individuais, submetidos a poucas obrigações e cuja fiscalização era extremamentedifícil de ser executada em função do próprio número de veículos envolvidos.

São numerosas as queixas ao serviço, ao longo dos anos de 1950. Em 9 de maio de1950, o jornal O GLOBO estampava no alto de sua primeira página a manchete: “Emsobressalto a população com os ônibus assassinos!”. Na reportagem o periódico informavaque: “Como das vezes anteriores, o ônibus, transportando passageiros em excesso (grifonosso), põe em risco vidas humanas numa revoltante inconsciência, que urge reprimirenergicamente”.

No final da década, quando os lotações dominavam o cenário, a manchete de primeirapágina no mesmo jornal, do dia 19 de agosto de 1958, era: “Pânico nas ruas da cidade com operigo dos lotações”. Tratava-se de editorial no qual a insatisfação com o sistema de transportebaseado nos lotações é explícito em meio a críticas a todos aqueles que estariam impedindoa implementação de um novo plano de transportes na cidade.

Ao mesmo tempo que essa insatisfação se avolumava, a crescente decadência dostrens e a já esperada e iminente extinção do serviço de bondes sinalizavam a necessidade deencontrar um meio de transporte capaz de atender a demanda em expansão, absorvendo inclusiveo tráfego desviado do transporte sobre trilhos.

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A opção do governo local foi, como bem sabemos, pelo transporte coletivorodoviário, o qual assumiu até hoje uma primazia praticamente sem paralelo mesmo entreas grandes cidades brasileiras. Porém o modelo adotado nos anos 60 era bastante distintodaquele existente na década anterior. Há uma gama extremamente variada de razões quedesnudam a lógica da estratégia implementada e a sua aceitação por parte da população.Buscaremos apresentar as que julgamos mais relevantes.

Acreditamos que uma das maiores explicações para a opção rodoviária foi que,pela primeira vez na história da cidade, ela permitiu o usufruto do mesmo sistema dedeslocamento por diferentes classes sociais, ainda que de forma diferenciada. Deixou dehaver uma dualidade de modais para diferentes áreas da cidade, simplificadamenterepresentada no modelo trem-subúrbios/bonde-Zona Sul. A escolha do ônibus para substituiro bonde viabilizava um modelo de transporte intra-urbano concomitantemente uno e dual,tanto em termos espaciais quanto sociais. Ao mesmo tempo que houve uma unificação dosistema pela opção rodoviária, manteve-se a dualidade através do binômio ônibus/automóvel.

O que se fez foi fazer coincidir a necessidade imperiosa e inevitável dedeslocamento da força de trabalho com as demandas de um modelo econômico (mundial enacional) e com os anseios das classes mais abastadas de deslocar-se utilizando o novosímbolo de status e modernidade que tornara-se acessível à classe média, o automóvel.

A mesma avenida asfaltada, o mesmo viaduto, o mesmo túnel servia tanto aoconforto dos que dispunham do transporte individual, quanto para os coletivos quedeslocavam a massa dos habitantes da cidade. A mesma obra viária que alegrava a classemédia poderia ser inaugurada com discursos que proclamavam os benefícios que ela trariapara todos os moradores da cidade, minorando o risco de ser acusado de estar governandopara os ricos. O rodoviarismo ou a “febre viária” como chamou ABREU (1987) livrou opoder público de dividir os esforços e recursos entre a rede dos ricos e a dos pobres.Investir na recuperação das ferrovias, por exemplo, era gastar com um sistema não utilizadopelos estratos mais elevados da sociedade. As ruas e avenidas atendiam, ainda que de formadesigual, reiteramos, às diferentes classes sociais.

Ao mesmo tempo, o governo local ganhava um interlocutor muito mais fácil denegociar e controlar do que a toda poderosa Light e as ferrovias federais, sobre as quais ogoverno do antigo Estado da Guanabara tinha pouca ou nenhuma ingerência. Sem dúvida,para o bem ou para o mal, o controle dos transportes coletivos da cidade passou quase queexclusivamente às mãos da esfera de poder local, na medida em que a transição foi efetivada.Como benefício adicional, o Estado continuava na confortável situação de poder concedentee fiscalizador, sem precisar prover diretamente os meios de deslocamento dos moradoresda cidade, no que significou a manutenção de um modelo fundamentalmente privado detransporte de passageiros

Quanto à população em geral, a insatisfação generalizada com o transporte sobretrilhos e um certa associação, no imaginário popular, do ônibus com um conceito de meio detransporte de maior status social, contribuíram para a boa receptividade dessa política.

101

A opção rodoviária enquanto política de Estado:sua implementação

A substituição dos bondes pelos ônibus foi uma política de estado planejada eexecutada metodicamente pelo governo de Carlos Lacerda. Sem dúvida ela fazia parte deuma ampla intervenção pública na circulação intra-urbana carioca, de cunho claramenterodoviarista, materializada nos muitos túneis, elevados e vias expressas implantados nacidade naquela administração.

Desde o final da década de 1950 a esfera de poder público local vinhademonstrando preocupação com a crise dos transportes em geral e com os lotações emparticular, transparecendo, de forma cada vez mais inequívoca, o propósito de promover aconcentração e a reordenação do serviço. Ao longo daquele decênio vários decretos jáapontavam de forma cada vez mais clara nessa direção.

Mas é no governo Lacerda que aqueles propósitos são concretizados. O decretoN. 395, de 20 de março de 1961, inaugurou uma seqüência de leis que implementaram apolítica pública para o setor. Através dele foi ampliado o leque de possibilidades de cassaçãodas licenças de transporte coletivo, visando tornar mais difícil a atuação pulverizada daslinhas com lotações individuais.

O ano de 1962 foi marcado por uma efervescência de novas legislações, com umtotal de sete decretos versando sobre o transporte coletivo rodoviário. Em um deles épossível observar um detalhe revelador na sua redação. Trata-se do decreto 988, cujo artigo1o expressava claramente a intenção de favorecer a concentração no setor, eliminando oslotações individuais: “Ficam sujeitos às disposições do presente Regulamento os“Auxiliares”, as “Empresas”, as “Companhias” e os “Permissionários-Individuais”(enquanto existirem) (grifo nosso) (…)” (LEX-GB; 1962;121). Registre-se que a observaçãogrifada acompanhava a categoria “Permissionários-Individuais” toda vez que era mencio-nada no Decreto.

O importante decreto 1.507, de 29 de janeiro de 1963, foi mais um passo naestratégia de transição planejada pelo Estado. A legislação começou a tornar compulsório ouso de ônibus para a exploração do transporte coletivo, na medida em que determinava, emseu artigo 1º, que o Departamento de Concessões não mais autorizaria o licenciamento demicro-ônibus e auto-lotações, mesmo para substituir os que estivessem em tráfego.

Ao mesmo tempo, buscando estimular a concentração no setor diante danecessidade premente de ampliar a oferta de assentos do sistema em função do término dacirculação dos bondes, o parágrafo único do artigo 2º da lei estipulava o prazo de sessentadias para que os proprietários de veículos auto-lotações ou micro-ônibus individuais seincorporassem à empresa já existente ou formassem novas empresas.

Essa imposição levou os proprietários individuais de lotações a se organizaremem empresas gerando uma “febre” associativa da qual ninguém podia escapar. A grandeparcela das atuais empresas de ônibus foi constituída nesse período. Mas a regulamentaçãoque marca a consumação da nova orientação para o transporte coletivo de passageiros na cidade

Centralidade, acessibilidade e o processo de reconfiguração do sistema de...

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do Rio de Janeiro estava contida no Decreto “N” N.45, de 13 de agosto de 1963. Nele foramaprovadas as diretrizes básicas do Sistema de Transporte Coletivo do Estado da Guanabara,revogando o Decreto 13.974, de 1958, que aprovava o plano anterior. Dentre as principaisdeliberações do decreto, podemos destacar:

· A completa reorganização da rede de linhas de ônibus da cidade, incluindo uma novaclassificação, sua redistribuição e a adoção de um número indicativo para cada linha.· Adjudicação de novas linhas cuja criação fosse necessária.· Levantamento do tempo médio de espera em todas as linhas, visando à imposição deaumentos de frota.· Proibiu, a partir de 1o de março de 1964 a utilização de micro-ônibus e auto-lotaçõesnas linhas de transporte coletivo na Zona Sul, dentro de um plano de substituição por etapasdesses veículos. Os mesmos seriam contudo tolerados nas linhas da Zona Norte, desde quetivessem menos de 7 anos de fabricação.· Todas as empresas de ônibus e lotações então existentes teriam que passar por umamplo levantamento de sua situação para verificar se suas condições operacionais eramadequadas para prestar o serviço dentro dos padrões exigidos pela CCT (Comissão Estadualde Controle de Serviços Concedidos de Transporte Coletivo). As que fossem aprovadasassinariam o termo de obrigação como permissionária do serviço por um prazo de 5 anos. Àsque não apresentassem condições seria dado um prazo de seis meses para se adequarem àsnovas normas, findo os quais assinariam novo contrato de concessão ou teriam a permissãosumariamente cassada, caso continuassem fora das exigências da CCT.

No anexo do Decreto N. 45, item 7.1, ficava estabelecido que: “os auto-lotaçõesdeverão ser gradativamente extintos por ser tecnicamente contra-indicado o emprego generali-zado desses veículos” (LEX-GB; 1963;254).

Entre julho e agosto de 1964, todas as empresas de ônibus e lotações foram visitadaspelos funcionários do B.T.C.(órgão executor da política definida pela CCT) para realização dolevantamento a que alude o decreto “N” de 1963. A investigação minuciosa, incluía o númerode linhas, frota (discriminando ônibus e lotações), condições da garagem, oficinas, capitalsocial, condições do pessoal empregado, entre outras informações.

Por ocasião desse levantamento todas as empresas receberam também um ofício-circular do BTC, que revelava com clareza a estratégia gradativamente implantada pelo gover-no Lacerda de conduzir a transição dos lotações para o ônibus. No ofício foram encaminhadosuma série de questionamentos, tais como, saber se a empresa pretendia ou não operar comônibus e, em caso positivo, qual o cronograma de substituição previsto, se ela tinha garagem eoficinas próprias, etc..

O passo final da política do Estado veio através da Portaria “N” No 5, de 16 desetembro de 1964. Nela são redefinidas as condições mínimas de operação para empresas detransportes coletivos, determinando inclusive a proibição da continuidade do uso de lotações.Alguns dias depois da publicação da Portaria, todas as empresas receberam a Circular 617/64 doBTC contendo uma cópia em anexo da nova legislação e demandando uma resposta quanto ao“compromisso de cumpri-la ou declaração de que não poderia fazê-lo”.

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Com essa medida e a implementação do novo sistema de linhas de ônibus (com novanumeração) estavam lançadas as bases do sistema que até hoje vigora na cidade, o qual assumiu aprimazia do transporte coletivo em toda a área urbana.

A estratégia governamental, no entanto, não parou aí, uma vez que o poder concedentecontinuou induzindo as empresas à concentração, como fica nítido através da edição do decretoE 1.482, de 1967, que fixou a frota mínima das empresas de ônibus em 60 veículos. O resulta-do prático dessa legislação foi deflagrar uma onda de fusões e aquisições entre as empresas, demodo a se adequarem à nova legislação. Em 1968, a frota desse número menor de empresasmaiores já estava em novo patamar, conforme atesta a tabela 1.

Muito interessante, e digno de uma investigação específica, foi a percepção de algumaspráticas espaciais das empresas de ônibus, inclusive nesse momento de concentração compulsória.Muitas empresas requeriam suas linhas e compravam concorrentes, sempre procurando conquis-tar ou manter o monopólio (às vezes um duopólio) de atuação em uma certa área da cidade.

Houve vários casos de empresas que adquiriram outras que operavam linhas fora desua área operacional as quais, mais tarde, foram permutadas, ou simplesmente vendidas, paraoutras empresas. Apesar de não ter sido alvo de nossa análise, foi possível perceber nos arqui-vos da SMTU uma atuação consciente da empresas em termos de gestão do seu espaço deatuação, freqüentemente agindo de forma que sugeria uma articulação entre os empresários.

aserpmE onA atorF aserpmE onA atorF

A/SahnirodnAoãçaiV 8691 36 adtLruobaJoãçaiVotuA 8691 58

A/Ssubinô-otuAoletsaC 8691 36 A/SasoMsetropsnarT 8691 06

A/SibmutaCsetropsnarT 7691 56 A/SsedruoLed.S.NoãçaiV 8691 07

adtLlapuohCsetropsnarT 8691 56 A/SpacavoNoãçaiV 8691 48

A/SetilEoãçaiV 8691 26 A/SlatneirOsetropsnarT 8691 39

atarPedalertsEoãçaiV 8691 76 A/SrotnedeRoãçaiV 7691 88

A/SesnearaPoãçaiVotuA 8691 17 adtLlinabuRoãçaiV 8691 16

A/SodraciRoãSoãçaiV 7691 57 A/SertsevliSoãS.psnarT 8691 06

saitaM.AairáivodoR 8691 66 A/SnudreVoãçaiV-otuA 8691 26

A/SiracAoãçaiV 8691 07 A/SlebasIaliVsetropsnarT 8691 56

Centralidade, Acessibilidade e o Processo de Reconfiguração do Sistema de...

Tabela 1- Frota de algumas empresas de ônibus do Rio de Janeiro em 1967 / 68

Fonte: Arquivos da SMTU

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Em 1981, um outro decreto, o 3.239, promoveu nova rodada de concentração ao redefiniro número mínimo em 120 veículos.

Não há dúvida que a década de 1960 marca a conclusão da transição dos transportes nacidade do Rio de Janeiro em direção a um modelo rodoviário que estava em harmonia com osinteresses hegemônicos daquele momento. Se o transporte rodoviário (ônibus, carros e táxis) jáinaugura a década transportando a maioria dos cariocas (54,56%) ele termina o período na condiçãode absoluta primazia (88,53%, sendo que 66,33% por ônibus), segundo os dados de BARAT.

Conclusão

Até o final da II Guerra Mundial as centralidades estruturadas na cidade do Rio deJaneiro guardavam estreita vinculação com a acessibilidade rígida e linear típica do transportesobre trilhos. Isso era particularmente verdadeiro nos subúrbios, uma vez que o transporteferroviário proporcionava um deslocamento muito mais axial e com acesso restrito a um núme-ro relativamente reduzido de paradas. Nessas áreas o papel do bonde era secundário e comple-mentar ao do trem e o transporte rodoviário ainda bastante incipiente.

No Zona Sul, Tijuca e arredores a expressiva ramificação da malha de carris e onúmero muito maior de pontos de embarque e desembarque de passageiros proporcionavamacesso direto a uma área bem mais difusa. Contudo, as centralidades que emergiam apoiadasnesse meio de transporte também eram bastante estáveis em função da própria rigidez das viasdesse modal.

Tínhamos, em suma, uma certa tendência à cristalização das centralidades pré-exis-tentes em função da inércia espacial resultante da implantação desses fixos marcados pelarigidez, em função dos elevados custos de implantação. É bom lembrar que isso não significainexistência de alterações nos lugares centrais de maior relevância no âmbito da rede de trans-porte sobre trilhos, inclusive porque, reiteramos, há outros atributos que compõem a centralidade,além da acessibilidade proporcionada pelos meios de transporte. O que estamos denominandode tendência à cristalização é uma maior inércia espacial, pelo menos em comparação aomomento subseqüente.

A crise observada no transporte público carioca a partir do conflito mundial de mea-dos do século XX deflagra a transição para o transporte sobre pneus, de forma um tanto anár-quica mas constante, até o início da década de 1960. Nessa década, a partir de uma açãoconduzida pelo poder público estadual, foi estruturado o sistema de transporte que, em suaslinhas gerais, subsiste até os dias de hoje. Trata-se do sistema uno e dual ao qual nos referimosanteriormente, assentado de forma esmagadora no transporte rodoviário (público e privado).

Um conseqüência desse processo foi que as centralidades intra-urbanas pré-existentesforam seriamente impactadas. Não que a emergência do transporte rodoviário tenha feitodesaparecer os subcentros gestados na era dos trilhos. Ao contrário, na maioria dos casosreforçou-os, até por conta da inércia do espaço.

A novidade é que, pela própria natureza flexível desse meio de transporte e a acessibi-lidade quase irrestrita ao conjunto do tecido urbano (o que não exclui o diferencial representado

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pela quantidade e qualidade das vias, como por exemplo, a existência de vias expressas) osatributos das centralidades foram redefinidos. Isso porque, ao contrário da “centralidade rígida”do período anterior, a fluidez e a flexibilidade de rotas proporcionadas pelos transporte automotivotornou as centralidades muito mais instáveis, face às constantes reconfigurações possíveis nageometria dos fluxos de pessoas no interior da urbe.

Isso ajuda a explicar, associado a outros processos (em especial o desenvolvimentodos shopping centers) a decadência de alguns subcentros e o surgimento de outros, bem comoa emergência de novas e diferenciadas centralidades. O ritmo dessas mudanças foi, sem dúvi-da, acelerado pelas características daquilo que alguns autores chamam de flexible city, a cida-de da mobilidade possibilitada pelos veículos automotores. Entendemos que não se pode dis-cutir centralidade na escala intra-urbana sem considerar com cuidado esses aspectos.

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