chá e amor (yasunari kawabata)

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Ch e Amor Yasunari Kayabata

Romance Literatura Japonesa Crculo de Leitores, 1996

A Taa E A Chvena

Quando me dei traduo deste romance, por um comeo inseguro de Primavera, estava muito longe de imaginar que me iria tomar de amores por todo um entrecho que, salvaguardando sempre as devidas distncias, em muito se assemelha aos enredos de qualquer um de ns. Quero com isto dizer, e sem que de maneira nenhumaforce o tom das palavras, que, no decorrer da minha tarefa, me encontrei com a vida em todo o seu sortilgio. Por vezes, tal era a tenso que me tomava, tal o encanto, tal a angstia, que me via obrigado a interromper o contacto que ia tendo (e mantendo...) com as personagens: detinha-me nas teclas do computador, acendia um cigarro, erguia-me, vinha at cfora...

- Ento como vai esse trabalho. ? - perguntava-me este ou aquele amigo, num meter de conversa amvel, na atmosfera superlotada do comboio para Sintra. - L vai, l vai... - dizia eu, os olhos pela tarde a crescer cada dia um pouco mais. Mas era um trabalho moroso, no era dificuldade da leitura que, dia a dia, eu ia fazendo, e sim pelo envolvimento que se estabelecera entre mim e o romance de Yasunari Kayabata. que, afinal, no eram personagens que se me deparavam pela frente, e antes pessoas de carne e osso, embrulhadas em mltiplos sentimentos, que me encaravam diariamente como que pedindo auxlio para os seus magoados problemas. Verdade, verdade, no era uma traduo o que eu estava a viver - estava era a viver uma situao amorosa. Que se no espante o leitor com esta minha afirmao

- e muito menos ainda com a explicitao que dela voufazer. H um traduzir que um mero acto de traduzir - e h um acto de traduo que se transfigura no fenmeno de sermos traduzidos pela traduo que estamos afazer. Quando tal acontece (e s muito raramente isso se verifica), cada situao por ns traduzida, mais palavra, menos palavra, traduz em ns uma situao anloga. No bem umjogo de espelhos - antes o encontro com o outro. E se nos dermos a traduzir o outro com desvelo ("Quem s tu?", perguntando), o outro, o que est nas pginas, tambm a ns nos traduz formulando a mesma pergunta. Encontrando-me, pois, na situao atrs descrita (manietado traduo e pela traduo manietado), obviamente se me impunha, a favor da iseno interpretativa, que pugnasse, no correr da minha tarefa, por uma certa distanciao. Dentro dessa ordem de ideias, imps-se-me no um frente-afrente com cada

uma das personagens principais (um homem e quatro mulheres) - e antes um olhar de conjunto sobre as muitas linhas de vida que se entrecruzam nesta obra de Kayabata, numa de simplicidade, dolorosamente potica e to realista como um fio de lmina tocando o nosso pescoo. Dentro desse olhar de conjunto, que desde logo, como bio, nos afasta de um tu c tu l com os diversos nomes que nos foram fascinando no passar das pginas, de imediato nos apercebemos de que o homem, por mais comum que seja a sua actuao na vida, pensa ser, no seio do egosmo e da inconscincia, o centro em torno do qual gravitam os seus semelhantes - e mais no , afinal, do que um mero satlite desses mesmos semelhantes, embora (como o caso do livro a que nos vimos referindo) no deixe de afectar com o seu comportamento aqueles em torno de quem circula. Em Ch e Amor, essa geometria do

relacionamento humano -nos dada com uma subtileza tal, um to frio conhecimento da vida, uma to profunda sincia de como as coisas so (e nunca como as imaginamos ser), que impelidos nos vamos at s ilaes mais ltimas da nossa disposio humana. E vamo-nos assim, entre a surpresa eufrica e o espanto magoado, por obra e mrito de Yasunari Kayabata, que, em simultneo, emocionalmente nos toca e friamente fica a contemplar os sentimentos suscitados em ns por aquilo que nos conta, num misto de poeta e de *sico. Isso mesmo: ele o escritor que sopesa a vida numa balana sensvel ao mais fino miligrama - e num dos pratos coloca a beleza da existncia (que maravilha!) e no outro a medida e conta dos nossos actos (que arreio!). Resultado: a vida julgando-se a si prpria. Ora aqui, neste romance de Kayabata, que a literatura se impe em toda a sua complexidade, ora

em movimento, ora em imobilidade, contrapondo-se imobilidade e movimento, e vice-versa, a fim de que possamos usufruir a vida em todas aquelas suas manifestaes que aproximam e afastam as pessoas, sendo a aproximao desde logo o comeo do afastamento e o afastamento (tambm desde logo) o prenncio da aproximao. Isto assim dito, assim atirado para as teclas do computador, no passa, efectivamente, de um lugar-comum. Mas este lugar-comum (e tudo j to lugar-comum na vida!) deixa de o ser na problemtica de Yasunari Kayabata e tal se devendo to unicamente por ele, observador implacvel da existncia (misto de poeta e desico), nos saber atirar para a nossa ateno os muitos programas (no computadorizados) de todos os seres humanos, ora em conjunto, ora individualmente. Esses ditos programas (que cada um de ns vai elaborando, aparentemente numa nica vez, seguramente no lento correr do tempo) que decidem ou no da nossa

actuao, quer dentro de ns, quer dentro dos outros. Dentro - escrevemos. E dentro por se tratar de uma intima informtica, estruturada em dados que procedem de... Ah, no sejamos, no, peremptrios Esses dados foram em ns introduzidos vindos no se sabe donde, nem em que situao, nem em que tempo, nem sob que modo: vieram, enfim, da ignorncia de que somos feitos. Histria pormenorizada que este romance , em todos os pormenores o leitor se detm e se surpreende - e isso por esses pormenores (que antes diramos ser os passos de um itinerrio da mente para o espanto de se estar s no mundo) buscarem os nossos sentidos todos a viso, a beleza inatingivel de Inamura, o tacto, a carne quente da senhora Ota, o olfacto, o aroma carente de Fumiko, o gosto, o sabor antiquissimo do ch, o ouvido, as sempre diferentes artimanhas de Chikako Kurimoto...

Quem, no romance, tem assim os sentidos despertos para tantas solicitaes, tantas imposies. ? Kikuji, vinte anos, solteiro, sensual por natureza, atrazdo or duas mulheres que foram amantes de seu falecido ai. E sedutor/seduzido, enfm, da flha (que o arranca ara a ida) de uma dessas mulheres. Agui se insere o termos dito, Iinhas atrs, considerar-se o homem, quando no seio do egoismo e da inconscincia, o centro em torno do qual gravitam os seus semelhantes. Acontece, no entanto, que a satelizao se concretiza mais em Kikuji do que nos outros - e de tal maneira so as coisas que, nofm do culto do ch que todo este escrito, no h mais ningum que orbite em torno de Kikuji. Tudo leua a crer gue ele se ir tornar satlite de... Alto! Que no se desnende no correr de um prefcio o signfcado ltimo de uma obra gue, precisamente nofnal, deixa ao leitor as concluses a ti ra r.

Genas inolvidveis pela sua essencialidade do-nos, por mais de uma vez, o gnio de Yasunari Kayabata. Por exemplo (embora a mencionemos aqui fora do contexto) a da senhora Ota, dejoelhos, a querer-no-querer entrar no pavilho de ch de Kikuji (a quem ama), num dia de chuva, desorientada por ali haver estado Inamura Yukiko, a eventual noiva do joem anfitrio, o ideal de mulher que no mais se alcana, luz (mas que luz!) a mais de trezentos mil quilmetros por segundo. Um momento h em que a senhora Ota, sob a chuva e chorando, torna tudo quanto existe em nada mais do que lgrima (o pavilho de ch, Kikuji, o dilogo entrecortado, o prprio leitor, e tambm, como bvio, o escritor que tal cena soube construir). Lgrimalgrimas, semelhana de um Penso - logo existo, daquela primeira feio se demonstrando um estado inerente prpria existncia humana: eis, em suma, a essncia desse passo capital de um itinerrio naquele momento ainda por cumprir

em toda a sua lquida beleza. Lquida beleza! Nem mais a do ch vertido em taas centenrias, dos oleiros mais clebres do Japo, e que o quotidiano dos homens (amor, desejo, encontro, luxria, solido) transforma muitas vezes em simples chvenas de ch. Mas a transformao dessas to longinquas taas (rituais, quase sacralizadas) em simples chvenas de ch (domsticas e para todos os usos), embora no seja um assumido desafio ao passado, revela-se como a exigncia que o presente tem de ser vivido. Respeita-se e profana-se no mesmo tempo, talvez at a partir do primeiro momento em que a taa foi considerada como smbolo de um alto momento esiritual. A tradio a tradio, os deuses so os deuses, o incenso sobe, as oraes perdem-se na graa do espao - e os nossos corpos, embora a alma os eleve, alegremente rastejam pela terra, ansiando uns pelos outros, entrelaando-se, tecendo encontros e

desencontros, bordando conluios deliciosos na multifacetada paz divina. E desta feio que as taas, metamorfoseando-se em chvenas para todos os gostos, so a festa do amor nos pavilhes de ch... Em certa medida, esta anotao aqui deixada, um tanto declinada por uma doce de preguia que ora nos toma, o pano de fundo de alguns dos passos do itinerrio que nos prope Kayabata. Que o leitor desfrute, por exemplo, em toda a sua plenitude, o encontro, no pavilho de ch, de Kikuji e Fumiko - e se maravilhe tambm com a delicadeza do romancista nipnico a contar-nos a cena de amor (em atmosfera dramtica) pelos dois ali, toda uma identidade, toda uma tradio, toda uma maneira de ser de um pas e de uma raa com uma existncia que se precipita das mais escondidas profundezas da Histria... Assim sendo, ejogando com todos os captulos deste romance que to simples nos parece, Kayabata, em

plena modernidade, nunca de maneira nenhuma menospreza o princpio dos princpios, o emergir de um homem que o seu antepassadissimo av, do que resulta, obiamente, dois planos que de maneira subtil se sobrepem ora se justapondo, ora se distanciando, ora ainda se inclinando um sob%e o outro. esse preciso espao, assim geometricamente constituido, que envolve, criando aproximaes e distncias, todas as personagens de Ch e Amor, nos seus desvarios, traumas (documentados pela esttica do feio), sublimaes, intimos sacrifcios e pequenos nadas que no raro so tudo quanto o ser humano anseia da vida. Ora... Ora quando me dei traduo deste romance, e me tomei de amores por todo o seu enredo, e me fui deixando traduzir pela traduo que estava a fazer, algo de vital se me imps: abandonar o eu com que iniciaria, posteriormente, este corrido prefcio,

sumindo-me no ns que todos somos, ir ao encontro do outro (esse que est no princpio dos princpios) - e dispersar-me pelos mil grous brancos do leno de Inamura Yukiko, eles que so o smbolo, no Pas do Sol-Nascente, da felicidade de um instante (instante que pode ser de anos) e de longevidade de todo o anseio do homem (longevidade que pode ser breve, mas plena, com um Ah! de espanto em todos os sentidos). agora. ? Agora s me resta tomar nas mos a taa tradicional e beber o ch como mandam as regras e dizer intimamente "Domo arigato", num agradecimento humilimo aos sculos passados (tanta cermica!) e aos sculos vindouros (tanta coisa por vir!). So dez e meia da manh, dia 18 de Maio de 1994, Lisboa, deixo as teclas do computador - e o silncio to grande, to grande e fino, to grande, fino e branco, que me

atravessa o corpo num acto puro de haraquiri. Enigma o destas palavras finais...? No: to-s a quietude que advm de uma obra mpar criada pelo homem.

Pedro Alvim

Mil Grous

Kikuji, no momento em que alcanou Kamakura e o Templo de Engakuji, embora se encontrasse j atrasado, hesitava ainda em comparecer ou no na cerimnia do ch. Sempre que Kurimoto Chikako oferecia ch em Engakuji, era hbito Kikuji ser convidado. Mas, desde a morte do pai, nunca mais ali tinha aparecido.

considerava os convites como meros gestos formais em memria do extinto. Desta vez, porm, havia umas palavras insertas no convite: Chikako desejava apresentar-lhe uma jovem a quem, de momento, dava lies de ch. Ao ler tais palavras, logo Kikuji pensou no sinal de nascena de Chikako. Andava pelos oito anos? Andaria pelos nove... Lembrava-se, sim, de que o pai o levara a visitar Chikako, e Chikako encontrava-se na sala destinada ao pequeno-almoo. Tinha o quimono desapertado, e dedicava-se a cortar os cabelos do sinal com um pequeno par de tesouras. Logo cobriu metade do seio esquerdo, abandonando de todo a delicada tarefa e como que se refugiando na concavidade dos seios. O espao do peito que ficou a descoberto tinha as dimenses de uma palma da mo. Os cabelos pareciam crescer do sinal violeta do seio, e Chikako fizera, sem

dvida, teno de os cortar. - Trouxe o menino consigo? Um tanto surpreendentemente, tentou que o quimono a tapasse at ao pescoo. Mas devido presteza com que executara o gesto apenas dificultou os esforos para se cobrir, pelo que, voltando-se delicada e cuidadosamente, introduziu o quimono no obi [Cinta de seda que, enrolada vrias vezes, serve para prender o quimono]. A actuao de Chikako surpreendeu menos o pai de Kikuji do que este. Desde que uma criada os conduzira at porta, certo era que Chikako sabia perfeitamente que o pai de Kikuji ali se encontrava presente. Mas o pai de Kikuji no entrou propriamente na sala de estar: antes foi sentar-se no recanto onde Chikako dava as suas lies. - No me oferece uma chvena de ch? - perguntou o

pai de Kikuji um tanto vagamente, os olhos postos num quadro. 16 - com certeza que sim - mas Chikako no fez um nico movimento. No jornal colocado sobre os joelhos de Chikako, Kikuji fixava os cabelos cortados, semelhantes a pequenos bigodes. Embora a plena luz do dia tudo iluminasse, numerosos eram os ratos que corriam pelo tecto esburacado. E um pessegueiro florescia junto da varanda. Quando finalmente Chikako se sentou junto da lareira, onde se encontrava o ch, no escondia a sua preocupao. Uns dez dias mais tarde, Kikuji surpreendeu a me a contar ao pai, como se fosse um extraordinrio segredo de que ele nunca tivera conhecimento, que Chikako se

mantinha por casar devido ao seu sinal de nascena. A compaixo embaciava os olhos da me de Kikuji. - Verdade... - E o pai de Kikuji, demonstrando uma aparente surpresa, inclinou a cabea. - Mas isso seria um problema se o marido soubesse de tal...? Quero dizer, se ele conhecesse o sinal antes de se casar com ela... ? -Foi exactamente o que eu lhe disse. Mas uma mulher sempre uma mulher. Eu prpria penso que nunca seria capaz de contar a um homem que tinha um grande sinal num dos meus seios. - Mas, apesar de tudo, ela to jovem! - Pois sim, mas olha que no fcil. Um homem marcado por um sinal certamente que se casaria e se poria a rir quando lhe descobrissem o sinal. - Chegaste a ver o sinal?

- No sejas tolo. Certamente que no. - Falaram sobre isso? - Ela veio minha lio, e falmos das mais variadas coisas. Deu-me a impresso de que ela se estava a confessar. O pai de Kikuji permaneceu silencioso. - Supe que ela era casada. O que pensaria o marido? - Talvez sentisse um certo desgosto. Mas talvez achasse uma certa atraco num segredo to escondido. E ento um defeito talvez viesse a proporcionar certos atractivos. Seja como for, porm, um doloroso problema que, quando surge, importuna e aflige. - Eu disse-lhe que no se tratava de um problema assim to profundo como ela pensava. "Mas no seio", respondeu-me ela.

- Ela disse isso, foi... ? - que o doloroso seria ter de amamentar o menino. Para o marido estaria tudo bem, mas j no para o beb. - Esse tal sinal impediria a sada do leite? - No isso. O problema seria outro. O menino, quando mamasse, teria de olhar para aquele sinal no seio. Eu ainda no tinha encarado esse problema, mas uma pessoa que tem um defeito comu o de Chikako pensa nessas coisas todas. Nascido que fosse, e desde o primeiro dia, o filho, de quando em quando, teria de amamentar-se no seio defeituoso. E a partir do dia em que comeasse a ver, ele veria esse to feio sinal no seio da me. A primeira impresso que teria do mundo, a primeira impresso da me seria pura e simplesmente esse sinal to feio, e no seria que essa impresso se manteria por toda a

sua vida? - Calma, calma! No se estar a inventar aborrecimentos a mais... ? - Podia alimentar-se o beb com leite de vaca, suponho eu, ou, ento, arranjar uma ama saudvel. - Eu penso que o importante no a questo do leite, nem sequer esse tal sinal que Chikako tem no seio. -Eu no alimento demasiados receios. Mas confesso que chorei quando ouvi tal coisa. E pensei que as coisas so como so. Olha, nunca desejaria que o nosso Kikuji se tivesse alimentado num seio assim semelhante. - Sim... ? Face a uma certa inconscincia por parte do pai, uma onda de indignao apossou-se de Kikuji. E tambm um grande ressentimento: como podia o pai, depois de ter visto o seio de Chikako, expressar-se daquela

maneira? Agora, contudo, vinte anos depois daquela conversa, Kikuji era j capaz de sorrir quando lhe vinham ao pensamento as reticncias do pai sobre o problema que ento atormentava Chikako. Por essa altura, Kikuji andava pelos dez anos, ou j os tinha feito, e muitas vezes pensava nas palavras da me, e uma certa inquietao o tomava quando lhe vinha ideia um meio-irmo uu uma meia-irm sugando o leite com os olhos postos nesse to feio sinal de nascena. No era propriamente receio de vir a ter um irmo ou uma irm nascidos algures fora de casa, estranhos, enfim, para ele. Era antes um temor, muito ntimo, face a esse irmo ou irm. Kikuji sentia-se obcecado com a ideia de que essa criana, ao amamentar-se num seio com cabelos, se tornasse num monstro.

No parecia que Chikako houvesse tido filhos. Qualquer pessoa poderia alimentar a suspeita quando muito, de que o pai de Kikuji lhe proibir dar luz. Por certo o que desgostara profundamen te sua me (a associao entre a marca de nascena e um eventual beb) servira ao pai como argument para convencer Chikako a que nunca desejasse ter um filho. E a verdade que Chikako nunca dera luz quer em vida do pai, quer depois da sua morte... Talvez que a profisso de f de Chikako assen tasse tambm no facto de ela saber que Kikuji tinha visto aquele seu defeito de nascena: receava que o jovem se abrisse com algum, contando o que tinha observado. Seja como for, Chikako jamais se casou. Assim uma pergunta se punha com toda a pertinncia: "Teria aquela marca de nascena afectado toda a sua vida? Kikuji, pelo menos, nunca esqueceu aquela marca.

Ocorria-lhe por vezes imaginao que o seu prprio destino se encontrava enredado nesse sinal que um dia vira no seio de Chikako. Quando recebeu o convite para a cerimnia do ch (pretexto de Chikako para o apresentar a uma jovem), logo aquele sinal lhe surgiu ante os olhos: e uma vez que a apresentao decorreria sob os auspcios de Chikako, Kikuji perguntava-se se a jovem teria uma pele perfeita, sem nada que a desfeasse. Sem deixar lugar, enfim, para quaisquer dvidas quanto beleza. Teria o pai, ocasionalmente, premido o sinal entre os dedos? T-lo-ia mordido... ? Teria... Estas, em suma, as divagaes fantasiosas de Kikuji. Mesmo agora, enquanto caminhava pelos jardins do templo, sob o chilreio dos pssaros, tais fantasias vinham ao seu encontro, envolvendo-o da cabea aos ps.

Uns dois ou trs anos aps Kikuji lhe ter visto o sinal, Chikako, de certo modo, ganhara maneiras masculinas. Presentemente, era um ser assexuado em toda a acepo da palavra. Mas hoje, no decurso da cerimnia do ch, certa energia ntima talvez lhe desse uma outra feio. Poderia admitir-se, por exemplo, que o seio to nefastamente assinalado, de tom violeta, se apresentasse agora de cor branca. Kikuji sentiu que lhe subia aos lbios um sorriso de alvio, e foi nesse preciso momento que, atrs dele, duas jovens, apressadas, o tentaram ultrapassar. Kikuji parou de imediato para que elas pudessem seguir o seu caminho. No entanto, perguntou-lhes: - Sabem dizer-me se a casa de campo da senhora Kurimoto fica nesta direco? - Sim, sim - responderam ambas em unssono.

Kikuji j o sabia, e s as deteve com a sua pergunta para melhor atentar nelas: os vestidos que envergavam eram um sinal evidente de que elas tinham por objectivo a cerimnia do ch. E de sbito Kikuji compreendeu, de maneira clara, que tambm era esse o seu destino... Uma das jovens, muito bela, transportava uma trouxa feita de um leno de seda, sobressaindo em branco o desenho decorativo de mil grous num fundo crepe cor-de-rosa. Quando Kikuji chegou, as duas raparigas estavam a calar tabi (meias curtas, brancas, muito frescas, quase que cobrindo s o p]. Ele olhou para alm delas. O aposento principal era grande, com uma superficie beirando os vinte metros quadrados. Os convidados, alojados no aposento, apertavam-se

uns contra os outros. Eram s mulheres, e todas envergavam quimonos esplendorosos. Chikako deu loo com os olhos em Kikuji. Como que surpreendida, levantou-se para o saudar: - Entre, entre... Mas que surpresa! Por favor, venha antes por aquele lado - e Chikako apontou-lhe a porta corredia situada no extremo do aposento, antecedendo o nicho tutelar. Kikuji adiantou-se, corando de sbito. Sentia nele os olhos de todas aquelas mulheres. - Somente senhoras, ... ? -J c tivemos um homem, mas acabou por se ir embora. Voc agora o nico. nico e brilhante. - Eu, brilhante? Um brilho um tanto apagado... - Oh, no! Possui todas as qualidades, todas as aptides.

Kikuji, com um gesto de mo, deu a entender que teria preferido uma porta menos indiscreta. Ajovem que o impressionara, depois de ter tirado os tabi, envolvia-os agora no leno enfeitado com a imagem do grou. Logo se ps de p, afastando-se, para que Kikuji pudesse passar. A antessala estava repleta de caixas de doces, de utenslios exigidos pelo ch, trazidos por Chikako, e de coisas vrias pertencentes aos convidados. No canto mais afastado, uma criada lavava qualquer coisa. Chikako entrou. - Bem, o que que pensa dela? Uma linda rapariga, no ? - A que tem o leno com a imagem do grou? - Leno? Que sei eu de lenos? Refiro-me que se levantou para que passasse. A que esteve aqui agora mesmo de p, afastando-se discretamente para o lado...

To bonita! filha do senhor Inamura. Kikuji acenou vagamente com a cabea. - Leno, lenos... A que coisas presta ateno! Uma pessoa no deve ser assim to precavida... Acho que vocs chegaram aqui quase ao mesmo tempo. Juntos. Estou encantada. - Est a falar de qu? - Vocs encontraram-se pelo caminho. Tal significa que j existe um lao entre ambos. E o seu pai conhecia o senhor Inamura... - Sim... ? - A famlia tem um negcio de seda. Seda no preparada. Em Iocoama. E a rapariga est aqui na mais completa das ignorncias. Inocente at mais no. Observe-a neste seu momento de cio... A voz de Chikako, no baixa, era verdadeiramente

indiscreta, e Kikuji afligia-se ao pensar que ela poderia ser ouvida atravs da porta de papel que os separava de todos os outros convidados. De sbito, Chikako aproximou o rosto do dele, quase o tocando: - Mas h um pequeno problema. - E baixando a voz: A senhora Ota encontra-se c. Encontra-se c acompanhada da filha... Chikako, por momentos, estudou a expresso di Kikuji. E depois acrescentou: - Eu no a convidei. Mas h o hbito de se receber quem, por acaso, se encontre nas redondezas. Hoje, por exemplo, tive alguns americanos em minha casa. Lamento, mas que posso fazer quando ela se intromete nisto ou naquilo? Calma, porm, ela nada sabe acerca de si e da filha do senhor Inamura. - Acerca de mim e da filha do senhor Inamura? Mas eu...

Kikuji ansiava por dizer que no viera at ali preparado para um miai - um encontro, enfim, para anunciar que ele tinha em mente uma eventual noiva. No conseguiu, porm, dizer nada. As suas cordas vocais dir-se-iam endurecidas para sempre. - Sossegue. Unicamente a senhora Ota que ficar constrangida. Voc pode alegar que nada h de mal. Kikuji sentiu-se aborrecido com as habilidades de Chikako para resolver o problema que ela prpria criara. A intimidade dela com o pai de Kikuji tinha durado pouco. Contudo, nos ltimos anos de vida, Chikako fora-lhe de grande utilidade, nomeadamente em casa. Muitas vezes se oferecera para estar de servio na cozinha quando se celebrava a cerimnia do ch ou quando eram esperados convidados j habituais. Era divertido pensar-se que a me de Kikuji sentira

cimes da assexuada Chikako. Divertido? Um sorriso de esguelha e nada mais. Sem dvida que a me acabara por concluir que o marido tinha visto o sinal de nascena de Chikako, mas fora uma tempestade que, com o tempo, se desfizera. E Chikako, como se de tudo estivesse esquecida, veio a tornar-se na companhia preferida da me de Kikuji. Alis, com o passar do tempo, o prprio Kikuji passara a trat-la sem azedume. semelhana dos seus acessos de clera infantis, desafogados em Chikako, tambm a revolta dos seus dias de juventude se findara h j muito. Poder-se-ia dizer que Chikako tinha encontrado uma vida prpria, olvidando o sexo e assumindo o papel apagado de um ser til aos outros. Tendo como ponto de apoio a famlia de Kikuji, ela tornara-se, na verdade, hbil na cerimnia do ch celebrada na casa que discretamente a recebia.

Kikuji, por sua vez, sentia uma vaga e tmida simpatia por ela, simpatia que se foi manifestando aps a morte do pai. E isso por ele ter verificado que Chikako, afinal, se soubera apagar como mulher aps um breve e fugaz caso de amor. Alm disso, a hostilidade da me de Kikuji fora bastante abalada quando da questo que afecto a senhora Ota. Contando: quando da morte do senhor Ota, que havia sido um assduo companheiro no ritual do ch, o pai de Kikuji tomara a resoluo de ter sua conta os utenslios da cerimnia que pertencera ao extinto at os devolver viva. Chikako apressou-se a informar de tal a me de Kikuji, de quem se tornara uma segura aliada. Seguiu muitas vezes o pai de Kikuji, frequentemente foi a casa da senhora Ota amea-la. Todo o seu latente cime parecia estar na iminncia de explodir.

A sempre tranquila me de Kikuji tudo fazia para atenuar essa interveno fogosa, mostrando-se bastante aborrecida com o que as pessoas podiam pensar. Mesmo diante de Kikuji, Chikako teria ofendido a senhora Ota, e quando a me se confessou desgostosa com toda essa questo, Chikako afirmou que nenhum mal viria ao jovem caso ele ouvisse uma ou outra palavra. - Olhe, vou fazer uma pergunta - disse, ento, Chikako. - Acha que algum nos est a escutar neste momento? Suspeita ou no suspeita disso... ? -Uma rapariga... ? - sussurrou a me de Kikuji. - Sim, uma rapariga. Uma rapariga de onze anos, segundo a senhora Ota. Na verdade, h qualquer coisa de tonto nesta mulher. Penso que ela est sempre a resmungar com a rapariga para que escute s portas, e

se sente direitinha diante de mim. Penso ainda que ela necessitava de um actor que a auxiliasse nos soluos. - No acha que tal coisa seria bastante triste para a criana? - Exactamente por isso que pensamos que a criana se deveria refugiar na me. Pois se uma criana que j sabe tudo... No entanto, h muito que digo que se trata de uma linda criana. Aquela cara redondinha e pequenina... - Chikako olhou para Kikuji pronto a falar com o pai. - No lance o veneno para to longe - advertiu a me de Kikuji. - O problema que o veneno se encontra j dentro de si. Arranque-o de si, lance-o todo c para fora. Veja como se encontra magra, enquanto ela um esplendor, toda carne e encanto. Sim, sim, realmente h qualquer coisa de errado com aquela senhora... A coisa s

esta: ela pensa que se chorar bastante toda a gente a compreender. E tudo isto no quarto onde ela costuma ver o senhor Mitani, e onde tem uma fotografia do seu prprio marido. Estou surpreendida pelo facto de o senhor Mitani no lhe ter ainda dito uma palavra acerca disto tudo. E eis, depois da morte do pai de Kikuji, que essa tal senhora Ota se apresentava agora em casa de Chikako, a fim de participar na cerimnia do ch e fazendo-se acompanhar da sua prpria filha. Kikuji como que sentiu um arrepio. Chikako dizia que de maneira nenhuma tinha convidado a senhora Ota. Algo de surpreendente, na verdade: as duas mulheres, desde a morte do pai de Kikuji, sempre se tinham visto uma outra. Talvez at a filha da senhora Ota tivesse recebido lies sobre o ritual do ch.

- Se est aborrecido, peo senhora Ota que se v embora - e Chikako olhou para Kikuji nos olhos. - -me indiferente. Claro, se ela se quiser retirar. - Se ela fosse uma pessoa que pensasse em determinadas coisas, nunca teria trazido tanta infelicidade ao seu pai e sua me. - A filha est com ela? Kikuji nunca tinha visto a jovem. Estaria fora de todas as convenincias encontrar a rapariga dos grous perante a senhora Ota. Sim, era isso: intolervel, na realidade, avistar-se naquele momento com a filha daquela dama. Mas a voz de Chikako mais uma vez lhe irritou os ouvidos e lhe ps os nervos em franja: - Bem, ela saber que eu estou aqui. No me afastarei um milmetro que seja.

Kikuji, erguendo-se, encaminhou-se para perto do nicho. Chikako imediatamente o seguiu e logo o apresentou: - O senhor Mitani. Filho do velho senhor Mitani. Formal, o tom de voz de Chikako. Kikuji inclinou-se e, quando ergueu a cabea, viu claramente todas as convidadas. Um tanto perturbado, Kikuji, num primeiro tempo, no conseguia distinguir uma senhora de outra, por entre tantos quimonos resplandecentes. Mas sua frente, sim, encontrava-se a senhora Ota. - Kikuji - disse ela. A sua voz, perfeitamente audvel em todo o aposento, era francamente afectuosa: - H muito tempo que no nos vemos. Muito tempo passou desde que o vi pela ltima vez.

Tocou no brao da filha, incitando-a a que fosse lesta nos seus cumprimentos. A filha corou e ps os olhos no cho. Para Kikuji tudo lhe pareceu deveras estranho. No cunseguia descobrir a mais vaga sombra de hostilidade nas maneiras da senhora Ota. Antes sentiu um certo calor, ternura at, para alm do prazer que a ela lhe provocava aquele inesperado encontro. E uma coisa tambm era notria: ela ignorava por completo que papel era o seu naquela reunio. A filha sentou-se hirta, a cabea baixa. Por fim, a senhora Ota corou tamhm. Olhava, no entanto, para Kikuji, como se quisesse ficar lado a lado com ele. Ou ento como se houvesse coisas que ela lhe gostaria de contar. - A estudar o ritual do ch... ? - acabou por perguntar.

- Nada sei acerca disso. - Verdade... ? Mas olhe que tem tudo isto no seu sangue. A emoo era demasiada para ela e os seus olhos agora estavam hmidos. Kikuji no a via desde o funeral do pai. Ah, sim! Ela tinha-se modificado muito no decurso de quatro anos. Opescoo branco, esbelto e comprido, era ainda o mesmo, bem como os ombros que o sustentavam. Um conjunto jovem, enfim, para os anos que tinha. A boca e o nariz eram pequenos e os olhos grandes. O nariz curto, escorreito e muito bem modelado, no destoava do rosto. Quando falava, o lbio inferior adiantava-se um tanto, como fazendo beicinho. A filha tinha herdado o longo pescoo e os ombros da

me. Mas j a boca era larga e de lbios firmemente cerrados. Uma certa tristeza dava-lhe aos olhos um tom sombrio, pelo que eram mais escuros que os da me. Chikako, dando-se conta do ambiente, disse, vindo da lareira: - Menina Inamura, suponho que fazia ch para o senhor Mitani. Penso que chegou a sua vez de... A rapariga levantou-se e Kikuji viu-a ento ao lado da senhora Ota. Evitava olhar para esta, mas um momento houve em que pousou os olhos nela e na filha. Entretanto, era tambm evidente que Chikako tudo fazia para que Inamura atrasse a ateno de Kikuji. Quando a menina Inamura tomou o seu lugar

junto da lareira, voltou-se para Chikako e perguntou: - Que taa devo usar? - Deixe-me ver. Penso que a de Oribe... - disse Chikako. - Pertenceu ao pai do senhor Mitani. Tinha-a em grande estima e, um dia, ofereceu-ma. Kikuji recordou-se da pea de loua que Chikako colocou diante da rapariga. Tinha pertencido, efectivamente, a seu pai, que a recebera da senhora Ota. E que sentiria a senhora Ota, vendu circular na cerimnia do ch essa taa que pertencera ao esplio do seu extinto marido, taa que depois passara das mos do pai de Kikuji para as mos de Chikako... ? Kikuji sentia-se aturdido com a falta de tacto de Chikako, mas qualquer pessoa podia tambm pensar que faltara um certo zelo senhora Ota. logo, no entanto, se impunha agora ateno de

Kikuji: ao fazer ch para ele, lmpida e fugida ao ressentimento das senhoras Ota e Chikako, a menina Inamura parecia-lhe das coisas mais belas que vira at ento. Ignorando que, por vontade alheia, se encontrava em exibio, a menina Inamura ia-se cnmportando, ao longo da cerimnia, sem a mnima hesitao, e foi ela prpria quem serviu o ch a Kikuji. Depois de beber, Kikuji olhou para a taa. Era uma pea de Oribe, preta, com uma mancha branca num dos lados e decorada nessa zona por curvos rebentos de fetos tambm de cor preta. - Certamente que se lembra dessa taa disse Chikako. Kikuji deu uma resposta evasiva e, tendo pegado na taa, colocou-a na esteira. - O desenho da taa transmite-nos um qualquer sentimento que reside nas montanhas - continuou

Chikako. - Acredite que uma das mais belas taas que conheo para ser usada nos dias que antecedem a Primavera. O seu pai assim pensava. Serviu-se dela muitas vezes. Oh, a Primavera! Verdade que estamos j um pouquinho fora da estao, mas pensei que, para si, Kikuji, essa taa... -Sinceramente! Eu e meu pai... Meu pai, quando muito, teve essa taa por momentos em suas mos. Ora o que isso se a taa tem mais de quatrocentos anos... ? O que verdadeiramente nos comove ao olh-la sabermos que, no correr de quatrocentos anos, a sua histria se estende at Momoyama e Rikyu [Sen Rikvu (1521-91), um dos primeiros mestres de ch]. Mestres do ch admiraram-na e contemplaram-na ao longo dos sculos. O ter ela sido tocada por meu pai pouca importncia tem... - assim se expressou Kikuji, tentando esquecer as recordaes que a chvena despertava nele.

Oh, sim! A taa tinha passado do senhor Ota para a senhora Ota, da senhora Ota para o pai de Kikuji, do pai de Kikuji para Chikako - e eis que o senhor Ota e o pai de Kikuji tinham morrido, e agora s duas mulheres, a senhora Ota e Chikako, testemunhas desse tempo, ali estavam perante to antiqussima taa. Algo de misterioso parecia residir no percurso da taa de Oribe... Taa que, nesse momento, circulava, num percurso mais restrito, entre a senhora Ota e a sua filha, e depois entre Chikako e a menina Inamura, e tambm entre muitas e muitas jovens - e era sempre assim: a taa nas mos, a taa ergida at aos lbios, o ch sorvido. - Posso tomar ch por essa velha taa... - perguntou de repente a senhora Ota. - Na ltima vez, o ch foi-me servido numa outra taa. Kikuji, mais uma vez, sobressaltou-se. Aquela mulher era louca ou no tinha ponta de vergonha?

A filha dela emocionava-o: sentara-se, quieta, de cabea baixa - e a menina Inamura, agora pela insistncia da senhora Ota, mais uma vez participava na cerimnia do ch. Alis, todas as observavam. Ela talvez ignorasse por completo a histria da taa de Oribe preta. Ali, a jovem limitava-se, pura e simplesmente, a movimentos correctos e prticos. A sua maneira de ser era de uma grande clareza, lmpidos os mais pequenos gestos, pelo que no se ouviam quaisquer observaes sarcsticas ou duvidosos ditos de esprito. A sombra de folhas recm-despontadas caa, quase trmula, sobre o papel transparente da porta. Dos ombros e das mangas compridas dos vistosos quimonos dir-se-ia que se elevava, quebrando-se em mil pontos, um suave reflexo de luz. Alis, os cabelos das jovens pareciam luminosos...

A luz era, na verdade, demasiado clara e brilhante para um pavilho de ch, mas fazia cintilar, quase a tornando incandescente, a juventude da menina Inamura. O leno do ritual do ch era vermelho (ou melhor, daquela cor que, por vezes, sobe ao rosto das meninas inocentes... ) e sensibilizava os convivas mais pela sua frescura do que pela sua suavidade. E o leno da menina Inamura parecia mesmo uma flor encarnada, subitamente surgindo, ora desdobrado, ora quieto, do encanto das suas mos. E grous, pequenos e brancos, dir-se-iam voar em torno dela. A senhora Ota ostentou a taa preta de Oribe na palma da mo: - O ch verde contrastando com a cor preta, tal como

os primeiros sinais verdes no comeo da Primavera. Mas nem uma palavra disse quanto ao facto de a taa ter pertencido a seu marido. Mais tarde, e por mera formalidade, foram inspeccionados todos os utenslios utilizados na cerimnia do ch. As jovens sabiam pouco sobre essas diversas peas, pelo que, na sua maioria, se sentiram satisfeitas com as explicaes de Chikako. O jarro de gua e a concha de bambu haviam tambm pertencido ao pai de Kikuji. Mas nem este nem Chikako disseram uma palavra sobre tal. Quando Kikuji se sentou, esperando a sada das raparigas, a senhora Ota veio ao seu encontro: - Receio ter sido brusca. Mesmo muito. Certamente

que o aborreci. Mas quando a vi, creia, os dias do passado como que surgiam de todas as coisas... - Sim... - Como se tornou um homem delicado! Um autntico senhor... Ela contemplou-o quase com vontade de chorar. - Oh, sim! A sua me... Tencionava ir ao funeral, mas... Mas, por qualquer motivo, no o fiz. Kikuji sentiu-se incomodado. - Primeiro o pai, depois a me. Deve sentir-se muito sozinho. - Talvez me sinta, talvez... - No se vai j embora, pois no...? - Bem, na realidade... - Tantas so as coisas sobre que deveramos conversar! Hoje ou noutra altura... - Kikuji! - Chikako chamava-o de um outro aposento.

A senhora Ota levantou-se, desgostosa. A filha j tinha sado e aguardava-a no jardim. Depois das despedidas formais, ambas se despediram de Kikuji. Nos olhos da jovem havia como que o brilho de um apelo. Chikako, com uma servente e duas ou trs alunas suas favoritas, entregava-se limpeza do aposento de onde tinha chamado Kikuji. - O que que a senhora Ota tinha para dizer perguntou. -Nada de particular. Absolutamente nada. - Tenha cuidado. Deve ter cuidado com ela. Sempre dcil e delicada, a verdade que ela sempre se comporta como se no quisesse fazer nada de mal. Mas nunca ningum sabe o que tem em mente. -Suponho que ela corresponde sempre aos seus convites. Ou no? - perguntou Kikuji com um tom de

sarcasmo. - Quando foi que comeou essa convivncia? A fim de escapar s palavras de Chikako, que lhe pareciam um pouco venenosas, Kikuji encaminhou-se para o jardim, mas Chikako foilogo atrs dele: - E no ficou a gostar de Inamura? Uma linda rapariga, no acha? - Sim, uma linda rapariga. Mesmo muito bonita. E ter-me-ia parecido ainda mais bonita se a tivesse encontrado fora do ambiente que a rodeou. De vigilncia, suspeita e temor... Sim, sim, o que estou a dizer vinha de si, da senhora Ota e do fantasma de meu pai. - Isso aborreceu-o, foi... ? Mas a senhora Ota nada tinha a ver com a menina Inamura. - Se alguma coisa tivesse a ver, penso que seria um erro em relao a essa jovem.

- Mas porqu? Se o aborreceu ter encontrado aqui a senhora Ota, peo-lhe desculpa, mas deve lembrar-se de que eu no a convidei. Alis, voc pensa na menina Inamura sem a relacionar com outras pessoas. - Receio que ser assim. Kikuji, aps estas palavras, deteve-se no jardim. Se continuasse o passeio com Chikako, teve a intuio de que no haveria mais quaisquer palavras a dizer quando ela, enfim, se despedisse. Mais uma vez a ss com ele, olhando o ar, notou que as azleas, no alto da encosta da montanha, se encontravam ainda em boto. E Kikuji soltou um profundo suspiro. Ah, sim! Encontrava-se zangado consigo prprio por a observao de Chikako o ter posto fora de si, embora a impresso que lhe causara a jovem do leno estampado de grous fosse apaziguadora e lmpida.

Talvez por causa dela, alis, o encontro com duas mulheres que tinha desfrutado da intimidade do pai o no tivesse aborrecido tanto como seria de esperar. Essas duas mulheres ali se tinham encontrado, falado do pai dele - e ele, entre uma palavra e outra, deixou-se absorver pela lembrana de sua me j morta. Tomou-o uma agitao ntima semelhante a uma zanga prestes a explodir. E eis que, nesse estado de irritao, lhe veio memria o sinal de nascena de Chikako. A brisa da tarde fazia sussurrar as folhas recm-nascidas. Kikuji passeava vagarosamente, o chapu na mo. A certa altura, avistou a senhora Ota, de p, abrigando-se na sombra do porto principal. Procurou um outro caminho a fim de a evitar. Enveredasse pela direita ou pela esquerda, era

indiferente: deixaria o templo por uma outra qualquer sada. No entanto, caminhou em direco ao porto. No rosto desenhava-se-lhe um certo ar de zanga... A senhora Ota, mal o viu, foi logo ao seu encontro, as faces afogueadas. - Esperava-o - disse. - Queria v-lo de novo. Posso parecer descarada, mas tenho ainda mais alguma coisa a dizer. Se nos tivssemos despedido l em cima, como mandam as regras, ficaria sem saber quando o poderia encontrar... - O que aconteceu sua filha, senhora Ota? - Fumikoj se foi. Adiantou-se... Estava acompanhada. Uma amiga... - Ela ficou a saber que a senhora me esperaria? - Sim, ficou. - E a senhora Ota olhou Kikuji nos olhos.

- No creio que ela aprovasse a sua deciso, senhora Ota. Entristeceu-me muito o ela me ter ignorado durante a reunio. Ignorado, evitado... No tenho dvidas nenhumas: ela no me deseja ver! Palavras directas, proferidas sem qualquer cerimnia, talvez at um tanto bruscas. Mais uma vez se impunha que ambos fossem discretos. E a senhora Ota, serena, respondeu com toda a franqueza: - V-lo, Kikuji, um sofrimento para Fumiko. - Talvez por meu pai lhe ter causado muita mgoa. Kikuji to-s pretendia sugerir que a senhora Ota tambm lhe havia causado muita mgoa. - De modo nenhum. O seu pai era muito bom para ela. Hoje, ou noutra altura, eu tinha de lhe dizer isso, Kikuji... Claro que nos primeiros tempos ela no retribua a amizade que seu pai lhe dedicava. Mas depois, pelo fim da guerra, quando os ataques areos

se tornaram mais intensos, a minha filha mudou de atitude. Porqu? Mo fao a mnima ideia... sua maneira, ela fez o que pde pur ele. Arriscava-se a sair para lhe comprar galinha ou peixe ou qualquer outra coisa. Mostrava-se muito determinada, no pensando nos riscos que corria. Afastava-se, ia ao campo procura de arroz, mesmo durante os raids. Seu pai, Kikuji, mnstrava-se na realidade espantado com o procedimento dela... Fumiko mudara to de repente! Para mim isso era to tocante que, muitas vezes, me sentia verdadeiramente magoada no meu ntimo. Ao mesmu tempo, sentia que estava a ser repreendida, censurada, sei l o qu... Kikuji gostaria de saber se ele e a me tinham ou no merecido tambm o cuidado e os favores da filha da senhora Ota. Os magnficos presentes que seu pai, de quando em quando, trazia para casa, teriam sido tambm comprados por Fumiko...?

- Ignoro as razes da mudana de comportamento de Fumiko. Talvez por no sabermos se no dia seguinte estaramos ainda vivos... Suponho que ela sentia uma certa pena de mim e, assim, levada por esse sentimento, dedicava-se tambm a seu pai. Na confuso da derrota, certamente que ajovem se teria apercebido do esforo da me para se manter ao lado do pai de Kikuji. Na crua e violenta realidade desses dias, Fumiko teria como que esquecido o seu prprio pai e somente se importaria com a situao da me... - Viu o anel que Fumiko trazia? - No. - Foi seu pai quem lho ofereceu. Quando estava comigo, seu pai tinha o costume de ir a casa todas as vezes que havia um alarme areo. Pois Fumiko tambm l ia, sem que ningum a pudesse dissuadir de

tal. Que no se sabia o que poderia acontecer se ele fosse sozinho, costumava ela dizer. Uma noite, a minha filha no regressou. Claro que pensei que ela estaria em casa de seu pai, mas receei tambm que ambos tivessem sido mortos. S de manh que ela me apareceu e contou-me ento que tinha encontrado seu pai bastante longe da porta de casa, tendo ambos passado o resto da noite num abrigo antiareo. Seu pai, quando, uns dias mais tarde, veio ter comigo, agradeceu-lhe tudo quanto ela fizera por ele e ofereceu-lhe ento o anel de que lhe falei. Creio que ela se sentiu embaraada ao pensar que voc lhe viu o anel... Kikuji sentia-se deveras incomodado. Uma coisa tinha ele de admitir: a senhora Ota tudo fazia para lhe conquistar a simpatia. Pensando em tudo quanto ouvira, Kikuji concluiu que a sua disposio no assentava nem na antipatia, nem no desgosto. Havia

um tal calor na senhora Ota que ele se sentiu desnorteado, embora procurasse manter as distncias. Quando Fumiko tudo fazia por seu pai, talvez de um modo desesperado, estaria tambm a velar pela me dela... Kikuji tinha a sensao de que a senhora Ota, ao falar da filha, aproveitara a ocasio para sublinhar o amor que a mantivera ligada a seu pai. Ou no seria assim... ? A senhora Ota parecia estar a defender algo com toda a paixo de que era capaz e, nas suas implicaes finais, essa defesa no estabelecia distines entre o pai de Kikuji e o prprio Kikuji. Havia uma profunda e apaixonada nostalgia nas palavras da senhora Ota, como se ela, enfim, estivesse a falar, no para Kikuji mas, antes, para o pai dele. A hostilidade que Kikuji, juntamente com sua me, sentira pela senhora Ota, havia j perdido parte da fora inicial, embora, no entanto, no tivesse

desaparecido inteiramente. Por muito que estivesse atento, Kikuji temia que ele prprio viesse a encontrar em si o pai amado pela senhora Ota. Deu-se a imaginar que, enfim, conhecia o corpo daquela mulher havia j muito tempo... O pai pouco tempo estivera com Chikako, mas Kikuji sabia que ele tinha mantido um relacionamento com a senhora Ota at ao fim da vida. Assim, no era de admirar que Chikako houvesse sempre tratado a senhora Ota com azedume. Alis, Kikuji sentia tambm em si indcios da mesma disposio e achou interessante, seno mesmo sedutor, injuri-la de um modo leve, como quem no tem a inteno de ofender, como quem... Perguntou-lhe: - Aceita muitas vezes os convites de Kurimoto... ? No lhe basta o t-la conhecido no tempo de meu pai... ? - Recebi uma carta dela depois de seu pai ter morrido.

Senti muito a falta de seu pai e sentia-me, ento, muito abandonada - confessou, de cabea baixa, a senhora Ota. - E a sua filha vai tambm s reunies de Chikako. ? -Fumiko? Fumiko acompanha-me sempre. Um tanto contrariada... Lentamente, ambos deixaram para trs a Estao Norte de Kamakura, e foram subindo a colina oposta a Engakuji. A senhora Ota ia pelos quarenta e cinco anos, mais velha vinte do que Kikuji. Mas ela soube des fazer-se da idade quando os dois fizeram amor. Como agora. Kikuji tinha a sensao de ter nos brao, uma mulher mais nova do que ele... A experincia de alcova da senhora Ota propor cionava a Kikuji uma felicidade isenta das hesitaes embaraosas que acontecem, por vezes, a muitos

amantes nas pugnas amorosas. Kikuji sentia-se como estando a possuir uma mulher pela primeira vez, ao mesmo tempo que s apossava dele a sensao de se estar a realizar como um verdadeiro homem. Era um extraordinrio des pertar dos sentidos. Ele nunca poderia ter imagina do que uma mulher pudesse ser assim to dada, receptiva. Kikuji correspondia sua plena oferta de todo seduzido e cada vez mais se inebriava no perfume daquele corpo quente... No raramente, Kikuji sentia-se sujo, manchado, aps o encontro com uma mulher. Mas com a senhora Ota, com quem a noo de conspurcao se poderia ter revelado mais amarga e pertinente, sucedia algo que o surpreendia: uma sensao de harmonia, tranquilidade e repouso como nunca lh fora dado conhecer. Quase sempre, aps u acto com uma outra qualquer mulher, era ele quem, rudemente, deixava primeiro o

leito. Mas agora empolgava-o ter algum to quente junto de si e, assim, de bom grado se demorava, como que flutuando ao longo do sabor dos sentidos. Nunca sentira at ento como a ondulao com uma mulher persistia depois de todas as loucuras cometidas. Entregando o seu corpo onda que era o corpo daquela mulher, uma grande satisfao o tomava, semelhante a um cntico de triunfo: ele era o conquistador cujos ps eram lavados por uma escrava... Intua, no entanto, que algo de maternal impregnava os sentimentos da senhora Ota. - Kurimoto tem um grande e feio sinal de nascena. J o viste...? - E Kikuji, com estas palavras, introduziu, embora sem qualquer pensamento preconcebido, algo de desagradvel na harmonia do quarto. Possivelmente por o seu senso psicolgico se encontrar adormecido, ou tomado ento de preguia,

no se deu conta de que estava a tratar Chikako injustamente. Levou a mo ao peito e disse: "Aqui, no seio, mais ou menos assim..." Qualquer coisa, de sbito, tinha irrompido do seu ntimo, levando-o a agir daquela maneira. Qualquer coisa, de asqueroso, que no s se virava contra ele prprio como tambm injuriava a mulher de quem falara. Ou seria que as suas palavras, to desagradveis naquele momento, pretendiam ocultar uma certa e doce timidez quanto ao desejo que tinha em ver o corpo de Chikako, olhar o ponto exacto do tal sinal de nascena? - Mas que coisa repulsiva! E a senhora Ota, num gesto rpido, resguardou-se no seu quimono. Mas alguma coisa parecia ha ver que ela no podia aceitar completamente. Em tom sereno, disse:

- Nada sei sobre isso. E tu, dize-me, podes ver esse sinal sob o quimono... ? - No impossvel. - Como assim... ? Ento como possvel... ? - possvel ver-se o sinal caso ele se localize aqui. Aqui, olha... Pelo menos, assim penso. - Calma... Ests a olhar assim pensando qu tambm tenho um sinal. ? - No! O que estou a pensar o seguinte: que sentirias tu, num momento como este, se tives ses um sinal no peito? - Aqui? - E a senhora Ota olhou para o seu busto. Mas que razo te leva a falar sobre isso E que diferena haveria se... Apesar destas palavras de protesto e desgosto ela mostrava-se submissa. O veneno destilado por Kikuji

no produzira qualquer efeito ou dor para o ntimo de Kikuji. - H uma diferena, h. S vi o sinal uma ni ca vez, andava eu pelos oito ou nove anos. Mas... Mas ainda agora, neste instante, o voltei a ver. - como... ? - Tu estiveste sob a maldio desse sinal de nascena. Kurimoto nunca te acometeu como se ela estivesse a defender a minha me e a mim prprio. ? A senhora Ota acenou que sim, afastando-se um tanto. Mas Kikuji, num mpeto, abraou-a. - Ela esteve sempre consciente dessa tal marca. E por isso mesmo se mostrava rancorosa, malvola at. - Mas que ideia assustadora! - Talvez at alimentasse qualquer ideia de vingana contra meu pai.

- Porqu... ? - Creio que pensava que meu pai a menosprezava por ela ter aquele sinal. Talvez se tenha at persuadido de que meu pai a deixou por causa disso. - No falemos de coisa to desagradvel - pediu a senhora Ota, parecendo no ter uma ideia muito clara do sinal de Chikako. - Suponho que Kurimoto nunca mais se mostrou incomodada com tal coisa. O desgosto, estou em crer, foi-se atenuando com o correr do tempo. - Pensas, ento, que ela se libertou desse desgosto, no ficando mesmo com nenhum vestgio? - Quer parecer-me que tu sentes alguma coisa de sentimental por isso tudo - E a voz da senho ra Ota soou como vinda de um sonho. E foi ento que Kikuji enveredou por outro tipo de conversa, embora tivesse prometido a si prprio que

nunca o faria. -Ainda te lembras da rapariga desta tarde, aquela que se encontrava tua esquerda...? - perguntou Kikuji. - Sim. Yukiko. A menina Inamura. - Pois Kurimoto convidou-me para que eu a conhecesse. - No! - E ela olhou-o com um ar espantado, os olhos sem pestanejar. - Tratava-se de um miai, no... ? Olha que eu nunca suspeitaria de tal coisa. - Verdade, verdade, no era um miai. - Tudo diria que sim. Talvez os primeiros passos para um miai. - Uma lgrima desceu lentamente e sumiu-se no travesseiro, enquanto os ombros da senhora Ota tremiam. - Isso um erro, um erro... Porque no me contaste nada?

Ela comprimiu o rosto no travesseiro. Kikuji no esperava to violenta reaco. - Se um erro, um erro, e talvez o seja tambm eu casar-me ou no. - Kikuji estava a ser honesto nestas suas palavras. - Mas uma coisa h que no compreendo... Qual a relao entre vocs duas? E mais no disse, pois que a figurinha da menina Inamura, junto da lareira, lhe preencheu o pensamento: estava a v-la, nesse momento, de leno cor-de-rosa, os grous desenhados na seda, como que esvoaando em torno dela. Quo desagradvel no era a mulher que chorava a seu lado! - Um erro, um erro... - continuou a senhora Ota. como pude... Enfim, as coisas de que eu sou culpada! E os seus ombros eram sacudidos pela emoo. Se Kikuji, porventura, lamentasse o encontro, f-lo-ia

levado pelo habitual sentido de conspurcao, de mancha, de profanao. Ultrapassando a questo do eventual miai, o que se lhe impunha, perturbando-o, era o facto de a senhora Ota ter sido uma das mulheres de seu pai. Mas, at quele instante, no sentia qualquer espcie de arrependimento e muito menos uma sbita mudana de sentimentos. Kikuji no compreendia como aquilo tinha acontecido, to natural lhe parecera tudo. Talvez que a senhora Ota, assim se comportando com lgrimas e choro, lhe estivesse a pedir desculpa por o ter seduzido, e talvez que ela nem sequer houvesse tido a inteno de o seduzir, e (perguntava-se Kikuji) seria que ele se sentia seduzido... Quando, face a face, a ss, nenhuma resistncia se manifestara quer da parte dela, quer da parte dele. To-pouco quaisquer escrpulos, pelo menos quanto a si... Ambos se tinham acolhido numa estalagem, na colina

oposta a Enakuji, e a jantaram, continuando a senhora Ota a falar do pai de Kikuji. Kikuji no a ovia. Um sentimento estranho inundava-o de uma imensa tranquilidade e unicamente a senhora Ota, sem mostrar qualquer relutncia, defendia, de um modo anelante, o seu passado. Dando ateno a esta e quela palavra, Kikuji sentia-se benevolente como at ento nunca o fora. Uma afeio suave, e ao mesmo tempo corts, envolvia-o todo. At porque conclua que seu pai, afinal, tinha sido feliz. Aqui residia, no entanto, talvez algo de errado, um equvoco que no conseguia desfazer. Mas a verdade era que uma certa irritao j se fora de si, e a vontade que tivera de mandar embora a senhora Ota tambm se sumira j. Uma doce indolncia imperava agora no seu corao e Kikuji de todo se entregou situao que ambos estavam vivendo.

Mas no seu ntimo, l muito no fundo, persistia uma sombra escura. Oh, sim! Fora de maneira venenosa que ele falara de Chikako e da menina Inamura. De maneira venenosa, pois, e eis que u veneno se estava a mostrar verdadeiramente eficaz. Embora com desgosto seu, os sentimentos modificavam-se, incentivados pela ideia de profanao, mancha, conspurcao, e uma violenta onda de averso abateu-se sobre Kikuji, levando-o a dizer algo ainda de mais cruel. - Esquece-te disso tudo. - Isso no nada - disse a senhora Ota. Absolutamente nada. - Tiveste o meu pai, nestes momentos, no teu pensamento? - como... ? - Ela olhou-o surpreendida. Havia estado a chorar, tinha as plpebras avermelhadas. Os olhos

dir-se-iam desfeitos, lamacentos e, bem l no fundo das pupilas, Kikuji viu todo o cansao daquela mulher. - Se dizes tal coisa, no sei que resposta te dar. S sei, isso sim, que sou uma pessoa muito infeliz. - Escusas de me mentir. - Kikuji, rudemente abriu-lhe o quimono. - Se houvesseaqui, aqui mesmo, um defeito, uma marca de nascena, nun ca, mas nunca, esquecerias isso! Seria tal a impresso que. - Kikuji estava surpreendido com as suas prprias palavras. - No me olhes desse modo - pediu ela. - J no sou jovem. Kikuji atirou-se a ela como se a quisesse morder. Enfim - a onda inicial retornava, onda de desejo e ternura -, e ele, por um tempo, adormeceu tranquilo. Depois, meio acordado, meio adormecido, ouviu o chilreio dos pssaros e foi ento tomado pela sensao

de que as aves, pela primeira vez, o despertavam com o seu canto. Uma neblina matinal humedecia as plantas na varanda. Kikuji sentiu que alguma coisa limpava os recantos da sua alma. Assim se ficou sem pensar em mais nada. A senhora Ota dormia de costas voltadas para ele. "Quando se iria embora...?" Apoiando-se num cotovelo, Kikuji contemplou-lhe o rosto na semiobscuridade do quarto. Duas semanas mais tarde, a filha da senhora Ota visitou Kikuji. Ele pediu criada que a levasse para a sala de visitas. Num esforo para aquietar o bater do seu corao, abriu o guarda-loua, onde se encontravam os utenslios do ch, e tirou para fora um sortido de doces. A jovem viria sozinha? A me no a estaria

aguardando porta, inibida de entrar... ? A rapariga, sem um movimento, permaneceu de p quando Kikuji lhe abriu a porta. De cabea baixa, tinha o lbio inferior, o tal que parecia fazer beicinho, firmemente cerrado. - Lamento t-la feito esperar. - E Kikuji abriu as portas de vidro que davam para o jardim, quando passou por detrs da jovem, sentiu o dbil perfume da penia branca quieta no seu vaso. Os ombros de Fumiko inclinavam-se para a frente... - Sente-se, por favor. - Kikuji tambm se sentou, dizendo para si que estava a ver a imagem da me na da filha. - Eu devia ter telefonado primeiro - e Fumiko continuava de cabea baixa. - Ento, porqu... ? Estou surpreendido como deu com a minha morada.

Ela limitou-se a um movimento de cabea. Kikuji recordou, ento, o que a senhora Ota, em Engakuji, lhe tinha contado: durante os raids areos, aquela jovem, agora diante de si, tinha encontrado o seu pai um tanto afastado daquela mesma casa. Da, pois, o no ter sido difcil dar com ela... Quando se preparava para aludir a tal facto, Kikuji deteve-se e ficou-se com os olhos na visitante. A simpatia calorosa da senhora Ota envolveu-o como gua quente. Quo rendida e submissa ela no se mostrara nas mais pequenas coisas! Lem de tal, Kikuji sentiu-se seguro de si. Essa segurana levou-o a esquecer-se da circunspeco que se impunha naquele momento. A rapariga continuava com o seu olhar fixo, talvez um nadinha pasmado... - Eu... - Fumiko calou-se e olhou para o tecto. - Eu brando-se

tenho um pedido a fazer. sobre a minha me. Kikuji suspendeu a respirao. - Desejo - continuou - que lhe perdoe. - Perdoar sua me? - Kikuji apercebeu-se de que a senhora Ota tinha falado de si filha. - Eu que devo ser perdoado. Perdoado por algum que esteja disposto a tal. - Gostaria que lhe perdoasse em nome de seu pai. -Ento ele merece ser tambm perdoado... ? Mas a minha me j morreu... Quem que lhe concederia o perdo... ? -Foi por culpa de minha me que seu pai morreu to cedo. E tambm sua me. O que lhe estou a dizer, j o disse tambm minha me.

- Est a imaginar coisas. No deve ser desagradvel para com sua me. - A minha me devia ter morrido primeiro. Fumiko falava como se uma vergonha intolervel a tomasse toda. Kikuji sentiu que, afinal, ela pretendia aludir relao que ele tivera com a senhora Ota. Como ambos tinham ferido e envergonhado, to profundamente, quem assim agora lhe falava! - Quero imenso que perdoe minha me - disse Fumiko uma vez mais, num apelo urgente. - No se trata de uma questo de perdoar ou no perdoar - disse Kikuji acentuando bem as palavras. Saiba que eu estou grato sua me. - Ela m. No boa pessoa, e o senhor no deve ter mais nada com ela. No se deve aborrecer por causa dela. - As palavras de Fumiko dir-se-iam que

derramadas sobre Kikuji, e a sua voz tremia. - Por favor! Kikuji entendeu ento o que ela queria dizer com a palavra perdo: pura e simplesmente um pedido para que ele no mais se viesse a encontrar com a senhora Ota. - No lhe telefone... - E a rapariga corou enquanto falava. Levantou a cabea e olhou para ele, num esforo ntido de vencer a vergonha que a tomava. Tinha lgrimas nos olhos, quase negros, abertos numa splica, isentos de maldade. Sim, aqueles olhos formulavam um desesperado apelo. - Compreendo, Compreendo - disse Kikuji. - E sou o primeiro a lamentar. - Por favor, por tudo lhe imploro que. - E como se sentisse mais envergonhada, mais tmida, o rubor que at a lhe incendiara o rosto acabou por se espraiar

pela garganta, indo at ao colo. Envergava um vestido de tipo europeu e a gola acentuava-lhe a beleza do colo, do pescoo, da garganta. - Minha me marcou uma entrevista por telefone, sei disso, mas eu opus-me. Tentei convenc-la a que no fizesse tal coisa. Quando tentou sair, agarrei-me a ela e no lhe consenti um passo mais. A voz de Fumiko mostrava agora um certo tom de alvio. Kikuji tinha telefonado senhora Ota trs dias aps o encontro que haviam tido. Ela mostrou-se, ento, deveras satisfeita, mas a verdade que acabou por no comparecer no caf que ele lhe indicara para o encontro. Alm desse telefonema, Kikuji no mais entrara em contacto com ela.

- Mais tarde tive pena dela - continuou Fumiko -, mas naquele momento achei aquilo tud bastante deplorvel. Eu estava desesperada, no queria que ela sasse. Pediu-me, ento, que fosse eu prpria a recusar o seu convite, mas nada consegui dizer ao telefone. Minha me no tirava os olhos do telefone, e as lgrimas corriam-lhe pela cara. Ela sentia-o a si no outro lado do fio, isso sabia eu... Ela assim, dessas pessoas que... Os dois permaneceram em silncio por algum tempo, at que Kikuji perguntou: - Porque deixou a sua me minha espera aps a recepo em casa de Kurimoto? - Desejava que no ficasse com m impresso dela. Que no pensasse que ela era m como poderia ter pensado. - Ela absolutamente o oposto de m.

A rapariga ps os olhos no cho. Sob o nariz, de uma perfeita modelao, Kikuji fixou-lhe a pequena boca, o lbio inferior, como fazendo beicinho. O rosto, suavemente redondo, recordava-lhe o da senhora Ota. - Eu sabia que a senhora Ota tinha uma filha, e h muito que alimentava o desejo de falar consigo sobre o meu pai. Ela fez que sim com a cabea: - Era esse tambm o meu desejo. Kikuji pensou como seria bom falar livremente de seu pai com outra pessoa que no a senhora Ota. Mas sentia que era incapaz de passar sem a sua presena e, assim, inclinava-se para lhe perdoar. Ao mesmo tempo era tomado pela sensao de que, no fundo, esse perdo se estendia ao que ela e seu pai tinham sido um para o outro. Ou tal propsito seria, para Kikuji, algo de incorrecto...

Talvez receando que a sua visita se estivesse a prolongar j por muito tempo, Fumiko levantou-se apressadamente. Kikuji, de repente, viu-a a caminho da sada. - Espero - disse - que tenha um dia ocasio para falar comigo de meu pai. E tambm sobre sua me, to bela, e de todas as boas intenes que adivinho nela. Depois destas palavras, Kikuji receou ter escolhido um modo talvez exagerado de se expressar. Silencioso, ficou-se a pensar no que tinha dito. - Mas no vai casar-se em breve... - Vou... - Penso que sim. Foi o que a minha me me contou. Que havia j um miai entre si e Inamura Yukiko. - No, no h... Uma colina descia suavemente at casa de Kikuji,

formando um leve declive. A rua perdia-se depois numa curva. Algum que, desse ponto, olhasse para trs, somente veria as rvores do jardim. Da casa, nem sinal. A imagem da jovem do leno dos mil grous acudiu mente de Kikuji. Fumiko deteve-se e acenou-lhe um adeus, e Kikuji, lentamente, regressou s suas paredes. Chikako telefonou para o escritrio de Kikuji. -Vai j para casa... ? Era esse o propsito de Kikuji, mas, franzindo as sobrancelhas, murmurou: - Bem, eu... -V j para casa. Peo-lhe em nome de seu pai. Pela considerao que ele me merecia. Hoje o dia que ele, todos os anos, dedicava cerimnia do ch. Kikuji ficou surpreendido.

- O pavilho de ch... Al... ? Eu mandei limpar o pavilho - disse Chikako - e, num instante, preparo qualquer coisa. Qualquer coisa para comer. -Donde est a telefonar... ? - De sua casa. Estou em sua casa. Peo desculpa, mas eu tinha de lhe lembrar a cerimnia do ch. Tinha de lhe falar nisso. Kikuji cuntinuava surpreendido. - No descansei um momento - disse Chikako. - Ainda nem sequer me sentei um pouco... Penso que darei conta do recado se me deixar limpar o pavilho. Devia ter-lhe telefonado antes, eu sei, mas certamente que se oporia a que eu limpasse o pavilho. Kikuji no mais utilizara o pavilho de ch desde que o pai morrera. Nos meses que antecederam a sua morte, a me, de quando em quando, sentava-se, solitria, no pavilho.

Nunca, nesses momentos, acendeu a lareira, mas levava sempre um recipiente com gua quente. Iikuji, inquieto, aguardava, ento, o seu regresso a casa. Perturbava-o imaginar o que ela estaria a pensar, a ss, na tranquilidade do pavilho... Por vezes, sentia vontade de a ir observar, de estar com ela discretamente, mas acabava sempre por se manter afastado, distante, respeitando a me na sua dor solitria. Chikako, em vida do pai, cuidara mais do pavilho do que a me, at porque esta raramente se deslocava at l. Falecida a me, o pavilho de ch acabou por ser encerrado. Uma criada, ainda dos tempos em que o pai era vivo, arejava-o vrias vezes por ano. - H quanto tempo - perguntou Chikakomandou limpar o pavilho? Quando foi a ltima vez... ? tanto o bolor

que o no consigo tirar! Por mais que esfregue, sabe... ? Havia na voz dela qualquer coisa de pretensioso, pensou Kikuji. - Enquanto fazia as limpezas - disse ela -, veio-me ideia de cozinhar sei l o qu... Mas nada h aqui. Do que preciso, nada se encontra. Espero, Kikuji, que venha j para casa. - No acha que est a precipitar-se um pouco... ? - Que se afaste do pavilho, l consigo. Mas suponha que traz c alguns amigos, os seus colegas de trabalho. -Muito pouco provvel. nenhum dos meus amigos deseja tomar ch. -Tanto melhor. Que nenhum deles espere grandes coisas, pois nada aqui se encontra como devia ser. Nada, no h nada preparado... Quanto a isso, podemos todos estar descansados.

- Enfim, coisas do acaso... - Kikuji quase que atirou com estas palavras pelo telefone adentro. - Uma pena, at mete d. O que vamos fazer... ? Eu penso que... Talvez algum que compartilhasse com seu pai o que to predilecto lhe era... Mas a esta hora, enfim... E se eu telefonasse menina Inamura... ? - A senhora est a brincar. -Ento no lhe posso telefonar? Mas porqu... ? A famlia Inamura est muito interessada em si... Seria tambm uma possibilidade para voltar a ver a rapariga mais uma vez... Causar-lhe boa impresso, falar-lhe, conversar com ela... Caso queira, telefono j menina Inamura. Se ela vier at c, penso que ser um sinal de que as coisas esto no bom caminho. Algo poder ser combinado... - No me agrada mesmo nada essa ideia - e o corao de Kikuji como que teve um aperto. - Alm disso,

estou resolvido a no ir mesmo para casa. - Bem, isso no conversa para termos ao telefone. No assim que voc pode resolver as coisas. Falaremos de tudo isto mais tarde. Acredite que as coisas no so como ns queremos. As coisas so como so... V, venha para casa agora! - Mas como as coisas so! Verdade, verdade, de que que est a falar... ? O que que pretende... ? -No se aborrea! Olhe que no estou com pruridos de qualquer espcie. - E a persistncia de Chikako, tocada talvez de malcia, veio at ele lembrar-lhe que... Kikuji ps-se a pensar no sinal de nascena que lhe cobria metade do seio. O som das palavras dela parecia-lhe a ele o som de uma vassoura varrendo tudo quanto se encontrava no interior da sua cabea, e o pano de p que ela certamente teria nas mos no estaria tambm a ser utilizado como um esfrego na

sua cabea? Antes de mais, a irritao tomou conta de Kikuji. Depois... Bem, tudo aquilo no deixava de ser um caso curioso. Quase uma histria... Entrar numa casa com o dono ausente, ir cozinha, arrum-la, limp-la, enfim. Seria fcil desculpar Chikako, pensava Kikuji, se tivesse limitado a limpar o pavilho de ch, e colocado depois algumas flores em memria de seu pai. Mas no, ela... De sbito, no meio da sua irritao, surgiu-lhe, como se ela

num relmpago, a imagem da menina Inamura. Que fio de luz! Sem dvida que Chikako andou um tanto ao sabor das circunstncias aps a morte de seu pai. Estaria ela a pensar em servir-se da menina Inamura como um isco para o ter mais perto de si? Seria que ele corria o risco de ficar mais uma vez enredado em Chikako?

Uma coisa era certa: ela mantinha-se ainda atraente, at mesmo interessante, e se algum a olhasse com ar pesaroso logo perderia quaisquer intenes de a proteger, antes se sentiria atrado por ela. Contudo, a obstinao de Chikako, a sua maneira de ser parecia encerrar em si um receio qualquer, um medo, um pressgio... Kikuji temia que tudo isso - pressgio, medo, receio - tivesse como fonte a prpria fraqueza dele. Indeciso e vacilante, tinha a noo de que no poderia zangar-se, cortando relaes com essa mulher que to importunamente interferia com a sua vida. Ter-se-ia ela apercebido do estado de Kikuji, apressando-se agora a tirar partido da sua fraqueza, sabendo-o facilmente influencivel? Kikuji foi-se at Ginza, onde se refugiou num

pequeno bar de mau aspecto. Chikako tinha razo: ele iria para casa. Mas sentia que a sua fraqueza era, afinal, um fardo opressivo de transportar. Chikako dificilmente podia saber que Kikuji tinha passado a noite nessa estalagem de Kamakura. Ou seria que ela se teria j avistado com a senhora Ota? Kikuji tinha a impresso de que, para alm do habitual descaro de Chikako, alguma coisa havia a mais. Qual a razo, na verdade, da sua persistncia, da sua teimosia, da sua...? Talvez que, dentro do seu modo natural de agir, ela tivesse como objectivo o apartamento da menina Inamura... Aps algum tempo no bar, acompanhado de todas estas preocupaes, Kikuji resolveu-se a regressar a casa.

Quando o comboio se aproximava da Estao Central de Tquio, Kikuji entreteve-se a olhar em baixo uma avenida de trs faixas. Ela corria de leste para oeste, quase em paralelo com a via frrea. O sol, a caminho do ocaso, entornava-se pelo piso escuro, e a avenida brilhava como se fosse uma longa folha de metal. As rvores, tocadas atrs pelo sol, corriam escuras, quase pretas. As sombras eram frias, os ramos largos, as folhas espessas. Slidas construes, no estilo ocidental, marginavam a avenida. Estranhamente, poucas pessoas se viam. A avenida, sem movimento, vazia, prolongava-se at ao fosso do Palcio. Os prprios carros elctricos, brilhantes de sol, tambm se mostravam tranquilos, parados, adormecidos. Olhando para as pessoas que superlotavam o comboio, pareceu a Kikuji que a avenida, assim to sozinha, flutuava na luz do crepsculo, como que vinda de um

qualquer pas estrangeiro. Tomou-o a iluso de que a menina Inamura se encontraria a passear por entre a sombra das rvores, com o leno cor-de-rosa e os seus mil grous brancos sob o brao. Sim: viu, de maneira ntida e viva, quer os grous, quer o leno, e deu-se conta de algo de fresco, puro e limpo. Kikuji respirou fundo, alteou o peito - no seria o caso de a rapariga estar a aproximar-se, naquele preciso momento, da sua porta... ? Mas o que pretenderia Chikako, ao fim de contas, quando lhe pediu que se fizesse acompanhar de amigos... ? E quando, perante a sua recusa, lhe disse que iria telefonar menina Inamura... ? No teria Chikako, desde o princpio, a inteno de entrar em contacto com a jovem... ? Enfim, perguntas a que ele no sabia responder.

Chikako apareceu, num repente, porta, abrindo-a apressadamente: - Vem s... ? Kikuji baixou a cabea e disse que sim, que vinha s. - Melhor. bom que assim seja. Ela encontra-se aqui. Chikako segurou-lhe no chapu e na pasta e disse: - No h dvida de que parou em algum stio no seu caminho para casa. Kikuji ficou a pensar, por momentos, se por acaso o seu hlito no cheiraria ao que tinha bebido no bar em que havia parado. - O que foi que aconteceu? - peruntou Chikako. Telefonei uma vez mais para o seu escritrio e disseram-me que de lj tinha sado... Ora eu sei muito bem o tempo que leva para chegar a casa... Houve uma demorazita. Ou no... ?

- Acho que o melhor no me surpreender com tudo quanto a senhora faz. Ela no se desculpou por no ter sido convidada a ir casa de Kikuji, ocupando-a como se a estivesse a governar. Mais ainda: pensava acompanh-lo ao quarto para o ajudar a mudar de quimnno, quimono que a criada ali tinha colocado. - No se incomode. Eu c me arranjarei. E Kikuji, em mangas de camisa, retirou-se para os seus aposentos. Quando de l saiu, Chikako esperava-o no muito longe da porta: - Os celibatrios so assim to despachados... ? - Mesmo muito. - Seja como for, no maneira de uma pessoa viver. H que mudar. - Aprendi tudo com o meu pai. Sempre o observei nas

mais pequenas coisas. Ela olhou-o, um tanto sobranceira. Envergava um avental, que pedira criada, e tinha as mangas arregaadas. O avental pertencera me de Kikuji. A carne dos seus braos era branca e cheia, e os msculos ganhavam forma junto do cotovelo. "Que coisa estranha", pensou Kikuji. "Uma mulher slida e pesada..." - Penso - disse Chikako - que o pavilho de ch seria melhor. - A sua maneira de agir era cada vez mais prtica e, sem qualquer constrangimento, acrescentou ainda: - Ela encontra-se, neste momento, na sala de visitas. Mas acho melhor convid-la para o pavilho de ch. - H luz? Alguma lmpada... No me recordo de ter l visto qualquer lmpada...

- Temos de comer luz de velas. Ou de uma candeia... O que ser muito mais interessante. - No para mim. Chikako, de sbito, aparentou lembrar-se de qualquer coisa: - Quando falei com a menina Inamura pelo telefone, ela perguntou se eu tencionava convidar tambm a me. Disse-lhe que seria agradvel t-las ambas aqui connosco. Mas que havia razes que impediriam a vinda da me, e que tudo tnhamos feito para que a menina Inamura c viesse. - Que tudo tnhamos feito - sorriu Kikuji. Mas quem tudo fez foi a senhora. No lhe passou pela cabea que ela poder pensar que infringimus as regras da boa educao quando lhe pedimos para c vir sem razes de maior...? - Sem dvida. Mas a verdade que ela veio. Est c. E

se ela c se encontra, no acha que a minha m educao foi perdoada... ? - O que a leva a pensar assim? - Tudo. Ela veio, est c, o que significa que as coisas esto a correr pelo melhor. Penso que ela me perdoar se eu me comportar um tanto excentricamente durante o nosso encontro. Quando tudo estiver sanado, quando se derem conversa, bastar um riso de vocs os dois, ou at uma gargalhada, como censura a uma pessoa to desatinada como eu. Eu, que me chamo Kurimoto. conversas que conduzam a um acordo entre vocs os dois so conversas que iro selar o que quer que seja entre ambos... Tudo depender do seu comportamento, Kikuji. o que me diz a minha experincia. Gom estas palavras, Chikako acabara de fazer luz sobre o seu comportamento. Dir-se-ia que ela tinha lido o que ia pela mente de Kikuji.

- Chegou a falar com ela sobre tudo isto? Quero dizer, disse-lhe, de maneira clara, o que...? - Claro que sim. E no iludas tu agora a questo, parecia dizer, naquele momento, a disposio de Chikako. Kikuji desceu da varanda para a sala de visitas. Uma grande romzeira crescia at quase metade da altura das goteiras da casa. Ele tudo fazia para se controlar. Oh, sim, no deveria mostrar m cara quando recebesse a menina Inamura... Olhando para a sombra fechada e funda da romzeira, mais uma vez se lembrou do sinal de nascena de Chikako. Que no, que no - e abanou a cabea. Os ltimos raios do sol da tarde caam, brilhando, sobre as pedras do jardim, a pouca distncia da sala de visitas. As portas estavam abertas e a menina Inamura encontrava-se agora muito prxima da varanda.

Dir-se-ia que o seu brilho, irmanado vivacidade e beleza, iluminava os mais afastados cantos daquela sala, to comprida e sombria. O jardim resplandecia de ris japonesas... E no obi da jovem havia ris siberianas. "Talvez uma coincidncia", pensou Kikuji. Mas as ris eram as principais flores da estao e talvez que a menina Inamura se tivesse deixado tentar por aquela subtil combinao. As ris japonesas exibiam as suas corolas e folhas em pleno ar e Kikuji logo se apercebeu de que as mos de Chikako tinham andado por ali em arranjos de boas-vindas. No dia seguinte, domingo, chovia. Pela tarde, Kikuji, a ss, foi ao pavilho de ch arrumar os utenslios de que se tinham servido. Outro, porm, era o seu objectivo: buscava tambm a

fragrncia da menina Inamura. Pedira criada que lhe trouxesse um guarda-chuva e, quando ia pelo jardim, descobriu uma fenda no algeroz do pavilho. Um forte fluxo de gua caa mesmo frente da romzeira... - Teremos de reparar isto - disse Kikuji para a criada. - Sim, senhor. Kikuji ficou-se recordando, por instantes, como o som da gua o aborrecia nas noites chuvosas... E disse, afastando aqueles pensamentos: - Mas se comearmos com as reparaes, penso que nunca mais as terminaremos. Devo vender a casa antes que ela caia de uma vez para sempre. - o que costumam dizer as pessoas que tm casas assim to grandes. Ontem, a menina Inamura ficou verdadeiramente surpreendida com o tamanho do

pavilho. Falou como se algum dia viesse para c viver. Era evidente, pensou Kikuji, que a criada lhe estava a dizer que nada vendesse. - A senhora Kurimoto disse alguma coisa sobre essa possibilidade? De a menina Inamura vir para c morar... - Sim. senhor. Mal a menina Inamura chegou, logo a senhora Kurimoto lhe mostrou a casa toda. - O que no far ela na prxima vez! - exclamou Kikuji. A verdade, no entanto, que a menina Inamura lhe no tinha dito que visitara a casa toda. Kikuji convencera-se de que ela somente se deslocara da sala de visitas para o pavilho de ch e, ento, naquele instante, tomou-o o desejo de fazer ele prprio o mesmo percurso: entrar no pavilho vindo da sala de

visitas... No correr da noite, Kikuji no tinha conseguido adormecer. Sentia que o perfume da jovem se mantinha no pavilho e to forte era essa sensao que s um pensamento o dominava: levantar-se, sair para o jardim, aspirar de noite o aroma que, hora a hora, assim lhe furtava o sono. "Ela estar sempre distante daqui...", pensara, uma e muitas vezes, tentando conciliar o sono. No sabia ainda que Chikako havia mostrado toda a casa menina Inamura. Tendo pedido criada que arranjasse brasas de carvo de lenha, eis agora Kikuji descendo os degraus de pedra que levavam ao pavilho de ch, que ela, entretanto, arrumara e limpara. Chikako, que vivia em Kamakura, tinha partido em companhia da jovem, e Kikuji, a ss no pavilho,

perguntava-se a si prprio como arrumar os diversos utenslios do servio de ch, todos amontoados a um canto. Uma hesitao, no entanto, a quem pertencia esta pea, aquela a quem, quem se servira daquela e destas... ? "S Kurimoto que saber... ", disse Kikuji para si prprio, os olhos postos no quadro de um dos recantos da parede. Era um pequeno Sotatsu, em tinta de gua, de cores delicadssimas. [Um pintor do Perodo Edo, cujas datas de nascimento e morte so desconhecidas.] - Um poeta? Quem ... ? - perguntara a menina Inamura na noite anterior. Kikuji, embaraado, no soubera responder, limitando-se a estas palavras: - No sei, no conheo, tenho receio de errar. Neste gnero de retratos, todos os poetas so iguais. Cada um semelhante a outro...

- Deve tratar-se de Muneyuki [Iinamoto Muneyuki. Falecido em 939] - disse Chikako. - Sempre verdes, os pinheiros ainda mais verdes so na Primavera. , uma pintura ainda fora da estao, um nadinha s, mas o seu pai gostava muito deste quadro. Na Primavera, costumava traz-lo c para fora. -Tanto pode ser um Tsurayuki [falecido em 95] comu um Muneyuki - objectou Kikuji. E nunca ele, passado muito tempo, algum dia conseguiu descobrir a verdadeira identificao daquela vaga figura pendurada num dos recantos da parede. Reconhecia, no entanto, que na pintura havia uma fora qualquer, talvez uma sugesto de poder, soberanamente seguro, embora as linhas figurativas fossem finas e poucas. Olhando o quadro por momentos, no estado de esprito em que ento se encontrava, Kikuji como que apreendia um dbil perfume, um no sabia qu de limpo e claro. "

isso...", pensou. O quadro e as ris, ali na sala de visitas, traziam-lhe memria a figura da menina Inamura. - Peo desculpa se demorei tanto. Mas pensei que seria bom que a gua fervesse um pouco mais... - E a criada entrou, trazendo uma chaleira e carvo de lenha. Dado que o pavilho ressumava humidade, Kikuji pensara em aquecer o ambiente. Quanto chaleira... Bem, no pensava em fazer ch. A chaleira sara da imaginao da criada. Mas Kikuji, ausente e distrado, disps o carvo na lareira e sobre o carvo colocou a chaleira, perdido em muitos e muitos pensamentos... Oh, sim! Quando em companhia do pai, assistindo aos seus lazeres, tinha participado muitas vezes na

cerimnia do ch. Nunca se deixara tentar, porm, em tomar para si as diversas operaes do ritual e o pai nunca o tinha pressionado nesse sentido. Quando a gua comeou verdadeiramente a ferver, Kikuji alteou um pouquinho a tampa da chaleira e sentou-se, olhando para aquilo tudo. Havia um cheiro a bolor e as esteiras no escondiam a humidade que as impregnava... A cor atenuada das paredes servira de fundo figura grcil da menina Inamura. Mas, naquele momento, j no era assim: a cor atenuada transformara-se numa cor escura e somente a escurido se oferecia aos olhos de Kikuji. Ocorrera, quando do encontro de ambos, uma certa incompatibilidade, a qual poderia ser exemplificada por uma pessoa trajando um quimono

numa casa europeia. Kikuji dissera jovem: -Deve-a ter aborrecido o procedimento de Kurimoto ao convid-la para a minha casa. E tambm a ideia de Kurimoto em nos trazer para aqui, em nos juntar neste pavilho... - A senhora Kurimoto s me disse que hoje era o dia em que seu pai se dedicava cerimnia do ch. - Assim parece ser. Mas eu h j muito que havia esquecido tal dia. - Pensa que ela se quis divertir, ou fazer-se en graada, convidando uma pessoa como eu num dia como este? No tenho prtica da cerimnia do ch, nunca nela me exercitei, nunca... Enfim, estou receosa! - Estou mais do que certo de que s a prpria Kurimoto se lembrou deste dia, desta manh, e pa ra aqui veio, zelosa, limpar o pavilho. Mas no lh cheira ainda a mofo, a bolor...?

Um momento e Kikuji quase engoliu as palavras que disse depois: - Se viermos a ser amigos, bom teria sido que este encontro tivesse partido de ns prprios, e nun ca houvesse sido engendrado por Kurimoto. O ter-nos ela apresentado um ao outro, francamente. . Aceite as minhas desculpas. Ela olhou-o com uma certa desconfiana: - Porqu? No o compreendo... Se no tivesse sido a senhora Kurimoto, quem que nos poderia ter apresentado... ? Sem dvida que era uma simples afirmao, mas que, no entanto, ia directa questo: se no fora a atitude de Chikako, os dois nunca se teriam encontrado neste mundo. Kikuji teve a sensao de que um chicote resplandecente o flagelava. O modo como a jovem se

expressara era o sinal evidente de que a sua proposta havia sido aceite. Pelo menos, assim pareceu a Kikuji. Mas o olhar desconfiado da menina Inamura tinha-o lanado numa angstia ardente. E Kikuji perguntou-se: "como reagiria ela quando ele rejeitasse Chikako como Kurimoto"? "Saberia ela que Chikako tinha sido amante de seu pai, embora por um curto perodo de tempo?" - Tenho ms recordaes de Kurimoto. - E a voz de Kikuji mostrava-se trmula. - De maneira nenhuma quero que os desgnios dessa mulher afectem a minha vida. quase inacreditvel que ela nos tenha apresentado. Depois de os ter obsequiado, Chikako apareceu junto deles com uma bandeja de laca e logo a conversa de ambos se deteve por ali. -Espero que no se importem que vos faa companhia.

E Chikako sentou-se. Inclinando-se levemente para a frente, como se quisesse recuperar o flego depois de ter estado tanto tempo de p, e de haver tambm trabalhado, Chikako olhou nos olhos a menina Inamura: -Um tanto triste, um tanto solitrio, no? Quando se visita nica... Mas estou certa de que o pai de Kikuji se sente hoje muito feliz. Ou melhor, que tambm se encontra feliz. De maneira natural, a rapariga ps os olhos no cho e disse: - Ainda no me encontro preparada para frequentar o pavilho de ch do senhor Mitani. Chikako ignorou o comentrio e ps-se a falar, de acordo com as recordaes que lhe vinham memria, do pai de Kikuji e do pavilho de ch.

Aparentemente, ela considerava o casamento de Inamura e Kikuji como um facto irreversvel, j muito bem combinado. - Penso que um dia destes visitar a casa da menina Inamura. Ou no, Kikuji... ? - disse Chikako quando os dois se iam despedindo. - Veremos o que fazer para concretizar a prxima entrevista. A menina Inamura limitou-se a olhar para o cho. Desejava dizer qualquer coisa, mas as palavras no lhe vinham aos lbios. Um pudor muito ntimo, quase primitivo, induziu-a ao silncio. Essa maneira de ser da jovem surpreendeu Kikuji e envolveu-o como se fosse o calor do prprio corpo dela. Mas, ao mesmo tempo, sentiu-se como que embrulhado numa cortina escura, suja e sufocante. Essa impresso perdurou, alis, por longo tempo: desse momento passado at ao momento presente...

Uma sensao de sujidade que no s envolvia Chikako (que o apresentara menina Inamura), mas que, segundo Kikuji, se encontrava tambm nele. Dentro desse modo de pensar, Kikuji via o pai, com dentes sujos, a morder o sinal de nascena de Chikako. E acontecia ento que a figura do pai se assemelhava figura do prprio Kikuji... Inamura no partilhava da desconfiana de Ki relativamente a Chikako. E tal era uma razo, embora no a nica, para que ele se mostrasse hesitante, irresoluto, desconfiado. Ao mostrar a sua antipatia por Chikako, ele fazia-o por ela o querer forar ao casamento. Para ele, Chikako era uma mulher capaz de manobrar os outros. Ao admitir que a menina Inamura talvez se ti vesse kuji

dado conta de tais manobras, de tudo quanto estava a acontecer, Kikuji mais uma vez sentia aquele golpe de chicote que a presena da jovem j uma vez

desencadeara dentro de si. Vendo-se assim fustigado, Kikuji sentia-se intimamente repelido. Quando acabaram de jantar, Chikako afastou-se, a fim de preparar o ch. - Parece que o destino escolheu Kurimoto para tratar de ns - disse Kikuji. - Quer-me parecer que as nossas opinies divergem neste ponto. Ou no ser assim...? Estas palavras soaram semelhana de uma justificao que Kikuji dava a si prprio. Aps a morte do pai. Kikuji no gostara nunca que a me viesse sozinha ao pavilho de ch. Quer o pai, quer a me, quer ele prprio, quando no pavilho, tinham cada um os seus prprios pensamentos. Mas s agora Kikuji se apercebia de tal

coisa! L fora, a chuva salpicava as folhas. Com o rudo da chuva nas folhas, chegou a ele, agora sozinho no pavilho, o som da gua a ba ter num chapu de chuva. A criada falou atravs da porta fechada e ele entendeu que algum acabara de chegar. "Ota", ouviu dizer a criada. - A menina Ota... - No, senhor, a me. Plida, terrivelmente p lida. Talvez esteja doente. Kikuji levantuu-se de imediato e manteve-ss de p. - Para onde a posso levar? - Aqui para o pavilho. - Sim, senhor. A senhora Ota no trazia chapu de chuva. Dei xara-o, certamente, na casa de Kikuji e aventurara-se, sem

resguardo, at ao pavilho. Num primeiro momento, Kikuji pensou que a chuva lhe molhara o rosto. Mas no: eram lgri mas... Lgrimas que, em fluxo contnuo, lhe corriam pelas faces. "Que temos agora... ?", quase exclamou ao ir ao encontro daquela visita inesperada. A senhora Ota ajoelhou-se na varanda, entrada da sala e, como que sadas dos joelhos, alongou as mos pelo chno... Olhando Kikuji, ia-se dobrando lentamente perante ele. Gota a gota, a chuva ia molhando, sem rudo, parte superior da varanda e Kikuji, embora visse o sulco persistente das lgrimas, teimava ainda em crer que mais no eram do que salpicos atingindo o rosto da senhora Ota. Ela, sempre na mesma posio, no retirava os olhos dele. Era um olhar to fixo, to feito de espanto, que

no permitia que ela se derramasse inteira pelo cho. Estava, por assim dizer, suspensa dos olhos de Kikuji, e este, vendo-a assim nesse equilbrio de splica, temia que, de um momento para outro, ela desviasse os olhos dos seus. E que olhos! Olhos cavados, circulados por pequenas rugas, com sombras descaindo para o rosto... As plpebras, murbidamente inchadas, no escondiam esses olhos em splica, iluminados por lgrimas brilhantes. Olhando-os, Kikuji sentiu a doce suavidade que deles emanava. -Peo que me desculpe - disse a senhora Ota, de um modo calmu. - Eu queria v-lo, no conseguia estar longe, afastada de si... A suavidade, que Kikuji lhe lera nus olhos, revestia-a agora da cabea s mos. To grande era a sua palidez que Kikuji sumente

conseguia olhar para ela, e aguentar os seus olhos, devido ao ar suave que, tal como um aroma, ascendia de toda a sua humilde maneira de estar. Sim, o sofrimento da senhora Ota penetrava Kikuji at ao mais ntimo das suas fibras. Embora ele fosse a causa desse sofrimento, Kikuji, ante aquela suavidade, sentia que o seu prprio sofrimento se iluminava, se ia iluminando... - Est toda molhada. Venha, venha para dentro... - E Kikuji, subitamente, puxou-a para si num profundo abrao, tomando-lhe as costas e estreitando-a contra o peito. Agora, amparada, ela estava de p. A senhora Ota, ento, tentou segurar-se, caminhar at. - Deixe-me ir, deixe-me andar... - disse ela. - Veja como estou magra. To elegante que estou! - Muito elegante.

- Estou muito magra. Perdi peso. Kikuji estava um tanto surpreendidn consigo prprio, assim com uma mulher to de repente nos seus braos. - Preocupada, a sua filha... ? A sua filha no se encontra preocupada consigo?... - Fumiko. ? - Ela a companhou-a. A senhora Ota tinha pronunciado o nome da filha de tal maneira que parecera a Kikuji que a estava a chamar. - No lhe disse que vinha para aqui. - as suas palavras ainda tinham sinais de choro. - Ela nunca tira os olhos de mim. De noite, acorda ao mais pequeno movimento que eu faa. Por mais leve que seja... At bastante tarde, mostrou sempre um comportamento de certa maneira estranho. Talvez devido a mim... - A senhora Ota, embora sentada sobre os joelhos, mantinha agora

o tronco direitn. E continuou, referindo-se a Fumiko: Sempre me perguntou porque a tinha tido s a ela. Porque no um outro filho, eis a sua insistncia. Disse-me at que eu deveria ter dado um filho ao senhor Mitani. Enfim, coisas disparatadas que ela ainda diz. Atravs das palavras da senhora Ota, Kikuji teve conscincia da profunda tristeza que Fumiko deveria sentir. No havia qualquer confuso, no: essa tristeza no residia na me e sim, oh sim!, nessa filha que se chamava Fumiko. E Kikuji sentiu-se trespassado por um dardo quando soube, al