charlie fletcher - coraá„o de pedra

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  • Ttulo original: STONE HEART 1a edio outubro de 2007

    EDITOR E PUBLISHER Luiz Fernando Emediato DIRETORA EDITORIAL

    Fernanda Emediato PRODUO EDITORIAL

    Daniele Cajueiro Ana Julia Cury REVISO DE TRADUO

    Nana Vaz de Castro REVISO

    Hugo Langone Izabel Cury DIAGRAMAO

    Abreus System

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICA-TO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Fletcher, Charlie Corao de pedra / Charlie Fletcher;

    Traduo Euda Ldia Cavalcante Luther Rio de Janeiro: Gerao Editorial, 2007

    Traduo de: Stone Heart ISBN 978-85-6030-210-9

    1. Literatura infanro-juvenil. I. Luther, Euda Lidia Cavalcante.

    II. Ttulo. III. Ttulo: Corao de pedra.

    IV. Srie. 07-1577 CDD: 028.5 CDU: 087.5

    2007 Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • Aos meus pais, Margaret e Paul Fletcher, com carinho e agradecimento,

    fazedores de uma infncia feliz alm de muito mais...

    As coisas que os homens fizeram com suas mos alertas, colocando dentro a vida malevel, permane-cero vivas atravs dos anos pela transferncia do toque e continuaro brilhando por longos anos. E por esta razo, objetos antigos continuam maravi-lhosamente aquecidos com o calor da vida daqueles homens j esquecidos que as fizeram.

    Coisas que os homens fizeram, D.H. Lawren-ce, 1929.

    Nossa felicidade aqui glria v Este mundo falso apenas transitrio A carne fraca e o demnio, es-perto Timor mortis conturbai me.

    Lamento aos fazedores, William Dunbar (? 1460-1520).

  • 1

    A BARRIGA DA BALEIA E OS DENTES DO MACACO

    GEORGE NUNCA PERDEU TEMPO procurando as ra-zes por que ele queria fazer parte. Era o que queria. Assim eram as coisas. Ou se faz parte do grupo ou no; e fazer parte do grupo, estar por dentro, era muito mais seguro. No era o tipo de coisa que se questiona. Era assim e pronto.

    Na excurso anterior da escola, eles visitaram o Museu da Guerra e aprenderam tudo sobre as ba-talhas em trincheiras. George sabia que assim era a vida: manter a cabea abaixo do parapeito para no ser atingido.

    Claro que isso foi no ano anterior, no passado, como todas as coisas que faziam parte de ser criana. Ele s vezes ainda pensava sobre isso. Ainda se lem-brava como era a sensao de ser criana. Mas agora tinha ultrapassado isso. Tinha doze anos. Doze de Verdade, no Apenas Doze, como seu pai disse na ltima vez que se falaram. Ele sabia que os seus doze anos no tinham nada a ver com os doze anos de seu pai porque ele tinha visto fotografias de seu pai quando criana com a cara de quem no sabia de na-da, de culos e meio gordo, tudo o que da pers-pectiva dos doze anos de George seria o equiva-lente a estar sentado bem em cima do parapeito com um alvo pintado na cabea gritando Olha eu aqui!.

  • George se lembrava das conversas e das risa-das com seu pai quando falavam sobre coisas assim, antes de seu pai se mudar, e ento as conversas fo-ram secando at quase no haver mais nenhuma.

    Ele j no falava muito em casa tambm. Sua me se queixava, geralmente com ele, mas s vezes para outras pessoas, no meio da noite, no telefone, quando achava que ele estava dormindo. Em algum lugar dentro dele doa um pouco quando ouvia sua me dizer aquilo no tanto como quando ela dizia que ele costumava ter um sorriso lindo, mas quase.

    E nem chegava perto do tanto que doa no poder dizer mais nada para o seu pai, nunca mais.

    O problema que ele no deixava de falar de propsito. Era uma coisa que parecia simplesmente acontecer, assim como quando caem os dentes de leite, ou quando se ganha altura. Bom, o fato de ele no estar crescendo to rpido quanto queria naquele momento fazia parte do problema.

    Sua altura era a mdia para a sua idade, talvez at um pouco mais que a mdia no entanto ele se sentia menor, do mesmo jeito como se sentia s vezes mais velho do que sua idade. Ou talvez nem fosse exatamente mais velho, e sim um pouco mais batido e desalinhado do que os seus colegas na sala de aula do mesmo jeito que suas roupas. Suas roupas e-ram lavadas todas juntas na mquina, as coloridas e as brancas, e embora sua me dissesse que no fazia a mnima diferena, fazia sim. As roupas ficavam en-cardidas, cinzas, desbotadas. E era assim que George se sentia na maioria das vezes.

  • Certamente era assim que se sentia agora, hoje, e no poder ver o que acontecia sua frente o fazia se sentir ainda mais insignificante do que o normal; tudo o que ele conseguia ver era a barriga da baleia e as cabeas do resto de sua turma enquanto eles se agrupavam ao redor do guia do museu, que mostrava alguma coisa interessante. Tentou se arrastar um pouco para frente, mas s conseguiu uma cotovelada nas costelas. George tentou sair para o lado do grupo para tentar um novo ngulo de viso, cuidadoso em no empurrar ningum.

    Achou um lugar em que quase dava para ouvir e se aproximou, espiando pelo vo entre uma prate-leira de metal cheia de panfletos coloridos e um me-nino que era pelo menos dez centmetros mais alto que ele. E quando tocou na prateleira com seu om-bro e se virou para segur-la, o menino tambm se virou e o encarou.

    George abriu um sorriso em resposta, um re-flexo. O menino no retornou o sorriso. Apenas deu-lhe as costas de novo sem uma palavra. George no se preocupava em ser ignorado. Na verdade, fi-cou aliviado. O menino era um daqueles que inven-tavam apelidos. Tinha o dom de inventar os apelidos mais cruis para seus colegas, e pior ainda, fazia os apelidos grudarem. Ele quase se tornou amigo de George quando eram novatos, mas logo descobriu que o seu dom o impregnava com uma certa invul-nerabilidade, um poder que o livrava da necessidade de ter amigos. Tinha apenas seguidores. E isso era o que o fazia perigoso.

  • O menino virou-se para George. Desta vez falou:

    Posso ajud-lo em alguma coisa? George congelou. E logo tentou disfarar seu

    congelamento com um outro sorriso e um dar de ombros.

    No. ... Apenas tentando um melhor... No fique parado atrs de mim. O menino voltou a olhar para a frente. Outros

    da classe, porm, assistiram a tudo e nos olhos deles George viu algo que reconheceu. No era interesse, certamente no era simpatia, nem mesmo antipatia. Apenas uma gratido disfarada por no serem o al-vo da vez.

    George ento engoliu em seco e ficou onde estava. Sabia o suficiente para no ser visto cedendo. Isso seria o fim, ele seria engolido. Sabia que havia um nvel abaixo do qual no se devia afundar, porque uma vez l embaixo, no fundo, no havia uma escada para poder subir de volta. Uma vez dentro do poo, virava-se presa fcil para qualquer um e qualquer um faria picadinho de voc.

    Por isso George olhou para o quadrado de mrmore em que pisava e decidiu ficar ali. Havia professores ao redor. O que de pior poderia aconte-cer?

    O menino calmamente esticou o brao para trs e derrubou a prateleira, bem em cima de George. Ele deu um passo atrs, mas no havia espao sufi-ciente, e assim empurrou a coluna de metal com as mos para se proteger. A prateleira bateu no cho

  • com um barulho metlico estrondoso, espalhando os panfletos pelo cho de mrmore ao redor de George.

    A sala de repente ficou em silncio total. Os rostos se viraram. O menino virou-se como os ou-tros, um ar de inocncia e fascinao logo se trans-formando em choque e surpresa.

    Caramba, Chapman! O grupo de meninos ao seu redor se dissolveu

    em uma anarquia barulhenta, e os trs adultos, os dois professores e o guia ficaram procurando o cul-pado. E com todo mundo inclinado e apontando, l estava ele, sua cabea acima do parapeito, os ps a-fundados na lama de panfletos coloridos ao seu re-dor.

    O Sr. Killingbeck o perfurou com olhos de franco-atirador, e, firmando o dedo no gatilho, mirou e atirou a bala em forma de uma nica palavra.

    Chapman. George sentiu seu rosto ruborizar. Killingbeck

    estalou os dedos para os outros meninos. Vocs todos arrumem a baguna que o

    Chapman fez! Voc: venha comigo. George foi atrs do professor, afastando-se do

    grupo. Seguiram da sala da baleia at o saguo central

    do Museu de Histria Natural. O Sr. Killingbeck pa-rou no meio do salo, bem embaixo do esqueleto do dinossauro, e mandou George se aproximar.

    George conhecia bem o Sr. Killingbeck para no comear ele mesmo o que estava por vir. Por isso apenas esperou. A boca do homem se movia vagarosamente. Ela sempre se movia como se tudo o

  • que dissesse tivesse um gosto amargo e precisasse ser cuspido antes de causar mais dor e agonia para ele.

    Humm, me diga, voc estava tentando ser rude, Chapman, ou isso lhe vem naturalmente?

    No fui eu, senhor. Quem foi, ento? No havia uma resposta para isso. Pelo menos

    uma resposta que George pudesse dar. Ele sabia muito bem. O Sr. Killingbeck sabia muito bem. Por isso George ficou calado.

    Covardia moral e insolncia estpida. Nada muito atrativo, Chapman. Nada do que voc veio aqui para aprender, no mesmo?

    George ficou pensando em que planeta estava o Sr. Killingbeck. Planeta 1970 ou por a, provavel-mente. No um planeta em que George pudesse res-pirar. Ele comeou a sentir falta de ar. Seu rosto co-meou a esquentar lentamente, um calor que ele sen-tia sem ver.

    Aquilo foi uma coisa imperdovel, rapaz. Voc se comportou como algum totalmente incivi-lizado. Como aquele macaco ali.

    O dedo magro apontou para um macaco em uma jaula de vidro, seus dentes evidentes no sorriso que era sua ltima mensagem para o mundo. George sabia muito bem como era isso.

    Voc um incivilizado, Chapman. O que voc ?

    George olhou para o macaco, pensando como seus dentes eram fortes e assustadores. Pareciam presas de verdade.

    O Sr. Killingbeck preparou a boca.

  • George achou uma bolota de massa de cera no bolso e comeou a model-la com seus dedos. Ainda tinha o contorno irregular de um rosto que ele tinha modelado no nibus.

    Acho que o momento exige um pouco mais do que este silncio amuado, Chapman. Penso que a ocasio exige um pedido de desculpas, para comear.

    George passou o dedo sobre a boca aberta do rosto de massa, pressionando-a para abri-la um pou-co mais.

    Tire as mos do bolso. George amassou o nariz do rosto e tirou a

    mo do bolso. Voc vai pedir desculpas nem que tenha de

    ficar de castigo aqui o dia inteiro. Voc est me en-tendendo?

    George trabalhou a massa na sua mo fechada. Ou voc pode me dizer quem foi o culpa-

    do. Est me entendendo? George entendia. Havia a espada. E havia a

    parede. E ele, bem no meio dos dois. No podia de-durar o outro menino, mesmo que fosse um provo-cador e valento, porque dedurar o empurraria para aquele lugar to baixo aos olhos dos outros meninos que no apenas lhe faltaria a escada para subir, como tambm no haveria nem o cho. Se de-durasse al-gum, o resto da sua vida seria passada caindo em um poo sem fundo que ficava cada vez mais fundo e mais escuro e nunca acabava.

    Esta era a espada. Era simples.

  • A parede era menos simples, talvez por ser to grande, impossvel de mover.

    A parede era todo o resto. A parede era sua vida.

    A parede era tudo o que o fizera chegar quele momento. E o momento o grampeava, no lhe dan-do espao para correr.

    Chapman? Impaciente, o dedo do Sr. Killingbeck batia de

    leve no vinco da perna de suas calas. George olhou para as presas do macaco. Seria

    to fcil para elas abocanharem aquele pedao impa-ciente de pele ressequida e ossos ralos. Desejou tanto ter aqueles dentes na sua boca. Queria muito morder aquele dedo e cuspi-lo na cara do Sr. Killingbeck. Seu desejo era to intenso que at sentia a tritura e a que-bra dos ossos e quase o gosto do sangue. Este senti-mento foi to imediato, quase to real, que ele de re-pente sentiu medo, seus vestgios ainda escuros e pegajosos na sua mente. Nunca, jamais, havia tido um pensamento desses. O choque o encolheu por dentro e o fez esquecer do que falava.

    Senhor? Ento? A voz do Sr. Killingbeck o trouxe de volta pa-

    ra o agora, o momento entre a espada e a parede. No sabia o que faria. De repente, percebeu pelo ar-dido nos olhos que havia uma possibilidade muito mais traioeira.

    E George no choraria. E sabendo o que ele certamente no faria, de repente deixou tudo eviden-te. Sabia o que faria, o que diria. E sabia diz-lo bem

  • devagar, bem calmo, para que a coisa que estava ex-plodindo na sua garganta no o sufocasse.

    Compreendo que isto que o senhor pensa que eu devo fazer.

    O Sr. Killingbeck olhou para ele com a sur-presa de um homem faminto cuja comida de repente o morde. Sua boca parou de mastigar o que estava preparando para dizer.

    Mas eu no concordo. As pupilas do Sr. Killingbeck viraram um

    ponto final no meio da ris de seus olhos. George sabia que tinha cometido um erro. Sa-

    bia, com aquela sbita intimidade que o deixava ainda mais apavorado do que a imagem do dedo decepado, que o Sr. Killingbeck queria machuc-lo. Sentiu a coceira na mo do professor quando ele cerrou o pulso.

    Bem, bem, bem. Muito bem. O Sr. Killingbeck fechou os olhos e passou a

    mo livre entre seus cabelos grisalhos, que se enca-racolavam ao redor do crnio, como se ele estivesse tentando tirar George do pensamento com a massa-gem.

    Vai ficar aqui at decidir pedir desculpas. Se no tiver pedido at a hora de irmos embora, voc no imagina em que situao ter se metido. Vai ficar de p, reto, sem poder se sentar, no para pr as mos nos bolsos, no para chupar balas, no para se mover um centmetro daqui, os vigias do museu no o deixaro sair a no ser que esteja com o resto do grupo. Voltamos em uma hora e meia para lhe

  • buscar e ento voc se desculpar, na frente de todos. Est me entendendo?

    Seus olhos se abriram. George no piscou. Estou. O Sr. Killingbeck deu meia-volta e foi atrs do

    resto da turma. George ouviu o estalo dos saltos dele sobre o

    cho de pedra. George ento ps as mos no bolso. Sentou-se

    no banco. Ps um chiclete na boca. Depois levantou-se, foi at a porta e saiu, en-

    frentando o chuvisco que ensopava os degraus da entrada do museu.

    Os vigias no olharam para ele sequer uma vez.

  • 2

    O HORROR GEORGE EXPERIMENTOU O VENTO FRIO aoitando seu rosto quando saiu do museu. Sentiu-se terrvel. Aquele sentimento negro e pegajoso ainda borbu-lhava na sua cabea e o frio no seu rosto s piorava as coisas. No sabia o que fazer naquele instante. Sa-bia apenas que precisava sair e ficar sozinho um momento.

    George agora tinha certeza de que era mais seguro e mais fcil ficar sozinho. Decidiu isso depois que seu pai morreu, quando a vida de repente ficou cheia de gente dizendo tudo o que era errado, como se suas palavras pudessem preencher um pouquinho o buraco enorme dentro dele.

    Estar sozinho parecia uma estrada difcil, e s vezes sua fraqueza acabava por lhe trair: por exem-plo, detestava a si mesmo por ter sorrido para o me-nino que derrubou a prateleira mvel com os pan-fletos em cima dele; aquilo foi fraqueza momentnea, pura e simples.

    Ele trara a si mesmo. Ter sorrido foi o mesmo que estar tentando

    fazer um amigo, quando na verdade eles no seriam amigos nunca. Ter sorrido foi um sinal de covardia, de necessidade. E George havia definitivamente de-cidido que no precisava de ningum, amigos ou no.

  • A chuva batia no seu rosto em rajadas. Ele olhou para cima, pensando que ficar sozinho era o nico jeito, j que estar sozinho significava estar no controle do que poderia lhe afetar e do que poderia ser ignorado.

    Acima dele, no alto da fachada decorada do museu, havia um bando de animais imaginrios ta-lhados nas paredes, quase reais, mas no de verdade. Lagartos que existiam apenas na imaginao de seu escultor se alternavam com pssaros de uma aparn-cia assustadora como um pterodctilo. Os pterodc-tilos tinham dentes afiados e pontudos, que protube-ravam como bicos tambm pontudos, e ganchos ameaadores se esticavam de suas asas sem penas. Os olhos eram escancarados em um olhar congelado, daqueles que intimidam e desafiam.

    George sentiu o ar frio nas gengivas e ficou em dvida se estava sorrindo ou fazendo uma careta. Quanto mais ele olhava para cima, mais percebia que a fachada inteira do prdio fervilhava de esculturas de animais talhadas em pedra. Elas o deixavam inquieto. No sabia por qu, mas no gostava delas. Sentiu-se observado. Talvez fossem as janelas na frente do prdio; as pessoas podiam estar olhando pelos vi-dros, observando o seu rosto avermelhado e seus olhos ardendo de frustrao e lgrimas que ele se re-cusava a deixar cair.

    George sabia o suficiente sobre autopiedade para detest-la, mais do que detestava o Sr. Killing-beck, mais do que a espada ou a parede. Assim, vi-rou-se contra a fachada e limpou os olhos para ter certeza de que ningum o vira quase chorar.

  • Olhou para o relgio: 15h42. Eles ficariam no museu at as 16h30 pelo menos. No sabia o que faria. Virou e se encostou contra a parede do prdio.

    Alguma coisa o espetou nas costas. Atrs dele, altura de sua cintura, no canto do

    prtico do museu, a pequena escultura da cabea de um drago cinzelada na pedra o observava.

    Ela lembrava os objetos que seu pai fazia ou costumava fazer no seu ateli. No as coisas grandes, as mais srias, mas os pequenos animais de brinquedo que ele s vezes moldava com argila para fazer George rir, quando era pequeno, nos dias em que o menino o encontrava trabalhando, mas no muito ocupado.

    A lembrana no o deixou alegre. Talvez por-que tinha pensado em seu pai demais para um s dia, ou talvez porque o Drago tinha presas que o lem-braram do macaco, do gosto amargo na boca, do Sr. Killingbeck.

    Qualquer que tenha sido a razo, o resultado foi extremo e agudo.

    Odiou aquele ornamento. George odiou-o demais. Seu punho se fechou e se movimentou antes

    que ele tivesse tido tempo de pensar no que estava fazendo. Quando pensou, soube que ia doer. Sabia que sangraria, que arrebentaria a pele dos dedos, que talvez at quebrasse algum osso. Sabia que no se importava. Sabia naquele espao que estava mais prximo do querer do que do saber que tudo isso era possvel, mas que no se importava com nada.

  • Seu punho tinha o mesmo tamanho da cabea do Drago. Seu punho no era feito de pedra granu-lar. No microssegundo antes do impacto ele perce-beu que no sabia realmente o que sentiria ao fazer aquilo. Percebeu que ia fraturar seu primeiro osso. Sentiu mais frio nas gengivas porque estava mos-trando mais dentes em desdm.

    No sentiu o impacto. Apenas ouviu. Ouviu o rudo feio do baque e o mundo se sacudiu um pou-quinho.

    Alguma coisa bateu no seu p. George fechou os olhos e agarrou sua mo

    por instinto, esperando a onda de dor. Ia ser muito ruim. S pelo rudo j sabia que fora dano srio. A-gora que tinha feito, se arrependia. No queria olhar para a mo, caso alguma coisa esticasse para fora. Como um osso, por exemplo. Confirmou com a ou-tra mo, cuidadosamente. No havia nenhum osso, mas tinha definitivamente alguma coisa mida.

    Alguma coisa sibilou para ele. George abriu os olhos. Deve ter sido sua ima-

    ginao. Virou-se para checar suas costas e seu p chutou alguma coisa. Olhou para o cho.

    Era a cabea de pedra do Drago. A cabea que ele havia quebrado com seu

    murro. Olhou para o prtico. L estava o pescoo,

    cortado perfeitamente como por um bisturi. George ento resolveu olhar para sua mo.

    Nenhum osso aparente. Nem mesmo sangue. S molhado da chuva. Estava tudo bem. Apanhou a ca-bea do Drago. No dava para acreditar. Olhou para

  • ela. Alguma coisa tinha mudado. Os olhos no o fi-tavam mais. No olhava para nada. A no ser que ele estivesse enlouquecendo, o Drago tinha olhado di-reto para ele. Agora seus olhos estavam fechados. Decidiu que devia ter sido um truque da luz.

    Ouviu mais um silvo atrs de si. E tambm um arranhado no molhado e um chiado seco.

    Ele sabia, sem ter olhado, que o barulho devia ser de um dos vigias do museu, ou talvez do Sr. Kil-lingbeck voltando para lhe dar uma bronca daquelas por ele ter sado do saguo. No tinha idia de qual seria a reao do Sr. Killingbeck ao descobrir que seu aluno menos favorito tinha acabado de quebrar um ornamento da parede do museu.

    Enquanto se virava, botou a cabea do Drago dentro do bolso do casaco, esperando poder escon-der o que fez, mas sabendo que no ia se safar assim to fcil.

    No era o Sr. Killingbeck. Era algo muito pior, algo to terrvel que, se lhe fosse dado tempo para pensar, ele teria desejado por tudo que fosse mesmo o Sr. Killingbeck.

    No era humano. No era possvel. No entanto, era algo que estava se soltando da

    fachada de pedra do museu e olhando para George com um olhar fixo de puro dio. E no apenas dio fome tambm.

    Era um pterodctilo. Seus olhos eram largos e no piscavam, como

    em permanente surpresa de descobrir que havia, sim, lugar para eles em um crnio que no era bem uma

  • cabea, mas o alongamento de um bico pesado que se afunilava em um pescoo curvado com o esforo de carregar todos aqueles dentes. Seu corpo era pe-queno e em formato de um pombo, embora com-pensasse com asas enormes como as de morcegos e pernas delgadas que terminavam em ns e garras a-fiadas.

    O Pterodctilo abriu e fechou o bico no es-foro de se desprender, e algo semelhante a uma res-pirao sibilou das profundezas de sua garganta de pedra.

    Os pulmes de George se esqueceram total-mente de respirar.

    A coisa se descolou do friso com um ltimo esforo. Tentou abrir as asas, mas s conseguiu des-dobrar uma delas antes de desaparecer da vista, ca-indo abaixo do nvel do parapeito.

    George ouviu um barulho como o baque de um saco cheio de malas molhadas caindo na grama. Sem poder resistir, olhou para baixo do parapeito. O monstro continuava se desdobrando e ajeitando suas asas e garras. Ele dava as costas para George e esti-cava-se como um ancio se livrando de um n no pescoo.

    Foi ento que se virou. Fixou os olhos em George, olhos mortos de

    pedra. E enquanto o resto do corpo se contorcia para seguir a cabea e se emparelhar com ela, George sa-bia o que aqueles olhos faziam.

    Eles estavam se fixando em um alvo. E o alvo era ele.

  • Como para confirmar isso, o Pterodctilo er-gueu seu bico para o cu de chumbo e rangeu os dentes com o barulho semelhante a algum tambori-lando sobre o esqueleto de um homem morto.

    Baixou a cabea, apontou seu bico afiado, e comeou a se impulsionar para a frente, arrastando os ns de suas asas, sacudindo o corpo e as garras entre as asas, como um demnio de muletas.

    George correu.

  • 3

    CORRER, CORRER ELE ALCANOU A ESQUINA da rua Exhibition, escor-regou na curva e comeou a correr, mais rpido, des-viando da multido que entrava no Museu de Cin-cias. Quando notaram e comearam a reclamar, ele j era apenas a lembrana dos ps meio vagos, a cin-qenta metros dali.

    Um guarda de trnsito tentou segur-lo, o que seria a ao de reflexo de todo homem de uniforme ao ver uma criana correndo muito rpido em sua direo.

    Ei, voc... George se desvencilhou do guarda e continu-

    ou correndo. Uma olhadela para trs lhe ofereceu a instantnea imagem de horror do Pterodctilo avan-ando na calada atrs dele, com passadas terrveis e cambaleantes. O monstro parecia correr com suas pernas enquanto simultaneamente se jogava para a frente com a ajuda dos ns de suas asas.

    Ningum parecia perceber nada. George gritou e dobrou a velocidade, virando

    a esquina para outra rua e logo entrando em outra. Gritou Socorro!, mas Londres uma cidade mo-vimentada. No momento em que as pessoas ouviam, ele j havia desaparecido.

    Sentiu uma pontada.

  • Continuou correndo, voando pelas pequenas ruas paralelas, tomando a direo do parque.

    Voc pode continuar correndo quando sente uma pontada, e a dor acaba passando, mas essa devia ser de um tipo diferente. Continuou doendo e outra pontada se juntou primeira. Esta doa ainda mais.

    Ele no parou e continuou correndo do mes-mo jeito.

    Fugir de pesadelos como eles comeam. Nossos corpos tm lembranas antigas dos quais nossas mentes no tm conhecimento nenhum. E essas lembranas fizeram George correr ainda mais rpido. Ele dobrou uma esquina e se deparou com a rua paralela aos fundos dos Jardins de Kensington.

    No conseguia ver uma entrada para o parque, ento virou direita e acelerou ainda mais.

    Atrs dele, o Pterodctilo surgiu na esquina e fungou o ar. George corria. Olhando para trs, ele o viu diminuir. Parecia que tinha parado para admirar o verde do parque. George correu e correu at que um caminho atravessou seu ngulo de viso e ele no conseguiu ver mais.

    Quando no pde mais ver o monstro, Geor-ge teve tempo para sentir as pontadas nos lados. E ento tropeou numa pedra da calada e caiu.

    Levantou-se rpido e olhou para trs. Nada. No se deu conta do mendigo at ele o agarrar

    e o parar na esquina do cruzamento. George virou-se. O qu..? Um caminho atravessou veloz o cruzamento,

    bem no lugar onde George tinha estado.

  • O mendigo o largou. George olhou por cima dos ombros. No via nada. Desistiu ento e se do-brou, gemendo com a dor e a exausto, pensando que ia vomitar.

    No precisa agradecer... disse o mendi-go. George apontou para a rua vazia. O mendigo o-lhou na direo que ele mostrava. O Pterodctilo a-pareceu de trs de uma rvore e olhou para eles. Mas logo se escondeu atrs de outra rvore.

    Voc viu?! George gritou com dificul-dade, tentando aspirar a quantidade exata de oxignio para seu corpo, enquanto se agarrava com fora aos fios restantes de seu mundo normal.

    O mendigo deu de ombros e negou com a ca-bea.

    S porque voc paranico no quer dizer que eles realmente no estejam atrs de voc disse ele, e deu uma srie de risadas que davam a impres-so de que estava se engasgando.

    George chupou o ar. Tudo doa. Seus ps, seus msculos, seus pulmes. Mas a cabea era o que doa mais.

    No se via qualquer movimento por trs da rvore distante.

    Prximo dele havia movimento. Alguma coisa acima do mendigo, na lateral do prdio.

    Uma calha bastante ornamentada, trs sala-mandras fantsticas salientes, os rabos entranados, as cabeas inclinadas para baixo, cada uma com mais ou menos dois metros de comprimento. No foi isso, porm, que chamou a ateno de George.

  • O que chamou sua ateno foi o fato de que se moviam.

    George escancarou a boca. Acima da cabea do mendigo, trs detalhes

    arquitetnicos comearam a se mexer. Ele ouviu os chiados e o barulho de suas escamas de pedra desli-zando quando os rabos se destrancavam. Viu os o-lhos das salamandras se virarem para ele, as narinas fungando.

    Um arrepio frio de terror atravessou sua nuca. Ele apontou. O mendigo seguiu seu dedo com os olhos. A expresso indagadora.

    O qu? Uma das salamandras se livrou das outras duas

    e se encolheu, chiando para George. Ele olhou para o mendigo mais uma vez.

    Voc no v? George ouviu um baque distante. Tirou os

    olhos dos novos horrores na parede do prdio e vol-tou-se para o Pterodctilo, que vinha desconjuntado na sua direo, agora a apenas trinta metros dele.

    George comeou a correr. Passou por pessoas fazendo jogging. Passou por pessoas caminhando com seus cachorros. Passou por pessoas em bicicletas.

    Ningum parou. Ningum olhou. Ningum ajudou.

    Ele, porm, no diminuiu o ritmo. Quando teve a oportunidade de se virar por um instante para olhar, viu as salamandras se arrastando pela calha ao lado da criatura, com um movimento para os lados como o que ele tinha visto em um programa de tele-

  • viso sobre cascavis. Era um movimento terrvel em si, cheio de ameaa, poder, crueldade.

    George correu pela calada que ficava paralela ao Hyde Park, passando por um prdio moderno de tijolos vermelhos com uma torre, um soldado e um cavalo na frente.

    O soldado nem olhou para ele. Ele sentia cada passada nas solas dos sapatos,

    como se a calada estivesse batendo nele e no o contrrio. Ouvia sua prpria respirao como se al-gum estivesse correndo ao seu lado. Seu peito ardia como se estivesse pegando fogo por dentro.

    Arriscou uma olhadela para trs. Ei! Atingiu em cheio a lixeira do gari, arrancando

    o ltimo sopro de ar de seus pulmes e caindo numa baguna de vassouras e sacos de lixo pela calada.

    Ei!! George conseguiu respirar de novo, e mais

    uma vez, e mais outra, e cada vez doa mais que a ltima. Esfregou as lgrimas dos olhos.

    Voc t maluco? queria saber o gari. George sacudiu a cabea. No conseguia falar.

    Vai limpando tudo, garoto! disse o gari, aproximando-se. Pode comear a limpar agora mesmo!

    George comeou a chorar. O gari se surpreendeu, deu um passo para trs,

    chocado. Ei, espera a. O catarro descia do nariz de George enquanto

    ele soluava. O gari olhou ao redor. Coou-se e ficou

  • constrangido, tanto quanto era possvel para um ho-mem com um buldogue tatuado no pescoo.

    Espera a, amigo. No foi... Olhou ao redor de novo. As pessoas no ni-

    bus olhavam, como se eles estivessem num programa de tev. Desconectados. Entediados. Passando o tempo. As pessoas nos carros os ignoravam e se concentravam nos carros a sua frente. Um motoboy passou acelerado.

    O gari pegou uma vassoura partida no meio. Voc quebrou minha vassoura, seu... George congelou. Atrs do ombro do gari, do

    outro lado da rua, enquanto um nibus vermelho ia devagarinho para frente, ele viu de relance uma es-cama. Uma fasca de um bico. E uma centelha de um olho nefasto, escuro.

    O Pterodctilo andava para l e para c no la-do oposto da rua, paralelo ao parque, usando o tr-fego como cobertura.

    Os arbustos ao seu lado se mexeram de novo e desta vez George se virou num instante e conse-guiu ver as caudas das trs salamandras desapare-cendo na folhagem.

    O qu...? perguntou o gari. Mas falou sozinho. George no estava mais l.

  • 4

    O ARTILHEIRO GEORGE CORREU PARA O HYDE PARK CORNER, O entroncamento mais movimentado de Londres, um mar de trnsito roendo o asfalto ao redor da rotatria repleta de monumentos em meio grama rala.

    Como uma bola de pinball, George corria entre os carros, tocando em caps e porta-malas. Os mo-toristas abusavam das buzinas, um rapaz numa bici-cleta teve de frear abruptamente e apitou estridente no ouvido de George, mas ele no deu bola e conti-nuou empurrado pelo pnico que deixava seus pen-samentos dormentes, o pnico que se segue ao puro terror frio. Um caminho freou ruidoso quando ele se jogou na frente e bateu no gradeado e no cimento do outro lado. George olhou para trs.

    O Pterodctilo o seguia numa linha reta im-placvel, deliberadamente, sem pressa, como um predador que sabe ter encurralado sua presa.

    E pior do que esta coisa horrvel e lenta que arrastava de forma barulhenta suas asas encouraadas e rangia os dentes se aproximando era o fato de que George agora sabia que ningum mais a via.

    A coisa se arrastava na sua direo pulando sobre os caps aos olhos de motoristas que simples-mente continuavam olhando atravs dela.

    Ela arranhava o teto de taxis e os motoristas no paravam de falar nem por um instante. Ningum

  • nos nibus olhava ao redor, ningum registrava na mente aquele pesadelo pr-histrico de ossos e den-tes que perseguia uma criana pela avenida mais mo-vimentada de Londres.

    A coisa pulou na garupa de uma motocicleta e fixou seu olhar diretamente nele por um longo mo-mento. O motorista da moto no percebeu, mesmo quando ela levantou a cabea e abriu seu bico para o cu, numa imitao de um chiado vitorioso.

    Dizem que nunca se est mais sozinho do que no meio de uma multido, mas estar sozinho no meio de uma multido, enquanto se perseguido por uma coisa monstruosa sem que ningum perceba, muito pior.

    George se arrastou por cima das grades sem se dar conta do que estava fazendo.

    Ele se afastou at ser bloqueado por setenta toneladas de pedra branca de Portland. Fora encur-ralado pelas paredes do Memorial da Artilharia Real de Guerra.

    Olhou ao redor e por um momento pensou que a coisa estava pendurada impossivelmente acima de sua cabea, pronta para abocanh-lo e acabar com o pesadelo de uma maneira terrvel e dolorida.

    Porm, o ltimo pedacinho de sua mente que ainda conseguia pensar direito percebeu que o que ele estava olhando era uma esttua escura, um sol-dado, um artilheiro trajando um uniforme da Primei-ra Guerra Mundial, um chapu de metal cobrindo seus olhos, os braos abertos contra a pedra, em descanso. Os ombros cobertos por uma capa im-

  • permevel que por um instante fora confundida com asas.

    Ouviu um rudo na sua frente. Voltou-se e, com um frio na barriga, viu o Pterodctilo subindo lentamente a grade a apenas dois metros dele.

    Seu corpo, pensando sozinho, comeou a se mover colado base do Memorial. O monstro, por incrvel que parea, olhou para longe. Agora George se movia com mais vontade, alcanando uma das ex-tremidades.

    O rabo de seu olho deve ter captado o movi-mento, porque ele no o antecipou. Parou sem saber por qu.

    Ali, arrastando-se sua frente, uma das sala-mandras de pedra. George comeou a retornar para onde estava antes at chegar a outra ponta.

    De novo seus ps pararam firmemente sem ele saber por qu. As outras duas salamandras aparece-ram lentamente ao redor do outro canto, as bocas abertas num chiado silencioso.

    George no tinha mais opes. O Pterodctilo virou-se para olhar para ele,

    devagar, fcil, odiosamente. E o dio nos seus olhos era um dio antigo, um dio que George no com-preendia, mas que sentia no seu mago. E no meio do dio havia crueldade e triunfo. O monstro sabia que o acuara.

    Ele pareceu crescer sua frente quando le-vantou suas asas de rptil em jbilo, bloqueando os ltimos raios do sol. Seu bico comeou a se abrir e de dentro veio um odor antigo, repugnante, mais re-pugnante do que qualquer coisa que George j tinha

  • sentido, um cheiro que no tinha nada de humano ou natural, um odor que era antigo e simplesmente a-terrorizante.

    George no tinha para onde correr. Sentiu apenas medo e a parede nas suas costas.

    Sua boca se abriu, sem emitir um som. Viu suas l-grimas baterem no cho sua frente.

    Uma frase se formou por si s e se derramou de sua boca, caindo para a terra, to silenciosa que ningum a no ser ele ouviu, enquanto a coisa descia do gradeado e se aproximava dele.

    Por favor. O monstro abriu o bico e se retraiu para pre-

    parar o golpe que George sabia que seria fatal. Se seu bico longo e afiado no formasse j uma grande ri-sada, seria possvel dizer que ele ria ainda mais quando chiou e flexionou suas garras.

    Por favor... Agora era o fim. A coisa deu o bote. BLAM. O monstro parou. BLAM. O monstro pareceu surpreso. CRASH. Algo pulou na frente de George. Algo com

    tachas de ao nas botas. Algo com uma arma. Algum. O Pterodctilo olhou para os dois buracos no

    seu peito. Sacudiu a cabea em descrena. Com raiva. Recolheu-se e pulou...

    BLAM BLAM BLAM.

  • A primeira bala o paralisou. A segunda o der-rubou. E a terceira o desintegrou. A terceira bala o fez virar cacos de pedra. A terceira bala o transfor-mou em p.

    George olhou para cima. O que viu foi um homem feito todo de bronze opaco, da sola de suas botas militares ao topo de seu capacete de guerra. O Artilheiro do Memorial de Guerra olhou para ele enquanto abria o revlver, sacudia as cpsulas usadas e carregava a arma de novo, tudo em um simples movimento to fluido que no havia necessidade de olhar para as mos enquanto fazia isso.

    Seu movimento foi to rpido que as cpsulas usadas ainda tilintavam aos ps de George e ele j tinha carregado e travado o revlver.

    George sentiu que seu pesadelo no tinha ter-minado ainda. Afastou-se do Artilheiro, mas no o suficiente. O Artilheiro agarrou-o e puxou-o de volta contra a parede, se posicionando sua frente. Para proteg-lo.

    Sobre os ombros da capa de chuva, George viu as trs salamandras se arrastando pelo cho e se juntando em cima do p, das sobras do Pterodctilo.

    Elas se contorciam cegamente como se ten-tassem ach-lo, farej-lo. Logo viraram-se e olharam para George e o Artilheiro. George percebeu de no-vo. O dio antigo multiplicado em trs pares de o-lhos.

    As salamandras chiaram e se entrelaaram, comeando pelo rabo, voltando a ser como eram quando deslizaram da parede do prdio. Ergueram-se

  • como uma nica serpente com trs cabeas. Arma-ram o bote... e o Artilheiro atirou.

    BLAM BLAM BLAM BLAM BLAM BLAM. Seis tiros relmpagos paralisaram, rodopiaram

    e sacudiram as salamandras. O revlver ento clicou vazio, todas as balas usadas. Uma salamandra se re-torceu e saiu de baixo do corpo das outras.

    O Artilheiro tirou seu capacete e jogou-o nos braos de George. Limpou a testa e deu um passo para a frente, mexendo no seu saco de munio pendurado no cinto.

    Enquanto a salamandra tentava se livrar das outras, ele prensou a cabea dela com sua bota, ao mesmo tempo em que recarregou seu revlver pesa-do, to rpido como antes. Dois tiros fizeram o monstro virar p. Ele deu um passo para trs e aca-bou com os outros corpos da mesma maneira.

    Quando terminou, tudo o que se via era uma vaga nuvem de poeira para mostrar que o pesadelo tinha sido real.

    O Artilheiro carregou novamente a arma antes de se virar e olhar para George. George segurava o capacete do mesmo jeito que costumava agarrar seu ursinho de pelcia.

    A esttua escura se agachou sua frente. Ge-orge viu que seus olhos eram cinza, como olhos de-senhados com grafite no seu rosto negro. Os olhos cinza pareciam penetr-lo. O Artilheiro ento pegou seu capacete e cocou o pescoo. Alongou a nuca como se desfizesse um n, num gesto que mais tarde George acharia estranhamente familiar.

    Agora, porm, ele s olhava.

  • No que a sua mente no estivesse conse-guindo acompanhar os fatos. Na verdade, ela nem tinha comeado.

    O Artilheiro pousou o capacete sobre a mura-da do memorial e se agachou ao lado dele, tirando algo do bolso de seu uniforme.

    Cigarros. Ele aquilo, o que quer que fosse riscou

    o fsforo na pedra branca e produziu uma flama mbar que ele aproximou ponta do cigarro entre seus lbios. A fumaa cinza subiu. E desapareceu para dentro da esttua. E reapareceu formando elos perfeitos. Os dois ficaram olhando a fumaa reluzir e se misturar ao ar londrino.

    George no sabia o que fazer, a no ser mur-murar:

    Obrigado. O Artilheiro virou-se e olhou para ele. Deu

    uma tragada. Continuou olhando. George conseguiu dizer mais uma coisa, mas

    foi apenas: Ummm. Olhou para os ps. Pelo menos eles pareciam

    familiares. Uma voz desconhecida saiu da garganta do Artilheiro. Uma voz sepulcral. Com sotaque cock-ney1.

    Me agradea quando chegar ao fim, amigo. George procurou ver se os olhos cinza ainda

    olhavam para ele. Porque eles no piscavam, ele per-

    1 COCKNEY. sotaque tpico dos habitantes da parte leste da cidade de Londres. (N.T.)

  • cebia que a parte branca virar agora um tom claro de cinza e as pupilas escureciam ainda mais.

    O Artilheiro tragou mais uma vez e assoprou em uma meia risada.

    Caramba, voc no tem idia do que co-meou, no ?

  • 5

    O CALOR ENJAULADO No CORAO DE LONDRES alguma coisa acordou, alguma coisa to antiga e to ordinria que as pessoas passaram por ela durante sculos e sculos sem nem ao menos dar uma olhadela.

    Era to lugar-comum e to indistinta que se algum viesse procurar aquilo no teria como no ficar decepcionado com o que acharia. No que al-gum tenha vindo procura dela h muito tempo. Nada sobre ela oferecia qualquer indcio de seu pro-psito ou de seu poder. Parecia mais um pedao ru-dimentar de pedra trabalhada por um pedreiro: pedra esbranquiada, de tamanho e forma similares a um antigo marco milirio. A nica coisa que dava uma idia de que era mais do que o nada que parecia ser era sua condio.

    Estava enjaulada. Ficava ao lado de um prdio, que era pelo

    menos dois mil anos mais novo do que ela, e espiava para a rua atravs de uma trelia grossa de barras de ferro.

    Dada sua antigidade, as pessoas que notavam isso geralmente pensavam que as barras de ferro e-ram para proteg-la dos transeuntes.

    Apenas uns poucos e esses eram uns pou-cos muito estranhos sabiam que era exatamente o contrrio.

  • A grelha de ferro havia se tornado uma arma-dilha para o lixo que o vento trazia dos arredores do prdio, em redemoinhos formados pelo arranha-cu do lado oposto. Um pacote vazio de batatinhas fritas ficou preso no topo da coisa, reluzindo suas cores prata e marrom. Um fragmento no papel lia tor-resmo para aqueles que espiassem e quisessem saber que sabor tinha seu contedo h muito tempo consumido.

    Se a pessoa espiando fosse daquelas que acre-ditam em coincidncias, teria com certeza sorrido ao presenciar o que aconteceu, dado que a descrio no papel acabou por se tornar tambm uma profecia.

    Ouviu-se um zumbido de baixa freqncia, daqueles que fazem geladeiras antigas nas altas horas da madrugada quando pensam que ningum escuta. E de repente a embalagem de fritas lentamente se encolheu, se reduziu e finalmente explodiu em cha-mas num claro rpido e instantneo, antes de sumir por completo.

    E pode no ter sido nada, ou quem sabe fos-sem os dois sulcos sangrentos e estreitos no topo arredondado da coisa. O fato que, sem nenhum lixo por cima, a pedra de repente pareceu vazia e espera, como uma pequena mesa morturia.

  • 6

    A ESCOLHA AGORA QUE TUDO TINHA PARADO, as pernas de Ge-orge comearam a tremer de verdade. Mais uma vez ele sentiu que ia chorar, e uma vez mais quase no conseguindo decidiu que no ia. Estava exausto, o tipo de exausto que leva ao sono como uma con-tracorrente ruim, o tipo de exausto contra a qual se sabe que preciso lutar porque o sono que vir com ela no de jeito nenhum um sono bom.

    Ele olhou ao seu redor para ver se o Artilheiro ainda estava agachado ao seu lado. Estava. E seus olhos ainda garimpavam o trnsito sua frente.

    L de cima veio um assovio penetrante. George olhou para o Arco do Triunfo do ou-

    tro lado da grama. A esttua de uma mulher puxada por uma carruagem com cavalos em riste dominava o topo. O assovio veio de novo, desta vez to agudo e estridente que perfurou os tmpanos e doeu nos ou-vidos.

    O Artilheiro apagou a bituca de seu cigarro, enfiou-a no bolso e se levantou num movimento -nico e decisivo.

    O que isso? Os olhos do Artilheiro seguiram seu olhar at

    os cavalos congelados no cu. a Quadriga. No... disse George.

  • O assovio voltou a soar e agora no havia como confundir sua mensagem.

    Isso ele completou. um aviso disse o Artilheiro. Sobre o qu? O Artilheiro examinou os telhados dos pr-

    dios do outro lado da rua. Isso no hora para perguntas, filho.

    hora da escolha. George abriu a boca. O Artilheiro comeou a

    andar. A escolha ficar ou ir. Aquela exausto dominava George de tal ma-

    neira que ele queria parar de nadar completamente e afundar. Fechar os olhos parecia uma coisa to boa que ele deixou que eles tremulassem antes de sacudir a cabea e tentar pensar.

    No sei o que est acontecendo come-ou ele.

    Sim, voc sabe. Voc est fazendo uma escolha. Agora. Ir ou ficar? Viver ou morrer?

    De sbito, e sem saber por que, George ficou com raiva.

    Isso ridculo... O Artilheiro cuspiu. Claro que . Morrer ridculo. E da? A

    vida no uma piada? No por isso que melhor voc dar risada e se divertir enquanto estiver por a-qui? Mas sua deciso. Para que lado vai pular?

    A tremedeira nas pernas de George virou um bate-bate contra a pedra. Quando ele falou, sua voz saiu mais choramingona do que era sua inteno.

  • Realmente no sei o que est acontecendo. O assovio ganhou um staccato mais intenso. O Artilheiro agarrou seu brao e o levantou

    at que seus rostos estivessem emparelhados. Mas eu sei. Deu um branco na mente de George. Ele no

    conseguiu dizer nada. No conseguiu sequer pensar em qualquer coisa. O Artilheiro deu de ombros.

    Certo. Ento vou voltar para o meu pedes-tal e vou ficar olhando o que a coisa que est a ca-minho vai fazer com voc, porque se voc to idi-ota a ponto de no querer se salvar, ento no vale a pena eu perder meu tempo.

    Ele ps George de volta no cho e se virou. George segurou seu brao e no soltou.

    No. Me ajude. O rosto negro olhou para ele por um bom

    tempo. Alguma coisa mudou na sua expresso, talvez a forma do queixo, talvez as rugas que surgiram ao redor dos olhos.

    Deus ajuda aqueles que ajudam a si mes-mos.

    O que quer dizer? Quero dizer: segure a minha mo e corra

    como um louco. George deixou sua mo ser encoberta por a-

    quela mo enorme e negra. Teve apenas um mo-mento para perceber que a sensao era de um metal malevel, e no frio como tinha esperado, antes que seu brao fosse quase arrancado pelo ombro quando o Artilheiro correu na direo do tnel.

  • Deslizaram para o tnel iluminado e suas pas-sadas ecoavam pela rampa baixa, indo para o norte embaixo do trnsito. No meio do caminho, havia um cantor dedilhando sua guitarra, entoando com muito mais vontade uma velha cano de Simon e Garfun-kel sobre estar seguro em uma fortaleza profunda e poderosa, mas sem a preciso da verso original.

    Seus olhos acompanharam George se aproxi-mando. No deu sinal de notar o Artilheiro, ou de estar ouvindo as batidas surdas das tachas de metal de sua bota no concreto. Apenas observou George se aproximando, primeiro com tdio, depois com des-prezo. Deixou de cantar um momento suficiente para cuspir um obrigado sarcstico quando George passou pela maleta vazia da guitarra sem jogar nada para acompanhar a msera poro de moedas espa-lhadas no seu interior escarlate.

    George ainda olhava para trs quando o Arti-lheiro o arrastou pelos degraus para dentro do bos-que no Hyde Park, escuro e coberto de rvores.

    Ele no viu voc! O Artilheiro continuou correndo, passando

    entre os pedestres a caminho de casa naquela pe-numbra acentuada pela iluminao branco-prateada das ruas, se afastando do trnsito, penetrando cada vez mais no bosque.

    Nenhum deles pode ver voc! O Artilheiro puxou seu brao bem no mo-

    mento em que ele se deu conta de um tronco de r-vore que se destacava bem sua frente naquela escu-rido meio alaranjada.

  • O que foi uma pena. Porque se ele tivesse continuado olhando para trs teria percebido que estava errado.

    Um par de olhos os observava. Um par de o-lhos que se arregalava com algo mais intenso do que incredulidade. Os olhos que os seguiam pertenciam a uma cabea coberta com longos cabelos castanhos to escuros e brilhantes que chegavam a se asseme-lhar cor de berinjela. Eram olhos bem espaados, com clios curvados que poderiam parecer asiticos se no pertencessem a um rosto cuja palidez lem-brava muito mais o norte.

    No andar de cima de um nibus vermelho que passava esquerda da pista dedicada aos coletivos, uma menina da idade de George se levantou de seu assento e fez seu caminho cambaleante entre os pas-sageiros de p, seus olhos fixos em algo que desapa-recia para dentro do parque enquanto o nibus se distanciava e a levava cada vez mais para longe.

    Bruscamente, ela deu sinal de parada e desceu aos pulos a escada espiral, alheia s reclamaes dos passageiros, ignorando os gritos e as mos que toca-vam seu casaco de pele de ovelha, ao mesmo tempo em que abria caminho at a plataforma traseira do nibus, os olhos examinando minuciosamente a es-curido procura de algo que j no podia mais ver.

    O motorista a deteve. Voc, menina, espere. Ela no olhou para trs. Preciso descer! O nibus continuou veloz, descendo a Rotten

    Row.

  • Daqui a pouco chega o prximo ponto disse o motorista, sem solt-la.

    O nibus diminuiu a velocidade para deixar passar um txi. A menina torceu a cabea como uma cobra e mordeu o motorista entre o polegar e o indi-cador. Ao que ele gritou e soltou seu brao com o susto, ela pulou da traseira do nibus que se movia lentamente, cambaleou, caiu, levantou-se, driblou um outro nibus, que teve de frear bruscamente, e cor-reu para o parque. A menina que se chamava Edie no parecia se importar com o machucado recen-te no joelho, nem com as buzinas insistentes e os gritos que deixava para trs.

    No entanto, a outra coisa que se destacava naquele rosto plido sob os cabelos brilhantes cor de berinjela era a sua dureza de expresso, irredutvel alm de sua idade, uma firmeza que vinha do fato de ter decidido nunca mais se importar com mincias.

    E sua expresso era a de um rosto firme na perseguio de alguma coisa grande.

  • 7

    ESTACIONAMENTO O ARTILHEIRO SEGUROU GEORGE no meio do tra-ado intricado de sombras que danavam numa luz prateada, sombras formadas pelos galhos de pltanos. Ele olhou ao redor.

    George se concentrou em tomar flego. Es-perou at poder ser capaz de abrir a boca para per-guntar:

    Estamos seguros? O Artilheiro simplesmente continuou a se

    movimentar, mas desta vez George notou que no era a correria louca. Era mais como um jogo de es-conde-esconde, em que o Artilheiro os mudava r-pido de uma poro de sombra para outra, sem tirar um olho do que quer que fosse que os perseguia.

    Agora que estavam se movendo um pouco mais devagar, a mente de George tinha espao para mais do que o terror e a tarefa rdua de continuar respirando apesar das pontadas nas costelas. Os pensamentos circulavam na sua cabea, um atrs do outro, antes que ele pudesse se fixar neles, como as-sistir tev enquanto outra pessoa segura o controle remoto e continua mudando os canais. Pensou no Sr. Killingbeck. Pensou na sua casa, no apartamento va-zio onde sua me ainda no teria tido tempo de sentir sua falta. Pensou em quando e se ela sentiria falta dele. Outro pensamento relampejou na sua mente, a

  • imagem aterrorizadora do Pterodctilo se arrastando at ele pelo trnsito parado. Pensou no seu celular, enfiado na mochila, trancada no compartimento es-curo do vestirio do museu. Viu as salamandras de pedra armando o bote para lhe tirar a vida.

    Foi a que vomitou. Enquanto o Artilheiro tentava pux-lo, ele se apoiou no tronco delgado de um pltano e vomitou. Duas vezes. Seu estmago tentou pela terceira vez, mas no havia mais nada, apenas uma sensao efervescente na nuca e o tre-mor que parou quando o Artilheiro ps sua grande mo em seu ombro.

    Melhorou? perguntou ele. George ne-gou com a cabea.

    Voc at que fez bem. No sujou os sapa-tos nem nada. Segure firme.

    De repente ele levantou George nos seus bra-os e pulou o muro baixo na beirada do parque. Ge-orge abriu a boca, mas a sensao de estar caindo no meio de um espao profundo o deixou mudo. Sentiu um instante de vertigem at que as botas do Arti-lheiro tocassem no cimento. George olhou ao redor e viu que haviam pulado uma espcie de murada que escondia um vo de uns cinco metros de altura. O vo terminava numa rampa que levava a um esta-cionamento subterrneo embaixo do parque. O Ar-tilheiro o colocou no cho e caminhou com ele sem fazer barulho, descendo a rampa para o espao sub-terrneo.

    O estacionamento estava vazio de pessoas, mas repleto de carros. Na distncia se ouviu o rudo solitrio da freada de um pneu em um outro canto do

  • lugar, mas agora o Artilheiro e George constituam os nicos movimentos entre os caps e pra-brisas que se enfileiravam sob luzes fluorescentes. O Arti-lheiro andou entre dois carros, achou uma sombra atrs de uma pilastra de cimento e se agachou ali. George olhou para ele.

    O que estamos fazendo? Esperando. Esperando o qu? Que a coisa v embora. Que coisa? No sei. Quer ir l fora e dar uma olhadi-

    nha? George no queria. Alm disso, voc est acabado. por isso

    que vomitou tudo. A exausto tem um limite e voc acabou de ultrapass-lo. como os cavalos. Agora s precisa descansar um pouquinho... Eu sabia lidar com cavalos.

    George notou que o Artilheiro carregava r-deas de metal enfiadas no cinto, sob sua capa de chuva. O Artilheiro percebeu que ele olhava.

    Artilharia a cavalo. Puxvamos as armas atravs da lama, tentando no matar os cavalos mais velhos enquanto fazamos isso. Se perdssemos um cavalo, perdamos a arma. Perder a arma era perder a batalha. E se perdssemos muitas batalhas, ento...

    Ele pareceu voltar a si. Para George, era como se o Artilheiro estivesse voltando para o aqui-e-agora de um lugar muito distante.

    Bom. O agora no tem nada a ver com is-so. Recupere o flego.

  • O Artilheiro tirou sua bituca do bolso e a a-cendeu.

    George olhou para ele e depois para os alar-mes de fumaa no teto. Os olhos do Artilheiro se fixaram em George enquanto os elos de fumaa flu-tuavam, subindo.

    O qu? Eu acho que... Acha o qu? Eu acho que voc no pode fumar aqui. Os olhos do Artilheiro continuaram impass-

    veis, mas algo tremeu sob sua pele escura de bronze escuro, no canto da boca. Apesar de tudo, George sentiu uma vontade subindo at seu rosto. A ltima coisa que ele queria naquela hora era rir, mas o rosto do Artilheiro se abriu e ele sentiu vontade de acom-panh-lo. E, exatamente como as pequenas rachadu-ras do o sinal de que o dique vai romper, quando o Artilheiro comeou a rir, George o seguiu.

    No posso fumar? No posso fumar! O Artilheiro riu como um sino ressoando. A

    risada de George vinha depois, mais aguda, mais leve, com ecos de histeria. De alguma maneira todo aquele pavor e incompreenso encontrou uma expresso na risada dele. No sabia por que as coisas eram to en-graadas, apenas sabia que rir era o correto. Teve uma lembrana instantnea de seu pai arrotando na mesa do jantar e respondendo desaprovao de sua me com um prazeroso Melhor fora do que den-tro. Era isso que George sentia agora, essa risada era a gota final do terror. No tinha idia do que estava dizendo com aquela risada, mas sabia que era melhor

  • fora do que dentro. Engarraf-lo teria rompido algo dentro de si. Rir no fazia sentido nenhum, mas pa-recia certo. O Artilheiro enxugou os olhos.

    No posso fumar? Eu posso descer de um monumento no corao da cidade, atirar em quatro estigmas, arrastar voc pelo parque na maior rapidez sem ningum, nem um mendigo me ver, sem nin-gum piscar um olho... e voc vem me dizer que eu no posso dar um trago? Ora bolas!

    Ele parou de rir. George continuou um pouco mais e logo cessou a risada, to abrupta e inexplica-velmente como tinha comeado, quando sentiu que o Artilheiro esperava algo dele.

    Voc precisa prestar ateno, meu filho. Porque as regras das coisas quando voc acordou hoje, bom, o que estava em cima ainda est em cima e o que estava embaixo ainda est embaixo, mas e no meio? As apostas so outras. E a que a porca torce o rabo.

    Seus olhos ficaram fixos em George, enquanto soprava uma longa cadeia de elos de fumaa bem em cima do alarme.

    O que quer dizer? Quero dizer: voc quer sobreviver a isto,

    ento vai precisar pensar primeiro e fazer as pergun-tas certas. E O que quer dizer? no a pergunta certa.

    George comeou a tremer. Abriu a boca. Pensou um pouco mais. Fechou a boca.

    O Artilheiro deu um grunhido de aprovao. Isso muito bom. Engatar o crebro antes

    de acelerar com a boca. No ligue para a tremedeira.

  • o choque. Vai passar, ou voc vai ficar meio doi-dinho por um tempo.

    No quero ficar meio doidinho. Pode no ser a pior coisa que vai acontecer. George baixou os olhos para o cimento mo-

    lhado sob seus ps. Acho que j fiquei doidinho h pouco

    tempo. Acho que tudo isso doideira. Acho que al-gum botou alguma droga na minha comida ou algo assim. Acho que tudo isso no est acontecendo.

    O Artilheiro ficou olhando para ele. George imaginou que ele talvez tivesse virado esttua de no-vo.

    Olhe disse ele depois de uma pausa , me diga, por favor, o que est acontecendo. Me diga quem voc. Me diga o que so aquelas coisas. Por favor.

    O Artilheiro bateu no peito. Eu sou uma esttua. Eles so esttuas, or-

    namentos, o que for. Mas isso tudo o que temos em comum. Eu sou um cuspido, eles so estigmas. Estigmas odeiam os cuspidos, cuspidos no so muito chegados aos estigmas por causa disso. Po-de-se dizer que existe uma certa animosidade entre ns desde que o primeiro homem pensou em escul-pir alguma coisa e botar um pouco dele naquilo que formou. Somos ambos feitos, compreende? Am-bos criados por artesos ou at mesmo artistas, no importa, ns os chamamos de fazedores. No en-tanto, somos to diferentes como a gua e o vinho.

    Os estigmas so maus?

  • Se so maus, isso no sei. S sei que so ruins. Quero dizer, no tem nada de humano neles. Foram feitos para assustar, para serem feios, para olharem para voc de soslaio do teto de uma igreja e lhe dar arrepios.

    Grgulas. . Algo assim. Quero dizer, todas as gr-

    gulas so estigmas, mas nem todos os estigmas so grgulas, se que voc me entende. So coisas como as grgulas, coisas que foram feitas para nos lembrar do inferno, com a funo de afastar o demnio. No h nada de humano neles. Vazios. E como todas as coisas vazias, eles tm fome. No de coisas de comer. Fome daquilo que faz com que voc seja o que voc , e eu seja o que eu sou.

    George pensou no olhar e no bico afiado e cheio de dentes do Pterodctilo, e compreendeu exa-tamente o que o Artilheiro queria dizer.

    Com a diferena, porm, de que eu sou menos eu do que voc voc, pois eu sou um cus-pido.

    O que quer dizer? perguntou George, embora no mesmo instante em que fez a pergunta, algo no seu ntimo lhe dissesse que j sabia, que j lhe haviam dito isso antes. Pensou que se parasse e ten-tasse pensar, lembraria da resposta. Mas antes que lembrasse, o Artilheiro falou.

    Um cuspido uma esttua que o fazedor (escultor, artfice, o que for) fez para representar uma pessoa humana. E por causa disso, enquanto o faze-dor trabalha, uma parte daquilo se transfere para ns e preenche aquele vo que nos estigmas os consome

  • por dentro. Quero dizer, a esttua do Lord Kitchener no o Lord Kitchener, mas ela ... bom, ela o que o escultor pensava e sabia sobre o Lord Kitchener. como se ela tivesse uma centelha do esprito de Lord Kitchener dentro dela. Ela o esprito e a imagem de Lord Kitchener. O cuspido e escarrado, por assim dizer. Isso faz sentido para voc?

    George precisou pensar antes de responder. Ele sabia sobre escultores. Lembrou das conversas que mencionavam pr algo de si mesmo em certas coisas, e de conversas sobre as coisas se transfor-mando em coisa viva nas suas mos. Ele apertou a massa de cera no bolso e confirmou com a cabea.

    Ento quem voc representa? Sou o Artilheiro. Ningum especial. Ape-

    nas um soldado. Da Primeira Guerra Mundial. O -nico outro nome que tenho o daquele homem que me fez. Do mesmo jeito que voc leva o nome da-quele que fez voc. Qualquer que seja o seu nome...

    Chapman. Sou George Chapman. Sou Jagger. Meu fazedor foi Charles Sar-

    geant Jagger. Assim, eu sou um Jagger. Voc tem uma famlia grande?

    No. Eu tenho. Tem Jaggers espalhados por

    Londres inteira. Jagger se deu bem com a guerra. As pessoas gostavam do que ele fazia, do jeito que ele nos fazia parecer heris, sem exagero. Ele nos fez primeiro como homens que sabiam o que era lama e o que era morrer, e s depois nos fez parecer heris. Para aqueles que perderam filhos e maridos, parec-amos com os homens como queriam se lembrar de-

  • les, os homens que poderiam ter se tornado antes que os filhos-da-me dos generais os mandassem pa-ra serem abatidos pelos alemes.

    Ento posso chamar voc de Jagger? O Artilheiro ficou quieto e olhou para cima. O qu... O Artilheiro olhou para ele e botou o dedo

    sobre os lbios. Quietinho. Devagar e sem fazer rudo, tirou o revlver do

    coldre. O Gato est no telhado.

  • 8

    O GATO NO TELHADO O ESTACIONAMENTO TINHA UM TETO de quase um metro de espessura, feito de cimento reforado com barras de metal. Sobre o cimento havia mais dois metros de terra, pesada e pegajosa, como a argila de modelar. A terra era reforada pela sua prpria teia de razes das rvores, cruzando umas sobre as outras, pois cada rvore se estendia com suas razes mais finas atravs da argila numa exploso lenta e micros-cpica em busca de gua e alimento. Este entremea-do por si s tambm possua tneis feitos por mi-nhocas, que se enfiavam cegamente sob o cho do parque, no seu labutar normal. E no topo de tudo isso havia a grama razes brancas na argila, brotos verdes acima alcanando o ar, tentando respirar al-gum oxignio no meio da poluio da mar de trn-sito infinito e constante que atravessava a Park Lane. Nos dez centmetros de grama que cobriam a terra, ficava um mundinho de insetos labutando sem trgua da mesma forma que os habitantes humanos da ci-dade ao seu redor. Havia formigas, havia joaninhas e por um momento havia um besouro.

    Edie o viu claramente, suas costas negras e re-luzentes refletindo a luz laranja prateada dos postes nas ruas enquanto ele se movia lentamente de um mao de cigarros vazio para um monte de vmito. Edie sabia que a pequena pirmide na grama era v-

  • mito porque sentia o cheiro. Sentiu o cheiro de ma-neira muito mais forte do que teria preferido porque seu nariz estava rente ao cho, como o resto de seu corpo, esparramado embaixo de um arbusto, quase sem respirar. Sabia que o besouro era um besouro e agora no era mais porque a grgula pulou um metro sua frente e viu a sua pata de pedra o-lhando de perto era mais uma garra do que uma pata pisar com um esguicho sobre a argila.

    Edie se esgueirou ainda mais para as sombras do arbusto, tentando se mover to sorrateira e cau-telosamente como as razes sob o cho embaixo dela. Sua mo esquerda segurava um pequeno disco de vidro que reluzia azulado entre os seus dedos. Tam-bm estava quente. Ela enfiou o disco no bolso sem tirar os olhos da garra de pedra a um metro de seu nariz. Agora no precisava mais do disco de aviso. A coisa estava ali. Estava perto demais para seu con-forto.

    Era uma grgula de pedra calcria com o rosto de um gato rosnando e os chifres de um pequeno diabo. Tinha asas, mas no braos, possua pernas longas e poderosas que terminavam nas patas com garras que haviam acabado de esmagar o besouro. Os olhos eram de pedra como o resto do corpo, o par de sobrancelhas tinha um ar de ferocidade e rancor. Um sculo e meio de exposio ao tempo havia deixado listras escuras e cinzentas na pedra, e num inverno duro a geada expandira a gua at um vo na sua asa direita, desintegrando uma parte e dando uma apa-rncia assimtrica de uma leso adquirida numa ba-talha.

  • Edie sabia que era boa muito mais do que o natural em se fazer invisvel quando sua inten-o era permanecer incgnita. Desejou, porm, ser ainda melhor ao observar o gato-grgula se inclinar para o cho e farejar. Quando ele respirou, ela ouviu um assovio baixo, como algum soprando no gargalo de uma garrafa. Ele moveu a cabea de um lado para o outro no cho, tentando farejar uma pista. Edie decidiu parar de se mover para trs e tentou se fazer invisvel.

    O gato-grgula se afastou dela e foi at o pa-rapeito sobre o qual George e o Artilheiro haviam desaparecido. Ao se virar para longe, enquanto se preparava para farejar e assoviar ao seguir sua pista ao longo do topo do muro, Edie se permitiu respirar fundo. Tambm era uma tima oportunidade para notar a crista espinhosa de vrtebras nas costas dele, como uma fileira de espinhos gigantes tentando ar-rebentar atravs da pele rija de pedra. Ela via os msculos felinos densos contraindo e relaxando quando ele se movia para frente e para trs, como se danasse em um transe lento guiado pelas narinas.

    Foi quando Edie percebeu a mulher puxando um carrinho de beb e uma cocker spaniel, andando rpido na escurido alaranjada, claramente atrasada para alguma coisa e muito irritada com isso. A ca-chorra corria frente da mulher, sacudindo as ore-lhas de felicidade. De repente ela parou, as orelhas se enrijeceram e ela rosnou.

    O primeiro pensamento de Edie era de que ela tinha visto o gato-grgula a dois metros de distncia. O gato-grgula virou-se e olhou para a cachorra.

  • A mulher estalou os dedos para a cachorra no momento em que passava naquele ponto do cami-nho.

    Brande. Venha c. Brande. Brande se congelara em um rigor trmulo na

    frente do gato-grgula. Os spaniels no costumam ter muitas idias, por isso quando uma idia vem ca-bea eles se apegam a ela como cola. E com um frio terrvel na barriga, Edie percebeu que a idia a que Brande estava se apegando no era a de estar vendo o gato-grgula. Era a idia de estar vendo Edie sob o arbusto.

    Brande! Venha! gritou a mulher, deixan-do o carrinho e se aproximando da cachorra e da grgula. O gato-grgula deu um passo para trs e se agachou, abrindo as asas, paralelas ao cho, pronto para destroar o que estivesse frente. Edie viu que a ponta de cada asa tinha ganchos afiados. Ela uma vez assistira a uma tourada na tev e o toureiro havia fei-to o mesmo gesto, dando um passo para trs, abrin-do a capa nas suas costas, escondendo a espada, mostrando-se inocente, mas pronto para atacar quando o touro chegasse perto.

    A mulher passou rente ao gato-grgula. Edie imaginou que ela devia ter chegado a toc-lo com seu casaco, mas era bvio que no o via, da mesma ma-neira que sua cachorra. A mulher pegou a cocker spani-el e prendeu a correia na coleira.

    Vamos, sua levada, no h nada aqui! disse ela enquanto puxava a cachorra para longe. A cachorra comeou a latir para trs, os latidos aumen-tando de volume conforme sua dona a arrastava para

  • longe. Os latidos terminaram em um gemido quando a cadelinha levou um tapa no focinho e foi presa ao carrinho, cujo ocupante agora choramingava. O vento comeou a soprar mais forte entre os galhos das rvores e a mulher franziu o rosto exasperada. Ela tirou a sombrinha da bolsa pendurada no carri-nho e a abriu com apenas uma mo.

    Venha. Vai chover. Precisamos chegar em casa. Seja boazinha, Brande.

    O tapa tirou Edie da cabea da spaniel e ela seguiu a dona at que as duas sumiram em meio escurido, aps a me pr uma capa de plstico sobre o carrinho.

    Edie se preparou para respirar de alvio quan-do percebeu algo muito pior. O gato-grgula conti-nuou na sua posio de ataque; no entanto, sua ca-bea se virar lentamente e estava olhando sobre os ombros diretamente para onde a cachorra tinha dire-cionado seus latidos.

    Para Edie. De repente, de forma to rpida que seus o-

    lhos mal acompanharam, ele trocou a posio do corpo, virando para o arbusto. Mantendo as asas de garras afiadas abertas, como uma imagem terrvel da sombrinha que Edie acabara de ver a mulher abrir, ele se agachou ainda mais e farejou voltado para ela.

    Lentamente, a ponta de uma asa afastou o ar-busto, e ento Edie no tinha para onde correr. Os olhos de pedra olhavam para ela. Edie teve tempo de registrar que aquela respirao sibilante vinha do ca-no de cobre corrodo que se projetava reto da boca do monstro, como o cano de uma arma.

  • Edie enfiou a mo no bolso e tirou o disco de vidro. O que antes reluzia azul, agora incandescia como um archote, como um archote verde-azulado. Ela posicionou o vidro com o brao esticado, segu-rando-o com apenas um indcio de tremor. Foi na voz, porm, que ela mostrou seu medo.

    V embora. Ela limpou a garganta. Disfarou o tremor da

    voz e tentou de novo. V embora! Voc tem de ir embora! Um olho de pedra se arqueou como se ques-

    tionasse. O rosnado feroz aumentou ainda mais e os chifres se abaixaram como as orelhas de um co. Ele no foi embora. Deu um passo frente, abrindo ain-da mais o arbusto, revelando-a para o mundo e para o que quer que ele pretendia fazer com ela.

    Ento veio a chuva, primeiro uma gota, depois um plim plim de gotas, e logo sem parar um mar de gua comeou a cair do cu. Edie fez cara de brava e encarou destemida os olhos de pedra atravs da cor-tina de gua.

    Voc. No. Me. Assusta. mentiu Edie. Nada me assusta. No mais. Voc no pode me machucar. Vai ter de ir embora!

    O gato-grgula estremeceu e olhou nos seus olhos.

    Voc no me assusta... mentiu de novo. E o gato-grgula pulou.

    Para trs. Para o cu. Para o meio da chuva. Para longe dela.

    Edie ficou olhando fixo para o lugar onde ele no estava mais, at seus olhos convencerem seu c-

  • rebro de que no havia nada ali, a no ser a chuva, a grama e aquela luminosidade alaranjada e lgubre.

    Ela olhou para o disco de vidro na sua mo. Enquanto olhava, a luz no disco morreu e ele se transformou exatamente no que era de fato, um caco antigo de vidro, o fundo de uma garrafa lavado nas ondas e na mar, arredondado por seixos e areia. Al-go que qualquer um poderia encontrar num passeio pela costa. Edie enfiou o vidro no bolso de seu ca-saco de pele de ovelha. Respirou fundo vrias vezes e caminhou pela grama at a rampa do estacionamen-to.

  • 9

    ESTACIONADO GEORGE E O ARTILHEIRO olharam para o teto de cimento. O Artilheiro sorriu.

    Foi embora. George encostou-se contra a parede e ficou

    olhando a grelha do radiador de uma Mercedes na sua frente.

    O que era? Um estigma. Um estigma? O Artilheiro deu de ombros e se coou com

    um prazer humano inesperado para uma esttua. Provavelmente uma grgula. Voava. A

    maioria dos estigmas voadores so grgulas. George arquivou isso sob Nova Informao

    e sentiu que havia uma sobrecarga naquele departa-mento.

    Espere a. A coisa que me perseguiu do Museu de Histria Natural. As trs salamandras que desceram da parede do prdio. As coisas em que vo-c atirou. Eram todos estigmas?

    Agora sim. Voc pega as coisas rpido, no ? Se continuar assim, quem sabe at sobreviva esta noite.

    George ia abrir a boca para fazer uma pergun-ta para a qual realmente no queria ouvir a resposta, quando ouviu passadas de algum se aproximando.

  • O Artilheiro o fez ficar quieto tocando de leve no seu joelho. As passadas pararam na frente deles. Eles ouviram o barulho de uma chave virando numa fe-chadura, o slido clique-claque da porta de uma Mercedes se abrindo e fechando e o zumbido do motor acordando atrs da grelha do radiador bem na cara dos dois.

    E... disse George. Os faris foram ligados. George e o Artilheiro

    foram iluminados como duas figuras em um desenho animado, pegos de surpresa na luz dos holofotes contra o cinza da parede.

    Socorro! gritou George, esperanoso, para o rosto atrs do volante. O rosto olhou atravs dele e depois para longe, ao virar-se para dar r e sair da vaga do estacionamento.

    Ele no pode ver voc disse o Artilhei-ro.

    Os faris os cortaram quando a Mercedes de-sengatou a r e continuou para a frente, cantando os pneus e atravessando as fileiras de carros estaciona-dos procura da sada.

    Por que ele no pode me ver? pergun-tou, sentindo-se como se no devesse ter gritado Socorro, como se de alguma maneira, dada a sua situao, devesse ser rude.

    Bem, no que ele no possa. Os olhos dele funcionam, mas na cabea dele que ele no o v. Seu crebro no deixa.

    Por qu? Porque ele um cara normal, racional, a

    no ser por estar dirigindo um carro alemo, e uma

  • pessoa normal e racional no acredita que algum possa andar por Londres com esttuas. E com razo. impossvel. Assim, sua mente no acredita nos seus olhos. uma coisa de proteo. Se ele pudesse nos ver, ento saberia que estava, sabe como ...

    Doidinho. Isso a. Ento, por que eu vejo voc? O Artilheiro se cocou um pouquinho mais, da

    se levantou de repente, esticando o pescoo. Porque alguma coisa voc fez. No sei o

    qu, mas deve ter sido ruim para deixar todos esses estigmas furiosos assim. Imagino que precisamos descobrir o que foi, mas vou lhe contar uma coisa: foi algo to ruim que fez voc sair da sua Londres e entrar na minha Londres. E isso no nada bom. Pra voc.

    O que quer dizer com sua Londres? Quero dizer a Londres em que os estigmas

    odeiam os cuspidos, e as coisas que so imveis na sua Londres, na minha Londres se movem e at bri-gam. Pensa que a sua Londres a nica que existe? A cidade de Londres muito mais do que apenas uma cidade antiga. Ela como a rocha e a argila de sua fundao. Tem camadas. Voc apenas caiu de uma para outra. Agora vamos embora, precisamos per-guntar s esfinges como poderemos resolver...

    Ele parou. Os ouvidos aguados. George deu um passo para mais perto dele, sem se dar conta.

    Ouviu alguma coisa?

  • Nada. Quer dizer, ouvi alguma coisa parar, mas foi uma coisa to silenciosa que no percebi at a hora em que parou.

    Os passos comearam de novo, desta vez mais audveis, se aproximando. O Artilheiro relaxou.

    Tudo bem. s uma pessoa. Relaxe. Nada com que se preocupar.

    Nada com que se preocupar? O Artilheiro sacudiu a cabea decepcionado. Se voc no vai me ouvir, no h por que

    eu ficar gastando minha saliva, no ? Eu j lhe disse. Uma pessoa normal no pode nos ver, porque para ela ns, eu, eu sou impossvel, compreendeu? e apontou. Assim ela no pode nos ver. Olhe.

    Uma menina de doze anos com cabelos cor de berinjela e um casaco de pele de ovelha se aproxima-va da vaga onde os dois estavam parados. O Arti-lheiro acenou para ela e depois olhou para George.

    Viu? Nada. Agora tente voc. Faa uma careta. Imite um peido. Ela no tem como lhe ver, prometo.

    Ele cutucou George, que tambm acenou. O rosto da menina no registrou mudana. George mostrou a lngua e fez uma careta.

    Viu? disse o Artilheiro. Ela no pode nos ver, porque seu crebro no deixa.

    Posso v-los perfeitamente disse Edie. Estou s esperando vocs pararem de fazer care-tas ridculas e dizerem algo sensato.

    O Artilheiro olhou para ela. George olhou pa-ra o Artilheiro. O Artilheiro olhou para George.

  • Ah disse ele. Interessante. No era para isso acontecer. A no ser...

    Sua voz flutuou como a fumaa de seu cigarro. E os trs ficaram parados, em silncio, por um bom tempo, sem dizer nada, s olhando um para o outro. George olhou para Edie, Edie olhou para o Artilhei-ro e o Artilheiro olhou de volta para Edie. George se sentiu um pouquinho fora daquela disputa de olha-res. Por isso quebrou o silncio.

    Quem voc? Edie no respondeu. OK. Por que est aqui? Edie desviou o olhar do Artilheiro apenas o

    suficiente para dar a George uma olhada de fria e desprezo, em propores iguais.

    Segui vocs. bvio. Por qu? Porque j vi esttuas se moverem. Muitas e

    muitas vezes. Mas nunca vi nenhuma outra pessoa ver. Foi isso.

    Ela ento desistiu de ganhar a competio de quem olharia para o outro por mais tempo e voltou os olhos para George. Ele percebeu que seus olhos tinham a mesma cor de marrom profundo que seus cabelos, aquele marrom que quase chega a ser preto. To escuro que no se podia distinguir onde o olho terminava e a ris comeava. Era um pouco desori-entador. Porque pelo que ele via, as ris poderiam bem ser alfinetes de dio.

    E da? desafiou ele. Da que achei que talvez voc fosse como

    eu.

  • Pois ele no disse o Artilheiro, ainda olhando duro para ela. Ele no nada como voc.

    Edie ergueu o queixo. Talvez para poder ver o rosto do Artilheiro. Talvez por simples provocao. George imaginou que seriam as duas coisas, mas o pensamento acima de tudo isso na sua cabea era o de que a nica coisa ainda mais estranha do que se achar conversando com uma esttua que respondia de volta e atirava em coisas era ver outra pessoa fazer o mesmo. De certa forma, ficar de lado observando algo impossvel acontecendo lhe nauseava ainda mais do que ele mesmo estar fazendo o impossvel. Sentiu que sua mo tinha escavado a massa de cera no seu bolso e nervosamente a amassava.

    Por que no? perguntou Edie. Porque no respondeu o Artilheiro,

    como se isso encerrasse o argumento, e passou por ela indo para a sada. George e Edie se olharam.

    E disse ele. Mas isso no soou muito impressionante. Por isso ele tentou Humm, que soou to intil quanto o outro som. Os olhos negros piscaram para ele uma vez. Depois viraram-se e se-guiram o Artilheiro.

    Ei! gritou ela. Porque no no resposta. Por que ele no como eu?

    O Artilheiro parou na rampa, olhando para a chuva que caa.

    Estou falando com voc. O Artilheiro se virou como um raio e agarrou

    o pulso dela. Ela se preparou para mord-lo, da mesma maneira rpida como fizera com o motorista do nibus, mas parou antes que seus dentes tocassem

  • a mo de bronze. Em vez disso, grunhiu de raiva e deu um chute nele. A dor foi toda no seu p. Ele pegou na gola de seu casaco e a levantou at que es-tivessem cara a cara.

    Eu ouvi. Ento por que ele no como eu? Ele po-

    de ver voc. Ele como eu. Ele ... O Artilheiro a interrompeu. Ele no como voc. No tem nada a ver

    com voc. Ningum como voc... Ela tentou se soltar, mas era to eficaz como

    chut-lo. Ningum como voc. Ningum tem sido

    como voc h anos. No vejo ou ouo falar de al-gum como voc h muitos e muitos anos. H dca-das. Ningum viu. Alguns de ns at pensaram que seu tipo estava...

    A chuva formava uma poa no fim da rampa no lugar onde ele tinha parado, tentando achar a pa-lavra certa. Assim que achou, enrolou-a na boca co-mo um doce favorito antes de deix-la sair.

    Extinto. No sei do que voc est falando. Eu no

    sou extinta. Estou aqui. Sou uma... Voc uma fagulha. O qu? Uma fagulha. Voc uma fagulha. Ela olhou para George. Ele encolheu os om-

    bros. O que uma fagulha? Uma fagulha o que voc se est vendo

    tudo isso. Voc uma fagulha, uma vidente, uma

  • centelha; uma pessoa to aguda e brilhante que acaba se cortando, to afiada que pode cortar entre as ca-madas diferentes de o que e de o que poderia ser e acaba cortando tambm at o que foi.

    Um lampejo que quase chegava ao pnico passou pelos olhos de Edie, mas ela o afastou e er-gueu o queixo para o Artilheiro.

    No sei nada disso. No sei o que voc quer dizer. Eu sou apenas eu...

    Fagulha perigo. Fagulha aborrecimento. Fagulha tanto problema que acaba atraindo ainda mais problemas. Uma fagulha a ltima coisa de que precisamos se queremos chegar aonde estamos indo. Assim, voc fica aqui, e ns vamos.

    No me diga o que fazer disse Edie, com fria. Me ponha no cho.

    Se no o qu? perguntou o Artilheiro com um sorriso perigoso e faceiro.

    Edie se contorceu para alcanar o bolso com a mo, tirando e brandindo o disco de vidro na cara do Artilheiro.

    Se no eu uso isso disse ela. Ele olhou para o vidro opaco e redondo com

    interesse. Levantou a mo para toc-lo. Deu um to-que com um dedo. O disco tiniu.

    Vai usar o seu pedao de vidro, isso? Edie se concentrou firmemente e confirmou. E o que ele faz? Ele reluz quando as grgulas esto perto e

    elas voam quando o vem. poderoso.

  • Ele tocou no vidro de novo. De repente ela comeou a se sentir como uma boba segurando o vidro assim. Ele a ps no cho.

    Voc assustou um monte de grgulas com isto?

    Sim. No. Uma. Agora mesmo. Aquela que estava farejando vocs. Ela veio atrs de mim, eu se-gurei o vidro para ela e ela voou.

    O Artilheiro olhou para a chuva caindo no re-tngulo escuro onde estavam de p.

    E por que voc o mostrou? Sabia que ele era poderoso?

    Ele esquenta quando elas esto por perto. Se ilumina. Ele sente as...

    Ento uma arma? Deve ser. A grgula voou. Foi por isso que voc o tirou do bolso? No. Eu tirei porque no conseguia pensar

    em mais nada para fazer. O sorriso dele estava comeando a irrit-la. Bom. O porqu no importa. O fato que

    funcionou. Estava chovendo? O qu? Quando voc pensou que tinha derrotado a

    poderosa grgula, estava chovendo? Tinha comeado a chover?

    Edie pensou. E confirmou. No foi o seu vidro. Seu vidro apenas

    uma pedra de aviso. No uma arma. Mas ela voou!

  • Voou porque uma grgula. isso que grgulas so. Apenas uma bica um pouco mais or-namentada. Uma bica feia pra burro e muito mal-humorada. Esta sua funo, seu propsito. Quando no chove, elas podem ir para onde quise-rem, mas assim que a primeira gota cai no telhado do prdio em que ficam, ento para l que devem vol-tar. Vingana e cuspidos no fazem a menor diferen-a. Elas tm de cumprir seu propsito, do mesmo jeito que todo mundo tem. No podem negar seu Destino Maior. Tm de fazer o que o fazedor pre-tendeu.

    George tossiu. O fazedor? Quer dizer Deus? O Artilheiro riu e negou com a cabea, espa-

    lhando um arco de pingos ao seu redor. De deuses eu no sei nada. Um fazedor

    aquele que nos faz. O meu certamente no tinha na-da de deus, no o Jagger. Ele foi um soldado tam-bm, lutou na Primeira Guerra, voltou com a cabea cheia do que viu e com mos que ajudavam as pes-soas a ver um pouco tambm.

    O fazedor da grgula foi algum arteso medi-eval com a boca suja e a barriga cheia de cerveja aze-da, quase certo. Fazedores fazem o que feito e aquele que feito deve fazer o que pretendeu seu fazedor. assim que . assim que sempre foi.

    Ele virou-se para Edie. Seu vidro no a salvou, por isso no tente

    de novo. A chuva parou tudo, ou voc teria virado picadinho. No uma arma. apenas um meio de

  • aviso, nem mais, nem menos. Agora ns vamos. Adeus.

    Ele estalou os dedos para George. Venha. Podemos nos mover mais rpido e

    com mais segurana durante a chuva. E temos uma boa parte da cidade para atravessar antes de alcan-armos o rio.

    Por que estamos indo para o rio? T fazendo pergunta errada de novo. Ve-

    nha e pronto. George olhou de relance para Edie. Ela tinha

    ficado parada na chuva, olhando para o vidro na sua mo. Dois passos a teriam levado para debaixo do abrigo da aba do telhado na rampa, mas ela no pare-cia se incomodar. Parecia mais uma marionete, triste e molhada, com alguns de seus cordes cortados.

    Por que ela no pode vir? J disse. Ela uma fagulha. Edie levantou os olhos. Um relmpago clareou

    o cu e ela se retraiu. Por um instante, mas um ins-tante muito curto, George a viu muito mais jovem e bem menos confiante. Ela enfiou o vidro no bolso e se abraou, como se de repente percebesse que esta-va com frio.

    Mas eu ainda no sei o que uma fagulha! disse ela, a frustrao aparente na voz.

    As fagulhas so imprevisveis. E o que a gente vai fazer precisar de toda a cautela que eu posso ter. Fagulhas do m sorte. Desculpe, mas esta a verdade. Agora temos de ir.

    OK. Podem ir, tudo bem. Mas eu vou se-guir.

  • No faa isso disse o Artilheiro, e co-meou a subir a rampa.

    Ela mandou George acompanhar o Artilheiro. Pode ir. V. Voc tem de ir. Seno no vou

    poder comear a seguir, no ? George sentiu um n no estmago. Queria fi-

    car perto do Artilheiro, mas alguma coisa o fez se sentir mal por deixar a menina para trs. Talvez esti-vesse sentindo pena dela, ele pensou. Talvez fosse pena de si mesmo. Ou talvez quisesse companhia nesse seu pesadelo.

    Olhe comeou ele. Sinto muito... PLAFT. Ela lhe deu um tapa. O ardor no seu

    rosto o deixou to chocado quanto tudo o que ele tinha vivido at aquele momento.

    O que... Por que voc...? Edie agarrou sua gola enquanto falava, baixo e

    com fria. No sinta pena de mim. No me trate co-

    mo se eu fosse mole. E no goste de mim. Ele sentiu o sangue subir na parte do rosto em

    que a mo dela o atingiu. Eu no gosto de voc. E no tente isso de

    novo. timo. Ento vamos nos dar muito bem.

    melhor voc se apressar. George olhou para o topo da rampa. O Arti-

    lheiro tinha sumido. Ele no esperou para pensar. Apenas correu pela subida molhada, gritando:

    Espere!

  • 10

    EM TERRENO ELEVADO EXISTE UMA SRIE de telhados ngremes no lado norte da rua Euston em Londres, telhados perfura-dos com torres de relgios, torrees, agulhas e cha-mins. Esses telhados formam o cume de um prdio de fachada to ornamentada que ningum que ob-serve aquela sua exuberncia gtica nota que tambm est sendo observado. Mas acima dos sessenta mi-lhes de tijolos que formam a estao de Saint Pan-cras e o hotel que se liga a ela fica uma das maiores colees de grgulas de Londres.

    No lado norte do prdio, acima dos trilhos molhados que saem de Londres, espiam os olhos de pedra de um gato-grgula, pendurado entre o vo de ar e o galpo de vidro de trens abaixo, enquanto a gua jorra do cano de cobre que se projeta entre seus dentes em um eterno rosnado silencioso. O mesmo acontecia com todas as outras grgulas no telhado, com exceo de uma coisa. Daquela subia um vapor, como em um cavalo depois de uma longa corrida.

    A grgula no sabia muito, mas sabia uma coi-sa: havia falhado. As outras grgulas do prdio da Saint Pancras tambm sabiam disso. Da prxima vez, talvez mais de uma delas precisasse sair para caar em bando. E da prxima vez no poderiam falhar.

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    CORENDO SOBRE SEIXOS ROLADOS

    TALVEZ PORQUE AINDA CHOVIA, O Artilheiro no corria tanto. Ao contrrio, andava rpido e com con-vico pela Park Lane, mantendo a fileira de edifcios bem iluminados da parte oeste de Mayfair sua es-querda e o vo negro repleto de rvores do parque sua direita. Mesmo no correndo, George ainda se-guia em trote para acompanh-lo. Ele ficou calado enquanto caminhavam, passando por baixo de dois viadutos e entrando no Green Park. Sua mente re-verberava com dvidas, mas talvez por se sentir cul-pado por deixar a menina para trs, no disse nada. Sabia que, se fizesse qualquer outra pergunta agora, ia acabar por incluir a menina no assunto. Assim, dei-xou para l. O que fez foi espiar para trs quando achou que o Artilheiro no estava olhando e viu que ela os seguia a uns quinze metros de distncia.

    Edie observava o menino enquanto o seguia. Ela percebeu que, de vez em quando, ele espiava r-pido para trs e virava para frente para no ser pego olhando. Ele era s um pouquinho mais alto que ela, se bem que ela era alta para sua idade. Sua postura era meio curvada, como se se desculpasse por alguma coisa. Os cabelos eram longos para um menino da sua idade, mas no tinham gel, nem eram esticados ou nada assim. Seu casaco esvoaava com seus pas-

  • sos, muito grande para ele comprado para servir enquanto ele crescia e, como se para compensar, os tornozelos apareciam abaixo das calas que ob-viamente falharam em se ajustar ao seu crescimento acelerado. Ela lembrou da expresso de seu rosto quando ele pediu desculpas. Era um rosto honesto e ele a olhara direto nos olhos quando falou. Havia gentileza sob a tristeza e o medo. Foi por isso que lhe deu um tapa.

    Ela os seguiu at a passagem subterrnea at que se deparou com uma bifurcao no tnel e ento no tinha idia de qual caminho eles haviam tomado. Escolheu o da esquerda, correndo, decidin-do que se eles tivessem tomado o da direita, ela teria tempo para dar uma corrida de volta e ainda conse-guir acompanh-los.

    No tnel do lado direito, o Artilheiro comeou a correr. George no conseguiu se aproximar dele at que estivessem fora.

    Por que estamos correndo? O Artilheiro virou-se. Estamos nos livrando do excesso de baga-

    gem. Vamos. Ele puxou George atravs de uma cerca viva e

    continuou correndo. Abaixo deles, Edie percebeu que tinha tomado

    o caminho errado. Deu meia-volta e pegou o outro tnel, mas quando saiu para o ar noturno, nem sinal deles.

    Ela chutou raivosamente o cascalho. E chutou de novo. Depois comeou a correr, formando um arco largo atravs das rvores, indo na direo do

  • parque de Saint James e do rio mais alm. O Arti-lheiro disse que estavam indo para o rio. Talvez pu-desse alcan-los quando chegasse l. Ao sentir o cascalho sob seus ps ligeiros, pensou na praia. E por que corria.

    Edie sabia que o Artilheiro tinha razo sobre uma coisa. Ela dava m sorte. O pensamento veio como uma onda, sugando-a para o fundo, para uma escurido na qual ela achava cada vez mais difcil res-pirar. Quanto mais ela tentava fazer sua mente correr para longe daquele pensamento, mais aumentava a-quela sensao. Sabia o que era isso: pnico. E se en-tregar ao pnico era perigoso, sabia disso tambm, porque ela deixaria de pensar com clareza. E pensar claramente era a sobrevivncia dela. Tentar escapar do pnico no era nada fcil. Era como correr sobre seixos, como tentar subir uma ladeira numa praia de seixos, quando cada passo p