choay françoise a alegoria do patrimônio 2001_##
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Reflexões sobre a ideia de Patrimônio e sua constituiçãoTRANSCRIPT
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Capítulo IV
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
(1820-1960)
Os monumentos da França antiga têm um caráter e um in-
teresse particulares; elespertencem a uma ordem de idéias e de sen-
timentos eminentemente nacionais que, contudo, não mais se
renovam :
primeiras linhas do primeiro volume de
Voyages pittores-
ques et romantiques dans l'ancienne
France,
publicado em 1820
por Charles Nodier e o barão Taylor. Essa constatação de um es-
gotamento irremediável e a observação, que logo se acrescentou,
de que os autores não percorrem a França na qualidade de erudi-
tos (...), mas como viajantes curiosos dos aspectos interessantes e
ávidos de nobres lembranças , em suma, que se trata de uma via-
gem de irnpressões' , traduzem uma mudança de mentalidade.
Nodier é um dos primeiros a pressentir que o século XIX atribuirá
uma nova importância às antigüidades. O monumento histórico
entra então em sua fase de consagração, cujo término pode ser
fixado por volta da década de 1960 ou, se desejarmos um outro
marco simbólico, em 1964, data da redação da Carta de Veneza
2
•
Esse recorte cronológico pode parecer muito grande à pri-
I. Op. cit., Introdução , p. 4.
2. Esse documento, publicado em 1966, marca a retomada, depois da Segunda Guerra
Mundial, dos trabalhos teóricos relativos à proteção dos monumentos históricos,
no contexto de um público internacional mais amplo. O primeiro texto interna-
cional desse gênero foi publicado em 1931, sob a égide da Sociedade das Nações
(cf. p. 12), mas ainda era estritamente europeu.
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
meira vista. Ele engloba acontecimentos, fatos e diferenças qu:
poderiam, ao que parece, dar margem a uma periodização
mnrx
detalhada.
É
o caso, por exemplo, das contribuições originais s«
cessivas dos diferentes países europeus para a teoria e as práti ; '.
de conservação do monumento histórico: o avanço da reflexão
britânica mantém-se até as últimas décadas do século XIX, quan lu
a Itália e os países germânicos tomam as rédeas da inovação.
É
I
caso, também, das descobertas das ciências físicas e químicas, da:
invenções das técnicas ou ainda dos progressos da história da arte
e da arqueologia que, em conjunto, marcaram o desenvolvimento
da restauração dos monumentos como disciplina autônoma. E ainda
da evolução e das revoluções da arte e do gosto, cujos interdito v
entusiasmos determinaram fases distintas no tratamento e na s .
leção dos monumentos históricos a serem protegidos, chegand
até, no caso das vanguardas arquitetônicas do século xx-, a militar
contra a conservação dos monumentos antigos: o
Plan Voisin,
d '
Le Corbusier
(1925),
destruía a velha Paris, poupando apenas umn
meia dúzia de monumentos. Esse manifesto do movimento m •
derno fez escola depois da Segunda Guerra Mundial e inspirou a
renovação destruidora levada a efeito até a década de
1960
ainda depois.
Os critérios nacionais, mentais ou epistêrnicos, técnicos, e -
téticos ou éticos permitem assinalar os momentos marcantes e o
momentos significativos na história do monumento histórico. A
divisões cronológicas que eles introduzem têm, no entanto, um
alcance meramente relativo e secundário em comparação com a
unidade do período
(1820-1960)
que os engloba: unidade soberana
que impõe, por seu reconhecimento, coerência e estabilidade,
status
adquirido pelo monumento histórico com o advento da era
industrial. Esse
status
pode ser definido por um conjunto de de-
terminações novas e essenciais, relativas
à hierarquia dos valores,
3.
É
preciso notar, porém, que no Brasil os membros dos Congressos Internacionais
de Arquitetura Moderna estão na origem da conservação da arquitetura nacional.
4. Este termo designa, de forma imprópria, por abuso de sentido, a demolição,
tendo em vista uma construção nova, de um setor urbano , Dictionnaire de
l'urbanisme et de l'aménagement, publicado sob a d ireção de P.Merlin e F. Choay.
Paris, PUF, 1988.
126
A C ONSAGRAÇÃOD O M ONUMENTO HISTÓRICO
,I,·
que o monumento histórico é investido, suas
delimitações es-
l'll('o-Lemporais,
seu
estatuto jurídico
e seu
tratamento técnico.
Com efeito, o advento da era industrial como processo de
II
.msformação - mas também de degradação - do meio ambiente
i ont.ribuiu ao lado de outros fatores menos importantes, como o
Iumarrtisrno, para inverter a hierarquia dos valores atribuídos aos
ruonumerrtos históricos e privilegiar, pela primeira vez, os valores
Ih sensibilidade, principalmente estéticos. A revolução industrial,
Iorno ruptura em relação aos modelos tradicionais de produção,
.rhr ia um fosso intransponível entre dois períodos da criação hu-
1:\I1a.Quaisquer que tenham sido as datas, que variam de acordo
1 um cada país, o corte da industrialização continuou sendo, du-
I.mte toda essa fase, uma linha intransponível entre um antes, em
que se encontra o monumento histórico isolado, e um depois, com
u qual começa a modernidade. Em outras palavras, ela marca a
I ,
onteira que limita, a jusante, o campo temporal do conceito de
uionurnerrto histórico - este pode, ao contrário, estender-se in-
1
kfinidamente a montante,
à
medida que avançam os conheci-
.nentos histórico e arqueológico.
A revolução industrial como processo em desenvolvimento
planetário dava, virtualmente, uma dimensão universal ao concei-
to
de monumento histórico, aplicável em escala mundial. Como
processo irremediável, a industrialização do mundo contribuiu,
por um lado, para generalizar e acelerar o estabelecimento de lei
visando à proteção do monumento histórico e, por outro, para
fazer da restauração uma disciplina integral, que acompanha os
progressos da história da arte.
A década de
1820
marca a afirmação de uma mentalidade
que rompe com a dos antiquários e com a política da Revolução
Francesa. Já na década de
1850,
apesar do descompasso de sua
industrialização, a maioria dos países europeus consagrou o mo-
numento histórico. Tal consagração poderia ser definida, para todo
o período, a partir de dois textos simbólicos e complementares,
um oficial e administrativo, outro contestador e poético: o
Rapport
apresentado ao rei em
21
de outubro de
1830
por Guizot, Mi-
nistro do Interior, sugerindo a criação do cargo de inspetor geral
dos monumentos históricos da França ; e o panfleto publicado
127
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
em 1854 por John Ruskin sobre Aabertura do Palácio de Cristal
e suas relações com o futuro da arte .
A virada do século
XIX
é marcada, sobretudo na Itália n : 1
Áustria, por um questionamento complexo, de uma lucidez rarn
mente igualada daí por diante, dos valores e das práticas do mo
numento. Contudo, quando em 1964 a assembléia do Icom ~
redige a
Carta internacional sobre a conservação e a restauraç
i)
dos monumentos e dos sítios,
o quadro teórico e prático no interi I
do qual se inscreve o monumento histórico continua sendo o qu .
se criou no século XIX.
o
on eito de monumento históri o em si mesmo
Valor cognitivo e valor artístico
Já reconhecido de longa data, o valor cognitivo do monumen-
to histórico permanece solidamente ligado a ele durante todo o
período de que tratamos. Símbolo brilhante da permanência do
laço que unia a historiografia e os estudos de antigüidades, foi
François Guizot - autor de Essais sur l'histoire de France e um
dos historiadores notáveis da época - quem criou na França o
cargo de inspetor dos monumentos históricos.
Cumpre observar, porém, que no século XIX a economia dos
saberes centrou a função cognitiva do monumento histórico no
domínio, recém-determinado e ainda em fase de organização, da
história da arte.
Com efeito, a despeito de resistências locais, o século da histó-
ria tomou uma certa distância em relação aos antiquários . A his-
tória política e a das instituições voltam toda sua atenção para o
documento escrito, sob todas assuasformas, e dão ascostas aomun-
do abundante dos objetos que desafiavam oseruditos dos séculos
5. Da sigla inglesa para Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios, cria-
do em 1964 por recomendação da Unesco.
6. Nem por isso estes desapareceram. Numerosas associações de antiquários exis-
tem ainda hoje, fiéis
à
sua vocação de erudição.
128
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO IIISTÓKICO
VII C XVIII. A ligação com o universo do fazer diminui. No século
1)\ , os historiadores que queriam e sabiam olhar os monumentos
IlIt
igoseram exceções e continuaram sendo por muito tempo. Em
( \ I Rapport au roi [Relatório ao rei], Guizot destaca bem a nova
II11 portância que se atribui à arte e ao seu estudo científico, salien-
t.l () valor dos monumentos para os especialistas, entre os quais
(.Iv não se inclui. Seus conhecimentos pessoais sobre o assunto
\1:10
constituem um progresso, em comparação com osde Grégoire.
1 : 1 1 1 sua visão, o gótico continua sendo sinônimo de arte nacional.
: s s e
estilo é precedido por outros bastardo [s] e degradado [s] ,
que ele qualifica, de um modo geral, como intermediário [s] :
I inco anos antes, o jovem Victor Hugo já falava de arte
români-
('(/7. Em compensação, já na primeira linha do Rapport, o solo
(Ia França' é simbolizado por seus monumentos. Para Guizot,
.issim como para a maioria dos historiadores de seu tempo, os edi-
lIcios antigos já não contribuem para fundar um saber, aquele que
t' construído por sua disciplina, mas para ilustrar e com isso servir
a um determinado sentimento, o sentimento nacional.
De fato, o lugar dos antiquários é tomado pelos recém-
chegados ao mundo do saber, que são os historiadores da arte.
Para eles, as criações da arquitetura antiga doravante serão objeto
de uma pesquisa sistemática relativa a sua cronologia, técnica,
morfologia, gênese e fontes, sua decoração constituída de afrescos,
csculturas e vitrais, assim como sua iconografia.
7. V Hugo, Guerre aux dérnolisseurs , artigo escrito em 1825, publicado quarto
anos mais tarde na
Revue de Paris.
Reeditado com uma segunda parte original
em 1832 na
Revue des deux mondes,
ele figura no volume
Littérature et philosophie
mê lées
das suas obras completas. No artigo de 1825, Hugo fala em duas passa-
gens sobre igrejas românicas (Saint-Germain-des-Prés, em Paris, e Sainte-Croix,
em La Charité-sur-Loire), op. cit., p. 153-4. Ele deve esse vocábulo ao antiquário
normando Jean-Achille Deville (1789-1875), com quem mantinha cont~to e
que pode ser considerado o criador do termo românico. Cf. em especial
I.:Eglise
et i'abbaye de Saint-Georges de Boscherville (1827).
8. O
Rapport
de Guizot parece ter-se inspirado diretamente no Díscours préli-
rninair e , que serve de introdução
à
obra
Monuments de ia France,
de Alexandre
de Laborde, lembrando esses monumentos que cobrem o solo da pátria, que se
unem a nossas lembranças, que recordam seus triunfos ou sua prosperidade ( ... ).
A França, menos antiga que muitos países da Europa, é mais rica que qualquer
outro em monumentos de todas as épocas (.. .} ,
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Baseado no estudo dos monumentos históricos, um novo cor-
po de saber está, pois, em vias de se constituir. Além disso, ele
alimentado e muitas vezes orientado pela reflexão sobre a art ,
que se desenvolve na esteira da Crítica do juízo. Já salientei a
distinção operada no Renascimento entre valor informativo e va-
lor hedônico das antigüidades que, num caso, dirige-se à razã
historiadora e, no outro, à sensibilidade estética. É preciso voltar
a essa questão, pois a conceituação do domínio da arte, a partir d
Renascimento, não se refletiu apenas sobre as modalidades da cria-
ção artística. Ela trouxe, pelo viés da terminologia, confusões im-
portantes a serem esclareci das pela semântica dos monumento
históricos.
As palavras
antiguidades
e
antiquários
não tinham ambigüi-
dade, conotadas pelo saber. As expressões história e historiador
da arte são conotadas por arte, mais que por história; elas facili-
tam uma assimilação e uma confusão entre o conhecimento da
arte e a experiência da arte, ainda hoje comum.
É
contra essa confusão que Riegl reage, em sua análise axio-
lógica do monumento. Ele retoma a dissociação radical entre valo-
res de conhecimento e valor artís tico proposta por K. Fiedler nos
manifestos da década de 1870, onde este descreve o desenvolvi-
mento crescente, que os contemporâneos mal perceberam, de uma
apreciação intelectual dos monumentos de arte . Diante da aten-
ção crítica que se dispensava às criações das artes plásticas, e parti-
cularmente da arquitetura, diante da multiplicação dos trabalhos
historiográf icos que lhes eram dedicados, Fiedler temia pelo pró-
9. Voltando a atenção exclusivamente para a obra de arte singular, e procurand
enriquecer cada vez mais sua compreensão, o analista observará que sua compreen-
são histórica se torna a cada dia mais difícil, para finalmente se revelar impossí-
vel. Ser-lhe-à cada vez mais trabalhoso reconhecer o laços que unem a obra a seu
passado e a seu futuro; e, descendo ao insondável da individualidade criadora d
artista, ele terminará por perder completamente o fio da meada histórica (...).
Assim ( .. .) aquilo em que consiste o valor histórico de uma obra de arte e em qu
ela depende de realizações anteriores (...) pode se revelar apenas como send
uma pequena parte superficial e não essencial da totalidade completa de uma
obra de arte (Uber die Beurteilung der bildenden Kunst, 1876, p. 19-30 - grifo
nosso). Cf. também Bemerkungen uber Wesen und Geschichte der Baukunst, 1878.
Sobre Fiedler e sua contribuição à teoria da arte, cf. Ph. Junod, Transparence et
opacité, Lausanne, l.:Age d'Hornrne, 1975.
130
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMEI'rrO HISTÓRICO
prio
destino da arte e de sua vital idade. Ele via nisso o sinal da hege-
monia iminente da razão e de seu triunfo, previsto pela filosofia
hcgeliana, sobre os poderes criativos da sensibilidade e do instinto .
Sem partilhar de uma filosofia da arte tão elaborada, as mes-
mas inquietações foram expressas na França por Mérimée e Viollet-
lc-Duc. Elas atestam a permanência e a consolidação dos laços
que unem o monumento histórico ao mundo do saber intelectual.
( )s dois homens deram provas suficientes de que viveram a imediatez
(Ia experiência artís tica, tal como a descreve Fiedler: Mérimée foi
11m
dos primeiros a entrar, com a maior naturalidade, no mundo
1
ornânico '.
Contudo, em seu confronto com os monumentos his-
Iór icos um e outro recorreram à via indireta da análise racional:
IIprimeiro para convencer os franceses a conservar aherança monu-
mental de que dispunham e para dissimular a falta de sensibilida-
de estética'? de que sofriam, o segundo para tentar fundar uma
d
desei d
t
13
nova arte de construir, vindo em socorro e um esejo e ar e
(' de uma sensibilidade arquitetônica debilitados.
I n.
Fíedler, Riegl e Sitte falam de Kunsttrieb (instinto artístico) e Viollet-le-Duc faz
do instinto a essência da arte (cf. capo V).
I I.
Cf. em Études sur les arts du Moyen Age, reeditados pela Flarnmarion, Paris,
1967, Essai sur l'architecture religieuse (...) e LEglise de Saint-Savin et ses
peintures murales .
I 7. P . Mérimée, Lettres à Viollet-ie-Duc, texto esbabelecido por P. Trahard, Paris,
Champion, 1927. Cf. especialmente a carta de maio de 1857. Parece-me certo
que não se pode hoje formular princípio absoluto sobre nada nem, por conse-
qüência, reduzir tudo a um sistema único. Nosso papel nas artes é muito difícil.
Temos uma infinidade de velhos preconceitos, de velhos hábitos que se prendem
a uma civilização que não é mais a nossa, e ao mesmo tempo temos nossas neces-
sidades nossos hábitos nossas vantagens modernas. Tudo isso me parece um
bicho-cle-sete-cabeças. Temos, porém, como os antigos, a capacidade de pensar
c,
um pouco, a de sentir. De minha parte, creio que é pelo pensamento que
devemos trabalhar nossa geração e estou convencido de que, habituando-a a pen-
sar, conseguiremos refinar seu gosto (p. 28). Camillo Boito mostrou, porém,
tudo o que Mérimée deve à intensa influência da literatura, da poesia e da arte
romântica , Restaurare o conservare , in Questioni prat iche di belle arti, Milão,
Hcepli, 1893, p. 32.
I \. 1 ntencionalidade da sensibilidade que dá cor à criação artística de uma época.
Sobre esse conceito, ver E. Panofsky, Le concept de Kunstwollen in La Perspectiue
comme forme symbolique, Paris, Éditions de Minuit, 1967, e P.Phílíppot, cf.n?ta
105,
p.
167. Em Entretiens sur l'architecture, Víollet-le-Duc multiplica as evidên-
cias da morte da arte no século XIX, cf. capo V
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Esse antagonismo entre as atividades da razão e as da arte mU11
teve-se no coração do debate filosófico ocidental. A morte da arte an
lIll
ciada por Hegel não pára de se consumar, ao passo que a experiên i
I
privilegiada por Fiedler se tornou revelação do ser em Heidegger.
A experiência da obra de arte como tal só pode ser difícil, prc
cária e sempre renascente. O monumento histórico não foge à regra
Mas ele pode também se dirigir à sensibilidade e ao sentimento p
I
vias menos árduas, largas, cômodas, acolhedoras a todos, e pelas qu au
o século XIX enveredou resolutamente.
Preparação romântica:
o
pitoresco,
o
abandono e
o
culto da arte
Com efeito, a sensibilidade romântica descobrira nos monu-
mentos do passado um campo de deleites de acesso mais fácil ..
Redes de laços afetivos múltiplos e novos foram então tecidas com
esses vestígios. Lembrarei apenas, rapidamente, alguns aspectos.
A pintura e a gravura romântica fazem que a representação
figurada dos monumentos antigos tenha um papel praticament
inverso ao que lhe era atribuído outrora nas obras de erudição. A
uma iconização museográfica e abstrata, em que a imagem tende a
substituir a realidade concreta das antiguidades, sucede uma iconi-
zação supletiva que, ao contrário, enriquece a percepção concreta do
monumento histórico pela mediação de um prazer novo. O olhar do
antiquário construía uma imagem do monumento independente e
a mais analítica possível. O olhar do artista inscreve o monumento
numa ambientação sintética que o dota de um valor pictórico su-
plementar, sem relação com a qualidade estética que lhe é própria.
A diferença entre as duas abordagens pode, àsvezes, se verificar
em um mesmo artista, como é o caso de Turner em suas gravuras. De
um lado, ele executa durante a década de 1790, para o antiquário
Whitaker, pranchas analíticas apresentando objetos descontextua-
lizados, dissociados uns dos outros e definidos com rigor por seus
caracteres morfológicos e decorativos . Por outro, ele apresenta em
14. T. D. Whitaker, History o] the
Pa ri sh .
of Whalley, vol. I. Os primeiros desenhos
de Turner para Whitaker datam de 1799.
132
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
,1'l'lTsosAnnuals [Anuários] suas primeiras topografias pitorescas 15,
\ -. ta s
sintéticas em que o monumento é parte de um conjunto no
I11 :d
ele é posto em cena: apresentado, esclarecido, colorido em fun-
,:I() desse meio, com o objetivo de produzir um efeito.
Esse tipo de trabalho ilustrado multiplicou-se durante as pri-
mciras décadas do século XIX. Monumentos e edifícios antigos,
'IIIC
se tornaram contrapontos necessários das paisagens natu.rais
,. rurais ou dos panoramas urbanos, acolhiam novas determina-
l ocs: implantação, pátina, formas fantasmagóricas, signos de um
I'I\)VO valor pitoresco. E a pesquisa atenta e dedicada desse pito-
Il'SCO aplicava-se a todos os gêneros de construções antigas, por
mais obscuras, secretas e modestas que fossem. Hoje, as i lustra-
ões das Voyages de Nodier e Taylor, que se pretendiam h:res de
qualquer preocupação científica, continuam sendo, em mu~tos ca-
sos, a única fonte documental de que dispõem os histonadores
sobre a França urbana e rural do começo do século XIX.
Para além do imediato e puro prazer visual, a imagem pitores-
I';)
pode também gerar um sentimento de perturbação ou de angús-
tia em que se compraz a alma romântica, quando ela transforma
em estigmas as marcas deixadas pelo tempo nas construções dos
homens. Entendidas como símbolo do destino humano, estas ad-
quirem um valor moral: emblema duplo da arehé criadora e da tr.an-
sitoriedade das obras humanas. A ruína medieval, menos antiga,
mais difundida e familiar, é uma testemunha mais dramática que a
ruína antiga. O castelo fortificado reduzido a suas muralhas, a igreja
gótica da qual resta apenas o esqueleto revelam, mais do que ~e
estivessem intactos, o poder fundador que os mandou construir:
mas os musgos corrosivos, as ervas daninhas que desmantelam os
telhados e arrancam aspedras das muralhas, os rostos erodidos dos
apóstolos no pórtico de uma igreja românica lembram que a des-
truição e a morte são o término desses maravilhosos inícios.
Emoção estética gerada pela qualidade arquitetônica ou pelo
pitoresco, sentimento de abandono imposto pela percepção da
15. Por exemplo, suas primeiras vistas da catedral de Ely (1797). Depois disso, Turner
publicaria não apenas Picturesque Views in England and Wales (1816), mas tam-
bém outras séries inglesas e escocesas, e as de Rivers o f France (1833-1835).
133
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
ação corrosiva do tempo: a ascensão desses valores afetivos integra
o monumento histórico ao novo culto da arte, chamado a substituir
aquele de um Deus, que será dado como morto por um pensador
do final desse século. Na Europa do Norte, a igreja gótica presta-
se à transição de um culto a outro: lugar privilegiado das celebra-
ções de uma religião ainda viva e de uma busca estética do absoluto.
O católico fervoroso Montalembert testemunha essa contamina-
ção de forma involuntária, quando, pondo-se ao lado de Victor
Hugo em sua luta contra o vandalismo oficial e municipal , fala
de sua dupla paixão antiga e profunda , sempre crescente , pela
arquitetura da Idade Média como criação do catolicismo e da
arte .
Escritores e pintores também buscavam traduzir em formas
literárias diferentes, adequadas aos temperamentos individuais
às sensibilidades nacionais, a dimensão mística da arquitetura gó-
tica. Por mais dessemelhantes que sejam, as catedrais de Hugo,.
de Ruskin ou de Huysmans servem, em uníssono, ao culto da arte.
Da mesma forma, quer capte e absorva a luz em Turner, quer
introduza a um mundo noturno e fantástico em Doré, ilustrador
de Hugo, quer seja o enigma lançado por Friedrich e Carus numa
natureza-morta, entre as brancuras da neve ou o verde-escuro do
Urwald - em todos esses casos, o monumento gótico serve de
introdução à transcendência da arte.
Depois de se deixar arrebatar pelos sortilégios dos monu-
mentos antigos, no entanto, depois de tê-los celebrado da maneira
devida, muitos escritores foram levados a se tornar seus defenso-
res legalmente constituídos. No texto já citado, escrito em 1833,
três anos depois da criação da Inspeção dos monumentos históri-
cos, é a Victor Hugo, e não a Guizot, que Montalembert outorga
a prioridade e a preeminência na defesa dessa causa
17.
O estetismo
16. Du vandalisme et du catholicisme dans l'art, Paris, Debécourt, 1839. Ensaio
intitulado Lettre
à
M. Victor Hugo (1833). No espaço de um parágrafo (p. 2),
a palavra paixão aparece quatro vezes. Montalembert precisa: No que diz
respeito à arte, não tenho a pretensão de saber nada, tenho apenas a de gostar
muito .
17. Op. cito A posteridade inscreverá entre vossas mais belas glórias as de terem
sido os primeiros a desfraldar uma bandeira que pode unir todas as almas ansio-
sas por salvar a arte na França.
134
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
e o sofrimento da alma romântica não bastam para explicar por
que Hugo e os escritores de seu tempo militaram com tanta convic-
ção e tanto ardor pela conservação dos monumentos históricos.
Revolução Industrial: a fronteira do irremediável
Escritores, intelectuais e artistas foram mobilizados por uma
outra força: pela tomada de consciência de uma mudança de tempo
histórico, de uma ruptura traumática do tempo. Sem dúvida, a en-
trada na era industrial, a brutalidade com que ela vem dividir a
história das sociedades e de seu meio ambiente, o nunca mais será
como antes que daí resulta estão entre as causas do romantismo,
ao menos na Grã-Bretanha e na França. Contudo, o choque dessa
ruptura extravasa amplamente o movimento romântico. Ainda que
se tenha refletido sobre toda a obra de autores como Hugo ou Balzac,
ele deve merecer uma análise particular. Com efeito, a consciência
do advento de uma era nova e de suas conseqüências criou, em
relação ao movimento histórico, outra mediação e outra distância,
ao mesmo tempo que liberava energias adormecidas em favor de
sua proteção.
A míse en scêne do monumento histórico tal como o consa-
gra o século XIX tira partido do contraste, palavra-chave que A. W
Pugin usou como título de um de seus livros . Em segundo plano,
lima paisagem pitoresca na qual o edifício antigo é integrado. No
primeiro plano, o mundo em processo de industrialização, cuja
agressão ele sofre em cheio. Poesia do antigo, drama de sua confronta-
l,,'ãocom o que é chamado de nova civilização : essas duas visões
do monumento antigo são simultaneamente construídas por Balzac
em Beatríz, em que, de pronto, a cidadezinha de Guérande faz
ressurgir um passado encantador numa página quase proustíana'?
(' simboliza o anacronismo de um grupo social que não soube ou
I~.
Contras ts or a Parallel between the Nob/e Edi fi ces of the Fourteenth and Fijteentli
Centuries and Similar Buildings of the Present Days (...), Londres, 1836.
1 9. Todos os artistas, e mesmo os burgueses, que passam por Guérande, experimen-
tam, corno os que se detiveram em Veneza, um desejo logo esquecido de ali acaba-
rem seus dias na paz (...}. Por vezes a imagem dessa cidade volta a bater ao templo
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
não quis se adaptar à nova civilização das comunicações, do inter-
câmbio e da indústria.
O mundo acabado do passado perdeu a continuidade e a
homogeneidade que lhe conferia a permanência do fazer manual
dos homens. O monumento histórico adquire com isso uma nova
determinação temporal. Doravante, a distância que dele nos separa
se desdobra. Ele está refugiado num passado do passado. Tal pas-
sado já não pertence
à
continuidade do devir e a ele nada será
acrescentado pelo presente ou pelo futuro. E, qualquer que seja a
.riqueza dos filões arqueológicos ainda inexplorados, essa fratura
do tempo relega o campo dos monumentos ao canto de uma fini-
tude inapelável. Após o Renascimento, as antigüidades, fontes d
saberes e de prazeres, afiguravam-se igualmente como pontos d
referência para o presente, obras que se podiam igualar e superar.
A partir da década de 1820, o monumento histórico inscreve-s .
sob o signo do insubstituível; os danos que ele sofre são irrepará-
veis/ , sua perda irremediável.
É
assim que, sucedendo ao Nodier das Voyages, Hugo, Guizot,
Balzac, Mérimée opõem à antiga ou à velha França a nova Fran-
ça e sintetizam sua diferença em fórmulas impressionantes. Hug :
Aindústria substituiu a arte : . Balzac: Trabalhando para as ma
sas, a indústria moderna vai destruindo as criações da Arte (...).
Nós temos produtos, não temos mais obras zz. Na Inglaterra, Carlyl '
abre caminho para William Morris, definindo essa oposição com
igual à que existe entre o orgânico e o mecânico: Nada é feito no.
das recordações: ela aí entra toucada com as suas torres, ornada de suas mura
lhas, desprega suas vestes semeadas de lindas flores, sacode o manto de ouro de
suas dunas, exala os perfumes embriagadores de seus lindos caminhos espinhosos
e cheios de ramos atados ao deus dará . Beatriz, Cenas da vida privada, A comé
dia humana, vai. III, trad. Casimiro Fernandes. Porto Alegre, Globo, 1989, p. 185.
20. O caráter particular do mal produzido por nossa época é sua total írremedin
bilidade [irreparableness) , 1. Ruskin, On the Opening of the Crystal Palac ,
citado por S. Tschudi Madsen, Restoration and Antirestoration, Oslo, 1976, p. 117.
21. Op. cit., p. 155. Hugo observa: Não temos mais o gênio desses séculos . Iss .
conseqüência, para ele, daindustrialização, mas, sobretudo, muito antes, da mort .
da arquitetura, assassinada pelo livro. Cf, Ceci tuera cela , capítulo acrescenta
do na edição de 1832 de Notre-Dame de Paris.
22. Op. cit., p. 320.
136
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO IIlSTÓRICO
dias de hoje direta ou manualmente; tudo é feito segundo regras e
obedece ao cálculo. Não é apenas aquilo que nos rodeia exterior-
mente e o mundo físico que é organizado pela máquina, mas tarn-
hérn nosso mundo interior e espiritual'{'. Ruskin salienta a oposição
de ambos os lados da fatídica linha de separação entre a arquitetu-
ra tradicional e a construção moderna . Pública ou doméstica, a
primeira tinha por vocação afirmar a permanência do sagrado, en-
quanto encadeava na duração as
diferenças
dos homens. A segun-
da, anônima e estandardizada, recusa a duração e suas marcas - a
.irquitetura doméstica é substituída por apartamentos precários,
por onde se passa como se fossem albergues; e a arquitetura públi-
('a cede lugar a espaços de ferro e vidro, na superfície dos quais o
tempo não tem permissão para pousar.
A consagração do monumento histórico aparece, pois, direta-
Incnte ligada, tanto na Grã-Bretanha quanto na França, ao advento
(Ia era industrial. Mas esse advento e suas conseqüências não são
111
terpretados de forma idêntica nos dois países, no que se refere à
I
Ia
influência sobre o destino das sociedades ocidentais. Daí re-
<ultarn diferenças quanto aos valores atribuídos por um e outro
.IOS monumentos históricos. Na França, que, no entanto, é um
Il:lís de tradição rural, o processo de industrialização é legitimado
leia consciência da modernidade, independentemente de seus
«leitos negativos ou perversos. São a marcha da história, a idéia
, 1 (
progresso e a perspectiva do futuro que determinam o sentido
(' os valores do monumento histórico: em seu manifesto contra o
v.indalismo, Hugo reclama a criação de uma lei para o passado ,
'.Iquilo que uma nação tem de mais sagrado, depois do [uturo ? .
, L Signs of the Time , citado por R. Williams in Culture and Society, Londres,
Chatto and Windus, 1958. Tradução nossa.
I I\s noções de arquitetura e de construção foram diferenciadas de forma clara,
sobretudo em The Seven Lamps of Architecture (1849), J. M. Dent and Sons,
I.ondres, 1956, p. 7. Nessa mesma passagem, Ruskin uti liza como sinônimo de
l.uilding o termo ediiication, que à época
já
havia perdido, em certa medida, esse
sentido no inglês corrente. Para o que se segue, ver The Lamp of Memory .
() papel da diferença é salientado em muitas passagens do capítulo VI da mesma
obra dedicada à Lâmpada da memória , op. cit., p. 184-6.
'I, Op. cit., p. 166 (grifo nosso).
137
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Em contrapartida, a Inglaterra, apesar de ser o berço da R .
volução Industrial, mantém-se mais ligada a suas tradições, mais
voltada para o passado: a idéia de
revival,
que não se aclimata na
França, inspira aí um movimento florescente . E, a despeito de
sua adesão às idéias de Karl Marx, William Morris não deixou d .
acreditar em uma reversibilidade da história e de preconizar uma
retomada do trabalho manual como fundamento de uma arte p
pular. Não é, pois, de surpreender que os ingleses tenham dado a(
monumento histórico significados mais diversos e com mais
influência sobre o presente.
Confrontados com a industrialização, os franceses se inter .
sam essencialmente pelo valor nacional e histórico dos edifíci ~
antigos e tendem a promover uma concepção museológica del s.
Victor Hugo dá o tom: Se é verdade, como julgamos, que a ar
quitetura, de todas as artes, é a única que já não tem futuro, em-
preguem seus milhões para conservar, manter e eternizar s
monumentos nacionais e históricos que pertencem ao Estado, .
para adquirir os que estão em mãos de particulares'r . O culto d )
monumento passado coexiste com aquele que logo seria nomeado
culto da modernidade . O pessimismo de Balzac vai mais long '.
Prevê a destruição completa do patrimônio antigo, que, a temp ,
só subsistirá na iconografia literária , de que ele dá o exemplo
nn
Comédia humana.
Diferentemente dos antiquários, concebe ()
monumento antigo, antes de tudo, como um precioso objeto
COI
ereto que merece ser conservado, mas, diferenciando-se de seu.
contemporâneos ingleses, julga-o condenado, dentro de um cert:
tempo, pela marcha da história .
27. O gothu: revival (cf. especialmente K. Clark, The Gothic Revival, Londres,
Constable, 1928, reeditado por Pelican Books, 1964, e os trabalhos de N. Pevsn r)
Na mesma época, em uma França onde o ecletismo rivaliza com o neoclassícísmo,
encontram-se apenas muito poucos exemplos (Sainte-Clotilde, em Paris) de
UIJlII
arquitetura fiel aos princípios do estilo gótico.
28. Guerre aux démolisseurs,
op. cit., p. 165.
29. ''A França (...) possui ainda hoje algumas cidades completamente fora do
movi
mento social que dá ao século XIX sua fisionomia (...). Contudo, de trinta ano',
para cá, esses retratos das épocas antigas começam a se apagar e se tornam raros
Trabalhando para as massas, a indústria moderna vai destruindo as criações dI
arte antiga, cujos trabalhos eram absolutamente pessoais, tanto da perspectiva
138
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
Os defensores ingleses dos monumentos históricos ignoram
esse fatalismo. Eles não se conformam com o desaparecimento dos
edifícios antigos em proveito da nova civilização, que, encarnada
pela América, constrói um mundo sem uma lembrança, nem uma
ruína'P . Para eles, os monumentos do passado são necessários à vida
do presente; não são nem ornamento aleatório, nem arcaísmo, nem
meros portadores de saber e de prazer, mas parte do cotidiano.
o valor de reverência
Ruskin atribuiu à memória uma destinação e um valor novos
do monumento histórico. Nós podemos viver sem [a arquitetura L
adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos lembrar.
Essa afirmação do famoso capítulo
VI
( The Lamp of Memory ), da
obra
The Seven Lamps ofArchitecture,
continua a atribuir à arqui-
letura uma função e um sentido que estão em contradição com as
idéias de Hegel e de Victor Hugo de que Isto matará aquilo . So-
hretudo, ela tem origem em uma outra intencionalidade.
Para o autor de
As pedras de Veneza,
a arquitetura é o único
meio de que dispomos para conservar vivo um laço com um passa-
do ao qual devemos nossa identidade, e que é parte de nosso
ser .
Porém, mais que pela história ou por
uma
história, esse passado é
e- m primeiro lugar e essencialmente definido pelas gerações hu-
manas que nos precederam. Se às vezes acontece a Ruskin inter-
do consumidor quanto da do artesão (...).
Ora, para a indústria, os monumentos
são pedreiras, minas de salitre ou lojas de algodão. Daqui a uns poucos anos,
essas cidades originais serão transformadas e só serão vistas nessa
íconografia
literária , op. cit., p. 286-7. A frase em destaque mostra, além disso, que Balzac
percebera a dupla atividade criadora compreendida no processo de produção e
de percepção dos monumentos antigos. O termo antigo é entendido aqui no
sentido contrário ao de novo .
lU . J. Ruskin, On the Opening ... , op. cit., p. 116.
I. The Lamp of Memory , especialmente § X em que Ruskin evoca the strength
[of past buildings
1
which, through the lapse of seasons and times, and the decline
and birth of dynasties (...), connects forgotten and following ages with each
others and half constitutes the identity, as it concentrates the sympathy, of
nations , op. cit., p. 191.
139
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
rogar os monumentos pela memória objetiva da história, ele pr
fere uma abordagem afetiva. Contudo, nele, o puritano desconfia
sempre do esteta e teme cair nas armadilhas hedonistas da art .
Por isso, é pela intermediação de sentimentos morais, a reverência
e o respeito, que ele entra sem dificuldade no passado. O que lem-
bram, então, os edifícios antigos? O valor sagrado dos trabalhos
que homens de bem, desaparecidos e desconhecidos, realizaram
para honrar seu Deus, organizar seus lares, manifestar suas dife-
renças. Fazendo-nos ver e tocar o que viram e tocaram as geraçõe
desaparecidas, a mais humilde=' habitação possui, da mesma for-
ma que o mais glorioso edifício, o poder de nos pôr em comunica-
ção, quase em contato, com elas. Ruskin utiliza urna metáfora com
a qual Bakhtin mais tarde nos haveria de familiarizar: os edifícios
do passado nos falam, eles nos fazem ouvir vozes que nos envol-
vem em um diálogo.
É preciso, contudo, lembrar que os monumentos históricos
não são o ponto de partida da reflexão de Ruskin sobre a arquite-
tura. Em Seven Lamps, assim como em As pedras de Veneza ou
32. Ele teme o caráto:;r elitista do esteta e, nesse sentido, postula uma arquitetura
acessível a todos. E por isso que transfere deliberada mente a importância da obra
de arte para aqueles que a realizaram e para suas qualidades morais: We take
pleasure, or should take pleasure, in architectural construction, altogether as the
manifestation of an admirable human intelligence ( ...) again in decoration or beauty
it is less the actualloveliness of the thing produced, than the choice and intention
concerned in the production which are to delight us; the lave and thoughts o f the
ioor km a n. more than his ioo r k , The Stones ofVenice, Londres, 1851, t. 1, capo Il, §
5, p. 37 (grifo nosso). Cf. também The Lamp of Mernory , op. cit., § IV; p. 185.
33. True domestic archítecture, the beginning of all other, which does not disdain
to treat with respect and thoughtfulness the small habítatíon as well as the large,
and which invests with the dignity of contended manhood the narrowness of
wordly círcumstance , Seven Lamps, ibid., § IV; p. 185; cf. também § V .
34. Em Seven Lamps, op. cit.,
§
X, p. 190, ele cunha o soberbo neologismo voicefulness
(O senhor Bakhtin fará de sua voz aquilo que diferencia os objetos das ciências
humanas dos objetos das ciências físicas, Épistémologie des sciences humaines
in T Todorov, Mikhail Bakhtin, le príncipe dialogique, Paris, Le Seuil, 1981). A
mesma idéia é retomada em As pedras de Veneza, com a distinção entre a s duas
funções da arquitetura: a ação ( acting, as to defend us from weather or violence )
e o discurso ( talking, as the duty of monuments or tombs to record facts and
express feelings, or of churches, temples, public edífices, treated as books of
history ... ), op. cit., capo Il, § 1, p. 35.
140
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
lias muitas conferências que deu a partir da década de 1850, ele
V
indaga sobre a construção de sua época, em particular, e sobre
.1 natureza da arquitetura, em geral. Ele se pergunta como, na cri-
se aberta pela Revolução Industrial, ela poderia recuperar o valor
de reverência que lhe é consubstancial. Ou, em outras palavras,
como, segundo uma fórmula aparentemente s ibilina, a arquitet~-
I
a do presente [poderia] se tornar histórica'r . Ela só podena
merecer essa qualificação, segundo Ruskin, se readquirisse sua
essência e seu papel memorial pela qualidade do trabalho e do
investimento moral de que seria objeto.
Vê-se que Ruskin, aproximando assim os edifícios do pre-
sente e do passado, não está longe de resti tuir ao monumento
histórico o valor e a função do monumento original , Com efeito,
abstraindo o valor histórico que lhe é inerente, o primeiro não se
distingue mais do segundo senão pelo caráter impreciso, geral e
mesmo genérico, daquilo que, pelo sentimento difuso de reverên-
cia, ele evoca - a figura intacta da obra , solidária e manualmente
realizada pelas gerações humanas.
As idéias de Ruskin enriqueceram o conceito de monumento
histórico, fazendo que nele entrasse, de pleno direi to, a arqui-
tetura doméstica. Além disso, criticando aqueles que se interes-
sem exclusivamente pela riqueza isolada dos palácios'v , sonha
também com a continuidade da malha formada pelas residências
mais humildes: ele é o primeiro, logo seguido por Morris, a incluir
os conjuntos urbanos'P , da mesma forma que os edifícios isola-
dos, no campo da herança histórica a ser preservada.
Trazendo à memória afetiva a dimensão sagrada das obras hu-
manas, o monumento histórico adquire, além disso, uma universalida-
de sem precedentes. O monumento tradicional, sem qualificativos,
era universalmente difundido, mas fazia reviver os passados parti-
culares de comunidades específicas; o monumento histórico fazia
]5. Seven Lamps, op. c it ., §
n .
p. 182.
]6. Cf. nota 27, citação das Pedras de Veneza. Em Seven Lamps, Ruskin joga, de
resto, com a sinonímia de monumental e memorial.
]7. Grifo nosso, Seven Lamps, op. cit., § V; p. 185.
]8. Especialmente em: On the Opening of the Crystal
P a lace .
141
7/17/2019 CHOAY Françoise a Alegoria Do Patrimônio 2001_##
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
até então referência a uma concepção ocidental da história e a suas
dimensões nacionais. Em contrapartida, na concepção ruskiniana,
quaisquer que tenham sido a civilização ou o grupo social que
erigiram, ele se dirige igualmente a todos os homens.
Ruskin e Morris são os primeiros a conceber a proteção do
monumentos históricos em escala internacional e amobilizar-se pes-
soalmente por essa causa. Na imprensa e em campo, eles militam
lutam pelos monumentos e pelas cidades antigas da França, da Suí-
ça, da Itália. Ruskin se preocupa: Será preciso que esta pequena
Europa, este canto no globo semeado de tantas igrejas antigas, tingi-
do pelo sangue de tantas batalhas, será preciso que este pequeno
fragmento do pavimento do mundo, gasto pelos passos de tantos
peregrinos, seja integralmente varrido e decorado novamente para
a mascarada do Futuro'T'? Ele chega a propor, já em 1854, a criação
de uma organização européia de proteção, dotada das estruturas.
financeiras e técnicas adequadas, e cria o conceito de bem euro-
peu : . Quanto a Morris, depois de se ter levantado contra a des-
truição de um bairro popular em Nápoles , estende o combate para
39. Op. cit., § 15, p. 115.
40. Ibid., § 19 e 20. Essa organização não-governamental foi concebida segundo o
modelo das associações beneficentes de salvaguarda que se desenvolveram na
Inglaterra. Administrada com fundos privados doados por seus membros, ela
devia ser representada em cada cidade de alguma importância por observadores
e agentes encarregados, por um lado, de inventariar todos os monumentos anti-
gos dignos de interesse, por outro, de fazer, uma ou duas vezes por ano, um
levantamento de sua situação, assinalando os projetos de intervenção que eles
poderiam sofrer. ''A sociedade forneceria assim osfundos para comprar ou alugar
todos os edifícios ou todos os imóveis desta nação suscetíveis a todo momento
de serem postos
à
venda, ou, ainda, para assistir seus proprietários, privados ou
públicos, na tarefa de conservação indispensável à sua proteção (...) . O projeto
de Ruskin foi a tualizado sob a forma do National Trust, associação privada que a
partir de 1895 administra o essencial do patrimõnio histórico inglês.
41. Ouvistes falar d a destruição de casas que atualmente se dá em Nápoles a pretexto
de destruir os pardieiros dessa cidade e reconstruí-Ios em seguida. Mas não é a exis-
tência desses edifícios erguidos por nossos ancestrais a causa da degradação da habi-
tação em Nápoles ou em Londres, mas antes essamesma ignorância crassa e fatalista
que destruiu os edifícios antigos , in Sp ee cn at th e Annual Meeting of th e Society for
th e P rotec tio n of Anciem Bu il dm gs ,
1889. Aí temos uma proteção muito próxima
de uma perspectiva social. Nesse sentido, podemos relacionar esse texto ao de um
espantoso artigo escrito por Edmond About em 1867 par a o
P ar i s-Guide .
142
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
.ilérn
das fronteiras européias, até a Turquia e o Egito, onde procura
. .., b
t
42
I
:rl.er que se protejam as arquiteturas ara e e cop a .
Em todos esses domínios, os britânicos foram pioneiros. Em
vguida, foram substituídos pelos italianos, especialmente por Gustavo
( ;iovannoni' . Este, já em 19l3, desenvolveu o conceito de arquite-
Ima menor , que, numa perspectiva mais geral, menos moral, mais
histórica e estética, ultrapassa e engloba o conceito de arquitetura
.loméstica. A arquitetura menor torna-se parte integrante de um novo
monumento, o conjunto urbano antigo: Uma cidade histórica cons-
I
tui em si um monumento, tanto por sua estrutura topográfica como
por seu aspecto paisagístico, pelo caráter de suas vias, assim como
pelo conjunto de seus edifícios maiores e menores; por isso, assim
Iorno no caso de um monumento particular, é preciso aplicar-lhe as
mesmas leis de proteção e os mesmos critérios de restauração,
.lcsobstrução, recuperação e inovação : . Constataremos a novidade
(Ias idéias e opiniões de Giovannoni no capítulo, a nosso ver mais que
justificado, sobre a complexa história da invenção do patrimônio ur-
bano histórico desde as primeiras lutas de Ruskin.
Práticas legislação e restauração
A consagração do monumento histórico não mereceria esse
nome caso se limitasse ao reconhecimento de conteúdos e valores
novos. Ela é, além disso, baseada num conjunto de práticas cuja
mstitucionalizaçâo foi catalisada pelo poder das forças destrutivas,
12. Com esse objetivo, ele lança uma espécie de manifesto, publicado no Athenaeum
(1877), que logo recebe a assinatura de numerosos escritores e artistas como
Carlyle, Ph. Web, Burne Jones, Holman Hunt.
·13. (1873-1943) Engenheiro, arquiteto e historiador da arte, criador da cadeira de
arquitetura da Escola de Engenharia de Roma, ele desenvolveu tanto atividades
teóricas quanto práticas de urbanismo e de conservação dos monumentos e da
malha urbana antigos. Vecchie città ed
ed ilízía
nuova (Nuova antologia, 1913)
é ao mesmo tempo o título do artigo, no qual ele apresenta sua doutrina pela
primeira vez, e o título do livro em que esta recebeu, em 1931, uma formulação
mais extensa e mais complexa. Cf. próximo capítulo.
·1,1.Vecchie città ed edilizia nuova, Turim, Unione Tipografico Editrice, 1931, p. 140.
143
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A
ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
não mais deliberadas e ideológicas, mas inerentes à lógica da era
industrial, que doravante ameaçam os monumentos históricos. A
mutação que transforma ao mesmo tempo os modos de vida e a
organização espacial das sociedades urbanas européias torna obso-
letos os aglomerados urbanos antigos. Os monumentos que nele
se encontram afiguram-se subitamente como obstáculos e entra-
ves a serem eliminados ou destruídos para vagar lugar ao nov
modo de urbanização, a seu sistema e s uas escalas viárias e parcela-
res. Além disso, a manutenção dos edifícios antigos vai sendo cada
vez mais negligenciada e sua restauração não obedece mais a técni-
cas normatizadas. Defrontamo-nos, assim, com dois tipos de vanda-
lismo, que na época foram designados, na França e na Inglaterra,
com os mesmos qualificativos:
destruidor
e
restaurador.
Montalembert elaborou para cada um deles uma mordaz lista
de laureados. Atribui o primeiro prêmio de vandalismo destrui-
dor ao governo , o segundo aos prefeitos e [às] câmaras muni-
cipais , o terceiro aos proprietár ios , o quarto aos conselhos d '
administração de bens religiosos e [aos] padres . Em quinto lu-
gar, e bem atrás dos precedentes, [vem] o tumulto. No que
refere ao vandalismo restaurador , a palma vai para o clero, segui-
do pelo governo, pelas câmaras municipais e pelos proprietário.
O tumulto tem ao menos a vantagem de não restaurar nada : .
Tais são os protagonistas, praticamente nessa ordem de im-
portância, com que se defrontará Mérimée quando de seus gir s
de inspeção, no departamento da Vienne: , por exemplo, onde du
rante vinte anos ele travará uma luta homérica para preservar da
45. Op. cit., p. 11.
46. Em 1835 e 1840. S. Fouché - Poitiers e t IaCommission des monuments historiqurs
entre 1830 et 1860, dissertação para DESS, Institut français d'urbanísme, POli,.,
1989 - mostra claramente, em parte com a ajuda de documentos de arquivo
inéditos, tanto a natureza das opções ideológicas e técnicas de Mérimée quant 1 \
diferentes forças conjunturais com as quais ele se defronta. Em matéria de de li\I
çâo,
o primeiro lugar cabe, na verdade,
à
municipalidade. Para proceder ao tra :I( II
de uma nova rua (do centro
à
porta de Limoges), ela exige, por duas vezes, a d 1111.
lição do batistério Saint-Jean e, em seguida, levanta os maiores obstáculos à ~IIII
preservação. Pelas mesmas razões, ela tenta condenar a torre Saint-Porchair·.
/I
princípio, a administração pública alinha-se com essa orientação, na pessoa do I II
feito Alexis de Jussieu; seu sucessor apóia, aocontrário, as reivindicações locais.
144
A CONSAGRACÀO DO MONUMENTO HISTÓRICO
.k-m ol ição (batistério Saint-Jean, torre Saint-Porchaire de Poitiers)
uu da deterioração (Saint-Savin, Notre-Dame de Poitiers) as pe-
< .. ;IS
maiores do patrimônio da região de Poitou.
No contexto do século XIX, a ação dos defensores do patri-
m ôn io só podia ser eficaz assumindo as duas formas específicas e
( ornplementares de uma legislação protetora e de uma disciplina
(k conservação.
( irigem da legislação francesa referente aos monumentos históricos
Independentemente do interesse que possam ter, não posso
.iqui examinar o conteúdo e as particularidades das diferentes legis-
1.1\,:õesnacionais . Lembrarei apenas os trabalhos que precederam
\'stabelecimento da legislação francesa, que durante muito tempo
, onstituiu uma referência, primeiro na Europa, depois no resto do
inundo, pela clareza e racionalidade de seus procedimentos.
O caminho fora aberta pelo Comitê de Instrução Pública sob
. t Re volu ção . Contudo, foi árduo o caminho que levou à promul-
f' ,.I \,.:IO , em 1887, da primeira lei sobre os monumentos históricos.
'.lllre 1830, quando Guizot criou por decreto o cargo de inspetor
,I,
IS
monumentos históricos, e 1887, houve uma longa e heróica
LI',\, de experimentação e de reflexão: todo o dispositivo (centra-
lr/.u lo] de proteção apóia-se na fé e no devotamento de alguns
li,uncns que assistem, desinteressadamente, o inspetor. Eles não
,11 lõcm nem de instrumentos específicos, nem de serviços espe-
, I.tli:t.adospara ajudá-los a cumprir a missão que assumiram.
O primeiro a ocupar o cargo de inspetor foi Ludovic Vitet.
l uuute-se em 1834, em favor de Mérimée, após ter decidido de-
,11,
.ir-se
à carreira de deputado, que lhe permitiria orientar a políti-
, I
ln.:amentária do Estado em favor dos monumentos. A missão do
N,. 'Iue diz respeito
à
França, cf. P.Dussaule, La Loi et le service des monuments
lnstoriques [rançais, Paris, La Documentation française, 1974, assim como as
,.t Jics publicadas pelo I [Diário Oficial da República Francesa] dos textos
I'·/·.Is ativose regulamentares relativos ao patrimônio histórico e estético da Fran-
,..• Quanto à Europa, cf. P.Rupp, Répertoire européen despolitiques du patrimoine,
I .uhliccdas em 1996 pelas Éditions du Conseil de
l'Europe.
145
7/17/2019 CHOAY Françoise a Alegoria Do Patrimônio 2001_##
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
inspetor é determinar, ou, dito de outro modo, a partir de agora,
tombar os edifícios que devem ser considerados monumento histó-
rico. Logoele é auxiliado, nessa tarefa e na distribuição dos fundos
do Estado' , alocados para a manutenção e r estauração dos edifício
tombados, pela Comissão dos Monumentos Históricos, criada pela
circular de 10 de agosto de 1837. Os abnegados membros dessa
comissão e do Comitê de Trabalhos Históricos, criado em 1830
49
,
haveriam de desenvolver, durante décadas, com entusiasmo, com-
petência e regularidade, um trabalho de discriminação, ao mesm
tempo reflexivo e prático, de que foram os primeiros profissionai
verdadeiros. Ao lado de Victor Hugo, Montalembert e Victor
Cousin, o barão Ta ylor ' foi uma das figuras mais originais e ativas.
Vantagens do sistema: o procedimento de tombamento, in-
vestido da autoridade do Estado, completamente centralizado
na dependência imediata do Ministro do Interior, torna-se um
formidável instrumento de balizamento e controle. O número d
monumentos tombados passa de 934 a 3 .000 entre 1840 e 1849
51
.
As regras de sua seleção não são ditadas por critérios de erudição,
mas pelos imperativos pragmáticos e econômicos de uma política
de conservação e de proteção . Elas permitem, assim, uma unidad
de ação impossível às associações inglesas, divididas por suas ideo-
48. Segundo Rücker, op. cit., p. 206, a primeira alocação de recursos para a conser-
vação dos monumentos históricos data de 1831. Vitet será presidente da Comis-
são de Finanças da Câmara. Graças a ele, o orçamento dos monumentos passará
de oito a duzentos mil francos em 1840.
49. O Comitê dos TrabalhosHistóricos fora encarregado pelo Ministério da Instrução Públi-
ca de inventariar e descrever osmonumentos, assimcomo de publicar os Document
inéclitsde l'histoíre de France , A Comissão dosMonumentos Históricos, subordina-
da ao Ministério do Interior, era presiclida pelo Ministro. Inicialmente, seu vice-presi-
dente foiVitet; depois, Mérimée. Entre seusmembros, contavacom Taylore Lenormant.
50. Figura marcante do meio romântico francês, o barão Taylor (1789-1879), grava-
dor, escritor e filantropo, foi também inspetor das Belas-Artes e dos Museus.
51. Os edifícios religiosos são maioria. As ruínas galo-romanas vêm em segundo lu-
gar, antes dos edifícios civis.
52. As abordagens cognitiva e prática são representadas, respectivamente, pela c -
missão dos monumentos históricos e pelo comitê dos trabalhos históricos. Est
último será rivalizado por diversas associações de antiquários. Sua vocação erudí-
.ta foi re tomada pelo Inuentaire généra l des richesses artistiques de ia France,
criado por decreto, em 1964, por André Malraux, por sugestão de A. Chastel.
146
A CONSAGRAÇÁO DO MONUMENTO HISTÓRICO
Illgiase por suas posições doutrinais. Inconveniente do sistema: a
1:1cfa do inspetor é muito penosa. Prova disso é o primeiro Rappor t
1 elatôrio de L. Vitet - menos de um ano depois de sua nomea-
1 I() - ao Ministro do Interior sobre os monumentos, as bibliote-
I':IS,
os arquivos e os museus dos departamentos da Oise, da Aisne,
tI:1Mame, do Norte e do Pas-de-Calais . As condições em que se
I.rzcrn as viagens de inspeção são horríveis. Na sua correspondên-
( 1:1,Mérimée deixa entrever os efeitos da situação das estradas e
I
h hotelariasobre a saúde>'.
Os trabalhos que cabem àcomissão também são consideráveis.
\IC-mdisso, como bem mostrou F.Bercé' , essa centralização sefaz
1'111etrimento das associações locais de antiquários e das sociedades
til' arqueologia, recém-fundadas' sob a influência de Arcisse de
( 'aurnont. Em lugar de desenvolver suas competências e estimular
',II:IS iniciativas, num trabalho de colaboração, a estrutura central
(Iín da por Guizot asmarginaliza. Apesar da penúria de seus meios,
(1\homens de Paris têm ciúmes do poder dessas instituições. Eles
11mern os que intervêm localmente, e os confinam a tarefas de
('llldição que desejariam subalternas. E, beirando a inconseqüência,
.1\usam-nos, à ocasião, de não estarem empenhados nos circuitos
111iticos da conservação e da restauração dos monumentos, que eles
i
I((
-smoscontribuíram par lhes fechar. É o inverso da situação inglesa,
\'111que as associações de proteção' continuam a prosperar e a se
',J Carta a Viollet-le-Duc de 27 de setembro de 1852: Quase morri para ir ver a
Iarnosa rotunda de Simiane. Senti por você, não pelo sol que você poderia ter
tomado comigo, mas pela Singularidade do monumento (...
r,
ou ainda a carta ao
mesmo de 17 de dezembro de 1856: Sabeis que nossos monumentos desmoro-
nam porque não sãoconhecidos o b astante. E não o sãoporque não há albergues
I . . . ]
(e contrapor essa situação
à
da Itália), op. cit., supra.
',I I'. Bercé, Les Premiers Travaux de ia Commission des monurnents historiques,
1aris, Picard, 1980.
Caumont criara em 1823 a Associação dos Antiquários da Normandia, que ser-
viu de modelo à Associação dos Antiquários do Oeste. Em 1834, ele criou a
Associação Francesa de Arqueologia.
0 1,
Associações religiosas como a Church Building Society, que tiveram origem no
movimento eclesiológico, ou associações arqueológicas (Oxford Architectural
Society e Cambridge Camden Society, 1839, Cambridge Antiquariam, 1840,
I\ritish Archaeological Society, 1843). A variedade de suas doutrinas não interfe-
I C
em sua eficácia, que, entretanto, se manifesta sob formas muito diversas.
147
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
engajar, sem intermediários, nas tarefas de conservação. Exempl
W Morris cria em 1877 a Society for the Protection of Ancient
Buildings. Um ano depois, ele já havia reunido uma documentaçã I
sobre 749 igrejas intactas. Última desvantagem da França, em relaçã, 1
às associações de proteção britânicas, privadas e locais: financiamen
tos magros do Estado, que não recebem ajuda de nenhum mecenat
O inspetor e a comissão são obrigados a sacrificar numerosos m
numentos. Os salvos são em geral tirados aleatoriamente do uso ('
destinados ao mesmo tipo de visita que os objetos de museu.
Uma primeira lei foi finalmente promulgada em 1887. Urna
regulamentação vem completá-Ia em 1889. Em 1913, dão-lhe urna
forma definitiva, que hoje constitui o texto legislativo de referên
cia da lei sobre os monumentos históricos : é a instituição de Uni
órgão estatal centralizado, dotado de uma poderosa infra-estruturn
administrativa e técnica, o Serviço dos Monumentos Históricos, .'
de uma rede de procedimentos jurídicos adaptados ao conjunt I
dos casos passíveis de previsão.
Essa legislação confirma a centralização, a unidade e a coerêi
cia da política francesa de conservação dos monumentos históricos,
que se vê em seguida dotada de meios de ação próprios. De acor
do com a tradição centralizadora da França, ela não deixou
funcionar como modelo em outros países em que o papel do Est
do era menos preponderante e a descentralização era parte :1
tradição (Alemanha, Itália). Na Inglaterra, a intervenção do Esta
do na administração e conservação dos monumentos históricos
aconteceu tardiamente, com
oAncient Monuments ProtectionA I,
de 1882, e permanece reduzida> .
A lei de 1913 não deixaria, porém, de apresentar alguns in
convenientes: morosidade da burocracia; redução progressiva
papel ativo, estimulante e anticonformista dos voluntários, subs
tituídos por funcionários - a comissão dos monumentos manté 111
apenas um poder consultivo e, em muitos casos, suas recomenda
ções não são seguidas -, enfim, fraqueza maior, o vazio
doutrinul
57. Cf. P.Dussaule, op. cit., e seu mui pertinente comentário.
58 ..N. Boulting, The Law's Delays, Conservationist Legislation in the British 1 5 1 ,
in
1. Fawcett, op. cito
148
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
qm' constitui o contexto administrativo, técnico e jurídico dos
JlIocedimentos. Disso dá provas a definição do monumento histó-
li,o: móvel ou imóvel cuja conservação apresenta, do ponto de
vista
da história ou da arte, um interesse público'T'. Ela não se faz
,I(ornpanhar nem de uma análise do conceito, nem de critérios de
.hxcriminaçãc
prática. Essa carência, cujas causas mereceriam ser
buscadas e analisadas, é provavelmente responsável pelo atraso da
II ança nesse domínio no século xx.
Em 1825, Victor Hugo se indignava com o abandono et;' que
,I
encontravam os monumentos franceses. E acrescentava: E
pre-
, ISOdeter o martelo que mutila a face do país. Uma lei
bastaria.
()uc seja feita.
Independentemente de quaisquer direitos de pro-
11/
iedade,
não se deve permitir a destruição de um edifício histó-
111) GO. Linhas significativas. Elo de um longa cadeia, elas antecipam
li', restrições que o legislador francês, herdeiro da Revolução de
I /S9, virá impor ao direito de propriedade dos detentores priva-
'IS do patrimônio histórico. Mas elas dão mostras de um otimis-
1II1Iexagerado: mesmo combinada com medidas penais, uma lei
11.111asta. Hoje isso é patente. A preservação dos monumentos
1111gos é antes de tudo uma mentalidade.
restauração como disciplina
Querer e saber tombar monumentos é uma coisa. Saber
, IIl1s\Tvá-Iosfisicamente e restaurá-los é algo que se baseia em ou-
1111\lipos de conhecimento. Isso requer uma prática específica e
I
+.oas
especializadas, os arquitetos dos monumentos históricos ,
q
111'o século . X p c precisou inventar.
I \ .
os dois primei ros capítulos da lei. Essa definição não será mais aperfeiçoada
, i
a introdução de novos tipos de objetos no
co r pus
dos monumentos.
I t ll ()I'.
cit., p.
J
55-6 (grifos nossos). Entre os edifícios demolidos, desfigurados ou
,1 1
n dos
ao abandono, ele cita às pressas e sem preparação, escolhendo ao aca-
. , I
lembranças de uma excursão recente]: as igrejas de Saint-Germain-des-Prés
,li l'aris, de Autun, de Nevers, de La Charité-sur-Loire, a catedral de Lyon, os
, ',1,,105
de Arbresle, de Chambord, de Anet (...} ,
149
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A ALEGORIA DO rATRIMÓNIO
Na França, essa invenção foi obra de Vitet e de Mérimée.
Evocar, mesmo ligeiramente, sua aventura particular faz aflorar
um conjunto de problemas gerais, ainda atuais, que envolvem, à
sua maneira, o sentido do monumento histórico. Voltemos ao
exemplo da Vienne. Já em sua primeira viagem, Mérimé
determina que a Igreja de Saint-Savin seja tombada. O edifício,
cuja abóbada está cheia de fissuras, precisa com urgência de repa-
ros e consolidações. Mérimée não é arquiteto. Diferentement
dos antiquários e dos historiadores da arte, categoria de que aliá
ele faz parte, sua missão o faz defrontar-se com questões práti-
cas e técnicas relativas à construção e à arquitetura. Ele serve d
correia de transmissão entre o saber dos historiadores e o conhe-
cimento dos arquitetos e se choca, nesse papel, com três obstá-
culos maiores.
O primeiro é comum ao conjunto dos países europeus, com.
relativa exceção da Inglaterra: é a ignorância dos arquitetos, e es-
pecialmente dos arquitetos dos departamentos e das comunas,
em matéria de construções medievais . A partir da era clássica,
estudo da construção antiga faz parte da formação dos arquitetos.
Mais que isso, estes contribuíram ativamente para o avanço da
arqueologia greco-romana. Na trilha dos Soufflot e dos Le Roy,
Hittorf e Garnier, por exemplo, conseguiram as provas da poli-
cromia da arquitetura antiga. Em compensação, tudo está por
aprender no que diz respeito ao gótico. A situação da arquitetura
românica é ainda pior: esta é desprezada e julgada sem valor, nã
61. A situação é analisada com lucidez por Vitet: Não basta dec idir teoricamente
que se restaurem doravante os monumentos dentro de um espírito histórico; ('
preciso ter arquitetos bastante versados em história da arte para não cometer 111
imperícias nem absurdos. Quando se trata de monumentos antigos, não exi
l
muita dificuldade, visto que o estudo desses monumentos é o tema quase exclu
sivo em nossa escola, e a arte das restaurações é precisamente um dos exercícios
aos quais os alunos se aplicam com maior sucesso.
Quando se trata, porém, da Idade Média e de nossos monumentos nacionais,
não se tem mais que principiantes; e os próprios professores teriam muita dif
culdade em Ihes dar lições ou exemplos. Na verdade, alguns homens de talent 1,
à força de pesquisas e de viagens , tiveram a paciência de se iniciar por simesmos,
fora da escola, nessa nova matéria , L. Vitet,
Études sur les beaux-arts, L. I,
p. 292. A últ ima frase revela muito bem o processo de autoformação da p rim iln
geração dos historiadores da arquitetura.
150
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
apenas pelos arquitetos, mas também por historiadores da arte da
estatura de Caumont'ê.
Mérimée sofre exemplarmente as conseqüências desse des-
conhecimento quando de suas idas ao Poitou. Graças a subven-
~'õesdo Estado concedidas em 1835 e 1837, Dulin, arquiteto do
departamento da Vienne, cimentou a fissura longitudinal da a bó-
hada da Igreja de Saint-Savin, sem se preocupar com os afrescos
que a adornam. Esse crime, escreve Mérimée a Vitet, é obra do
último arquiteto demissionário. Seu sucessor não me inspira ne-
nhuma confiança. Ele tem a infelicidade de ser terrivelmente es-
túpido e ignorante'F', Semelhante desastre ocorreu no batistério
Saint-Jean de Poitiers, onde os antiquários do Oeste promoveram
;1 destruição de maciços românicos em razão de uma temerária
Icconstituição do edifício paleocristão original' .
Segundo obstáculo, próprio da França, é o antagonismo en-
t re Paris e o interior do país. A tendência centralizadora dos ins-
petores e da Comissão dos Monumentos Históricos faz que se
(..scolham arquitetos formados na Escola de Belas-Artes de Paris.
lstes
enfrentam a hostilidade e mesmo a malevolência local
65
.
Obstáculo mais grave, enfim, o trabalho de consolidação e
'. A arquitetura dos primeiros séculos da Idade Média apresentava todos os
caracteres da arquitetura romana, num avançado estado de decadência; nós a
chamávamos de arquitetura
romane
[românica]. O tipo românico persistiu até o
século XII , A. de Caumont,
Abécédaire ou rudiment d'archéologie,
Paris, Caen,
Rouen, 1850, p. 1.
I, (.
S. Fouché, op. ci t., p. 9. Esse Dulin é membro da Associação dos Antiquários do
Oeste.
I,
I S. Fouc h é, ibid., p. 32 e seguintes, cita o relatório dos Antiquários do Oeste, que
salienta que aqueles se interessam apenas pela valorização e boa apresentação do
edifício (uma parte do qual deve ser destruída visto que essas construções, no
estado em que se encontram atualmente, formariam uma massa de aparência
desagradável no centro de uma praça pública a que se pretende, com o tempo,
dar uma forma circular. .. ), e por sua forma paleocristã: daí a destruição, a pre-
icxto de conservação (aqui entendida no sentido de reconstituição), das adi-
,;ões que, desfigurando a forma primitiva, fizeram-na perder o interesse que
apresenta do ponto de vista arqueológico e histórico .
I I , :
mesmo quando, como na Vienne, Mérimée escolheu um prático da região, nem
por isso o gesto deixa de significar a ingerência de Paris nos assuntos da província. Ele
.uaba por a trair e concentrar a animosidade de todos os agentes locais, do Conselho
Municipal aos antiquários, passando até pelo prefeito. Ibid., p. 80 e ss.
151
'I
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
restauração já não satisfaz os restauradores. Ele não dá prestígi ,
não requer o gênio criador do artista e tampouco remunera bem.
E. Labrouste, o célebre criador da sala de leitura da Bibliot
iI
Nacional, foi escolhido, em razão de sua competência e de SU:I
cultura eclética, para restaurar a igreja colegiada de Mantes. Alguns
meses mais tarde, o campanário desta desmorona. Descobre- ('
que Labrouste, ocupado com missões mais gloriosas, delegara a
obra a um colega
lo ca l ' .
Não bastava aos inspetores dar mostras de perspicácia psico-
lógica para descobrir, entre os arquitetos laureados de Paris, ou
quando de suas viagens ao interior, os poucos homens capazes d'
dedicar sua atividade profissional à conservação do passado. Era
preciso também forrná-los: iniciá-los na história da arte e da cons-
trução, então ainda embrionária, fazer que transformassem em
método a circunspecção e a humildade. Os próprios Mérimée
Vitet foram obrigados a ministrar essa pedagogia, na falta de uma
instituição especializada ou, no mínimo, de um curso de história
da arquitetura medieval, que eles não conseguiram fazer instituir
na Escola de Belas-Artes' .
No curso do século xx, os estudos preparatórios para a con-
servação e restauração dos monumentos históricos exigiram a aqui-
sição suplementar de novos e numerosos conhecimentos científicos
66: F. Bercé, op. cito
67. Ver os conselhos dados por um e outro a seus arquitetos favoritos, Daniel Rarnée,
no caso de Vitet e, além de Viollet-le-Duc, Questel, no caso de Mérimée.
Constatação clara: A criação de um curso público, destinado especialmente a
ensinar a história da arquitetura na Idade Média, torna-se atualmente uma ver-
dadeira necessidade, e não se pode entender que a Escola de Belas-Artes tenha
se preocupado apenas em se opor a essa criação, obrigando assim o governo a
impô-Ia , L.Vitet, op. cit., p. 293. Na verdade, apesar da ajuda da força pública,
o governo não conseguiu impor o curso de história da arquitetura de Viollet-Ie-
Duc, que foi obrigado a parar depois de algumas sessões, contentando-se em
apresentar urna versão escrita do curso em seus Entretiens sur l'architecture. Na
série de artigos que dedicou ao Entretien et Ia restauration des cathédrales
françaises (Revue générale de l'architecture, 1851-1852, rubrica Histoíre ),
Viollet-Ie-Duc faz o balanço da contribuição do governo à restauração e acrescenta:
Falta-nos apenas uma coisa, se desejamos que esses sacrifícios sejam fecundos:
uma sementeira de jovens artistas, arquitetos, pintores e escultores, nutridos
pelo estudo de nossos mais belos monumentos e, portanto, capazes de restaurá-
los com competência (...). O mal está no ensino , op. cit., 1852, t. X, p. 371.
152
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO IIISTÓRICO
\. técnicos, ligados sobretudo à degradação dos materiais'P. Mas a
h is tória
da arquitetura continuou sendo absolutamente funda-
mental. Ela representou, como veremos, um grande trunfo na Itá-
Ii:I
e nos países de língua alemã, onde muitas vezes foi i~tegrada
,10 ensino das escolas de arquitetura. Na França, esse ensino sem-
pre esteve ausente na Escola de Belas-Artes.
A intervenção de restauradores especializados nos monumen-
tos históricos exige não apenas conhecimentos seguros, históricos,
tl'cnicos metodológicos. Ela implica também uma doutrina que pode
.irticular de forma muito diferente esses saberes e esses
savoir-faire,
modificando os objetivos e a natureza da intervenção arquitetônica.
I\.nova disciplina que se constituiu a partir da década de 1820, a con-
servação dos monumentos antigos, reconhece necessariamente os
va lores
e os novos significados atribuídos ao monumento histórico.
/\s aporias da restauração: Ruskin ou Viollet-Ie-Duc
É
dessa forma que o debate sobre a restauração, que havia
dividido os antiquários e os arquitetos ingleses antes dos demais,
no fim do século XVIII, vê-se enriquecido e ampliado em dimen-
sões que abarcam a cena européia. Esquematicamente, duas dou-
trinas se defrontam: uma, intervencionista, predomina no conjunto
dos países europeus; a outra, antiintervencionista, é mais própria
da Inglaterra. Seu antagonismo pode ser simbolizado por aquele
dos dois homens que as defenderam com mais convicção e talen-
to: Viollet-le-Duc e Ruskin, respectivamente.
Na Grã-Bretanha, os termos da polêmica endureceram. Do
lado dos intervencionistas, Wyatt, inimigo número um de Carter e
Milner foi substituído por Gilbert Scott (1811-1878), principal
alvo de Ruskin e Morris. O conhecimento de arquitetura medieval
muito superior ao de seu predecessor não impede que Scott defen-
(iR . Cf., por exemplo, o papel da física, da química, da bioquímica, tal como,se de-
senvolveu nos institutos de pesquisa aplicada como, na França, o Laboratono de
Pesquisa dos Monumentos Históricos. Cf. também o papel da fotogrametria.
153
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
da, em nome da fidelidade histórica, posiçoes corretivas . El
publica, em 1850,
Defesa da restauração fiel de nossas igrejas
antigas, 69
após ter declarado, oito anos antes, que gostaria de expur-
gar a palavra restauração do vocabulário arquitetônico . Dá-se ao
luxo até de criticar a posição de Viollet-Ie-Duc, de que sua própria
doutrina é, contudo, uma versão mais radical, aliás defendida pela
Sociedade dos Eclesiólogos . Esse apoio permitiu-lhe intervir na
maioria das grandes catedrais inglesas, e suas idéias tiveram prati-
camente força de lei na Grã-Bretanha até a década de 1890.
De sua parte, Ruskin, seguido por Morris, defende um anti-
intervencionismo radical, de que até então ainda não havia exemplo,
e que deriva de sua concepção do monumento histórico. O trabalho
das gerações passadas confere, aos edifícios que nos deixaram, um
caráter sagrado. As marcas que o tempo neles imprimiu fazem par-
te de sua essência. Morris desenvolve esse tema segundo uma argu-.
mentação pessoal, deixando aberta a hipótese otimista de um
revival
da arte antiga: o valor dos monumentos do passado deriva menos da
grande ruptura dos
savoir-faire
provocada pela Revolução Industrial
do que de uma tomada de consciência própria ao século
XIX.
O
desenvolvimento dos estudos históricos permitiu a esse século pen-
sar, pela primeira vez, o caráter único e insubstituível de todo acon-
tecimento, assim como de toda obra que pertence ao passado .
69. A Plea for the Faithful Restoration of o ur Ancient Churches, completado em 1864
com um código de restauração com vinte pontos, General Advice to Promotors of
Ancient
Build ings ,
publicado em 1864-1865 in Sessional
P apers
of
th e
Riba. A
idéia central (pretensamente conservadora) é fazer que os edifícios voltem ao seu
estado inicial. Para isso, é preciso suprimir, corrigir, inventar, só conservar as res-
taurações anteriores se não estiverem deslocadas ; conforme J. Fawcett, op. cito
70. On the Conservation of Ancient Monuments, citado por
J.
Fawcett. Esta dá igual-
mente a lista e as datas das intervenções de G. Scott nas catedrais inglesas desde
Stafford, El y e Westminster, na década de 1840, até Exeter, Worcester e Rochester
na década de 1870.
71. Viollet-le-Duc é o alvo daszombarias dos eclesiólogos que o tomam como símbolo
da incompreensão francesa em matéria de restauração. Cf. nota 93, adiante.
72. Devemos levar em conta a grande mudança que se insinuou no mundo, transfor-
mando a natureza de seu sentimento e de seu conhecimento da história (...).
Nossos antepassados consideravam tudo o que tivera lugar no passado exata-
mente como os mesmos fatos se Ihes afigurariam em sua própria época. Eles
julgavam o passado e os homens do passado segundo os critérios de seu próprio
154
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
Conclusões: é-nos proibido tocar nos monumentos do passa-
do.
Nós não temos o mínimo direito de [azê-lo.
Eles não nos per-
tencem. Pertencem em parte àqueles que os edificaram, em parte
ao conjunto das gerações humanas que virão depois de nós 73.Qual-
quer intervenção sobre essas relíquias ? é um sacrilégio. A vio-
lência das imprecações ruskinianas contra a restauração explode
na segunda parte do Lamp of Memory , reflete-se nas conferên-
cias posteriores do crítico e repercute de forma vibrante em parte
da imprensa inglesa . No sentido pr~p~staur ~~.i~R-i-fi~a :
mais completa destruiç-ãcí'~flcio pode sofrer , a coisa e
lima mentiraabsoluta . Oprõ]eto restaurador é a surdo. Restau-
--
-
~-~
rar é impossível. o ressuscitar um morto.
Morris, talvez melhor que Ruskin, denuncia a inanidade da
reconstituição ou da cópia. Elas supõem que se possa ao mesmo
tempo penetrar o espírito do tempo em que foi construído o edi-
Fício e identificar-se completamente com o
artista .
Para Ruskin
c Morris, querer restaurar um objeto ou um edifício é atentar
contra a . ti cidade ue constitui a sua pró ria essência. Ao
que parec@-;-f>a-r-a-e.l~destffi.e-~istórico é a
ruína e a desagre a a o, ressiva.
tempo. E esses tempos antigos eram tão plenos que eles não tinham momentos de
folga algum para especular sobre os sucessos do passado ou do futuro. Vale a pena
salientar o quanto a situação mudou hoje. A tomada de consciência, cada vez mais
forte do presente mostra-nos como homens aparentemente animados das mes-
mas paixões que nós eram na realidade diferentes (...); essa tomada de consciên-
cia, embora salientando essa diferença, ligou-nos de tal modo ao passado que ele é
parte integrante de nossav ida e mesrr;o de nosso desenvolvimento. Esse fato, ouso
dizer, nunca tinha acontecido antes. E algocompletamente novo. (...)
Repito: nós, que pertencemos a este século, fizemos uma descoberta impossível
às épocas precedentes: sabemos agora que nenhum novo esplendor, nem obra
moderna alguma pode substituir para nós a perda de um trabalho antigo que seja
uma autêntica obra de arte ,
The Builder ,
artigo sobre The Restauration of Ancient
Buildings , 28 de dezembro de 1878.
73. The Lamp of Mernory , op. cit., § XX, p. 201. Os grifes são de Ruskin. As
citações seguintes são excertos dos § XVIII e XIX, p. 199 e 200.
74. A palavra é usada com mais freqüência por Ruskin que por Morris.
75. Com mais ênfase, a paixão ruskiniana faz escola. Restauration, ton nom est
absurdité , S. Huggins, The Bu ilder , 28 de dezembro de 1878.
76.
The Builder, artigo citado.
155
7/17/2019 CHOAY Françoise a Alegoria Do Patrimônio 2001_##
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;\ ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Percebe-se contudo que, na realidade, esse fim pode ser retarda-
do, e que os dois campeões do antiintervencionismo preconizam a
manutenção dos monumentos e admitem que sejam consolidados,
desde que de forma imperceptível. . De fato, a intransigência com
a qual condenam a restauração se explica por sua fé incondicional
na perenidade da arquitetura como arte; daí a afirmação dogmá-
tica de uma necessária arquitetura histórica , em Ruskin, e de
um
revíval
necessário, em Morris. Para este último, os monumen-
tos antigos fazem parte do mobiliário de nossa vida cotidiana= .
A expressão é boa. Ela demonstra bem a precariedade que os in-
sere na grande cadeia temporal e situa-os, ao contrário dos obj -
tos de museu, no mesmo plano dos edifícios do presente, chamados
a desempenhar a mesma função e a ter o mesmo destino.
Do lado francês, a doutrina e a prática da restauração são
dominadas pela figura de Viollet-le-Duc. Com base em seus e ~
critos sobre o assunto e em suas intervenções nos monumentos
franceses, é fácil traçar um perfil de sua obra, que se contrapõ ,
ponto por ponto, à de Ruskin. Quase um século depois, a contri-
buição de Viollet-Ie-Duc em geral se reduz a uma definição c é l
bre de seu Díctíonnaíre: Restaurar um edifício é restituí-lo a um
estado completo que pode nunca ter existido num moment:
da do ?
e a uma concepção ideal dos monumentos históric s,
que criam na prática um intervencionismo militante cujo carát
I
77. La Lampe de rnérnoire , 2' parte. Para Ruskin, a atitude francesa consiste pr í
meiro em negligenciar os edifícios, para depois restaurá-Ios . Ele acrescenta S~ II
satamente: Cuidar bem de vossosmonumentos e não vos será preciso restaurá-lu,
depois , § XIX, p. 200-1. Da mesma forma, no artigo sobre o Crystal Pala (',
proíbe tocar o monumento autêntico salvo na medida em que seja pr i~\\
consolidã-lo ou protegê-lo [...]. Essas operações necessárias se limitam a subsu
tuir as pedras gastas por novas, no caso em que esta s sejam absolutamente indr-,
pensáveis à estabilidade do edifício; a escorar com madeira ou metal as parti'
suscetíveis de desabamento; a fixar ou cimentar em seu lugar as esculturas,
IH,
tes a se desprender; e, de modo geral, a arrancar as ervas daninhas que na. 1'111
nos
interstícios
das pedras e a desobstruir os condutos pluviais. Mas nenhumn
escultura moderna e nenhuma cópia devem, jamais, sejam quais forem as (1 1
cunstâncias, ser associadas às obras antigas , op. cit., § IX, p. 112, grifas de Rusk 11
78,
The Buílder, op. cito
79. Essa definição constitui a referência implícita com base na qual se situam todn, 11'
outras definições da restauração propostas pelos adversários de Viollet-le-Duc, '011111
156
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO IIISTÓRICO
arbitrário
é conveniente denunciar - fachada gótica inventada da
catedral de Clermont-Ferrand, flechas acrescentadas
à
Notre-
Darne de Paris e
à
Sainte-Chapelle, esculturas destruídas ou mu-
t
iladas substituídas por cópias, reconstituições fantasiosas do
castelo de Pierrefonds, reconstituições compósitas das partes su-
periores da Igreja Saint-Sernin, em Toulouse.
Esse retrato grotesco deve, porém, ser relativizado, ainda que
seja
inserindo-o no contexto intelectual da época e lembrando o
vstado de degradação em que se encontravam, na França, a maioria
.los monumentos sobre os quais pairavam suspeitas de desfigura-
~)o. Cumpre lembrar também os textos em que Viollet-le-Duc
.Icscreve a diversidade dos edifícios religiosos do século
XIII,
to-
.Ios
nascidos do mesmo princípio , grande família em que cada
membro possui, todavia, um traço de originalidade bem marcada ,
,'111que se sente a mão do artista e se reconhece sua individualida-
l lc so.
Não se deve, igualmente, ignorar seu interesse pela história
lia S
técnicas e dos canteiros de obras, seus métodos de pesquisa
ín
-;IU ,
o fato de ter sido um dos primeiros a valorizar os registros
Iotográficos
e a maneira como soube retirar das fachadas as escultu-
1:IS demasiadamente frágeis e ameaçadas. Além disso, L.
Grodecki'
.k-monstrou que o castelo de Pierrefonds, do qual só restavam
r u ína s,
servira de grande divertimento a Viollet-le-Duc: um brin-
'111Cdogigantescc'f , deplorado por Anatole France, ele nos pare-
I ,. atualmente uma antecipação das Disneylândias .
É
preciso sobretudo interrogar-se sobre o sentido real da~
w,laurações agressivas ou historicizantes de Viollet-le-Duc. E
1 \-ciso
mostrar com clareza as preocupações que inspiram suas in-
,I
de W Morris: Preservar os edifícios antigos significa conservá-los no mesmo
vxtado em que os recebemos, reconhecíveis, por um lado, como relíquias históri-
I
: s, e não como cópias suas; por outro, como obras de arte executadas por artistas
que tinham toda a liberdade de trabalhar de outra forma, se o quisessem , ib íd.
I 1 I Reoue générale de l'architecture, 1851, t. IX, na rubrica
Entretien
et restauration
.lcs cathédrales de France , segundo artigo, p. 114,
,I l • Grodecki, La restauration du château de Pierrefonds , Les Monumencs
hisioriqucs de Ia France, 1965, n. 95, eLe Chãteau de Pierrejonds, Paris, Caisse
n.u ionale des monuments histortques,
d. 1979. Esses textos foram reeditados
, 111 Le Moyen Age retrouvé, t. 2, Paris, Flamrnarion, 1990,
Noziere, Paris, A. Lernerre, 1899, p, 172,
157
, I
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
tervenções corretivas e que Mérimée estava longe de poder imagi-
nar na década de 1840. A leitura de
Entretiens sur l'architecture
[Colóquios sobre a arquitetura] revela que o incomparável des -
nhista das antigüidades romanas, o medievalista formado pelo
Cur-
so
de antiguidades
de Arcisse de Caumont, que o fino conhecedor
do Renascimento italiano dedicou a segunda metade de sua carrei-
ra a uma aposta no presente e à busca de uma hipotética arquit -
tura moderna. Contrariamente àshipóteses continuístas de Ruskin
e de Morris, mas em conformidade com sua própria abordagem
estrutural da história, essa arquitetura nascerá, para ele, de uma
ruptura. Ela haverá de se apresentar sob a forma de um sistema
inédito em que os monumentos antigos, testemunhas dos sist •
mas históricos obsoletos, têm como principal interesse sinalizar
espaço vazio. Encontra-se inapelavelmente morto esse passado qu ,
segundo Ruskin e Morris, devemos manter vivo. A atitude d
Viollet-le-Duc restàurador explica-se pela constatação desse óbit .
Víollet-le-Duc
tem a nostalgia do futuro, e não a do passad .
Essa obsessão explica o endurecimento progressivo de sua aborda
gem de restauração, de que talvez não setenham apontado determi
nados traços arcaicos, curiosamente associados a um espírito de
vanguarda. Assim, Viollet fazia suas as análises estruturais de
Caumont; além disso, ele foi um dos primeiros a salientar a imp •
tância das dimensões social e econômica da arquitetura. A noçã
de estrutura, porém, levava-o a retomar, ao empreender a restau-
ração real dos edifícios medievais, a atitude idealista que havia
presidido às restaurações dos monumentos clássicos desenha
das pelos antiquários e que davam continuidade às restituiçõ s
da Escola de Belas-Artes. Reconstituindo um tipo, ele se mune d .
uma ferramenta didática que restitui ao objeto restaurado um V :1
lor histórico, mas não sua historicidade. Da mesma forma, a rudo
za de suas intervenções em geral prende-se ao fato de que, absort 1
em suas preocupações didáticas, ele tende a esquecer-se da
d ix
tância constitutiva do monumento histórico. Um edifício só
SI'
torna histórico quando se considera que ele pertence ao me mo
tempo a dois mundos: um mundo presente, e dado imediatament
o outro passado e inapreensível. Vitet dedicou a essa necessárin
tomada de consciência linhas cuja vivacidade mostra que, à ép
';1,
158
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
ela ainda não se tornara um hábito mentalê'. Apesar de sua expe-
riência, o próprio
Víollet-le-Duc
muitas vezes dá provas disso. Esse
é
o caso, por exemplo, da advertência que ele dirige aos inspeto-
res diocesanos em 1873: Seria pueril reproduzir [numa restauração]
lima disposição eminentemente viciosa . Um tal julgamento de valor
põe em dúvida, aomesmo tempo, o conceito de monumento histó-
rico, que se torna uma abstração, e o de restauração, que não leva
mais em conta a autenticidade do objeto restaurado.
\
França e a Inglaterra
Ao lado das posições radicais de Viollet-le-Duc, a atitude
muito mais nuançada de Vitet e de Mérimée, como da maioria de
seus contemporâneos franceses ligados à defesa dos monumentos
históricos, parece próxima da dos ingleses reunidos em torno de
l{lIskine de Morris.
Desde sua primeira viagem pelo Oeste, Mérimée observa, a
propósito do Templo Saint-Jean de Poitiers, restaurado ou, antes,
I
tconstituido
segundo a tradição dos antiquários: Gostaria que a
nova restauração não acrescentasse nada ao que o tempo nos deixou,
limitando-se a limpar e a consolidar. Em alguns lugares, cobriram os
muros com um reboco novo, o que é um erro grave, porque se devia
(onservar religiosamente a aparência antiga das muralhas que ou-
IIma foram várias vezes reparadas'f . Para ele, constitui um princí-
lHOque o arquiteto reparador intervenha o mínimo possível, sempre
qul' o estado do monumento o permita. Insiste nesse ponto com
Viollet-le-Duc
e com seus outros interlocutores. De resto, esse tam-
li I /\ restauração [dos monumentos antigos
1
é uma invenção totalmente moderna e
que só existe em nossa época ( ... ). Essa idéia que toda s as outras artes observam,
( .id a
uma à sua maneira, nunca foi posta em prática pela arqui tetura. Cada século
,I,· algum modo se impôs a lei de s ó construir de determinada ma-neira, de só
uhcdecer ao próprio gosto, aos próprios usos, quer construindo algo novo, quer
. oncluindo ou reparando as obras do passado. Se a moda mudou durante o
perío-
,10
da execução do monumento, tanto pior para a unidade e a simetria; os primeiros
pl:lnos foram deixados de lado e o edifício foi concluído de acordo com os planos
111 moda , Fragments, op. cit., p. 293.
~,I
S.
Fo u ch é ,
op. cit., p. 33.
159
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A
ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
bém é o único meio de conservar uma qualidade essencial dos m
numentos, sua pátina. Victor Hugo defende a mesma posição par»
os monumentos históricos que, envelhecidos ou mutilados, re .
beram do tempo ou dos homens uma certa beleza e nos quais s h
nenhum pretexto se deve tocar, porque os desgastes e supressões
feitos pelo tempo ou pelos homens são importantes para e história
e às vezes também para a arte. Consolidá-los, impedi-los de cair, v
tudo o que podemos nos permitir''f . Vitet também preconiza uni
respeito que ele compara ao que se deve ter às jóias de família. :,
aos franceses, ele chama a atenção para o exemplo inglês: seria n
cessá rio enviar os jovens arquitetos à Inglaterra, assim como são
enviados a Roma, para aprender a conservar e a restaurar' .
A semelhança de determinadas formas não nos deve engana .
Os franceses concordam apenas em parte com as posições ruskinia
nas. Para eles, os monumentos intocáveis são poucos. Victor Hug .
afirma que a maioria se constitui, ao contrário, da categoria daquel s
que, longe de ganhar, perderam com o envelhecimento e com
S
desgastes'f . Com efeito, na França, um monumento histórico não'
visto como uma ruína, nem como uma relíquia que se destina à m -
mória afetiva. Ele é, em primeiro lugar, um objeto historicamente
determinado e susceptível de uma análise racional, e só depois objet
de arte. A abordagem francesa geralmente subentende um postula-
do impensável para Ruskin: a restauração é a outra face, obrigatória,
da conservação; necessária, ela deve e pode ser fiel; trata-se, nes .
caso, de uma questão de método e de savoir-faire.
É
necessário, diz Hugo, que os trabalhos sejam feitos com cui-
dado, ciência e inteligência'f . Vitet é mais preciso: É necessári
85. Intervenção de sábado, 16 de maio de 1846, no Comitê das Artes, publicada pOI
Massin em sua edição das (Euvres completes, p. 1248.
86. Fragments, op. cit., De l'architecture du Moyen Age en Angleterre , 1836, p. 174.
Não nos faltam arquitetos ditos produtores, ou que se consideram como tais,
enquanto há grande carência de arquitetos reparadores , ibid., p. 175.
87. Ibid.
88. Ibid., p. 1248. Cf. também Guerre aux dérnolisseurs , 1832: Mandai repa rar
esses belos e graves edifícios. Fazei-os reparar com cuidado, com inteligência,
com sobriedade. Tendes em torno de vós homens de ciência e de gosto que vos
iluminarão nesse trabalho.
É
necessário sobretudo que o arquiteto restaurad r
seja frugal em suas próprias imaginações, para que estude com curiosidade O
160
A CONSAGRAÇÃOOMONUMENTOISTÓRICO
l olocar-se num ponto de vista exclusivo, despojar-se de toda idéia
.uual e esquecer o tempo em que se vive para se fazer contemporâneo
(10 monumento que se restaura, dos artistas que o construíram, dos
homens que o habitaram.
É
preciso conhecer a fundo todos osproces-
sos da arte, não apenas de suas principais épocas, mas desse ou daquele
período de cada século, a fim de restabelecer, se necessário, toda uma
pa r te
de um edifício
à
vista de simples fragmentos, não por capricho
1111
por hipótese, mas por uma rigorosa e conscienciosa indução 89.
Não se pode encontrar melhor forma de evitar colocar o pro-
hlcma da autenticidade estética, que é conferida a um monumento
histórico por sua singularidade e por sua idade, e que, reconheci-
(h mais tardiamente, não coincide com sua autenticidade histórica
(' tipológica. Pode-se verdadeiramente abstrair-se do tempo em que
.'C
vive? Será que se pode transpor o método indutivo do domínio
das ciências naturais para o da arte? Essas questões não são abor-
d.idas. Postulando a possibilidade de uma restauração fiel e de
uma cópia cuja perfeição faz que não se diferencie do original, os
lranceses transformam em verdade uma mentira denunciada por
Ruskin
e Morris e revelam a importância que atribuem aos valores
(LI
memória histórica' , em comparação com os da memória afetiva
(' do uso piedoso. No mesmo espírito, embora critiquem de for-
1113 pertinente determinadas reutilizações dos edifícios antigos, os
lranceses tendem a favorecer, mais que os ingleses, a museificação
elos monumentos históricos. Vitet sintetiza, sem segundas inten-
~.ões, a lógica dessa atitude quando lamenta que nossas catedrais
\ ontinuem a servir ao culto, porque o uso é uma espécie de van-
dalismo lento, insensível, despercebido, que arruína e deteriora
. b I d -
91
quase tanto quanto a ruta evastaçao .
caráter de cada edifício, de acordo com cada século e cada clima. Que ele se
imbua da linha geral e da linha particular do monumento que lhe confiam e que
saiba unir sua a rte à do do arquiteto antigo , op. cit., p. 165 (grifo nosso).
,'iq. Entretiens SUl les Beaux-Arts, op. cit., p. 290 (grifo nosso).
1)( 1. A restauração supõe (... ) um culto do belo sob todas as formas e uma inteligên-
cia imparcial da história , íbid.
1 1 .
De l'architecture du Moyen Age en Angleterre , op. cit., p. 147. Algumas li-
nhas antes, ele afirma: Só na Inglaterra se encontram edifícios religiosos que,
despojados há trezentos anos de uma parte de sua primeira destinação, só subsis-
tem como objetos de arte e de curiosidade
(grifo nosso).
161
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
Essa análise das atitudes e dos comportamentos que contra-
põem a França à Grã-Bretanha no que diz respeito à restauração
tem apenas um valor geral. Procurei determinar tipos ideais e ten-
dências. Desconsiderei, deliberadamente, as exceções e os casos-
limite. Houve, na Inglaterra, rivais de Viollet-Ie-Duc, como aliás o
mostrou o exemplo de G. Scott e de seus partidários eclesiólogos.
Da mesma forma, na França, Montalembert (talvez sozinho) defende
uma ideologia
revivalist
em páginas de laivos ruskinianos' . Viollet-
le-Duc, a quem Ruskin e Morris nunca perderam a oportunidade
de denegrir ou vilipendiar' , foi defendido publicamente, com suti-
leza, por determinados arquitetos
ingleses? ,
enquanto Morris era
taxado de fetichista e ridicularizado abertamente pelo editorialista
do Builder=. De forma análoga, a carta enviada de Alexandria (18
de março de 1851) aoAthenaeum por William Morris também foi
92. Op. cito O velho solo da pátria, coberto que era com as criações mais maravilho-
sas da imaginação e da fé, torna-se cada dia mais nu, mais uniforme, mais
descalvado (...). Dir-se-ia que eles querem se persuadir de que o mundo nasceu
ontem e que vai acabar amanhã (...) , p. 7. E também, na p. 67 e ss., a propósito
das igrejas: Lá se ergue ainda diante de nós toda a vida de nossos avós, essa vida
tão dominada pela religião, tão absorvida por ela, (...) sua paciência, sua ativida-
de, sua resignação (...) , tudo isso está lá, diante de nós (...) como uma pequena
materialízação de sua existência (...). Compare-se com os textos de Ruskin cita-
dos nas notas 24 e ss.
93. Ver, por exemplo, em The
Build er ,
22 de junho de 1861, a ata da sessão da Eccle-
siological Society, On the Destructive Character o fModern French Restoration ,
na qual Ruskin, recebido com aplausos , profere uma de suas mais belas diatribes
contra a restauração, em geral, e as dos franceses e dos alemães, em particular.
94. Ibid. No curso da mesma sessão, o arquiteto J. Parker opõe-se a todos os seus
colegas, salientando as diferenças de contextos (político, ideológico, cultural)
que tornam complexa a comparação entre os dois países. Ele insiste especial-
mente na eficiência, na França, da ação do Estado que, em lugar de abandonar a
preservação dos edifícios públicos ao sentimento e
à
opinião pública, manda
tombar todas as categorias de edifícios, e não apenas as catedrais, como monu-
mentos históricos . Ele defende Viollet-Ie-Duc, lembrando seu imenso conheci-
mento e enumerando exemplos ingleses de vandalismo. O inventário pós-morte
de Viollet mostra que ele possuía as obras de Parker.
95. A propósito de sua Society for the Protection of Ancient
Bu i ldín gs ,
é acusada de
ter suas sessões presididas por nobres estetas , sustentados por damas bem-
pensantes e subjugadas por suas torrentes de eloqüência. Os objetivos da nova
sociedade, que vem inutilmente se somar a instituições anteriores, dão mostras
sobretudo de um fetichismo abjeto , The Builder, 29 de junho de 1878.
162
• • •
~
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
lraduzida e publicada pela Revue générale de l'architecture , e as
restaurações de Viollet-le-Duc foram analisadas e criticadas dura-
mente, já em 1844, por Didron em seus Annales archéologiques,
bem antes que Anatole France se ocupasse do assunto? ,
É também fato que a doutrina de Ruskin nasceu e se difundiu
na Inglaterra, e não alhures, e que a França, na medida em que prote-
gia seus monumentos, seguia na, maioria dos casos, os preceitos de
Viollet-le-Duc. Como o próprio Ruskin
compreendeu' ,
o destino
desse antagonismo doutrinal era previsível. Que podia a tese do
deixar envelhecer (e perecer) e suas complexas considerações so-
hre a consolidação contra o projeto racionalizado e espetacular dos
.irquitetos e dos historiadores intervencionistas? A Europa inteira
e-stava pronta para aderir às idéias de Víollet-le-Duc. Estas reuniam
c-specialrnente as aspirações historicistas dos restauradores forma-
dos nos países de língua alemã e da Europa central.
ínteses
Todo conhecimento em processo de formação provoca a crí-
l
ica de seus conceitos, de seus procedimentos e de seus projetos.
As disciplinas afins quanto à conservação e restauração dos monu-
mentes históricos não fugiram à regra. Depois do trabalho funda-
(1m da primeira geração, veio, no fim do século, outra reflexão,
, I
ítica e complexa.
'Ih. A. carta de Morris preconizava, especialmente, que se criasse uma associação
para proteger o patrimônio histórico internacional.
'1/. Pierre Nozieres, op. cito A. France acusa Viollet-Ie-Duc até de vandalismo em
Pierrefonds, onde ele destruiu as ruínas, o que é uma espécie de vandalismo .
Ele resume asperamente o método de Viollet-Ie-Duc: Agora [o arquiteto
I
e-
mole para envelhecer. Faz-se que o edifício volte ao estado em que se encontrava
originalmente. Melhor ainda: faz-se que volte ao estado em que ele deveria se
encontrar , p. 177-8 e p. 241 ess.
I , ,. On the opening , op. cit.,
§
10, p. 112. Infelizmente, consertos desse tipo, exe-
curados com consciência, são em geral desprovidos de caráter espetacular e são
pouco apreciados pelo grande público; por isso, os responsáveis pelas obras sentem-
se necessariamente tentados a executar os consertos indispensáveis de um modo
que, ainda que aparentemente adequado, seja na realidade fatal ao monumento.
163
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Para além de Ruskin e de Viollet-le-Duc, Camillo Eoito
Desde o último quartel do século XIX, a hegemonia da dou-
trina de Viollet-le-Duc começa aser abalada por uma postura mai
questionadora, mais nuançada, mais informada também, graça
aos progressos da arqueologia e da história da arte. Essa orienta-
ção foi sendo posta em prática paulatinamente, de forma anônima
e quase furtiva. Foi, porém, definida, executada e defendida d
modo brilhante por um homem cuja obra inovadora é hoje prati-
camente ignorada, salvo em seu país de origem, a Itália?'.
Camillo Boito'P (1835-1914) é um desses arquitetos italia-
nos que, como Giovannoni na geração seguinte, devem a origina-
lidade de suas obras e de suas idéias a uma formação sem igual na
França e na maioria dos outros países. Engenheiro, arquiteto '
historiador da arte, suas competências lhe permitem situar-se na
confluência de dois mundos que se tornaram estranhos: o da art
I
passado e atual, e o da modernidade técnica.
Na Itália, assim como em outros lugares, os princípios de
Viollet-le-Duc inspiraram a maioria das grandes restaurações, s -
bretudo em Florença, Veneza e Nápoles, onde Ruskin e Morris :;
atacara diretamente. Confrontado com essas duas doutrinas anta
gônicas, Boito recolhe o melhor de cada uma, extraindo delas, em
seus escritos, uma síntese sutil, que aliás nem sempre haverá de
aplicar em suas próprias restaurações.
Foi por ocasião de três congressos de engenheiros, reunid s
em Milão e em Roma entre 1879 e 1886, que Boito foi levad : 1
formular um conjunto de diretrizes para a conservação e a r estau
ração dos monumentos históricos'?'. Estas foram incorporada 01
99. Em sua Storia dell'architettura moderna, Turim, Einaudi, 1951 , Bruno Zevi
I lI'l
de Boito um herói nacional e atribui a ele o papel de pioneiro que nega 1 1
Giovannoni. Para a bibliografia crítica de Boito, cf. C. Ceschí, Teoria e SIO iI
dei restauro, Roma, Bulzoni, 1970.
100. Depois de ter feito cursos na Itália, na Alemanha e na Polônia, ele lecíonn
(Accademia Brera) e trabalha como arquiteto e restaurador dos edifícios a1,11
gos em Milão. Fundou a revista Arte italiana decorativa ed industriale. É
It-II
também a obra Ornamentí per tutti gli st ili (1888).
101. Elas tinham a forma de uma recomendação, verdadeira carta em oito pontos
que Boito reproduz em Restaurare o conservare , op. cit., p. 28 e ss.
164
A CONSAGRAÇÁODOMONUMENTO 15T6.1CO
II'i italiana de 1909. G. Giovannoni a elas se reporta e adere, sem
'I'servas, quando, em 1931, faz um balanço da restauração italia-
lia
dos monumentos na Itália , no contexto da Conferência de
Atenas. Contudo, a abordagem dialética de Boito não encontra
n u- lh or expressão que num ensaio escrito em forma de diálogo,
( .onservare o restaurare , publicado em sua compilação Questioni
pratiche di belli arti, em 1893
1 02
.
Nele, o autor dá a palavra alternativamente a dois restaura-
rlores, um dos quais defende as idéias de Viollet-le-Duc, que ele
rnvoca e cita muitas vezes, enquanto o outro, o alter ego de Boito,
, . itica-as recorrendo a argumentos tomados de empréstimo a
Ruxkin e Morris (cujos nomes não são mencionados). Boito cons-
I,I'lisua própria doutrina com base nessa oposição, mas vai além.
A
Ruskin e a Morris ele deve sua concepção da conservação
tI 'IS monumentos baseada na noção de autenticidade. Não se deve
11II'servarapenas a pátina dos edifícios antigos, mas os sucessivos
,li i óscimos devidos ao tempo - verdadeiras estratificações, com-
I , .iveis às da crosta terrestre, que Viollet -le-Duc condenava sem
I
',I rúpulos, O respeito à autenticidade deve igualmente fazer re-
1 1 la r a concepção paleontológica , com base na qual Viollet
11',onstitui as partes desaparecidas dos edifícios, e mais ainda sua
1 1 .ologia estilística, que, apesar de certas declarações contrárias,
I, 'mina por ignorar o caráter singular de cada monumentol' .
Boito, com Viollet-le-Duc, contra Ruskin e Morris, postula a
I
ioridade do presente em relação ao passado e afirma a legitimi-
,I. Iv
da restauração.
É
verdade que esta não passa de paliativo.
I 1 . 1 só deve ser praticada in extremis, quando todos os outros meios
. 1 ,
-.rlvaguarda (manutenção, consolidação, consertos
imperceptí-
• ') tiverem fracassado. Então, a restauração se revela o comple-
uunto indispensável e necessário de uma conservação que, sem
• 1 1 , não pode subsistir nem mesmo em projeto.
1 1 1 Subtítulo: Restauri, concorsi, legislazione, projessione, insegnamento, Milão,
Ulrico Hoepli, 1893.
1II I Ele cita Mérimée de forma caricatural: este, num espírito oposto ao de Víollet-
h--Duc, declarava que convém deixar incompleto e imperfeito tudo o que se
e-ncontra incompleto e imperfeito, [e que
1
não devemos nos permitir corrigi r
aS
irregularidades ou consertar os erros , op. cit., p. 13.
165
A CONSAGRAÇÃO DO MONUMENTO HISTÓRICO
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A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Afirmar a compatibilidade de duas noções que Ruskin e Morri
julgavam incompatíveis, e que Viollet-le-Duc entendia como sinê
nirnas, leva a uma concepção complexa da restauração. A mai I
dificuldade consiste, em primeiro lugar, em saber avaliar com jus
teza a necessidade ou a oportunidade da intervenção, em localizá
Ia, em determinar sua natureza e importância. Uma vez admitid )
o princípio da restauração, esta deve adquirir sua legitimidad '.
Para isso, é necessário e suficiente fazer que seja reconhecida como
tal. O caráter pertinente, adventício, ortopédico do trabalho r -
feito deve ser marcado de forma ostensiva. Ele não deve, em n
nhuma hipótese, poder passar por original. É imperioso que
possa, num relance, distinguir a inautenticidade da parte restau
rada das partes originais do edifício, graças a uma disposição eng .
nhosa que recorra a múltiplos artifícios: materiais diferentes; c
I
diferente da do original; aposição de inscrições e de sinais simb .
licos nas partes restauradas, indicando as condições e as datas das
intervenções; difusão, local e na imprensa, das informações n -
cessárias, e em especial fotografias das diferentes fases dos traba-
lhos; conservação, em local próximo do monumento, das part s
substituídas por ocasião da restauração' .
Além disso, Boito reconhece não apenas que toda interven-
ção arquitetônica num monumento é necessariamente datada (.
marcada pelo estilo, pelas técnicas e savoir-faire da época em qu .
é feita. Lamenta, ademais, a igualdade de tratamento que se dá < -
diversidade dos monumentos e propõe três tipos de intervençã ,
de acordo com o estilo e a idade dos edifícios: para os monumen-
tos da Antigüidade, uma restauração
arqueológica,
que busqu .
antes de tudo a exatidão científica e, em caso de reconstituiçã ,
considere apenas a massa e ovolume, deixando de certo modo em
branco o tratamento das superfícies e sua ornamentação; para
S
monumentos góticos, uma restauração pitoresca, que se concen
tre principalmente no esqueleto (ossatura) do edifício, deixand
a carne (estatuária e decoração) em deterioração; enfim, para
monumentos clássicos e barrocos, uma restauração arquitetõnica
que leve em conta os edifícios em sua totalidade.
104. Op. cit., p. 15, ss. e 28.
166
Os conceitos de autenticidade, hierarquia de intervenções, es-
Id o de restauração permitiram a Boito estabelecer os fundamentos
\ I íticos da restauração como disciplina. Ele enunciou um conjun-
I\Ide regras que foram moduladas e aprimoradas -, por causa das
destruições causadas pelos conflitos armados, a partir da Primeira
( ;uerra Mundial - de acordo com a evolução das técnicas de
\ onstrução - mas que, em sua essência, continuam válidas.
Alois Riegl: uma contribuição maior
Um trabalho de reflexão mais ambicioso com respeito a ati-
I
ides e condutas ligadas
à
noção de monumento histórico foi rea-
lizado no começo do século XX pelo grande historiador da arte
vicnense Alois Riegl (1858-1905) 105. Este encontrava-se prepara-
(10 para tal tarefa em razão de sua tripla formação - de jurista,
I ilósofo e historiador - e pela experiência concreta que adquiriu
\ (Imo conservador de museu' .
Em 1902, Riegl foi nomeado presidente da Comissão Austría-
, : 1 dos Monumentos Históricos e encarregado de esboçar uma nova
I('gislação para a conservação dos monumentos. Um ano depois,
publicava, à guisa de introdução a medidas jurídicas,
Der moderne
I
icnlemalleulius [O culto moderno dos monumentos] 107. Esse fino
I Il'i Entre 1889 e 1901, numa série de obras importantes, Riegl estabeleceu os
princípios da história e da teoria da arte, tais como foram depois continuadas
por H. Wofflin, H. Sedlmayr, P. Frankl, E. Panofsky, R. Krautheimer etc. Um
século depois de sua publicação, são traduzi das para o francês: Questions de
style (1893), tradução de S. Muller, prefácio de H. Damisch, Paris, Hazan,
1992, e VOrigine de l'art baroque
à
Rome (curso, ed. póstuma, 1907), tradu-
ção de H. A. B\aatsch e F. Rolland, com uma importante Apresentação de
p . Philippot, Paris, Klincksieck, 1993. Sobre a obra de Riegl, ver também H.
Zerner, Lart , in Jr-Le Goff e P. Nora (orgs.), Faire de l'histoire, t. II, O.
Pãcht, ''A. Ríegl , Burlington Magazine, 1963, traduzido para o francês para
servir de introdução à Grammaire historique des arts plastiques, Paris,
Klincksieck, 1978, e
W Sauerlânder, ':.4.
Riegl und die Entstehung der autonomen
Kunstgeschichte am Fin de siécle , in R. Bauer (org.) Fin de siécle zur Literatur
und Kunst der Iahrhundertwende,
Frankfurt/Meno, 1977.
tll(i. No Museu de Artes Decorativas de Viena (1886-1898).
t 1l7 . Ver introdução, nota 25.
167
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A COt<SAGRAÇÁO DO MONUMENTO HISTÓRICO
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opúsculo é uma obra fundadora. Ele se vale de todo o seu sab r ('
experiência como historiador de arte e conservador de museu parn
empreender uma análise crítica da noção de monumento hist ri
co. Este não é abordado apenas sob uma perspectiva profissional,
como a de Boito, mas tratado como um objeto social e filosófi
l
Só a investigação do sentido ou dos sentidos atribuídos pela so i '
dade ao monumento histórico permite fundar uma prática.
:lI
uma dupla abordagem - histórica e interpretativa.
Riegl é o primeiro a apresentar, sem ambigüidade, a distin ã
I
que procurei apontar entre o monumento e o monumento hist
rico, cuja origem ele situa, em algumas linhas, na Itália, no
sé culo
XVI.
Tendo sido também o primeiro a definir o monumento histé
I i
co a partir de valores de que foi investido no curso da história, faz
lhes o inventário e estabelece uma nomenclatura pertinente.
Sua análise é estruturada pela oposição de duas categorias
I .
valores. Uns, ditos de remernoração
(Erinnerungswerte),
são li
gados ao passado e se valem da memória. Outros, ditos de contem
poraneidade (Gegenwartswerte), pertencem ao presente.
A essa estrutura dual corresponde a distinção, que utilizei
l a r
gamente, entre valores para a história e a história da arte, de um
lado, e valores artísticos, de outrol' . Mas Riegl não parou aí.
Entre
os valores de rememo ração, também descreveu, e logo inscrev li,
um novo valor, que vê surgir na segunda metade do século
XIX '
que chama de ancianidade . Esta diz respeito à idade do monu
mento e às marcas que o tempo não pára de lhe imprimir: assim se
evoca, por meio de um sentimento vagamente estético , a tran i
toriedade das criações humanas cujo fim é a inelutável degradaçã ,
que no entanto constitui a nossa única certeza. Diferentemente dr
108. Um esquema pode ajudar o leitor a se orientar entre as diferentes categoria-
de valores.
Valores de rememo ração (ligados ao passado):
- para a memória (monumento);
- para a história e a história da arte (monumento histórico);
- de ancianidade (monumento histórico).
Valores de contemporaneidade:
- artístico;
• relativo (monumento histórico);
• de novidade (monumento e monumento histórico);
- de uso (monumento e monumento histórico).
168
,d'lI
histórico, que remete aum saber, o de ancianidade é perce-
I
ti
li
de imediato por todos. Ele pode, pois, dirigir-se à sensibilida-
li,·
de todos, ser válido para todos, sem exceção . Riegl não
uuuciona Ruskin. É evidente, porém, que seu valor de ancianidade,
1 1 11 '
suscita uma atenção reverente para com os monumentos his-
I,unos, é próximo do valor ruskiniano da reverência. Seu significa-
li. I
contudo é bem diferente. Ruskin milita por uma ética e busca
,
IIIIJlor
sua concepção moral do monumento a uma sociedade cujas
It'lldências orientam-se em sentido inverso. Riegl parte, ao contrá-
11 ' I,
de uma constatação. Um outro olhar sobre a sociedade indus-
111: :
historiador, não normativo. O valor de ancianidade do
monumento histórico não é para ele uma promessa, mas uma reali-
.Í.ulc. A imediatez com a qual esse valor se apresenta a todos, a
L I,
ilidade com que se oferece àapropriação das massas
(Massen),
a
',nlução fácil que ela exerce sobre estas deixam entrever que ele
,'I:í o valor preponderante do monumento histórico no século xx.
A segunda categoria
(Gegenwartswerte)
não é menos rica, nem
1III 110S
diferenciada que ap rimeira. Ao lado do transcendente va-
I ,
.irtístico , Riegl coloca, com efeito, um valor terreno de uso ,
I -l.it.ivo
àscondições materiais de utilização prática dos monumentos.
( onsubstancial aomonumento sem qualificação, segundo Riegl,esse
\ .ilor de uso é igualmente inerente a todos os monumentos históri-
, • IS ,
quer tenham conservado seu papel memorial original e suas
l
unções
antigas, quer tenham recebido novos usos, mesmo
museográficos. A ausência de valor de uso é o critério que distingue
1 1 , I
monumento histórico tanto
as
ruínas arqueológicas, cujo valor é
• ',wncialmente histórico, quanto
a
ruína, cujo interesse reside fun-
.l.unentalrnente na ancianidade. Quanto ao valor artístico, Riegl o
1 1 , -compôe em duas categorias. Um deles, o dito valor artístico
,. -l .rtivo , refere-se à parte das obras artísticas antigas que conti-
IIIIOU
acessível à sensibilidade moderna. O outro, chamado de va-
1 1 de novidade (Neuheitswert), diz respeito à aparência fresca e
n.t.icta dessas obras. Ela deriva de uma atitude milenar, que atri-
1 ,
i ao novo uma incontestável superioridade sobre o velho (...).
/\()s olhos da multidão, só o que é novo e intacto é belo I09. Esse
11 1'). Ou antes a seu desejo de arte (Kunstwollen). Sobre esse conceito, ver P.
Philippot, op. cit., nota 105, p. 167.
169
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
valor torna-se ainda mais interessante ao se considerar que, ape :\1
da universalidade que Riegllhe atribui, certamente com razão,
1 ( ·
nunca tinha sido evidenciado, nem claramente apontado antes.
A análise de Riegl revela, pois, as exigências simultâneas .
contraditórias dos valores de que o monumento histórico foi cumu-
lado aolongodos séculos. Com toda a lógica, ovalor de ancianidadc,
último a surgir, exclui o de novidade e ameaça também o valor d .
uso e o histórico. Mas o valor de uso contraria freqüentemente
valor artístico relativo e o histórico. Esses conflitos, já esboçad s
por Boito no domínio da restauração, manifestam-se igualment .
quando se trata da reutilização e, de modo mais geral, do tomba-
mento dos monumentos históricos. Rieglmostra que eles não sã ,
contudo, insolúveis e em verdade dependem de compromisso,
negociáveis em cada caso particular, em função do estado do mo-
numento e do contexto social e cultural em que se insere. A aná-
lise axiológica do historiador vienense funda uma concepção nã
dogmática e relativista do monumento histórico, em harmonia com
o relativismo que ele introduziu nos estudos de história da arte.
Der moderne Denkmalkultus
não traz, contudo, apenas um
instrumento crítico ao administrador e ao restaurador. Avaliand
o peso semântico do monumento histórico, faz dele um problema
da sociedade, ponto central de um questionamento sobre o devir
das sociedades modernas. A instituição a que pertence não per-
mite a Riegl formulações por demais precisas e explícitas. Ele nã
pode, sobretudo, afirmar que, na sociedade em transição em qu
vive, o valor de ancianidade tende a ocupar o espaço social que era
tradicionalmente ocupado pela religião. Tal é, porém, o sentid
que tem a palavra culto no título de sua obra.
Por que as aparências enganadoras estéticas do valor d
ancianidade' '? Por que esse extraordinário e crescente fervor em
torno dos monumentos antigos? Para o leitor atual, Riegl'
1 1
parec
antecipar, na mesma escala societal, mas em seu campo memorial
110. Ibid.,
p.
96.
111. F. Choay, Ríegl, Freud et les monuments historiques: pour une approch
sociétale de Ia préservation [ed. orig. p. 228], World Art, Acts of the XXV
International Congress of the History of Art, ed. por I. Lavin, v. III, Th
Pennsylvania State University Press, 1989.
170
A CONSAGRAÇÁO DO MONUMENTO HISTÓRICO
«specífico, as análises de O mal-estar na civilização, o pequeno
liv ro
escrito vinte anos depois por seu contemporâneo vienense
Sigmund Freud. Riegl com certeza não foi entendido assim na épo-
ca ,
nem mais tarde, aliás. Mas, como se verá adiante, é a partir das
pistas sintomáticas abertas por ele no Moderne Denkmalkultus que
se pode pensar atualmente em patrimônio histórico.
A obra de Boito e, de forma mais ampla, a de Rieglmostram
que na virada do século XIX para o XX a conservação dos monu-
mentos históricos conquistara o status disciplinar que só uma in-
dagação sobre seus conceitos e procedimentos lhe podia conferir.
Essa abordagem crítica completava um balizamento do cam-
po espaço-temporal dos monumentos históricos que, já em fins
da década de 1860, apresentava, ao menos de modo teórico e vir-
tual, quase os mesmos contornos que atualmente. O
campo tipolô-
gic o já incluía a arquitetura menor e a malha urbana. O campo
cronolôgico continuava limitado, a jusante, pela fronteira da indus-
trialização; mas, a montante, seus limites eram continuamente
alargados pelo trabalho dos arqueólogos e paleógrafos. As desce-
hertas de Champollion permitiam situar e dar uma identidade aos
monumentos do Egito, cujo enigma fascinara em vão os antiquários.
Em seguida, foi a vez da Mesopotâmia. O templo de Jerusalém
também deixava o mundo da lenda, entrando no da realidade his-
tórica o mesmo acontecendo com os remanescentes das civiliza-
cões ~roto-helênicas. O campo de difusão tornara:se mundial. Por
um lado - em geral à época da expansão colonial (lndia, lndochina,
América Latina) -, a arqueologia e a etnografia ocidental anexavam
os monumentos de civilizações longínquas que não pertenciam
à
Antigüidade mediterrânea. Por outro, o conceito de monumento
histórico e sua institucionalização estabeleciam-se fora do campo
europeu ou dos territórios sob seu domínio.
Não devemos, no entanto, exagerar no alcance de determi-
nadas idéias e experiências precursoras, mas pontuais, que sur-
giram no período de consagração do monumento histórico: elas
não afetaram profundamente práticas conservadoras que conti-
nuaram mais ou menos idênticas durante cerca de um século, entre
1860e1960.
171
A ALEGORIA DO PA TRIMÔNIO
A CONSAGRAÇÃODO MONUMENTO IIIST6RICO
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Com efeito, até a década de 1960 o trabalho de conserva
dos monumentos históricos visa essencialmente aos grandes di
I
cios religiosos e civis (excluindo-se os do século XIX). Na mai
dos casos, a restauração continua fiel aos princípios de Violl l
I,
Duc, exceto nos casos em que, sob a influência de certos arque«
logos, ela se volta para uma reconstituição cujo modelo a pr átu ,I
do desenho dos arquitetos e dos antiquários já sugerira, des '11
início, para as antigüidades clássicas. O valor de ancianidade
nolll
conquista as multidões com a rapidez imaginada por Riegl.
É
V(I
dade que a grande viagem de passeio democratiza-se na
In glau- i
ra. Aí se cria a primeira agência de turismo, Cook's, que expl
I .
principalmente os sítios Iegendários do Egito, onde, em 19 7,
Pierre Loti 112e queixa da implantação intempestiva de hotéis n;I,'.
vizinhanças das pirâmides e do número excessivo de turistas. M .\
tudo é relativo e trata-se de monumentos históricos excepcionai s.
Na Europa, apesar das campanhas nacionais desenvolvidas de I\
o começo do século por associações privadas, como oTouring Cluh,
na França, e a despeito da criação, pelo Estado italiano, na déca Ia
de
1930,
de uma rede de exploração das obras de arte antiga
11\
um país que fora a terra natal do monumento histórico, o turismo
cultural ainda não recebeu seu nome; ele continua sendo o privi
légio elitista de um meio social limitado, rico e culto, que reún '
aqueles que mais tarde serão chamados os herdeiros'T':'. A mun-
dialização institucional do monumento histórico, tão desejada p I
Ruskin e Morris, praticamente não avança. Embora - notável ex-
ceção - conceito e prática se introduzam no Japão a partir da
década de 1870, no contexto da abertura Meiji às instituições
aos valores da Europa 114, eles só adquirem direito de cidadan ia
nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, com a
criação do National Trust for Historic Preservation >.
112. P. Loti, La Mort de Philae, Paris, Calmann-Lévy, 1909, reed. Paris, Pardes,
1990.
113. P. Bourdieu e J.-c. Passeron, Les Hé ri t iers , Paris, Minui t, 1964.
114. Ver nota 4, p. 62.
115. Organização privada fundada em 1949 seguindo o modelo do National Trust
britânico.
172
Só em 1931 se realiza a primeira conferência internacional
11 1.11va aos monumentos históricos, em Atenas. Dois anos antes
,111\Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM),
'1'11', na mesma cidade, elaborou a célebre Carta de Atenas, ela
11 11nsejo a que se levantasse a questão das relações entre os
1IIIIIH1mentosantigos e a cidade, e que se desenvolvessem a esse
di d ,. d Sl16
uxpcito idéias e propostas iscor antes, porem mais avança a
'111('s da Carta. Mas essas concepções inovadoras acabaram pou-
111difundidas. Foram formuladas à margem do congresso, que,
, 111princípio, deveria tratar dos problemas técnicos da conserva-
1.11) da restauração e cujos participantes eram todos europeus.
(,liI:mtoà organização reclamada por Ruskin em seu artigo de 1854
llhre o Crystal Palace, foi criada sob outra forma, exatamente cem
.1I10Smais tarde, em 19 de dezembro de 1954, com a Convenção
( 'ultural Européia do Conselho da Europa.
Enfim a crítica e o relativismo de Riegl estão longe de orien-
I:11's
práticas
do patrimônio histórico e principalmente sua peda-
)·.llgia,de que constituiriam a base.
Na afirmação serena de suas convicções intelectuais e de sua
visão da história universal, assim como na magnitude de suas rea-
lrzaçôes, o longo período de consagração do monumento histórico
Iontinha apenas em germe as orientações e os questionamentos
'Ille caracterizam o período atual.
1 16 .
Essa conferência, dita de Atenas, foi organizada pela Comissão Internacional
para a Cooperação Intelectual da SDN, com a cooperação do Conselho Inter-
nacional dos Museus (ICOM). Suas atas foram publicadas em 1933. Nelas se
destacam, especialmente, três comunicações notáveis, de V Horta, G.
Giovannoni e G. Nicodemi.
173
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Capítulo V
A INVENÇÃO DO
PATRIMÔNIO URBANO
Haussmann, que em sua época teve tantos inimigos corno
.iinda hoje os tem, refutava a acusação de vandalismo que lhe diri-
giam alguns amantes da velha Paris: Mas, boa gente, que do fundo
de suas bibliotecas parece nada ter visto [do estado de insalubri-
clade
da antiga Paris e da metamorfose que se fez], cite pelo menos
um monumento antigo digno de interesse, um edifício precioso para
:larte, curioso por suas lembranças, que minha administração tenha
destruido, ou de que ela se tenha ocupado senão para desobstruí-
1 0 e dar-lhe o maior valor e a mais bela perspectiva possível: .
O barão tinha boa-fé e a ele devemos efetivamente a conservação
de numerosos edifícios que, corno Saint-Cermain-l'Auxerrois, es-
tavam fadados à demolição. Nesse sentido, esse burguês esclare-
cido era bem o contemporâneo de Mérimée, com quem, aliás, ele
se encontrava no palácio do imperador.
Destruiu, contudo, em nome da higiene, do trânsito e até da
estética, partes inteiras da malha urbana de Paris. Mas também
aí ele era homem de seu tempo: a maioria daqueles que
à
época
defendiam, na França, os monumentos do passado com a maior
convicção e energia concordavam também sobre a necessidade
de urna modernização radical das cidades antigas e de sua malha
urbana. Assim, Guilhermy publica, em 1855, um Itinéraire
1. Mémoires, t.
IlI, Paris, 1893, p. 28.
175
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A INVENÇÂO DO IwrRIMôNIO URHANO
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archéologique de Paris, no qual faz um inventário minucioso de
todos os monumentos individuais que considera ameaçados pelos
novos tempos, sem se preocupar minimamente com os conjuntos
e a malha urbana em si. Théophile Gautier, que no mesmo ano
prefacia o livro de E. Fournier sobre a velha Paris, não pode s
impedir de saudar o desaparecimento dessa Paris demolida corno
um progresso: A Paris moderna seria impossível na Paris de ou-
trora
C . . .
A civilização abre largas avenidas no negro labirinto das
ruelas, das encruzilhadas, das ruas sem saída da cidade velha; ela
derruba as casas corno o pioneiro da América derrubava as árvores
( ... ). As muralhas apodreci das desmoronam para fazer surgir d
seus escombros habitações dignas do homem, nas quais a saúd
entra com o ar e o pensamento sereno com a luz do Sol . Para
Haussrnann, assim como para Gautier e para o conjunto das boa
almas francesas da época, a cidade não existe corno objeto patri-
monial autônomo. Os velhos quarteirões, ele só os vê corno obstá-
culos à salubridade, ao trânsito, à contemplação dos monumento
do passado, que é preciso desobstruir.
O próprio Victor Hugo, o poeta da Paris medieval, que es-
carneceu cruelmente dos largos espaços haussmannianos e da
monotonia das novas avenidas da capital, nunca critica em seus
artigos ou em suas intervenções na Comissão dos Monumentos
Históricos a transformação geral da malha das velhas cidade .
Corno o colega Montalembert, ele se limita, se for o caso, a pr -
por algum desvio das vias projetadas, a fim de poupar não a conti-
nuidade do conjunto urbano, mas de um monumento: Assim, en
Dinan, numa cidadezinha da Bretanha onde talvez não passem vin-
te veículos por dia, para alargar urna rua das menos movimentada, ,
não destruíram a bela fachada do asilo e de sua igreja, um d :-.
monumentos mais curiosos dessa região? ( ... ) Em Dijon, a Igr j , 1
Saint-Jean foi mutilada de forma vergonhosa: eliminaram nada
menos que o coro, corno o galho de urna árvore inútil, e urna par'
de que une os dois transeptos separa a nave da rua por onde pas
sam os veículos. Só se age assim com os monumentos público ('
sobretudo os religiosos - a situação seria muito diferente se st:
tratasse de interesses privados. O fato de que as casas vizinhas atra
palham tanto ou mais a via pública é um mal que se tolera ( ...
176
1 ':11 1 Paris, aprovamos de todo o coração as novas ruas da Cité,
III;IS sem admitir a necessidade absoluta de destruir o que restava
(hs antigas igrejas de Saint-Landry e de Saint-Píerre-aux-Boeufs,
( ujos nomes se relacionam aos primeiros dias da história da capi-
t . il ;
e se o prolongamento da rua Racine chegasse um pouco mais à
di rcita ou à esquerda, de modo que não resultasse numa linha
.rhsoiutamente reta do Odéon à rua La Harpe, parece-nos que
( (Instituiria urna compensação suficiente a conservação da precio-
' I
igreja de São
Cosme,
que, apesar de conspurcada por seu uso
moderno, nem por isso deixa de ser a única com sua idade e seu
1.\1
ilo em Paris' .
Balzac sintetiza bem um sentimento implícito na França em
'0 11 ;1 época quando descreve a sobrevivência de Guérande corno
11111 anacronismo e quando prevê que as cidades antigas, condena-
t ;IS pela his tória, só serão conservadas na iconografia l iterár ia :'.
N;IO
se pode negar que a maioria dos românticos franceses se
11 ;111 matizou com a atuação dos alargadores' e viu com nostalgia
(I
I
k-saparecimento das cidades antigas de que celebravam o encan-
I(I (' a beleza. Em compensação - e isto para a história das menta-
ln lad es é um ponto essencial-, não há dúvidas de que para eles,
II(I vaso, não se tratava de um patrimônio específico, que pudesse
',I 'I
conservado da mesma forma que um monumento histórico.
Por razões que se prendem a tradições culturais profundas,
( ',',;1 atitude devia se manter por muito tempo na França, onde na
vvr dade ainda não desapareceu. Contudo, a noção de patrimônio
1111 ); \110 histórico, acompanhada de um projeto de conservação,
n.r:ieu
na própria época de Haussmann, mas, corno já vimos, na
( .1 .i-Bretanha, sob a pena de Ruskin. Em seguida, ela conheceu
11111;1
evolução e um desenvolvimento difíceis, cujas modalidades
11 I ' rccern ser analisadas.
Por que essa distância de quatrocentos anos entre a invenção
, 1
monumento histórico e a da cidade histórica? Por que esta última
I,
1'1'
que esperar tanto tempo para ser pensada corno um objeto de
Montalernberr, Du vandalisme et du caiholicisme dans l art, op. c it., supra,
.215-6.
( 1 .
cap o
IV ;
nota 22.
Montalarnbert, ibid., p. 216.
177
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
A I 'VENÇÁO DO PATRIMÓNIO URIlAIO
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conservação por inteiro, e não redutível à soma de seus monum
li
tos? Numerosos fatores contribuíram para retardar de uma só v 7..1
objetivação e a inserção do espaço urbano numa perspectiva histói
i
ca: de um lado, sua escala, sua complexidade, a longa duração h ,
uma mentalidade que identificava a cidade a um nome, a uma comiI
nidade, a uma genealogia, a uma história de certo modo pessoal,
mn:
que era indiferente aoseu espaço; de outro, a ausência, antes do iní i 1
do século
XIX,
de cadastros e documentos cartográficos confiáveis',
a dificuldade de descobrir arquivos relativos aos modos de produ
ção e às transformações do espaço urbano ao longo do tempo.
Até o século
XIX,
inclusive, as monografias eruditas que d s
crevem as cidades só falam de seu espaço por intermédio dos m
numentos, símbolos cuja importância varia segundo os autores .
os séculos. Quanto aos estudos históricos, até a segunda metad '
do século
XIX,
eles se preocuparam com a cidade do ponto de vista
de suas instituições jurídicas, políticas e religiosas, de suas estru-
turas econômicas e sociais; o espaço é o grande ausente. Fustel d
Coulanges trata da
Cidade antiga (1864)
sem jamais evocar os
lugares e os edifícios inseparáveis das instituições jurídicas e religio-
sas na Grécia e em Roma.
H.
Pirenne não é mais eloqüente em
Les Villes du Moyen Age (1939),
sua obra maior sobre as origen
econômicas do fenômeno urbano no Ocidente. De sua parte, a his-
tória da arquitetura ignora a cidade. Sitte nota, de forma pertinen-
te, em
1889:
Nem mesmo nossa história da arte, que trata do
vestígios mais insignificantes, reservou um lugar, mínimo que fos-
se, à construção das cidades: . Entre a Segunda Guerra Mundial
a década de
1980,
ainda se podem contar os historiadores e os his-
toriadores da arte que trabalharam a propósito do espaço urbano .
5. O primeiro cadastro da Europa é o mílanês, no fim do século XVIII. A cartogra-
fia, que conheceu grandes progressos naquele século, é então utilizada essencial-
mente para as fortificações e praças de guerra. É a Haussmann que se deve o
primeiro plano operacional e global de Paris, com curvas de nível.
6. Op.
cít. , i nf ra, p. 90.
7. Raros são os estudos de historiadores da arte como Rom e, P roji le o] a City, 312-
1308, Princeton University Press, 1980, e The Rame af Alexander
VII,
Princeton
University Press, 1985, de R. Krautheimer, ou ainda como o Systême de
l'architecture urbaine: le quartier des Halles à Paris, de F. Boudon, A. Chastel,
H. Couzy e F. Harnon, Paris, Éditions du CNRS, 1977.
178
Iloje, assiste-se, no entanto, a um flores cimento de traba-
Ihll sobre a morfologia das cidades pré-industriais e das aglome-
1I \11'S
da era industrial. Esse movimento foi impulsionado pelos
, ',1 lidos urbanos, de que devemos ressaltar o papel que desempe-
Idl,lr:IITI
na gênese de uma verdadeira história do espaço urbano.
A conversão da cidade material em objeto de conhecimento
111'.1
r ico
foi motivada pela transformação do espaço urbano que
svguiu à revolução industrial: perturbação traumática do me~o
II. tIicional, emergência de outras escalas viárias e parcelares. E,
, /11:10,pelo efeito da diferença e, conforme a expressão de Pugin,
11111
ontraste,
que a cidade antiga se torna objeto de investigação.
( ls
primeiros a considerá-Ia em perspectiva histórica, e a estudá-Ia
. t'l~lIndo os mesmos critérios que as formações urbanas contem-
IH1IJneas, são os fundadores (arquitetos e engenheiros) da nova
tll.'l'iplina
9
,
à qual Cerdá dá o nome de urbanismo. O mesmo au-
1111propõe a primeira história geral e estrutural da cidade ,
Contrapor
as
cidades do passado à cidade do presente não
.\I:nifica, no entanto, querer conservar as primeiras. A história das
II.
li
Itrinas do urbanismo e de suas aplicações concretas não se confun-
,I.·,
de modo algum, com a invenção do patrimônio urbano histórico
•• Ic sua proteção. As duas aventuras são todavia solidárias. Quer o
111anismo se empenhasse em destruir os conjuntos urbanos antigos,
III/('rprocurasse preservá-los, foi justamente tornando-se um obstá-
,I
d o ao livre desdobramento de novas modalidades de organização
d\1 espaço urbano que as formações antigas adquiriram sua identi-
Iud c
conceitual. A noção de patrimônio urbano histórico constituiu-
S No que diz respeito ao papel dos arqueólogos na nova historiografia da cidade,
ver especialmente as publicações da Escola Francesa de Roma, Les Cadastres
anciens dans les villes et leur traitement par l'injormatique, Roma, 1989, n. 120,
c D'une ville
à
l'autre: structures matérielles et organisation de l'espace dans les
oill e s européennes (séculos XII-XVI), Roma, 1989, n. 122.
'I. Em seguida virão os geógrafos, como por exemplo P. Lavedan, que sob o título
discutível de Histoire de l'urbanisme, Paris, Laurens, 1926-1952, escreveu uma
história da organização planificada das cidades a partir da Renascença.
1 (I . Em sua Teoría general de l'urbanizacián, Madri, 1867, traduzida para o francês e
adaptada por A. Lopez de Aberasturi, Paris, Le Seuil, 1985, que pretende fundar
o urbanismo como ciência da cidade e de sua produção. Cerdá mostra como a
evolução das formas urbanas está ligada à dos modos de circulação e de transporte.
179
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
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sena contramão do processo de urbanização dominante. Ela é o resul-
tado de uma dialética da história e da historicidade que se processa
entre três figuras (ou abordagens) sucessivas da cidade antiga. Cha-
marei essasfigurasrespectivamente de memorial, histórica e historial.
A
figura memorial
A primeira figura aparece na Inglaterra, saída da pena de
Ruskin. Já no começo da década de 1860, exatamente na época
em que têm iníci~ as grandes obras de Paris , o poeta de
Pedra s de
Veneza insurge-se e alerta a opinião pública contra as intervenções
que lesam a estrutura das cidades antigas, isto é, sua malha. Para
ele, essa textura é a essência da cidade, de que ela faz um objeto.
patrimonial intangível, que deve ser protegido incondicionalmente.
Ruskin é levado a essa tomada de posição pelo valor e pelo
papel que atribui à arquitetura doméstica, constitutiva da malha
urbana. São a contigüidade e a continuidade de suas habitações
modestas,
à
beira de seus canais e de suas ruas, que tornam Veneza,
Florença, Rouen e Oxford ' irredutíveis à soma de seus grandes
edifícios religiosos e civis, de seus palácios e colégios, e fazem
desses conjuntos urbanos entidades específicas.
A cidade antiga considerada como um todo parece, pois, desem-
penhar, no caso, opapel de monumento histórico. Trata-se, porém,
de uma ilusão, e o próprio Ruskin fornece os meios para corrigi-Ia
por comparação. Com efeito, em The Seven Lamps of Architecture,
que trata da arquitetura, e não da cidade, o monumento histórico
funciona
quase como
um autêntico monumento intencional. Por
um lado, ele desempenha imediatamente, no presente, um papel
memorial graças ao valor de reverência de que é investido; por ou-
11. Cf. capo Iv, notas 32 e 34. Em seu folheto sobre o Crystal Palace, Ruskin evoca as
mudanças que aconteceram durante [sua
I
rópria vida nas cidades de Veneza,
Florença, Genebra, Lucerna e sobretudo Rouen: uma cidade de uma qualidade
absolutamente inestimável pela forma como conservou seu caráter medieval em
suas ruas variadas de modo infinito, em que metade das casas existentes e habita-
.das datam dos séculos )(\I e Xvl. Era a última cidade da França onde ainda se
podiam ver
conjuntos
da antiga arquitetura doméstica francesa (grifo nosso).
180
t ro, subsiste a distância que, desde a Renascença, aprendemos a
«stabelecer em relação às antigüidades. Ora, quase como não se
.i p l ica ao caso da cidade antiga, que é um verdadeiro monumento.
Sem chegar a formulá-Ia de modo explícito, Ruskin faz uma
.lcsccberta que nossa época ainda hoje continua a redescobrir. Ao
longo dos séculos e das civilizações, sem que aqueles que a cons-
Iuíam ou nela viviam tivessem intenção ou consciência, a cidade
l
lcsempenhou o papel memorial de monumento: objeto parado-
xalmente não elevado a esse fim, e que, como todas as aldeias anti-
f~ :1S e todos os estabelecimentos coletivos tradicionais do mundo,
possuía, em um grau mais ou menos restrito, o duplo e maravilho-
\0 poder de enraizar seus habitantes no espaço e no tempol/.
Essa descoberta insigne, Ruskin não chega a colocá-Ia numa
perspectiva histórica. Para ele, é sacrilégio tocar nas cidades da era
pré-industrial; nós devemos continuar a habitá-Ias, e habitá-Ias
lorno no passado. Elas são as garantias de nossa identidade, pes-
soal, local, nacional, humana. Ele se recusa a compactuar com a
Iransformação do espaço urbano que está em vias de se realizar,
11:10
admite que ela seja uma exigência da transformação da socie-
.lade ocidental e que essa sociedade técnica persiga de um projeto
inscrito em seu passado. Querendo viver a cidade histórica no pre-
xcn te, Ruskin na verdade a encerra no passado e perde de vista a
, idade historial, a que está engajada no devir da historicidade.
Cegueira? Seria antes moralismo impenitente e apaixonado,
que leva a dificuldades insolúveis. Ele se encontra, à própria reve-
1 1 : 1 , num mundo de duas velocidades e dois tipos de cidades. Aque-
I. IS que ele ama e cita com mais freqüência, em geral quase intactas
de dimensões reduzidas, mantêm-se próprias ao exercício da
I '. Sobre esses poderes do espaço, reportemo-nos especialmente a C. Lév i-Str a u ss ,
Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, capo VII e VIII, e a P. Bourdieu e
1\.
Sayad,
Le Déracinement,
Paris, Éditions de Minuit, 1964, no que se refere aos
estabelecimentos não urbanos; H. Coing, de sua parte, Rénovation urbaine et
cliangcment social, Paris, Éditions ouvr ieres, 1967, contrapõe o funcionamento
dos espaços urbanos pré-industriais e atuais. Quando falo do papel mernorial,
não intencional, das cidades antigas, é evidente que excluo os casos excepcionais
em que uma cidade é construída de forma monolítica para celebrizar um indiví-
duo (de Bagdá a Karlsruhe). Além disso, não se deve confundir a noção de com-
posição urbana (obra de arte) com a de monumento.
181
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
A INVEN ÇÃ O DO PATRIMÓNIO URBANO
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memória e da reverência, sem que de resto sejam especificadas '
discriminadas as condições respectivas daqueles que as habitam
dos que apenas passam por elas. As outras, as metrópoles do sécul
XIX, com suas vastas avenidas copiadas dos Charnps-Élysées ,
seus hotéis, seus edifícios de escritórios e seus conjuntos habita-
cionais, parecem-lhe como um fenômeno que não tem lugar nas
tradições e ordem urbanas: seu lugar natural é o novo mundo sem
memória, os Estados Unidos ou a Áustrá l ia ':'.
Em muitos aspectos, especialmente quando prevê a estandar-
dização planetária das grandes cidades, Ruskin revela uma sensi-
bilidade de visionário. A causa que defende, porém, e que con
ele e depois dele William Morris haverá de defender, não é, n
sentido próprio, a da conservação de cidade e de conjuntos histó-
ricos. Os dois combatem pela vida e sobrevivência da cidade oci-
dental pré-industrial.
A
figura histórica papel propedêutico
A segunda figura encontra uma expressão privilegiada na ob ra
do arquiteto e historiador vienense Camillo Sit te (1843-1903). A
cidade pré-índustrial aparece então como um objeto pertencent '
ao passado, e a historicidade do processo de urbanização que tran -
forma a cidade contemporânea é assumida em toda a sua exten-
são e positividade. Essa visão é, pois, absolutamente contrária à d '
Ruskin, e também à de Haussmann: a cidade antiga, tornada ob-
soleta pelo devir da sociedade industrial, nem por isso deixa
d
ser reconhecida e constituída em uma figura histórica original,
que requer reflexão.
Em 1889, Sitte desenvolvia estas idéias em uma obra qu :
logo ficou famosa e posteriormente sofreu constantes distorçõ s
em razão de leituras tendenciosas: Der Stãdtebau nach seinen
künstlerischen Grundsãtzen,
traduzido para o francês com o títul
já enganoso de I.;Art de construire les villes [A arte de construir as
13. The Opening of the Crystal Palace, op. cit., § 14, p. 115.
182
1
«Iades] 14. Em nome da doutrina dos CIAM, S. Giedion e Le
( 'orbusier fizeram de Sitte a encarnação do passadismo mais re-
IIúgrado
l5
, o apóstolo da trilha dos burros' , o inimigo declarado
dll urbanismo moderno. Contra a doutrina dos CIAM, havia
quin-
lI ;100So
Stãdtebau
constituía o livro cuja autoridade endossava
I.x los os pastiches e variações diversas sobre o tema da cidade
II·descoberta. As duas apreciações opostas baseiam-se no mesmo
1 ontra-senso que fez do Stãdtebau uma obra dogmática de passa-
distas, quando na verdade ela trata dos problemas da cidade pre-
', Ilte e futura, em relação à qual a cidade velha possui a dignidade
Ik objeto histórico no pleno sentido do termo.
O livro de Sitte origina-se de uma constatação limitada e
precisa: a feiúra da cidade contemporânea ou, antes, sua carência
d \ qualidade estética. Não se trata absolutamente de uma conde-
11:I<.:ãoeral e moral da civilização contemporânea, como no caso
dI' Ruskin. Ao contrário, essa crítica faz-se acompanhar de uma
t
omada de consciência aguda das dimensões técnicas, econômicas
I
sociais da transformação operada pela sociedade industrial e da
u.-cessária
transformação espacial que ela implica. O progresso
II-cnico modela nosso mundo - ele confere ao espaço urbano
1
onstruído
uma extensão e uma escala sem precedentes e lhe
atri-
1\\ Ii novas funções, entre as quais o prazer estético parece não ter
111:lisugar. São, antes de tudo, as dimensões gigantescas assumi-
II:ISpor nossas grandes cidades que rompem, por toda parte, o
lunite das formas artísticas antigas (...); o urbanista, da mesma
lorrna que o arquiteto, deve elaborar uma escala de intervenção
I I.
Viena, Graeser. A primeira tradução para o francês se deve a Camille Martin,
Genebra, 1902. Apesar de imprecisa e truncada, ela consagrou o título que
D.
Wieczorek haveria de retomar em sua nova e excelente tradução comentada,
I:/\rt de bãtir les villes, Paris, r.;Équerre, 1980, relançada em formato de bolso,
Paris, Le Seuil, 1996, à qual remetem nossas citações.
I', (: notório que o Siãdtebau se abra com uma evocação nostálgica do Fórum de Pom-
péia .
Que eu saiba, essa abertura nunca foi comparada ao primeiro parágrafo de
The Lamp of Memory , do qual, ao que me parece , Sitte tomou de empréstimo
11111om poético e confidencial que não volta a aparecer na seqüência de seu livro.
11 1 .
I\.
expressão é de Le Corbusier, que entretanto havia lido e admirado Sitte, antes
de vilipendiá-lo, Cf. P. Turner, The Readings of Le Corbusier, tradução francesa
de P.Choay,
La Formation de Le Corbusier,
Paris, Macula, 1987.
183
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A NV NÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
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adequada à cidade moderna, de vários milhões de habitantes (...).
É necessário aceitar essas transformações como forças dadas, e o ur-
banista deverá levá-Ias em conta, da mesma forma que o arquitet
leva em conta a resistência dos materiais e as leis da estática (...).
Nossos engenheiros realizaram verdadeiros milagres (. ..) para o
bem-estar de todos os cidadãos (...) [mas] a construção e a e xtensã
das cidades tornaram-se questões quase exclusivamente técnicas '.
A constatação de carência feita por Sitte não tem, para ele,
um interesse em si mesmo. Longe de se limitar a uma crítica lastimo-
sa, constitui-se num trampolim para um questionamento. Estariam
as metrópoles contemporâneas condenadas a esse nível zero da
beleza urbana? Pode-se conceber e preparar o advento de uma
arte urbana ajustada ao devir da sociedade industrial? Tais são as
interrogações que determinam a dinâmica do Stadtebau. Elas pas-
sam por uma análise preliminar das disposições espaciais de qu .
as cidades antigas tiram sua beleza, a qual faz de Sitte o criador
da morfologia urbana: a partir do paradigma do lugar público,
valendo-se de diversas plantas fe itas por ele mesmo em dezena
de sítios e de centros antigos, descreve e explica como, desde a
cidade antiga até a barroca, diferentes configurações do espaç
não cessaram de irradiar uma beleza que os lugares contemporâ-
neos nunca logram oferecer.
O interesse dessas análises não é, contudo, apenas histórico.
A cidade antiga pode também nos dar lições (o termo ensina-
mente é muito recorrente no Stãdtebau]. Ao contrário de uma
abordagem que em geral se atribui a Sitte, ou que se justifica com
base em sua autoridade, não se trataria de copiar ou de reproduzir
essas configurações que correspondem a condições sociais desa-
parecidas e hoje desprovidas de sentido . A solução da antinomia
entre presente e passado, historial e histórico, é todavia possível,
desde que se recorra a um tratamento racional e sistemático da
análise morfológica: Não temos outro meio para combater a insi-
diosa doença da inflexível regularidade geométrica, senão o antído-
to de uma
teoria racional.
É a única saída que nos resta para
17.
Op. cit., p.
112-3, 117, 2.
18. Nem a vida moderna nem as nossas técnicas de construção permitem uma imi-
tação fiel dos aglomerados urbanos antigos ,
ibid .,
p. 119. Cf. também p. 175.
184
reconquistar a liberdade de concepção dos mestres antigos e utili-
·/.M - mas com plena consciência - os procedimentos que orien-
t.irarn os criadores, sem que disso tivessem consciência, nas épocas
e-m que a prática artística ainda era uma tradição . Sob a diversi-
dade das configurações espaciais, portadoras em todas as épocas,
antiga, medieval, barroca, de efeitos estéticos próprios, buscar-se-
:10
regras ou princípios constantes ao longo do tempo. Sabe-se que
e- sse s
princípios- [Gründsâtze] (palavra-chave do Stãdtebau, acom-
panhada ou não do qualificativo artístico [künstlerisch] e às vezes
substituída por
sistema'?']
consistem em um conjunto de caracte-
rcs formais, comuns aos diferentes exemplos de espaços públicos
antigos, apresentados por Sitte: fechamento, as simetria, diferen-
ciação e articulação dos elementos. Eles são, por sua própria intem-
poralidade, aplicáveis pelo urbanismo do fim do século XIX.
O estudo morfológico das cidades antigas e, portanto, a his-
tó ria
formal de seu espaço constituem um instrumento heuríst ico
i
nigualável para o urbanista. As regras de organização dos cheios e
vazios que foram demonstradas abrem-lhe o caminho de uma es-
tétic a
urbana experimental. O papel pedagógico que essa postura
.n ribui ao estudo da cidade antiga e aos problemas que ela suscita
Il'querem uma aproximação com a propedêutica proposta duas
décadas antes por Viollet-le-Duc em seus Entretiens sur l'architec-
IlIre
22
.
Com efeito, na segunda metade de sua carreira, este foi, a
.-xemplo de Sitte no que diz respeito à arte urbana, obcecado pela
busca de uma arquitetura verdadeiramente contemporânea . Ele
hz um impiedoso discurso de acusação contra o historicismo e o
('l'letismo dos arquitetos de sua época, condena todas as formas
(k cópia ou imitação do passado' e nem por isso deixa de funda-
1< ) Ib íd .
'I) lbid., p. 150-1. Cf. também p. 2,11,120.
, 1. Por exemplo, Systeme cornplet de fermeture des places , ibid., p. 44.
') Paris, More e Co., 1863-1872, 2 v. reed. Bruxelas-Liege, Mardaga, 1977.
, L Parando de se preocupar antes de tudo com a aliança da forma com as necessi-
dades e com os meios de construção (...) [a arquitetura) se fez neogrega, neo-
românica, neogôtica [... J. Ela se sujeitou
à
moda , op.
cit., t.
I,
Dixieme entretien ,
p.
451. De sua parte, Viollet-le-Duc, assim como Sit te, não tem a pretensão de
apresentar modelos para serem seguidos, mas deseja apenas expor princípios ,
ib íd .,
t.
2,
Treizierne entretien , p. 140.
185
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
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mentar sua pesquisa num trabalho histórico. Com efeito, a análi
racional dos grandes sistemas arquitetônicos do passado (greg ,
romano, românico, gótico, etc.) permite descobrir neles ess
princípios imutáveis que continuam verdadeiros ao longo dos
sé -
culos
( 0 0 )
[são] aplicados de maneira diversa por civilizações di-
ferentes'? e ajudar-nos-ão a elaborar um novo sistema a partir
das condições históricas novas, que são as nossas.
Na verdade, o racionalismo comum aViollet-le-Duc e a Sitt
faz parte de um parentesco profundo, mas ignorado pelo conjun-
to dos historiadores- , que liga os dois autores, com uma geraçã
de distância, e permite explicar um pelo outro. As obras Entretien
sur l'architecture e o Stãdtebau - uma pela arquitetura, a outra
pelo urbanismo como arte - propõem-se identicamente procu-
rar os caminhos de uma criação contemporânea que corresponda
às exigências originais de uma civilização avassalada por uma com-
pleta transformação técnica, econômica e social. As duas obras
são organizadas segundo a mesma oposição binária entre um pas-
sado consumado e um presente em gestação, pensam e esboçam
essa ruptura histórica com a mesma dolorosa acuidade e no mes-
24. Entretiens. Simples aveux aux lecteurs , p. 6 e 7. Para formulações idênticas,
cf. também t. 1, p. 99, 324, 391, 432, 447, 456, 458, 476.
25. À primeira vista, tudo parece distanciar os dois autores. Viollet-le-Duc (1814-
1879), a princípio desenhista, é o g rande restaurador dos edifícios religiosos da
Idade Média francesa. Descoberto, formado e apoiado por Mérimée, de quem
recebeu a incumbência dos trabalhos de Vézelay quando tinha 26 anos, é prote-
gido e cumulado de favores pelo poder. Com apenas uma exceção, a cidade d
Carcassonne, ele se interessou essencialmente pela arquitetura e por edifício
individuais, a princípio como restaurador, depois como arquiteto, idealizador d
formas e de edifícios de seu tempo. Sitte, embora também arquiteto, focaliza a
atenção sobre a cidade e sua organização espacial. Constrói pouco, dedica-se
à
pedagogia e sobretudo à história e a o estudo das cidades antigas. EmViena, onde
critica os projetos e realizações de Otto Wagner para o Ring, ele é marginalizado.
Foi só tardiamente, como teórico e autor do Stãdtebau, que, em 1889, adquiriu
uma celebridade súbita, que logo se tornaria internacional. Não é, pois, surpre-
endente que a literatura crítica pouco se tenha preocupado em aproximar Víollet-
le-Duc e Sitte. Constitui uma exceção, porém, um breve e notável artigo de D.
Wieczorek : Sitte et Viollet-le-Duc, jalons pour une recherche , Austriaca, 12,
1981, cuja abordagem, diferente da nossa, concentra-se na abordagem meto-
dológica e epistemológica dos dois autores. Não obstante, o autor desenvolv
uma parte dos pontos de nossa argumentação.
186
1110 horizonte urbano. Viollet-le-Duc não ficou confinado ao cam-
po da arquitetura. Na medida em que nunca a dissocia do seu
contexto mental, social e técnico, a cidade não pode ser estranha
:1
suas preocupações. Ele também aaborda segundo uma perspec-
tiva morfológica, e encontram-se até, no grosso volume dos Entre-
I iens, sucessivas análises que, em uma vintena de páginas, evocam a
maioria dos ternas- desenvolvidos no Stàdtebau vinte anos de-
pois, tornando ainda mais fecunda a confrontação dos dois textos.
Antes de voltar ao problema urbano, é preciso desde já regis-
trar que esse racionalismo histórico não é isento de dificuldades
teóricas e coloca os dois autores diante de uma nova antinomia -
a da arte e da razão. Com efeito, eles reconhecem que a criação
artística deriva do que, na falta de um termo mais apropriado,
ambos chamam de instinto'], Seu livre desenvolvimento caracte-
rizava um estado de sociedade cujo modelo é dado pelo da cidade
grega.
É
esse instinto ou desejo de arte, sufocado e talvez perdido
por nossa sociedade técnica, que a análise racional pretende subs-
tituir. Mas como pode a permanente consciência de si, inerente à
nossa época e à nossa civilização, pretender substituir a inocência
26. Especialmente:
1. Beleza das cidades antigas e paradigma da cidade antiga: para Viollet-le-Duc,
assim como para Sitte, a o rganização da ágora e do fórum oferece uma quali-
dade estética sem equivalentes nos tempos modernos. Na Idade Média, ape-
nas as cidades italianas puderam rivalizar com esses exemplos.
2. Traços rnorfológicos das cidades antigas: mise en scêne dos monumentos, fe-
chamento e simetria dos espaços.
3. Erro moderno da retirada dos centros antigos.
4. Feiúra da cidade moderna, cujos traços são o inverso dos da antiga: grandes
unidades e blocos habitacionais, regularidade, simetria, estandardização que
geram a monotonia.
5. Razões históricas: advento de uma cultura diferente.
6. Razões técnicas: papel negativo da prancha de desenho.
Devemos nos reportar principalmente aos Entretiens de números 7, 8 e 13.
A semelhança de formulação é impressionante.
27. Víollet-le-Duc, op. cit., t. 1, Prernier entretien , p. 17: ''A arte é um instinto,
uma necessidade do espí rito que emprega, para se fazer compreender, diversas
formas, mas existe apenas a ARTE, assim como existe apenas a RAZÃO , e p. 28:
O instinto mais delicado no homem talvez seja o da arte , Sitte, op. cit., p. 23
(na qual se trata do Kunsttrieb).
187
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
A
INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBAI\'O
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artística que elas perderam? A questão torna-se ainda mais perti
nente ao se considerar que as análises hegelianas da bela totalida
de helênica não são estranhas nem a Viollet-le-Duc, nem a Sitt
e que este último retomou as teorias de Fiedler sobre a especifi-
cidade da criação artística e sobre o fato de que a história da arte
não poderia vir em sua ajuda- .
Não deve causar estranheza, pois, que Sitte reconheça
artificialismo das estruturas urbanas construídas segundo as r -
gras e os princípios depreendidos da análise racional das formas
históricas. Ele confessa: Pode-se deliberada mente imaginar e cons-
truir no papel formas que os acasos da história produziram a
longo dos séculos? Seria realmente possível recorrer a essa ino-
cência dissimulada, a esse natural artificial? Certamente não. A
serenas alegrias da infância são negadas a uma época que não cons-
trói mais de forma espontânea'<''. Viollet-le-Duc não é menos
sensível ao caráter aleatório do método que preconiza. Ele não
exclui completamente a hipótese de um desaparecimento da arte
arquitetônica e não tem nenhuma ilusão quanto aos efeitos ini-
bidores da consciência de si e do peso da memória histórica que
ela carrega.
Apesar da lucidez dos dois autores, ambos recusam-se a aban-
donar toda a esperança no sucesso de seu método heurístico. O
pessimismo de determinadas passagens não os impede de procu-
rar outras saídas para sua postura racional e de agir como se ela
pudesse trazer um novo hausto ao espírito. Nem um nem outro
renunciam a seu projeto . Mas, diferentemente de Sitte, Viollet-
le-Duc orienta-se em direção a uma solução que o instala mais
solidamente na grande subversão da era industrial. Após ter aber-
to para si uma estrada real entre os sedimentos da memória histó-
rica, ele envereda, quase sub-repticiamente, pelo caminho estreito,
escarpado e árduo do esquecimento. A descoberta da arquitetu-
28. Cf. D. Wieczorek, Camillo Siue et les débuts de l'urbanisme moderne, Bruxelas,
Mardaga, 1981.
29. Op. cit., p. 119.
30. Entretiens, t. I, Huitieme entretien , p. 324. Não, a decadência não é fatal-
mente inevitável (...) , e Stadtebau: Não é preciso renunciar (.. .) , p. 119.
188
1.1 do futuro ?' passa por esse duplo encaminhamento: o raciona-
1'~II lO
histórico que mostra com clareza a sucessão dos sistemas
.u qnitetônicos exige em seguida o esquecimento de suas particu-
1:11 idades, e talvez ainda mais. Tal é o itinerário, feito em pontilha-
(10
no fim do terceiro Entretien . A passagem surpreendente
( 1 ;
que Viollet-le-Duc faz o pesado inventário das realizações da
memória histórica termina com uma apologia do esquecimento:
I \.
todos aqueles que nos dizem hoje 'Tomem uma arte nova que
~('jJ de nosso tempo', nós respondemos 'Façam que esqueçamos
.-sse enorme acúmulo de conhecimento e de crítica; dêem-nos
nistituições monolíticas, costumes e gostos que não se liguem ao
passado (...) . Façam que possamos esquecer tudo o que foi feito
.intes de nós. Teremos, então, uma arte nova e faremos o que ja-
mais se viu; porque se para o homem é difícil aprender, é muito
mais difícil esquecer '32. A verdade desse pessimismo se revela
numa nota do oitavo Entretien sobre Les Halles Centrales,
construfdos por Baltard, em Paris. Pois é justamente o efeito be-
nigno de um tal esquecimento das referências aceitas, dos esque-
mas históricos consagrados, das abordagens teóricas transmitidas
por uma tradição secular que Viollet-le-Duc crê vislumbrar nesse
edifício, cuja vigorosa beleza ele contrapõe à insipidez das produ-
cões acadêrnicas+'. Para Baltard, obrigado a inovar sob a pressão
~ombinada de Napoleão III e Haussmann , tratava-se apenas de
um esquecimento circunstancial e não metódico. Nem por isso
ele deixa de ilustrar o papel estético que essa prática teria, se
assumida de forma deliberada. A concepção de uma tal prope-
dêutica, igualmente aplicável ao urbanismo, marca uma etapa na
teorização das disciplinas do espaço. Articulada a um racionalismo
histórico que constitui sua condição prévia e necessária, ela não
31. Em harmonia com os valores da era industrial, op. cit., t. 11. Quinzieme entretíen ,
p.213
32 Ib íd., t. I.
33. Ibid., t. I, Huitierne entretien , p. 323.
34. Op. c it., t. III. Baltard apresenta dois pro je tos convencionais de mercado a ser
cons truído com pedra, mas depois é obrigado a aceitar o
croqui
de Napoleão III,
que exige simples guarda-chuvas de metal, p. 479 e ss.
189
A ALEGORIA 00 PATRIMÔNIO
A [r-. VE NÇ ÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
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deve ser confundida com um aistoricismo, preconizado pelos CIAM
e pelos arquitetos do movimento moderno. Estes negam a utilidad
da história das formas e crêem em começos absolutos. A proposta
de Viollet-le-Duc conserva à historiografia um papel fundador,
mas desmistificado e libertado de todo dogmatismo. Além disso,
ela permite não mais dissociar o problema da beleza, em arquite-
tura, das questões colocadas pela solidez e pela comodídade .
Que repercussão tiveram essas idéias na concepção que Viollet-
le-Duc tinha da cidade do futuro? A resposta é provavelmente
dada pela rapidez com a qual trata do tema que ocupa toda a obra
de Sitte: para ele, a mutação que a arquitetura ainda está por so-
frer já aconteceu com a cidade. Instaurou-se um novo espaço, cuja
escala, incompatível com a dos conjuntos antigos, não apenas im-
pede que sobrevivam, mas bane deles a arte, tal como se ela mani-
festou no curso da história urbana. Viollet-Ie-Duc não considera o.
surgimento de uma arte em outra escala, como o imaginava na
mesma época outro teórico do esquecimento estético, Emerson. .
Ele também não prevê a conservação das cidades antigas, mas ain-
da assim cabe incluí-lo neste capítulo. Os Entretiens ajudam não
35. F. Choay, Le regola e il modelo, sobre o papel da história da arquitetura em De
re cedificatoria; a terceira parte desta obra, relativa às regras da beleza, funda-
menta-se na história da arquitetura. Depois de Albertí, todos os tratadistas até
o século XIX retomaram essa abordagem destinada a atenuar a exclusão da tra-
dição num domínio que não se encontra no âmbito da análise racional. Viollet-le-
Duc havia lido Albertí. Pode-se pensar que, sem ter consciência disso, ele desen-
volve, como seu esquecimento sistemático , uma estética muito próxima da
que está subentendida na segunda parte do tratado De re cedificatoria. Sobre o
papel atribuído à historiografia na obra dos historiadores do movimento moder-
no, cf
P .
Tournikiotis, Historiographie du mouvement moderne, tese de doutora-
do, Universidade de Paris VIII, 1988, inédita.
36. Beauty wil l not come at the call of a legislature, nor will it repeat in England or
Arnerica its history in Greece. It w il l come, as always, unannounced, and spring
up between the feet of brave and earnest men. It is in vain that we look for
genius to reiterate its miracles in the old arts; it is its instinct to fin d beauty and
holiness in new and necessary facts, in the [ie lds and roadside, in the shop anel
mill. Proceeding [rom a religious heart it unll raise toa divine use the railroad, lhe
insurance office, the
join t.stoc lc
company; our law, our primary assemblies,
01,11
commerce, the galvanic battery, lhe electric jar, the prism, and the chemist's retort;
in which we seek now only an e cono m ic a l. use , R. W Emerson, Complete Work.l',
Collected Essays, t. lI, XII, p. 342 (grifo nosso).
190
apenas a compreender melhor a obra de Sitte. Por um lado, am-
pliam ao limite extremo a noção de cidade histórica, por outro,
sugerem uma propedêutica do esquecimento: assim Viollet-le-Duc
trouxe aportes que tiveram papel decisivo na construção da ter-
ceira figura da cidade antiga.
Sitte, por sua vez, ficou na incerteza. Nenhum dos espaços
urbanos concebidos segundo os princípios do Stãdtebau poderia,
:1
seus olhos, encontrar na cidade moderna algo mais do que a hos-
pitalidade pontual e precária que convém ao seu status simbólico
de dentilhões.
Do Stãdiebau fica uma única certeza com relação às cidades
do passado: seu papel acabou, sua beleza plástica permanece.
Conservar os conjuntos urbanos antigos como se conservam os
objetos de museu parece, pois, inscrever-se na lógica das análises
do Stãdtebau. Contudo, Sitte não militou pela preservação dos
centros antigos. Ele só manifesta a preocupação de salvar, se ain-
(Ia houver tempo, nossas velhas cidades da destruição que as amea-
< , : a cada vez mais 37 em duas ocasiões, de forma rápida, ao longo
de seu livro, que trata de problemas de outra natureza.
Outros que não ele desenvolveram a filosofia conservadora
implícita em seu trabalho histórico e crítico, atribuindo, assim,
11 ma função museal à cidade antiga.
A
figura histórica papel museal
A cidade antiga, como figura museal, ameaçada de desapare-
\ irnento, é concebida como um objeto raro, frágil, precioso para a
.rrte e para a história e que, como as obras conservadas nos mu-
cus, deve ser colocada fora do circuito da vida. Tornando-se
li istórica, ela perde sua historicidade.
Essa concepção de cidade histórica fora preparada por gera-
l,ocs de viajantes, cientistas ou estetas. Os arqueólogos, que des-
Iobriam as cidades mortas da Antigüidade, assim como os autores
li.
Op.
cit.,
p.
4.
191
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
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de guias e de
ciceroni,
que dividiam o mundo da arte européia '111
fatias urbanas, contribuíram para que se pudesse pensar na mUS('1
ficação da cidade antiga.
Essa palavra ruim não deixa de ser ambígua. A cidade corno
entidade assimilável a um objeto de arte e comparável a uma obr.i
de museu não deve ser confundida com a cidade-museu, cont
I 1
do obras de arte. A noção de cidade como obra de arte , nasci
1 : \
na virada do século, é vagademais para englobar as duas acepçõ s
Ela é, porém, no mais das vezes, caracterizada pela qualidade .
pelo número de tesouros de arte, monumentos históricos COI1\
seu cenário pintado e esculpido, museus e coleções que ela, à ma
neira de um imenso museu a céu aberto, encerra. Por isso, a noçã
de cidade como obra de arte é aplicável a categorias heterogêneas
de cidades, capitais e de interior, gigantes e minúsculas, transbor-
dantes de vida ou adormecidas, e muitas vezes sem que a própria.
configuração desse continente seja levada em consideração.
A cidade, o centro ou bairro urbano museais, tais como a aná-
lise de Sitte nos aponta, impõem-se, ao contrário, por si mesmos,
como totalidades singulares, independentemente de seus compo-
nentes. Paradigma: a grande praça de Bruxelas é salvada haussman-
nização da cidade e preservada graças a seu burgomestre, Charles
Bu ls' ,
fervoroso admirador de Sitte. A propósito, Buls não se li-
mita a conservar, ele restaura a praça histórica e reconstitui as
partes que faltam . A abordagem tem um sentido contrário ao da
conservação reverencial de Ruskin. O historicismo de Viollet-le-
Duc marca a conservação museal da grande praça da mesma for-
ma que haverá de inspirar a de numerosos centros ou fragmentos
urbanos antigos na Europa ocidental.
A metáfora do objeto museal continua, porém, sendo apro-
ximativa. As cidades antigas não podem ser colocadas numa
38. Cf. Città d'arte, Atti dell'incontro di studio La cit tà d 'arte: signijicato, ruolo,
prospettiue in Europa (Florença, 1986), Florença, Giunti Barbera, 1988.
39. Op. cit., p. 4. V. Franchetti Pardo, Introduzione .
40. Autor de EEsthéiique des villes, Bruxelas, Buylant-Christophe, 1893, e da La
conservation do coeur des anciennes villes , Tekne, n. 64-6 , Bruxelas, 1912.
41. Ver M. Smets , Charles Buls, Liêge, Mardaga, 1995.
192
I ig. 1. O teatro de Marcellus, em Roma, por volta de 1880. Desde a Idade Média, é fechado e ocupado
por famílias fidalgas e por artesãos. [p. 36J
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Fig.2.
O homem da Idade Média nunca considera o passado como morto, e é
por isso que ele dificilmente o vê como conhecimento (Philippe Ariês). Ele
bloqueia e invade sem hesitação os grandes monumentos antigos, tais como o
anfiteatro de Nimes, desobstruído somente em meados do século XIX.
Em contrapartida, J. Pineton, em sua ode de 1560 a P. d'Albenas:
Muitas vezes me dirijo
Para espairecer
Ao imponente anfiteatro
(
...
)
A bela cidade, digo eu
Não a que se vê agora
Mas a que se viu outrora
Cujas relíquias, ainda,
Torres e os velhos fragmentos
Dos muros magníficos
Constituem um testemunho
Da grandeza dos antigos.
[Trad. livre
1
. 1 : .
3. As torres de defesa, erguidas desde o s éculo XI pelos romanos, não poupam os monumentos
.,,,'igos, como o arco de Sétimo Severo, gravado por Ou Pérac em 1575. [p. 36J
I,,:
.t
São Pedra, de Roma: vista simultânea da basílica constantiniana sendo demolida e do novo
uuuúrio em construção, por Marten van Heemskerck entre 1534 e 1536. [p. 27J
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Fig.5.
Em seu livro de anti-
güidades dedicado a Fran-
cisco I (1540), Serlio dá duas
imagens das maravilhosas
construções dos egípcios :
da Esfinge (à esquerda) e da
pirâmide a sete milhas do
Cairo , que alimentaram a
imaginação dos antiquários
e dos arquitetos até o século
XVIII. [p.
671
· S • • ~•
Fig.
6. Ele fica no centro da cida-
de. Entra-se nele p or um cabaré para
o qual esseedifício serve de jardim ,
diz Claude Perrault, que, na ocasião
de sua
Voyage à Bordeeux,
descre-
veu e traçou plantas do palácio de
Tutele , grandioso monumento ro-
mano, demolido em 1677 por or-
dem de Luís XIV para ampliar o
Château Trompette. [p. 15J
Planrlll V
A
\
\
\ '
.:
,
\ J ~
'
•
. .
,
I
~ -~
Fig.
7. Estudo da língua do picanço, prancha tirada de Esseis de physique ou recuei de plusieurs
treitez touchant les choses neusrelles,
Paris, J . B. Coignard,
1688,
por Claude
Perrault.
O estudo
morfológico dos monumentos e o dos animais avançaram
pari passu,
muitas vezes empreendidos
pelos mesmos estudiosos. lp, 2291
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.
Fig . 8. Foram necessários mais de trêsséculos para obter-dos viajantes uma representação realista do
Partenon, Cópia anônima da primeira imagem desse templo feita por Ciriaco d' Ancona (1444), rea-
lizada com base nos autores antigos, e não em sua própria experiência. [p. 82, nota 69]
l/I:. 9. lacob Spon visita o Partenon em 1676. Nem por isso ele deixa de oferecer uma imagem
.I trata e simbólica, que será reproduzida pela maioria dos catálogos de antigüidades, inclusive o
0 1, · Montfaucon. [p. 82, nota 691
I/ :. W. Com sua segunda edição de Les Ruines des plus beaux monuments de Ia Gtêce 1770),
lulir-n Davicl Le Roy integra a imagem do Partenon numa concepção histórica e científica da arqui-
1<'1i ra. [p. 831
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Fig. 17. As representações feitas por J . Stuart e N. Revett são feitas de forma mais científica, ma,
dentro de um espírito menos moderno que as de Le Roy. Suas vistas da Acrópole encontram-se no
l. 2 de Antiquities of Athens (1789 ). [p. 83J
Fig. 72. A reconstituição do Partenon feita por 5tuart e Revett trai seu objetivo: uma tipologia intempora
das ordens gregas como modelos para o neoclassicismo. [p. 83J
~~n
11 1 :
13. As 123 gravuras da coluna de Trajano, dedicadas por P. S. Bartoli a Luís XIV em 1673,
, oustituíarn um documento excepcional sobre a vida dos romanos e, segundo Winckelmann, uma
iniciação ao antigo . [p. 65]
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Fig. 74. O senhor Viollet-Ie-Duc irá a Vézelay e examinará a praça da Igreja da Madeleine. Ele fará
um balanço do estado do edifício e o levantamento dos consertos necessários. Deverá distinguir os
mais urgentes dos que podem ser adiados sem inconvenientes (Mérimée, 1839). Fachada ocidental
em 1840.
Fi g. 75. Em 1900, o arquiteto americano F.W ebster Smith apresentou ao Congresso o projeto de um
museu nacional de arte e história, sugerindo que se reproduzisse em escala natural um conjunto de
monumentos das principais civilizações antigas. A conveniência dessa Acrópole moderna devia-se
ao fato de que a ciência moderna pode reconstruir os monumentos e os edifícios antigos com uma
exatidão de detalhes muito mais impressionante e instrutiva que os museus europeus, que expõem
nas vitrines objetos heteróc/itos e muitas vezes até fragmentos . [p. 235, nota 371
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Fig.
76. Fachada central da Igreja de
Saint-Ayoul (século XII), em Provins,
antes da restauração. [p. 214]
Fig.
77. A restauração (...) baseia-se
no respeito à matéria antiga e em
documentos autênticos
Carta de
Veneza,
art. 9). A mesma, depois da
reconstrução do tímpano. [p.
214]
I ig.
78. O mercado de Reirns (inaugurado em 1928), tombado por sua estrutura parabólica em casca
de concreto, que se
deve
a Freyssinet. Dado o estado de degradação do concreto e a mediocridade
do exterior do edifício, cabe questionar a legitimidade do tombamento. [p. 209, nota 3]
Fig. 19. Inaugurado em
1914,
tombado em
1975,
o pavilhão do matadouro da Mouche, obra-prima
ele Tony Garnier, abriga atualmente um centro de
convivência
e de espetáculos (na foto, concerto de
Berlioz). [p. 219]
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Fig. 20.
Tal
é
a proposta do
Plan Voisin
de Paris. Tais são os bairros que se planejou destruir, tais são
os que se planejou construir em seu lugar (Le Corbusier,
(Euvres
completes,
1914-1929, Zurique,
Girsberger, p. 110). [p. 194J
ig. 21. Maquete de um projeto de renovação de Albi, de acordo com os mesmos princípios, propos-
'o pelo Departamento de Obras da cidade (1965).
A
INVENÇÃO DO PATRIMÓNIO URBANO
I
cdorna, como Viollet-le-Duc dizia, gracejando, ser o desejo
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Fig. 22. Acesso (reconstruído) da Basílica de Saint-Denis: Os sítios onde se encontram os monu-
mentos devem merecer cuidados especiais a f im de salvaguardar sua integridade ... (Cartade Veneza,
art.
14). [p. 218J
inconfessado dos habitantes de Nurembergue. Com efeito, como
se poderia efetivamente conservar e isolar fragmentos urbanos, a
menos que fossem privados de seu uso e de seus habitantes? Como
regulamentar o seu percurso ou a visita museal? O problema co-
Ineça a se delinear. Ele só será formulado em termos explícitos e
jurídicos depois da Segunda Guerra Mundial.
No curso das primeiras décadas do século xx, contudo, a figu-
ra e a conservação museais adquirem uma dimensão nova, etnológica,
por ocasião da experiência colonial. Quando Lyautey, fortemente
inf1uenciado pelo exemplo inglês na Índia, empreende a urbanização
do Marrocos, decide conservar as criações urbanas, os bairros mu-
,-:ulmanos antigos - as medinas - daquele país. Ao contrário da
política adotada na Argélia, a modernização do Marrocos respeita
;1$ fundações urbanas tradicionais, e criam-se cidades que seguem
os novos critérios técnicos ocidentais. Essa opção traduz a vontade
e l e
preservar, com seu suporte espacial original, modos de vida e
urna visão do mundo diferentes e considerados incompatíveis com
,I urbanização de tipo ocidental. Mas a apreciação estética também
hz parte, secundariamente, dessa vontade de conservação e talvez
('Ia própria a integre numa prospectiva do turismo de arte.
Não é de surpreender, pois, que num movimento de ida e
volta a experiência etnológica de uma realidade urbana diferente,
«xótica, tenha sido transposta para as cidades familiares da Euro-
1 1 : 1 . Ainda está por ser escrita a história dessa conversão do olhar,
(Ic que são exemplo, entre outros, os urbanistas Prost, Forestier e
I ):mger, formados por Lyautey. Depois de deixar o Magreb, eles
.Icscobriam, com um olhar estrangeiro e na sua legítima estranhe-
1.;1, o ancestral continente europeu - território a organizar em
«scalas inéditas que puderam ser testadas na África, mas também
tcrritório
a proteger. A estrutura urbana pré-industrial e sobretu-
do as pequenas cidades ainda quase intactas passavam a ser vistas
Iorno frágeis e preciosos vestígios de um estilo de vida original, de
til
na cultura prestes a desaparecer, que deviam ser protegidos
IIll'ondicionalmente e, nos casos extremos, postos de lado ou trans-
Iormados em museu.
Na mesma época, os erAM rejeitam a noção de cidade his-
193
A ALEGORIA DO PATRI MÔNIO
tórica OU museal. Exemplar, o Plan Voisin
42
, de Le Corbusi I
A INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
u-cnica ( O urbanista, assim como o arquiteto, deve elaborar uma
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(1925), propõe-se destruir a malha dos velhos bairros de Pari'
,
substituída por arranha-céus padronizados, conservando apenas
alguns monumentos heterogêneos, Notre-Dame de Paris, o Ar
do Triunfo, o Sacré-Cceur e a Torre Eiffel: inventário que já anun-
cia a concepção midiática dos monumentos signos. Essa ideologia
da tábula rasa, aplicada ao tratamento dos centros antigos durant
a década de 1950, só deixou de prevalecer na França com a cria-
ção, por André Malraux, em 1962, da lei sobre as áreas protegi-
das. Modificada depois em sua redação e em sua orientação, essa
lei era na verdade, em sua origem, uma medida de urgência inspi-
rada pela figura museal da cidade. Contestados na Europa, nem
por isso os erAM deixariam de prosseguir em sua obra iconoclasta
nos países em desenvolvimento e a trabalhar na desconstrução de
alguns dos mais belos bairros antigos do Oriente Médio, corno
aconteceu em Damasco e Alepo. No Extremo Oriente, sua influên-
cia continuou forte. Pode-se-lhe imputar, notadamente, a destrui-
ção de uma parte da antiga Cingapura.
A
figura historial
A terceira figura da cidade antiga pode ser definida como a
síntese e a superação das duas precedentes. Ela constitui o alicer-
ce de toda indagação atual, não apenas sobre o destino das antigas
malhas urbanas, mas também sobre a própria natureza das forma-
ções que ainda hoje chamamos de cidades.
Essa figura apareceu, sob uma forma ao mesmo tempo aca-
bada e precursora, na obra teórica e na prática do italiano G. Gio-
vannoni (1873-1943), que atribui simultaneamente um valor de
uso e um valor museal aos conjuntos urbanos antigos, integrando-
os numa concepção geral da organização do território. A mudança
de escala imposta ao meio construído pelo desenvolvimento da
42. Do nome do construtor de aviões, Gabriel Voisin.
194
('.'cala de intervenção adequada à cidade moderna de vários mi-
l l . õ e s
de habitantes )43 tem por corolário um novo modo de con-
,nvação dos conjuntos antigos, para a história, para a arte e para a
vida presente. Esse patrimônio urbano 44, assim nomeado pela
primeira vez por Giovannoni, adquire seu sentido e valor não tan-
to como objeto autônomo de uma disciplina própria, mas como
e-lemento e parte de uma doutrina original da urbanização. Du-
r.mte muito tempo se escamoteou a importância de Giovannoni
('111 razão de paixões polí ticas e ideológicas
45
. Por isso mesmo, é
necessário restituir-lhe o lugar que merece no campo da história.
Jáno primeiro art igo de 1913, de que conservou o título Vecchie
città ed edilizia nuova para seu grande livro de 1931, Giovannoni
adota uma atitude prospectiva. Ele avalia o papel inovador das no-
vas técnicas de transporte e de comunicação e prevê seu crescente
aperfeiçoamento. Um recuo de algumas décadas lhe permite pen-
sar, a partir daí, num contexto de redes [ r e te ] e de infra-estrutu-
ras a mutação das escalas urbanas que constituíam o núcleo das
reflexões de Víollet-le-Duc e de Sitte. O urbanismo deixa de se
aplicar a entidades urbanas e circunscritas no espaço para se tornar
territorial. Ele deve atender à vocação para o movimento e para a
comunicação por todos os meios, característica da sociedade na era
industrial, que se tornou a era da comunicação generalizada . A
cidade do presente e, mais ainda, a do futuro estarão em movimento.
43. Vecchie città ed edilizia nuova, Turim, Unione tipografico-editrice, 1931, p. 113,
tradução francesa das Éditions du Seuil, 1997.
44. Ibid., p. 113, 129, etc.
45. Uma parte da carreira de Giovannoni se deu sob o regime de Mussolini. Por essa
razão, ele se viu injustamente envolvido, depois da guerra, no processo contra o
fascismo tendo sido criticado com violência por B. Zevi (Storia del/'architettura
moderna: Milão, Einaudi, 1955). Além disso, não tendo cortejado determinadas
estrelas do movimento moderno como Le Corbusier, foi acusado de passadista,
quando na verdade desenvolvia, na área de urbanismo, teorias mais avançadas e
tecnicamente mais elaboradas. Assiste-se, hoje, na Itália, a uma reabilitação da
obra de Giovannoni (cf. G. Zuconi, La naissance de l'architecte intégral en
Italie , tradução francesa em Annales de Ia recherche urbaine, por C. Gaudin,
Paris, 1990, assim como a reedição crítica de Vecchie cíttà por F. Ventura, Turim,
Città Studi Edizioni, 1995).
195
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Diante desses organismos cinéticos : , Giovannoni levant I
A INVENÇÃO DO PATRIMÓNIO URBANO
1ll',lIra
da tradicional relação entre o movimento e a estabilidade.
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lucidamente a questão que tantos urbanistas, autoridades e políti
cos ainda hoje escamoteiam: não teria acabado o tempo da cida
I
densa e centralizada e não estaria esta começando a desapare
dando lugar a uma nova forma de agregação? Já não é possív
· 1
imaginar o fim do grande desenvolvimento urbano e mesmo urna
verdadeira
aruiurbanização' l
(O termo se transformará mais tar
de em desurbanização.) Ele é praticamente o primeiro a perceb I
a fragmentação e a desintegração da cidade, em proveito de urna
urbanização generalizada e difusa. Com cinqüenta anos de ant -
cedência, ele vê surgir a nova era, que Melvin Webber chamará d .
the post city age, a era pós-cidades : .
A questão se coloca ainda com mais pertinência e acuidad
ao se considerar que Giovannoni baseia seu raciocínio na dualidad
essencial dos comportamentos humanos que Cerdá considerava
motor da urbanização: O homem repousa, o homem se move' .
Os circuitos da comunicação generalizada não oferecem porto
seguro para o repouso. Os seres humanos, contudo, sempre têm
necessidade de parar, de se reunir , de morar. Avida na casa dev
poder conservar seu lugar, ao mesmo tempo que a vida de movi-
mento'P . Mas os progressos da técnica tornam possível uma nova
46. Ibíd., capo lII, subcapítulo: La città come organismo cinernatico , p. 87 e ss.
47. Ibid. A cidade do fim do século XX dípende infatti ai mille progressi, in parte
previdibili in parte no, della tecnica e dell'industria. Nê e da escludersi che questi
vengano a se gna re Ia fine de i grand e sv i lup po c i uadino ed a riportare, Ia popo-
lazione sui campi liberi e fecondi . Lera dell'urbanesímo moderno sarà allora
finita , p. 66 (grifo nosso).
Da mesma forma, considerando as conseqüências que haveriam de ter, no fu-
turo, o desenvolvimento dos transportes públicos rápidos, assim como do au-
tomóvel, Giovannoni imagina un tipo nu ovo di fabbricazione diffusa nelle
campagne e realizando veramente Ia
antiurbanizzazione , ibid.,
p. 90 (grifo
nosso) .
48. The Post City Age , Daedalus, Nova lorque, 1968.
49. ''A vida urbana compõe-se de dois elementos essenciais, que englobam todas as
funções e todos os atos da vida. O homem descansa, se move: isso é tudo. Não
existe senão repouso e movimento , Teori a ge ne ra l e le Ia
urbanizacum,
Madri,
1867, p. 595, trad. e adap. para o francês, Paris, Le Seuil, 1979, p. 149.
50. Giovannoni contrapõe vias de movimento [vie di m ovim ento J e vias de habita-
ção [vi e di abi ta zion e ) , op. cit., p. 95.
196
N . I S grandes redes, principalmente nas de transportes, que estru-
t 1111111 espaço territorial, pode-se agora conectar e articular pe-
'1II('nas unidades espaciais, núcleos de moradia.
A antiurbanização toma, pois, a forma de uma organização
tllI:d
5l
, em (ao menos) duas escalas, complementares e igualmente
Iundamentais: de acordo com a metáfora expressiva de
Vecchie
r u i à
de um lado, há a sala de máquinas, de movimento frenéti-
I
ll,
vertiginoso e barulhento ; de outro, os salões e os espaços
.lornésticos'V. Logo de saída Giovannoni ultrapassa o urbanismo
unidimensional no qual Le Corbusier se encerrou sem ter com-
1'1-endido que sua ville radieuse é uma não-cidade' . Mas ele foge
t
.nnbérn à modelização dos desurbanistas, para os quais, de Soria
y Mata a Miliutin e aos soviéticos da década de 1930
55
, os espa-
os de habitação e de lazer mantêm uma relação de subordinação
(' de inclusão, mas não de complementaridade, com as redes que
u -n li zam
a supressão da diferença entre a cidade e o campo.
Para Giovannoni, a sociedade de comunicação multipolar, essa
que,
à
época, ainda não é nem informatizada, nem midiática, nem
d e lazer , essa sociedade que entretanto não pode funcionar ape-
n.is
em escala territorial e reticulada, exige, pois, a criação de uni-
.Iades de vida cotidiana sem precedentes. Os centros, os bairros,
,I. Op. cit., p. 109. Lo sdopp iame nto ti pico che si e affirmato necessario tra il
grande sistema di circolazione e l'ínterna trama dei quartieri , grifo nosso. Cf.
também ibid., p. 75 e p. 93, una rete di grande traffico ben determinati como
tracciato [... J ed una trama di vie mino ri relativamente tranquille.
'i2.
Ib íd,
p. 109.
'>3. Giovannoni não cortejou os críticos à maneira de Le Corbusíer, notadamente no
que diz respeito a suas concepções do
hábitat
e do trânsito; considerava-se, com
razão, que estas eram elementares e não levavam em conta a complexidade dos
problemas reais, op. cit., p. 112 e 116.
'>4. A. Soria y Mata, e o artigo de
EI P rogres so,
Madri, 1882, em que ele cria a
expressão cidade linear . Cf. sobre sua ciudad lineal , G. R. Collins, Iounal of
th e Socie ty of th e A rch itec tu ra l Historians, n. 2, Nova lorque, 1959.
')5. Sobre a planificação linear em geral, cf. G. R. Collins, op. cit., n. 3,
parte. A obra
sobre a construção linear das cidades na União Soviética, publicada por Miliutin
em 1930, foi traduzi da, anotada e comentada por G. R. Collins e W. Allix sob o
título Th e P ro blem of Bui ldi ng Soc ia li s t C iti es , Cambridge, Mass., e Londres,197 4.
197
A
ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
os conjuntos de quarteirões antigos podem responder a essa fUI1
A
INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
Ijlltlaria a difundir por toda a Itál ia, fundando em 1920 a Scuola
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ção. Sob a forma de zonas isoladas, de fragmentos, de núcle
. 1
eles podem recuperar uma atualidade que lhes era negada p
1
Viollet-Ie-Duc e por Sitte: sua própria escala indica que estão ar
tos a desempenhar a função dessa nova entidade espacial. Com : 1
condição de que recebam o tratamento conveniente, isto é, desde
que neles não se implantem atividades incompatíveis com sua
morfologia, essas malhas urbanas antigas ganham dois novos privi-
légios: elas são, da mesma forma que os monumentos histórico,
portadoras de valores artísticos e históricos, bem como de val I
pedagógico e de estímulo imaginados por Viollet-Ie-Duc e p r
Sitte, verdadeiros catalisadores no processo de invenção de novas
configurações espaciais. Eles também têm, na edilizia nuova de
Giovannoni, um papel que nem Viollet-Ie-Duc, apesar de sua t _
oria do esquecimento e de sua descoberta da ruptura da escala
urbana tradicional, nem Sitte, não obstante a finura de suas análi-
ses morfológicas, poderiam lhe atribuir. E é a esse título que foi
possível integrá-Ias numa doutrina sofisticada' da conservação d
patrimônio urbano.
A relação original que Giovannoni imaginou entre organiza-
ção do território e patrimônio urbano pode ser atribuída a dua
particularidades do contexto italiano. Por mais precursora que seja,
sua visão antiurbanística inscreve-se numa tradição lombarda
fundada no fim do século XVIII por Cattaneo' , na esteira da
fisiocracia francesa; desde essa época, partindo ao mesmo tempo
de considerações demográficas e da solidez da estrutura urbana
italiana, Cattaneo preconizava um equil íbrio das atividades urba-
nas e rurais, baseado em sua estreita associação e no controle do
crescimento urbano, numa concepção territorial da economia.
Além disso, uma formação profissional que mais tarde ele
56. Ela é desenvolvida em Viecchie città ... , mas também na Carta dei restauro italia-
na que ele redige em 1931 para o Consíglío superiore per le antichità e beIle arti,
e na sua colaboração para a Conferência de Atenas sobre a conservação, em
1931. Sobre todos esses pontos, cf. C. Ceschi in op. cit., e a reedição, já citada,
de F. Ventura, nota 45.
57. Ver D. Sarnsa, Un ipotesi di funzionamento territoriale: cittã, ideologia e scienza
neI pensiero di Carlo Cattanco , Storia in Lumbardia, 1986.
198
'{upcriore
d'Architettura de Roma, possibilitou a Giovannoni o
li .-x so aos conhecimentos, muitas vezes dissociados, das ciências
'Iplicadas, da arte e da história. Víollet-le-Duc já observara: Os
II. 1ial1osêm o bom senso de não separar seus arquitetos em duas
, lusses: os restauradores de monumentos e os construtores de edifí-
I Il lS capazes de atender às novas necessidades'P . Giovannoni não é
'Iwnas arquiteto e restaurador, discípulo e continuador de Boito,
11 :10
é apenas um historiador da
arte'
que fez de Roma seu objeto
,Iv
estudo predileto, mas, como Boito, é também engenheiro e,
I
lcrentemente deste último, urbanista.
Essa tripla formação' transparece nos artigos que dedicou,
'·Illre 1898 e 1947, a seus três campos de cornpetência' . Ela ex-
',H .
Op. cit., t. Il, Víngtieme entretien , p. 396 . Esse ponto de vista deriva da mes-
ma lógica que inspira os
Entretiens:
[Os italianos] parecem imaginar que um
.irtista capaz de se apropriar de uma arte antiga e de se colocar, por uma série de
considerações, num ambiente que existia há três ou quatro séculos, é tão apto
quanto outro, senão mais, a compreender as necessidades do tempo presente e a
adaptar suas concepções a estas ,
íb íd .
','I. Seu primeiro artigo é dedicado a La porta dei palazzetto Simonett i in Roma ,
CArte, 1898, fase. VI-IX.
f,lI. Giovannoni não parou de se preocupar com osproblemas suscitados pela forma-
ção e a pedagogia das disciplinas que praticava. Ver especialmente: Gli architetti
ct gli studi di architettura in Italia , Rivista d ltalia, fev. 1916; Leducazíone
architettonica in Italia, neI passato, nel presente, nell'aveníre , comunicação ao
international Congress of Architectural Education, Londres, 1924; Glí studi
urbanistici in Italia , Universita fascista, n. 2, 1931; Glí studi urbanistici in
Italia e Ia classe degli ingegneri , Elngegnere, jun. 1931.
fll
A título de exemplos, entre os 475 artigos e obras distribuídos entre 1898 e 1947
(bibliografia de A. dei Bufalo, Note e osservazione integra te da lla consultazione
dell'archiuo pressa il Centro di studi d i s toria dell'archiieuura, Roma, Kappa, 1982):
1903-1906 - La costruzione degli sley-scrapers neI Nord-Arnerica , BoI. Soco
ing. archi. ital. (n. 9/16, 9/2135).
- Il chiostro di S. Oliver in Cori ,
I.:Arte.
1904 - Arte nuova ed arte popolare , BSIAI.
1908 - Sulle curvature deI la linee dei tempio d'Ercole e Cori , Mitteilungen
eles Kunstarchaeologischen
lnstituts, Roma.
1913 - Case civile d'abitazione, Milão, VaIlardi.
1923 - Opere sconosciute di Brarnante , Nuova Antologia.
1924 - Il piano regolatare di Roma, Roma.
1928 - Questioni urbanistiche , Elngegnere; Un disegno inedito di Antonio
da Sangallo , Architettura e Arti decorative.
199
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
plica também como Giovannoni pôde superar a concepção u n h l i
A INVENÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANO
IIqlliletura maior e de seu entorno. É por isso que, na maioria
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mensional de Viollet-le-Duc, substituindo-a por uma con p nu
dual da mutação imposta ao espaço urbano pela era industrial,
como pôde tirar de suas análises morfológicas uma lição d
\111
servação e nunca deixar de tratar a cidade como um organismu
estético'Y.
Uma cidade histórica constitui em si um monumento'F', mn-
ao mesmo tempo é um tecido vivo: tal é o duplo postulado qill'
permite a síntese das figuras reverencial e museal da conserva ;111
urbana e sobre o qual Giovannoni funda uma doutrina de conservn
ção e restauração do patrimônio urbano. Pode-se resumi-Ia em tr ,',
grandes princípios. Em primeiro lugar, todo fragmento urbano anli
go deve ser integrado num plano diretor (piano regolatore) 1 0 al,
regional e territorial, que simboliza sua relação com a vida pres n
te. Nesse sentido, seu valor de uso é legitimado, ao mesmo temp I
do ponto de vista técnico, por um trabalho de articulação' com ]S
grandes redes primárias de ordenação, e do ponto de vista human ,
pela manutenção do caráter social da população .
Em seguida, o conceito de monumento histórico não poderia
designar um edifício isolado, separado do contexto das constru-
ções no qual se insere. A própria natureza da cidade e dos conjun-
tos urbanos tradicionais, seu ambiente'>, resulta dessa dialética da
1931 - Sul l 'a p pl íca zí on e dei mezzi costruttivi moderni ed in particolare d I
cemento armato nel restauro dei monumenti , lndustria italiana dei cemento, dez.
1936 - Lurbanístíca e Ia deurbanizzazíone , Atti della Società italiana per il
progresso delle sc ienze.
1939 - La cupola della Domus Aurea neronicana , Atti dei congresso nazionale
di storia dell 'architettura.
1940 - Basiliche cristiane in Roma , Atti dei congresso di archeologia cristiana,
cidade do Vaticano.
1943 - ''Architettura e ingegneria nell'ultirno ventennio ,Annali della Università
d'Italia, Roma, Palombi.
62. La città come organismo estetico é o título de um capítulo de Vecchie città que
esclarece muito bem a posição central ocupada pela arte e as preocupações esté-
ticas na teoria da organização do espaço elaborada por Giovannoni.
63. Op. cito
64. Ibid., por exemplo, p. 66 e ss.
65. Este termo designa as conseqüências benéficas sobre a percepção da articulação
dos elementos da malha urbana. Na tradução francesa das atas da Conferência
200
. 1 1 > , \ usos,
isolar ou destacar um monumento é o mesmo que
IIltilil.i-lo.
O
entorno do monumento mantém com ele uma rela-
\
1
.-ssencial.
Finalmente, preenchidas essas primeiras condições, os con-
tllltos urbanos antigos requerem procedimentos de preservação e
,li' I\'stauração análogos aos que foram definidos por Boito para os
IIIOi1Umentos.Transpostos para as dimensões do fragmento ou do
IIIIllco urbano, eles têm por objetivo essencial respeitar sua escala
, '111 :\ morfologia, preservar as relações originais que neles ligaram
1IIIIdadesparcelares e vias de trânsito. Não se poderiam excluir
11',
trabalhos de recomposição, de reintegração, de desobstrução'? .
Admite-se, portanto, uma margem de intervenção limitada pelo
u-xpejto
ao ambiente, esse espírito (histórico) dos lugares, materia-
11/.;\doem configurações espaciais. Assim, tornam-se lícitas, reco-
I,\('ndáveis ou mesmo necessárias, a reconstituição, desde que não
I'ja enganosa, e sobretudo determinadas modalidades de demoli-
1.10. Giovannoni usa a bela metáfora do diradamento
67
,
que evoca
desbastamento de uma floresta ou de uma sementeira por de-
Iuais densas, para designar as operações que visam eliminar todas
.1.\ construções parasitas, adventícias, supérfluas: A reabilitação
dos bairros antigos é obtida mais a partir do interior que do exte-
de Atenas, ele foi lamentavelmente traduzido por ambience [meio físico no qual
se encontram os seres vivos]: Aplicam-se (...) a todo um conjunto de constru-
ções as medidas de conservação que visavam à obra isolada e com isso se criam as
condições de ambiance relativas aos monumentos principais , Conjérence
internationale sur Ia conservation desmonuments,
La restauration des monuments
en
I ta líe .
O mesmo erro ocorre no artigo de G. Nicodemi,
íbi d. ,
traduzido sob
o título Lambiance des monuments . Este desenvolve a díalética do monumen-
to e de seu entorno, assim corno o tema da integração dos conjuntos urbanos
antigos nos planos urbanísticos.
(i G . Ibid., La restauration des monuments en Italie , p. 63.
(i7. Especialmente: 11 diradamento edilizio dei vecchi centri, í l quartiere della
Rinascenza a Roma , Nuova Antologia, fase. 997; Nuovi contributi al sistema
del diradamento edilizio , Atti dei undecimo congresso nazionale degli ingegneri
italiani 1931' 11diradamento edílízío ed i suoi problemi nuovi , LUroanisuca,
n. 5-6, 1943; ~em contar as numerosas passagens dedicadas ao diradamento em
Vecch ie città, op. cito Na mesma época, Patrick Geddes fala de cirurgia conser-
vatória (conservati ve surgery).
201
A ALEGORIA DO PATRI MÔNIO
rior dos quarteirões, especialmente restituindo casas e quart j.
A INVENÇÁO DO PATRIMÔNIO URBANO
Ijllarteirões, na continuidade apertada, contrastante e feliz de suas
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rões a condições tanto quanto possível próximas das originais,
porque a habitação tem sua ordem, sua lógica, sua higiene e SU;l
dignidade própriasf .
Giovannoni ~ão era, pórem, apenas um teórico. Suas idéias
constituíam a razão de ser de uma prática' . Contudo, mesm
tendo passado à Carta italiana del restauro (1931), elas não dei-
xaram de enfrentar uma resistência, que se devia tanto a seu cará-
ter precursor quanto à forma como contrariavam a ideologia d '
um regime ávido de grandes trabalhos espetaculares. É por iss
que é preciso creditar a Giovannoni sua obra de opositor, a lista
de todas as demolições que conseguiu impedir por toda a Itália. E,
se teve um papel importante na desobstrução da Roma antiga '
dos foros imperiais, foi por ter preparado e organizado minuciosa-
mente as fases e os pormenores da operação, mandando que s
fizesse um levantamento completo do bairro medieval cujo sacri-
fício fora exigido por essa insurreição arqueológica.
Quanto a suas realizações, além de seus numerosos planos
diretores que em geral não foram aplicados, elas podem ser sim-
bolizadas pela reabilitação, que terminou em 193-6, de uma ilus-
tre cidadezinha do norte da Itália, Bergamo Alta? . Giovannoni
concebeu sua ligação com a cidade baixa, votada ao desenvolvi-
mento industrial, desembaraçou-a de suas mazelas e, para maior
bem-estar de seus habitantes, fê-Ia renascer na glória de suas pra-
ças e de seus monumentos públicos, na sinuosa complexidade d
suas ruas e de suas passagens, que penetram até o recesso do
68. Vecchie ciuà,
p. 252.
69. Giovannoni contribuiu principalmente com o estudo, o aperfeiçoamento ou a
crítica dos planos diretores do bairro Flaminio, em Roma
(1916),
da
Os/ia
marittima (1916), de Roma (1924-1929), de Bari Vecchia (1932, publ. in Nuova
Antologia), de Catânia (1934), da região de Roma (1935) ... Sobre essas ques-
tões, ver seus artigos: Piani regolatori e politica urbanística , in Concessioni e
costruzioni, p. 1-2, Roma, 1930; I piani regolatori e Ia fondazione di nuova
cíttà , Dai regno ai impero-reate, Roma, Academia nazionale dei Lincei, 1937,
Piani regolatori e paesistici , Roma, Urbanistica, n. 5, 1938.
70. Essa operação, cujo plano, aprovado em 1934, é de sua concepção, foi descrita
por Giovannoni sob o título: Una sana teoria ben applicata: il risanamento di
Bergarno , Urbanistica, n. 3, 1943.
202
1 \ -sidências modestas e de seus palácios.
Giovannoni foi praticamente o único teórico do urbanismo
(10 século XX a eleger como centro de suas preocupações a dimen-
',ao estética do estabelecimento humano. Na escala das redes de
(lrganização espacial, que está fora do nosso escopo, ele desenvol-
I(
com otimismo as premissas propostas por
Viollet-le-Duc.
Em
\ ompensação, na escala dos bairros, ele soube articular a
prope-
.lêutíca do esquecimento a uma concepção crítica e condicional
\ I a
preservação dos conjuntos urbanos antigos na dinâmica do de-
xc-nvolvirnerrto.
Esse patrimônio é, então, dotado de um duplo estatuto, cuja
.intinornia foi observada por Giovannoni tanto em Viollet-le-Duc
quanto em Sitte, e tem um duplo papel, que nem Sitte nem Viollet
lh e queriam atribuir. E mais: esse patrimônio urbano, base frag-
meritada e fragmentária de uma dialética da história e da histori-
\ idade,
é
tratado de acordo com as complexas abordagens de Riegl
\' de Boito, para os quais cada objeto patrimonial é um campo de
[orças
opostas que cumpre levar a uma situação de equilíbrio, singu-
l.ir em cada caso. E, na administração dessa dinâmica conflituosa,
( ;iovannoni reconhece e confere às malhas antigas o valor atual
\' social que Ruskin e Morris lhes haviam apontado, sem chegar a
il instalar na historicidade: o habitante e o habitar instalam-se
IlOponto focal de onde irradia a prospectiva de
Vecchie città ed
I:dilizia nuova.
A teoria de Giovannoni antecipa, de forma simultaneamente
mais simples e mais complexa, as diversas políticas das áreas
protegidas que foram desenvolvidas e aplicadas na Europa a par-
I
r de
1960.
Contém, igualmente, em germe, seus paradoxos e
(I iFiculdades.
203
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A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
Em seguida, a construção icônica e textual do corpus das anti
güidades o clássic acionais, permit iedades
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL
l
de seu público; depois, recentemente, por sua ligação com a
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dentais prosseguir seu duplo trabalho original: construção do tempo
histórico e de uma imagem de si mesma enriquecida de modo pr
gressivo por dados genealógicos. Como já vimos, sobretudo, os s
tudos dedicados às antigüidades estão inscritos na grande corrente
que desvalorizou o testemunho da palavra e da escrita, em proveitc
do testemunho da visão e da representação iconográfica. Os edifíci s
do passado contribuíram para o estudo sistemático das formas
pl ás
ticas, de seu desenvolvimento e classificação. As pesquisas d :..
antiquários acompanharam as dos naturalistas e participaram, com
elas, da criação de uma civilização da imagem: instrumento de aná-
lise do mundo e suporte da memória.
No século XIX, como também já vimos, a consagração insti-
tucional do monumento histórico dá a este um estatuto temporal
diferente. Por um lado, ele adquire a intensidade de uma presença
concreta. Por outro, é instalado num passado definitivo e irr
vogável, construído pelo trabalho conjunto da historiografia e 1 : 1
(tomada de) consciência historial das mutações impostas p
1 : 1
Revolução Industrial às habilidades dos seres humanos.
Relíquia,
de um mundo perdido, devorado pelo tempo e pela técnica, :-
edifícios da era pré-industrial tornam-se, segundo o termo de Ri
I,
objeto de um culto. Finalmente, são investidos de um papel mem
rial impreciso, e para eles novo, semelhante, de modo discreto, :10
do monumento original. No solo desestabilizado de uma socieda
de em processo de industrialização, o monumento histórico par'
ce lembrar aos membros dessa sociedade a glória de um gênio
ameaçado.
De objeto de culto a indústria
O termo lançado por Riegl, carregado de sentido e de arn]
i
güidade, continua pertinente, mas o objeto, as formas e a naturt
za do culto se transformaram: a princípio como conseqüência 1 1
uma expansão generalizada de suas áreas de difusão, de seu
cor pus
6
i
ndústria cultural.
Sendo em sua origem privado, o culto do monumento históri-
co não se tornou religião ecumênica do patrimônio edificado pela
conversão individual e progressiva de seus fiéis. Sua transformação
roi preparada, como vimos no capítulo IV, com o advento de uma
administração assumida pelo Estado, cujo modelo jurídico, adminis-
trativo e técnico foi oferecido à Europa pela França. Mas a meta-
morfose quantitativa sofrida pelo culto ao patrimônio a partir da
década de 1960 deriva mais diretamente de um conjunto de proces-
sos solidários que, na França, reforçaram a política cultural do Esta-
do e em outros lugares sempre apressaram o seu estabelecimento.
A mundialização dos valores e das referências ocidentais con-
tribuiu para a expansão ecumênica das rática~ atrimoniais. Essa
expansão pode ser simbolizada ela Convenção relativa à prote-
ção o patrimônio mundial cultural :. :.~ :all adota a em 1972_
pela Assembléia Geral da Unesco. Esse texto baseava o conceito
de patrimônio cultural univers~o de monumento histórico -
monumentos, conjuntos de edifícios, sítios arqueológicos ou con-
juntos que apresentem um valor universal excepcional do ponto
de vista da história da arte ou da
ciência' .
Estava assim proclama,-
da a universalidade_do siste ?~~~e~al de pens~~ lto e de va-
I. O texto da Convenção do Patrimônio Mundial foi publicado in Conventions et
recommandations de l'Unesco relatiues
à
Ia protection du patrimoine culturel,
Unesco, Paris, 1983. O texto de que tiramos nossas citações apresenta algumas
dificuldades, como é o caso da definição do patrimônio cultural:
São considerados 'patrimônio cultural':
Os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais,
elementos ou estruturas de caráter arqueológico, inscriçõe s, cavernas e grupos
de elementos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da
história, da arte ou da ciência.
Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em razão de sua
arquitetura, de sua unidade ou de sua integração na paisagem, têm um valor
universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência.
Os sítios: obras do homem ou obras combinadas do homem e da natureza, assim
como as zonas, inclusive sítios arqueológicos, que têm um valor universal excepcional
do ponto de vista histórico, estético, etnolágicoou antropológico
(grifo nosso).
O valor excepcional é um critério vago, difícil de aplicar. Além disso, cabe per-
guntar por que, no caso dos sítios, o adjetivo científico é substituído, de forma
restritiva, por etnológico e antropológico .
7
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
lores quanto a esse tema. Para os países dispostos a reconhec
I
sua vali ade, a Convenção criava um conjunto de obrigações
rela
o PATRIMÔNIO HISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CUL.TURAL
As descobertas da arqueologia e o refinamento do projeto me-
nioria] das ciências humanas
determinaram a
expansão do campo
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tivas à identificação, proteção, conservação, valorização e tran
missão do patrimônio cultural às futuras gerações . Mas estabelecia,
sobretudo, uma pertença comum, uma solidariedade planetária
- cabe a toda a coletividade internacional colaborar com a prot
ção do patrimônio - pela qual a comunidade encarrega-se de
socorrer os desprovidos. A noção mais restritiva de patrimôni
universal
excepcional
permite estabelecer, por uma combinaçã
de critérios complexos, uma lista comum de bens considerad s
patrimônio mundial, que dependem de um sistema de coopera-
ção e de assistência internacional , nos campos financeiro, artísti-
co, científico e técnico . São conhecidos os notáveis salvament
li
realizados dessa forma em Abu Simbel ou em Barabudur; conhec -
se menos a operação de salvamento da cidade de Mohenjo-Dar ,
no rio Indo, ou da mesquita de Divrigi, na Anatólia.
Esse processo, planetário, de conversão à religião patrimonial
não se dá, porém, sem dificuldades, às vezes de natureza oposta.
Lembro-me de um amigo do Magreb que se indignava ao ver atri-
buir-se um valor artístico e histórico a monumentos cuja significa-
ção, a seu ver, devia ser exclusivamente religiosa. Da mesma forma,
a recuperação da cidade de Fez, cuja equipe de assistência interna-
cional ele integrava, não tinha para ele outro sentido aceitável s -
não o de afirmar a permanência de uma identidade urbana e d
uma visão do mundo. Esse tipo de reação individual contra a ing •
rência da comunidade internacional ainda é muito difundido fora
da Europa. Inversamente, na esfera estatal, o número de monu-
mentos inscritos na lista do patrimônio mundial tende a se trans-
formar num índice de prestígio internacional e a se tornar obj
t
de disputa, muitas vezes sem que os critérios de seleção dos bens
patrirnoniais
sejam bem entendidos pelos países interessado ..
A Convenção adotada em 1972, e ratificada ou aceita três an
S
depois por 21 países distribuídos pelos cinco continentes, contava
em 1991 com 112
signatários .
2. Os Estados Unidos foram os primeiros a ratificá-Ia. Em contrapartida, a C
rã
Bretanha só aderiu à Convenção em 1984.
208
Inmolôgico
no qual se inscrevem os monumentos históricos. As
1 I
onteiras de seu domínio ultrapassaram, especialmente a jusante,
(lS
limites considerados intransponíveis da era industrial, e se des-
locaram para um passado cada vez mais próximo do presente.
Assim, os produtos técnicos da indústria adquiriram os mesmos
privilégios e direitos à conservação que as obras de arte arquite-
t
ónicas
e as laboriosas realizações da produção artesanal.
Paralelamente, impõe-se uma
expansão tipolôgica
do patri-
n iôn io
histórico: um mundo de edifícios modestos, nem memoriais,
nvrn
prestigiosos, reconhecidos e valorizados por disciplinas novas
( orno a etnologia rural e urbana, a história das técnicas, a arqueolo-
~'.iamedieval, foram integrados ao
corpus
patrimonial. Contudo, o
.iporte mais considerável de novos tipos se deve à transposição do
muro da industrialização e à anexação, pela prática conservatória,
de edifícios da segunda metade do século
XIX
e do século
xx,
que
\l apóiam, no todo ou em parte, em técnicas de construção novas:
un óve is
para habitação, grandes lojas, bancos, obras de arte, e tam-
110 m
usinas, entrepostos, hangares, refugos do progresso técnico ou
(i:Jsmudanças estruturais da economia, grandes conchas vazias que
.1 maré industrial abandonou na periferia das cidades e mesmo em
l'1I
centro. Além disso, a preocupação em conservar o patrimônio
.irquitetônico e industrial do século
XX
(até mesmo as últimas
dé-
( .idas], quase sempre ameaçado de demolição em vista de seu mau
«stado, gerou nos dias de hoje um
complexo de Noé,
que tende a
.ib r iga r
na arca patrimonial o conjunto completo dos novos tipos de
( onstrução que surgiram nesse período. Dois exemplos franceses, o
(10
mercado de Reims e dos pavilhões de Le Corbusier em
Lêge,
podem ilustrar as dificuldades dessa postura .
O mercado de Reims (inaugurado em 1928) foi tombado por sua estrutura para-
hóli ca de casca de concreto, que se deve ao inventor dessa técnica, E. Freyssinet.
O estado precário do concreto já dava ensejo a um es tudo de demolição em 1958.
Economicamente, a restauração do edifício seria muito onerosa. Esteticamente, o
interior é grandioso; o exterior torna carregado , por sua massa desgracíosa, um
sítio urbano importante. Historicamente, possuímos os arquivos relativos à con-
cepção e à realização das cascas de concreto por Freyssinet. Numa outra ordem
/
209
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
Finalmente, o
grande projeto de democratização do saber,
her-
dado das Luzes e reanimado pela vontade moderna de erradicar a
o
PATRIMÔNIO HISTÔRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL
Ionsagram essa mudança, antes dos monumentos. A cultura per-
Ik seu caráter de realização pessoal, torna-se empresa e logo in-
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diferenças e os privilégios na
fruição
dos valores intelectuais e artís-
ticos, aliado ao
desenvolvimento da sociedade de fazer
e de seu corre-
lato, o
turismo cultural
dito de massa, está na origem da
expansão
talvez mais significativa, a do público
dos monumentos históricos
- aos grupos de iniciados, de especialistas e de eruditos sucedeu um
grupo em escala mundial, uma audiência que se conta aos milhões.
O Estado francês seria o primeiro a explorar essa conjuntura
para, a partir daí, promover e controlar, com todos os recursos d
sua autoridade e de seus poderes, os ritos de um culto oficial do
patrimônio histórico que se tornou parte integrante do culto da
cultura. Esse termo, convém lembrar, ainda tinha, logo depois da
Segunda Guerra, um uso discreto na língua francesa, que ante
preferia integrá-lo em sintagmas (cultura letrada, cultura geral) a
utilizá-Io em seu sentido filosófico, definido e depois muito explo-
rado para fins políticos pelo pensamento
alemão :
a essa expressão,
Valéry sempre preferiu o termo
civ i l iz a ção > .
A palavra cultura
se difunde a partir dos anos 1960. Símbolo de sua fortuna, a cria-
ção de um ministério para assuntos culturais, que logo se torna
da Cultura , é um modelo que não tarda a ser adotado pela maioria
dos países europeus e a atravessar os mares. Malraux cria as
Maisons
de la Culture
[Casas da Cultura], ao passo que a cultura se di-
versifica: culturas minoritárias, cultura popular, cultura do pobre,
cultura do corriqueiro ...
Em determinado momento, os problemas suscitados pela difu-
são da cultura precipitam uma mudança semântica. Os museu
tipológica, cabe perguntar se seria preciso inscrever no inventário suplementar o
conjuntos habitacionais populares construídos por Le Corbusier em Lege (Gironda)
na década de 1920: não reconhecíveis por qualquer expert desavisado, tais são a
mediocridade de sua construção e s eu péssimo estado de conservação. (Figura
J
8)
4. Na tradição que vai de Herder e Humboldt a Spengler.
5. No conjunto de seus escritos sobre a crise espiritual e sobre o dest ino da Europa
em par ticular , o termo cultura é pouco usado, em geral associado à cultura
européia. A propósito do Centro universit ár io , mediterrâneo, ele evoca a civili-
zação européia e define, curiosamente, o estudo da civilização mediterrânea
como a de um dispositivo, por pouco eu não diria uma máquina, de produzir
civilização , Regards sur le monde actuel, Paris, Gallimard, 1945, p. 317.
210
Iústr ia , Se fosse preciso - jogo arbitrário, mas que firma as idéias
datar a decolagem dessa indústria na França e seu endosso
pclo
Estado, poder-se-iam tomar como pontos de referência sim-
hólicos duas inaugurações. Primeiro, em 1987, com toda a visibi-
lidade das coisas oficiais, a do Museu d'Orsay, cujo organograma
mostra que sua vocação é doravante a produção prioritária e siste-
mática
de serviços e de comunicação; depois, em janeiro de 1988,
11:1
penumbra do mercado de arte, a do Primeiro Salão Internacio-
l1:rIdos Museus e das Exposições .
Por sua vez, os m_onumentos e o patrimônio históricos adqui-
1('111
dupla função - obras ue ropiciam saber e razer, ~tas '
.lisposição de t;(Ios; m-;;; também rodutos culturais.1ab icados,
l'lnpacota os e istri uídos para serem consumido~. A metamor-
lose de seu valor de uso erriVãlor econômico ocorre g;ãÇãs
á eD =
',('nharia cultural , vasto em reendimento_Rú-blis:~ _~ rivado, ª
o,\Tviço do ual trabalham al}de ~~nimadÇl~~~ cultl -
I
.iis, profissionais da comunicação, agt:;ntes de desenvolvimento,
I
-ngenheiros, mediadores culturais . Sua tarefa consiste em explo-
I
.rr os monumentos por todos os meiosJ~ firr:.de multiplicar inde-
lmidamente
o número de visitantes.
I, Nessa ocasião, um conservador dos museus nacionais faz um balanço da situação
no Bulletin du Ministêre de la Culture (jan. 1988): O produto museal- a obra
em sua 'embalagem'
museogrãfíca,
arquitetônica, técnica, pedagógica - tornou-
se um objeto estético de consumo de massa. E, j á que assim é, por que não um
cruzamento das técnicas e dos serviços par a esse novo tipo de mercado? .
Nosso patrimônio deve ser vendido e promovido com os mesmos argumentos e
as mesmas técnicas que fizeram o sucesso dos parques de diversões. Discurso
do Ministro do Turismo francês em 9 de setembro de 1986, secundado por um
de seus colaboradores: Passar do centro antigo como pretexto ao centro antigo
como produto .
S
Terminologia que figura em documentos oficiais do Ministério da Cultura fran-
cês. Foi logo adotada pela mídia,
211
Valorização
o PATRIMÔNIO IIISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CUL:rURAL
I .k-nominações diversas, no mundo inteiro, é palco hoje de um
. ombate desigual e incerto, no qual, porém, o poder dos indivíduos
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A palavra mágica: valorização [mise-en-valeur]. Expressã
chave, da qual se espera que sintetize o status do patrimônio his
tórico edificado, ela não deve dissimular que hoje, como ontem,
apesar das legislações de proteção, a destruição continua pelo mun
do, a pretexto de modernização e também de restauração, ou :
força de pressões políticas, quase sempre irresistíveis. A força viva
das associações de defesa dos monumentos, cujo modelo foi cria-
do pela Grã-Bretanha no fim do século XVIII, mobiliza-se em t -
dos os países. Mas hoje, na França, a área urbanizada das cidad ,
anterior à Revolução Francesa representa apenas 3,5% do total .
~Rressão-chave, ue deveria nos tranqüilizar, é na reali
-.4ade in. uietante or sua a.mbigüidade. E a remete a valoresd
patrimônio que éJ~reçiso fazer reconhecer. Contém, igualment,
ã iloçã-oêfêrr;~valia. É~e;a;de
-q~-
se trata de mms-va ia v
interesse, de encâ~to~ d~ b~l~za:mãstãmbém'decapaci a e v
atrair, cujas conotações econÔmicas nem é preciSõ salIentar.
------A amOiva érícia d-; ~-;essão valorizãção aponta um fato
inédito na história das práticas patrimoniais: o antagonismo entr .
dois sistemas de valores e dois estilos de conservação.
Uma tendência, que se coloca sob o signodo respeito, dá con
tinuidade, utilizando-se dos novos recursos proporcionados p I:t
ciência e pela técnica, à obra dos grandes inovadores dos sécul ,
XIX e XX, apesar de essa obra não constituir uma referência explí
cita ou mesmo conhecida: quem, na França, entre os que trabn
lham diretamente na restauração e na conservação urbana, conh ('
os nomes de Boito e de Giovannoni? A outra tendência, coloca 1 : \
sob o signo da rentabilidad<; e de um.'@.9 restíg~o, agora dominal
te, esenvo ve, freqüentemente com o apoio dos Estados e I·~
ã$Sociaões úblicas ráticas cond~as 'á no sécu I u('
de ois seriam~ .gmatizad.?s-l? .l~ Catj~9-.e VeE..eza,e inventa n c
vas modali ades de valorizafão.
~ Em outras palav~ o7a~po patrimonial na França e, h
9. Devo essa cifra à gentileza de A. Melissinos, que me deu informações que co n su uu
.deseu atlas inédito de EUrbanisation de la France , o qual inclui estatíst icas, r glill'
por região e cidade por Cidade, do parque imobiliário das diferentes épocas.
212
Ill rmanece grande e em que a ordem de um prefeito, de um ins-
pl'lor dos monumentos históricos, de um arquiteto ou de um ad-
nunistrador do patrimônio ainda pode mudar o destino de um
monumento ou de uma cidade antiga.
Essa situação conflituosa levou-me a destacar o espírito e as
1 :íticas da tendência dominante, apoiada pela indústria patrimonial
I
pela evolução da economia urbana.
O
paciente trabalho desen-
vo lvid o por todos aqueles - restauradores, funcionários, proprie-
t ,11os e simples cidadãos - que lutam pelo respeito aomonumento
luxtó rico só aparecerá no bojo daquele enfoque, como registro e
Il'krência, a fim de que se tenha idéia da ambigüidade que envol-
V I hoje a noção de patrimônio.
Entre as múltiplas operações destinadas a valorizar o monu-
nu-rito histórico e a transformá-Io eventualmente em produto eco-
nôrnico mencionarei como simples marcos concretos de minha
,
I posição, algumas das que incidem mais diretamente sobre osedifí-
• 1,IS
e sobre a forma como o público as encaram. Da restauração à
I
«u ti l ização, passando pela mise en scêne e animação cultural, avalori-
/,1,)0 do patrimônio histórico apresenta múltiplas formas, de con-
I,
li
nos imprecisos, que quase sempre se confundem ou se associam.
Conservação e restauração: são estes osfundamentos de toda
v.ilorização. Há meio século, apesar da poluição atmosférica, a quí-
nuca, a bioquímica e a biologia deram uma nova atualidade às teses
,I Ruskin, permitindo atuar de forma não traumática sobre a saú-
.I,, dos monumentos. Além disso, pode-se considerar aceito não
I]x-n a s
o princípio de conservação dos acréscimos antigos que se
II/.\'raro aos monumentos e aos bairros históricos, mas também a
111
nica do
diradamento'?
de Giovannoni, que atualmente encontra
1II11recioso auxiliar nos estudos de morfologia urbana. Poder-se-ia
, «nsiderar definitiva a condenação das reconstituições. Pensava-se
'1I1l eram universalmente reconhecidas as regras de restauração
l . u
muladas por Boito, em especial aquela que manda indicar de
I lima clara todas as intervenções modernas, e de que se encon-
111Vl'I' capítulo V, p. 209.
213
A
ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
tram magistrais demonstrações em todo o mundo, como por exem-
plo no México, no sít io restaurado de Teotihuacán, onde o espe -
o PA:rRIMÔNIOHISTÓRICO NA ERADA INDÚSTRIA CUl:rURAL
Mise-en-scene: Viollet-le-Duc e Sitte concordavam em ver
nisso o fundamento da arte urbana. No presente caso, trata-se de
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tador é dominado pelo poderoso jogo dos volumes arquitetônico ,
sem ser enganado sobre o estado original das ruínas. Todos ess s
princípios, regras e preceitos, devidamente argumentados e refina-
dos nos últimos cem anos, pareciam estar plenamente estabeleci-
dos, fora de qualquer questionamento. Mera ilusão.
Reconstituições históricas ou fantasiosas, demolições arbi-
trárias, restaurações inqualificáveis tornaram-se formas de valori-
zação correntes. Não me delonga rei em exemplos. No Canadá,
centro da velha Quebec, que figura na lista do atrimônio mundial,
foi submetido a um vastõRroj~to~m finalidade nacionalista
·tu~ísti~a, '-iniciacÍ~ITl-1960, ~ í~ou à destrui ão de um con'unt
de imóveis anti os, ara reconstruí-los sem base científica, num
~ilo de7ruitetura francesa do sé~lo XVIII. a Alemanha, a
prática legítima da reconstrução ie aiScidactes clestruídas durant
a guerra, aliada ao gosto tradicional pelas reconstituições históricas,
levou à demolição, por contágio, de determinados centros antigo
(Weiden na Baviera, Linz-sobre-o-Reno}, tendo em vista recons-
tituições ideais que Viollet-le-Duc não teria imaginado. Na
França, da mesma forma, at@auração Ílwentiva tomou um nov
impulso. Em Provins, fizeram-se acréscimos às muralhas machicólis,
que nunca existiram, e recompuseram o venerável tímpano d
Saint-Ayoul, a fim de torná-lo mais delicado. Em Lyon, os mes-
tres pedreiros nova-iorquinos de Saint-J ohn-the-Divine esculpem
as gárgulas góticas da Catedral Saint-Jean, dando-lhe uma nova apa-
rência: tal procedimento não deve ser confundido com a técnica,
desenvolvida há décadas, que consiste em retirar e guardar as es-
culturas muito danificadas de certos monumentos, substituindo-
as, sobretudo nos casos em que, como em Reims, a escultura '
parte integrante da arquitetura, por reproduções fiéis .
11. G. Duhem cita o projeto de reconstrução de Potsdam segundo o sistema d
século XVIII, feito por M. Blumert, para quem a alma do bairro desaparece se
a restauração não se conforma ao modelo original , Sauver Ia seconde extension
de Potsdam, dissertação para DESS, Institut Français d'Urbanísme, 1991.
12. A técnica de moldagem progrediu e permite obter cópias perfeitas das escultu-
ras moldadas. A retirada das estátuas da catedral de Reims constituiu um prece-
214
.ipresentar o monumento como um espetáculo, de m~strá-.lo s~b
\I
ângulo mais favorável. A década de 1930 inventou a iluminação
noturna, que posteriormente não deixaria de se aperfeiçoar. ~om-
pendo a espessura da noite, o monumento, assemelhando-.se a apa-
I ição de uma divindade gloriosa, parece irradiar a etermdade. A
luz artificial tira um grande partido da sombra, fazendo que dela
. urjam figuras impolutas, formas jamais vistas, topografias desce-
1 1
hecidas. Esse artifício, cujo defeito não desprezível é suprimir o
I'CSO da obra arquitetônica, revela outra dimensão do monumento,
poética ou transcendente. É realmente a uma revelação - que se
t orna monótona, com o passar do tempo - que se assemelha atual-
mente, no mundo todo, a iluminação ritual, com horários, dias ou
datas fixas, do Partenon, de São Pedro, em Roma, do castelo de
Praga, de Santa Sofia, do Taj Mahal ou de tantos outros edifícios,
lnmosos ou desconhecidos. Em contrapartida, a intervenção da
luda eletricidade no interior dos monumentos não é necessaria-
mente benéfica. É verdade que ela permite contemplar a qual-
quer hora, como nunca antes, afrescos ou quadros aos quais a história
lia
arte atribuiu uma existência e um valor próprios, independentes
do edifício que eles deviam dignificar. Mas o que dizer, por exem-
plo, do equipamento elétrico que foi instalado na catedral de
I~ourges? Expondo esse monumento de forma direta e impudica,
t : t 1 como ele nunca devia ter sido visto, a operação elimina o plano
( a disposição que o ancoravam na duração.
Uma mise-en-scêne também inclui o som, institucionalmente
.issociado à luz nos (de maneira tão apropriada) chamados Espetá-
culos de som e luz . Mas som, música e discurso atuam sobre o
«spectador, não sobre o monumento.
É
o público que deve ser o
.ilvo de sua influência e a quem ele pretende dis-trair e di-vertir
(do monumento). Que música, que comentário? Os melhores e
\IS piores. Eles praticamente não importam, uma vez que neles se
vêem fenômenos secundários, mecanismos de ambiente, análogos
dente, imitado sobretudo em Atenas, onde as últimas esculturas do Partenon
foram colocadas no museu da Acrópole.
215
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
aos que são montados pelas grandes estruturas comerciais. A
lu z ,
por sisó, pode dar aos edifícios uma opacidade insuspeita. O s tu
o
PATRIMÔNIO IIISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CUlTURAL
m.iticas,
desfiles de moda ao patrimônio histórico, que os valori~a;
vxt.e, por sua vez, pode, em decorrência dessa estranha relaçao
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tende a reduzi-los à pequenez do insignificante.
Animação cultural: onde e quando ela começa? Geralmente
do interior do edifício que ela se propõe tirar de sua própria inér i : 1
para torná-lo mais consumível, considerando insuficiente a apr
priação pessoal. Seu método é a mediação: facilitar o acesso àsobras
por intermediários, humanos ou não. Uma hierarquia complexa con
duz da mediação com efeitos especiais aoscomentários audiovisuai ,
passando pela reconstituição de cenas históricas imaginárias, recor-
rendo-se a atores, manequins, marionetes ou imagens digitais.
Assim, torna-se cada vez mais difícil para o visitante evitar
essas interferências epoder dialogar, sem intérpretes, com osmonu-
mentos '. O comentário e a ilustração anedóticos ou, mais exa-
tamente, a tagarelice sobre as obras, alimentam a passividade do
público, dissuadindo-o de olhar oude decifrar com ospróprios olhos,
deixando escapar o sentido no filtro de palavras ocas. Essas são for-
mas demagógicas, paternalistas e condescendentes de comunicação.
Contudo, a transmissão de um saber histórico deriva principalmen-
te da valorização do patrimônio. No século XIX, Boito formulou as
regras de uma apresentação científica e silenciosa dos monumentos
que, cobrando um esforço de atenção do público, levava-o a um
conhecimento pessoal, direto e ativo das obras. Técnicas novas per-
mitem atualmente formas de apresentação gráfica (informações,
esquemas, mapas) claras e atraentes, cujo uso segeneraliza; é de se
lamentar, porém, que sejam no mais das vezes neutralizadas pelo
ruído da animação.
Levada a extremos, a animação cultural torna-se exatamente
o inverso da mise-en-scene do monumento, que ela transforma em
teatro ou em cena. O edifício entra em concorrência com um
espetáculo ou um evento que lhe é imposto, em sua autonomia.
Associam-se exposições, concertos, óperas, representações dra-
13. Do mesmo conservador, op. cit., supra: Os animadores, os serviços de ação
cultural são os novos atores, cada vez mais numerosos, que servem de mediado-
res, no proscênio, entre a obra e o público .
14. Cf. capo Iv, p. 171.
216
. r n t agôn ica ,
ser engrandecido, depreciado ou reduzido a nada.
Modernização: procedimento novo, que despreza de forma
mais aberta o respeito que se deve ao patrimônio histórico, põe
('111
jogo o mesmo desvio de atenção e a mesma transferência de
va lo re s pela inserção do presente no passado, mas sob a.form~ ~e
UI11 objeto construído, e não de um espetáculo. ModernIzar nao e,
nesse caso, dar a im ressão~ novo, mas_colocar n~~orpo dos
velhos edifícios um implante regenerador. Dess~ sll12.~iose DP<?~-
t : 1 , -;;-~e ~u~-~nt~resse suscit?-do.peta obra ~opresente .se
reflita na obra anti~.L.dando origem-,aSSIm,a l l~dJalet_~ Corre-
se também aqui o grande risco e cometer um erro. Um caso
simples e típico é o dos painéis de vidro que, nos grandes mon~-
mentes franceses, muitas vezes substituem as antigas portas maci-
(.:as,desconsiderando sua função arquitetônica. O atual tratamento
.irquitetônico
dos museus+ oferece uma ilustração de modo exem-
plar essa forma de valorização e seus perigos. A atenção dos VISI-
tantes volta-se em primeiro lugar para o
receptáculo' ,
como no
caso do mastaba hollywoodiano, que impede que se olhe e se veja
15. No século XIX, o museu, transformado em templo da arte, adota pela primeira
vez uma tipologia arquitetônica específica, a do templo antigo (British Museum,
National Gallery de Londres, Alte Pinakothek de Berlim, Glyptothek de Muni-
que, Metropolitan Museum de Nova Iorque, etc.), cujo inter~or é reordenado
para proporcionar vastos espaços de exposição. A partir da decada de 1960, a
arquitetura museal tende a r ecusar qualquer tipologia , recorrendo antes a formas
publicitárias cuja função principal é destacar a imagem , a faculdade de captar
a atenção, tanto pelo uso das rnídías quanto in situo Essa arquitetura auto-refer:nclal,
simbólica, surge em Paris com o Centro Pompidou. Seu antecessor mais celebre,
e sem dúvida o primeiro no gênero, é o museu Guggenheim de Nova lorque,
cuja
massa branca, baixa e opaca se encontra postada como um corpo estranho
à
beira
da Quinta Avenida. Quanto à disposição espetacular adotada por F. L. Wright no
interior do museu, que vai desenrolando a espiral de sua rampa em volta de um
vazio central, ela tende não a ignorar as obras, mas a negá-Ias e destruí-Ias simbo-
licamente: não há mais nenhuma contemplação possível; o visitante está conde-
nado ao percurso, arrastado numa marcha que catapulta as imagens das obras
umas sobre as outras para finalmente quebrá-Ias em mil fragmentos.
16. O espaço do museu tornou-se o gesto arquitetônico por excelência de nossa
época. Os museus são visitados como monumentos. O estojo é um objeto admi-
rado como se fosse uma jóia ,
Bulletin du Ministêre de Ia Culture,
op. cit.
217
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
a coleção dos impressionistas franceses antes exposta no museu
do Jeu de Paume. Felizmente, existem ainda museus novos, cujo',
ntegração na vida contemporânea
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construtores'? guiaram-se tão-somente pelo respeito às obras reui i
das. Assim, como sempre, existem monumentos inalterados p I;)~
operações midiáticas. Convém repetir: descrevo uma tendência.
Podemos multiplicar os exemplos negativos de moderniza
çã o do patrimônio, que, para nos limitar apenas à França, vão do
incongruente (reforma do interior do Palácio da Justiça em Poitier,
ao devastador, passando pelo ridículo (bilheteria do Castelo de
Chambord). Não se poupam nem os edifícios que têm apenas a
função de museu, de monumentos históricos, assim des-hist •
ricizados J 8.
Conversão em dinheiro: denominador comum de todas as
modalidades de valorização, ela vai da locação dos monumentos
<
sua utilização como suporte publicitário, associando-os à venda
de produtos de consumo em geral. ~do monumento tem agora
como com lemento uma butique, herdeira dos balc- - li
s e.c? tões postais dg ~~ulo X IX , que ~en~ s~venires diverso ,
roupas, objetos domésticos ou produtos alimentícios .
Acesso: proporcional ao núme-ro dos visitantes, à renda dos in-
gressos e do consumo complementar, a rentabilização do patrimô-
nio passa, cada vez mais, pela facilitação do acesso. O monumento
deve estar sempre à mão, o mais perto possível dos caravançarás,
que no mais das vezes desfiguram os sítios, o mais perto possível dos
veículos, individuais ou coletivos, que requerem estacionamentos
e seus complementos: daí-a necessidade de empreendimentos imo-
biliários consideráveis, atualmente tão mal disciplinados tanto no
meio urbano como no meio rural.
17. Como Carlo Scarpa, na Itália.
18. Entre outras coisas, podemos questionar a nova forma como se dão as v isitas do
monte Saint-Michel, no ritmo da música e do silêncio, da sombra e da luz, da
arquitetura medieval e da arte contemporânea (grifo nosso).
19. As sereias da cultura dão mostras de uma engenhosidade mercantil que não teme
o ridículo: em Paris, a boutique do Jardim de Bagatelle vende flores artificiais e
a da Biblioteca Nacional, papel para aquarelas.
218
A reutilização, que consiste em reintegrar um edifício desa- \
uvado a um uso normal, subtraí-Ío a um destino de museu, é cer-
t.irnente a forma mais paradoxal, audaciosa e difícil da valorização
do patrimônio. Como o mostraram repetidas vezes, sucessiva~en-
te, Riegl e Giovannoni, o monumento é assim poupado aos nscos
do desuso para ser exposto ao desgaste e usurpações do uso: dar-
Ihe uma nova destinação é uma operação difícil e complexa, que
não deve se basear apenas em uma homologia com sua destinação
original. Ela deve, antes de mais nada, levar em conta o estado
material do edifício, o que requer uma avaliação do fluxo dos usuá-
rios potenciais.
Patrimônio industrial: a expansão do campo cronológico de
nossa herança histórica levanta um problema inédito, o do patri-
mônio industrial que, de resto, apesar do nome, geralmente esca-
pa ao domínio da indústria cultural. Se considero, em primeiro
lugar, as condições de sua reutilização, é para mostrar que, apesar
de sua denominação comum, esse patrimônio não pode nem deve
ser confundido, como habitualmente se faz, com o patrimônio da
era pré-industrial, que está ligado a outros valores e desafios.
A herança industrial fora de uso levanta dois tipos de questão,
de natureza e escala diferentes. Por um lado, os edifícios isolados,
em geral de construção sólida, sóbria e de manutenção fácil, são
facilmente adaptáveis às normas de utilização atuais e se prestam a
múltiplos usos, públicos e privados. Na Europa e nos Estados Uni-
dos, já são incontáveis as usinas, ateliês, entrepostos, transforma-
dos em imóveis residenciais, em escolas, teatros ou mesmo em
museus, O grande pavilhão dos matadouros da Mouche/ , com sua
magnífica estrutura metálica, construída em Lyon em 1918 por Tony
Garnier, tornou-se um centro de intercâmbios e de espetáculos vivo
e atraente, como o poderia ter sido o mercado de Baltard, em Paris.
Essa reconversão de edifícios, alguns dos quais pertencentes
à história da técnica, liga-se, ao mesmo tempo, a uma conservação
20. Inaugurado em 1914, foi tombado em 1975 depois de escapar de sofrer o mes-
mo que o Mercado de Baltard.
219
A ALEGORIA DO I'ATKIMÓ~IO
I histórica e a uma sadia economia logística. Em contrapartida, e -
sas marcas anacrônicas, que são os terrenos ba ios, os poços a
O I'ATRIMÓ~IO IIISTÓRICO ~A ERA D A INDÚSTRIA CUUURAL
uma nova vida a serviço do espetáculo. Porém, a utilização regular
desses grandes edifícios só é possível pela consolidação, restaura-
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~
minas desativadas e as respectivas áreas em que se depositavam
os minérios, as escórias dos altos-fornos, as docas e os estaleiro
abandonados têm, antes de tudo, um valor afetivo de memória
para aqueles que, por muitas gerações, tinham neles seu territóri
e horizonte e que se esforçam para que não lhes sejam subtraídos.
Para os outros, elas têm um valor de documento sobre uma fas
I
da civilização industrial , documento em escala regional, que a me-
\
mória fotográfica haverá de conservar, mas cuja preservação real
parece ter se tornado ilusória por suas próprias dimensões, numa
~poca. de urbanização e de reorganização dos territórios.
E verdade que reabilitação dos conjuntos de casas dos operá-
rios das minas em Hénin-Beaumont, em Liévin e em outros luga-
res, conserva a lembrança da mina, mas trata-se de um hábitat,
não de um lugar de produção. Como estes poderão permanecer, a
não ser como marcos simbólicos, sob a forma de museus? Para ir
mais longe, é necessária uma imaginação que não possa ser substi-
tuída por mera nostalgia.
Não obstante, um outro problema, o do patrimônio rural não
representado por edifícios, logo surgirá numa parte da Europa,
principalmente na França, país de tradição rural cujo campo era
um imenso e sábio monumento: que fazer quando, da mesma for-
ma que o jovem patrimônio industrial tornado obsoleto, a agri-
cultura ancestral estiver condenada, em parte, ao abandono da
terras devolutas? Que nova utilização se pode dar a uma paisagem
que foi uma das mais belas jóias desse país, da qual resistirão ape-
nas aldeias reconquistadas por populações urbanas e cercadas por
elegantes casas de campo? Não dispomos de precedentes que nos
ajudem a resolver esses casos de desativação de espaços territoriais.
Edifícios pré-industríais: em compensação, existe uma tra-
dição da reutilização do patrimônio pré-industrial, e mesmo de
alguns monumentos antigos. Essas práticas nem por isso são me-
nos complexas.
O gênio de D'Annunzio tornou emblemático o caso do anfi-
teatro de Verona, abrindo-o à dramaturgia moderna. Hoje, os tea-
tros e anfiteatros antigos mais bem conservados experimentam
220
ção, reforma, que muitas vezes acarretam, por isso mesmo, sua
desfiguração. Mas são casos excepcionais.
As verdadeiras dificuldades surgem quando se trata de dar
uma destinação aos velhos edifícios religiosos, de culto ou con-
ventuais, aos antigos palácios, palacetes particulares, hospitais, ca-
sernas, cavalariças, etc., que foram obras-primas da arquitetura
pré-industrial. As funções ditas culturais (museus, bibliotecas, ins-
tituições escolares e universitárias, fundações) sofrem a concor-
rência das utilitárias, de prestígio (ministérios, sedes sociais, hotéis)
ou comuns (escritórios, moradias, comércio), e os usuários públi-
cos são substituídos pelo mercado privado. Em todos esses casos,
porém, os trabalhos de infra-estrutura exigem uma ,competência
técnica especial e têm um custo às vezes proibitivo ..E por isso qu~
é difícil garantir ue a reutili~Ç,.@~~ja rSD ável o ue em
g s ; r m . ~ 8
~~ consegl1~e~ re'~ funcL9E.~lidad4e:..Nessecaso, resta ape-
nas uma casca vazia de seu conteúdo por curetagern : procedimen-
to discutível quando se trata de preservar a morfologia de uma malha
urbana; procedimento inadmissível quando se resume ao sacrifí-
cio das estruturas e do ambiente interno de um edifício. A propó-
sito, não existem na França reconversões mais destrutivas que as
destinadas ao uso administrativo ou a escritórios. Da mesma for-
ma, a transformação, embora pertinente, louvável e interessante
em si mesma, de habitações antigas em alojamentos de uso social,
levou, em algumas cidades francesas, a verdadeiros massacres
(externos e internos), executados por organismos desprovidos
da competência necessária. Alguns casos de reutilizações não
mutiladoras e aparentemente criteriosas não significam que o pro-
blema não existe. Era preciso transformar o frágil hotel Salé em
Museu Picasso, por onde desfilam centenas de milhares de visi-
tantes e que já precisou de duas restaurações? Numa escala mais
modesta, o afluxo dos visitantes suscita receios justificados quan-
21. Testemunham esse fato, por exemplo, as dificuldades enfrentadas pelo centro de
Arc-et-Senans , na magníf ica res tauração das Salinas de Ledoux. Ver C. Soucy,
Réuti li ser le s m o n um en ts h i st or i qu e s, Paris, Caisse des monuments historiques, 1985.
221
A
ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
to à conservação da casa de Horta, transformada em museu. 1 11
compensação, uma das residências mais inovadoras construída .•
o PATRIMÔNIO HISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CUTURAL
mostrara o exemplo de Avignon, precedido de muitos outros, es-
tavam fadados à demolição, a menos que se tomassem providên-
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por esse mesmo arquiteto, o Hotel Van Eetvelde, foi exemplarm n
te restaurado para uma grande empresa belga, que a utiliza com
I
sede social.
A rática da reutiliza ão deveria ser ob' eto de uma ped:l
gogia especia . Ela deriva do bom senso, mas tam ém e uma
sensi i i a e inscrita na onga vida das tradições ur anas e ~
comp-;-rta~entos patrimoniais, que por isso varia de país ara país.
Instalando-se num extraorâinário conjunto de palácios desocupa-
dos, a Universidade de Veneza soube ao mesmo tempo respeitar a
qualidade de seus espaços e fazê-los reviver, para grande deleit '
de seus alunos. Da mesma forma, o antigo convento de Louvain
abriga atualmente grande número de estudantes, e o esplend r
reencontrado de sua grande sala é sede do clube universitári .
Nem esse tipo de operação nem a forma como foi executada sã
compatíveis com a mentalidade que orienta, na França, a política
educacional.
Cidades e conjuntos arquitetônicos antigos: tendo se tornad
patrimônios históricos de pleno direito , os centros e os bairros his-
tóricos antigos oferecem atualmente uma imagem privilegiada,
sintética e de certa forma magnificada, das dificuldades e contra-
dições com as quais se confrontam a valorização do patrimônio
arquitetônico em geral, e em especial sua reuti lização ou, em ou-
tras palavras, sua integração na vida contemporânea.
Nem por isso desapareceu a conservação museal das cidades
antigas, agora assumida pela indústria cultural. Contudo, as con-
cepções integradoras, formuladas por Giovannoni já em 19l3,
parecem desde então prevalecer, ao menos em princípio. A legisla-
ção francesa das áreas protegidas'r ilustra essa evolução. Quando
em 1962 André Malraux conseguiu aprovar a lei sobre as áreas
protegidas que leva seu nome, fê-lo na perspectiva de uma con-
servação museal.
Tratava-se de resguardar, de tornar intocáveis, de manter no
estado em que se encontravam os bairros que, como há pouco
22. Cf Actes du colloque de Dijon, Paris, STU, 1994.
222
( ias urgentes. Para Malraux, historiador da arte, o que estava em
logo nessa proteção eram elementos históricos e estéticos. Con-
tudo, o ideal do status quo revelava-se de uma aplicação ainda
mais difícil conforme a lei e seu decreto de aplicação conferiam ao
plano de proteção e de valorização a qualidade de um docume.nto
urbanístico. Progressivamente, a letra e o espírito museal da lel de
1962 foram abrandados. Mas, na falta de bases teóricas, sua di-
mensão urbanística esfumou-se. A noção de valorização, implícita
na designação do instrumento jurídico que é o plano de proteção
c de valorização , rivaliza com a da proteção e a põe a serviço de
um conceito que serve para tudo - o de desenvolvimento.
~ A partir de 1975, coloca-se na cena internacional a questão
ela integração (dos conjuntos históricos) à vida coletiva de nossa
época . Em 1976, em Nairóbi, a Unesco adota uma Recomenda-
ção relativa
à
proteção dos conjuntos históricos e tradicionais e ao
seu papel na vida contemporânea, que continua sendo a exposição
de motivos e a argumentação mais complexa em favor de um tra-
tamento não museal das malhas urbanas contemporâneas. Esse
documento constitui também o texto mais lúcido sobre os peri-
gos inerentes a essa política. O valor social do patrimônio menor e
das malhas históricas, já reconhecido por Giovannoni, é avaliado à
luz de interesses imobiliários e turísticos, cujo extraordinário de-
senvolvimento ele mal podia imaginar. Além disso, pela primeira
vez, a conservação viva dos conjuntos antigos é apresentada como
um meio de lutar não apenas pela proteção de part icularismos
étnicas e locais, mas também contra o processo planetário de
banalização e estandardização das sociedades e de seu meio.
Desde então, a reapropriaçâo e a valorização da cidade antiga
tornaram-se a ladainha do concerto patrimonial das nações. Mas
esse consenso engloba uma multiplicidade de casos e tipos de in-
tervenção sobre a cidade histórica. são casos não comparáveis aos
das grandes e pequenas cidades, das economicamente prósperas e
das cidades em crise, de todos os intermediários entre aquelas
cujo patrimônio não passa de um elemento de prestígio e outras
em que ele consti tui seu principal recurso. São intervenções de
223
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
natureza diversa, àsvezes conflituosas. Ora a cidade histórica, assim
como o monumento individual, é transformada em produto d
consumo cultural - reutilização ambígua, no melhor dos caso
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL
usados e ainda, sempre, por toda parte, sob todas as suas formas
(regional, exótica, industrial), o restaurante.
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lúdica,
e que dissimula sua natureza museal-, ora pode ser desti-
nada a fins econômicos que se beneficiam simbolicamente de seu
status
histórico e patrimonial, mas que a ela não se subordinam.
O primeiro casovê, pois, a cidade patrimonial posta em cena
~ converti a em cena: dê u'iTIlado JLuminada ma uiaaa ara-
mentada para fins de embelezamento e midiáticos; de outro, palco
de festivais~ festas, come~õi-ações, co;gresso~erdadeiros e a-
SãS appeiiins ~~ multi Íicam o
número
dos visitantes em un-
ção a engenhosidade dos anim adoreS-culturais.O objetivo destes
últimõs é preparãf ôs visita~tes para ;-criação de uma atmosfera
convivial, descrita por uma associação de proteção de uma grande
cidade francesa como a de uma verdadeira aldeia . A livre e har-
moniosa continuidade das figuras espaciais que ligam os edifícios
urbanos entre si e a seus arredores, o
ambiente
dos italianos só
interessam a uns raros arquitetos e amantes da arte.
A indústria patrimonial desenvolveu os recursos de embala-
gem
~~bTrn-
ermitem oferecer os centro~ e os bair;o-;;nti-
gos como roduto~paI' . o.co~ cul ur~l. Esta os e municípios
a e es recorrem, de forma reservada e discreta ou abertamente,
em razão de suas opções sociais e p olíticas, mas sobretudo de acor-
do com a natureza (dimensões, caráter, recursos) do produto a ser
lançado e segundo a importância relativa da renda que se espera
obter. Um arsenal de dispositivos consagrados pela prática permi-
te atrair e fazer que permaneçam os amantes da arte, organizar o
uso do seu tempo, de desarnbientá-los mantendo-se a familiarida-
de e o conforto: sistemas gráficos de sinalização e de orientação;
estereótipos do pitoresco urbano: alamedas, pracinhas, ruas, gale-
rias para pedestres, pavimentação ou lajeados à antiga, guarneci-
dos de mobiliário industrializado
standard
(candelabros, bancos,
cestinhos delixo,telefones públicos) de estilo antigo ou não, alegrados,
de acordo com o espaço disponível, com esculturas contemporâ-
neas, chafarizes, vasos rústicos de flores e arbustos internacionais;
estereótipos do lazer urbano - cafés ao ar livre com mobiliário
adequado, barracas de artesãos, galerias de arte, lojas de objetos
224
Quanto à modernização da malha urbana antiga, ela atua preen-
I
hendo os vazios existentes ou criados para isso. Os lingüistas nos
«nsinaram o valor semiótico do contraste. O sentido constrói-se
na contigüidade, com base na diferença, mas desde que a justapo-
sição dos signos se converta em articulação. Os elementos arqui-
lctônicos modernos (ou pós-modernos), que se supõe valorizarem
:\cidade antiga, fazem-no efetivamente, desde que respeitem essa
articulação e suas regras morfológicas e que não sejam implanta-
dos, como em geral acontece, na malha urbana histórica de forma
nutônorna, como objetos independentes e auto-suficientes. No
melhor dos casos, eles servem à imagem midiática da cidade, de
que se tornam o emblema e o símbolo: Montpellier ou Nimes
constituem, na França, exemplos que rapidamente fizeram esco-
la
em Amiens e em outros lugares. Na pior das hipóteses, ajuda-
e los pelo gigantismo, eles induzem a desarticulação e a desagregação
da malha antiga. As construções da União Européia completam a
decomposição dos belos bairros do século
XIX
em Bruxelas.
Numerosas, porém, sãoa s cidades que, assim como Marselha,
Étampes e Valenciennes, na França, abandonam sua malha urbana
antiga. Outras negligenciam setores inteiros em proveito de zonas
de pedestres ou consideradas mais atraentes, ou ainda em favor
de uma zona protegida-álibi.
Efeitos perversos
O patrimônio histórico arquitetônico se enriquece, então, con-
tinuamente, com novos tesouros que não param de ser valorizados
e explorados. A indústria patrimonial, enxertada em práticas com
_vocaçã~E<:.iag~gicae democrática ::~õ1ucrati~a',~oil~.nça ~in~~~~}-
mente a fundo perdido, na perspectiva e na hlpote~e.~.2 ~ese.~21-
'v~eêlOtürTsÍno. Ela repre~taJ.iQje~-{e)orma direta ou
~~j?d,Ig:~'ya~~e cresce~te _d~~rç~a J1ent~e da .ren a as na-
ções. Para muitos estados, regiões, municípios, el~ignifica a s~.-
- -. ~~---~
225
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
bre..Yivência e o futuro econômico. E é exatamente or isso que a
valorização-Jo-pãtr~ônio históri'Zo re resénta ~m empreen imen-
o
PATRIMÔNIO HISTÓRICO NA ERADA INDÚSTRIA CUTURAL
l
rumento de uma banalização secundária. Algumas cidades, assim
.omo alguns bairros, resistem a isso, ajudados por sua .di:nensão,
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to consTderaveJ:-- .- - - *-
~ Como Je~e ter ficado claro, o empreendimento traz, no en-
tanto, efeitos secundários, em geral perversos. A embalagem
que se dá ao patrimônio histórico urbano tendo em vista seu con-
sumo cultural, assim como o fato de ser alvo de investimentos do
mercado imobiliário de prestígio, tende a excluir dele as populações
locais ou não privilegiadas e, com elas, suas atividades tradicionais
e modestamente cotidianas. Criou-se um mercado internacional
dos centros e bairros antigos. Para tomar um exemplo respeitável,
como poderá a República Checa resistir à demanda do fluxo de
turistas que invadem Praga? Como poderá evitar vender uma par-
te de sua capital aos países e empresas que, atualmente, são os
únicos em condições de lhe permitir restaurar esse patrimônio com
infra-estruturas degradadas, de tirar proveito deles, com todos os
riscos de deterioração paralela e de frustração dos habitantes de
Praga que a operação implica? O mesmo problema se coloca para
muitas cidades antigas dos países do Leste europeu, da
Rússia ,
de
Potsdam-' a São Petersburgo. Mas as cidades da Europa ocidental
também não escapam a isso. Entre as pequenas, o caso de Bruges,
que há vinte anos estava em decadência, é instrutivo: se atual-
mente o artesanato de rendas está morto, as butiques de rendas
importadas de Hong Kong invadiram o andar térreo das velhas
habitações, que rivalizam com as cervejarias e com as galerias de
arte, enquanto duas cadeias hoteleiras internacionais dilaceraram
a malha urbana antiga, implantando nela enormes hotéis.
Além disso, em vez de contribuir para preservar as diferen-
ças locais e conter a banalização primária do meio onde se vive,
como esperavam os redatores da Recomendação de Nairóbi, a va-
lorização dos centros antigos tende paradoxalmente a tornar-se ins-
23. A cidade, criada no século XVIII, sobretudo sua segunda extensão barroca, ainda
intacta, mas mal conservada, suscita de forma teórica, em termos técnicos, jurí-
dicos e econômicos, os problemas de conservação, reabilitação e destinação fun-
cional ligados aos interesses antagônicos dos habitantes, da indústria cultural e
da especulação imobiliária gerada por se encontrar perto de Berlirn, cf. G. Duhern,
op. cit.
226
sua morfologia, suas atividades, pela força de suas rradiçôes, ~ela
simples riqueza que possuem ou pela sabedoria de ~uas auton~a-
eles. Outras começam a se assemelhar tanto entre SIque os tuns-
tas e empresas multinacionais nelas se sentem em casa.
Esses efeitos somam-se aos que começam a preocupar os pro-
[issionais do patrimônio. Culto ou indústria, as práticas patrimo-
niais estão ameaçadas de autodestruição pelo favor e pelo sucesso
de que gozam: mais precisamente, pelo fluxo transbordante e
irresistível dos visitantes do passado. Por u~ lac o, esse fluxg arra-
nha, corrói e ges_agreg~s s,910s,as paredes, os frágeis orname~tos
das ruas ra as [ardins, residências, que não foram concebIdo~
pa;a tantos assos ~l.essados n~m para s~rem apa pádõ-s ~or tan-
tas mãos. Desde sempre, quando ainda estavam em uso, nossos
r;;'onumentos eram mantidos e nossas cidades repavimentadas,
consolidadas e pintadas, reerguidas num combate sem tréguas con-
tra o tempo. Mas o ritmo das reconstruções não pode aument~r.e
continuar aumentando sem comprometer a duração e a autentICI-
dade da herança arquitetônica. A praça São Marcos, devastada
num piscar de olhos, recuperou seu aspecto familiar - mas a que
preço? À obra desagregadora do tempo, das estações e dos usos,
dos cataclismos naturais, das guerras e da poluição química, acres-
centa-se agora a destruição cultural, enquanto, à exceção de alguns
grandes monumentos religiosos concebidos para a e:ernid~de e
destinados a acolher os povos, e excetuando-se tambem os frag-
mentos isolados, esquecidos ou desprezados pelos tour operators' ,
a autenticidade no sentido em ue a entendia Ruskin vai se afas-
tando ca a vez mais dos e ifícios que S2 lstituem nosso ~ô-
~histórico. - --~
Por outro lado, o funcionamento do parque patrimonial en-
contra-se ameaçado de paralisia pela saturação física do sistema.
Relativamente a visitantes/segundo e centímetros quadrados/vi-
sitantes, os equipamentos locais quase em sua maioria já atingi-
24. E. Le Lannou, D'Ératosthêne au ' tour operator' , Revue de l'Académie des
sciences morales etpolitiques,
Paris, 1987.
227
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
ram seus limites. Além disso, as infra-estruturas de transport
I'
de alojamento dos visitantes tendem a se restringir por falta 1\
o PATRIMÔNIO IIISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULrURAL
111\ I1Sas sociedades industriais avançadas já não aprendem de
1111as datas, nem os textos, nem, aliás, a tabuad~: Em todos os
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espaço ou a degradar lugares e paisagens.
A exploração do patrimônio histórico arquitetônico está, p is,
fadada ao esgotamento, a menos que se reduzam os custos de manu
tenção e se regule o fluxo de seus consumidores. Mas, antes d '
considerar as medidas que permitiriam controlar de forma efetiva
a situação, é preciso se perguntar se a empresa patrimonial tam
bém
não tem efeitos secundários ou perversos sobre a relação d )
grande público com a herança arquitetônica. Essa indústria re -
ponde adequadamente à demanda de distração da sociedade d .
lazer e confere, além disso, o status social e a
distinção'
associa-
dos ao consumo dos bens patrimoniais. Mas onde fica o acesso ao'
valores intelec;.tuai~éticQ§~qu~ á no atrimôni istór' -
cuja ~e§~~_d~senv9Ivimen º ti~m..os a ocasião de descre 7
Aparentemente, e a acreditar nos discursos institucionais
midiáticos, os valores artísticos e relacionados ao conheciment
não sofreram mudanças. Para os especialistas, historiadores, ar-
queólogos, historiadores da arte, arquitetos, esse patrimônio con-
tinua sendo, efetivamente, um vasto campo de pesquisas e d
descobertas, cuja valorização representa, quando muito, um incô-
modo e um aborrecimento. O verdadeiro problema é colocado
por aqueles que me recuso a c amar e massa, pe o vasto
ú blic o
aos in iví uos para os quais a visita ãosmonumentos não é um
im em sLmesmo, para aqueles que;indi~iaua mente, esperam do
patrimônio hi~t6ric-;-mais que uma distração ':'~;Peram ele uma
~o à-aleg i; _ q Q . . c;onhê.ÇiQlento-histórico- e aos prazeres da
a~. Esse público é em geral engã'llãdoe'~massa pe a in ústria
patrimonial, que - temos de admitir -, na esteira da evolução
das sociedades industriais avançadas, tende a vender-lhe ilusões à
guisa dos valores prometidos.
Valor histórico: o adjetivo histórico é adequado para qualifi-
car o resíduo de visões e de espetáculos fragmentados e efêrneros,
cujo lugar na continuidade do tempo e dos acontecimentos ne-
nhum quadro cronológico existente é capaz de apontar? Os ho-
25. P. Bourdieu, La Distinction, Paris, Éditions de Minuit, 1988.
228
dl\ll1íniospráticos ou teóricos, sua memória se apoia, .se alterna e
I' substituída, a cada dia, por próteses cada vez mais potente~,
1.ipazes de armazenar e de apresentar d~ ~m~diato, qu~ndo pedi-
d .l,
uma informação enciclopédica quase ilimitada, rel,atlva ao pas-
'..1<.10u ao presente, sob a forma de palavras, de numeros ~ de
lI11agens.O maravilhamento de Perrault diante da força de
líber-
(;\I,:ãodo livro impresso nos faz sorrir, e a carga que seus co~tem-
p\lrâneos ainda impunham à sua memória nos parece_excesslva. ~
,I Escola não se preocupa em trazer uma compens~çao: que sena
Iunbém
uma garantia para o espírito, a essa mecamzaçao das,ope-
I
.rções
de memória tradicionais. Ao contrário, ela respon.de as re-
núncias
da sociedade com suas próprias renúncias, espeClalmente
:IOSensinamentos e balizamentos da história. Aí os administrad?-
Il'Sdo patrimônio têm um posto a assumir e uma taref~ ~ ~umpnr.
()ual pode ser, com efeito, o valor histórico de u~ edl,f1C10ou de
um conjunto de edifícios se não tiverem a bela lmeandade tem-
poral tão pacientemente
edificada
pela história, tão pacientemen-
te apreendida e conservada pela men;~ria or~~n~c~~ pouco a pouco
1
cduzída
a uma abstração pelas memonas artificiais. Como se pode,
sem esse suporte, construir o quadro de referência que dá o signi-
licado
histórico a um monumento, a um conjunto urbano ou a
lima aldeia antigos?
Valor artístico: hoje ele parece ser reconhecido universalmen-
te. Os obstáculos ou tabus que reservavam a fruição das obras de
arte aos iniciados, às elites, privilegiados ou herdeiros, qualquer
que seja o nome ou o status que se lhes queira atribuir, poderiam
ser superados. Vários processos, incorporados e explo~ado~ ~e~a
mídia contribuem para isso: a constituição do museu
imagmarro
aberto a todos; a possibilidade sempre crescente de acesso às obr~s
reais; a evolução das artes plásticas contemporâneas e, em parti-
cular, da arquitetura; o desenvolvimento do mercado_ da arte. , .
André Malraux celebrou o milagre da reproduçao fotográfi-
ca: graças ao espaço que lhe é próprio e propício .àdifusão, ela
pôde reunir e confrontar a totalida.de das ob~as.maiores e meno-
res, gigantescas e minúsculas, glonosas e anommas, de todos os
229
A
ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
tempos e de todas as civilizações, para mostrar sua transcendente
unidade. Ao mesmo tempo, pelo fato de não serem mais protegi-
das pela distância e pelo segredo de seu isolamento, de serem
o PATRIMÓNIO HISTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL
históricos que se tornaram órfãos da destinação prática que lhes
deu origem.
Só posso lhe falar de forma aproximada de uma coisa tão
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expostas e reveladas
à
luz do dia, as obras tornam-se acessíveis a
todos e parte do universo familiar de qualquer um: a reprodução
fotográfica convida ao conhecimento direto e à visita efetiva aos
monumentos. Hoje, não é apenas pela imagem, como era o desejo
de Malraux, mas em sua realidade que as obras capitais da humani-
dade se tornam acessíveis a um número muito maior de pessoas.
Mas de que acessibilidade se trata?
Toda desmistificação pode levar a uma outra
mistificação .
A riqueza das revelações estéticas que esse tesouro, descoberto
em sua insuspeitável proximidade, pode oferecer foi proclamada
em alto e bom som, e logo apresentada, erroneamente, como ine-
rente à essência da obra de arte. Nessas circunstâncias, ver e saber
perto de si a densa presença dos testemunhos da arte do passado
e de hoje, abre apenas um acesso ilusório. Essa real
presença':
de nada serve se não se reúnem as condições de sua recepção, a
começar pelo recolhimento no tempo e o silêncio: ultrapassad
um certo limiar, tanto no museu quanto diante e dentro dos mo-
numentos, o fluxo dos visitantes reduz ou mata o prazer da art .
Além disso, a experiência estética, cabe repetir, é o resultado d
um percurso iniciático. A do patrimônio histórico arquitetônic
não foge a essa regra e comporta dificuldades próprias.
É verdade que existem edifícios que, valendo-se do sublim ,
se impõem de forma imediata. Mas essa situação é rara. A arqui-
tetura é a única, entre as artes maiores, cujo uso faz parte de sua
essência e mantém uma relação complexa com suas finalidad s
estética e simbólica, mais difícil de apreender no caso dos edifíci s
26. Mistificação analisada com talento e acuidade por J .Clair, emseu notável Parado
(1
sur le conseruateur, Tusson, LÉchoppe, 1988; folheto dedicado ao museu, mas
cujas idéias dizem respeito também aos monumentos históricos.
27. Título sob o q ual foi traduzido fielmente o belo livro de G, Steiner, Real
Pr es enca,
Londres, Faber and Faber, 1989, tradução francesa de M, R. de Pauw, Paris,
Gallimard, 1991, A real presença é, para Steiner, a da transcendêncía, de que
toda obra de arte participa, Ele insiste, porém, na importância da presença ef
li
va e fenomênica desta última, quase sempre mascarada pela verbosidade dos
comentários.
230
grandiosa , dizia Eupálino a Fedro, para sugerir a dimensão inco-
municável da criação arquitetônica e de sua
recepção.Por
um lado,
;1a~~~a ún~~rtt. C1Jjªs.9QraL~2Cigel1l.§er R~rc?rriqas
f'isicar: <:.nte.Só~? exig~deslocamento~, })ercursos: desy os gue
impU~.al)}o et:v.?lvime :lt~de todo.o corpo e que nao podem ser
substituídos pela ercepção visual isolada: lembremo-nos de qu<:
Déd~lo 'fcio patrono cfós~arquitetos, Mas, por outro lado, como
negar o papel do conceito na prática da arquitetura? Fiedler re-
cusava qualquer explicação da obra arquitetônica. Essa negação
na verdade visava fazer reconhecer a irredutibilidade daexperiên-
cia estética, Sob uma forma mais desafiadora, a mensagem é a
mesma que a de Eupálino e, portanto, não deve ser entendida lite-
ralrnente. A palavra prepara para a recepção da obra arquitetônica,
desde que lhe seja dado o justo lugar que, com cinco séculos de
distância, Alberti e Valéry definiram de forma idêntica: d íál og o '
e -m presença da obra, entre p ráticos/ ? e os não-práticos, que supõe
11111ainguagem comum e as mesmas referências.
Tal diálogo é atualmente negado a um público que, em geral,
não adquiriu por si mesmo essa linguagem e essas referências, que
(',iniciado por animadores e engenheiros culturais , muitas vezes
11;10especialistas, deixando-se enganar pela promessa de uma
xcmantização fácipo,
.' H.
Em Valéry, o diálogo de Sócrates e Fedro constitui uma moldura em que se encaixa
° de Eupálino e Fedro. Para Alberti, o diálogo crítico do restaurador e de seus
pares (arquitetos ou amantes da arte) é parte integrante da atitude arquitetõnica.
I. A arquitetura atual, que se transforma sem ter superado a crise que se iniciou no
século XVIII, não tem mais espaço para esse diálogo. Em compensação, ela se
apóia numa imagética e num discurso midiáticos que muitas vezes são transpos-
tos, anacronicamente, para o campo da arquitetura antiga,
li. Os edifícios antigos e atuais são interpretados, nos dias de hoje, por uma nova
crítica, alimentada pelos trabalhos da lingüística do sentido, que, a exemplo de
todas as produções humanas, os trata como textos, exigindo daqueles que com
eles se defrontam uma nova semantização, original e criativa, Mostrou-se, assim,
que os grandes conjuntos e as construções mais pobres e destituídas de valor
simbólico são, de forma mais ou menos rica, semantizadas por seus habitantes
(Trabalhos de J,-F. Augoyard, M, de Certeau, r . Goffrnann.] No caso inverso de
231
A
ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
Assim, a frustração do grande público interessado nos val _
res da história e da arte dos monumentos e dos conjuntos históri-
cos pode, sem exagero, ser incluída na lista dos efeitos pervers s
O PATRIMÔNIO IllSTÓRICO NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL
caverna de Lascaux, os túmulos do Vale dos Reis, e, a partir de
1991 o sítio de Carnac, cujo solo cedia, descobrindo a base dos
menires sob os passos dos turistas. Mas existem também muitas
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da industrialização do patrimônio. Nós sabíamos - Alberti já
lamentava - que os danos causados pelo tempo, esse rude de _
truidor de tudo o que se relaciona com os monumentos humanos,
são às vezes superados pela violência praticada pelos homens '.
Já havíamos nos dado conta da violência destruidora das guerras
modernas e das jogadas comerciais, mas não sabíamos que em
algumas décadas a espécie humana conseguiria, pela própria prá-
tica de conservação, realizar uma destruição que outrora levaria
séculos. A prevenção desses efeitos secundários deve, pois, ser
entendida do ponto de vista tanto da proteção dos monumento
quanto da proteção de seu público. Ela surge, então, como uma
conservação em segundo grau, que se pode chamar de estratégica
e que traduz a crise atual das práticas patrimoniais.
onservação estratégica
Essa conservação secundária do patrimônio arquitetônico está
apenas começando. Ela requer o controle do fluxo dos visitantes
de acordo com normas que, em muitos casos, ainda estão por ser
criadas. Podem-se invocar, a título de exemplo e de acordo com
um grau de complexidade crescente, dispositivos de controle, me-
didas pedagógicas e políticas urbanas.
Em matéria de controle, o fechamento ao público é uma so-
lução radical que foi aplicada muitas vezes no caso de monumen-
tos e sítios excepcionais ameaçados de destruição, tais como a
edifícios ou monumentos de grande valor simbólico e estético, os visitantes são
dotados dos mesmos poderes de recriação pessoal. Mas aqui surge uma confu-
são: a criação de sentido não equivale, de forma alguma, à criação artística. O
processo de semantização dos artefatos humanos é aberto e sem limites à inven-
ção individual, mas, enquanto tal, não pode substituir a aquisição de uma infor-
mação, também ela criadora de sentido, nem preparar para a experiência estéti-
ca e muito menos substituí-Ia.
31. De re c edijicatoria, op. cír ., liv ro X, capoI , p. 869, 871.
232
formas que permitem regular o acesso aos bens patrimoniais: re-
dução dos dias e horas de visitas, como é freqüentemente_ o caso
dos edifícios de culto, em que acontece de algumas partes nao es~a-
rem abertas ao público; limitação do número de entradas por dia;
imposição de um trajeto a pé. Muitas vezes pode-s~ li~itar a agres-
são física aos monumentos históricos com regras tao SImples como
a de se descalçar, como fazem alguns povos ant~s de entrar em s:us
santuários ou simplesmente em suas casas. E também possível
desviar a afluência de pessoas atraídas por determinados sítios ou
edifícios famosos para lugares e circuitos menos conhecidos. E por
que ter vergonha da dissuasão financeira? Por que o acesso a pé e
de carro (principalmente de veículos de turismo) aos monume~-
tos e aos bairros antigos, cuja manutenção é dispendiosa, devena
ser gratuita ou paga com desconto, em vez de ser paga pelo preço
justo, como outros produtos culturais, o livro, o cinema, o teatro?
Entre as medidas pedagógicas, pode-se a princípio voltar ao
museu imaginário e reinterpretá-Ío como o sonho de um antiquário
transportado para a era da reprodução mecânica 32 das obras de
arte. Lembramo-nos dos museus de imagens por meio dos qUalS
os antiquários acumulavam, comunicavam e difundiam o corpo
de conhecimentos históricos que suas pesquisas de antigüida-
des'' lhes haviam permitido acumular ao longo dos séculos. De
fato esse método continua em vigor. A arqueologia urbana utiliza-
o, sempre que pesquisadores são obrigados a fechar ou deixar que
sejam demolidos seus canteiros, depois de organizado e fotogra-
fado. A reprodução iconográfica, que é conforme à natureza con-
ceitual do conhecimento histórico, beneficia-se atualmente de
recursos muito mais precisos e exatos, com o conjunto das técni-
cas relacionadas à fotografia e a seus aperfeiçoamentos.
W Benjamin foi o primeiro a inverter o ponto de vista tradi-
cional da fotografia como arte, em proveito da arte como foto-
32. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de W Benjamin (1936),
foi largamente utilizada por A. Malraux.
233
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
grafia 33e a analisar o paradoxo que permite à técnica oferecer à
nossa época, por sua reprodução e por sua redução, um domínio
intelectual sem precedentes das obras plásticas e, no mais alto
o PATRIMÔNIO IIISTÔRICO NA ERA DA INDÚSTRIA cur
rURAL
valem a aprovação científica e lhes permitem ultrapassar os limi-
tes restritos do museu. Aberta em 1965, a caverna de Lascaux ]]38
atrai tantos visitantes quanto outrora a original. Pode-se até consi-
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grau , das obras arquitetõnicas . Ainda que esta última afirmação
não possa ser aceita sem restrições' , o museu imaginário, desde
que sua visita seja bem organizada e legendada? , constitui uma
via de acesso eficaz para a abordagem estética do patrimônio
arquitetônico. Mas podemos ir mais longe e nos perguntar se, na
atual conjuntura, a mediação fotográfica não constitui uma moda-
lidade original da própria experiência estética. O uso equilibrado
do museu imaginário pode assim contribuir para limitar movimen-
tos e visitas e para a regulamentação do patrimônio arquitetônico.
Ainda mais eficiente para a preservação do patrimônio é a es-
tratégia que consiste em reproduzir, total ou parcialmente, os edifí-
cios originais em três dimensões e em tamanho natural. Esse tipo
de procedimento não é muito bem aceito. Todavia, a experiência
mostrou, há muito tempo, os serviços incomparáveis que ela pode
prestar àhistória da arte. O museu dos monumentos franceses, idea-
lizadopor Viollet-le-Duc, construído amando de Jules Ferry, conti-
nua sendo um instrumento sem igual para a introdução à escultura
monumental de nosso país a partir da época românica. Esse exem-
plo poderia ser seguido por outras cidades e em outros países .
Atualmente, as técnicas de reprodução aplicadas às obras de
arquitetura, escultura e pintura têm realizado progressos que lhes
33. Petite histoire de Ia photographie (artigo de 1931) , t radução para o francês de
M. de Gandillac in W Benjamin,
Essais
1922-1934, Paris, Denoél-Gonthíer,
1983,
p.
164.
34. Todos podem observar como uma imagem, em especial no caso de uma obra
plástica e mais ainda quando se t ra ta de obra arquitetônica, é a preendida melhor
em fotografia que na realidade , ibid.
35. Em 1982, depois de uma discussão sobre o modo como o arquiteto americano
Richardson fotografara, de forma pioneira, as igrejas românicas do sudoeste da
França, o historiador da arte Meyer Shapiro procurou me mostrar, valendo-se de
seus próprios
croquis
daqueles monumentos, a superioridade analít ica do dese-
nho in situ em relação à fotografia, para a apreensão dessa arquitetura românica.
36. ''A legenda, sem a qual toda construção fotográfica não passa de uma aproxima-
ção , W Benjamin, op. cit., p. 168.
37. Em 1900, um arquiteto americano submeteu ao Congresso um projeto de Mu-
seu Nacional de Arte e História para Washington, que reproduzia em tamanho
234
derar a possibilidade de adotar essa solução - apenas em situações
como essa e com garantias científicas sernelhantesé'' - para pe-
quenas cidades e sobretudo para lugares e conjuntos históricos
que, em algumas cidades importantes, concentram, de forma ex-
clusiva o afluxo de turistas.
Po r
que não reproduções exatas da Piazza della
Signoría,
de
Florença; do Alcázar de Sevilha; da ponte São Carlos, de Praga?
Construídas nas proximidades dos lugares originais, realizadas sob
a direção e a garantia de cientistas e de especialistas, serviços des-
se tipo contribuiriam para a difusão dos conhecimentos históricos
e também para a preservação efetiva do patrimônio reproduzido.
A hipótese é sedutora, mas sem dúvida pouco realista, por razões
ao mesmo tempo éticas e econômicas.
A proteção estratégica das malhas antigas e sua reapropriação
pelas populações que não as consomem, mas as habitam, supõem
um outro caminho: o da tomada de consciência geral, seguida de
natural um conjunto de monumentos pertencentes às principais civilizaçõesdaAntigüi-
dade. O interesse dessa Acrópole moderna prendia-se ao fato de que a ciênCia
moderna pode reconstruir os monumentos e os edifícios antigos com Uma exati-
dão de detalhes mui to mais impressionante e instrutiva que os museus europeus,
que expõem nas vitrines objetos heteróclítos e muitas vezes até fragmentoS .
A ingênua presunção do autor não nos deve fazer subestimar a importância de
sua intuição. Nem é preciso dizer que as reproduções atuais que evocamos nada
têm a ver com as imitações aproximativas ou ainda com as reduções grosseiras
como asdos templos de Pran-Barang, que podem ser vistas ao longo das estradas
da lndonésia.
38. Em razão da contaminação por algas e bactérias que se verificou em Suas pare-
des, a caverna de Lascaux, descoberta em 1940, foi fechada ao público em 1963.
(Em 1962, recebera cem mil visitantes.) O desenvolvimento, em 1965-1968, d~
camadas de caleita obrigou, em vista de sua conservação, a restabelecer o eqUl J-
brio, que existia antes da abertura, entre temperatura, umidade relativa do ar e
gás carbônico. Em 1973, começou-se a construir uma reprodução da caverna,
utilizando-se métodos da estereofotogrametria e traçadores computadorizados
do Instituto Geográfico Nacional. O custo da operação chegou a oito milhões de
francos. A reprodução foi aberta ao público em 1983.
39. Ver V Patin, La Valorisation turistique du patrimoine culturel, relatório para os
Ministérios do Turismo e da Cultura, Paris, Conclusion, 1988.
235
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
uma ação que lhe seja conforme. Há muitos anos as associa -( ,
de defesa orientam-se nesse sentido e opõem-se, com sucesso
ca dn
vez maior, aos projetos técnicos ou especulativos que prejudi
ali I
o PATRIMÔNIO 1I1STÓRICO NA ERA D A INDÚSTRIA CU TURAL
ao mesmo tempo social e societal. Com risco apenas de degrada-
,:ões superficiais, a satisfação dessa demanda favorece, da melhor
forma, a causa da conservação estratégica do patrimônio urbano
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seus bairros. Assim, assistiu-se ao surgimento de um urbanism 1
negativo, mas original.
Nesse caso, entretanto, trata-se apenas de operações pontuais.
Uma verdadeira política para os centros e bairros antigos exi .
que se faça uma reflexão em profundidade sobre a urbanizaçã
atual, cujo caráter continua mascarado por uma terminologia ana-
crônica. Os termos cidade , urbano (usado como substantivo'
como adjetivo) e urbanismo perderam seu sentido original.
In
dependentemente das nostalgias de alguns e dos pretextos d
outros, entramos na era pós-cidades . A urbanização propaga-s
segundo as linhas de força traçadas pelas redes dos grandes equi-
pamentos. Ela ignora ou desagrega as formas discretas e articula-
~as das antigas aglomerações. Melhor que a palavra reurbanização ,
inventada na década de 1970 para definir a metamorfose da pai-
sagem rural, o termo italiano correspondente a permite compreen-
der a dinâmica do processo que hoje tende a eliminar as cidades e
a uniformizar os territórios.
Nunca é demais repetir a advertência de Giovannoni: os cen-
tros e os bairros antigos sópoderão ser conservados e integrados à
vida contemporânea se sua nova destinação for compatível com
sua morfologia e com as suas dimensões. Vimos os perigos que
seu uso cultural e turístico implicam. Eles não resistem melhor
à
implantação de atividades terciárias maiores, que recriam, de for-
ma secundária, as migrações diárias, o trânsito e o consumo que
~hesco~respon,de, cujas exigências fizeram explodir a cidade p ré-
industrial no seculo XIX. Em contrapartida, esse patrimônio urba-
no ~uporta bem o uso residencial e a implantação de serviços de
apOIO(pequenas lojas, escolas, dispensários) a ele relacionados e
que, desde que constituam a maioria, são compatíveis com um
mínimo de atividades de pesquisa e de difusão do saber e da arte.
Considerados sob esta perspectiva, centros e bairros antigos re-
presentam atualmente um recurso raro, objeto de uma demanda
40. G. Bauer e J.-M. Roux, La Rurbanisation, Paris, Le Seuil, 1976.
236
antigo.
Já dispomos de algumas armas estratégicas contra os exces-
sos de um consumo patrimonial que tende a se converter em des-
truição. Mas, uma vez enumerados os dispositivos que devem ser
usados ou reforçados, a questão continua aberta: qual é o funda-
mento em que repousa a conservação do patrimônio histórico
arquitetônico num mundo que se muniu de recursos científicos e
técnicos para guardar na memória e interrogar seu passado sem a
mediação de monumentos ou de monumentos históricos reais?
Com efeito, quer se trate das funções econômicas e dos recursos
de entretenimento oferecidos pelo patrimônio na sociedade de
lazer, quer se trate de valores cognitivos, pedagógicos e artísticos,
nenhuma das motivações institucionalmente reconhecidas ou
reivindicadas permite interpretar o fervor com oqual oculto patri-
monial é celebrado e se difunde no mundo inteiro.
237
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A COMPETÊNCIA DE EDIFICAR
É tempo de fazer um balanço. Ao longo de minha exploração,
a dimensão européia dos conceitos de monumento e de malha his-
tórica não cessou de se impor, ao mesmo tempo em que essas no-
ções e as realidades que elas designavam assumiam valores cujo
inventário Riegl foi o primeiro a fazer. Chamei a atenção, também,
para a novidade e para a natureza diferente de um valor induzido
pelo desenvolvimento da indústria cultural cujo surgimento Riegl
não poderia prever: o valor econômico do patrimônio histórico.
Mas esse balanço descritivo não basta. Agora é necessário ques-
tionar seu sentido e colocá-lo numa perspect iva societal , tarefa fá-
cil no que diz respeito ao período anterior à década de 1960 e à
inflação patrimonial que a caracteriza: a pesquisa das antigüidades
ensinou os humanistas, depois os antiquários, a descobrir sua
alteridade e contribuiu assim para fundar a identidade da cultura
ocidental em sua relação com o tempo e a h istória, o saber e a arte .
Em seguida, a investigação dos monumentos e das malhas históri-
cas, bem como sua preservação e restauração, permitiu às gerações
romântica e vitoriana compreender a dignidade dos fazeres antigos
e as fez começar a intuir a essência da técnica , Até a segunda
1. Cf. nota 16, p. 20.
2. Cf. Martin Heidegger, La fin de Ia philosophie et le tournant , in Questions
IV,
trad. fr. Paris, Gallimard, 1976, p. 142 e ss.
239
A ALEGORIA DO PATRI MÔNIO
metade do século xx, essas atitudes continuaram a atuar na afir-
mação da personalidade cultural ocidental.
A inflação do patrimônio histórico arquitetônico iniciada na
década de 1960 deriva, porém, de outra lógica. Nem o jogo do
A COMPETÊNCIA DE EDIFlCAR
tuídas pela autocontemplação passiva e pelo culto de uma identi-
dade genérica. Os traços narcisistas que aí existem já devem ter
sido notados. O patrimônio teria assim perdido sua função cons-
trutiva, substituída por uma função defensiva, que garantiria a
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valores tradicionais, nem a lógica econômica trazida pela cultura
de massa esgotam seus excessos e tampouco explicam um cult
que se transforma em fetichismo. Poderíamos nos arriscar a invo-
car o famoso valor de ancianidade (Altertumswert), que, segund
Riegl, iria predominar sobre todos os outros no século
xx.
Con-
tudo, o historiador vienense lhe dá definições complicadas e à
vezes contraditórias. E se, em grande medida, ele o baseia na satis-
fação que se teria - por meio da observação dos edifícios antigo
- com a tomada de consciência do ciclo universal da criação-
destruição, nem por isso se compreende a popularidade de uma
tal percepção e a relação privilegiada que mantém com nossa épo-
ca. Sem dúvida, é preciso buscar outra direção e atentar para o
processo atual de acumulação dos bens patrimoniais.
o espelho do patrimônio: um comportamento narcisista
Esse processo parece agora desprezar seleções e classifica-
ções e visar uma~austividade simbólica, em detrimento da hete-
rogeneidade das culturas, dos usos e épocas àsquais pertencem os
bens acumulados. Esse processo reúne, do mais significativo ao
mais insignificante, os lugares de cultos religiosos e os lugares da
indústria, os testemunhos de um passado secular e os de um pas-
sado recente.· É como se, pela acumulação de todas essas realiza-
ções e de todos esses traços, se tratasse de construir uma imagem
da identidade humana. E aí se encontra o nó da questão: o patri-
mônio histórico parece fazer hoje o papel de um vasto espelho no
qual nós, membros das sociedades humanas do fim do século xx,
contemplaríamos a nossa própria imagem.
Em outras palavras, a observação e o tratamento seletivo dos
bens patrimoniais já não contribuem para fundar uma identidade
cultural assumida de forma dinâmica. Elas tenderiam a ser substi-
240
recuperação de uma identidade ameaçada.
Pode-se, com efeito, interpretar essa profunda necessidade
de uma auto-imagem forte e consistente como uma maneira, en-
contrada pelas sociedades contemporâneas, de lidar com trans-
formações de que elas não dominam nem a profundidade nem o
ritmo acelerado, e que parecem questionar sua própria identidade.
A adição de cada novo fragmento de um passado longínquo, ou de
um passado próximo que mal acaba de esfriar , dá a essa figura
narcisista mais solidez, precisão e autoridade, torna-a mais tranqüi-
lizadora e capaz de conjurar a angústia e asincertezas do presente.
Minha interpretação do culto patrimonial como síndrome nar-
cisista é corroborada pela análise de seu contexto cronológico.
Com efeito, o desenvolvimento da inflação patrimonial coincidiu
com o de uma perturbação cultural sem precedentes no seio das
sociedades industriais avançadas e, conseqüentemente, no mun-
do inteiro. O fim da década de 1950 confirmou uma revolução
técnica marcada pelo advento da era eletrônica: a partir de então,
memórias artificiais e sistemas de comunicação cada vez mais efi-
cientes se desenvolvem em escala planetária e se associam a ativi-
dades cada vez mais diversas e complexas, refletindo-se, num
processo de reação, sobre comportamentos e mentalidades.
Simbolizou-se pela noção de instrumento a atividade técnica
que, desde a época da pedra lascada até a das máquinas (inclusi-
ve), acompanhou a antropologização de nossa espécie, ou ainda,
nas palavras de Marx, a transformação da terra em mundo huma-
no. Mas os instrumentos eletrônicos ou eletronizados são de outra
natureza: eles requerem - de nosso corpo e particularmente de
nosso cérebro, que substituem, dotando-os de poderes até então
insuspeitados - uma interiorização, uma integração e uma assi-
milação que escondem sua necessária mediação e fazem deles
próteses de um novo tipo.
É justamente por isso que, para qualificar a revolução ou a
mutação que transformou a natureza da técnica, proponho o adje-
241
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
tivo protético , usado outrora por Freud , Esse termo permit
salientar a multiplicação das mediações e das telas que, por força
do uso das novas próteses, se postam entre os homens e o mundo,
assim como entre os próprios homens. Ele aponta também para a
A COMPETÊNCIA DE EDlrlCAR
nos da duração para nos instalar, ao mesmo tempo, na instanta-
neidade. O tempo orgânico da rememoração, do cálculo, do ques-
tionamento, da espera, das marchas e contramarchas nos é recusado.
Por sua vez, de uma outra maneira , o tempo cósmico das estações
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extensão da perturbação que a humanidade enfrenta atualmente.
Sejamos claros, porém. Concentrando-me aqui na técnica,
não ignoro de forma alguma a circularidade da relação que a liga
ao conjunto das práticas humanas, psicossociais, socioeconômicas,
econômico-políticas, que, por sua vez, determinam e condicionam
sua evolução. Para mim, trata-se apenas de apontar um aspecto
essencial da dinâmica societal.
Assim, o transporte ultra-rápido e a quase instantaneidade
das telecomunicações permitem-nos, cada vez mais, escapar às limi-
tações tradic ionais de lugar, de pertença ao espaço terrestre: fu n-
cionalmente, munindo-nos de uma mobilidade que nega a distância
e permite-nos exercer uma atividade ubiqüitária, assim como op-
tar pelo teletrabalho;
sensorialmente e socialmente,
interconectando
nossa experimentação corporal do mundo físico e esse contato
direto com os outros homens, cujo papel foi descrito, especial-
mente por Dino Formaggio, como inter-sornaticidade' :
Melvin M. Webber resumia os riscos dessa liberação espacial
no título de um célebre ensaio The Non-Place Urban Real' . Se-
gundo ele, a condição urbana estava prestes a ser definida apenas
por puras relações imateriais, pela constituição de comunidades
libertas de qualquer enraizamento. Essas intuições atualmente são
confirmadas pelo desenvolvimento do ciberespaço, cujo poder
irrealizante e a forma como nega duplamente a dimensão corporal
da condição humana e o papel do corpo na constituição do laço
social foram magistralmente demonstrados por Mark Slouka .
Além disso, as próteses que nos libertam do liame local livram-
3. Das Unbehagen in der Kultur
(1929), trad. fr. C. e J. Odíer,
Malaise dans Ia
civilisation, Paris, PUF, 1970, p. 39: O homem se tornou, por assim dizer, uma
espécie de deus
protético .
4. lntersomaticità, in L:Arte, Milão, Mondadori, 1981.
5. Melvin M. Webber, Explora tions into Urban Structure, Filadelfia, University of
.Pennsylvania Press, 1964.
6. War of the Worlds, Nova Iorque, Harper, 1995.
242
é esmagado pelas idas e vindas dos transportes aéreos de um hemis-
fério terrestre a outro, quer se trate de derramar os milhares de
turistas nas praias ou os legumes nos mercados.
Em uma palavra, a revolução protética atinge as sociedades
humanas no ocaso do século XX no nível mais profundo, em seu
enraizamento ao mundo por meio das categorias do tempo orgâni-
co e do espaço local. Estas observações rápidas são, aqui, meramen-
te indicativas: trata-se de sugerir a extensão, não assumida, de uma
desestabilização da identidade. Não se trata de apresentar um
quadro global da revolução cultural que levou à síndrome patrimo-
nial. Contudo, visto que meu livro trata do patrimônio arquitetônico
e urbano, evocarei de forma esquemática a incidência da revolução
eletrônica no campo da organização espacial, o que permitirá escla-
recer, de passagem, a dupla crise atual da arquite tura e da cidade.
O impacto das novas tecnologias sobre o âmbito das edi-
ficações das sociedades da segunda metade do século
XX
pode ser
resumido pela generalização e consagração de um urbanismo de
redes: , isto é, pela extensão, na escala dos territórios e do plane-
ta, de redes de infra-estruturas técnicas, associadas ao gigantismo
das redes de telecomunicações. Esse processo de reticulação dos
espaços físicos naturais e não naturais tem seu funcionamento ba-
seado numa nova lógica. Essa lógica de conexão distingue-se e
opõe-se às lógicas tradicionais locais de articulação do espaço cons-
truído, que se baseiam na harmonização dos elementos construídos
entre si e com seu contexto natural e cultural. As redes (fluidos,
energias, transportes, informação, etc.) constituem um dispositi-
vo sobre o qual basta a qualquer estabelecimento humano - mi-
núsculo ou gigantesco, singular ou formado por um agregado de
inúmeras unidades - conectar-se para poder funcionar.
7. Tive a oportunidade de comentar sobre isso em muitos artigo; . Em especial: Le
rêgne de l'urbain et Ia mort de Ia vílle , in La Vil/e, Paris, Editions, du Centre
Pornpidou, 1994, e De Ia dérnolition , Paris-Liege, Mardaga e Editions de
l'Arsenal, 1996.
243
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
As redes permitem ao homem libertar-se das limitações es-
paciais ancestrais (geológicas, geográficas, topográficas, etc.) qu
determinavam a localização, a implantação e a forma dos estabe-
A COMPETÊNCIA DE EDIFICAR
\ .irnio e da provocação, característica das artes plásticas contem-
porâneas. .' _
Uma segunda conseqüência da hegemoma da orgamzaçao
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lecimentos humanos. Promovendo um espaço isotrópico, elas per-
mitem tanto uma urbanização difusa e a reurbanização quanto a
formação de nebulosas metropolitanas, aglomerados densos, com
periferias concêntricas, assim como formações tentaculares ou li-
neares (ao longo dos vales fluviais ou do litoral), ou ainda estabe-
lecimentos pontuais e especializados nos entrecruzamentos dos
transportes ou em torno dos grandes equipamentos comerciais ou
culturais (centros de pesquisa científica, museus e seus anexos).
Nem é preciso salientar as vantagens, a liberdade e a eficácia
oferecidas por esses dispositivos e por essa lógica, que se tornou a
base de uma nova economia do território. Gostaria antes de ob-
servar duas conseqüências negativas de sua crescente hegemonia.
A primeira diz respeito à arquitetura. Contaminada pela lógica
das redes, a arquitetura muda de status e de vocação: os edifícios
individuais tendem cada vez mais a ser concebidos como objetos
técnicos autônomos, passíveis de ser conectados, enxertados ou
ligados a um sistema de infra-estruturas, liberados da relação
contextual que caracterizava as obras da arquitetura tradicional.
A figura do arquiteto perde seu papel de intercessor, e a maravilho-
sa invocação que lhe dirigia Eupálino ecoa agora no vazio. O en-
genheiro tende a substituir o arquiteto para conceber e construir
na tridimensionalidade objetos utilizando-se de todos os recursos
da assistência eletrônica e da virtualização. O arquiteto, por sua
vez, torna-se um produtor de imagens, um agente de marketing
ou de comunicação, que só trabalha agora em três dimensões fic-
tícias. No melhor dos casos, ele fica limitado a um jogo gráfico ou
mesmo plástico, que rompe com a finalidade prática e utilitária
da arquitetura e que o inscreve na estética intelectualista do es-
8. Ó corpo meu [...] vigiai minha obra ... Paul Valéry,
Eupalinos,
São Paulo, Edito-
ra 34, 1999,
2
ed, p. 67. Essas duas páginas de Valéry estão entre as mais be las
e mais profundas jamais escritas sobre arquitetura. Elas retomam, poeticamente,
as análises de Husserl sobre a espacialidade da natureza , cf. Edmund Husserl,
La terre ne se meut pas,
textos traduzidos por D. Franck, D. Pradelle e J. F.
Lavigne, Paris, Minuit, 1989.
244
rcticulada é o desaparecimento progressivo das malhas e dos am-
hientes articulados e contextualizados, como realização de uma
prática corporal viva e como vestígios patrimo~iais. Por um lado, a
lógica da articulação do
ed íf i cado
deixou de mteressar aos cons-
trutores, ofuscados pelas vantagens das novas técnicas, enquanto o
ensino e a aplicação destas abandonaram as escolas; por outr~,
como já vimos anteriormente , os restos das malhas u:banas anti-
gas vão se tornando, ano a ano, cada vez mais ra:os, devI~o ao.enve-
lhecimento e a uma insidiosa destruição, orgamzada e silenciosa, a
pretexto de adaptação aos usos contemporâneos. _ ,
Para além de uma inegável correlação entre revoluçao prote-
tica e inflação patrimonial, essas diferentes constataç?es j~stifi-
cam também a hipótese que associa a inflação patrimonial ao
narcisismo coletivo? Em primeiro lugar, seria necessário ter certe-
za de que o corpus do patrimônio seja objeto de uma imagem
especular. A imagem refletida pelo espelho patrimoni~~ n~o é ba-
nalmente nostálgica e anacrônica. Com efeito, como ]a VImos, a
partir do fim da década de 1950, as construções - testemunhos
de um passado recente cada vez mais próximo - foram,. por ~ua
vez, integradas em número cada vez maior ao corpu~ patnmomal:
edifícios-manifesto do movimento moderno, defendIdos pela asso-
ciação Docomomo, realizações espetaculares da _engenh~ria de
construção e até os malogros da habitação social sao associados .e
assimilados aos monumentos e aos tecidos históricos, confundI-
dos com eles. Esse amálgama de objetos que derivam de práticas
e lógicas diferentes, cuja heterogeneidade
é
camuflada sob a de-
nominação comum e falaciosa de patrimônio, nos dá de nós mes-
mos sob a forma de nossas realizações arquitetônicas, uma imagem
glob'al, una e inteira, que oculta a ruptura pr?voca~a pela mu~ação
em curso e conjura seu traumatismo pela
afirmação
de uma Iden-
tidade intacta.
A correlação entre a revolução protética e a função narcisista
9. p.
212,
nota 9.
245
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
do patrimônio construído esclarece, além disso, as
dificuldad :.;
suscitadas pelo valor de ancianidade de Riegl. Este percebia
muito bem, na sociedade de seu tempo, a iminência de uma nova
função retrospectiva daquilo que ainda era chamado de monu-
A COMPETÊNCIA DE EDlFICAR
É claro que, o patrimônio arquitetônico não é o único com-
ponente da imagem narcisista patrimonial. Essa imago se enrique-
cc com a museificação de todos os campos e tipos de atividade
humana. Para retomar a afirmação de um historiador suíço, o mu-
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mento histórico. Contudo, retrospecção nã o é sinônimo de constru-
ção especular, e, além disso, o campo dos monumentos históricos
continuava reduzido pelos limites da revolução industrial.
É
verdade que as perturbações causadas por essa revoluçã
tinham dado um valor e um sentido novos a t odos os edifícios qu
a precederam, e eles foram corretamente interpretados por espírito
tão diferentes como Haussmann, Cerdá ou Viollet-le-Duc, por
exemplo
10,
como portadores de uma mudança de civilização. D
resto, é evidente para o século XX que a revolução protética atual-
mente em curso tem suas raizes na segunda metade do século
XIX, que, combinando as invenções da estrada de ferro e do telégra-
fo, iniciava a era das grandes redes técnicas e da organização do
território. Mas não é menos verdade que as perturbações do espaço
cotidiano eram então limitadas: já tive oportunidade de definir a
transformação de Paris empreendida por Haussmann (1853-1870)
do ponto de vista da regularização '. As amarras com o mundo pré-
industrial ainda estavam longe de se romper. A despeito de grandes
té . 2 I . d
vanços ecmcos ,e as tampouco o senam urante a primeira me-
tade do século XX, sem dúvida por causa das duas guerras e da crise
econômica mundial. A maioria dos grandes arquitetos e daqueles
que então realizaram construções ainda tinham relações diretas com
os terrenos e as águas, os climas e os ventos, os vegetais e as esta-
ções. Eles conheciam também, por experiência, o comportamento
dos materiais e as regras de sua utilização.
10.
Cf., por exemplo, Haussmann,
Mémoires,
T lI, Paris, Harvard,
1891
p.
199.
Cerdá, Teoría general de Ia urbanizaeión, Madri, 1867, trad. fr. Paris, Le Seuíl,
1979, Viollet-le-Duc. Entretiens sur l'architecture. T II, Entr . 13, p. 111.
11. Pela primeira vez em The Modern City: Planning in the 19,h Century, Nova Iorque,
Braziller, 1969.
12. Esse período assistiu à generalização da eletrificação, ao desenvolvimento do
automóvel, da aeronáutica, do telefone, ao surgimento da televisão, etc. Mas o
impacto de sse s avanços foi reduzido tanto pelo custo humano das duas guerras
quanto pela concentração das pesquisas técnicas em objetivos ligados à guerra.
4 6
seu, que era uma instituição, tornou-se uma mentalidade. Não
.ipenas todos os savoir-faire e todos os artesanatos desaparecidos
ou ameaçados possuem agora seus museus, mas o mesmo acontece
com técnicas industriais e seus produtos (automóvel, estrada de
Ferro, fonógrafo, telefone, etc.).
Quanto aos museus de arte e às grandes exposições internacio-
nais promovidas sob sua égide, seu ecletismo triunfante bem pode
significar de uma só vez uma fragilização da atividade estética e
um Kunstwollen agonizante, cujas forças criativas se exaurem. O
desejo de arte contemporâneo parece não fazer mais restrições,
nem mesmo manifestar relutância em relação aos monumentos
de alguma civilização ou de qualquer época':'. Ele absorve com
avidez, e de forma indiscriminada, o conteúdo inteiro do museu
imaginário. Mas se nossa sensibil idade estética estivesse realmen-
te em condições de acolher todas as manifestações da arte univer-
sal não seria isto um indício de Kunstwollen reduzido
à
estaca
ze:o, privado desse poder de recusa que é o reverso de seu poder
de criar? De fato, a difusão planetária do museu de arte parece
nos colocar diante do mesmo processo narcisista e da mesma im-
potência que sofre o resto do corpo patrimonial. Esse fenômeno
poderia ser atribuído a uma carência de mesma natureza e dotado
do mesmo poder traumatizante ou ansiogênico.
Os verdadeiros ensejos da síndrome patrimonial
Limitar-me-ei aqui, contudo, de conformidade com os obje-
tivos deste livro, ao patrimônio arquitetônico e, portanto, à ima-
gem narcisista que ele reflete. Essa figura parece hoje a verdade
do valor de ancianidade e de um culto que seria, na realidade,
13. Cf. Riegl, Le culie moderne du monument e suas advertências sobre as vicissitu-
des do valor artístico relativo, op. cit., p. 113 e 55.
47
A ALEGORIA DO PATRI MÔNIO
contemplação e celebração de uma identidade do homem. Mas
que isto quer dizer exatamente?
A mitologia nos ensinou que Narciso morreu por não poder
separar-se nem esquecer-se de si por um momento . E então apren-
A COMPETÊNCIA DE EDIFlCAR
dessa advertência? A primeira tarefa que se impõe é procurar de-
terminar com precisão a natureza do agente traumático que teria
provocado tal montagem.
Para esse fim, é necessário sondar a imagem patrimonial com
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demos que o narcisismo é um estágio necessário, mas passageiro,
do desenvolvimento humano e que voltar a ele só poderia, afinal,
abrir o caminho para a neurose ou a loucura . Nessas circunstân-
cias, embora a figura que contemplamos no espelho do patrimô-
nio histórico seja o reflexo de objetos reais, nem por isso é menos
ilusória. A forma indiscriminada com que foram reunidos elimi-
nou todas as diferenças, heterogeneidades e fraturas. Ela nos tran-
qüiliza e exerce sua função protetora graças, precisamente,
à
redução e à supressão fictícia dos conflitos e das questões que não
ousamos enfrentar: instrumento de defesa eficaz numa situação
de crise e de angústia, mas instrumento transitório. Na sua função
narcisista, o culto do patrimônio só é justificável por um tempo: o
tempo de interromper simbolicamente o curso da história, tempo
de tomar fôlego na atualidade, tempo de confortar nossa identi-
dade antropológica a fim de poder continuar sua construção, tem-
po de reassumir um destino e uma reflexão. Passado esse prazo, o
espelho do patrimônio estaria nos precipitando na falsa consciên-
cia, na recusa do real e na repetição.
Quando o fetichismo e a inflação do patrimônio se revela-
rem em sua verdade semiológica, como síndrome, o que fazer
14. Cf. Ovídío, Metamorfoses, L. III, 340-510, especialmente: Ele se apaixona por
uma ilusão incorpórea . .. Ele admira tudo o que o torna admirável... Crédula criança,
por que te obstinas a apanhar uma imagem fugitiva? .. O objeto que tu amas ...volta-
te e ele desaparecerá ... Nem a preocupação de Ceres, nem a necessidade de sono
podem arrancá-lo daquele lugar... Ele morre, vítima de seus próprios olhos ... trad.
fr. Georges Lafaye, Les Belles Lettres, 1994. [trad. livre de Luciano V. Machado)
15. Sobretudo a partir dos trabalhos pioneiros de Freud, secundado por Jacques
Lacan, Le stade du miroir comme formateur de Ia fonction du Je in Écrits
Paris, Fayard, 1994. Le Seuil, 1996, e também por Pierre Legendre, principal-
mente em Leçons TIl, Dieu au miroir, Paris, Fayard, 1994, Legendre faz do
narcisismo uma estrutura fundamental de sua antropologia geral. É desse narci-
sismo incontornável que deriva o papel das antigüidades e dos monumentos
históricos na formação da identidade ocidental, antes da inflação patrimonial.
Esse narcisismo fundamental não deve ser confundido com as formas patológicas
da fase do espelho (da fixação imaginária).
248
um olhar
crítico
ou clínico que nos faça separar e ~issociar os ma-
teriais heterogêneos com os quais a construímos. E necessário que
paremos de confundir as realizações arquitetônicas e urbanas pré-
industriais com o conjunto das construções que se lhes sucede-
ram até hoje. Em outras palavras, é preciso sair da ficção narcisista.
Precisamos denunciar o amálgama no qual ela nos enleia, e que
nos faz também confundir história e memória, uma construção
conceitual do tempo e o poder, inerente à nossa condição cor-
poral, de mobilizar e estruturar a duração, que, como já
vímos' ,
é
requerida pelos monumentos intencionais .
Nesta época em que não construímos mais tais monumentos e
em que abandonamos os modos articulados tradicionais de cons-
truir, defrontamo-nos, no entanto, com a perda do poder sobre o
tempo orgânico que nos era oferecido por esses artefatos, por inter-
médio de nosso corpo. Esse poder, essarelação ancestral com a dura-
ção, são agora objeto de um desejo feroz e insaciável, vividos como
ausência e como carência intoleráveis, de que o patrimônio pré-
industrial constituiria a chave perdida, cujovazio a imago patrimonial
serviria simbolicamente para preencher.
Mas como explicar o efeito traumático exercido por essa ca-
rência? Para compreendê-lo, convém precisar como o espaço cons-
truído articulado e contextualizado, tradicionalmente implicou e
A •
h 17
pos em Jogo o orgamsmo umano .
O termo competência serve geralmente para designar essa
16. p. 17-29.
17. Não se pode deixar de comentar a relação, precária e específica, que continuamos
a manter com os grandes monumentos religiosos da humanidade, graças à experiên-
cia estética. É verdade que o projeto do mundo laico pretendeu, e em grande
medida conseguiu, ao menos no Ocidente, convertê-los em monumentos históri-
cos isto é transformá-tos em museu. Mas, independentemente das religiões que
os edíficaram, esses monumentos dedicados ao absoluto conservaram o frágil po-
der de fazer ressurgir o vigor matinal de uma pré-filosofia que a filosofia nunca
conseguiu substituir, o encantamento de uma busca que, em nosso mundo desen-
cantado, nem a ciência nem a reflexão crítica são capazes de propor.
249
A ALEGORIA DO I'ATRI MÓNIO
faculdade part icular ao homem que é a linguagem articulada. Com-
petência inata, dizem os especialistas, mas que só se concretiza
pela prática, pelo exercício. Se um filhote de homem não cons -
gue aprender a linguagem nas condições e nos prazos prescrito,
A COMPETÊNCIA DE EDIFICAR
que se afirma a hegemonia mundial das red~s.t~cn~cas no circuito
de realimentação que promove uma nova civilização.
Na realidade, porém, como já demonstrou Martin Heid~gger
em uma brilhante conferência de 1962
18
,
as línguas naturais e a
7/17/2019 CHOAY Françoise a Alegoria Do Patrimônio 2001_##
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pelo desenvolvimento da espécie, ele não falará e não se tornará
um homem integral.
Por analogia, e para postular sua dimensão fundamental e fun-
dadora, chamarei de competência de edificar a capacidade de art i-
cular entre si e seu contexto, com a mediação do corpo humano,
elementos cheios ou vazios, solidários e jamais autônomos, cujo
desdobramento na superfície da Terra e na duração tem um senti-
do tanto para aquele que edifica quanto para aquele que habita,
assim como tem sentido o desdobramento dos signos da lingua-
gem, de forma integrada e indissociável, no espaço sonoro e na
duração, para aquele que fala e para aquele que ouve.
Não deve ter passado despercebido, sob a expressão com-
petência de edificar , a origem da abordagem cuja lógica contrapus
à da conexão protética que caracteriza a organização atual do espa-
ço terrestre. Acomodando os homens no espaço terrestre e na dura-
ção, essa competência de edificar, que tradicionalmente atuava na
configuração das cidades, assim como na dos edifícios, na organiza-
ção das paisagens cultivadas e no traçado dos caminhos e das vias
de circulação, contribuiu - esta é a minha hipótese - para fundar
e refundar a relação dos seres humanos quer com o mundo natu-
ral quer com as regras transcendentes que os ligam entre si.
A aprendizagem da palavra por meio de exercícios metalin-
güísticos teria assim um homólogo na aprendizagem da edífi ca ção ,
envolvendo todo o organismo, também ela guiada pelo adulto e
pela instituição: mobilização de todos os nossos receptores senso-
riais de formas, peso, textura, luz, atentos e atuando juntos, seja no
construtor, seja no usuário. Pode-se estender um pouco mais a
comparação desde que não nos deixemos enganar pelas aparências.
Com efeito, numa primeira abordagem, as duas competências
pareceriam, no mínimo, diferir em grau e em suas condições de
vulnerabilidade. A competência da linguagem atualmente só pa-
rece ameaçada por catástrofes improváveis, enquanto a compe-
tência de edificar parece declinar diante de nossos olhos à medida
250
competência de que elas derivam atualmente tamb~m são ~os~as
em xeque pelo desenvolvimento mundial de uma hng~a tecn:ca
unívoca que funciona como a dos computadores. Essa ~mgua te c-
nica tem como única vocação informar do modo mais amplo e
I
.
9
mais exato possível. Ela tende a suplantar as ínguas naturais ,
diferentes no seio de cada cultura, que mantêm a ligação dos ho-
mens com o mundo e fundam, no tempo, seu aprofundamento.
Essa duas formas de acomodação dos seres humanos ~o mundo,
pela língua e pelo construir, iluminam-se uma à outra. A oposiç~o
entre o construir articulado e contextualizado e a construçao
reticulada das redes técnicas corresponde a oposição entre as lín-
guas tradicionais da diferença e a língua dos tecnólogos determi-
de mai , . 20
nada pelo que a técnica tem e mais caractenstlCo. . _
Assim, a eliminação, que está em curso, dessa dimensão antro-
pológica que é a competência de edificar é, sem dúvida, o acon~eci-
mento traumático que a cultura do patrimônio nos ajuda a conjurar
e a ocultar. Esse desaparecimento poderia também ser entendido
como o anúncio de uma mutação do
homo sapiens sapiens
e o
18. Überlieferte Sprache und technische Sprache, Saint-Gall, Erker Verlag, 1989, trad.
fr. e apresentação em francês por Michel Haar, Langue de tradition et langue
technique. Éditions Lebeer Hossrnann, 1990. A publicação póstuma dessa confe-
rência deve-se a Hermann Heidegger. Agradeço aqui ao meu colega Thierry Paquot,
que apresentou este texto a mim depois de uma exposição que fiz sobre o mesmo
tema em novembro de 1997, por ocasião dos encontros franco-Japoneses sobre a
cidade e a arquitetura, sob o título Comment parler aujourd'hui de Ia ville et ~e
I'architecture . Ignorando totalmente o texto de Heidegger, eu contrapunha a
transparência da linguagem internacional comum, cujo paradigma é dado pela
tecnociência e a opacidade das línguas originais que programam, para cada uma
de nossas sociedades, uma abordagem específica do espaço construído e natural .
19. Ela transforma a língua como dizer em língua como mensagem e simples produ-
ção de signos , Hcidegger, op. cit., p. 39.
20. lbid., p.
31.
21. Por outras razões, mas passíveis de aproximação, André Leroi-Gourhan julga que
o homo sapiens da zoologia provavelmente se encontra próximo do fim , Le Geste
et Ia parole, t. II, La mémoire et les rythmes, Paris, Albin Michel, 1965, p. 266.
251
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
surgimento, no horizonte dos possíveis, de uma nova espécie:
homo sapiens protheticus ...
Extrapolando uma série de tendência
atuais, pode-se, a título de exercício e sem julgamento de valor,
imaginar os ganhos e perdas que uma tal mutação acarretaria: por
A COMPETÊNCIA DE EDIFICAR
Suponhamos agora que nossa espécie não seja, no imediato,
confrontada com tal mutação. Ainda assim estaríamos condena-
dos em matéria de práticas patrimoniais, a um passadismo
encantatório? Pode-se ficar tentado a uma resposta afirmativa, ima-
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um lado, a fixação do poder de abstração sem precedentes, tendo
como correlatos um domínio cada vez maior do mundo o estabe-
lecimento de um novo tipo, mediatizado, de laço social e o desen-
volvimento de uma cultura do corpo baseada em sua reificaçãov:
por outro lado, entre asperdas, o essencial sem dúvida diria respei-
to ao papel global do corpo humano. E eu tomaria como paradigma,
sob o risco de repetir-me, o desaparecimento da competência que,
pela edificação de um espaço com elementos articulados, contex-
tualizados e modulados em dimensões humanas, reforça o nó que
torna indissociáveis nosso poder de simbolização e nossa pertença
à terra dos vivos.
Sair do narcisismo:
o
espelho patrimonial reclama
Essa hipótese radical abre uma saída para além do espelho pa-
trimonial. Com efei to, suponhamos que ela esteja se processando e
que o gênero sapiens sapiens esteja em processo de mutação: aferrar-
se, mesmo simbolicamente, a uma competência condenada, não te-
ria então nenhum sentido. A razão estar ia nos ordenando a quebrar
o espelho patrimonial, assumindo sua falácia. Todo o corpus do patri-
mônio arquitetônico e urbano perderia por completo qualquer valor
memorial afetivo para conservar apenas um valor intelectual, gnosio-
lógico e, claro, o valor de entretenimento que lhe confere a indústria
patrimonial. Ele requereria, pois, todas as épocas confundidas, uma
conservação bem equilibrada e de natureza museal. O sufocamento
atual seria reduzido
à
condição de moda, até que a sociedade protética
se cansasse das insossas rotinas da indústria cultural.
Trata-se, nesse caso, de uma hipótese extrema. É importan-
te, porém, que se saiba que não é irreal izável.
22. Cf. por exemplo David Lebreton,
Anthropologie du corps e t modernité,
Paris,
PUF, 1990.
252
ginando que, por um lado, o declínio de nossa competência para
edificar seja um fato e que, por outro, não se trata nem de parar a
história nem de renunciar aos poderes cada vez mais fabulosos de
que no; mune a era eletrônica. Mas será que somos mesmo ob.ri-
gados a pensar nosso destino do ponto de vista de uma alternativa
maniqueísta, esse ou isto, ou aquilo exclusivo e intransigente,
adotado de modo semelhante tanto pelos tecnólatras quanto pe-
los fetichistas do patrimônio? Não será necessário antes aprender
a admit ir que o desenvolvimento das redes técnicas de organiza-
ção do espaço é compatível com a preservação de nossa compe-
tência para edíficar? Giovannoni já não indicava essa via quando
afirmava, contra os protagonistas do Movimento moderno, a
compatibilidade de uma conservação viva das malhas antigas e de
sua lógica de articulação com uma organização espacial em uma
1
1
,· d - 23)
outra esca a, graças a uma ogica e conexao .
Já que, para recusar a peia das escolhas binárias e para con-
cretizar essa compatibilidade, de nada serve continuar a contem-
plar o espelho do patrimônio, não há outra solução senão atravessá-lo.
Com essa metáfora do espelho transposto, quero ressal tar a força
subversiva de uma abordagem do patrimônio que volte as costas
aos procedimentos dominantes: para começar, transposição refle-
xiva e crítica que opta, em plena e perfeita consciência, por uma
mudança radical de orientação, com suas implicações e seus ris-
cos; em seguida, transposição concreta e prática que abre, no cer-
cado patrimonial, o caminho árduo rumo a esse novo norte.
Só me resta agora, portanto, esboçar esses dois momentos.
23. Cf. Vecchie città ed edilizia nuova, op. c it ., e int rodução de F. Choay à tradução
francesa, Les villes anciennes face à l'urbanisme, Paris, Le Seuil, 1998. Na época
em que Giovannoni escreve, a competência de edífícar ainda não está a~eaçada
de desaparecer e e le não pensa globalmente a nova escala de orgamzaçao sob o
aspecto de redes. Mas a nova lógica de inte rconexão, que é a das redes, apresen-
ta-se-lhe em toda a s ua riqueza potencial, a ss im como a compat ibil idade da anti-
ga lógica tecidual com as exigências da vida moderna.
253
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
A orientação a assumir, já o disse, é ado reencontro com nossa com
petência de edificar. Limitar-me-ei a apontar, mais uma vez, s '\I
papel antropogenético, esclarecendo-o por meio de duas reprc
sentações que se fizeram dos dois extremos da tradição ocidental.
A COMPETÊNCIA DE EDI FICAR
Isso fica muito claro quando Ruskin exorta os arquitetos e os .
municípios de seu tempo a continuar a obra ancestral produzin-
do uma arquitetura histórica , isto é, contemporânea. Ele parece,
então, pecar por inconseqüência. Com efeito, no mesmo momen-
e criti elavelment ealizaçõe etura
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A primeira, auroral, é, mais uma vez, proposta pela mitologia
com
a obra de Déda lo? , herói tutelar dos arquitetos. Seu labirinto é
edifício humano por excelência' - o mais capaz de captar a du-
ração e de obrigar o espaço a retardar, aí, seu desdobrament ,
orientando-o para o sentido; o mais capaz de servir de iniciação à
alteridade humana; o mais temível também, que aprisiona ou li-
berta, e cujo poder criador só pode ser experimentado quando s
entrega a ele, de forma indissociável, a inteligência e o corpo. A
competência de edificar poderia ser chamada de poder dedálico.
A segunda representação - não mais imediata, mas provin-
da de uma postura reflexiva e pela primeira vez retrospectiva -
foi proposta por Ruskin num contexto de crise e sem explicitar de
forma plena o seu sentido. Cabe ao leitor atual interpretá-lo.
Ruskin foi acusado de passadista em razão da importância
que atribui ao patrimônio arquitetônico antigo em sua análise crí-
tica da sociedade contemporânea. De fato, para ele, trata-se de
uma herança considerada intangível, porque manifesta concreta-
mente o trabalho sagrado das sucessivas gerações, assim rememo-
radas por nós. Há duas palavras-chave: trabalho e memória. Esse
trabalho, retomado a cada geração, devendo sempre ser levado
adiante, não é outro senão o da competência de edificar. A sacra-
lidade de que seu desempenho é investido marca, sem ambigüi-
dade, sua vocação antropogenética. E a memória (viva) requerida
pelo conjunto da herança arquitetônica antiga, sem especificação,
já não visa reforçar a identidade particular de uma comunidade
humana particular, como faziam osmonumentos intencionais, mas
uma identidade genérica. .
24. Fraçoise Frontisy-Ducroux, Dédale, mythologie de l'artisan en Grêce ancienne,
Paris, Maspéro, 1975.
25. F. Choay,
La
métaphore du labytinthe et e destin de l'architecture , contribui-
ção ao seminário de Ro and Barthes no
Co ll êge
de France, 1979. Inédito em
francês, traduzido para o italiano por Ernesto d'Alfonso, in La meta/ora dellabi-
rinto, Reggio Emilia, 1984.
254
contemporânea e recomenda aos seus ouvintes renunciar a uma
vã imitação das formas passadas, Ruskin se mostra incapaz de defi-
nir ou simplesmente sugerir as formas novas que se devam buscar.
Na verdade, exorta-os a mobilizar, por intermédio de sua memó-
ria orgânica, um poder cuja criatividade é imprevisível. E, quando
condena o pastiche e a reprodução das formas do passado, denun-
cia desse modo o obstáculo erguido diante da memória orgânica
, ,
pela memória artificial das formas instituídas pela história da arte
e corroboradas pelos monumentos históricos - obstáculo mais do
que nunca presente nos dias de hoje e que, como observava com
perspicácia Viollet-Ie-Duc, só pode ser superado por uma prática
deliberada do esquecimento, mediante uma dura dialética da me-
mória e da história .
Que seja - haverão de me dizer. Mas o poder dedálico que
permite articular o espaço natural para dele fazer um meio huma-
no e nele promover um co-t'habitar institucionalizado - esse
poder seria realmente de mesma natureza que a competência da
linguagem? Da mesma forma que as diversas línguas das diferen-
tes culturas derivam da mesma e única competência da linguagem
articulada, pode-se afirmar também que as diferentes modalida-
des ou configurações - segundo as quais as diferentes culturas
organizam de forma mais ou menos precária seu meio espacial e
sua maneira de habitar - remetem a uma única e mesma compe-
tência de edificar?
Como esta se manifestaria, por exemplo, nas civilizações
nômades? De forma diferente, sem dúvida, que nas civilizações
sedentárias. Mas também seus acampamentos e trajetos (se não
seus caminhos) são articulados e contextualizados: seu não-enraiza-
26. Cf. especialmente Lecture on Architecture and Painting, Delivered at Edinburgh
in November 1853 , e também os textos já citados.
27. cr p. 140 e notas 32, 33.
255
A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO
mento em lugares não exclui a arte do traçado; ele correspond u
uma relação com a terra e com o céu mais diretamente corporal
que a nossa, relação que as conquistas da técnica e sua tendência
protética vão tornando cada vez mais frágil, senão impossível. ~
A COMPETÊNCIA DE E DIFICAR
dimensões do espaço humano, suas escalas, articulação, contextua-
lização, na duração de travessias, incursões e percursos compará-
veis ao saber de cor da memória orgânica, agora desprezados pela
instituição escolar, que permitiam aos estudantes de outrora apro-
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por isso que, ainda que nos contentemos em estabelecer entre a
competência da linguagem e a de edificar uma relação de analogia,
e não de identidade, esta última noção deve, neste momento em
que se mundializa - que é também o momento da prótese genera-
lizada -, ser objeto de toda a nossa atenção. Recuperar a competên-
cia de articular espaços de vida - essa mesma competência que, ao
longo dos milênios, contribuiu, num mesmo movimento, para an-
corar os homens no meio natural ao qual pertencem como seres
vivos, fazendo-os recomeçar sempre a instituição de sua comunida-
de - parece-nos, atualmente, um dos meios mais consubstanciais
à nossa espécie para defendê-Ia contra a perda do mundo concreto
em sua relação com o corpo humano e, por conseqüência, a um só
tempo, contra a desnaturação da sociedade humana e sua desinsti-
tucionalização . No antigo toscano, a palavra terra significava tanto
o solo terrestre como a cidade/ .
r:
O
fato de ter substituído a questão do patrimônio na pers-
( pectiva antropológica, que é a sua, não fornece, contudo, os meios
\ de se reapropriar da competência de edificar, isto é, de empreen-
der a travessia concreta e prática do espelho patrimonial que ago-
'ra.é preciso evocar.
Essa travessia só pode ser tentada pela mediação de nosso
corpo. Ela passa, precisamente, por um corpo-a-corpo: o do corpo
humano com o corpo patrimonial. Ao primeiro, cabe mobilizar e
pôr em alerta todos os seus sentidos, restabelecer a autoridade do
tato, da cenestesia, da cinestesia, da audição e do próprio olfato, e
recusar ao mesmo tempo a hegemonia do olho e as seduções da
imagem fotográfica ou digital. Ao segundo, caberia um papel
propedêutico: fazer que sejam aprendidas ou reaprendidas as três
28. Sobre a noção de desinstitucionalização e as noções afins de des-fundação, des-
civilização, desinstituição de massa, cf. os trabalhos de Pierre Legendre, por exem-
plo Leçon I. La 901'm, conclusion, Paris, Fayard, p. 348.
29. Cf especialmente Leon Battista A1berti, I libri della famiglia, nova edição, org.
Francesco Furlan, Turim, Einaudi, 1994.
256
priar-se de seu patrimônio literário. . ~ . . ~. . .
/Esse papel propedêutico do patnmoruo arqUlte:omco diria
respeito, identicamente, a todos os membros das sOC1eda~es.que
sofrem esse processo de prótese. Não tendo mais por objetivo a
conservação do patrimônio que tem, como tal, um interesse ape-
nas relativo e limitado, mas a conservação de nossa capacidade de
lhe dar continuidade e de substituí-lo, essa propedêutica exigiria
repensar e reinstaurar a totalidade de nossas práticas atuais do pa~ri-
mônio. Doravante ela regulamentaria as visitas e a restauraçao,
assim como sua reutilização, que seria preciso generalizar e prio-
rizar, em relação à sua museificação. Enfim, essa propedêutica do
patrimônio encontraria, pela primeira vez, seu lugar na esc~la~ e
reencontraria um lugar, há muito perdido, nas escolas profissio-
nais, que levariam à reatualização de mu~tas, atividad~s a~tesa~ais.
A hipótese que acabo de esboçar nao e, como ]a afirmei, de
modo algum incompatível com uma organização espacial reticulada
em escala planetária e territorial. Ao contrário, as duas abordagens
são complementares, desde que respeitem suas especificidades e
suas lógicas respectivas, sem buscar assimilá-Ias umas às outras.
Com esta condição crítica, as redes técnicas de organização espa-
cial, assim como todas as próteses eletrônicas e informáticas que
as acompanham, podem assumir uma função libertadora tendo
em vista uma vida mais humana - dispositivos nos quais se
conectariam os fragmentos das cidades antigas e os novos espaços
articulados, acolhedores para com a instituição socia l e, assim como
a arquitetura e a cidade tradicional, sempre comprometidos com
o tempo e fadados à transformação.
( 5
Quando deixar de ser objeto de um culto irracional e de uma
valorização incondicio~al, n~o sendo ~ortanto nem relíqui~, ne~
gadget*, o reduto patnmomal podera se tornar o terreno inesti-
~ável de uma lembrança de nós mesmos no futuro.
* Gadget: aparelho ou pequeno objeto prático, divertido por seu caráter de novi-
dade. (N. T.)
257
A ALEGORIA DO PATRIMÓNIO
Mas não nos enganemos. Uma hipótese dessa natureza nã
poderá se realizar nem pelo contágio de exemplos singulares, nem
pela instigação das burocracias de Estado. Ela implica um destin
antropológico, uma visão de mundo e uma opção social cuja ur-
gência pode ser avaliada pela extensão da síndrome patrimonial
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por sua interpretação.
Representado por um labirinto dissimulado pela superfíci
cativante de um espelho, o patrimônio arquitetônico e urbano, com
as atitudes conservatórias que o acompanham, pode ser decifrado
como uma alegoria do homem na aurora do século XXI: incerto da
direção em que o orientam a ciência e a técnica, busca um cami-
nho no qual elas possam libertá-lo do espaço e do tempo para, de
orma diferente e melhor, deixar que os invista.
58
ANEXO
Relatório apresentado ao rei em
21
de outubro de
1830
por
Guizot, Ministro do Interior, para que se criasse o cargo de
inspetor geral dos monumentos históricos na França.
Vossa Alteza,
Os monumentos históricos que cobrem o solo da França cau-
sam admiração e inveja
à
Europa erudita. Tão numerosos quanto
os dos países vizinhos e mais variados, eles não pertencem apenas
a uma determinada época da História, mas formam uma série com-
pleta e sem lacunas; desde os druidas até os nossos dias, não há
uma época memorável da arte e da civilização que não tenha dei-
xado em nossa terra monumentos que a representem e expliquem.
Assim, ao lado de túmulos gauleses e de pedras celtas, temos tem-
plos, aquedutos, anfiteatros e outros vestígios da dominação ro-
mana que podem rivalizar as obras-primas da Itália - a época da
decadência e das trevas também nos legaram seu estilo irregular e
degradado; mas quando os séculos
XI
e
XII
trouxeram de volta ao
Ocidente a luz e a vida, surge uma arquitetura nova, que assume
em cada uma de nossas províncias uma fisionomia distinta, embo-
ra marca da por um caráter comum: mistura singular da antiga arte
dos romanos, do gosto e do capricho oriental, das inspirações ain-
da confusas do gênio germânico. Esse tipo de arquitetura serve de
transição para as maravilhosas construções góticas que, durante
os séculos
XIII, XIV
e
XV
se seguiram ininterruptamente, cada dia
mais leves, mais ousadas, mais ornamentadas, até o momento em
que, sucumbindo sob a própria riqueza, elas enfraquecem, tor-
nam-se mais pesadas e terminam por dar lugar à graça elegante
59
A A LEGORIA DO PATRIMÓNIO
mas passageira da Renascença. Tal é o espetáculo que nos ofere '
esse maravilhoso encadeamento de nossas antigüidades nacionais
e que faz de nosso solo tão precioso objeto de pesquisas e estudos.
A França não pode ficar indiferente a essa parte notável d
ANEXO
A criação do cargo de inspetor geral dos monumentos histó-
ricos da França parece-me responder a essa necessidade. A pessoa
a quem se confiar essa função deverá antes d: mais nad~ procurar
meios de dar às intenções do governo um carater de conJunto e de
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sua glória. Já nos séculos precedentes, a alta erudição dos benediti-
nos e de outros sábios mostrara, nos monumentos, a fonte de gran-
des luzes históricas; mas, no que diz respeito à arte, ninguém ainda
percebera sua importância.
Ao final da Revolução Francesa, artistas esclarecidos, qu
haviam assistido ao desaparecimento de grande número de monu-
mentos preciosos, sentiram a necessidade de preservar o que ha-
via escapado à devastação: o museu dos Petits-Augustins, fundado
pelo senhor Lenoir, preparou a retomada dos estudos históricos e
fez que fossem apreciadas todas as riquezas da arte francesa.
A dispersão fatal desse museu despertou ovivo interesse dos
arqueólogos e artistas pelo estudo dos vilarejos; com isso, a ciên-
cia alargou seu campo de atividades e se tornou mais dinâmica'
,
bons escritores reuniram-se à elite de nossa escola de pintura para
dar a conhecer os tesouros da antiga França. Esses trabalhos, que
se multiplicaram durante os últimos anos, não tardaram a produzir
bons resultados nas províncias. Criaram-se centros de estudo' mo-
numentos foram preservados da destruição; as câmaras munici-
pais e comunais destinaram verbas para esse fim; o clero foi impe-
dido de fazer as reformas descabidas que um gosto equivocado
por renovação impunha aos edifícios sagrados.
Esses esforços, porém, produziram apenas resultados incom-
pletos: faltava à ciência um centro que dirigisse e orientasse as
boas intenções manifestadas em quase todos os cantos da França;
era preciso que o impulso viesse da própria autoridade superior e
que o Ministro do Interior, não se limitando apenas a propor às
Câmaras uma alocação de recursos para a conservação dos monu-
mentos franceses', impusesse uma orientação esclarecida ao zelo
das autoridades locais.
I. F. Rücker indica que ele em vão procurou indícios de uma tal proposição nas
deliberações das Câmaras, em 1830. A primeira alocação de recursos para a
conservação dos monumentos data de 1831.
260
regularidade. Para isso, ela deverá percorrer, um após ?utro, tAod~s
os departamentos da França, certificar-se in loco da importanCla
histórica ou do valor artístico dos monumentos, colher todas as
informações referentes à distribuição dos documentos ou objetos
acessórios que podem esclarecer sobre a origem, os progressos ou
a destruição de cada edifício; verificar sua existência rec~rrendo.a
todos osdepósitos, arquivos, museus, bibliotecas ou coleçoes parti-
culares' entrar em contato direto com as autoridades e as pessoas
que se dedicam a pesquisas relativas à hi~tória d: c~da 10cali.d~~e.
Deverá informar os proprietários sobre a importanCla dos edifícios
cuja conservação depende de seus cuidados e estimular, enfim,
orientando-o o zelo de todos os conselhos de departamento e das
municipalidades, de forma que nenhum monumento d~ :alo~ in-
contestável pereça em razão da ignorância ou da preClpitaçao e
sem que as autoridades competentes tenham feito todo o possível
para garantir sua preservação, e de modo também que a boa ~on-
tade das autoridades ou dos particulares não se esgote em objetos
indignos de seus cuidados. Esse equilíbrio entre o cuidado e a
indiferença na conservação dos monumentos só pode ser alcança-
do por meio de múltiplos contatos que só ~m insp:tor pod;r.á
estabelecer; ele prevenirá qualquer reclamaçao e dara aos espin-
tos mais renitentes a consciência da necessidade que tem o gover-
no de zelar ativamente pelos interesses da arte e da História.
O inspetor geral dos monumentos históricos deverá prepa-
rar, nessa primeira e grande viagem de inspeção, um .catálogo pre-
ciso e completo dos edifícios ou monumentos isolados ~ue
mereçam séria atenção do governo; cuidará para que, na medida
do possível, esse catálogo seja acompanhad? .de,~esenhos e.de
plantas, e enviá-Ios-a, sucessivamente, ao Ministério ~o. Intenor,
onde serão classificados e consultados, quando necessano. Deve-
rá se empenhar em escolher em cada localidade principal um cor-
respondente, que submeterá à aprovação do Minis.tro, e ele p~óprio
deverá estabelecer contatos oficiais com as autondades locais. Os
261
A ALEGORIA DO PA TRI MÔNIO
préjets (administradores) dos departamentos serão informados pri-
meiro sobre as instruções do inspetor geral dos monumentos his-
tóricos da França, recebendo, depois, excerto do catálogo geral
relativo acada departamento.
a préfet
dará conhecimento deles a
todos os conselhos e autoridades aos quais possam interessar.
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a
inspetor geral dos monumentos históricos deverá fazer o
maior número possível dessas viagens de inspeção, organizando o
seu roteiro, a cada ano, com base nos pareceres dos
préjets
e dos
correspondentes autorizados pela administração. No caso de desti-
nação de verbas do fundo para a conservação dos monumentos da
França, ou de despesas análogas votadas pelos departamentos ou
pelas cornunas, o inspetor geral dos monumentos históricos deve-
rá ser consultado.
as emolumentos anuais desse funcionário serão de oito mil
francos.
a
valor da ajuda de custo para viagens será fixado posterior-
mente.
Le Moniteur
de 18 de outubro de 1830.
262
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS*
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Grégoire and the French Revolution.
Londres, Sand
and Co.,
1910.
AUBREY,J. Monumenta britannica: chronologica architectura. Londres,
1670.
* As obras não editadas citadas (teses, dissertações diversas) não figuram nesta
lista. Para a bibliografia de G. Giovannoni, cf. DeI Bufalo. A abreviatura
ACHA
remete a
Acts D f the XXVth Congress D f the History D f Art
(1980), v. III, The
Pennsylvania State University Press, 1989.
263