ciências & cognição. volume 14, número 1, março 2009. · 2009-09-26 · originalmente,...

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Ciências & Cognição. Volume 14, Número 1, Março 2009. ISSN 1806-5821. Revista Eletrônica de Divulgação Científica. © ICC - Instituto de Ciências Cognitivas. Revista Oficial do Instituto de Ciências Cognitivas.

Ciências & Cognição é uma publicação apoiada pelo Instituto de Ciências Cognitivas (ICC), MCT-CNPq, MEC-CAPES e Governo Federal.

Revista Ciências & Cognição: A/C Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Av. Carlos Chagas Filho, S/N, Centro de Ciências da Saúde, Instituto de Bio-física Carlos Chagas Filho, Bloco G, sala G2-032/019, Cidade Universitária, Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ 21.941-902.

Nominata – Corpo Editorial

Editores-chefes: Dr. Alfred Sholl-Franco (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Gláucio Aranha (ICC, Juiz de Fora, MG), Dr. Mário César Lugarinho (USP, São Paulo, SP), Dr. Mauricio Aranha (ICC, Juiz de Fora, MG).

Conselho Editorial: Dr. Alfred Sholl-Franco (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Gláucio Aranha (ESAJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Mário César Lugarinho (USP, São Paulo, SP), Dra. Eliana Yunes (PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Mauricio Aranha (ICC, Juiz de Fora, MG), Dr. Jorge Bidarra (UNIOESTE, Cascavel, PR).

Pareceristas/Consultores Nacionais: Dr. Adroaldo V. Coelho (IBMR, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Afonso de Albuquerque (UFF, Niterói, RJ), Dra.Agnella da S. Giusta (PUC-Minas, Belo Horizonte, MG), Dr. Alex Sandro Gomes (UFPE, Recife, PE), Dr. Alfred Sholl-Franco (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Ana Cristina B. da Cunha (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Ana Lúcia M. Ventura (UFF, Nite-rói, RJ), Dra. Ana Lucia R. de Oliveira (UFU, Uberlândia, MG), Dra. Ana Paula F. B. Cupertino (UFJF, Juiz de Fora, MG), Dra. Andréa G. da Fonseca (UNESA, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Aniela I. França (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Bernard P. Rangé (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Carlos Henrique de S. Gerken (UFSJ, São João Del Rey, MG), Dra. Carmem Lúcia Dias (UNESP, São Paulo, SP), Dra. Cláudia D. Vargas (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Claudio Alberto Serfaty (UFF, Niterói, RJ), Dr. Cristiano Mauro A. Gomes (UFMG, Belo Horizonte, MG), Dra. Daniela Uziel Rozental (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Eduardo José Manzini (UNESP, São Pau-lo, SP), Dra. Elaine Vieira (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Dra. Elis Regina da Costa (FAIT, Itapeva, SP), Dra. Elsa Maria M. P. Pullin (UEL, Londrina, PR), Dra. Elizabeth Veiga (PUC-PR, Curitiba, PR), Dr. Emerson da C. Inacio (USP, São Paulo, SP), Dr. Evandro Ghedin (FSDB, Manaus, AM), Dra. Fátima Regina Machado (PUC-SP, São Paulo, SP), Dr. Francisco das C. A. da Silveira (UFF, Niterói, RJ), Dr. Francisco Antonio P. Fialho (UFSC, Florianópolis, SC), Dr. Franklin S. Santos (USP, São Paulo, SP), Dr. Gerson A. Janczura (UnB, Brasília, DF), Dr. Gláucio Aranha (ESAJ, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Graciela I. de Jou (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Dr. Haller Elinar S. Schunemann (UNASP, São Paulo, SP), Heloisa P. de M. Feltes (UCS, Caxias do Sul, RS), Dra. Ingrid H. Ambrogi (Mackenzie, São Paulo, SP), Dr. Lauro Eugênio G. Nalini (UFG, Goiânia, GO), Dra. Leila Regina D'O. de P. Nunes (UERJ, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Liliana S. Jacob (Pesquisadora autônoma, SP), Profa. Lúcia Helena Barbosa (DMSP, Barbacena, MG), Dr. Luiz Ernesto Merkle (UTFPR, Curitiba, PR), Jalton G. T. Pinho (CNEN , Rio de Janeiro, RJ), Dr. Jan Edson R.-Leite (UFPB, São Luiz, PB), Jeane Gláucia Tomazelli (INCA, Rio de janeiro, RJ), Dr. João de F. Teixeira (UFSCAR, São Carlos, SP), Dr. José Carlos Leite (UFMT, Cuiabá, MT), Dr. Jorge Bidarra (UNIOESTE, Cascavel, PR), Dr. Jorge C. da Costa (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Dr. Jorge Luiz Antônio (UAM, São Paulo, SP), Dra. Magda Damiani (UFPEL, Pelotas, RS), Dr. Marcelo da S. Alves (UFJF, Juiz de Fora, MG), Dra. Marcia Regina S. Brito (UNICAMP, Campinas, SP), Dr. Marcos Emanoel Pereira (UFBA, Salvador, BA), Dra. Maria Cecília Rafael de Góes (UNIMEP, Piracicaba, SP), Dr. Mario Cesar Lugarinho (USP, São Paulo, SP), Dr. Maurício Aranha (ICC, Juiz de Fora, MG), Dra. Patrícia Maria M. Torres (UNESA, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Paula Campello-Costa (UFF, Niterói, RJ), Dra. Paula Ventura (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Dr. Paulo G. Lima (FAECH, Hortolândia, SP), Dra. Priscilla O. Silva (UFF, Niterói, RJ), Dra. Renata F. F. Lopes (UFU, Uberlândia, MG), Dr. Renato Miranda (UFJF, Juiz de Fora, MG), Dr. Ricardo Wainer (UNISINOS, Porto Alegre, RS), Dr. Robélius De Bortoli (UNESC; SABAVI, Vitória, ES), Dra. Simone da S. Machado (UNISC, Santa Cruz do Sul, RS), Dra. Simone Maria A. P. de Sá (UFF, Niterói, RJ), Dra. Sueli G. de Carvalho (Mackenzie, São Paulo, SP), Dra. Suzete Venturelli (UnB, Brasília, DF), Dra. Sylvia Beatriz Joffily (UENF, Campos dos Goytacazes, RJ), Dra. Tattiana G. Teixeira (UFSC, Florianópolis, SC), Dr. Tho-maz Decio A. Siqueira (UFAM, Manaus, AM), Dra. Valdemarina B. de A. e Souza (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Dr. Walter F. Boechat (IBMR - RJ), Dr. Wilson Mendonça (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ).

Pareceristas/Consultores Internacionais: Dra. Cristiane M. da Cruz (Millipore Inc., Strasbourg, França, Dra. Jainne M. Ferreira (New York University, New York, USA), Dr. Jorge de Almeida Gonçalves (FCSH, Lisboa, PT)

Consultores ad hoc: Dra. Daniela B. da S. Freire Andrade (UFMT, Cuiabá, MT), Dr. Hélder E. da Silveira (UFU, Uberlândia, MG), Dr. Francismara N. de Oliveira (UEL, Londrina, SC), Dra. Evelyse dos S. Lemos (Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ), Dr. José Ternes (UCG, Goiânia, GO), Dra. Marta Abdala-Mendes (CEFET, Volta Redonda, RJ), Dra. Marli Navarro (Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ), Dra. Meire I. R. Soares (UniEVANGELICA, Goiânia, GO), Dra. Neli Freitas Klix (UEL, Londrina, PR), Dr. Paulo Roberto de Carvalho (Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ), Prof. Dr. Ricardo N. de Castro Monteiro (Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, SP), Dra. Tatiana Seniciato (UNESP, Bauru, SP).

Produção e Realização: Instituto de Ciências Cognitivas (ICC).

Equipe Técnica: Gustavo Souza da Silva (Normalização), Luiz Carlos D. Franco (Revisão de Língua Inglesa), Igor Mechler (Assessoria de Imprensa), Anderson de Oliveira (Design).

Site: http://www.cienciasecognicao.org.

Dúvidas: [email protected].

Atendimento: [email protected].

Submissão: [email protected].

Cien. Cogn., Vol. 14 (1), 2009 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 31 de março de 2009

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Conteúdo Cien. Cogn., Vol. 14 (1), março, 2009. Índice Página

Editorial. Gláucio Aranha.

01

Memória visual e tátil-cinestésica para estimativas de comprimento e área. Visual and haptic memory for length and area estimates. Paula Mariza Zedu Alliprandini, Andrea de Paula e Ricardo Tadeu Sandrini Barcellos

02

O método interdisciplinar de investigação da consciência consciente de si. The interdisciplinary method of research on the consciousness conscious of itself. Everaldo Cescon.

14

O jogo de regras como recurso para avaliação e intervenção: um estudo piagetiano com ado-lescentes. The game of rules as a resource to evaluation and intervention: a piagetian study with teenagers. Claudimara Chisté Santos e Antonio Carlos Ortega.

26

A manifestação de habilidades cognitivas em atividades experimentais investigativas no ensi-no médio de química. The cognitive skills expressed in investigative laboratory work in the secondary chemistry education. Rita de Cássia Suart e Maria Eunice Ribeiro Marcondes.

50

A expressividade do professor universitário como fator cognitivo no ensino-aprendizagem. The expressiveness of the university teacher as cognitive factor in the teach-learning. Naymme Barbosa, Elione Soraia Cavalcanti, Eliene Alves Lacerda Neves, Tânia Afonso Chaves, Francisco Ângelo Coutinho e Eduardo Fleury Mortimer,

75

Observação das evidências cognitivas de aprendizagem motora no desempenho de jovens vio-lonistas monitoradas por eletroencefalograma: um estudo piloto. Observation cognitive evidences of the motor learning in the performance of young guitarists monitored by electroencephalogram: a pilot study. Ana Clara Bonini-Rocha, Marilda Chiaramonte, Milton Antonio Zaro, Maria Isabel Timm e Daniel Wolff.

103

Analogias em livros didáticos de química: um estudo das obras aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio 2007. Analogies in chemistry textbooks: a study about the books approved by the National Plan of Textbooks for High School Students 2007. Wilmo Ernesto Francisco Junior.

121

Utilização do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras como instrumento facilitador no ensino dos biomas brasileiros. Utilization the game Super Trunfo Brazilian Trees as a facilitator instrument education of brazilian biomes. Alisson Reis Canto e Marcelo Augusto Zacarias.

144

A educação profissional de nível técnico de automobilística do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ): um olhar curricular para as questões ambientais. The professional education of automobile curse at technical level in the Federal Center of Technological Education “Celso Suckow da Fonseca” (CEFET/RJ): a look at curriculum for environmental issues. Jorge Luiz Silva de Lemos, Sidnei Quezada M. Leite e Marco Antonio F. da Costa.

154

Ciências & Cognição ISSN 1806-5821

Volume 14, Número 1 Março 2009

Cien. Cogn., Vol. 14 (1), 2009 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 31 de março de 2009

3

Acerca dos possíveis compromissos entre as obras de Gaston Bachelard e de Jean Piaget. On the relationship between Gaston Bachelard’s and Jean Piaget’s works. Marcelo Leandro Eichler.

171

Reflexões sobre palavra, sentido e memória em Freud e Saussure. Reflections about word, meaning and memory in Freud and Saussure. Coraci Helena do Prado.

195

Inteligência artificial e pensamento: redefinindo os parâmetros da questão primordial de Turing. Artificial intelligence and thinking: redefining parameters of Turing's primordial question. Diego Zilio.

208

Erros humanos: considerações sob um ponto de vista cognitivo aplicado a processos criativos de negócios. Human errors: consideration under an applied cognitive point of view to creative processes of businesses. Antonio Costa Gomes Filho, Tarcisio Vanzin e Fernando Antonio Forcellini.

219

A necessidade de contribuições da ciência cognitiva para o aumento da produtividade do trabalho humano nas organizações. The need for contributions of cognitive science for increase the productivity of human work in organizations. Thaís Spiegel e Vinícius Carvalho Cardoso.

233

A sexualidade negada do doente mental: percepções da sexualidade do portador de doença mental por profissionais de saúde. Sexuality denied of mental ill: perceptions of sexuality holder mental illness by health professionals. Patrícia Francisca de Brito e Cleide Correia de Oliveira.

246

Cognição e valores: dois aspectos da educação. Cognition and value: two aspects of education. Rita de Cássia Ribeiro Voss.

255

Processos cognitivos como elementos fundamentais para uma educação crítica. Cognitive processes as major elements for a critical education. Ruben de Oliveira Nascimento.

265

Modelos organizadores, sujeito e educação: considerações a partir do pensamento complexo. Organizer models, subject and education: considerations about de complex thinking. Leonardo Lemos-de-Souza.

283

Reflexões sobre conceitos estruturantes em biossegurança: contribuições para o ensino de ciências. Reflections on structural concepts in biosafety: contributions to the teaching of science. Maria Eveline de Castro Pereira, Marco Antonio F. da Costa, Maria de Fátima Barrozo da Costa e Claudia Jurberg.

296

Problemas psicossociais. Análise de produção. Maria Helena Mourão Alves Oliveira.

304

Entre o texto e sua pluralidade, o mediador. Flávia Brocchetto Ramos.

308

Normas para publicação. 312

1

O presente volume marca o quinto ano de publicação do periódico Ciências & Cogni-

ção. Nesta edição, reforçamos o compromisso editorial com a abordagem multidisciplinar dos

estudos da cognição, estabelecendo um rico e produtivo diálogo entre diferentes campos que

contribuem para a percepção da questão cognitiva em sua complexidade.

O projeto cognitivista empenha esforços interdisciplinares com o fim de estabelecer

uma compreensão acerca das relações mente-cérebro. Neste sentido, estabelece um rico diálogo

entre diferentes campos acadêmicos na confecção de um mosaico teórico sobre o conhecer e o

conhecimento, ou seja, como o ser humano pensa, se expressa, compreende, aprende e apreen-

de o seu entorno.

Originalmente, eram compreendidas por Ciências Cognitivas ou, tanto melhor, Ciências

da Cognição: as neurociências, a psicologia, a linguística, a filosofia e a inteligência artificial.

Esta perspectiva se expandiu diante da natureza complexa do projeto cognitivista, passando a

abraçar outras áreas e sub-áreas, tais como a Educação (ensino-aprendizagem e outras sub-

áreas), Engenharia do Conhecimento, Ciências Sociais (sociologia, antropologia e história do

conhecimento) Odontologia (Odontologia Social e preventiva), Ciências Sociais Aplicadas

(gestão de informação, estética de massa e linguagens), dentre tantos outros.

Alinhado com este projeto, o periódico Ciências & Cognição orienta sua política edito-

rial para a divulgação de trabalhos científicos de caráter interdisciplinar voltados para a com-

preensão dos fenômenos cognitivos em sua complexidade, ampliando o horizonte dos debates

acadêmicos em torno do tema.

Gláucio Aranha Conselho Editorial Ciências & Cognição

Editorial

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 01 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 31 de março de 2009

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Memória visual e tátil-cinestésica para estimativas de comprimento e área

Visual and haptic memory for length and area estimates

Paula Mariza Zedu Alliprandini , a, Andrea de Paulab e Ricardo Tadeu Sandrini

Barcellosc

aDepartamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil; bPsicóloga Clínica, Araçatuba, São Paulo, Brasil; cSecretaria de Administração

Penitenciária, Governo do Estado de São Paulo, São Carlos, São Paulo, Brasil

Resumo

A função-potência é aplicável ao estudo do processo de memória. Baseados nessa premissa e na necessidade de estudos sobre os mecanismos de memória visual e tátil-cinestésico, esta pesquisa teve como objetivo verificar, na condição memória, os expoentes da função potência nas modalidades visual e tátil-cinestésica para comprimento e área. Este estudo envolveu as fases de aquisição da informação e fase do relembrar, havendo cinco diferentes intervalos de tempo entre as duas fases. Estimativas de 200 participantes foram feitas de acordo com o método de estimação de magnitudes. Os resultados mostraram não haver diferença significativa entre as modalidades sensoriais visual (M=0,57) e tátil-cinestésica (M=0,53) ou entre comprimento (M=0,56) e área (M=0,54). Diferenças significativas foram observadas entre os diferentes intervalos de tempo. Houve interação significativa entre o efeito da modalidade sensorial e o estímulo empregado, o qual sugere que o processo de memória visual e tátil-cinestésica seja dependente da característica do estímulo, e que a estratégia de exploração do estímulo e a presença da experiência visual e tátil-cinestésica deva ser mais intensamente investigada como variável do processo de memória visual e tátil-cinestésico. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 02-13. Palavras-chave: memória; visual; tátil-cinestésica; comprimento; área.

Abstract

The power function is applicable to the study of the memory process. Based on this premise, and on the need for studies of visual and haptic memory mechanisms, this study had the aim to verify, in the memory condition, the exponents of the power function of the visual and haptic modalities for length/thickness and area. This study involved the information acquisition and remembering phases and employed five different time intervals between both phases. Estimates of 200 participants were made according to the magnitude estimation method. The results showed that there were no significant differences among the visual (M=0.57) and haptic (M=0.53) sensorial modalities or between the length (M=0.56) and area (M=0.54) stimuli. Significant differences were observed among the different time intervals. There was a significant interaction between the sensory modality effects and stimuli, which suggests that the visual and haptic memory process is dependent on the stimulus characteristic, and that the exploration strategy and the presence of bimodal experience should be more intensely

Artigo Científico

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 02-13 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 01/02/2009 | Revisado em 17/03/2009 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

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investigated as variables of the visual and haptic memory process. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 02-13. Keywords: memory; visual; haptic; length; area.

1. Introdução

A presente pesquisa buscou compreender e analisar o sistema de memória das

modalidades sensoriais visual e tátil-cinestésica para estimativas de comprimento e área, tendo como base o método psicofísico de estimação de magnitudes. A Psicofísica busca a relação funcional entre as intensidades físicas dos estímulos (E) e as estimativas numéricas (R) através da mensuração e análise dos mecanismos e/ou processos subjacentes às diferentes respostas sensoriais e/ou perceptivas que podem ser descritas por uma função potência, em que:

R = K. En,

sendo k, uma constante arbitrária que depende da unidade de medida empregada e n, o expoente da função, considerado o parâmetro mais importante, uma vez que determina a curva que representa a relação entre o estímulo e a resposta. Se o expoente é exatamente igual a 1,0, a função segue uma linha reta. Neste caso, a magnitude da sensação registrada (resposta) varia linearmente com a intensidade do estímulo. Quando o expoente (n) é maior do que 1,0, a curva que representa esta função é monotonicamente crescente. Se o expoente (n) é menor do que 1,0, a curva é monotonicamente decrescente (Stevens, 1975)

Tem sido demonstrado que funções similares parecem ser aplicáveis em situações que envolvem o processo de memória (Bjorkman et al., 1960; Osaka, 1983a, 1983b). Neste contexto, a aplicação de dois modelos (o Modelo Reperceptual e o Modelo de Tendência Central de Julgamento) tem tentado explicar os expoentes da função potência para área e comprimento obtidos através do processo de memória (Kerst e Howard, 1978, Chew e Richardson, 1980; Wiest e Bell, 1985; Da Silva et al., 1987a; Da Silva et al., 1987b, Kemp, 1988; Algom et al., 1985). Nesse sentido, Kerst e Howard (1978) levantaram a hipótese de que o expoente (n) obtido para julgamentos de memória de uma dada dimensão física seria igual ao quadrado do expoente obtido em julgamentos perceptivos dessa mesma modalidade. Portanto, explicaram seus resultados em termos de um Modelo Reperceptual no qual duas transformações separadas relacionam os julgamentos de memória às propriedades físicas.

O outro modelo explicativo do rebaixamento dos expoentes de memória em relação ao perceptivo‚ denominado Modelo de Tendência Central de Julgamento ou Hipótese da Incerteza, supõe um efeito de compressão ou amplitude reduzida nos julgamentos de memória, produzido pela incerteza que os sujeitos experienciam na condição de julgamentos através da memória (Moyer et al., 1982 apud Alliprandini e Da Silva, 2000). Nesses casos, há uma tendência natural do sujeito enviesar suas estimativas em direção ao centro da escala. Ao evitar estimativas com valores extremos, os sujeitos fariam os seus julgamentos com maior segurança. De acordo com Durlach e colaboradores (1989), modelos podem ser encontrados que expliquem o processo de reconhecimento manual de objetos e a comunicação táctil entre os deficientes visuais e surdos, assim como facilitar a interface entre teleoperadores e o meio ambiente virtual, possibilitando grandes avanços na área, através de uma melhor compreensão dos mecanismos visual e tátil-cinestésico.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 02-13 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 01/02/2009 | Revisado em 17/03/2009 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

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Estudos que buscam comparar os mecanismos visual e tátil-cinestésico têm utilizado tarefas de discriminação e reconhecimento (Lederman et al., 1990; Klatzky et al., 1991; Pasqualotto e Newell, 2007) ou estimação de magnitudes (Zedu et al., 1992).

Alguns resultados tem demonstrado uma grande similaridade entre o julgamento visual e tátil-cinestésico, sugerindo que a sensibilidade táctil é tão acurada quanto a sensibilidade visual. (Heller, 1989a, 1989b; Loomis, 1979; Teghtsoonian e Teghtsoonian, 1965, 1970) e que essas duas modalidades são funcionalmente similares. (Loomis, 1981, 1982, 1990). Da mesma forma, investigando a memória implícita e explícita entre e em cada modalidade visual e tátil-cinestésica, Easton e colaboradores (1997) não encontraram um efeito da modalidade em seus resultados e sugerem uma similaridade entre a representação visual e tátil-cinestésica. Por um outro lado, alguns pesquisadores tem evidenciado diferenças entre os sistemas visual e tátil-cinestésico em tarefas de nomeação de objetos (Craddock e Lawson, 2008), reconhecimento de objetos (Pensky et al., 2008) e memória espacial (Cattaneo e Vecchi, 2008).

Entretanto, tendo como referência resultados que apresentam diferenças na percepção visual e tátil-cinestésica relacionados às formas do objeto, Norman e colaboradores (2004) indicam que a visão e o tato têm funcionalmente uma sobreposição, mas não necessariamente equivalentes, das representações da forma tridimensional.

Pesquisas têm demonstrado que as diferenças apresentadas nos seus resultados podem ser dependentes da característica do estímulo (Katz, 1989) ou da estratégia de exploração do estímulo usada no experimento (Heller et al., 2003). Estudos conduzidos por Heller (1989a, 1989b) demonstraram que a imagem visual simplesmente aumenta a durabilidade dos traços de memória tátil e que a história visual não garante uma adequada percepção táctil. Eles entendem que resultados que apresentam uma alta performance em tarefas espaciais dependem das habilidades perceptuais que freqüentemente aumentam com a familiaridade em relação ao estímulo. Buscando contribuir para uma melhor compreensão dos mecanismos visuais e tátil-cinestésicos, Zedu e colaboradores (1992) investigaram a variabilidade dos expoentes da função potência para estimativas visuais e tátil-cinestésica para comprimento e área em indivíduos com visão normal e deficientes visuais (com cegueira adquirida ou congênita). Os resultados obtidos sugeriram a existência de dois canais de transdução sensorial, sendo um canal para julgamento de comprimento e outro para julgamento de área. Em relação aos julgamentos tátil-cinestésicos, os resultados sugeriram a existência de apenas um canal de transdução sensorial para estimativas de comprimento e área. Os resultados também mostraram não haver diferenças nas estimativas tátil-cinestésicas entre os grupos com visão normal e os grupos com deficiência visual. Considerando-se o fato de que a amostra de indivíduos com deficiência visual foi composta tanto por indíviduos com deficiência congênita, quanto com deficiência visual adquirida, os resultados podem indicar que a experiência visual pode ajudar na percepão tátil-cinestésica, concordando com os resultados obtidos por Heller e colaboradores (1996).

Recentes estudos nos quais Boucher e colaboradores (2007) exploraram como o movimento dos olhos e mãos são controlados em uma tarefa com interrupção sinalizada em que foi utilizada, como sinal, uma cor (código foveal) ou tom (código auditivo), demonstraram que, independentemente do sinal, o tempo de reação para o movimento dos olhos foi menor em comparação com o movimentos das mãos, mas não variou significativamente quando se sabia qual movimento deveria ser cancelado e que a maioria dos erros ocorridos nos testes de interrupção ocular e manual combinavam os movimentos dos olhos e das mãos.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 02-13 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 01/02/2009 | Revisado em 17/03/2009 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

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Resultados obtidos por Pasqualotto e Newell (2007) evidenciaram que a visão desempenha um importante papel na representação e atualização da informação espacial codificada pelo tato e tem importantes implicações no desenvolvimento de áreas neurais envolvidas na cognição espacial. Similarmente, Stock e colaboradores (2009) ao utilizarem da imagem de ressonância magnética funcional para delinear as redes corticais que são ativadas quando objetos ou localizações são codificadas visual ou tátil-cinestesicamente e recuperadas pela memória a longo prazo, demonstraram que este modelo de ativação suporta fortemente a idéia que representação de código específico são consolidadas e reativadas dentro de estruturas célulares anatomicamente distribuídas que compreende o sistema sensório e processamento motor, uma vez que materiais codificados visualmente ativaram mais as áreas relacionadas a visão e materiais codificados através do tato-cinestesia ativaram mais áreas relacionadas ao movimento.

Considerando-se que ainda poucos trabalhos têm sido conduzidos, os quais utilizam a função potência para investigar o processo de memória visual e tátil-cinestésico, o objetivo do presente estudo foi verificar o expoente da função potência visual e tátil-cinestésico para comprimento e área na condição em que o processo de memória foi empregado. De acordo com dados da literatura, a hipótese levantada é que o expoente para julgamento visual de área será menor que o expoente obtido para julgamento de comprimento no processo de memória e que os resultados para os julgamentos tátil-cinestésicos de área serão maiores que os obtidos para julgamento de comprimento. Esses resultados podem contribuir para uma melhor compreensão do processo mnemônico relacionado aos mecanismos visual e tátil-cinestésico, facilitando a produção das interfaces de homem e máquina, assim como propiciar condições aos educadores, especialmente da área de educação especial, que trabalham com deficientes visuais, uma maior adequação dos materiais e utilização dos mesmos, em que a modalidade sensorial tátil-cinestésica será empregada. 2. Metodologia 2.1. Participantes Inicialmente os participantes foram informados sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa e após esclarecimentos, foi assinado o Termo de Consentimento Esclarecido. Um total de 200 participantes universitários, com idades entre 17 e 30 anos, participou do estudo. Os participantes foram subdivididos em 4 grupos independentes, conforme a tarefa a cumprirem (estimativas de comprimento ou área) e uso de modalidade sensorial (tátil-cinestésica ou visual), nos diferentes intervalos de tempo entre as fases procedimentais. O quadro 1 apresenta o desenho experimental, para uma melhor visualização da distribuição dos participantes segundo a condição a que foram submetidos.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 02-13 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 01/02/2009 | Revisado em 17/03/2009 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

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Modalidades Sensoriais Visual Tátil-cinestésica Estimativas Exigidas

quanto aos Estímulos Apresentados Intervalo de Tempo entre as Fases Procedimentais

2m 8h 24h 48h 1 sem 2m 8h 24h 48h 1 sem Comprimento

(Unidimensional) 10 10 10 10 10 10 10 10 10 10

Área (Bidimensional)

10 10 10 10 10 10 10 10 10 10

Total de participantes por condições experimentais

100

100

Quadro 1 - Distribuição dos participantes de acordo com as condições experimentais. 2.2. Materiais

Para a tarefa de estimativa de comprimento foram utilizados os estímulos confeccionados em filmes de raio-x com 0,19cm de espessura, recortados em 5cmx5cm. Para obter as diferentes espessuras, seis ao todo, as lâminas do filme raio-x foram coladas umas sobre as outras e foram utilizadas as seguintes espessuras (em mm): 0,19; 0,85; 2,10; 5,0; 10,0 e 20,0. As bordas dos materiais foram pintadas de preto para evitar que os sujeitos do grupo visual pudessem realizar as estimativas a partir da contagem do número de lâminas.

As estimativas de comprimento realizadas através da modalidade sensorial tátil-cinestésica, tiveram como base a distância entre o polegar e o indicador, sem que houvesse o movimento dos dedos. Nesse caso, os materiais foram mantidos firmes no local, utilizando uma prensa de metal.

Para a tarefa de estimativas de área, foram utilizadas como estímulos áreas dos seguintes estados brasileiros (em cm2): 6,11 (Estado de Sergipe); 12,30 (Estado do Rio de Janeiro); 26,66 (Estado de Santa Catarina); 55,43 (Estado de São Paulo); 97,37 (Estado do Mato Grosso do Sul); 244,72 (Estado do Mato Grosso) e 434,57 (Estado da Amazônia). Os materiais, com 6 mm de espessura, foram confeccionados em madeira, recortada no formato dos respectivos estados e sua área (escala de 1:6.000.000), e pintada em marrom. Os materiais, por sua textura lisa, não apresentavam qualquer relevo. Cada um deles era fixado individualmente em uma plataforma de madeira com 35x35 cm, à qual era preso para garantir que não se movesse durante a situação em que a modalidade sensorial tátil-cinestésica era empregada para a consecução das estimativas.

Um apoio para o queixo foi utilizado para garantir a todos os participantes a mesma distância visual durante a exploração do estímulo em que a modalidade sensorial visual foi empregada, garantindo dessa forma a perspectiva a partir de um ângulo de 45o.

Para os participantes que fizeram as estimativas através do tato-cinestesia, foi utilizada uma venda para evitar a visualização dos materiais. 2.3. Procedimento

A situação experimental à qual cada sujeito foi submetido individualmente foi desenvolvida em duas fases: de aquisição da informação e de relembrar. Na fase de aquisição da informação, inicialmente, o experimentador apresentava oralmente as instruções e, em seguida, apresentava cada estímulo durante um minuto, associando ao mesmo uma letra do alfabeto randomicamente. Ao final da apresentação de todos os estímulos, o desempenho dos

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participantes era averiguado quanto à identificação de cada estímulo, a partir da letra à qual havia sido associado. O critério definido para que o participante pudesse passar para a fase seguinte, isto é, a de relembrar, foi de 100% de acerto. Na fase de relembrar, os participantes deviam fazer suas estimativas após os seguintes intervalos de tempo entre a fase de aquisição da informação e esse teste: 2 min; 8 h; 24 h; 48 h e 1 semana. Vinte grupos foram constituídos a partir das estimativas quanto aos estímulos apresentados (comprimento ou área), modalidades sensoriais empregadas (visão ou tato-cinestesia) e intervalos de tempo entre as fases de aquisição da informação e fase de relembrar (quadro 1).

Após transcorrido o intervalo de tempo definido para cada grupo era iniciada a segunda fase. Nesta, o experimentador apresentava verbalmente as instruções para o desempenho, solicitando que o sujeito estimasse os comprimentos ou áreas, de acordo com o método psicofísico de estimação de magnitudes, sendo para tal usadas as letras do alfabeto em duas ordens randômicas. De acordo com esse método, para as estimativas de comprimento um estímulo de 2,10 mm foi utilizado como modelo/padrão ao qual o experimentador atribuiu o valor 10. Os participantes deveriam estimar para cada um dos estímulos apresentados seus comprimentos atribuindo um valor comparativo, tendo por referência o valor estipulado para o estímulo modelo/padrão. Para as estimativas das áreas, um estímulo de 55,43 cm2 foi utilizado como modelo/padrão ao qual o experimentador atribuiu o valor 10. Da mesma forma, de acordo com o método de estimação de magnitudes, os participantes deveriam atribuir um valor aos estímulos que lhes eram apresentados tendo por referência o estímulo modelo/padrão. Para os grupos de participantes que deviam estimar os materiais na modalidade tátil-cinestésica, foi solicitado que utilizasse a mão dominante.

A situação experimental à qual os participantes foram submetidos transcorreu em sessões individuais e o experimentador utilizou protocolos individuais para registro dos desempenhos dos sujeitos. 3. Resultados

A análise de variância para o expoente (n) da função potência para comprimento mostrou uma diferença significativa entre as modalidades visual e tátil-cinestésica, (F(1,90) = 8,81; p < 0,001). Apresentou também uma diferença significativa entre os intervalos de tempo, (F(4,90) = 3,57; p < 0,001). Entretanto, não houve interação significativa entre as modalidades sensoriais e o intervalo de tempo, (F(4,90) = 0,13; p < 0,001).

Através do teste de Duncan (p < 0,05), foi demonstrado que o intervalo de tempo 2 min. não difere do intervalo de 8 horas, mas este difere dos demais intervalos (24 e 48 h e 1 semana). Os intervalos de 8 e 48 h não diferem entre si, nem diferem dos intervalos de 24 h e 1 semana.

Baseado nas médias dos expoentes obtidos (tabela 1), a tendência à redução no valor dos expoentes para estimativas visual e tátil-cinestésica foi confirmada. Foi também observada, que na média, os valores dos expoentes da função potência e coeficiente de determinação foi menor para julgamentos tátil-cinestésicos em relação aos julgamentos visuais, talvez pela incerteza nestes julgamentos. Grande variabilidade nas respostas para o grupo visual em relação ao tátil-cinestésico foi confirmada pela média dos valores de desvio-padrão.

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Tabela 1 - Média (M), Desvio-Padrão (dp) e Coeficiente de Determinação (r2) do Expoente da Função Potência derivados das estimativas visual e tátil-cinestésica para comprimento nos diferentes intervalos de tempo.

A análise de variância para o expoente (n) da função potência para área não apresentou

diferença significativa entre as modalidades sensoriais visual e tátil-cinestésica, (F(1.90) = 1,10; p < 0,001). Para os diferentes intervalos de tempo, houve uma diferença significativa, (F(4.90) = 4,73; p < 0,001). Entretanto, a interação entre as modalidades sensoriais e intervalos de tempo não apresentou uma diferença significativa, (F(4.90) = 1,66; p < 0,001), demonstrando que as modalidades sensoriais utilizadas apresentam respostas similares em razão dos diferentes intervalos de tempo. O Teste de Ducan (p < 0,05) demonstrou que o intervalo de tempo (8 h) diferiu dos demais intervalos (2 min, 24 e 48 h e 1 semana). Entretanto, estes não diferiram entre si. A média do expoente obtida para o intervalo de 8 h é maior que aquelas obtidas para os demais intervalos, tanto para julgamento visual como tátil-cinestésico (tabela 2). Em relação à média do coeficiente de determinação (r2) para os diferentes intervalos de tempo, a tendência em direção à redução desses valores em relação ao aumento do intervalo de tempo foi confirmada para julgamento visual e tátil-cinestésico. Foi também observado que há uma grande variabilidade no desvio-padrão para os julgamentos realizados através do tato-cinestesia em relação aos julgamentos realizados através da visão.

Modalidade Sensorial

Visual Tátil-cinestésica Intervalos de Tempo M dp r2 M dp r2 2 min 0,48 0,09 0,91 0,56 0,17 0,80

8 h 0,62 0,09 0,82 0,72 0,18 0,87 24 h 0,57 0,11 0,75 0,47 0,11 0,83 48 h 0,47 0,16 0,74 0,46 0,29 0,62

1 semana 0,46 0,14 0,74 0,56 0,18 0,79 Médias Gerais 0,52 0,12 0,79 0,55 0,19 0,78

Tabela 2 - Média (M), Desvio-Padrão (dp) e Coeficiente de Determinação (r2) do Expoente da Função Potência derivados das estimativas visual e tátil-cinestésica para área nos diferentes intervalos de tempo.

A análise de variância combinada aplicada aos expoentes individuais indicou que não há uma diferença significativa entre as modalidades sensoriais, (F(1,180) = 2,14; p < 0,001) e entre os estímulos apresentados (comprimento ou área), (F(1,180) = 0,79; p < 0,001). Entretanto, apresentou diferenças entre os intervalos de tempo, (F(4,180) = 6,08; p < 0,001). Não houve diferença significativa na análise de interação entre as modalidades sensoriais e os intervalos

Modalidade Sensorial Visual Tátil-cinestésica Intervalos de

Tempo M dp r2 M dp r2 2 min 0,71 0,23 0,91 0,60 0,11 0,84 8 h 0,65 0,16 0,89 0,59 0,16 0,93 24 h 0,55 0,20 0,83 0,44 0,12 0,73 48 h 0,60 0,25 0,89 0,46 0,17 0,75

1 semana 0,55 0,19 0,75 0,45 0,09 0,75 Médias Gerais 0,61 0,21 0,85 0,51 0,13 0,80

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de tempo, (F(4,180) = 1,07; p < 0,001), entre as modalidades sensoriais, estímulo e intervalos de tempo, (F(4,180) = 0,61; p < 0,001), ou entre os estímulos e os intervalos de tempo, (F(4,180) = 2,13; p < 0,001). Houve uma interação significativa entre as modalidades sensoriais e o estímulo, (F(1,180) = 8,36; p < 0,001), o que indica a existência de respostas diferenciadas de acordo com o estímulo apresentado (comprimento ou área) para cada modalidade sensorial (visual ou tátil-cinestésica). Através do Teste de Duncan (p < 0,05) foi confirmado que os intervalos de tempo de 2 min e 8 h não diferem entre si, mas diferem dos intervalos de tempo de time 24 h, 48 h e 1 semana, os quais não diferem entre si. A análise de variância aplicada aos expoentes (n) da função potência dentro de cada modalidade sensorial confirmou que para o grupo que realizou as estimativas usando a modalidade sensorial visual houve uma diferença significativa entre os julgamentos de comprimento e os julgamentos de área, (F(1,90) = 6,98; p < 0,001), mas não houve diferença significativa entre os intervalos de tempo, (F(4,90) = 1,69; p < 0,001). O Teste de Duncan (p < 0,05) mostrou que apenas o intervalo de tempo de 8 h diferiu do intervalo de tempo de 1 semana e que os demais intervalos de tempo não diferiram entre si.

Para os julgamentos realizados através do uso da modalidade sensorial tátil-cinestésica, não houve diferença entre os julgamentos de comprimento e área, (F(1,90) = 2,05; p < 0,001), mas houve diferença significativa entre os intervalos de tempo, (F(4,90) = 5,55; p < 0,001). O Teste de Duncan (p < 0,05) demonstrou que não houve diferença entre os intervalos de 2 min e 8 h, os quais diferiram dos intervalos de tempo de 24 h, 48 h e 1 semana. 4. Discussão

Tomados em conjunto, os resultados demonstraram que os sistemas de memória visual e tátil-cinestésico manifestam mecanismos diferentes de acordo com a dimensão do estímulo (comprimento ou área). Esses resultados apresentados foram similares aos resultados obtidos em pesquisas anteriores desenvolvidas por Zedu e colaboradores (1992) na qual apenas o julgamento perceptivo foi empregado. Neste estudo foi confirmado haver diferenças entre as estimativas para comprimento e área quando realizadas através do sistema visual, enquanto que, para julgamentos realizados através da modalidade sensorial tátil-cinestésica, não foram encontradas diferenças significativa entre os expoentes obtidos para comprimento e área. Entretanto, a média dos expoentes da função potência obtidos através dos julgamentos visuais e tátil-cinestésicos para comprimento e área na condição memória foram menores que os obtidos na condição perceptiva, na qual as estimativas foram realizadas na presença dos estímulos. (Zedu et al., 1992). Apesar deste não ter sido o objetivo deste estudo, esses resultados parecem confirmar dados da literatura relacionada ao Modelo de Tendência Central do Julgamento ou Hipótese da Incerteza, o qual supõe um efeito da compressão ou amplitude reduzida nos julgamentos de memória, produzidos pela incerteza que os sujeitos experienciam na condição de julgamentos através da memória, levando a uma tendência natural em enviesar as estimativas em direção ao centro da escala (Moyer et al., 1982 apud Alliprandini e Da Silva, 2000), uma vez que houve um rebaixamento no valor do expoente da função potência na condição experimental em que o processo de memória foi utilizado para os julgamentos. (Para maior detalhes sobre este modelo,o qual tenta explicar o processo de memória, usando o expoente da função potência, ver Radvansky et al., 1995). A tendência do expoente da função potência ser menor para julgamentos de área dos estímulos em relação ao comprimento foi observada (figura 1). O mesmo efeito foi também observado em relação ao valor do coeficiente de determinação (r2) e o desvio padrão (dp), provavelmente devido à baixa confiabilidade nos julgamentos de comprimento.

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Figura 1 - Expoentes da Função Potência para estimativas de comprimento e área visual e tátil-cinestésica nos diferentes intervalos de tempo.

Referente aos valores dos expoentes de memória obtidos através da modalidade sensorial tátil-cinestésica, a tendência desses valores serem maiores para área em relação a comprimento foi confirmada. Entretanto, a média dos valores do desvio-padrão foi maior para julgamentos de área e a média dos valores do coeficiente de determinação (r2) foi menor. Esses resultados podem ser devidos à maior incerteza nesses julgamentos relacionados às formas das áreas irregulares.

As estratégias de exploração dos estímulos diferiram em razão dos procedimentos empregados e suas características. As informações sobre os comprimentos foram obtidas medindo-se a distância entre o dedo indicador e o polegar com o uso da mão dominante, enquanto que as informações sobre as áreas dos estímulos foram obtidas através da exploração livre usando-se a mão dominante. Usando diferentes procedimentos de exploração dos estímulos, Lederman e Klatzky (1987) observaram que, tendo os sujeitos utilizado o movimento das mãos para memorizar objetos, nos permite aprender sobre a representação subjacente e os processos dos quais tais representações derivam e pelas quais são utilizadas. Levando em consideração o tipo de exploração utilizada em tarefas de identificação e discriminação, Craig (1985) e Craig e Qian (1997) constataram que o processamento da informação é diferente quando feitas com as duas mãos em vez de apenas com uma mão. Quando a informação sobre a amostra é distribuída através dos dedos indicadores das duas mãos, a integração dos dedos é melhorada, o que sugere um possível mascaramento ou inibição da informação quando os dedos da mesma mão são utilizados.

Similarmente, Loomis e colaboradores (1991) sugerem que as dificuldades apresentadas no reconhecimento de figuras através do tato deve ser devido à restrição do efetivo campo de vista. Nesse sentido, o tipo de exploração tátil-cinestésica utilizada para estímulos bidimensionais (movimento livre com uma das mãos sobre os estímulos) pode ter levado à similaridade entre os expoentes para memória visual e tátil-cinestésica. Em recente estudo, Heller e colaboradores (2003) investigaram o impacto da maneira da exploração tátil-cinestésica da ilusão de Muller-Lyer. Os estímulos foram sentidos traçando-se com o dedo indicador ou polegar ou através da exploração livre, ou medindo-se com o uso de dois ou

0,4

0,45

0,5

0,55

0,6

0,65

0,7

0,75

2 m 8 h 24 h 48 h 1 Semana

Intervalos de Tempo

Exp

oen

te (

n)

Visual/Comprimento

Visual/Área

Tátil-Cinestésica/Comprimento

Tátil-Cinestésica/Área

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mais dedos. Os resultados mostraram que a ilusão estava presente em todas as condições de exploração dos estímulos, com uma superestimação das retas em que as flechas estavam voltadas para fora em comparação com as flechas para dentro. Traçando-se com o dedo indicador reduziu-se a magnitude da ilusão. Entretanto, traçar e raspar induziu a uma subestimação global do tamanho. Ittyerah e Marks (2007) ao examinar o papel da exploração visual e tátil-cinestésica no processo de memória para objetos também encontraram um efeito do movimento, apresentando diferenças quando o estímulo é inicialmente codificado tátil-cinestesicamente ou visualmente.

Entretanto, o desvio-padrão obtido no presente estudo confirmou grande variabilidade no expoente da função potência para julgamentos tátil-cinestésicos do que para julgamentos visuais (tabela 2), provavelmente devido à grande incerteza dos participantes nesses julgamentos. Outro fator que pode ter contribuído para esses resultados é o fato de que todos os participantes que fizeram julgamentos tátil-cinestésicos apresentavam visão normal. (Heller et al., 1996). Isto sugere a necessidade de estudos com participantes cegos congênitos para investigação desta variável. Comparando a ativação do cérebro em imagens visuais contrapostas às imagens tátil-cinestésicas, Newman e colaboradores (2001) verificaram que embora as duas condições ativem a mesma região cortical, a ativação relativa dessas regiões difere em razão da modalidade empregada.

De acordo com os resultados obtidos por Algom (1991), há uma tendência à redução do expoente da função potência devido aos intervalos de tempo. Essa tendência pode ser confirmada nestes resultados, embora não de forma sistemática, principalmente quando observados os expoentes obtidos nos intervalos de tempo de 2 m e 8h em relação aos demais dados (tabela 1). Concluindo-se, os resultados aqui alcançados demonstraram que: 1) O sistema de memória visual e tátil-cinestésico manifesta diferentes mecanismos como

consequência da dimensão do estímulo (comprimento ou área); 2) Os expoentes da função potência são menores para julgamento de área em comparação

aos expoentes obtidos para as estimativas de comprimento para as estimativas feitas com o uso da modalidade sensorial visual, mas não para julgamentos feitos, utilizando-se a modalidade sensorial tátil-cinestésica;

3) Há uma tendência de reduzir os valores dos expoentes da função potência em razão do intervalo de tempo, embora não de forma sistemática;

4) Há uma redução nos valores dos expoentes da função potência para estimativas feitas através da memória em comparação com os valores obtidos em pesquisas prévias, nas quais o julgamento é realizado na presença do estímulo;

5) A estratégia de exploração e a presença da experiência visual e tátil-cinestésica devem ser mais intensamente investigada como variáveis do processo de memória visual e tátil-cinestésico.

Agradecimento

Esta pesquisa foi subsidiada pela FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 5. Referências bibliográficas

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O método interdisciplinar de investigação da consciência consciente de si

The interdisciplinary method of research on the consciousness conscious of itself

Everaldo Cescon

Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil; Universidade de

Lisboa, Lisboa, Portugal

Resumo O problema da consciência consciente de si é o ponto fundamental de toda busca humana e filosófica, pois está relacionado ao Si ou Self ou Identidade. Trata-se de uma problemática que envolve pelo menos três ordens de questões – a questão ontológica da natureza e da identidade da mente; a questão metodológica; a questão epistemológica – e uma série de temas internos tais como os conceitos mentais e as outras consciências. Apesar dos inúmeros avanços científicos, ainda não resolvemos o problema fundamental: que relação existe entre a consciência e a realidade que a circunda. Faz-se um breve excurso histórico da investigação acerca da mente demonstrando os avanços alcançados e percalços enfrentados, avaliando, assim, as possíveis abordagens metodológicas a se adotar na construção de uma “ciência da mente”. Defende-se a tese de que é a partir de uma concepção interdisciplinar que deveríamos examinar a consciência evitando a onda de reducionismo e salvaguardando o caráter subjetivo da experiência. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 14-25. Palavras-chave: filosofia da mente; fenomenologia; epistemologia; problema mente-corpo; consciência. Abstract The problem of the conscious consciousness of you is the basic point of any human and philosophical search, since it is made a list to You or Self or Identity. It the question is a problematic that wraps at least three orders of questions – the question ontological of the nature and of the identity of the mind; the question methodological; the question epistemological – and a series of internal subjects such as the mental concepts and other consciences. In spite of the countless scientific advancement, we still do not resolve the basic problem: which relation exists between the consciousness and the reality that surrounds it. There is done a short historical excurse of the investigation about the mind demonstrating the reached advancements and faced difficulties, valuing, so, the possible methodological approaches to be adopted in the construction of a “science of the mind”. The theory is defended of what is from an interdisciplinary conception which we should examine the consciousness avoided to wave of reductionism and safeguarded the subjective character of the experience. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 14-25. Keywords: philosophy of mind; phenomenology; epistemology; mind-body problem; consciousness.

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Artigo Científico

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1. A problemática da consciência O que é a consciência? O que é estar consciente? O que é realmente o Si ou Self ou

Identidade, e onde reside a sua sede no corpo? O que é a subjetividade que se exprime em cada homem e em cada animal? Existe um centro de consciência dentro de mim e dentro de vocês? O que significa realmente cogito ergo sum: tenho consciência, logo existo? Qual é a natureza do observador que, em mim, percebe a existência como informações e significados? Quem sou “eu”? O que é isto que chamo “eu”? Onde está? Qual é a “substância” do pensamento? Como podemos quantificá-la?

Estas e outras são questões sobre as quais a Filosofia se debruçou desde os primórdios, mas que adquiriram novo vigor na atual Filosofia da Mente. O problema da consciência é a última fronteira inclusive para a ciência. É uma problemática complexa e, como tal, envolve pelo menos três questões diferentes:

• A questão ontológica da natureza e da identidade da mente: que coisa é a mente?

Como a mente se distingue da matéria? São duas entidades diferentes? Como se pode caracterizar os estados mentais (sentir, perceber, pensar, etc.)? Qual é a relação entre a mente e o corpo?

• A questão metodológica: como podemos investigar o mental? É lícito estudar o mental da mesma forma que o material? Pode efetivamente existir uma ciência do mental? Como é possível tratar objetivamente algo que identificamos subjetivamente?

• A questão epistemológica: o nosso conhecimento do mental é justificado? O nosso modo de conhecer o mental é confiável? É realmente possível abordar a dimensão privada do mental segundo termos objetivos de uma ciência? É oportuno o apelo à introspecção para discutir sobre o mental?

Além disso, também se pode mencionar alguns temas internos, tais como: os estados

mentais são todos iguais? Qual é a natureza dos “conceitos” e, especialmente, dos “conceitos mentais”? O mental pode ser submetido a leis? Quais e de que natureza podem ser as leis que regulam o mental? É possível definir o conteúdo de cada estado mental?

As ciências físicas e as ciências biológicas nos fizeram compreender melhor a natureza da vida. A ciência cognitiva e as neurociências também realizaram grandes avanços e nos levaram a uma melhor compreensão do comportamento humano e dos seus processos. Embora ainda não conheçamos bem como ocorre a aprendizagem humana, mas as pesquisas indicam que isto ocorrerá em breve. Entretanto, a consciência parece fugir às leis físicas, químicas e biológicas; é algo extraordinariamente familiar, mas, ao mesmo tempo, misterioso. Realmente não é fácil falar da consciência consciente de si, do estado de consciência capaz de romper as rígidas cadeias causais que governam os eventos no universo físico e de gerar, dessa forma, o livre arbítrio: a nossa parcial, mas real, liberdade.

Até o filósofo tem muitas dificuldades para falar desta incompreensível, mas concreta realidade, porque o desenvolvimento contínuo e, muitas vezes, imprevisível do conhecimento científico sobre o cérebro (evolutivo) agrega elementos sempre novos à reflexão. Mas também não é fácil para o cientista, porque estes conhecimentos científicos sobre o cérebro ainda não produziram nenhuma teoria da consciência consciente de si.

Estamos numa fase de transição, com mil hipóteses em jogo e com a possibilidade de cair a qualquer momento num clamoroso erro. São hipóteses gerais, mas já quase sólidas, sobre a origem e sobre o desenvolvimento da mente consciente e até mesmo da mente dotada da consciência de si.

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A nossa experiência consciente é constituída por inumeráveis estados qualitativos, ou seja, odores, sabores, dores, sensações táteis, sinestésicas, proprioceptivas; e, ainda, prazeres, emoções, estados de espírito, etc. Todas estas sensações são profundamente reais e indubitáveis e envolvem a nossa vida subjetiva. Mesmo assim, não está claro que relação exista entre a consciência e a realidade que a circunda. Nos últimos anos escreveu-se muito sobre a consciência e isto poderia nos levar a pensar que estamos fazendo progressos. Todavia, a maioria dos trabalhos não toca os problemas mais espinhosos relativos à consciência. Na maioria das vezes eles se ocupam daqueles que poderiam ser chamados os problemas simples da consciência. Fica-se, portanto, com a sensação de que o problema central permanece enigmático como, aliás, sempre o foi. Este enigma, como defende Chalmers (1996), não deve ser fonte de desânimo; pelo contrário, isto faz do problema da consciência um dos mais excitantes desafios intelectuais do nosso tempo.

2. O estudo da mente ao longo da história

Desde o tempo dos gregos, o homem procurou entender o funcionamento da mente.

Hipócrates foi um dos poucos a atribuir vida psíquica ao cérebro (os seus estudos mais importantes se basearam nos efeitos de danos traumáticos ou doenças do sistema nervoso). Com esta afirmação, Hipócrates evidenciou uma concepção que estava se afirmando no pensamento grego e que encontraria a sua expressão mais elevada em Aristóteles: o homem é parte da natureza e pode ser estudado com os métodos das ciências da natureza. Com Aristóteles se afirma, decididamente, a concepção do homem como objeto de estudo natural.

O pensamento medieval ficou totalmente alheio ao estudo do homem. Negou até mesmo a sua possibilidade. O mundo era concebido segundo uma estrutura hierárquica bem determinada, com Deus no alto e o homem imediatamente abaixo, mas acima da natureza. O homem não era parte da natureza. Os estudos anatômicos foram evitados por muitos séculos. Só no final do século XIV e, sobretudo, nos dois séculos sucessivos, com o Renascimento, é que foi possível iniciar uma revolução do pensamento humano.

Descartes (1644/1971: 60) pôs a mente novamente em cena, redefinindo as fronteiras entre alma e corpo que, anteriormente, Aristóteles unificara: “Pela palavra pensar entendo eu tudo quanto ocorre em nós de tal maneira que o notamos imediatamente por nós próprios. É por isso que não somente compreender, querer, imaginar, mas também sentir, são aqui a mesma coisa que pensar”.

Só em 1879 é que a Psicologia veio a ser constituída como ciência independente, cujo objeto material é a mente. Wundt fundou o primeiro laboratório de psicologia experimental da história da psicologia científica. No laboratório, juntamente com os seus estudantes, enfrentou experimentalmente quatro campos de investigação: a psicofisiologia dos sentidos, especialmente a visão e a audição, o tempo de reação, a psicofísica e a associação mental.

Alguns anos depois, em 1913, nasceu o Comportamentalismo de Watson,1 que se propôs como a única maneira de fazer ciência psicológica. Para o Comportamentalismo, o objeto “psique” é explicitado nos “conteúdos psicológicos” (emoção, aprendizagem, personalidade, etc.) estudados através da sua manifestação observável. Assim, o Comportamentalismo acabou eliminando toda referência a estados interiores.

Foi com o nascimento do Cognitivismo e da Ciência Cognitiva que as investigações acerca da mente retornaram à cena novamente. A Ciência Cognitiva descreve, explica e, eventualmente, simula as principais disposições e capacidades da cognição humana: a linguagem, o raciocínio, a percepção, a coordenação motora e o planejamento. É uma ciência interdisciplinar: a Neurociência colabora na parte referente ao cérebro; a Psicologia, com as teorias de funcionamento da mente; a Filosofia, através da Lógica e da Epistemologia; a

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Linguística, com o exame da linguagem; e a Ciência da Computação e a Inteligência Artificial, com os modelos de máquinas reais ou teóricas que poderiam simular o funcionamento do cérebro ou de suas partes.

Com a ajuda de novos instrumentos sofisticados como a ressonância magnética, a tomografia e a emissão de positrões, a Ciência Cognitiva consegue analisar cada vez mais profundamente os mecanismos cerebrais, formulando teorias modernas sobre o funcionamento da mente. É graças à evolução de técnicas de visualização ao vivo (que tornaram possível o exame e a representação do cérebro em ação), aos estudos neurofarmacológicos (que elucidaram o papel de muitos neurotransmissores nos mecanismos cerebrais) e ao progresso dos estudos sobre o cérebro que se chegou, atualmente, a um conhecimento mais detalhado dos processos neurobiológicos que dão origem ao nosso comportamento e aos nossos processos cognitivos.

3. A consciência consciente de si

Na perspectiva evolutiva, temos razões fundamentadas para acreditar que o cérebro do

homem seja o sistema mais complexo do universo conhecido. É o resultado da transformação constante da matéria vivente no planeta Terra. Também temos razões para defender que a mente consciente de si tenha estreitas ligações com o cérebro e o restante do corpo.

Já é quase incontestável a hipótese de que a autoconsciência seja um fenômeno que pertence à evolução da matéria biológica e não seja, pelo contrário, fruto da imaginação do homem que vive numa dimensão metafísica e não tenha nada em comum com a matéria do seu cérebro. Também já é quase corroborado que o homem compartilha o estado mental da consciência com diversas espécies de animais e que compartilha até mesmo o estado mental da autoconsciência com os seus parentes mais próximos do ponto de vista filogenético, com os chimpanzés.

A compartilha da consciência e da autoconsciência corrobora a idéia de que sejam frutos da evolução da matéria da mente e torna cada vez mais difícil para os dualistas, que separam definitivamente a res cogitans da res extensa, explicar a difusão dos estados mentais conscientes e autoconscientes na natureza.

Evidentemente, há diferenças qualitativas entre a autoconsciência de um homem e a autoconsciência de um chimpanzé. O homem possui uma cultura muito mais complexa do que a do seu primo chimpanzé, fato que demonstra que os estados mentais da autoconsciência têm graduações, cada uma das quais é o fruto de um processo seletivo histórico. Os cientistas fornecem diversas descrições deste processo, mas quase todas são convergentes.

Segundo Edelman e Tononi (2000), aquele estado mental capaz de quebrar as cadeias causais que governam o universo físico (macroscópico), de conjugar a objetividade com a subjetividade, de dar consciência e liberdade ao eu, são o fruto de três processos de seleção.

O primeiro é o processo filogenético. É o processo histórico que, em quatro bilhões de anos, progrediu da primeira célula ao homem. Em tal processo, a autoconsciência do homem é o fruto de pelo menos três fatores: o fator biológico, com o aumento das dimensões do cérebro e com a aquisição de uma série de características fisiológicas (da posição ereta ao polegar opositor; da capacidade de suar à conformação da laringe); o fator cultural, com a capacidade cada vez maior de interagir e manipular o ambiente; o fator sociabilidade, com o crescimento da dimensão do grupo no qual o sujeito consciente e autoconsciente vive.

O segundo processo seletivo é o ontogenético e se refere ao desenvolvimento de cada indivíduo. No decurso da nossa vida, da fase embrionária à fase adulta, cada um de nós evolui. Esta própria evolução individual é um processo de seleção em diversos níveis que, com base nos estímulos ambientais, cria e reforça algumas estruturas cerebrais e enfraquece

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ou elimina outras. Sem estes estímulos e sem a resposta a tais estímulos, o nosso cérebro permaneceria uma mera “papa de neurônios” sem uma organização suficientemente complexa. Portanto, o desenvolvimento da consciência e da autoconsciência é o resultado de um percurso histórico individual, apesar de estreitamente conectado à genética.

O terceiro e último processo é a seleção natural, a interação incessante com o ambiente que leva o nosso cérebro a distinguir o “si” do “não si”, a pensar em si mesmo e a pensar no distinto de si, a pensar em si mesmo em relação aos outros, a imaginar, a criar.

Estes são, segundo Edelman e Tononi, os grandes processos seletivos que definem o universo da consciência e o ligam ao universo da matéria. Por outro lado, Damásio (2000) defende que esta fase suprema do desenvolvimento da mente é a reelaboração de processos mentais mais primitivos, de processos emotivos. Dessa forma, se a emoção é uma primeira representação da realidade efetuada pela matéria cerebral, a consciência é uma reelaboração da emoção, uma “representação da representação”.

4. Um problema metodológico interdisciplinar

Para o físico e matemático Taylor (2000), os pesquisadores, ao se debruçarem sobre a

problemática da consciência, acabam ficando com a impressão de buscar uma explicação inadequada para a ciência normal ou de pouco interesse à ortodoxia científica. Os filósofos da mente contemporâneos têm trabalhado em torno de termos como “fenomenal”, “funcional”, “intencional”, “espacial” e semelhantes, mas a facticidade evidente da consciência faz dela um problema intratável. Assim, o problema de fundo permanece sendo metodológico: é possível enfrentar o problema da consciência de um ponto de vista puramente biológico ou é necessário desenvolver outras metodologias?

Para Searle (1992/1998), a solução virá pelas descobertas da Neurobiologia, devido a seus importantes avanços e contribuições para o entendimento da questão. Há dez anos, poucos neurocientistas lhe teriam dado crédito, mas atualmente um novo consenso está se formando: a convicção de que a consciência é também um problema empírico e, como tal, pode ser enfrentado com uma abordagem experimental. No entanto, para Chalmers (1996), a ciência nunca conhecerá os mecanismos que produzem a experiência consciente. Mesmo que a ciência venha a explicar todas as funções neuronais e os eventos físicos que ocorrem no cérebro, ainda deveremos explicar a consciência, entendida como experiência subjetiva.

A recente onda de reducionismo produziu várias análises de fenômenos e de conceitos mentais construídas para explicar a possibilidade de um tipo qualquer de materialismo ou de identificação psicofísica. Exemplos disso são os estudos de Smart, Lewis, Putnam, Armstrong e Dennett.2 São análises que não tentam explicar o caráter subjetivo da experiência, excluindo as suas características fenomenológicas, do mesmo modo como se excluem as características fenomenais de uma substância comum — nomeadamente, explicando-as como efeitos nas mentes dos seres humanos que as observam (Rorty, 1965), gerando, assim, a diferença (gap), entre o plano físico e o plano mental.

Davidson (1980) defendeu que, se os acontecimentos mentais tiverem causas e efeitos físicos, então têm de ter descrições físicas. Segundo ele, temos razões para pensar deste modo apesar do fato de não termos uma teoria psicofísica geral. A posição de Davidson é a de que certos acontecimentos físicos têm propriedades irredutivelmente mentais, e talvez seja possível uma visão descritível nestes termos. Se reconhecermos que uma teoria física da mente, obrigatoriamente, tem de dar conta do caráter subjetivo da experiência, então teremos de admitir que possuímos de momento poucas pistas de como isto poderá ser alcançado.

A dificuldade em abordar o problema levou a uma abordagem indireta: através de exemplos. Surgiram exemplos imaginários – o morcego de Nagel (2004,

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http://homepage.mac.com/jbarbo00/.Public/morcego.pdf); Mary, a cientista das cores; os zumbis de Chalmers; os indivíduos com espectro cromático ou experiencial invertido – e exemplos relacionados à literatura psicopatológica ou neuropatológica – visão cega, síndrome de Capgras.

Chalmers (1996) defende a conceptibilidade. O argumento se baseia na premissa de que são concebíveis diversos casos relativos aos qualia na ausência de correlatos neurológicos específicos; prossegue argumentando que tudo o que é concebível é possível, para concluir que são possíveis fenômenos relativos à consciência na ausência de condições neurológicas fixadas. Já se discutiu e se continua discutindo acerca deste argumento e, até ao momento, não parece haver no horizonte uma conclusão suficientemente forte para convencer aos demais.

Há uma evidente tendência a supervalorizar o conhecimento científico do cérebro. Contudo, também a Filosofia é de extrema importância para a compreensão da consciência. Se, por um lado, os filósofos que apresentam teorias fisicalistas do problema mente-cérebro, como a Teoria da Identidade ou a Teoria do Espaço Central de Trabalho, deveriam construir as suas filosofias sobre a compreensão científica mais comprovada do cérebro à sua disposição, por outro lado, os neurocientistas deveriam considerar, nos seus estudos sobre a consciência, as contribuições dos filósofos da mente.

É a partir desta concepção interdisciplinar que deveríamos examinar a consciência. É pelo estudo das diversas disciplinas, da Neurofisiologia à Psiquiatria, da Neuropsicologia à Filosofia, que se poderá chegar a um conhecimento mais aprofundado da consciência.

No decorrer do século XX, quatro metodologias passaram a influenciar a pesquisa sobre a mente:

4.1. O comportamentalismo (ou behaviorismo)

O comportamentalismo é uma orientação teórica cujo nascimento é devido a John B. Watson (1878-1958), o qual entendeu a Psicologia como estudo científico dos aspectos exteriores, publicamente observáveis, da atividade mental. O comportamentalismo propôs-se a fazer da Psicologia uma disciplina de estatuto similar àquele das ciências naturais tradicionais, na qual se possa chegar a conhecimentos objetivos que permitam prever e controlar as ações dos indivíduos e indicar aplicações práticas. Para tal finalidade, esta escola decidiu excluir do campo da Psicologia a consciência e os processos mentais.

Segundo os comportamentalistas, não é possível estabelecer um acordo intersubjetivo ao qual não se pode aplicar procedimentos de investigação rigorosos. O objeto da Psicologia deveria ser o comportamento, ou seja, o conjunto das manifestações exteriores, diretamente observáveis, de um indivíduo. O comportamentalismo pretende estabelecer relações entre os estímulos recebidos pelo sujeito e as suas respostas pondo entre parênteses aquilo que ocorre entre estes dois elementos, quer se tratem de processos mentais, quer se tratem de processos fisiológicos.

Para o comportamentalismo, as associações estímulo-resposta estão na base da personalidade do indivíduo. Elas se estabelecem a partir da experiência. Nada é inato: tudo é determinado pelo ambiente.

No âmbito do comportamentalismo menos rigoroso, começou-se a hipotetizar a existência de processos internos ao organismo3 não identificáveis a nível do comportamento manifesto, mas necessários para a explicação deste último. O esquema E-R (Estímulo-Resposta) é transformado no esquema E-O-R (onde O significa “Organismo”).

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4.2. A abordagem cognitiva/computacional A teoria computacional e representacional da mente foi elaborada, primeiramente, nos

anos 1940 do século passado por Rosenbluth e colaboradores (1943) e, depois, por Miller e colaboradores (1960). Em 1979, Margareth Boden publicou Artificial Intelligence and Natural Man e, em 1980, Douglas Hofstater publicou Gödel, Esher, Bach.

Este modelo estabelece uma forte analogia entre o computador e o cérebro humano. De fato, ambos possuem um substrato físico (biológico-neuronal para o cérebro, eletrônico para o computador) e demonstram ter conhecimentos, inteligência, capacidade de cálculo, etc. Esta analogia representa uma superação do dualismo cartesiano entre res cogitans e res extensa porque relaciona os fenômenos mentais ao sistema computacional. Os pesquisadores da Inteligência Artificial, entretanto, têm consciência da complexidade do cérebro humano e ainda vêem diferenças abissais entre este e o computador, mas consideram possível imitar o funcionamento do cérebro humano com as máquinas. O objetivo não é recriá-lo na sua totalidade, mas sim individuar “partes de inteligência” ou capacidades mentais singulares, como por exemplo a visão, a linguagem, o reconhecimento das formas, a capacidade de demonstrar novos teoremas e realizá-las por meio de calculadores eletrônicos.

O modelo se baseia em três idéias fundamentais. A primeira se funda na convicção de que os fenômenos mentais possam ser esquematizados em recepção de informações do exterior, elaboração autônoma segundo esquemas próprios ou modelos e, enfim, construção de respostas. Cada processo mental pode ser conceitualizado como elaboração de um fluxo de informações da parte de um calculador, com a particularidade de que esta elaboração acontece por meio da manipulação de representações mentais. Em outras palavras, o calculador orgânico-“mente” é dotado de uma tela sobre a qual as informações são representadas de várias formas. Esta tela é o espaço teatral da consciência. O estudo da mente podia ser modelado como uma estrutura hierárquica de relações lógico-matemáticas quantificáveis tanto quanto as relações mecânicas do modelo precedente. O nível de descrição se separa, dessa forma, do plano físico para passar àquele lógico-computacional, mas a hipótese de fundo permanece a de que os eventos mentais correspondem a processos predizíveis, enquanto obedientes a leis formalizáveis.

A segunda idéia fundamental é a de que a elaboração de informações pode ser expressa em forma computacional, isto é, pode ser considerada como a efetuação de um cálculo realizado segundo determinadas regras mecânicas.

A terceira é que um sistema de elaboração inteligente é constituído por múltiplos subsistemas interligados entre si. Segundo a hipótese computacional, estes subsistemas, chamados níveis, devem ter três requisitos: (1) estarem interligados entre si de modo que os elementos dos níveis inferiores tenham

uma correspondência no nível imediatamente superior; (2) existirem critérios para atribuir um significado a cada um dos eventos em cada nível; (3) um dos níveis mais baixos deve poder ser considerado uma “máquina lógica”, isto é,

um mecanismo em condições de realizar deduções lógicas baseadas em símbolos e axiomas. Os pesquisadores da Inteligência Artificial encontraram, durante a sua

experimentação, dois grandes problemas: o problema da explosão combinatória e o da complexidade das situações reais. O primeiro problema deriva do fato de que para representar as ações possíveis que o calculador pode efetuar é preciso atribuir a cada uma delas uma representação simbólica. A tais símbolos deve-se ainda acrescentar aqueles que indicam as

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possíveis conseqüências. Mas visto que para cada ação a configuração do problema muda, é fácil perceber que se cria um número de possibilidades muito elevado. Eis porque se fala de explosão combinatória. O problema da complexidade das situações reais é devido ao fato de que os homens estão enfrentando uma situação com informações incompletas do universo no qual devem atuar, com uma imprecisão dos dados à disposição e com um limite real das capacidades de cálculo, características dificilmente reproduzíveis.

Nos anos 1980 surgiu, como variação do computacionalismo, o conexionismo,4 um paradigma teórico da ciência cognitiva que busca modelos da arquitetura mental na estrutura e no funcionamento do cérebro, o estudo da mente requer o conhecimento do órgão físico. Os instrumentos conceituais empregados pelos conexionistas são fornecidos pela teoria físico-matemática dos sistemas dinâmicos complexos: o cérebro seria um sistema deste tipo.

A arquitetura mental é concebida a partir do modelo de uma rede de unidades de elaboração sub-simbólicas homogêneas, relativamente simples e dotadas de propriedades físicas. Algumas unidades da rede funcionam como elementos de input da própria rede, outras unidades funcionam como elementos de output, e as demais unidades, situadas entre aquelas de input e de output e denominadas "unidades escondidas", mediam a passagem dos estímulos do input ao output.

Todas as unidades estão coligadas por nexos através dos quais passam ativações que podem estimular ou inibir os nós da rede e modificar a resposta das várias unidades. As unidades se comunicam entre si paralelamente de modo que toda a rede é atravessada a cada momento por vários fluxos de ativação.

O computacionalismo reduz a mente ao seu componente de elaboração calculatória e sintática. Não nega a existência da relação com a matéria e o corpo, mas nega a necessidade de estudar os mecanismos físicos do cérebro para compreender os eventos mentais. Nas formas mais extremistas do modelo computacional, a mente funciona como máquina sintática mas não semântica, cujo bom funcionamento depende do respeito às regras combinatórias sem que seja dada importância ao sentido e aos objetivos dos atos mentais singulares. Não há tensão entre mente e corpo.

Os dualismos externos são abolidos. Da mesma forma, são abolidos os internos. Os eventos mentais são todos iguais. Não são qualitativamente diferentes em termos de maior ou menor carga emocional, ou de maior ou menor consciência. Contudo, a existência da emoção e da consciência, os grandes dualismos internos da mente, sugere que, na realidade, existam uma série de vínculos arquitetônicos sobre fluxos informativos que bloqueiam o perfeito funcionamento da mente computacional.

4.3. O materialismo metodológico das neurociências

Há dois tipos de materialismo: o materialismo reducionista ou fisicalista e o

materialismo eliminativista. O primeiro busca reduzir estados, eventos e processos mentais a eventos e processos cerebrais análogos; o segundo afirma que, sendo impossível esta redução, a rigor, estados, eventos e processos mentais não existem.

Os fisicalistas não afirmam que tudo o que é real é físico, porque não podemos dizer nada da realidade última fora da nossa linguagem. Afirmam somente que todos os enunciados dotados de sentido devem ser traduzíveis em enunciados puramente observativos.

Na segunda metade do século XX, surgiu, por obra de alguns jovens psicólogos e filósofos das universidades de Adelaide e Sidney, o “materialismo australiano”. Trata-se de um “materialismo da identidade dos tipos” segundo o qual é possível “reduzir” a classificação psicológica dos estados mentais em termos das propriedades físico-biológicas do sistema nervoso.

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A “teoria da identidade” é uma forma de “materialismo reducionista”, isto é, prevê uma redução dos conceitos mentais aos seus equivalentes físicos, identificados com propriedades do cérebro. Segundo Paul Churchland (1988/2004), o “materialismo reducionista” é a mais rigorosa das diversas teorias materialistas da mente. A sua tese central é simplesmente que os estados mentais “são” os estados físicos do cérebro.

Armstrong (1968: 94) tenta redefinir a consciência como uma função natural, a “propriocepção”:

“A consciência é somente um ulterior estado cerebral (…) que pode ser identificado contingentemente com um estado do cérebro, [portanto este será] um processo no qual uma parte do cérebro analisa uma outra parte do cérebro. Na percepção o cérebro analisa o ambiente. Na consciência da percepção, um outro processo no cérebro analisa a atividade de análise”.

Churchland (1988/2004) reitera o chamado eliminativismo contrapondo ao

materialismo reducionista a constatação de que a ontologia da mente presente na pesquisa neurocientífica é totalmente diferente daquela presente na nossa concepção ordinária. O ponto de partida está na filosofia da ciência contemporânea que destacou o fato de não existirem observações empíricas “neutras”.

Em A neurocomputational perspective (1989), Churchland articula a sua crítica em dois momentos: a) a psicologia do senso comum é uma teoria; b) tal teoria provavelmente é falsa. Defende a tese de que a psicologia terminará sendo suplantada pelas neurociências, pois a psicologia do senso comum tem baixo poder explicativo, mantendo-se inalterada há dois mil anos. Também para Rudolf Carnap (1956/1971), a fase fisiológica da psicologia já começou. Atualmente, é bastante provável o desenvolvimento da psicologia da sua fase macroscópica àquela teórica, fisiológica e microfisiológica e, enfim, a sua redução à microfísica.

Contudo, há outras formas de eliminativismo em filosofia da mente. Uma delas se encontra em Quine (1953). Para este autor, usar conceitos mentalistas não ajuda, antes, entrava a ciência. É preciso procurar descrever as sensações ou a consciência sem assumir entidades de tipo mental. Não é eficaz para uma explicação última de tudo forjar um esquema conceitual, com uma série de entidades mentais, a acrescentar àquelas físicas.

Uma outra variante do eliminativismo pode ser vista em Rorty (1979/2004), segundo o qual o problema da relação mente-corpo nasce da filosofia cartesiana e só tem sentido no âmbito dualista. Para Rorty, a primeira coisa a fazer é nos perguntarmos o que entendemos ser o “mental”. A intuição acerca do mental consiste, para ele, meramente num jogo lingüístico especificamente filosófico que não tem nenhuma ligação com a vida cotidiana, com a ciência empírica, com a moral ou com a religião. 4.4. O idealismo e a fenomenologia (Dreyfus, Piaget, Zubiri, McIntyre, Thompson, Rosch e Varela)

A atividade científica-padrão não passa de um prolongamento de algumas das

atividades “construtivas” da mente e seguir por este procedimento seria simplesmente afastar a mente, cada vez mais, dos fenômenos “puros” e originais. Para compreender a mente, ao contrário, precisamos adotar um procedimento de análise e desinterpretação de nossa experiência.

Husserl desenvolveu sua pesquisa cartesianamente, considerando a mente e a matéria igualmente reais. Seu interesse se concentrava na compreensão do caráter intencional dos estados de nossa mente. O exame introspectivo das atividades construtivas da mente,

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argumentava ele, revela a fonte de nossos “conteúdos” mentais e conduz a uma percepção purificada e indubitável do eu transcendental individual, que está por detrás do eu empírico ou fenomênico. Aqui, podem-se explorar os fundamentos indubitáveis da experiência humana e de todas as ciências empíricas objetivas.

Herdeiro dessa tradição, Xavier Zubiri (1980, 1982, 1983) defende que a raiz do problema metodológico está no fato de a filosofia ter entrado num processo de logificação da inteligência e de entificação da realidade. Assim, procurou superar tal “entificação da realidade” demonstrando que a concepção de ser que “se contrai” dos entes é insuficiente; contrapôs-lhe a realidade apreendida, enquanto de per si, no ato concreto da intelecção, que se abre a uma transcendentalidade “física”.

A partir do conceito de inteligencia sentiente, Zubiri procurou superar a “logificação da inteligência”, que caiu no dualismo, ao dissociar a sensibilidade da inteligência, ou então no monismo, reduzindo-as a uma só faculdade fundamental, da qual tanto a sensibilidade quanto a inteligência fazem parte. Portanto, o problema de fundo é sempre o da constituição formal da intelecção do mundo.

Também para ele, assim como para Rorty (1979/2004), a dificuldade em construir uma solução satisfatória reside na concepção dicotômica estabelecida a partir de Descartes, a quem devemos a noção de “mente” como entidade distinta, de Locke, a quem devemos a noção de uma “teoria do conhecimento” baseada na compreensão desses “processos mentais”, e de Kant, a quem devemos a noção da filosofia como tribunal da razão pura.

Zubiri supera tal noção de “mente” como objeto de estudo particular, localizado num espaço interno, contendo elementos ou processos que tornam possível o conhecimento. Introduzindo a categoria inteligencia sentiente, supera o impasse dicotômico e propõe a possibilidade de um pós-kantismo. Neste sentido, pode ser fecundo o estabelecimento de um diálogo de Husserl e Zubiri com Damásio e Dennett, dois autores contemporâneos que se têm valido das contribuições da neurologia, para a superação do problema.

Damásio (2000) defende a concepção de que o cérebro e o corpo formam um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos. A mente deriva desse conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro.

Da mesma forma, para Dennett, os dois problemas da filosofia da mente são a intencionalidade e a consciência. Em Consciousness Explained (1991), o discípulo de Quine e de Ryle defende a necessidade de uma investigação teórica destes problemas que parta das ciências naturais, pois a consciência deve ser entendida como um produto lateral da evolução. Por isso, primeiramente há a necessidade de compreender a máquina que faz a mente.

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(2) Smart, J.J.C. (1959) Sensations and Brain Processes. Philosophical Rev., 68, 141-156; Smart, J.J.C. (1961). Colours. Philosophy, 36, 128-142; Smart, J.J.C. (1963). Materialism. J. Philosophy, 60, 651-662; Smart, J.J.C. (1975). On Some Criticisms of a Physicalist Theory of Colour. Em: Chung-ving Cheng (Ed.). Philosophical aspects of the mind-body problem. Honolulu: University of Hawaii Press; Smart, J.J.C. (1978). The Content of Physicalism. Philosophical quarterly, 28, 339-341; Smart, J.J.C. (1981). Physicalism and emergence. Neuroscience, 6, 109-113; Smart, J.J.C. (1995). ’Looks Red’ and Dangerous Talk. Philosophy, 70, 545-554; Smart, J.J.C. (2004). Consciousness and awareness. J. Consciousness Studies, 11, 41-50; Lewis, D. (1966). An argument for the identity theory. J. Philosophy, 63, 17-25; Lewis, D. (1970). How to define theoretical terms. J. Philosophy, 67, 427-446; Lewis, D. (1972). Psychophysical and theoretical identifications. Aust. J. Philosophy, 50, 249-258; Lewis, D. (1983). Mad pain and martian pain and ‘Postscript’. Em: Idem. Philosophical papers, vol. 1, Oxford: Oxford University Press; Lewis, D. (1989). What experience teaches. Em: Lycan, W. (Ed.) Mind and cognition. Oxford: Blackwell; Lewis, D. (1994). Reduction of mind. Em: Guttenplan, S. (Ed.) A companion to the philosophy of mind. Oxford: Blackwell; Putnam, H. (2002). A tripla

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(3) Hull afirma a necessidade de postular “variáveis intervenientes” entre os estímulos e as respostas. Donald O. Hebb (1904-1985) defende, ao invés, a existência de “agrupamentos neuronais”, ou seja, grupos de neurônios corticais dotados de atividade autônoma. Edward C. Tolman (1886-1959) considera ter de admitir a existência de representações mentais internas ao indivíduo (os chamados “mapas cognitivos”). Para as diversas teorias da mediação, entre a recepção do estímulo e a emissão da resposta intervêm processos não diretamente observáveis. Daniel E. Berlyne, por exemplo, hipotetizou a existência de elementos simbólicos com função de mediadores.

(4) Rumelhart, D.E. e Mcclelland, J.L. (1986). Parallel distributed processing: explorations in the microstructure of cognition. Volume 1: Foundations. Cambridge: MIT Press; Mcclelland, J.L. e Rumelhart, D.E. (1986). Parallel distributed processing: explorations in the microstructure of cognition. Volume 2: Psychological and biological models. Cambridge: MIT Press; Rosenblatt, F. (1958). The perceptron: a probabilistic model for information storage and organization in the brain. Cornell Aeronautical Laboratory, Psychological Rev., 65 (6), 386-408.

- E. Cescon é Doutor em Teologia (Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália) e Pós-doutorando em Filosofia (Universidade de Lisboa, Portugal), sendo Bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal). Atua como Professor de Filosofia (Universidade de Caxias do Sul). E-mail para correspondência: [email protected].

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O jogo de regras como recurso para avaliação e intervenção: um estudo piagetiano com adolescentes

The game of rules as a resource to evaluation and intervention: a piagetian study with

teenagers

Claudimara Chisté Santos e Antonio Carlos Ortega

Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo (UEES), Vitória, Espírito Santo, Brasil; Grupo de Trabalho: Os Jogos e sua importância em Psicologia

e Educação, Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), Campinas, São Paulo, Brasil

Resumo Esta pesquisa teve por objetivo caracterizar a evolução do nível de compreensão de um jogo de regras em adolescentes do sexo feminino, a partir de um referencial piagetiano. A revisão de literatura indicou escassez de estudos investigando aspectos cognitivos de adolescentes, sendo necessário, portanto, realizar um estudo exploratório. Foram ao todo quatro adolescentes, estudantes do 1º ano do ensino médio de uma escola estadual. O método clínico de Piaget orientou tanto a coleta, quanto a análise dos dados. Os instrumentos utilizados foram o jogo Quoridor e situações-problema, com o objetivo de verificar a compreensão de cada participante sobre o sistema lógico do jogo. Para complementar a análise dos dados das participantes foram utilizados testes psicométricos, verificando escores de neuroticismo e memória. Foram estabelecidos para análise os seguintes níveis crescentes de compreensão do jogo: I, II/A, II/B, III/A e III/B. Das quatro adolescentes pesquisadas, duas alcançaram o nível II/A e duas, o nível II/B. Nos testes psicométricos, as duas participantes que atingiram o nível II/B obtiveram média inferior no teste de memória. Das participantes com nível II/A, uma também ficou na média inferior e outra obteve um nível maior, ficando na média. Uma das participantes (II/A) apresentou quadro sugestivo de depressão, uma outra (II/B) não se caracterizou por nenhuma condição de neuroticismo e as demais (II/A e II/B) apresentaram indicativos de ansiedade. Os dados apontam para a necessidade de se aprofundar na aplicação de instrumentos variados para avaliação e intervenção em processos cognitivos. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 26-49. Palavras-chave: cognição; Piaget; adolescência; jogo de regras. Abstract This research aimed to characterize the evolution of the level of understanding of a game of rules in teenagers of the female gender, based on a Piagetian theoretical approach. The literature review indicated a lack of studies investigating cognitive aspects of teenagers, being necessary, therefore, to conduct an exploratory study. Four teenage students of the first year of a public high school were the participants. The Piagetian clinical method oriented the data collection as well as the analysis. The instruments used were the game “Quoridor” and problem situations, aiming to verify the understanding of each participant of the logical system of the game. To complement the data analysis of the participants, psychometric tests were used to verify the scores of neuroticism and memory. The following increasing levels of

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Artigo Científico

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understanding of the game were established: I, II/A, II/B, III/A e III/B. Of the four teenagers in this research, two achieved the level II/A and two the level II/B. In the psychometric tests, the two participants who had achieved the level II/B obtained a low average score in the memory test. Of the two participants in the level II/A, one was also in the low average and the other obtained a higher level, being on the average. One of the participants (II/A) presented a diagnosis suggesting depression, another one (II/B) was not characterized in any condition of neuroticism, and the other two (II/A and II/B) presented indicators of anxiety. The data point to the necessity of broadening the application of varied instruments to the evaluation and assessment of cognitive processes. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 26-49. Keywords: cognition; Piaget; adolescence; games of rules.

1. Introdução

Esta pesquisa é um recorte de uma dissertação de mestrado e teve por objetivo

caracterizar o nível de compreensão de um jogo de regras em adolescentes do sexo feminino, com base no referencial teórico piagetiano. Inicialmente, serão abordados conceitos relacionados à adolescência, suas nuances e o viés teórico e ideológico assumido nesse estudo, além dos aspectos cognitivos. Também serão expostos os dados da revisão da literatura sobre estudos empíricos com adolescentes, destacando-se o papel do jogo de regras em pesquisas na área da cognição, visto que este instrumento tem se mostrado eficaz no acesso às ações e intenções dos participantes. 2. Adolescência 2.1. Aspectos gerais

A adolescência neste trabalho se pauta em definições sócio-históricas, ao invés de

utilizar um construto orientado por fases desencadeadas por processos orgânicos. Ozella (2002) define o adolescente como um sujeito concreto que se caracteriza basicamente pela condição de pertencer à natureza, e pela condição de ser social. Seu grau de desenvolvimento dependerá da estrutura social mais ampla, na qual ele se encontra inserido e da possibilidade de se diferenciar da natureza através da produção de meios de sobrevivência, que são os matizes geradores de todas as relações humanas estabelecidas e, conseqüentemente, da produção da cultura e do conhecimento. A adolescência foi discutida nesta pesquisa em relação a participantes concretos, cuja caracterização e análise têm por finalidade entender o funcionamento cognitivo a partir das situações concretas de existência.

A palavra adolescência vem do latim Adolescere, que significa crescer. Para alguns adolescentes, significa a idade da mudança, que pode ser física, cognitiva ou relacionada aos papéis sociais que eles passam a assumir perante a sociedade. Como o tema deste trabalho diz respeito à identificação de alguns aspectos do funcionamento cognitivo de adolescentes, o foco será especificamente nas mudanças cognitivas. Segundo Marcelli e Braconier (2007) a inteligência é um fator essencial para que o adolescente integre as mudanças corporais, afetivas e relacionais que acontecem no período da adolescência. Desde meados do séc. passado a Psicologia tenta desconstruir a idéia dicotômica de independência entre fatores afetivo-motivacionais e cognitivos. Sem a possibilidade de integrar no mundo das idéias as mudanças corporais e sociais pelas quais passa, o adolescente não conseguiria elaborar os papéis que a sociedade impõe.

Segundo Ozella (2003), a concepção vigente e hegemônica na Psicologia, na mídia e no imaginário popular refere-se a uma adolescência marcada por crises naturais, inerentes ao desenvolvimento humano, o que nem sempre corresponde à realidade. Neste trabalho a

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adolescência é considerada um período importante, sobre o qual cabem investigações sistematizadas, mas que é construído historicamente e, portanto, não é universal. Mas como pode uma pesquisa assumir uma posição não-universal de análise utilizando o referencial de Piaget, criticado justamente por analisar um sujeito universal?

Há que se precisar, pois, alguns termos, ou poderemos sugerir algumas contradições. A construção do conhecimento para Piaget dá-se com influência tanto do meio quanto da maturação física. Partindo dessa concepção, o autor busca formular leis sobre um sujeito universal. Uma leitura superficial pode, às vezes, levar a entender que o sujeito universal é abstrato, a-temporal, geneticamente determinado e desprovido de comprometimento político. Tal proposição pode, erroneamente, levar à interpretação de que Piaget desconsidera ou minimiza o papel do meio no desenvolvimento, o que não se justifica ao longo de sua obra, em que faz várias referências à importância do ambiente. Podemos citar alguns exemplos para demonstrar a importância que Piaget dá ao aspecto social no desenvolvimento humano.

Piaget (1977b) mostra uma preocupação com o desenvolvimento da moralidade e do senso de justiça. Dedicar-se especificamente a esse assunto deixa transparecer o substrato, talvez, de toda a obra: a preocupação em contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária. Os constructos teóricos do desenvolvimento infantil, por ele já trabalhados, retratam com clareza a importância que ele atribui ao social. Para Piaget (1977b: 75), “[...] tudo é motor, individual e social, ao mesmo tempo”. A expressão “ao mesmo tempo”, por si mesma, esclarece a igualdade de importância desses três fatores.

Outro exemplo da importância que Piaget dá ao aspecto social do desenvolvimento surge quando ele fala da Epistemologia Genética. Para ele (Piaget, 1970: 1):

“[ ...] o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito, porquanto elas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nas características preexistentes do objeto, uma vez que elas só são conhecidas graças à mediação necessária dessas estruturas, e que estas, ao enquadrá-las, enriquecem-nos.”

O conhecimento se constrói, portanto, na inter-relação entre o sujeito e o objeto; não existe um sujeito ou um objeto a priori, é na ação contínua que ambos se constroem e se transformam mutuamente e continuamente.

Para Piaget (1973), a construção do conhecimento se dá através do construtivismo, ou seja, exige uma interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Segundo Castañon (2005), há várias apropriações do termo construtivismo, e a precisão do termo no sentido estritamente piagetiano visa incorporar o papel da assimilação e da acomodação na construção do conhecimento.

A assimilação é “[...] a incorporação de um elemento exterior (objeto, acontecimento, etc.) em um esquema sensório-motor ou conceitual do sujeito” (Piaget, 1976: 13). Assim, quando se depara com uma situação, o sujeito tenta, em um primeiro momento, assimilar suas características a partir das representações que já possui sobre o mundo. Esse esquema não chega a ser traduzido em novidade para o sujeito. Ele poderia, teoricamente, observar o mundo a sua volta apenas assimilando, sem modificar em nada sua forma de pensar o mundo que o rodeia. Já no processo de acomodação, encontra-se “[...] a necessidade em que se acha a assimilação de levar em conta as particularidades próprias dos elementos a assimilar” (Piaget, 1976: 14). A acomodação dos esquemas das ações do sujeito de acordo com a necessidade imposta pelo objeto permite a transformação dos esquemas do sujeito, o desenvolvimento.

Dessa forma, Piaget se dedica a uma explicação universal sobre um sujeito concreto, influenciado dialeticamente pelo meio em que opera. Machado (2003) fez uma atualização

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dos conhecimentos atuais acerca do operatório-formal, tomando como referência a teoria de Piaget. Entre outros aspectos, ela comenta uma crítica comum à Escola de Genebra, que se refere à universalidade dos estádios de desenvolvimento. Segundo a autora, a primeira fase dos estudos – década de 50 – foi dedicada à caracterização do raciocínio operatório-formal. Estudos posteriores, que objetivavam replicar os experimentos de Piaget, chegaram à conclusão de que o percentual de pessoas que haviam alcançado o operatório-formal era pequeno, menor do que o previsto pela teoria.

A autora aponta que, a partir de 1975, as pesquisas tomam uma outra linha de investigação, que objetivaram esclarecer os fatores subjacentes ao alcance ou não do estádio operatório-formal. Ela faz alusão ao fato de Piaget, numa conferência proferida na Itália em 1970, ter influenciado essa mudança nas investigações, na medida em que admitiu que os resultados, inicialmente publicados, haviam sido obtidos através de participantes que pertenciam às melhores turmas de escolas de Genebra e, por isso, tais resultados não poderiam ser generalizáveis.

A autora conclui seu artigo ressaltando, entre outros pontos, os seguintes: (1) O único fator que não pôde ser generalizado foram as idades médias de construção do

raciocínio formal. Entretanto, qualquer adolescente ou adulto que chegue ao operatório-formal demonstrará as características descritas na teoria;

(2) O raciocínio formal não parece ser uma aquisição universal, como já alertavam Piaget e Inhelder (1979);

(3) A forma como cada adolescente atinge o formal pode ser diferenciada, mobilizando diferentes competências;

(4) Em relação ao fato do formal caracterizar o pensamento do adolescente e do adulto, ela explica que pode ser uma entre outras formas de raciocínio igualmente válidas. Ainda assim, ela lembra que os que não raciocinam no operatório-formal tendem a estar em desvantagem em relação aos demais, tendo em vista a forma como nossas sociedades são organizadas. Retomando os referenciais de adolescência aqui adotados, não é possível entender o

adolescente com um sujeito universal, que sempre enfrentará crises pré-estabelecidas e previsíveis, independente de sua cultura ou classe social. Entretanto, é possível buscar entender como adolescentes concretos lidam com desafios cognitivos e demonstram evoluir a partir dos obstáculos encontrados.

2.2. Aspectos cognitivos da adolescência

Quando se trata de mencionar os aspectos cognitivos do desenvolvimento humano,

Piaget é um autor sempre citado. Compêndios sobre o desenvolvimento mencionam aspectos teóricos de sua obra (Bee, 1997; Papalia e Olds, 2000; Marcelli e Braconier, 2007). Piaget descreve o último estádio evolutivo como estádio das operações formais, e dedica uma parte importante de sua obra a esse que é o mais evoluído dos estádios, e que não começa antes da adolescência.

Inhelder e Piaget (1970) trabalham com a noção de adolescência e não de puberdade, ou seja, como um fenômeno social, não universal. A puberdade, por sua vez, refere-se à maturação biológica. Os autores não reduzem o desenvolvimento a um único fator. Há que se levar em conta tanto a maturação biológica das estruturas cerebrais quanto o meio, incluindo a influência da educação. Segundo eles, as estruturas constituem um núcleo que influencia outras modificações no adolescente, listando duas características fundamentais dessa fase:

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integração na sociedade dos adultos e transformação do pensamento. Tal transformação se torna possível graças ao desenvolvimento de alguns aspectos que podem surgir na adolescência:

(1) construção de sistemas ou teorias; (2) capacidade de construir uma reflexão sobre o próprio pensamento (3) capacidade de construir projetos de vida a partir da assimilação das ideologias que

caracterizam a sociedade que, em geral, pretendem modificar. Torres (2001) e Parra (1983), sobre esse aspecto, descrevem várias modificações

características do operatório formal: (1) Nos outros estádios, ao resolver um problema, a criança precisa se apoiar nas ações

concretas ou nas características físicas dos objetos. O possível é um prolongamento do real. No formal, o adolescente consegue subordinar o real ao possível, ou seja, ele consegue, ao resolver um problema, levar em consideração não apenas os dados extraídos da realidade concreta, mas também dados abstratos, advindos de ações mentais;

(2) Surgimento do raciocínio hipotético-dedutivo, baseado no pensamento proposicional e na análise combinatória. Ao formular hipóteses, mesmo que completamente incoerentes em relação aos aspectos concretos da realidade, o adolescente consegue construir esquemas mentais de uma lógica combinatória, que o permite organizar os dados da realidade em várias proposições diferentes. A análise de proposições do tipo “Deus existe/Deus não existe” pode ser um bom exemplo da capacidade própria do raciocínio formal. Um sujeito no operatório formal é capaz de, ao se defrontar com proposições lógicas provando ou não a existência de Deus, não só entender como criticar e formular suas próprias proposições. Por outro lado, vale mencionar que esse estádio não é sempre alcançado, mesmo

porque sua construção depende do meio, como já foi dito anteriormente. Tais resultados são comprovados em várias pesquisas (Souza e Macedo, 1986; Teixeira, 1982; Chippari, 1981; Machado, 2003). Dessa forma, pode-se verificar que o processo de construção do conhecimento é influenciado também por fatores sociais. Estímulos que permitam a construção do pensamento e a superação de desafios cada vez mais complexos favorecerão o desenvolvimento.

Como se pode observar, não se deve generalizar a idade média de construção do formal. Pelos estudos analisados por Machado (2003) e pela diversidade mencionada por Ozella (2002), também é possível considerar o fato de que o estádio formal pode não ser a única forma de caracterizar o pensamento do adolescente. Abre-se, dessa forma, um leque para investigações futuras, visando identificar quais são as características do funcionamento cognitivo do adolescente contemporâneo e suas correlações com situações concretas de vida.

3. O adolescente como objeto de estudo 3.1. Pesquisas em geral

A adolescência tem nuances e pode ser estudada sob ângulos bem diversos. Em levantamento realizado na base de dados Scielo Brasil de todas as produções científicas cadastradas até junho de 2008, utilizando como descritor o termo adolescência, foram

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encontrados 563 artigos, a partir dos quais foram elaboradas categorias tomando como referência os títulos utilizados. Os resumos só foram investigados quando os títulos geravam dúvidas sobre o tema principal. As principais categorias estão no gráfico 1:

Gráfico 1 - Percentual de trabalhos científicos sobre adolescência na base de dados Scielo Brasil até junho de 2008.

Como se pode observar, a categoria outros representou 12,8% dos artigos encontrados,

exemplificando a diversidade dos estudos na área de adolescência. Categorias com representação menor que 3% não foram demonstradas no gráfico. Em relação especificamente a aspectos relacionados à educação ou à cognição na adolescência, foram encontrados quatro artigos sobre transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, dois sobre os efeitos de drogas na cognição, um sobre o ensino de habilidades para a vida na escola e um sobre maturidade vocacional. Nesta base de dados não foram encontrados, portanto, artigos relacionados ao tema aqui abordado, ou seja, aspectos do funcionamento cognitivo de adolescentes saudáveis, avaliados através de um jogo de regras.

Em relação a publicações internacionais, foram pesquisados artigos do Journal of Adolescent Health, de 2007 a setembro de 2008, totalizando 237 produções científicas. Foram analisadas apenas as que se encontravam na seção de artigos originais, excetuando dois suplementos extras, destinados a área médica. As categorias criadas foram praticamente as mesmas da revisão nacional, exceto pelo fato de que o tema bullying foi incluído (gráfico 2).

Na categoria drogas, estão incluídos também os trabalhos sobre álcool e fumo. Como se pode observar, baseados exclusivamente no universo pesquisado, é possível constatar que este é um tema mais recorrente em países como Estados Unidos e Inglaterra do que no Brasil. Categorias como aspectos físicos, sexualidade, transtornos alimentares, saúde mental, gravidez na adolescência e atividade física mantém percentuais próximos. O Scielo se destaca pelas publicações relacionadas à violência, inclusive sexual.

Apesar de algumas diferenças pontuais, é possível constatar que os aspectos cognitivos na adolescência são escassos. No Journal of Adolescente Health foram encontrados três artigos sobre cognição em outras seções, diferentes da que serviu de análise para esta revisão. Tais artigos tratavam de relacionar cognição a desastres naturais, a problemas sociais e a fazer

drogas; 5,7

transtornos alimen-tares; 6,9

gravidez 7,3

violência 7,5

saúde mental;8,3

saúde física 10,1

sexualidade11,2

outros12,8

aspectos físicos; 18,7

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uma revisão sobre aspectos neuropsicológicos do cérebro adolescente. Neste último, Giedd (2008), por meio de uma pesquisa longitudinal de 19 anos, concluiu que o cérebro do ser humano só se desenvolve em toda a sua plenitude aos 25 anos, o que justifica investimento em políticas públicas de educação também no desenvolvimento cognitivo de adolescentes, ainda em formação. Desenvolver tecnologias para melhorar aspectos cognitivos dos jovens é uma necessidade que não pode ser preterida em detrimento de outros aspectos igualmente importantes neste período do desenvolvimento humano.

Como nessas bases de dados não foram encontrados experimentos que pudessem auxiliar uma investigação sobre aspectos cognitivos na adolescência, a revisão da literatura foi ampliada para as bases de dados de universidades federais que possuem grupos de trabalho específicos na área de jogos, porque, como se verificará, alguns têm como tema aspectos cognitivos de adolescentes.

Gráfico 2 - Percentual de trabalhos científicos sobre adolescência no Journal of Adolescente Health, de setembro de 2007 a 2008.

3.2. Pesquisas com jogos de regras

Ortega e Rossetti (2000), em um trabalho sobre o jogo nos contextos psicogenético e psicopedagógico, realizaram uma revisão de vários trabalhos relacionando investigação científica com jogos de regras. Conforme os autores, foi possível encontrar três grupos de trabalho utilizando jogos de regras como objeto de estudo e como instrumento de investigação: um deles é coordenado pelo Prof. Lino de Macedo, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; outro organizado pela Profª. Rosely Palermo Brenelli, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, e um terceiro é desenvolvido pelo Prof. Antonio Carlos Ortega, da Universidade Federal do Espírito Santo.

Foram utilizadas cinco fontes: (1) O trabalho de Rossetti e Souza (2005); (2) Sites das seguintes universidades:

sexua-lidade

e violên-cia

1,7%

violência2,1%

bullying3,8%

ativi-dade física4,2%

educação em

saúde5%

gravidez na

adolescên-cia

5,1%outros5,9%

saúde mental6,3%

transtornos alimentares

7,4%

aspectos sociais9,3%

sexualidade; 13 %

aspectos físicos 16,9 %

drogas; 18,9 %

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• Universidade Federal do Espírito Santo (http://www.ufes.br/~dpg/psicologia/ egressos.htm);

• Universidade de São Paulo (http://www.teses.usp.br/biblioteca.html); • UNICAMP (http://www.unicamp.br/bc/);

(3) Site da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (http://servicos.capes.gov.br/capesdw/);

(4) Artigos científicos; (5) Capítulos e/ou livros.

O período pesquisado refere-se ao primeiro trabalho encontrado, em 1982, até o ano de 2006. Não foram considerados trabalhos teóricos, nem aqueles que abordam preferência lúdica; apenas pesquisas empíricas foram elencadas. Quando os resultados de uma tese ou dissertação foram publicados em artigo científico ou livro, deu-se preferência por computar estes últimos. Os descritores para a pesquisa foram jogo, jogos e jogos de regras.

Em relação à classificação da faixa etária dos participantes, foi utilizado o critério de Bee (1997). Segundo a autora, há uma certa imprecisão na definição da idade de início e término da adolescência. Segundo ela, é preciso situar este período entre a meninice e a vida adulta, que, em nossa cultura, se dá aproximadamente entre os 12 e 18 anos. Ainda segundo a autora, no caso dos universitários, costuma-se postergar o final da adolescência. Assim sendo, na classificação utilizada, não foi possível seguir a denominação dada pelos autores dos trabalhos empíricos pesquisados, que divergem entre si sobre o início e final da adolescência. O critério adotado foi o sugerido por Bee: os participantes até 11 anos foram considerados crianças. Entre 12 e 18 anos foram considerados adolescentes e acima de 18 anos adultos, desde que não fossem universitários.

De acordo com a análise desses dados, verificou-se que a maioria dos trabalhos utiliza Piaget como referencial teórico. No total foram encontradas 52 investigações empíricas nacionais, sendo 45 (86,5%) baseadas nesse autor.

Considerando o ano de realização/publicação das investigações que se baseiam em Piaget, é possível perceber que até o ano 2000 haviam sido realizadas apenas duas pesquisas envolvendo adultos, e sempre professores. A partir de 2001, começa a aumentar o número de investigações com adultos em pesquisas com jogos de regras: são ao todo sete investigações, sendo quatro delas com professores. As demais são com alcoolistas e não-acoolistas, estudantes de um curso de inglês e funcionários de uma empresa.

Em relação à quantidade de trabalhos piagetianos encontrados em cada década, é possível observar que as décadas de 80 e 90 somam 15 trabalhos, enquanto nos últimos sete anos, ou seja, de 2000 a 2006, foram encontradas 30 produções. Assim, em sete anos há duas vezes mais trabalhos que as duas décadas citadas. Esse dado indica uma tendência de aumento e valorização do jogo de regras como instrumento de pesquisa, como demonstrado no gráfico 3.

A produção de investigações que utilizam jogos de regras praticamente dobrou na última década, confirmando suas inúmeras aplicações para a pesquisa.

Quanto aos dados obtidos em relação à faixa etária dos participantes, foi possível constatar, conforme assinala o gráfico 4, que a maior parte dos trabalhos é realizada com crianças e adolescentes até 13 anos.

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Gráfico 3 - Percentual de pesquisas empíricas realizadas entre as décadas de 80 e 90 e os anos de 2000 a 2006.

Gráfico 4 - Percentual da faixa etária dos participantes de pesquisas com jogos e regras, realizadas entre 1982 e 2006.

33,30%

66,70%

décadas de 80 e 90 de 2000 a 2006

crianças43%

crianças e adolescen-

tes24%

adolescen-tes e idosos

2%

adolescen-tes

11%

adultos18%

adolescen-tes e adultos

2%

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Além da importância do jogo de regras já assinalada, é preciso considerar também que um instrumento que permite uma avaliação processual, em um clima lúdico, é útil à pesquisa. Durante um jogo é possível detectar informações sobre como o jogador pensa e como soluciona problemas ocasionais (Macedo e colaboradores, 2000). O pensamento, por si só, não é acessível ao pesquisador, mas a ação e a linguagem possibilitam acesso a aspectos do funcionamento cognitivo e, mais precisamente, ao nível de compreensão que um jogador constrói sobre o jogo. 4. Métodologia

O método escolhido em uma investigação científica precisa ser coerente com as questões de pesquisa, que se transformam em objetivos, e com o delineamento adotado. Os procedimentos, então, devem atender às necessidades dos objetivos propostos.

Considerando que o objetivo desta pesquisa foi caracterizar a evolução do nível de compreensão de um jogo de regras em adolescentes do sexo feminino, é possível considerar que não há, de acordo com a revisão teórica realizada, dados de pesquisas sobre essa questão que respaldem a elaboração de hipóteses. Portanto, o relativo desconhecimento sobre a questão já aponta para a necessidade de uma investigação exploratória.

Segundo Meltzoff (2001), em grupos pré-existentes, é muito difícil controlar as variáveis intervenientes, porque elas são constitutivas dos participantes. Não é possível, por exemplo, escolher aleatoriamente quem pode participar da pesquisa, porque há variáveis a serem controladas, mas também não é possível controlar as variáveis em laboratório. Foi preciso escolher um grupo cujas características já existiam a priori.

Ainda segundo o autor, uma característica fundamental de grupos pré-existentes é que o pesquisador pode apenas descrever e analisar características como sexo, idade, status sócio-econômico ou nível educacional. Elas fazem parte da história e perfil dos participantes, mas não podem ser controladas.

Conforme Gil (2002), as pesquisas exploratórias têm como objetivo principal esclarecer conceitos para formulação de hipóteses a serem utilizadas em estudos futuros. Diante disso, ao compreender melhor a evolução do nível de compreensão do jogo em adolescentes, será possível formular hipóteses para o aprofundamento do tema.

Para a coleta e análise dos dados foi utilizado o método clínico de Piaget ([19--]: 11). Segundo o autor,

“O bom experimentador deve, efetivamente, reunir duas qualidades muitas vezes incompatíveis: saber observar, ou seja, deixar a criança falar, não desviar nada, não esgotar nada e, ao mesmo tempo, saber buscar algo de preciso, ter a cada instante uma hipótese de trabalho, uma teoria, verdadeira ou falsa, para controlar. É preciso ter-se ensinado o método clínico para se compreender a verdadeira dificuldade. Ou os alunos que se iniciam sugerem à criança tudo aquilo que desejam descobrir, ou não sugerem nada, pois não buscam nada e, portanto, também não encontram nada.”

A caracterização do método clínico proposta pelo autor parece alertar para os cuidados

necessários na realização da coleta de dados. Ainda segundo ele, a pesquisa pode se dedicar a investigar a forma e o conteúdo do pensamento. A forma do pensamento se mostra no contato com os pares; nesse caso, o adversário do jogo. O conteúdo, por sua vez, é um “[...] sistema de crenças íntimas [...] um sistema de tendências, de orientações do pensamento, do qual a própria criança jamais tomou consciência e de que nunca falou” Piaget ([19--]: 6). Como se

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vê, a relação entre o problema de pesquisa aqui colocado e as proposições teóricas e metodológicas de Piaget fornecem uma coerência interna ao delineamento desta investigação. 4.1. Participantes

Participaram desta pesquisa quatro adolescentes com idade entre 16 e 17 anos. O número reduzido se deve à necessidade de análise detalhada de cada jogada, além das entrevistas para identificar as intenções das participantes. Todas cursavam o primeiro ano do ensino médio em uma escola estadual situada na Grande Vitória/ES. O detalhamento de cada uma delas poderá ser encontrado nos relatos de caso.

4.2. Instrumentos

4.2.1. Jogo Quoridor

Ele é formado por um tabuleiro em madeira, com quatro peões e 20 barreiras (figura

1). Ganha o participante que atingir em primeiro lugar qualquer casa na linha oposta a sua linha de partida. No início as barreiras estão colocadas atrás da linha de partida de cada jogador, sendo 10 barreiras para cada jogador (duas pessoas), sete barreiras para cada jogador (três pessoas), ou cinco barreiras para cada jogador (quatro pessoas). Cada um dos jogadores escolhe deslocar o seu peão ou colocar uma das barreiras. Os peões deslocam-se de uma em uma casa horizontal ou verticalmente, para frente, para trás ou para os lados, mas nunca na diagonal. As barreiras devem ser contornadas, ou seja, não se pode pular sobre elas, que devem ser colocadas exatamente entre duas casas. A colocação das barreiras não pode fechar totalmente o acesso à linha de chegada do adversário. Quando dois peões se encontram face a face em casas vizinhas não separadas por barreiras, o jogador pode saltar o peão do adversário. Não se pode pular dois peões de uma vez, no caso de estarem jogando três ou quatro pessoas. Esta pesquisa utilizou a versão para dois participantes. Segue uma ilustração do jogo, para melhor compreensão:

Figura 1 - Ilustração do Jogo Quoridor Fonte: BBG Image.

Com o objetivo de caracterizar o nível de compreensão que cada participante tinha do

jogo foram criadas situações-problema, pequenos desafios com respostas previsíveis que

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indicavam o quanto cada um havia compreendido sobre o jogo. A seguir, apresentaremos as situações-problema utilizadas para identificar quais as estratégias que as participantes utilizariam em desafios específicos: 4.2.2. Situações-Problema1 Situação-Problema 1 Essa situação prioriza a avaliação das seguintes estratégias (figura 2): - Conhecimento dos objetivos do jogo; - Princípio da economia das barreiras para ganhar.

- Está no começo do jogo. É a vez do

jogador vermelho. Quais estratégias ele

poderia utilizar para começar? Por quê?

- Caso o participante não mencionasse a

estratégia de economia das barreiras, era

feita nova pergunta:

- É melhor avançar ou colocar as

barreiras? Por quê?

Figura 2 - Situação-Problema 1.

Situação Problema 2 Essa situação prioriza a avaliação da seguinte estratégia (figura 3): - Utilização eficaz das barreiras, de modo a fechar adequadamente o adversário. Isso implica capacidade de coordenar ações e fazer antecipações.

- O vermelho tem 02 barreiras. O azul

tem 06.

- É a vez do jogador vermelho. Qual

seria uma boa jogada? Por quê?

- Alguma outra jogada?

Figura 3 - Situação-problema 2.

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Situação-Problema 3 Essa situação prioriza a avaliação das seguintes estratégias (figura 4): - Coordenação de ações; - Percepção das estratégias do adversário, que está com possibilidade de realizar uma jogada de ataque.

- O jogador vermelho tem 3 barreiras, e

o azul tem 5.

- É a vez do jogador vermelho. Qual

seria uma boa jogada? Por quê?

Caso a participante encontrasse como

alternativa utilizar as barreiras, se fazia

uma nova pergunta:

- Por que andar com o peão vermelho

não é uma boa opção?

Figura 4 - Situação-Problema 3.

Situação Problema 4 Essa situação prioriza a avaliação das seguintes estratégias (figura 5): - Princípio de economia de barreiras; - Visão geral da utilização das barreiras. Lugar de saída do jogador azul (ele está, no momento, com 06 barreiras).

Lugar de saída do jogador vermelho (ele está, no momento, com 01 barreira)

- Qual jogador tem mais chance de

vencer? Por quê?

- O que o jogador vermelho poderia

fazer para não ficar tão longe da linha de

chegada?

- Como você considera que os dois

jogadores usaram suas barreiras?

- Numa próxima partida, qual dica você

pode dar ao jogador vermelho para

melhorar seu desempenho?

Figura 5 - Situação-Problema 4.

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4.2.3. Testes psicométricos Para complementar as informações sobre essas adolescentes, foram utilizados dois

testes psicométricos, que visavam a conhecer dois aspectos: a memória e o ajustamento emocional. Os resultados só foram analisados depois da pesquisa terminada, de forma a não influenciar o julgamento sobre as participantes.

O teste TEMPLAM, da bateria BFM-2 (Tonglet, 2003) foi utilizado com o objetivo avaliar a memória, medindo a habilidade em evocar sinais memorizados, fazendo uma associação com as palavras que definem seu significado. O segundo teste aplicado foi o EFN – Escala Fatorial de Ajustamento Emocional/Neuroticismo (Hutz e Nunes, 2001), que teve por objetivo analisar a existência de fatores emocionais que pudessem ser levados em consideração na análise da atuação no jogo. Ele avalia quatro aspectos relacionados ao neuroticismo: 1) Vulnerabilidade, 2) Desajustamento psicossocial, 3) Ansiedade e 4) Depressão.

4.3. Procedimento

• Entrevista semi-estruturada, realizada com o objetivo de obter informações sobre a

história de vida dos participantes. • Aplicação dos testes psicométricos, para avaliar memória e nível de neuroticismo das

participantes. • Três partidas do Jogo Quoridor com a pesquisadora, para aprender as regras e objetivo

do jogo. • Campeonato entre as participantes, de modo a terem oportunidade de praticar o jogo. • Duas partidas com adversária sorteada aleatoriamente, a partir das quais se escolhia

uma partida para ser repetida e analisada. A partida a ser analisada era repetida por dois auxiliares de pesquisa, e a jogadora poderia interromper e/ou comentar cada jogada, permitindo acesso as suas intenções e estratégias.

• Apresentação das situações-problema, tendo em vista a necessidade de se avaliar o nível de compreensão do jogo.

4.4. Critérios de análise do nível de compreensão do jogo Nível I: demonstra, ao ser questionado, conhecimento sobre as regras do jogo. Conhece a finalidade do peão, mas o movimenta aleatoriamente. Menciona que o objetivo do jogo é chegar ao lado oposto ao da linha de partida, mas não o faz na prática.

Estratégias do Nível I: (a) percebe claramente a função do peão, mas o move para os lados sem ter nenhum obstáculo à frente. Até o momento não foram observadas jogadas desse tipo que fossem eficazes, ou seja, que servissem de auxílio para se vencer uma partida; (b) conhece a função das barreiras e as coloca aleatoriamente, por exemplo, no meio do tabuleiro, distante de qualquer peão. A intenção parece ser, na maioria das vezes, criar obstáculos futuros, mas como são colocados com antecedência, dão chance ao adversário de evitá-los com mais facilidade. Nível II: conhece as regras do jogo, usa as barreiras com certa coerência, tentando evitar o avanço do adversário e, às vezes, fazendo-o voltar, porém ainda não consegue perceber todos os usos das barreiras em relação a si mesmo e ao outro.

Esse nível se subdivide em dois:

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Estratégias do Nível II/A: (a) cria labirintos para atrasar o adversário, mesmo que, por vezes, não chegue a concluir a estratégia; (b) anda sempre em direção à linha de chegada.

Estratégias do Nível II/B: (a) utiliza as barreiras em todas as posições, fazendo com que o adversário retorne; (b) percebe que o número de barreiras influencia o resultado do jogo, mas nem sempre encontra estratégias para economizá-las; (c) fecha o labirinto a tempo de concluir a jogada e atrasar o adversário.

Nível III : demonstra a noção de economia das barreiras, de utilização das barreiras fechando a si próprio, de forma a controlar as jogadas. Antecipa as ações do adversário, considera a interferência do adversário uma variável importante para ganhar uma partida e coordena suas ações e as do adversário.

Esse nível também se subdivide: Estratégias do Nível III/A: (a) fecha os labirintos estrategicamente e no tempo correto,

de forma a fazer o adversário despender ainda mais tempo. No nível anterior, esse fechamento nem sempre acontece no melhor momento, o que permite supor que as antecipações ainda não estão completamente presentes; (b) consegue uma visão global do tabuleiro e das jogadas possíveis. Por isso, às vezes, entende que uma determinada jogada é necessária para não haver prejuízos maiores, por exemplo, percebe que se não andar, naquele momento, o adversário poderá fechá-lo (como no caso da situação-problema 3).

Estratégias do Nível III/B: (a) fecha a si próprio para impedir que o adversário o faça quando lhe convier; (b) conhece a necessidade de economizar barreiras e consegue fazê-lo estrategicamente durante a partida; (c) percebe que é mais vantajoso deixar o adversário sair primeiro, porque no meio do tabuleiro poderá pular sobre ele e adiantar uma casa.

5. Resultados

5.1. Caso Natália

Natália foi a única participante que cursou o ensino fundamental em uma escola

particular. Segundo ela, não gostava da escola antiga, mas não explicitou o motivo. Seu pai, que durante toda a pesquisa se mostrou presente e preocupado com os horários da filha, queria que ela estudasse em uma conceituada escola de Vitória, mas ela não aceitou, dando preferência a uma instituição de ensino que oferece pouca estrutura física e didática aos alunos. A escola foi visitada aproximadamente por 20 dias e durante este período observou-se que os alunos estavam ou esperando o sinal bater, sentados em sala de aula, ou fazendo algum exercício. A maioria dos professores permanecia sentada em sua mesa, lendo algum material. Essa foi a escola em que Natália preferiu estudar.

Durante a pesquisa, ela foi a mais colaboradora de todas as participantes. Sabia dos objetivos da pesquisa, e que estava sendo observada em relação a aspectos cognitivos, mas em nenhum momento se mostrou desconfortável com isso. Muito pelo contrário, se mostrava empolgada com as partidas e confortável em relação à competição.

Ela alegou que não utiliza drogas, mas bebe esporadicamente. Não tinha hábito de jogar, principalmente porque seu jogo eletrônico estava quebrado. 5.1.1. Análise das partidas

No que se refere à compreensão do jogo, os resultados permitiram constatar que

Natália evoluiu do nível I para o nível II/B. Desse modo, no início da primeira partida ela usou barreiras aleatoriamente, ou seja, colocava-as de forma ineficaz no tabuleiro, sem

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conseguir atrasar o peão adversário. Também moveu peões para o lado, estratégia que indica não estar considerando o objetivo final do jogo, que é chegar do lado oposto ao da linha de partida. Não economizou as barreiras, muitas vezes deixando de andar com o peão para colocá-las aleatoriamente. Entretanto, demonstrou observar as jogadas da pesquisadora, fazendo labirintos, o que indica que começava a compreender que essa era uma estratégia importante para ganhar o jogo. Apesar disso, ainda não demonstrava ter compreendido como concluir a estratégia, não sendo eficaz. É preciso lembrar que essas observações dizem respeito apenas à primeira partida, de um jogo que ela não conhecia. Portanto, já era de se esperar que ela demonstrasse um desconhecimento das estratégias.

A partir da 4ª partida, já demonstrava uma evolução ao utilizar estratégias, conseguindo fazer, em algumas jogadas, com que o adversário voltasse através do uso de labirintos.

No campeonato, ganhou 10 das 15 partidas, observando sempre a economia de barreiras. A respeito das situações-problema, que permitem identificar quais estratégias a participante conhece, Natália demonstrou ter bom conhecimento dos objetivos do jogo, além de perceber que a forma de utilizar as barreiras poderia ter relação com seu desempenho e que utilizá-las seria um modo de fechar de forma eficaz o adversário. Essa estratégia ela só mencionou na última etapa. Embora tenha demonstrado avanço, não conseguiu coordenar ações de forma eficaz para perceber todas as possibilidades de jogadas, como exige a situação-problema 3. Na situação-problema 4, ela menciona a importância das barreiras, mas não especifica o porquê.

Exemplos de relatos verbais de Natália:

“- Natália: “é. Não tem jeito mesmo. Na última, foi um quadradinho só”. - Natália: “nossa! Eu dei muito mole!” Pesquisadora: “por que você deu mole?” - Natália: “porque eu deveria ter vindo para cá e voltado.” (ela acabou entrando em um labirinto)”

Vale destacar que depois de expor a participante às situações-problema, que é a última

etapa, ela demonstrou ter avançado em relação ao conhecimento do sistema lógico do jogo. Esse dado sugere que a formulação de desafios pode permitir um avanço nos meios utilizados, favorecendo uma evolução no nível de compreensão do jogo.

Considerando a primeira posição de Natalia, que alegou inicialmente não gostar de matemática, nem se interessar pelos conteúdos propostos pela escola, é de fundamental importância ressaltar sua demonstração de interesse diante do contexto de jogo a que estava inserida. Ela conseguiu evoluir do nível I para II/B de compreensão do jogo, o que indica que é possível trabalhar habilidades relacionadas à lógica, sem que o adolescente as associe com conteúdos escolares pouco interessantes.

5.1.2. Testes psicométricos

A memória de Natália, no instrumento utilizado, mostrou-se na média inferior, o que parece ser suficiente para uma boa compreensão do jogo. É preciso ressaltar que o Quoridor parece ser um jogo que não prioriza questões de memória, apesar de que esse aspecto é fundamental para seu aprendizado.

No teste de ajustamento emocional/neuroticismo dois resultados chamam a atenção: ela apresentou fortes indicativos de ansiedade (percentil 95) e desajustamento psicossocial (90). Esse último aspecto retrata características que não são condizentes com o esperado

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socialmente, que vão desde o consumo elevado de álcool e preferência por jogos de azar até a preocupação excessiva com a aparência física e comportamentos que incluem agressividade e hostilidade. Natália, durante a pesquisa, não demonstrou nenhum desses fatores, mas o fato de ter obtido percentil 90 em desajustamento pode estar relacionado à vontade de estudar em uma escola onde as regras são frágeis e as transgressões, comuns. Ainda assim, os resultados parecem indicar que não houve interferência dessas características com o desempenho no jogo, o que sugere que oficinas de jogos de regras podem ser um recurso eficaz para jovens com características semelhantes as dela.

5.2. Caso Ana

Ana se mostrou motivada a participar dos encontros e suas informações referem-se a uma adolescente que pratica esportes, mora com a mãe e a avó, não faz uso de bebida alcoólica e se julga uma aluna mediana. Apesar de muito colaboradora durante as oficinas, demonstrou ser mais introvertida, fazendo poucas observações acerca de seu próprio desempenho ou das adversárias.

5.2.1. Análise das partidas

Ana alcançou um nível II/A de compreensão do jogo, o que significa dizer que ela foi capaz de identificar a função das barreiras, mas que ainda as colocava aleatoriamente, por exemplo, no meio do tabuleiro, distante de qualquer peão. A intenção parecia ser, na maioria das vezes, criar obstáculos futuros, mas como eram colocados com antecedência, davam a chance às adversárias de evitá-los com mais facilidade. Em algumas partidas, inclusive, ela não bloqueava a adversária quando podia. Eis um exemplo:

“Pesquisadora: “e agora, quando ela põe essa barreira aqui?” Ana: “Eu tenho que dar a volta (suspira) para eu chegar...tudo de novo...” Pesquisadora: “o que você acha dessa barreira que ela colocou aqui?” Ana: tinha fechado o jogo ali. Pesquisadora: “Você tinha percebido que ela poderia fechar o jogo aqui?” Ana: não.”

Esse diálogo é um dos exemplos que se seguiram ao longo da pesquisa. Como se pode

observar, ela não antecipa as ações da adversária, o que a impede de coordenar ações para vencer as partidas. Ainda assim, ganhou nove das quinze partidas jogadas no campeonato. Na quarta etapa, em que jogava três partidas com uma adversária sorteada aleatoriamente na etapa anterior, ela disse que “não estava legal”, queixando-se de falta de atenção. Não era objetivo desta pesquisa uma intervenção, mas essa queixa deve ter relação com seu desempenho em relação à aprendizagem do jogo e as respostas aos questionamentos sobre suas intenções durante as partidas.

5.2.2. Testes psicométricos

Na escala de neuroticismo, ficou com o percentil 90 em depressão, o que pode explicar sua falta de atenção e disposição. Algumas questões ficam em aberto e somente um acompanhamento por longo prazo poderia esclarecer. Ela obteve média inferior no resultado do teste de memória. Entretanto, numa etapa intermediária, que é o campeonato (3ª etapa), ela teve bom desempenho, vencendo 9 das 15 partidas. E, ao contrário do que os resultados

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psicométricos anunciavam, ela demonstrou uma evolução durante as situações-problema. No início das perguntas, ela ainda não tinha claro o princípio da economia das barreiras. Ao longo das situações, vai refletindo, a ponto de se referir a esta estratégia no final com muita objetividade.

Os instrumentos utilizados precisam ser mais pesquisados, tais como as situações-problema, o protocolo de registro de estratégias e o conhecimento sobre o sistema do Quoridor. Qual será o papel dos procedimentos de investigação das situações-problema e da própria prática do jogo na evolução do pensamento? Para Piaget (1977a), o conhecimento não está necessariamente só no objeto ou só no sujeito, e quanto mais ele avança no conhecimento do objeto, mais avança também no conhecimento de si próprio. Dessa forma, evoluir no sistema de jogo deveria significar ampliar também o conhecimento sobre seus próprios meios e estratégias de jogo, enfim, seu pensamento.

Apesar do indicativo de depressão, ela teve evoluções. O que aconteceria se ela estivesse sendo submetida a uma avaliação estática, com objetivo de subsidiar decisões em relação a sua vida escolar ou até mesmo profissional? Os testes psicométricos foram aqui utilizados para colaborar com a análise, mas eles se dedicam apenas a um resultado. O jogo, por sua vez, além de resultados como ganhar ou perder, permite que o próprio sujeito faça e refaça, regule seus esquemas e evolua na construção do conhecimento.

5.3. Caso Diana

Diana foi uma participante que se manteve calada durante toda a coleta. Ainda assim

se mostrava simpática, interessada nos jogos, mas não era de se expressar verbalmente. Bebe apenas em festas e alega não utilizar drogas. Se considera uma aluna mediana, que não gosta de matemática. Jogos de regras que fazem parte do seu cotidiano são apenas dominó e dama, muito raramente. Não tem muito acesso a jogos eletrônicos.

5.3.1. Análise das partidas

Ela parecia copiar, desde a primeira partida, as jogadas da pesquisadora. Isso fez com que ela já começasse num nível mais elevado (II/A). Com o passar das partidas, evoluiu até o nível II/B, o que indica que ela utilizou as barreiras em todas as posições, fazendo com que a adversária retornasse, começando a perceber que o número de barreiras influenciava o resultado do jogo e fechando o labirinto a tempo de concluir a jogada e atrasar a adversária. Eis um exemplo de relato de Diana:

“Pesquisadora: “quando você viu que iria ganhar o jogo?” Diana: “quando ela viu que não tinha mais jeito de ficar me cercando porque não ia dar para ela ganhar mesmo” Pesquisadora: em que momento foi isso? Diana: aqui (aponta para as três últimas barreiras colocadas na partida) Pesquisadora: ah, nessas três últimas (não houve antecipação) Diana: “porque ela viu que ia ter que voltar isso tudinho, aí não adiantava colocar mais três barreiras. Se ela fechasse eu ia ficar sem saída. (o que é proibido pelas regras do jogo)””

As partidas que ela perdeu foram em decorrência do fato de não perceber a

necessidade de economizar as barreiras como uma estratégia fundamental para vencer o jogo, fato mais comum quando ela ainda não tinha muita prática.

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Ganhou 10 das 15 partidas do campeonato. Nas situações-problema, chegou a mencionar a importância das barreiras no resultado final das partidas, mas não percebe que, além de colocadas correta e estrategicamente, a economia delas é fundamental para vencer o jogo.

5.3.2. Testes psicométricos

O que chama a atenção é que ela ficou na média inferior no teste de memória. É preciso supor que talvez o jogo Quoridor não exija dos jogadores um nível muito alto de memória, ou que sua memória precisasse ser avaliada em outras ocasiões e com outros instrumentos para se ter confirmação dos resultados. Em relação aos níveis de ajustamento emocional, manteve-se em percentis próximos à média em todas as sub-escalas.

Diana manteve, em geral, ações e resultados sem muitas intercorrências, durante toda a coleta.

5.4. Caso Quênia

A situação de Quênia foi muito diferente das demais participantes. Ela perdeu muitas

partidas no campeonato, consecutivamente. É preciso ressaltar que esse é um jogo de partidas muito rápidas, em média 04 minutos. As adolescentes estavam sentadas em duplas, a uma distância de aproximadamente dois metros uma da outra. As mesas foram dispostas de forma que ficasse uma pilastra entre as duplas. Dessa forma, cada qual se concentrava no seu jogo, sem se preocupar com as demais participantes. Como, a cada partida, duas participantes precisavam se levantar para fazer o rodízio de adversárias, era evidente o desconforto de Quênia. Ora não queria levantar-se, ora se locomovia arqueada, arrastando os pés. Quando venceu a primeira partida, ficou exultante, dizendo para Natália: “viu, quem disse que eu não ganhava nenhuma?”. Após três partidas, ganhou outra, de uma adversária diferente. Este fato deu a ela um ânimo novo para o jogo. Tanto assim que durante a etapa posterior, em que jogou com uma adversária três partidas, o sorteio fez com que ela formasse dupla justamente com Natália. Ganhou uma e perdeu duas. As duas se mostraram muito competitivas. O jogo parece ter proporcionado a Quênia uma possibilidade de recuperar a auto-estima, demonstrando que também conseguiria obter êxitos e superar obstáculos.

5.4.1. Análise das partidas

Quênia evoluiu até o nível II/A, criando labirintos para atrasar o adversário e andando sempre em direção à linha de chegada. Entretanto, não conseguia economizar barreiras ou coordenar suas ações com as da adversária, como se vê no exemplo abaixo:

“Pesquisadora:: “o que você achou dessa jogada?” Quênia: “ agora está mais fácil para mim...do que para ela. Ela tem que andar tudinho para chegar até aqui e eu não.””

Mesmo nas partidas em que venceu, não conseguia explicar o porquê:

“Pesquisadora: “o que você acha que fez você ganhar este jogo, Quênia?” Quênia: ‘como assim? Em que sentido?” Pesquisadora: “você ganhou. Ela perdeu. Você ganhou duas partidas e ela uma. O que você acha que fez você ganhar?

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Quênia: “acho que é porque eu parava, olhava, analisava, para depois mexer”.” “Pesquisadora: “tem algum macete, algum truque?” Quênia: não, acho que tinha que pensar, tipo assim... nela, nem em mim tanto, tinha que pensar qual seria a próxima jogada dela.””

Quênia demonstrou não conseguir, ainda, explicar os motivos e estratégias por ter

ganhado uma partida, não conseguindo descrever os meios que utilizou para obter tal resultado. Esse fato demonstra que seu nível de compreensão do jogo e o nível do conhecimento que tem sobre si mesma podem ter sido responsáveis pelos seus resultados finais no campeonato. Entretanto, já relata a importância de observar a adversária, fato primordial em qualquer jogo de competição.

5.4.2. Testes psicométricos

Seu resultado no teste de memória foi o melhor das adolescentes – zona média, o que

indicaria, no caso de uma intervenção, a necessidade de investigar outros fatores responsáveis pelos resultados alcançados em relação ao jogo. No caso de um atendimento psicopedagógico, outros fatores precisariam ser investigados para se ter mais informações sobre seu desempenho, como aspectos afetivo-motivacionais, principalmente porque obteve percentil 87 para ansiedade.

6. Discussão

Das quatro adolescentes pesquisadas, duas alcançaram o nível II/A e duas, o nível II/B. O fato de Ana e Quênia terem atingido o nível II/A indica que criaram labirintos para atrasar o adversário e caminharam em direção à linha de chegada, o que demonstra compreensão das regras do jogo e um início de construção de estratégias.

Enquanto Natália começou no nível I, Diana iniciou, já na primeira partida, no nível II/A, aparentando, em alguns momentos, repetir as jogadas da pesquisadora. Apesar disso, ambas alcançaram o mesmo nível (II/B), o que denota que conseguiram utilizar as seguintes estratégias: (1) utilizar as barreiras em todas as posições, fazendo com que o adversário retorne; (2) perceber que o número de barreiras influencia o resultado do jogo, apesar de, por vezes, não perceber como economizá-las; (3) fechar o labirinto a tempo de concluir a jogada e atrasar o adversário.

Os testes psicométricos visavam complementar a análise do funcionamento cognitivo das participantes. Pain (1992) defende a idéia de que provas mentais com fundamentação estatística são excelentes instrumentos para avaliar o rendimento de um sujeito. Entretanto, ela pondera que tais provas não explicam por si mesmas os mecanismos envolvidos. Por outro lado, se a teoria de Piaget apresenta um modelo capaz de explicar tais mecanismos de forma dialética e estruturalista, é criticado pela falta de rigor estatístico na manipulação dos dados experimentais. Segundo a autora, reunir a precisão dos testes psicométricos e a fecundidade do modelo piagetiano pode contribuir para o diagnóstico do comportamento.

Ela diferencia o que chama de “método de testes” e “método clínico”, este último de Piaget. O primeiro tem o foco no controle das variáveis, amostras homogeneizadas, proporcionando como resultado uma evolução por idades, ou seja, uma expectativa de desempenho de acordo com a idade cronológica.

O método clínico, por sua vez, pretende determinar as estratégias e o desenvolvimento de cada raciocínio, bem como sua evolução no transcurso da própria experiência.

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Desta forma, o primeiro indica o que pensa um sujeito de determinada idade e o segundo método se ocupa de saber como e por que tal sujeito pensa assim.

Como se pôde observar nos casos citados, os dois dados – psicométricos e clínicos – evidenciaram aspectos diferentes, complementando a análise. Os testes de memória das quatro adolescentes se mantiveram em média e média inferior. De fato, nenhuma delas também atingiu o nível III, que seria o mais avançado do jogo. Sendo este um estudo exploratório, ele abre caminhos para estudos que possam investigar especificamente a relação entre os resultados dos mais variados instrumentos. A hipótese que se levanta é que as informações psicométricas e procedimentais complementam uma avaliação, fornecendo mais dados para a intervenção. As informações sobre o nível de neuroticismo também contribuíram para analisar o desempenho das participantes, como, por exemplo, no caso de Ana, cujos indicativos de depressão podem ser suficientes para prejudicar seu desempenho. Um diagnóstico, portanto, é fundamental para a intervenção escolar. O jogo de regras, por lidar com avaliações processuais, tem se mostrado um instrumento eficaz para o acompanhamento do desenvolvimento cognitivo de adolescentes, como se pode observar nas pesquisas citadas a seguir.

Nesta pesquisa, todas as adolescentes evoluíram na compreensão do sistema lógico do jogo. Estudos indicam que pesquisas com jogos de regras tendem a proporcionar tal evolução. Ortega e Pylro (2007) realizaram uma análise microgenética do nível de compreensão do jogo com quatro estudantes de 16 anos, utilizando o jogo Quarto, e constaram que houve uma evolução nas explicações das estratégias. Oliveira e Brenelli (2008) perceberam, ao pesquisar 16 crianças e adolescentes, utilizando o jogo Xadrez Simplificado, que há uma interdependência entre as condutas no jogo, o desenvolvimento da perspectiva espacial e os níveis de Tomada de Perspectiva Social em relações construtivas e integrativas.

Apesar de não trabalhar com adolescentes, Cavalcante e colaboradores (2005) investigaram, entre outros aspectos, o funcionamento cognitivo de crianças de 10 anos por meio do jogo Mattix. Os autores também relatam evolução nos níveis de compreensão do jogo dos participantes.

Torres (2001) também obteve o mesmo resultado, quando, por meio de um processo de intervenção, trabalhou dois semestres letivos com adolescentes, por meio de oficinas utilizando o jogo Rummikub, entre outros instrumentos. Ela aplicou um instrumento denominado Escala de Longeot antes e depois da pesquisa, observando que houve uma evolução nos estádios de desenvolvimento. Esse resultado indica que a evolução na compreensão de jogo sugere um desenvolvimento que pode ser aplicado a outras situações da vida do sujeito.

Dessa forma, o jogo de regras parece permitir evolução do nível de compreensão do jogo e o desenvolvimento cognitivo em adolescentes, mostrando-se um instrumento eficaz não apenas para pesquisas transversais, mas também longitudinais, a partir de intervenções.

Uma das funções indiscutíveis da escola é desenvolver aspectos cognitivos, independente do viés, linha teórica ou método adotado. O adolescente brasileiro passa, no mínimo, quatro horas diárias envolvido com atividades escolares, sem contar com os desdobramentos dos contatos iniciados na escola, que representam trocas de mensagens informatizadas, torpedos, enfim, encontros digitais e face-a-face. O ambiente escolar é, portanto, um espaço necessário de investigação e análise.

Ao comparar a atitude de Nayara, por exemplo, em relação à escola e o seu comportamento durante a pesquisa, é possível supor que o jogo tenha criado um ambiente motivador. Natália demonstrou um interesse pela prática do jogo que não relata em relação às atividades escolares. O jogo de regras, provavelmente por ser lúdico e promover contatos sociais, parece ser um objeto intermediário capaz de conseguir o que as aulas tradicionais não

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vêm conseguindo. Para essa participante, ele pode ser visto como um recurso para facilitar a realização de um trabalho didático, já que permite analisar o processo de construção do conhecimento do sujeito, além de desenvolver o raciocínio lógico.

Retomando os conceitos piagetianos de assimilação e acomodação citados anteriormente, é preciso considerar, como aponta Perrenoud (1999), que todo hábito se caracteriza como um esquema, mas nem todo esquema é um hábito, ou seja, a prática é fundamental para a utilização dos conceitos apreendidos na escola e, quando o sujeito tem a oportunidade de ser desafiado, não permanece com os esquemas rígidos, mas torna-os cada vez mais complexos. Segundo o autor,

“uma competência então, (...) orquestra um conjunto de esquemas. Um esquema é uma totalidade constituída, que sustenta uma ação ou operação única, enquanto uma competência com uma certa complexidade envolve diversos esquemas de percepção, pensamento, avaliação e ação, que suportam inferências, antecipações, transposições analógicas, generalizações (...) etc.” (Perrenoud, 1999: 24, grifo nosso)

A prática do jogo pode, portanto, estimular a construção de esquemas cada vez mais

complexos, permitindo também a construção de competências que permitam articular tais esquemas com os próprios desafios do jogo e do cotidiano dos jogadores. Quando utilizado com sistematização, propósitos claros e conteúdos explicitados, o jogo pode se transformar em recurso didático poderoso, principalmente pelo fato de propiciar uma maior interação entre os alunos, visto que, como aponta Coll e Solé (1996: 300), “...a relação entre os alunos pode incidir de forma decisiva sobre aspectos tais como a aquisição de competências e destrezas sociais...”. O jogo, utilizado nesta pesquisa especificamente para avaliação de aspectos cognitivos de adolescentes, pode servir também com objetivos relacionados ao desenvolvimento de aspectos afetivo-motivacionais.

Solaz-Portolés e Sanjosé (2008), ao analisarem a educação voltada para resolução de problemas, ressaltam a importância da atitude dos professores, visto que, para eles, “a habilidade em resolver problemas depende tanto da interação das variáveis cognitivas quanto da possibilidade de discuti-las” . Por isso mesmo, sugerem que os professores devam incluir materiais concretos para facilitar o aprendizado de conceitos abstratos, em grupos pequenos, lançando sempre desafios e perguntas individualizadas, observando os dados que são fornecidos, os métodos utilizados e os objetivos traçados. O jogo de regras é um instrumento que se encaixa como uma das possibilidades para o trabalho do professor seguir tais sugestões, na medida em que cria uma situação lúdica, motivadora e desafiadora, capaz de mobilizar e desenvolver aspectos cognitivos.

As adolescentes pesquisadas estiveram durante todo o tempo motivadas, tendo em vista que ficavam depois do turno de aula (almoçavam na escola), não tiveram nenhuma falta e ainda disseram: “... se você precisar, pode contar com a gente de novo, é só chamar” (sic). Durante conversas informais entre os jogos, quando o gravador não estava ligado, elas comentavam sobre temas polêmicos, como o tráfico de drogas na escola e a atitude que tinham que tomar para não entrar “... no meio da ação deles” (sic). Não comentar, não falar sobre o assunto, não questionar - esta parece ser a estratégia utilizada. Entre os namoros, bullings, festas, narcotráfico, elas precisam aprender. A aula precisa ser tão ou mais dinâmica que o cotidiano dos adolescentes, precisa ser mais atraente e interativa, enfim, produzir sentido, levando em conta o cotidiano. O jogo não é o único recurso disponível, mas pode ser um deles, principalmente porque desenvolver aspectos lógicos tem se tornado um desafio para os educadores em geral. Entretanto, não basta a prática simplesmente, a figura de um

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educador preparado para colocar obstáculos na medida certa e auxiliar o adolescente a superá-los é fundamental, porque não se pode confundir atividades lúdicas com tarefas mais fáceis.

Na revisão da literatura foram encontrados poucos estudos brasileiros dedicados a entender o cotidiano escolar dos adolescentes no âmbito cognitivo. Desenvolver tecnologias que aprimorem o espaço de aprendizagem é fundamental para que a Psicologia possa contribuir com a formação de quem precisa de desafios cognitivos atraentes.

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Nota (1) Cada barreira ocupa duas casas. - Santos, C.C. é Mestre em Psicologia (UFES). Atua como Professor (Faculdade Brasileira). Membro do GT "Os Jogos e sua Importância em Psicologia e Educação" - ANPEPP. Endereço para correspondência: Rua Natalina Daher Carneiro, 860, apto. 204, Jardim da Penha, Vitória, ES 29060-490. E-mail para correspondência: [email protected]. A.C. Ortega é Doutor em Psicologia (Fundação Getúlio Vargas – RJ). Atua como Professor Colaborador e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFES). Membro do GT "Jogos e sua Importância em Psicologia e Educação" - ANPEPP.

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A manifestação de habilidades cognitivas em atividades experimentais investigativas no ensino médio de química

The cognitive skills expressed in investigative laboratory work in the secondary chemistry

education

Rita de Cássia Suart, a e Maria Eunice Ribeiro Marcondesb

aPrograma de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil; bDepartamento de Química Fundamental, Instituto

de Química, USP, São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo Os experimentos investigativos são uma das estratégias sugeridas para permitir a participação mais ativa dos alunos no processo de aprendizagem. Assim, se os alunos participarem de etapas como: coleta de dados, análise e discussão; poderão formular hipóteses e propor soluções para o problema proposto, desenvolvendo seu raciocínio lógico e habilidades cognitivas importantes para a construção do conhecimento químico e para a sua formação cidadã. Este trabalho investigou as habilidades cognitivas manifestadas por alunos da primeira série do ensino médio de química em uma atividade experimental investigativa. Os alunos deveriam investigar quais fatores podem interferir na temperatura de ebulição de um material. As aulas foram gravadas em áudio e vídeo e os relatórios e as falas dos alunos foram analisados qualitativamente utilizando categorias de análise baseadas nas habilidades cognitivas manifestadas. Na análise, verifica-se uma dificuldade dos alunos em compreender a relação entre tempo e temperatura. Alguns grupos, ao propor seus procedimentos, determinam o tempo como o objeto de estudo. Os resultados também evidenciam grande participação dos alunos na atividade e a manifestação de habilidades cognitivas de alta ordem como elaboração de hipóteses; porém, grande parte das respostas foi classificada como habilidades cognitivas de baixa ordem, talvez por se tratar de uma atividade pouco conhecida pelos alunos e exigir maior esforço cognitivo em algumas etapas. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 50-74. Palavras-chave: experimentação; atividade investigativa; habilidades cognitivas. Abstract Inquiry experiments are one of the strategies which allow more active participation in the learning process. So, if the students are involved in steps as: data collection, analysis and discussion, they will be able to formulate hypothesis and to propose solutions to the problem, developing logical reasoning and cognitive skills important to the construction of chemical knowledge and for citizenship. This work investigated the cognitive skills expressed by high school students in an inquiry chemistry experimental activity. Students should investigate the factors that would affect the boiling point of a material. The classes were recorded on audio and videotape and the reports and discourse of students were analyzed qualitatively using categories of analysis based on the cognitive skills. The analysis shows the difficulties of the students to understand the relationship between time and temperature. Some groups proposed the time as the object of study instead of the temperature. Also, the results show great involvement of the students in the activity and their answers reveal higher order cognitive skills, such as development of hypothesis; however, they also give answers that was classified as lower order cognitive skills, perhaps,

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Artigo Científico

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because the activity was unknown by students and it requires greater cognitive effort in order to deal with some steps. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 50-74. Keywords: experimental; chemistry teaching; cognitive skills.

1. Introdução

A experimentação no ensino de Ciências tem sido investigada exaustivamente nos últimos trinta anos. Existe uma vasta gama de artigos e livros defendendo a experimentação no ensino de química, porém o que se tem percebido é que muitos pesquisadores discordam do modo como essas atividades são propostas e executadas nas salas de aula e nos laboratórios (Hodson 1994; Gil-Pérez e Valdés Castro, 1996; Gonzales, 1992; Watson et al., 1995).

As atividades experimentais, tanto no ensino médio como em muitas universidades, ainda são muitas vezes tratadas de forma acrítica e aproblemática. Pouca oportunidade é dada aos alunos no processo de coleta de dados, análise e elaboração de hipóteses. O professor é o detentor do conhecimento e a ciência é tratada de forma empírica e algorítmica. O aluno é o agente passivo da aula e a ele cabe seguir um protocolo proposto pelo professor para a atividade experimental, elaborar um relatório e tentar ao máximo se aproximar dos resultados já esperados.

A postura construtivista, disseminada nos últimos trinta anos, tem como marco central a participação do aluno no processo de construção do conhecimento e o professor como seu mediador ou facilitador, valorizando a participação ativa do estudante na resolução de situações problemáticas, possibilitando-o a predizer respostas, testar hipóteses, argumentar, discutir com os pares, podendo atingir a compreensão de um conteúdo.

Assim, investir na proposição de metodologias e estratégias de ensino capazes de proporcionar o desenvolvimento cognitivo do aluno como a experimentação, pode contribuir para que esse objetivo se concretize.

A experimentação investigativa tem sido considerada por diversos pesquisadores como uma alternativa para melhorar a aprendizagem e intensificar o papel do aluno na atividade. Essas atividades, segundo os pesquisadores, podem permitir uma maior participação do aluno em todos os processos de investigação, ou seja, desde a interpretação do problema a uma possível solução para ele (Gil-Pérez e Valdés Castro, 1996; Domin, 1999; Hodson, 2005). Nessa abordagem, os alunos têm a oportunidade de discutir, questionar suas hipóteses e idéias iniciais à luz do quadro teórico, coletar e analisar dados para encontrar possíveis soluções para o problema.

Portanto, se uma aula experimental for organizada de forma a colocar o aluno diante de uma situação problema, e estiver direcionada para a sua resolução, poderá contribuir para o aluno raciocinar logicamente sobre a situação e apresentar argumentos na tentativa de analisar os dados e apresentar uma conclusão plausível. Se o estudante tiver a oportunidade de acompanhar e interpretar as etapas da investigação, ele possivelmente será capaz de elaborar hipóteses, testá-las e discuti-las, aprendendo sobre os fenômenos estudados e os conceitos que os explicam, alcançando os objetivos de uma aula experimental, a qual privilegia o desenvolvimento de habilidades cognitivas e o raciocínio lógico.

Este trabalho investigou as habilidades cognitivas manifestadas por alunos do primeiro ano do ensino médio de química em uma atividade experimental investigativa denominada laboratório aberto (Carvalho et al., 1999). Desta forma, a pesquisa teve como objetivo investigar se o aluno, ao participar de atividades experimentais investigativas mediadas pelo professor, raciocina sobre o problema proposto e procura respostas para sua solução a partir

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da proposição de hipóteses e análise dos dados, manifestando assim, suas habilidades de cognição.

Na atividade proposta pela professora, os alunos deveriam elaborar hipóteses para investigar quais fatores afetavam a temperatura de ebulição de um material, elaborar um experimento, executá-lo, analisar os dados e comunicá-los para a sala. Assim, ao investigar todo o processo de experimentação, desde o pré-laboratório até o pós-laboratório, foi possível analisar qualitativamente as habilidades cognitivas de baixa ou alta ordem manifestadas pelos alunos durante essa atividade e a aprendizagem alcançada na atividade.

2. As atividades experimentais investigativas

Muitas atividades experimentais ainda são desenvolvidas e executadas em sala de aula

com o objetivo de motivar o aluno ou comprovar fatos e teorias previamente estudados em sala de aula. Porém, as pesquisas têm evidenciado que atividades pautadas nestas concepções são deficientes no que se refere à aprendizagem do aluno (Barberá e Valdés, 1996 Gil-Pérez e Valdés-Castro, 1996 Hodson, 1994).

Pesquisas atuais têm se intensificado à procura de metodologias que priorizem a participação ativa do aluno no processo de aprendizagem. Assim, com relação à experimentação, o aluno, segundo tais concepções, precisa estar diante de um problema e tentar solucioná-lo, mas, sempre com o auxílio do professor.

Para Gil-Pérez e colaboradores. (2005), o problema existirá se e somente se, a pessoa que o projeta identifica que há algo interessante para resolver, mas não dispõe de procedimentos automáticos que lhe permita chegar à solução de maneira mais ou menos imediata, mas requer um processo de reflexão ou tomada de decisões sobre a seqüência dos passos a seguir, ou seja, para um problema ser realmente um problema, este não deve ter uma solução evidente para a pessoa interessada em resolvê-lo, é necessário que se realize uma investigação.

Os mesmos autores insistem na possibilidade de se obter melhores resultados no ensino de Ciências a partir do estabelecimento de propostas que contemplem a atividade do aluno através de seu envolvimento ativo no processo de aprendizagem. Este método, chamado de método investigativo, tem mostrado eficácia em desenvolver aspectos fundamentais para a educação científica, entre os quais, a possibilidade de expor o aprendiz em atividades que favoreçam o desenvolvimento de habilidades de observação, formulação, teste, discussão, entre outros.

Segundo Hodson (1994), o trabalho experimental deve estimular o desenvolvimento conceitual, fazendo com que os estudantes explorem, elaborem e supervisionem suas idéias, comparando-as com a idéia científica, pois só assim essas idéias terão papel importante no desenvolvimento cognitivo. Pesquisas mostram que os estudantes desenvolvem melhor sua compreensão conceitual e aprendem mais acerca da natureza das ciências quando participam de investigações científicas, onde haja suficiente oportunidade e apoio para reflexão (Hodson, 1994).

Para Carvalho e colaboradores, “a atividade deve estar acompanhada de situações problematizadoras, questionadoras, diálogo, envolvendo, portanto, a resolução de problemas e levando à introdução de conceitos” (Carvalho et al., 1999: 42). Ainda, segundo os autores, a resolução de um problema pela experimentação deve envolver também reflexões, relatos, discussões, ponderações e explicações, processos típicos de uma investigação científica.

Atividades nas quais o aluno se limita à manipulação de materiais ou observação de fatos se demonstram de fraco caráter cognitivo, ou seja, permitem pouca participação do aluno na elaboração de hipóteses, no contraste de idéias, na análise de variáveis. Essas

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atividades geralmente apresentam um manual pré-elaborado e estruturado, limitando a participação do aluno.

Domin (1999) argumenta que as atividades de laboratório freqüentemente apresentam natureza de “receita de cozinha”, e são planejadas com o propósito de consumir mínimos recursos, tempo, espaço, equipamentos e pessoal. Pouca ênfase é dada ao planejamento experimental e à interpretação dos resultados.

Para ele, duas explicações podem ser dadas para a ineficácia das atividades experimentais. A primeira se refere ao tempo que os estudantes perdem determinando se o resultado obtido é o correto, em detrimento ao planejamento e organização dos experimentos. Segundo, o plano de laboratório das atividades tradicionais facilita o desenvolvimento de habilidades cognitivas de ordem baixa (aprendizagem mecânica, resolução de problemas algorítmicos).

Shiland (1999) declara que uma mudança na estruturação e objetivos dessas atividades como, por exemplo, permitir que os alunos identifiquem e controlem variáveis ou que participem da elaboração do procedimento experimental pode contribuir para aumentar e valorizar processos cognitivos mais complexos. Corroborando sua idéia, Bennet e O’Neal (1998) argumentam que a ausência dos alunos na participação do planejamento do experimento desestimula sua apreciação no processo de desenvolvimento dos conhecimentos químicos, porque os experimentos já são entregues aos alunos em um protocolo e a eles cabe responder o que está certo ou errado.

A liberdade dada pelos professores aos alunos em atividades experimentais pode estar relacionada com o nível de abertura das atividades práticas. Segundo Jiménez Valverde e colaboradores (2006), esses níveis revelam o esforço mental exigido para o aluno resolver o problema experimental. Ou seja, exigir maior esforço mental significa que os alunos deveriam desenvolver habilidades de maior nível cognitivo.

As atividades experimentais investigativas, portanto, podem contribuir para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, desde que sejam planejadas e executadas de forma a privilegiar a participação do aluno.

Hofstein e colaboradores (2005) concebem as atividades investigativas (inquiry-type laboratories) centrais para a aprendizagem de ciências desde que os estudantes estejam envolvidos no processo de compreensão de problemas e questões científicas, formulação de hipóteses, planejamento de experimentos, coleta e análise de dados, tendo a oportunidade de inferir conclusões sobre os problemas científicos ou fenômenos.

Segundo The National Science Education Standards, descrito no artigo de Hofstein e Lunetta (2004), o termo investigação (inquiry) pode ser definido de duas maneiras: (a) Como capacidade de entendimento, na qual os estudantes têm a oportunidade de

construir conceitos e padrões, e criar significado sobre uma idéia para explicar suas experiências;

(b) Em termos de habilidades e competências.

Ainda, Bybee1, citado por esses autores, inclui para o termo identificar e propor questões cientificamente orientadas, formular hipóteses, planejar e conduzir investigações científicas, formular e revisar explicações científicas, e comunicar e defender os argumentos científicos. O autor argumenta ainda que muitas destas habilidades e competências estão de acordo com aquelas que caracterizam o trabalho laboratorial investigativo, ou seja, uma atividade que coloca o estudante no centro do processo de aprendizagem.

Ao investigar o desenvolvimento e manifestação de habilidades cognitivas em atividades experimentais investigativas, Hofstein e colaboradores (2005), verificaram que

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quando os estudantes encontram-se em situação nas quais são dadas oportunidade e tempo para desenvolver habilidades de investigação nos laboratórios de química, eles podem fazer mais e melhores questões, propor hipóteses e questionar o experimento quando comparados com estudantes que foram limitados a experimentos tradicionais durante o processo de ensino.

O público-alvo da pesquisa consistiu de dois grupos de alunos do ensino médio de química: um grupo participante de atividades experimentais investigativas (grupo experimental) e outro grupo participante de atividades tradicionais de laboratório (grupo controle). Os resultados mostram que os estudantes no grupo experimental fizeram mais perguntas de alto nível comparado ao grupo controle; assim, enquanto o grupo experimental elaborou 123 questões de alto nível o grupo controle elaborou somente 18 questões. Porém, nenhuma diferença significante foi observada com relação ao número de questões de nível baixo; cerca de 184 para o grupo experimental e 165 para o grupo controle. Assim, a grande diferença entre os grupos está no número de questões de alto nível.

No Brasil, Zuliani (2000) investigou a eficiência da metodologia investigativa com um grupo de 15 alunos do terceiro termo do curso de Licenciatura em Física. Os alunos deveriam em grupos, escolher um tema em química para trabalhar no laboratório, pesquisar e elaborar um projeto para sua realização, desenvolver o experimento, elaborar um relatório e apresentá-lo. Foi observado nessa investigação que o desenvolvimento de habilidades cognitivas como espírito crítico, reflexão, formulação de novas hipóteses e tomada de decisões foram favorecidas pelo uso da metodologia. Segundo a autora, a estratégia permitiu maior autonomia e responsabilidade por parte dos alunos, ao perceberem que sua aprendizagem independe das respostas do professor. Entretanto, a pesquisadora também verificou que, embora os alunos demonstrassem facilidade na proposição de novas hipóteses para o problema, eles encontravam dificuldade na descrição do procedimento para seu teste e algumas vezes não consideravam a hipótese para a análise dos dados. A autora atribui estes resultados ao baixo nível de liberdade existente nas atividades experimentais tradicionais executadas nas escolas e também a pouca flexibilidade desses procedimentos, que geralmente ficam detidos a respostas da questão central proposta pelo professor.

Entretanto, diferentes alunos podem resolver um problema utilizando estratégias diferentes. Enquanto alguns alunos, por exemplo, necessitam de fórmulas para estabelecer relações proporcionais, outros utilizam o raciocínio lógico para sua resolução. Os diferentes níveis de demanda cognitiva apresentados pelos alunos para a resolução de problemas, segundo Zoller (1993), podem ser definidos em duas categorias: as habilidades cognitivas de ordem baixa (LOCS: Lower Order Cognitive Skills) e as de ordem alta (HOCS: Higher Order Cognitive Skills).

Habilidades Cognitivas de Baixa Ordem são caracterizadas por capacidades tais como: conhecer, recordar/relembrar a informação ou aplicar conhecimento ou algoritmos memorizados em situações familiares e resolução de exercícios; já as de Alta Ordem são referidas como aquelas capacidades orientadas para a investigação, resolução de problemas (não exercícios), tomada de decisões, desenvolvimento do pensamento crítico e avaliativo.

Assim, o autor define como questões HOCS os problemas não familiares para o estudante, que requerem para sua solução, conhecimento adicional, aplicação, análise e capacidades sintéticas, tal como fazer conexões e pensamentos avaliativos. Questões que exigem processos algorítmicos ou aplicação e memorização de procedimentos para sua resolução são denominadas questões LOCS. Portanto, para a resolução de um problema ou para a compreensão de conceitos, o indivíduo, neste caso o aluno, pode necessitar de diferentes níveis de pensamento, diferentes demandas cognitivas; que se manifestam em processos mais complexos como reflexão e análise; ou, mais simples como memorização e aplicação de algoritmos. Zoller (1993) sugere ainda uma terceira categoria para questões com

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diferentes demandas cognitivas: as questões ALG (algorítmicas); entretanto, segundo ele, essas questões podem constituir uma categoria única ou uma subcategoria das LOCS.

As práticas de laboratório nas quais os alunos seguem um procedimento tipo receita, coletam os dados, mas não os discutem ou os analisam têm-se demonstrado de forte caráter de baixa cognição. Os alunos não compreendem o porquê do experimento e não desenvolvem uma síntese do que foi proposto. Pesquisas indicam que muitos estudantes resolvem os problemas de química usando somente estratégias algorítmicas e não entendem os conceitos químicos (Gabel et al., 1984).

De acordo com Carvalho e colaboradores (1999), para que a atividade experimental tenha caráter investigativo e possa ser considerada uma atividade de investigação, a ação do aluno não deve se limitar apenas ao trabalho de manipulação ou observação, a resolução de um problema pela experimentação deve envolver também reflexões, relatos, discussões, ponderações e explicações características de uma investigação científica. A autora utiliza o termo “Laboratório Aberto” para definir uma atividade experimental investigativa na qual o aluno se envolve na resolução de um problema e, se mobiliza à procura de uma metodologia para a sua resolução. Essa atividade pode ser dividida em seis momentos, segundo a autora: proposta do trabalho, levantamento de hipóteses, elaboração do plano de trabalho, montagem dos arranjos experimentais e coleta de dados, análise dos dados e conclusão.

Assim, ao participarem dos momentos de uma investigação científica, os alunos podem se envolver na resolução de um problema, trocar idéias com os pares, discutir e testar suas hipóteses, promovendo seu desenvolvimento conceitual, atitudinal e cognitivo; entretanto, sempre mediados pelo professor que; questionando, dialogando e propondo questões, auxilia os alunos na elaboração de suas idéias.

3. Metodologia

A pesquisa apresenta as características de uma abordagem qualitativa, uma vez que se investigaram as respostas dos alunos durante uma atividade experimental investigativa, analisando os relatórios escritos pelos alunos e a transcrição de suas falas. Na pesquisa qualitativa, segundo Bogdan e Biklen (1982/1994), a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal. O pesquisador se insere em um contexto, neste caso a sala de aula, e procura elucidar questões educativas. Ele torna-se o instrumento principal da pesquisa, pois mesmo utilizando instrumentos tecnológicos para a sua coleta são suas concepções, sensações e interpretações que guiarão os resultados.

A escolha da escola para a pesquisa justificou-se nos pressupostos que apóiam esta pesquisa, ou seja, uma escola que apresentasse nas aulas de química a metodologia construtivista e executasse experimentos investigativos para a construção de conceitos químicos.

A seqüência de aulas foi escolhida aleatoriamente de forma a não ser planejada especificamente para atender os objetivos do trabalho, mas o de minimizar possíveis interferências e manter o ambiente da sala de aula o mais real possível. Assim, as pesquisadoras não exerceram influência no planejamento e execução da aula em nenhum momento, e permaneceram na sala de aula com o único objetivo de coletar os dados a fim de obter respostas para a questão de investigação. 3.1. Público-alvo

Para a escolha da escola como objeto da pesquisa foi preciso selecionar e identificar a

escola e o professor que apresentassem as características que direcionam a pesquisa.

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A escolha da escola foi determinada pelas pesquisadoras por dois motivos: (1) Por sediar e executar pesquisas de interesse próprio e de universidades, conforme

descrito em seu projeto pedagógico; (2) As aulas da professora de química se enquadrar nas características construtivistas e

investigativas que fundamentam essa investigação.

O trabalho exercido pela professora da escola selecionada já era de conhecimento das pesquisadoras, porém para validar as evidências de uma prática construtivista e investigativa, um questionário, elaborado com pressupostos do referencial teórico que conduz a pesquisa, foi respondido pela professora. Algumas aulas antes das gravações também foram acompanhadas pela pesquisadora para evidenciar esses pressupostos e também para criar um ambiente receptivo com os alunos para a realização das gravações, porque muitos alunos podem se sentir incomodados com a presença da câmera ou com uma pessoa que não faz parte do seu contexto.

Os alunos faziam parte de uma turma da primeira série do Ensino Médio de uma escola pública localizada na cidade de São Paulo. A classe era composta por trinta alunos.

A escola apresenta infra-estrutura para a realização de atividades experimentais. A sala de aula é integrada ao laboratório e facilita a realização de experimentos. O laboratório contém vidrarias e reagentes suficientes para a realização de experimentos e conta com o auxílio de um técnico, contribuindo para a realização das atividades experimentais.

A professora se dedica exclusivamente aos trabalhos da escola, o que contribui significativamente para o planejamento de atividades experimentais, pois um dos fatores mais citados pelos professores para a ausência de atividades experimentais é a falta de tempo para o seu planejamento (Lima, 2004).

3.2. Registro das aulas e transcrição

Uma seqüência de três aulas para o desenvolvimento do conceito de temperatura de

ebulição2 foi gravada em áudio e vídeo por uma das pesquisadoras, procedimento que contribuiu para a melhor compreensão das posteriores transcrições e análise.

A fim de triangular os dados, os materiais escritos dos alunos foram fotocopiados para posterior análise e, também, notas de campo foram realizadas a fim de registrar por escrito momentos importantes da aula e de acontecimentos que não puderam ser registrados pela câmera por se tratarem de situações implícitas. É importante relatar que as pesquisadoras pediram autorização para os pais dos alunos da escola para a realização das gravações e utilização das falas para a pesquisa.

As transcrições das falas do professor e dos alunos foram realizadas pelas próprias pesquisadoras, contribuindo para maior fidedignidade e qualidade das transcrições para análise. Mesmo tomando o cuidado de garantir a maior captura possível das falas, em alguns momentos, principalmente durante as atividades experimentais, algumas falas são de difícil entendimento, pois se referem a um momento no qual os alunos estão interagindo constantemente e todos querem explicitar suas idéias. Porém, muitas dessas falas, de difícil transcrição, foram interpretadas com o auxílio das notas de campo e dos registros realizados pelos estudantes em sala de aula.

Falas sem teor significativo para a pesquisa, como brincadeiras dos alunos, evocação de atenção pela professora, conversas não relacionadas com o contexto da aula, não foram transcritas, uma vez que não compete aos objetivos da pesquisa. Porém, essas falas não representam um número expressivo, ou seja, ocorrem nos momentos nos quais a professora

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ou um aluno não está falando ou quando se trata de uma brincadeira não referente ao assunto. É evidente que algumas conversas paralelas ocorrem, pois se trata de uma sala mista de trinta alunos, porém estas discussões não interferiram nos dados e resultados da pesquisa.

Após as transcrições, foram selecionados episódios de ensino, que são “momentos extraídos de uma aula, onde fica evidente uma situação que se quer investigar”, para a análise (Carvalho et al., 1993). Esses episódios foram selecionados a fim de evidenciar respostas à pergunta da pesquisa, enfatizando assim a participação dos alunos durante a resolução do problema experimental proposto pela professora. Vários episódios foram selecionados e alguns deles estão apresentados na análise de dados. Foram empregadas categorias de análise desenvolvidas, conforme serão descritas a seguir.

Nos episódios que serão apresentados durante a análise, algumas transcrições de falas apresentam ao lado uma letra minúscula entre parênteses, por exemplo, (a). Estas letras se referem a uma seqüência de falas que farão parte de uma única análise, uma vez que se trata de uma seqüência que evidencia um raciocínio elaborado por um ou vários alunos, ou raciocínio que necessita do auxílio e intervenção da professora para se tornar mais elaborado. Desta forma, serão apresentadas as letras referentes ao raciocínio ao lado da transcrição e também na coluna de análise para que fique evidente a seqüência de raciocínio manifestada.

3.3. Seqüência de aulas

Foram gravadas 3 aulas sobre o conceito de temperatura de ebulição, podendo ser

separadas da seguinte forma:

• Pré-laboratório (primeira aula): a professora discute com os alunos alguns conceitos essenciais para o desenvolvimento e compreensão do problema proposto; os alunos propõem as hipóteses para investigação e se reúnem em grupos para elaborar o procedimento experimental;

• Laboratório (segunda aula): os alunos vão para o laboratório executar o experimento previamente verificado pela professora, analisar os dados obtidos e inferir suas conclusões;

• Pós-laboratório (terceira aula): discussão com toda a sala para a conceituação final e possíveis generalizações. Todas as aulas tiveram duração de cinqüenta minutos.As filmagens da primeira aula e

da última aula foram realizadas a fim de capturar a fala de todos os alunos da sala. Assim, além da câmera de vídeo, alguns gravadores foram distribuídos pela sala para contribuir para uma melhor coleta dos dados. Procurou-se valorizar o momento da discussão dos alunos em grupo durante a elaboração do procedimento e a realização do experimento, registrando-se dois grupos em particular, um em vídeo e outro em áudio. Os grupos eram formados por cinco ou seis alunos. 3.4. Instrumentos de análise

O processo de elaboração das categorias para esta pesquisa foi baseado nos objetivos conceituais e cognitivos propostos para as atividades experimentais investigativas em um contexto construtivista.

Duas categorizações foram utilizadas para a compreensão do nível de habilidades cognitivas manifestadas pelos alunos. A primeira se refere às questões propostas pelo professor e a segunda às respostas elaboradas pelos alunos para essas questões.

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As perguntas propostas pelo professor também foram analisadas conforme conjunto de categorias descritas na tabela 1. Adaptou-se o critério de categorias desenvolvido por Shepardison e Pizzini (1991), que investigaram o nível de exigência cognitiva requerido pelas questões propostas em livros didáticos do ensino médio de química.

Nível Descrição P1 Requer que o estudante somente recorde uma informação partindo dos dados obtidos.

P2 Requer que o estudante desenvolva atividades como seqüenciar, comparar, contrastar, aplicar leis e conceitos para a resolução do problema.

P3 Requer que o estudante utilize os dados obtidos para propor hipóteses, fazer inferências, avaliar condições e generalizar.

Tabela 1 - Nível de cognição das questões propostas para os alunos.

As categorias para análise das respostas dos alunos foram elaboradas previamente

pelas pesquisadoras baseando-se no procedimento por caixas3 (Bardin,1977/2000), utilizando como referencial as definições de Zoller (1993) para as habilidades cognitivas (tabela 2) .

Nível Categoria de resposta ALG

N1 • Não reconhece a situação problema. • Limita-se a expor um dado relembrado. • Retêm-se a aplicação de fórmulas ou conceitos.

Nível Categoria de resposta LOCS

N2

• Reconhece a situação problemática e identifica o que deve ser buscado. • Não identifica variáveis. • Não estabelece processos de controle para a seleção das informações. • Não justifica as respostas de acordo com os conceitos exigidos.

N3

• Explica a resolução do problema utilizando conceitos já conhecidos ou relembrados (resoluções não fundamentadas, por tentativa) e quando necessário representa o problema com fórmulas ou equações.

• Identifica e estabelece processos de controle para a seleção das informações. • Identifica as variáveis, podendo não compreender seus significados conceituais.

Nível Categoria de resposta HOCS

N4

• Seleciona as informações relevantes. • Analisa ou avalia as variáveis ou relações causais entre os elementos do problema. • Sugere as possíveis soluções do problema ou relações causais entre os elementos do

problema. • Exibe capacidade de elaboração de hipóteses.

N5 • Aborda ou generaliza o problema em outros contextos ou condições iniciais.

Tabela 2 - Nível cognitivo das respostas dos alunos.

As categorias foram dimensionadas com o objetivo de analisar quais habilidades

cognitivas os alunos parecem utilizar na resolução dos problemas experimentais propostos. Cada categoria e suas características foram elaboradas baseando-se nos pressupostos de Zoller (1993, 2001). Assim, quando um aluno não compreende o problema ou utiliza para sua

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resolução apenas dados memorizados, considera-se que esse aluno evocou apenas dados algorítmicos, elaborando pouco ou nenhum raciocínio lógico para sua resolução, sendo suas respostas dimensionadas na categoria N1 (ALG). Quando o aluno reconhece a situação problemática e identifica variáveis, mas ainda apresenta pouca demanda cognitiva em suas respostas, considera-se que este aluno utilizou apenas habilidades cognitivas de ordem baixa, e suas respostas são então categorizadas como N2 (LOCS).

As categorias ALG e LOCS para Zoller (1993) e Zoller e colaboradores (2002), conforme já mencionado anteriormente, podem ser agrupadas como uma única categoria ou, então, a categoria ALG pode ser considerada como uma subcategoria das LOCS, pois ambas apresentam respostas algorítmicas e evocação memorística. Entretanto, a escolha desta pesquisa para a divisão em duas categorias se refere ao fato de algumas respostas dos alunos apresentarem não somente dados algorítmicos e memorização, mas também, devido, algumas vezes, a não compreensão do problema pelo aluno. A divisão em ALG e LOCS pode permitir que a categorização das respostas apresente maior delimitação contribuindo para uma maior facilidade e fidedignidade na categorização e também por admitir que respostas com diferentes demandas cognitivas sejam classificadas em categorias distintas.

A categoria nível N3 já começa a apresentar características para uma possível evolução para o nível N4. Mesmo ainda apresentando habilidades que exigem a aplicação de conhecimentos simples a situações conhecidas, os alunos já começam a estabelecer processos de controle para a resolução do problema, se aproximando do nível N4, o qual exige tomada de decisões e pensamento crítico e avaliativo.

Por fim, quando o aluno apresenta respostas que envolvem elaboração de hipóteses, análise de variáveis e relações causais, ou seja, pensamentos mais complexos para a resolução de um problema, considera-se que este aluno utilizou habilidades cognitivas de ordem alta, e suas respostas são categorizadas como N4 (HOCS). Um nível maior de complexidade é considerado quando o aluno consegue ultrapassar a situação atual e abordá-la em outros contextos, apresentando as características do nível N5 de habilidades cognitivas.

Entretanto, a inclusão de uma dada habilidade cognitiva pode variar de autor para autor, ou seja, a categoria N3 definida nesta pesquisa como LOCS, poderia ser classificada por outro autor como HOCS.

Outra questão a ser considerada está relacionada à definição e descrição utilizada para incluir elementos em cada categoria. As categorias e suas características, mesmo sendo previamente elaboradas, algumas vezes precisam ser redimensionadas conforme os dados vão sendo analisados. Dessa forma, as categorias apresentadas na presente pesquisa passaram por processos de redimensionamento para melhor se adequarem aos objetivos de investigação. Conforme argumenta Moraes (2005), as categorias vão se aperfeiçoando ao longo da análise, para que no final do processo apresentem significados claros para a classificação dos enunciados, entretanto, mesmo produzindo uma definição cuidadosa dos critérios de classificação para as categorias, o processo de categorização nunca é inteiramente objetivo, podendo dar margem para dúvidas e imprecisões.

Como realizar a relação teoria/dados empíricos não se trata de uma etapa simples da análise de dados da pesquisa, a pesquisadora contou com o apoio de colegas pesquisadores para classificar alguns dados transcritos nas categorias elaboradas. O processo de apresentação, categorização e discussão dos dados com um grupo contribui para uma maior fidedignidade e validade dos resultados. As respostas dos alunos foram categorizadas individualmente por 6 pesquisadores, e posteriormente, em dois encontros, foram verificados os pontos de fragilidade ou solidez no instrumento. As modificações necessárias para permitir maior clareza e fidedignidade da classificação foram realizadas.

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Os procedimentos elaborados pelos alunos para a realização do experimento e os relatórios individuais também foram analisados, entretanto não foi possível classificá-los nos níveis cognitivos elaborados, mas foram analisados holisticamente, com o objetivo de evidenciar a manifestação de habilidades cognitivas pelos alunos na elaboração destes. 3.5. Atividade experimental proposta (laboratório aberto): fatores que afetam a temperatura de ebulição

Como já mencionado anteriormente, o laboratório aberto se refere a uma atividade experimental investigativa na qual os alunos são mobilizados para a solução de um problema, propondo uma metodologia para a sua investigação pautada em hipóteses inicias, coletam dados e os analisam a fim de comprovar ou refutar suas hipóteses e obter conclusões.

Assim, para iniciar a atividade, a professora propôs a seguinte questão problema para os alunos: Quais fatores afetam a temperatura de ebulição de um material? Desta forma, a professora faz uma breve introdução sobre a definição de temperatura de ebulição e explicações sobre a diferença entre evaporação e temperatura de ebulição.

Os alunos elaboraram algumas hipóteses partindo de suas idéias prévias: (1) Temperatura inicial do material; (2) Pressão (referindo-se ao cozimento de alimentos com a panela tampada e

destampada); (3) Tamanho do recipiente (volume); (4) Tipos de materiais (composição); (5) Densidade (conceito construído recentemente); (6) Intensidade da chama; (7) Massa.

Depois do levantamento de hipóteses, os alunos formaram grupos de cinco ou seis

alunos com o objetivo de elaborar o plano de trabalho para investigar uma das variáveis apontadas, e deveria conter o material necessário para a sua realização, as previsões e o procedimento detalhado. Dos fatores apontados pelos alunos, somente o (5) e (7) não foram escolhidos por nenhum grupo. Nesta mesma aula após a discussão, os alunos entregaram o plano de investigação para a professora para que ela pudesse fazer as alterações necessárias e avaliar a possibilidade ou não da realização dos experimentos. Na aula seguinte, os materiais e reagentes de cada grupo encontravam-se preparados e os procedimentos foram devolvidos aos alunos para sua realização.

Os alunos realizaram o experimento nessa segunda aula e discutiram os dados obtidos e as possíveis soluções para o problema. Na terceira aula, os alunos colocaram seus resultados no quadro para facilitar a visualização de todos os outros grupos, e com a intervenção da professora, discutiram seus resultados com a sala e comunicaram suas conclusões para os colegas. Após a discussão, os alunos entregaram para a professora relatórios individuais contendo o objetivo, materiais utilizados, previsão, procedimento, resultados e conclusão. 4. Resultados e análise dos dados

A análise dos dados será apresentada em três momentos: levantamento de hipóteses e discussão dos grupos para elaboração do experimento (primeira aula); execução do experimento e discussão para a elaboração de um relatório (segunda aula); e discussão geral

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(terceira aula). Os relatórios dos alunos também foram analisados e algumas partes destes serão apresentadas nesta terceira etapa.

Analisando as falas de todos os alunos4 e da professora na primeira aula, verifica-se que no início alguns alunos têm dificuldades em diferenciar ebulição e evaporação; dessa forma, a professora procurou conceituar evaporação e ebulição antes de propor o problema principal, conforme mostra o episódio no quadro 1.

Tempo Descrição das falas Análise

06:56 P: “Qual a diferença... ...evaporação vocês sabem o que é. O que é evaporação?”

P1

07:03 Al 13: “A água passa do líquido para o gasoso.” N2 07:07 Al 14: “Ciclo natural da água.” N1

07:11 P: “A água passa do líquido para o gasoso...mas..só que em que condições?”

P1

07:14 Al 7: “Calor (a)”

07:17 P: “Fala Al 7 qual tipo calor?” P: “Calor ...da onde vem o calor?”

07:21 Al 7: “solar (b)” N3 (a,b) 07:24 P: “Solar ou do ambiente né...então se a gente pensar...” P1 07:47 P: “Al 15 como é que eu defino evaporação?” 07:52 Al 15: “Passagem do líquido para o gasoso.” N2

07:56 P: “Tá do líquido pro gasoso tudo bem mas qual a diferença de quando a água tá evaporando e quando a água tá fervendo?” P: “Qual a diferença de um processo pro outro?”

P2

08:16 Al 15: “Quando esquenta a água ela ebuli quando evapora a água seca (c).”

08:19 P: “Em qual que você está esquentando?” P1 08:21 Al 15: “Quando ferve (d).”

08:27 P: “Quando você ferve.” P: “A evaporação você usa... a água usa o calor de onde para evaporar?”

P1

08:30 Al 1: “Do ambiente (e).” N3

(c,d,e) Quadro 1 - Episódio da primeira aula.

Assim, no início da aula a grande maioria das questões propostas pela professora foi

classificada no nível P1 ou P2, pois estas questões exigiam somente recordar ou comparar dados, como por exemplo: “A que temperatura a água ferve?” ou “A que temperatura a água evapora?” As respostas dos alunos a essas questões foram classificadas nos níveis N1 ou N2, ou seja, respostas de baixa ordem cognitiva, pois exigiam dos alunos expor um dado relembrado, aplicar conceitos, mas não exigiam processo de identificação de variáveis ou justificativas. Nenhuma resposta foi classificada como N4 neste momento da aula.

Entretanto, a questão problema proposta pela professora: “O que afeta a temperatura de ebulição de um material?” requer que os alunos proponham hipóteses para a sua solução. O episódio do quadro 2 abaixo mostra uma aluna sugerindo uma hipótese:

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Tempo Descrição das falas Análise

11:05 P: “Como é que a roupa seca no varal?” P: “Fala Al 4.”

P3

11:08 Al 4: “Dependendo da quantidade de água ela vai evaporar.” N4

11:13 P: “Dependendo da quantidade... pêra aí oh...oh o que a Al 4 tá falando...dependendo da quantidade de...”

11:21 Al 4: “De água aí ela pode evaporar...”

11:27

P: “Então oh a minha pergunta é..tem uma coisa interessante que você falou ai que a gente vai pensar sobre isso.” P: “Dependendo da quantidade...eu não sei se você falou exatamente isso.” Al 4: “...vou fazer uma pergunta.”

11:49 P: “Vocês acham que a quantidade de água afeta a temperatura que ela evapora ou a temperatura que ela ferve?”

P3

Quadro 2 - Episódio da primeira aula. Após expor a pergunta, muitas hipóteses foram sugeridas pelos alunos e algumas delas

foram escolhidas para investigação, conforme descrito anteriormente. Verifica-se que, neste segundo momento da aula, a professora elaborou um maior número de questões classificadas no nível P3 e as respostas dos alunos estão entre os níveis HOCS e LOCS (N3 e N4). A tabela 3 mostra a porcentagem total de questões propostas pela professora classificadas conforme os níveis da tabela 1, e as respostas dos alunos classificadas conforme os níveis contidos na tabela 2:

Questões propostas pela professora (N=39) Respostas dos alunos (N=36) Nível % Nível %

P1 26 N1 8,3 P2 31 N2 55,6 P3 43 N3 11,1 N4 25 N5 0

Tabela 3 - Porcentagem de questões propostas e respostas dos alunos.

Esta etapa da aula teve duração de vinte e sete minutos, o restante foi destinado para os alunos elaborarem os procedimentos.

Os alunos deveriam entregar para a professora um procedimento prévio para que ela pudesse corrigi-lo e verificar as possibilidades de sua execução ou não. Após a execução do experimento, os grupos descreveram neste mesmo material os dados obtidos e suas conclusões e o devolveram para a professora, para que ela pudesse posteriormente orientá-los na elaboração de seus relatórios individuais.

Durante a elaboração do procedimento observa-se grande dificuldade por parte dos alunos para propor o objetivo e fazer as previsões, podendo ser explicado, talvez, pelo baixo nível de liberdade dado geralmente aos alunos em atividades laboratoriais, uma vez que se refere à primeira série do ensino médio e estes alunos poderiam estar acostumados a executar atividades “tipo receita” nas séries anteriores, se limitando a algumas etapas da investigação. Observa-se também, em alguns relatórios iniciais, a omissão das hipóteses iniciais propostas pelos grupos, talvez pelo medo em responder algo diferente ao esperado pelo professor e

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serem advertidos. Porém, o engajamento dos alunos na atividade é grande e sua resolução se demonstra desafiadora.

Fica evidente na análise dos relatórios e das transcrições, a dificuldade dos alunos em compreender a relação entre tempo e temperatura. Alguns grupos ao proporem seus procedimentos, determinam o tempo como o objeto de estudo e não a temperatura. Para eles, o tempo é determinante e pode alterar a temperatura.

Um dos grupos, por exemplo, investigou se o volume de um material (o grupo utilizou leite) tem influência na temperatura de ebulição, e a discussão em grupo, evidenciada a seguir, mostra a dificuldade descrita:

Al 1: “Em quanto tempo qual a temperatura ele atinge?” Al 2: “Mas a gente tá olhando o termômetro quando ele começar a ferver a gente olha a temperatura.” Al 1: “Então... mas se por exemplo eu deixar um minuto o que tem lá dentro vai estar mais quente.” P: “Perfeito.” Al 1: “Só que esse também pode atingir a temperatura só que em tempo diferente.” P: “Isso.” Al 2: “Não tem relação com o tempo.” P: “Tem.” Al 1: “Ai vai determinar um tempo para determinar a temperatura.” Al 2: “Não.” P: “Não é o tempo é a temperatura.”

Verifica-se também, que alguns grupos compreendem a necessidade do controle das

variáveis, entretanto, outros grupos ainda não manifestam tal compreensão, conforme mostra o trecho a seguir extraído dos procedimentos elaborados pelos alunos:

Grupo Temperatura Inicial: “Colocamos água gelada em uma das panelas e água normal, levamos ao fogo as duas panelas com água, e cronometramos o tempo que as duas levam para ferver. E mediremos a temperatura tanto antes quanto depois (da ebulição) com o termômetro.”

Grupo Fonte de Calor: “Coloque duas panelas com a mesma quantidade de água e meça a temperatura das duas panelas de água e faça as comparações”

Os alunos do grupo que investigou a temperatura inicial do material não se atentam ao

fato de que as quantidades, ou seja, os volumes de água ambiente e gelada precisam ser iguais para que haja somente uma variável a ser investigada. Antes da realização do experimento pelos alunos, a professora anota no próprio procedimento as quantidades a serem utilizadas para os alunos não encontrarem essa dificuldade na execução do experimento e principalmente na análise de dados. É importante salientar que, no final da primeira aula, antes de os alunos se agruparem para elaborar o procedimento, houve uma breve discussão da importância do controle de variáveis, e um dos alunos do grupo que investigou a temperatura inicial do material manifestou essa idéia, conforme mostra o episódio do quadro 3.

Desta forma, não se pode inferir com precisão se o grupo não compreendeu essa importância ou se foi apenas um esquecimento ou uma dificuldade no momento de expressar suas idéias por escrito.

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Os alunos do grupo da fonte de calor se referem à constante volume, somente não colocam a quantidade, mas se atentam a essa questão. Os alunos também não se referem à medida de tempo.

Tempo Descrição das falas Análise

25:29

P: “Então por exemplo... para investigar um material.” P: “Como é que eu faria Al um experimento para verificar se a

temperatura afeta ou não a ebulição de um material como eu faria?” P: “Que que eu vou variar?”

P3

25:38 Al1: “tempo (f).” 25:48 P: “E o que eu que tem que ser igual? P3 25:54 Al1:” Fonte de calor (g).” 25:57 P: “A fonte de calor ...que mais.”

26:01 Al1: “Se você muda uma coisa tem que deixar o resto igual para poder olhar só aquilo que mudou (h).”

N4 (f,g,h)

26:06

P: “Gente isso que o Al1 falou é o mais importante para mim... o que eu quero que vocês percebam ....se for estudar o material todo o resto tem que estar igual.” P: “Se eu for estudar a pressão o resto tem que tá igual.” P: “Se eu for estudar a quantidade de material o resto tem que tá igual.”

Quadro 3 - Episódio da primeira aula.

Percebe-se dificuldades pelos alunos para descrever os procedimentos, que se apresentam sucintos e com poucas informações. Porém, este fato é compreensível, pois os alunos não têm o costume de realizar experimentos deste tipo, e também evidencia a importância em proporcionar atividades que permitam aos alunos desenvolverem habilidades de escrita e leitura, as quais poderão desenvolver outras habilidades essenciais para o desenvolvimento do raciocínio lógico e cognitivo.

A análise dos dois grupos investigados, no momento da execução da atividade experimental na segunda aula, evidencia poucas dificuldades para a realização do experimento, uma vez que a professora avaliou os procedimentos previamente e orientou os grupos para a execução. Algumas limitações manipulativas são encontradas principalmente na leitura do termômetro, porém, o mais evidente são as dificuldades geradas nas etapas de desenvolvimento do relatório. Transcreve-se, a seguir, a discussão da professora com um dos grupos investigados (grupo da temperatura inicial do material) para elaborar a pergunta para o relatório após a execução do experimento:

P: “O objetivo era analisar o tempo...analisar o tempo que demora para entrar em ebulição.” (professora lendo o objetivo descrito pelos alunos) P: “Um mesmo material em temperaturas diferentes..era o tempo? Não era esse o objetivo...era o tempo...o que vocês queriam analisar?” P: “O que vocês queriam medir? Vocês mediram o tempo?” Al 3: “Sim.” P: “Que mais?” Al 4: “A temperatura.” P: “Vocês queriam analisar o efeito de quem sobre a temperatura?” Al 3: “Ebulição.” P: “Não.”

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Al 4: “O tempo que demora para atingir a mesma temperatura.” P: “Então gente...” P: “Vocês estão variando alguma coisa o quê?” Al1: “A chama.” P: “No caso de vocês não é a chama...o que vocês variaram não era a chama estão...qual que era o objetivo de vocês?” Al: “A água que...” P: “Isso.” Al1: “O que era para variar era a água.” Al1: “Temperatura da água mas o que variou foi a chama.” P: “Por que vocês colocaram gelo na água?” P: “Para variar o quê?” P: “O material da água...” Al: “A temperatura.” P: “Isso.” P: “O que que vocês querem avaliar?” P: “Eu quero que vocês formalizem a pergunta.” P: “Qual que é o efeito da...” Al: “Da temperatura sobre a ebulição.” P: “Isso da temperatura inicial do material sobre o que da ebulição?” Al: “Quanto tempo demora.” P: “Quanto tempo demora e o que mais?” Al1: “A que temperatura.” P: “Isso a que temperatura ocorre a ebulição.”

Este episódio evidencia que este grupo de alunos, embora com algumas dificuldades,

parece compreender o que estavam analisando. Matthews (1994) adverte que a emissão, interpretação e teste das hipóteses são etapas difíceis para alguns alunos por não se tratar de um processo direto nem suficientemente simples. Desta forma, a intervenção da professora é de extrema importância para conduzir os alunos ao raciocínio adequado e estimulá-los a não desistirem do desafio.

É importante salientar que o Al 1 cita a chama como uma variável, pois durante a execução do experimento, o bico de Bunsen utilizado para o aquecimento da água em temperatura ambiente e para a água gelada não foi o mesmo, evidenciando a compreensão do aluno com relação à importância de condições constantes.

Nessas duas etapas, elaboração do planejamento e execução do experimento, os alunos interagem constantemente, expondo suas idéias e discutindo com seus pares. Para a resolução do problema proposto pela professora, os alunos precisaram selecionar as informações relevantes para a elaboração do plano de trabalho, analisar os dados e propor uma solução para o problema, características de habilidades cognitivas de alta ordem.

Para Pintrich e colaboradores (1993), entre os fatores capazes de proporcionar o desenvolvimento de habilidades cognitivas estão a seleção e ativação do conhecimento prévio, o desenvolvimento de capacidades de processamento, a elaboração e organização, a resolução de problemas e a utilização de habilidades cognitivas de controle e regulação.

Na terceira aula, a professora pede para os grupos comunicarem para a sala os resultados e as conclusões obtidos. Os alunos vão para o quadro e escrevem o objetivo e os resultados de cada grupo. A professora também distribui um questionário para os alunos responderem durante a aula.

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Este questionário continha três questões que deveriam ser respondidas por todos os alunos para todas as hipóteses investigadas. As questões eram: (1) O que foi mantido constante? (2) O que foi variado? (3) A alteração da temperatura ambiente causa quais modificações no processo de

ebulição? (neste caso para o grupo que investigou a variável temperatura inicial do material). Esta questão se alterava conforme a variável investigada; por exemplo, para a intensidade da chama a questão era: a alteração da intensidade da chama causa quais modificações no processo de ebulição de um material? As questões (1) e (2) exigiam dos alunos comparar ou contrastar dados, e não avaliar

ou fazer inferências para a sua resolução, sendo então, classificadas como P2. A questão (3), no entanto, foi classificada no nível P3 de cognição, pois exigia que os alunos analisassem os dados e elaborassem conclusões relacionando o efeito da variável investigada sobre a temperatura de ebulição. Devido à professora repetir as questões (1) e (2) todas as vezes que os grupos discutiam seus dados, o número de questões P2 foi elevado.

Conseqüentemente, as respostas orais dos alunos para as questões (1) e (2) foram diretas e não exigiam esforço cognitivo que os conduzissem a respostas de ordem alta cognitiva, sendo então classificadas como N2, pois o aluno não precisa identificar processos de controle ou variáveis, exigências do N3, para responder, por exemplo, que para investigar a temperatura de ebulição de dois materiais diferentes tiveram de manter constante as suas quantidades e a chama. Assim, 82% das questões propostas pela professora (N=23) foram classificadas como P2 e 75% das respostas dos alunos (N=36) são de baixa ordem cognitiva (N2; quadro 4).

As questões propostas pela professora nesta etapa da aula parecem não contribuir para desfazer a dificuldade apresentada pelos alunos em não compreenderem que o tempo não era o objeto do estudo, ou seja, as perguntas direcionam respostas relacionadas ao tempo que a ebulição demorou. Talvez, se a professora não considerasse o tempo neste experimento esta dificuldade poderia não surgir, porque não há a necessidade de se medir o tempo; a medida da temperatura é suficiente para responder à questão proposta aos alunos.

Entretanto, é importante destacar conforme mostram os instantes 31:25 à 32:00, que os alunos do grupo que investigou a intensidade da chama compreendem que a temperatura de ebulição não se altera com a fonte de calor, e nos minutos seguintes expressam o entendimento no controle de variáveis ao afirmarem que o material e a quantidade mantiveram-se constantes. Assim, para esse grupo, conforme pode ser verificado também no procedimento inicial, a variável tempo não dificultou a compreensão do conceito, ressaltando a relevância dessa atividade para a manifestação de habilidades cognitivas de alta ordem.

Verifica-se, nessa aula, que as questões classificadas como P3 são geralmente indagações da professora com relação à conclusão obtida pelos grupos, exigindo assim, que os alunos avaliem os dados. Desta forma, as respostas elaboradas pelos alunos apresentam habilidades cognitivas de ordem alta, como análise de variáveis e seleção de informações, sendo então classificadas como N4.

Em geral, a grande maioria das questões propostas pela professora foi classificada no nível P2 e P3 e as respostas dos alunos nos níveis N2 e N4. É interessante notar que poucas respostas foram classificadas no nível N3, talvez pelo fato de as aulas exigirem dos alunos maior esforço cognitivo em algumas etapas, como na elaboração de hipóteses e conclusões, e em outras etapas, porém, não necessitar de identificação de variáveis ou processos de controle

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por se tratarem de questões diretas e com pouca oportunidade de manifestar respostas mais elaboradas.

Tempo Descrição das falas Análise 31:07 P: “E qual conclusão que vocês chegaram?” P3

31:25 Al 15: “Que não importa se é maçarico ou lamparina o que importa e que vai chegar numa certa temperatura que a água vai chegar no ponto de ebulição.”

N4

31:37

P: “Gente o que eles tão chamando de maçarico é o bico de gás.” P: “Que que eles queriam...se a fonte de calor interferia na temperatura de ebulição..o Al 15 acabou de dizer..ou no bico de gás ou na lamparina a temperatura de ebulição se altera?”

P3

32:00 Al 15: “Não.” N2 32:02 P: “Que altera?” P2 32:04 Al 15: “Tempo.” N2 32:06 P: “Que aconteceu com a lamparina?” P2 32:12 Al 15: “Demorou mais.” N2

32:16 P: “Demorou mais...” P: “O que foi mantido constante?” P: “O material..que mais?”

P2

32:28 Al 15: “A quantidade né professora?” N2

32:32 P: “A quantidade isso...e o mesmo material e a mesma quantidade.” P: “O que foi variado?”

P2

32:48 Al 15: “A fonte de calor.” N2 32:52 Al: “O tempo.” N1

32:56 P: “Aí é que tá Al...o tempo foi medido mas o que você variou intencionalmente... ...o que você planejou no experimento para variar.” (professora explica para a aluna)

34:12 P: “A c...a alteração da intensidade da chama causa quais modificações no processo de ebulição de um material?”

P2

34:20 Al 15: “Tempo.” N2 34:23 P: “Muito bem.”

Quadro 4 - Episódio da terceira aula.

Ao analisar os relatórios individuais verifica-se que alguns alunos ainda permanecem com dificuldades em desenvolver suas previsões e conclusões onde o objeto de estudo seja a temperatura de ebulição. Muitos deles ainda enfatizam o tempo como fator determinante na investigação. Abaixo estão alguns dos objetivos propostos pelos alunos nos relatórios:

Aluno (1) do grupo Temperatura inicial: “O objetivo era analisar o efeito da temperatura da água sobre o tempo e a temperatura de ebulição” Aluno (2) do grupo Temperatura inicial: “Observar se o tempo de “eferveção” afeta a temperatura de ebulição” Aluno (1) do grupo Fonte de calor: “Observar se a fonte de calor afetava o tempo de ebulição e a temperatura”

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Mesmo depois das discussões, dois alunos do grupo que investigou a influência da temperatura inicial descreveram como objetivo do experimento o tempo como a variável determinante. Os outros alunos deste grupo e do grupo que investigou diferentes fontes de calor também incluem o tempo em seu objetivo, como se este fosse o objeto a ser investigado. Talvez a discussão realizada em sala e o próprio experimento não tenham sido suficientes para esses alunos compreenderem que, o propósito da investigação era identificar a temperatura de ebulição; e o tempo poderia ser só uma conseqüência desta variável. Também, o próprio procedimento experimental no qual o aluno, além de coletar medidas de temperatura também coletava medidas e tempo, pode ter contribuído para o aluno não compreender com clareza o objetivo do experimento.

É interessante verificar que novamente, no procedimento descrito no relatório individual, apenas dois alunos colocam o tempo como a determinante e não a temperatura de ebulição. Mesmo depois de realizar o experimento e discutir com o grupo e a professora esta dificuldade permanece. Um aluno que investigou a variável fonte de calor utiliza os dados para elaborar o seu procedimento, ou seja, descreve que deverá esperar 15 minutos para a água entrar em ebulição com o maçarico (bico de bunsen) e 20 minutos com a lamparina:

Aluno (2) do grupo Temperatura inicial: “Colocamos 200 ml de água gelada em um dos béqueres e 200 ml de água, em outro béquer, levamos ao fogo os dois béqueres com a água e cronometramos o tempo que as duas levam para ferver. Mediremos a temperatura tanto antes quanto depois da ebulição com o termômetro”.

Aluno (3) do grupo Fonte de calor: “Coloque 100 ml de água em um béquer e coloque-o em cima do tripé que estará sobre um maçarico. Acenda o maçarico e espere por 15 minutos, enquanto isso vá medindo a temperatura da água, após 15 minutos você mede a temperatura.Coloque 100 ml de água em um béquer e coloque-o em cima do tripé que estará sobre uma lamparina. Acenda a lamparina e espere por 20 minutos enquanto isso vá medindo a temperatura da água, após vinte minutos você mede a temperatura”.

Todavia, os alunos se atentaram em descrever as quantidades de materiais no procedimento, expressando seus entendimentos quanto ao controle das variáveis do problema.

Os alunos do grupo que investigavam a fonte de calor expressam nas conclusões a mesma concepção manifestada no procedimento:

Aluno do grupo fonte de calor: “O maçarico fez com que a água atingisse a ebulição (92 °C) em 15 minutos já a lamparina ficou acessa durante 20 minutos para que a água chegasse a ebulição”.

Percebe-se, implicitamente na conclusão do aluno, a compreensão com relação à

utilização das fontes de calor, ou seja, utilizando o maçarico a água demorará mais para atingir a temperatura de ebulição do que com o bico de bunsen. Ainda, o aluno expressa o entendimento do conceito ao descrever a temperatura encontrada para a ebulição, tanto com o maçarico quanto com o bico de bunsen.

Uma outra resposta à dificuldade dos alunos em expor suas idéias nos relatórios pode estar relacionada com a demanda cognitiva exigida na escrita. Segundo Oliveira e Carvalho (2004), para a escrita ser efetiva, os estudantes precisam apresentar certo conhecimento básico, interagir com seus pares para compartilhar, clarificar e distribuir este conhecimento. Por mais que a atividade tenha propiciado a participação dos alunos na construção das idéias e na interação com os pares, verificou-se, ainda, a permanência de algumas concepções não

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condizentes com as explicações científicas. Nesta etapa da atividade, os alunos apresentam uma dificuldade maior ao expor por escrito os seus pensamentos, mas ao mesmo tempo, estão tendo a oportunidade de praticar e desenvolver a habilidade da escrita, contribuindo para a melhor compreensão dos conceitos. Assim, conforme argumentam Rivard e Straw (2000), explicar ou escrever requer que o estudante refine seu pensamento, contribuindo para um maior entendimento dos conceitos estudados, organizando e consolidando suas idéias.

Uma consideração a ser feita se refere à intervenção da professora em alguns momentos da aula. Durante o levantamento de hipóteses e conclusões, a professora auxiliava os alunos na construção de suas explicações, pois muitas vezes os alunos não conseguiam explicitar suas idéias de maneira inteligível, necessitando do auxílio da professora para a elaboração de uma resposta mais completa. Entretanto, durante a elaboração dos relatórios, a presença da professora não era integral nos grupos, e os alunos precisavam utilizar suas próprias idéias e sintetizá-las de forma a permitir que outra pessoa as compreendesse e esta etapa exige, como já foi mencionado, elevada demanda cognitiva e também autonomia e independência por parte dos estudantes.

A influência da pressão sobre a temperatura foi a hipótese menos compreendida pelos alunos, devido à complexidade conceitual do procedimento experimental.5

A evidência da eficácia da atividade se manifestou na fala dos alunos durante uma entrevista realizada, quatro semanas após a realização da atividade, com dez estudantes. Os alunos expressavam a compreensão dos conceitos envolvidos no experimento, conforme mostra a fala de um dos alunos:

Al 13: “É... por exemplo você pode colocar qualquer quantidade de água que vai mudar... O ponto de ebulição vai ser o mesmo vai mudar só o tempo... mas o ponto de ebulição é o mesmo.”

Os alunos também argumentam a importância e preferência pela realização do

procedimento experimental a da participação em todas as etapas da atividade. A Al 9 comenta a importância da mediação da professora durante a realização da investigação:

Al 9: “É eu gostei porque a gente tem uma certa liberdade e também não foi tão... Com eu posso falar...não foi tão disperso...a gente já tinha uma direção, mas mesmo assim a gente tava livre pra escolher o que que a gente ia fazer...a gente escolhia o caminho e a professora ia guiando a gente... e a gente acabou fazendo tudo certinho...e saiu do jeito que a gente esperava ainda.” Al 16: “Foi um pouco trabalhoso, só que no final foi legal e você sabe o que você ta fazendo ali...foi o que você pensou .e sabe o que você vai fazer [...] É que é mais interessante, mais legal você mesmo investigar, você não saber o que que tem... fazer por conta própria.”

Uma aluna também cita a importância da elaboração de um relatório para a

aprendizagem:

Al 11: “Até o relatório é legal para ver se entendeu mesmo se todo mundo compreendeu... aí você vê porque não deu certo o que a gente pensava e tal.”

Por fim, nem todos os alunos compreendem ou se engajam na atividade de maneira

igualitária. Ao analisar as transcrições das falas dos alunos durante as aulas e nas entrevistas,

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percebe-se, ao mesmo tempo, alguns alunos compreendendo o que estão fazendo e por que estão fazendo, enquanto outros permanecem passivos, à espera de repostas, mas, a porcentagem de alunos que se engajaram na atividade, expuseram dúvidas, re-elaboraram suas hipóteses e conclusões após a coleta e análise dos dados, é muito significante. 5. Conclusão

Os experimentos realizados possuem as características de uma abordagem investigativa, uma vez que os alunos puderam participar ativamente da formulação de hipóteses sobre o problema proposto pelo professor, elaboração do planejamento, execução do experimento, coleta dos dados, análise dos dados obtidos, ou seja, desenvolveram os experimentos como atividade de investigação (Carvalho et al., 1999).

A participação dos alunos em todas as etapas da investigação pode contribuir para uma maior autonomia e responsabilidade dos estudantes. Elaborar um procedimento e testar hipóteses exige espírito crítico e habilidades de reflexão.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelos alunos na elaboração do planejamento e execução do experimento, eles demonstraram interesse pela investigação e manifestaram habilidades cognitivas de ordem alta como elaboração de hipóteses e análise de dados e variáveis para a sua confirmação ou refutação. As atividades experimentais investigativas também têm o potencial de aumentar as relações sociais, atitudes e o crescimento cognitivo. O ambiente mais informal do laboratório, se comparado com a sala de aula, contribui para interações mais construtivas entre os alunos e estes com o professor, criando um ambiente de aprendizagem mais positivo (Hofstein e Lunetta, 2004).

A liberdade dada pela professora ao permitir que os alunos participassem de todos os processos da investigação, desde a elaboração do procedimento até a comunicação dos resultados para os pares, contribuiu para a manifestação de habilidades cognitivas de ordem alta.

A professora pôde, através da proposição de hipóteses, evidenciar as idéias alternativas dos alunos sobre a temperatura de ebulição e os fatores que a modificavam. Embora algumas dificuldades ainda tenham persistido, como a relação entre o tempo e a temperatura e a influência da pressão na temperatura de ebulição, a análise das transcrições pós-laboratório e dos relatórios mostraram que os alunos compreenderam que a temperatura de ebulição não é afetada por alguns fatores como temperatura inicial do material, e nem pela intensidade da chama utilizada no aquecimento do material, aspectos que respondem à questão inicial proposta pela professora.

Segundo Hodson (1988), o papel das hipóteses é de fundamental importância nas atividades experimentais, pois pode exigir capacidade criativa e elaboração conceitual por parte dos alunos. A elaboração de hipóteses exerce um papel fundamental para a construção do conhecimento científico, pois está vinculada à elaboração de estratégias para a coleta e análise de dados e conseqüentemente à resolução de uma situação problema. É preciso haver previsões plausíveis de serem refutadas ou confirmadas para se analisar os dados. Assim, a elaboração de hipóteses exige grande demanda cognitiva e pode contribuir para o desenvolvimento conceitual do aluno.

Jenkins (2000), afirma que, na procura para entender um fenômeno, muitos estudantes não apresentam uma inteligível diferenciação entre o significado de uma hipótese científica e o que é proposto por eles como explicação. Neste momento, o papel da professora foi de fundamental importância, em nenhum momento ela refutou ou comprovou as hipóteses, sempre privilegiando o momento de criação e imaginação dos alunos. Quando se tratou de uma questão “errada”, a professora corrigiu e explicou os motivos. Este momento é muito

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importante, pois a professora não pode dar a resposta para não desvalorizar o trabalho que será realizado por eles, mas também deve manter o controle e percepção para não desestimular os alunos para a investigação do problema, permitindo que os próprios alunos tomem suas decisões.

A presença de um grande número de respostas de baixa ordem cognitiva e algorítmica pode estar relacionada com o grau de exigência do pesquisador em relação às habilidades cognitivas exigidas, uma vez que o mesmo nível N3 considerado nesta pesquisa como baixa ordem cognitiva poderia ser considerado por outro pesquisador, em outra situação como alta ordem cognitiva. Devem-se considerar também os conhecimentos prévios dos estudantes e o tipo de ensino que eles estão sendo expostos em sala de aula (Stamovlasis et al., 2005), ou seja, esta atividade era nova para os alunos e pode ter gerado certa desconfiança e medo em realizar algo não condizente com os objetivos do professor.

Verifica-se que os níveis cognitivos das respostas elaboradas pelos alunos estão relacionados com os níveis cognitivos das questões propostas pelo professor. Ou seja, quando o professor questiona os alunos para recordar algo (questões de nível P1), as respostas dos alunos são condizentes com o nível exigido, geralmente de nível N1 ou N2 de cognição. Porém, quando o professor exige capacidade de avaliação ou elaboração de respostas, os alunos apresentam raciocínios de alta ordem cognitiva, como controle de variáveis e suas relações causais. Segundo Yarden e colaboradores (2001), em uma pesquisa realizada para identificar o nível cognitivo das perguntas elaboradas por alunos, o nível cognitivo de certas questões feitas pelos estudantes foi determinado pelo tipo de questão requerido pelo professor. Essas afirmações fortalecem a importância da mediação do professor na construção do conhecimento pelos alunos.

Nenhuma questão foi classificada no nível N5 de habilidades cognitivas em nenhuma das aulas, talvez pelo fato de a professora não proporcionar momentos que exigissem tal nível, ou questões que permitissem a elaboração de respostas com habilidades de generalização.

Por fim, verifica-se neste trabalho que o instrumento de análise elaborado e utilizado pelas pesquisadoras é eficaz para a interpretação dos resultados, podendo contribuir para uma reflexão quanto ao estilo de experimentação executada em sala de aula, fortalecendo a argumentação a favor de atividades experimentais desenvolvidas em um ambiente construtivista e investigativo direcionados para o desenvolvimento de habilidades cognitivas de ordem alta nos alunos de ensino médio. Também, os resultados obtidos podem contribuir para a realização de ações de formação continuada junto a professores de Química visando a análise, elaboração e aplicação de atividades que contribuam para uma melhor formação dos alunos.

Assim, se estas atividades forem utilizadas de maneira a aproveitar seus aspectos favoráveis, respeitando os limites conceituas dos alunos, mas, permitindo que estes estejam ativos no processo de resolução do problema, podem contribuir para a construção de conhecimentos químicos e o desenvolvimento de habilidades cognitivas necessários para a formação de indivíduos críticos e com atitude, exigidas por nossa sociedade em constante transformação. Agradecimentos

As autoras agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio financeiro e por incentivarem a pesquisa em Ensino de Química.

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(2) É importante esclarecer que, durante as aulas, a professora utiliza algumas vezes o termo “ponto de ebulição”, entretanto, no texto desse artigo utilizou-se o termo “temperatura de ebulição” por ser considerado o mais aconselhável. Entretanto, as falas da professora foram transcritas obedecendo as normas de transcrição, não alterando, assim, o conteúdo das falas da professora e dos alunos.

(3) Caixas: procedimento de categorização proposto por Bardin (1977/2000), no qual é fornecido o sistema de categorias e repartem-se da melhor maneira possível os elementos, á medida que vão sendo encontrados, aplicáveis no caso da organização do material decorrer diretamente dos funcionamentos teóricos hipotéticos.

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(4) Al 1, Al 2, Al 3, Al 14 é a legenda utilizada para não informar os verdadeiros nomes dos alunos. Cada número refere-se um aluno; Al se refere ao aluno ou alunos que não foram identificados. P refere-se à professora

(5) O grupo que investigou a influência da pressão sobre a temperatura de ebulição havia sugerido como procedimento experimental medir a temperatura de ebulição da água em panela de pressão. Entretanto, devido à impossibilidade de medir a temperatura da água, a professora sugeriu um outro procedimento, que consistiu em aquecer água em um balão de vidro com saída lateral, a qual foi fechada quando a água atingiu a temperatura de ebulição. Depois, o balão foi investido e no seu fundo foi colocado um pano umedecido com água gelada.

- R.C. Suart é Graduada em Química (UEL), Mestre (Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências (USP). E-mail para correspondência: [email protected]. M.E.R. Marcondes é Graduada em Química (USP) e Doutora em Química Orgânica (USP). Atualmente é Professora (USP).

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A expressividade do professor universitário como fator cognitivo no ensino-aprendizagem

The expressiveness of the university teacher as cognitive factor in the teach-learning

Naymme Barbosaa, Elione Soraia Cavalcantia, Eliene Alves Lacerda Nevesa, Tânia Afonso Chaves, b, Francisco Ângelo Coutinho, c e Eduardo Fleury Mortimer,b

aFaculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD), Belo Horizonte, Minas

Gerais, Brasil; bFaculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; cPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

(PUC-MG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

Este trabalho relata um estudo sobre a expressividade do professor. O objetivo desta análise foi investigar os recursos expressivos de fala e vocais, bem como os recursos não-verbais apresentados por treze professores universitários do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. A metodologia foi norteada por uma combinação de abordagens qualitativa e quantitativa em que a expressividade verbal foi avaliada por meio de análise acústica e dos padrões de fluência da fala, e a expressividade não-verbal por meio de teste de reconhecimento de expressão facial e ocorrência de gestos e expressão facial em filmagens. Os dados encontrados forneceram indícios da expressividade e dos recursos utilizados por cada professor. Algumas variáveis podem facilitar a utilização mais eficaz ou aumentar o leque de recursos expressivos, como titulação, experiência e uma possível abordagem mais interativa e inovadora de ensino. Além disso, as emoções interferem na fluência do indivíduo, possivelmente nos padrões de pitch e loudness e nos parâmetros não verbais. Entretanto, estes achados apontaram para a necessidade de novos estudos com a observação e filmagem das práticas dos docentes no contexto de interação de sala de aula. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 75-102. Palavras-chave: expressividade; comunicação verbal; comunicação não-verbal; formação de professores; interação. Abstract This work reports on study about the expressiveness of the teacher. The specific aim of the analysis reported here was to investigate the verbal and non-verbal resources used by thirteen university teachers from the “Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais”. The methodology was oriented by a combination of quantitative and qualitative approaches and the verbal resources were accessed through an acoustic analysis and verbal fluency. The non verbal resources were accessed through a test about facial expression recognition, and filming. The data give evidence of a possible relation between expressiveness and both a high academic experience and a more dialogic and innovative approach to teaching. The emotions can interfere in the aspect disfluency, pitch e loudness and non-verbal resources. Nevertheless, they also point to the need of further studies relying on

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 75-102 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 30/10/2008 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Artigo Científico

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larger samples and, chiefly, on the observation of teaching practices in the classroom context. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 75-102. Keywords: expressiveness; verbal communication; non-verbal communication; professional development of teachers; interaction.

1. Introdução

As instituições de ensino superior, nos últimos anos, têm se preocupado em melhorar o perfil de qualificação acadêmica do seu corpo docente em relação à titulação. Esta busca pela excelência, principalmente para o professor universitário, tem se vinculado à condução de pesquisas e elaboração de projetos individuais. Como conseqüência, gera-se uma situação em que atividades de ensino e pesquisa são realizadas de modo dissociado, perpetuando a idéia de que para ser um bom professor universitário basta ser um bom pesquisador (Pachane, 2003).

Dentro desse contexto, é possível perceber que, na formação do professor, pouca ou nenhuma atenção tem sido direcionada à preparação específica para suas práticas de sala de aula. No caso do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde esta pesquisa foi realizada, esse quadro geral agrava-se pelo tipo de seleção por que passa o professor ao ingressar na carreira de magistério. Essa seleção pelo regimento da UFMG, deve conter 3 avaliações, escolhidas entre as 4 opções seguintes: prova escrita, currículo, seminário e prova didática. Por ser uma instituição de pesquisa, o ICB privilegia as 3 primeiras provas, não realizando a prova didática, o que tem conseqüências óbvias para o professor que é contratado, pois este pode nunca ter dado uma aula, nem mesmo no seu concurso.

Esta falta de preocupação com a didática do professor universitário, pode estar ligada a uma das lacunas encontradas na formação dos docentes do ensino superior, qual seja, o desconhecimento sobre a importância da performance do professor nas atividades de ensino. Uma das habilidades que o professor deve apresentar, diz respeito à sua ação comunicativa em sala de aula. Sabe-se que os processos comunicativos são de fundamental importância e que favorecem as interações discursivas professor-aluno, além de contribuírem diretamente para os processos de ensino e aprendizagem. De acordo com Mortimer e Scott (2002), as interações discursivas apresentam uma importância central para a elaboração de novos significados pelos estudantes. Apesar da relevância dos aspectos referentes ao discurso e interação em sala de aula, relativamente pouco se conhece sobre como essas interações são produzidas e sobre como os diferentes tipos de discurso podem auxiliar na aprendizagem dos estudantes, particularmente no caso do professor universitário.

A habilidade comunicativa do docente sob o ponto de vista interacional também tem sido pouco abordada na área da Fonoaudiologia, visto que, na maior parte das pesquisas, o enfoque voltado para essa população ainda enfatiza a voz do professor do ponto de vista apenas clínico: a partir da caracterização do seu perfil e comportamento vocal (Araújo et al., 2004; Crispim, 2004); da incidência de queixas vocais e disfonias (Azevedo e Almeida, 2004; Distéfano et al., 2004); de sua consciência e conhecimento vocal (Dragone, 1998; Barreto, 2003); e das estratégias para o enfrentamento dos problemas vocais vivenciados pelos professores (Carelli e Nakao, 2002; Aoki et al., 2004; Cenovicz et al., 2004).

Assim, temos que, com relação aos estudos sobre a Expressividade Comunicativa do professor, Servilha (2000) aponta para a necessidade de um novo olhar sobre a voz (do professor), presente nas interações sociais. Junto a outros trabalhos como Dragone (2000), Chun (2000), Chieppe (2004), Arruda e Ferreira (2004), Servilha (2005), Fabron (2005), Cronemberger e Mota (2006) e Nappi (2006), ampliaram as discussões sobre o tema.

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Com base nessas considerações iniciais, este artigo, apresenta resultados preliminares uma pesquisa maior e relata parte dos dados de um projeto de doutorado em Educação, da UFMG, realizado pela quarta autora sob a orientação do último autor, intitulado: A ação comunicativa do professor universitário e o uso de práticas de expressividade em situação de interação em sala de aula. Este projeto tem por objetivo analisar as várias dimensões da expressividade do professor. A pergunta a ser respondida neste artigo é: Quais são os recursos de expressividade verbal e não-verbal utilizados pelo professor universitário numa situação experimental?

1.1. A linguagem e o discurso na sala de aula A atividade de docência constitui-se como uma atividade social em que a comunicação é uma de suas ferramentas de trabalho, uma vez que existe uma interação entre interlocutores que se dá por meio do uso da linguagem. Assim, os recursos da linguagem estão relacionados com as formas de interagir e podem proporcionar a construção de significados pelo aluno. Dentro desse contexto serão apresentadas algumas pesquisas já realizadas sob essa ótica.

Com o intuito de avaliar a qualidade de professores, suas habilidades comunicacionais e atitudes enquanto docentes, Rego (2001) demonstrou que os professores valorizavam mais a competência técnica, a preparação do material, estruturação da aula e sua organização. Entretanto, os estudantes valorizavam outros aspectos como: “atitude simpática” dos professores e a eficácia comunicacional (linguagem simples e atrativa, preparação e organização das aulas, empenho na aprendizagem do aluno, uso de exemplos práticos durante a aula e na qualidade de como as aulas eram ministradas).

Com o mesmo interesse, de avaliar o comportamento comunicativo do professor, Matos (2006) traduziu e validou o questionário Teacher Communication Behavior Questionnaire (TCBQ). Os dados do questionário apontaram que os professores percebem o seu comportamento comunicativo de forma mais positiva que os alunos.

Mortimer e Scott (2002) também apresentaram uma ferramenta com o propósito de caracterizarem as formas como os professores podem agir para conduzir interações que resultam na construção de significados e, também, para descrever os gêneros de discurso que permeiam a sala de aula. A ferramenta apresentada por estes autores é baseada em cinco aspectos interrelacionados que focalizam o papel do professor e são agrupadas em termos de focos do ensino, abordagens e ações.

Estas pesquisas (Rego, 2001; Mortimer e Scott, 2002; Matos, 2006) apontam para a necessidade de se estudar a sala de aula bem como as ações comunicacionais do docente nesta atividade. A análise das várias dimensões das interações, embora não muito comum no ensino superior, nos parece essencial para a compreensão das possíveis ações comunicativas dos professores universitários.

1.2. Funções da expressividade É incontestável o fato de que a expressividade está relacionada às emoções e atitudes do falante. O modo pelo qual falamos, gesticulamos, ou seja, a expressão que damos ao que queremos dizer irá refletir a nossa atitude diante do assunto em questão e, inevitavelmente, estaremos expressando as nossas emoções. Além disso, não há dúvidas de que as salas de aula são espaços de comunicação e que as palavras e a forma como estas são ditas orientam as interações e permitem a apropriação pelos estudantes dos significados.

Com o propósito de compreender este fenômeno complexo e que pressupõe interação, considerar-se-á, para esta pesquisa, os pressupostos do dialogismo de Bakhtin (1929/1997),

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pelo fato desse autor idealizar a linguagem e seu aprendizado sob a perspectiva de construção de sentidos entre sujeitos interlocutores que agem com e sobre a linguagem, ao mesmo tempo em que recebem a ação da própria linguagem.

Para Bakhtin (1929/1997), o discurso é caracterizado por unidades reais de comunicação, denominadas enunciados e, estes são considerados acontecimentos únicos por apresentar acento, apreciação e entonação próprios. Os referenciais bakhtinianos empregados nos trabalhos (Mortimer, 1998; Mortimer e Scott, 2002) possibilitam a investigação dos aspectos da ação comunicativa nas interações em sala de aula e consideram diferentes elementos da comunicação tanto verbais quanto não verbais. A comunicação verbal é constituída de parâmetros sonoros audíveis, percebidos pelo ouvinte em decorrência do movimento coordenado de órgãos fonoarticulatórios e, do ponto de vista estritamente motor, depende da atividade coordenada das pregas vocais, laringe, faringe, mandíbula, lábios e língua (Kent e Read, 1992; Davis et al., 1996). A comunicação verbal é, portanto, a comunicação que se utiliza de palavras para se efetivar, distinguindo o homem das outras espécies (Dornelles, 2004). Já a comunicação não-verbal envolve todas as manifestações comportamentais não expressas por palavras, como gestos, expressões faciais, orientações do corpo, postura corporal, aparência física, relação de distância entre os indivíduos e ainda organização do corpo no espaço (Stefanelli, 1993). Sabe-se que uma comunicação eficaz deve contar com o bom desempenho e equilíbrio dos aspectos verbais e não-verbais. Carrasco (2001) define-a como um jogo harmonioso de movimentos corporais, expressões faciais, gestos, olhares, entonação vocal, conhecimento, relacionamento interpessoal e apresentação pessoal. McNeill (1995) considera que os dois aspectos, verbal e não verbal, formam um todo que não pode ser dissociado ao considerarmos os processos de comunicação.

Assim, a expressividade deve ser entendida, dentro de um contexto mais global, em que não há uma separação clara de seus elementos. Esses elementos verbais e não verbais que coexistem podem ser analisados como uma habilidade do indivíduo “dar vida” ao seu pensamento por meio da linguagem e expressão corporal, suscitando no outro a vontade de pensar junto, de construir uma idéia (Stier, 2005).

Em salas de aula, espaços de interação, o professor utiliza uma diversidade destes recursos expressar atitudes, emoções, crenças e também sinalizar posições em relação a um discurso (Madureira, 2005). Fabron (2006) afirma que no contexto de sala de aula, a expressividade comanda a interação entre professor e aluno, e pode facilitar a construção do conhecimento, podendo até mesmo garantir a atenção dos alunos.

Estienne (2004: 6) afirma que recursos de expressividade “podem ser encarados como meios que liberam emoção”. De acordo com Kyrillos e colaboradores (2003), as informações das emoções podem ser percebidas em variações muito sutis da ação comunicativa. Darwin ([1872] 2004) e Ekman (1984) foram os pioneiros no estudo das expressões relacionadas às emoções, consideradas por estes autores como primárias (Darwin, [1872] 2004) e básicas (Ekmann, 1984): raiva, nojo, medo, alegria, tristeza e surpresa. De acordo com estes mesmos autores, estas emoções são universais e independem da cultura.

Diante desse contexto, Kyrillos e colaboradores (2003) afirmam que, mesmo sem se conhecer um idioma, é possível perceber a emoção de um diálogo apenas pelas variações da voz, da fala ou da expressão corporal. Santos e Mortimer (2001) concordam com Kryllos e colaboradores (2003) e demonstraram a importância de se relacionar linguagem, expressividade verbal e não-verbal e emoções em sala de aula. Por isso, neste artigo empreendemos uma análise tanto dos aspectos verbais quanto dos não-verbais.

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1.3. Recursos expressivos

Na literatura, o tema expressividade tem sido abordado com maior freqüência, porém, não se tem trabalhado com um conceito de expressividade, mas com recursos que permitam reconhecê-la em diversas situações. Behlau e Pontes (1995) afirmam que podem ser analisados diferentes parâmetros com relação à expressividade verbal, os quais devem ser compreendidos e serão destacados nesta pesquisa.

1. Pitch: refere-se à sensação psicofísica da altura levando em conta a variação entre sons

graves e agudos; (Freqüência fundamental: é a medida física do número de vibrações das pregas vocais por segundo. É expressa em Hertz (ciclos por segundo - Hz);

2. Loudness: trata da impressão psicofísica da intensidade que julga a voz do indivíduo como forte ou fraca;

3. Entonação: se traduz na melodia ou em um padrão que abrange inflexões e pausas; é a variação da freqüência fundamental que produz a modulação da voz;

4. Articulação da fala: diz respeito ao processo de adequações motoras dos órgãos fonoarticulatórios na produção e formação dos sons;

5. Velocidade de fala: diz respeito à agilidade de encadear os diferentes ajustes motores à fala, devendo ser adequada ao contexto e a situação do discurso;

6. Fluência: descreve o fluxo da fala, resultado de uma complexa programação neuronal e é definida pela duração do tempo existente entre as sílabas de uma palavra, de uma frase e pela suavidade nessa produção;

7. E por fim as pausas, que são vistas como um mecanismo importante do ritmo da comunicação entre as pessoas, pois permite uma ênfase natural a determinada parte do discurso que queremos evidenciar.

Para compreendermos a importância destes recursos, vejamos, por exemplo, um

enunciado como “Venha aqui”, dependendo de como for proferido, pode acarretar no mínimo duas atitudes e dois estados emocionais. Uma possibilidade é a expressão de carinho e uma atitude de conforto indicados por elementos expressivos tais como um maior prolongamento, menor velocidade de fala e maior variação melódica. E a outra possibilidade é a expressão de raiva, em uma atitude autoritária, indicada por uma maior velocidade de fala em um tom mais baixo.

Quanto aos recursos não verbais, discutimos neste artigo a expressão facial e os gestos, recursos esses que têm um papel fundamental nas interações face a face, ao situarem os interlocutores no contexto geral da interação, além de estabelecer, manter e regular o contato.

A expressão facial é considerada por Kyrillos e colaboradores (2003) como o principal meio de transmissão de informações não-verbais, por apresentar grande potencial comunicativo além de revelar estados emocionais. De acordo com as mesmas autoras, devido à grande quantidade de músculos existentes na face, é possível realizar diversas expressões com facilidade e naturalidade. Darwin ([1872] 2004) descreveu movimentos musculares que caracterizam as expressões faciais de acordo com as emoções básicas vivenciadas.

O valor comunicativo dos gestos também exerce um papel importante para a interação não-verbal e para a organização do pensamento. Os gestos podem ser classificados de diferentes maneiras, dentre elas a proposta por Kendon, (2004) e adotada por McNeill (1995):

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1. Gestos icônicos: tem uma relação formal com o conteúdo semântico da fala. Por outras palavras estes gestos dão indicações sobre a qualidade de objetos como forma, tamanho e a massa;

2. Gestos metafóricos: são reflexos de uma abstração, quando o conteúdo refere-se a uma idéia abstrata. A diferença entre o gesto icônico e o metafórico reside no fato de a homologia criada pelo gesto icônico ser do mundo real, (ex.: objeto concreto) e a criada pelo metafórico ser do mundo mental;

3. Gestos de batimento: são gestos que representam percursos curtos em movimentos rápidos e bifásicos. Estes gestos expressam ênfase em um momento do discurso. O valor semiótico do gesto de batimento reside no fato de dar ênfase a um momento do discurso, destacando-o do discurso antecedente;

4. Gestos dêiticos: são gestos demonstrativos que indicam objetos e eventos do mundo concreto e fictício. São tipicamente realizados pela mão, com o dedo indicador esticado, embora possam ser efetuados por qualquer outra parte do corpo (cabeça, nariz, queixo) ou por objetos (lápis, ponteira, etc.).

Podemos, assim concluir esta seção assumindo, para os fins deste trabalho e de forma

bem geral, que a expressividade deve ser compreendida no contexto da comunicação e se caracteriza pela forma com que o ser humano utiliza os diversos recursos a fim de produzir um enunciado (acontecimento único no sentido bakhtiniano) “carregado” de emoções e atitudes do falante.

2. Metodologia

O trabalho relatado neste artigo é fruto de uma investigação exploratória e descritiva orientada por uma abordagem qualitativa e quantitativa. Tal estudo, conduzido no Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, cumpriu todas as normas e resoluções do Ministério da Saúde e da ANVISA, por meio da regulamentação 196/96. Todos os informantes desta pesquisa receberam uma carta de informação esclarecendo os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Com o propósito de responder ao problema central dessa pesquisa, que é analisar os recursos de expressividade verbal apresentados pelo professor universitário numa situação experimental, utilizou-se como ferramentas metodológicas os seguintes instrumentos:

• Questionário semi-estruturado – para caracterização da amostra; • Teste de prosódia com análise acústica – para caracterização da expressividade vocal do

docente; • Análise específica da fluência verbal dos informantes; • Análise dos recursos não verbais – gestos e expressão facial.

2.1. Amostra

A amostra desta pesquisa foi composta por professores integrantes do corpo docente do ICB. A escolha por este Instituto se deu pela possibilidade de se encontrar ali uma diversidade de práticas de ensino, pois os professores desse instituto ministram aulas variadas, incluindo aulas práticas, seminários, aulas magnas, etc. Além disso, o ICB possui 10 cursos, aproximadamente 230 professores e o objetivo de formar profissionais capacitados nas diversas áreas das Ciências Biológicas.

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Para esta pesquisa foi considerada uma amostra de 13 informantes, dentre os 53 que responderam ao questionário inicial. Considerou-se, com critério de inclusão, informantes que quiseram participar da testagem específica da expressividade e que pertenciam a dois sub-grupos: aqueles que relatavam ministrar aulas mais interativas, com a participação dos estudantes, e os que relatavam práticas menos interativas.

2.2. Materiais e procedimentos

Inicialmente, realizou-se a caracterização dos docentes por meio de um questionário. Este instrumento tinha o objetivo de conhecer os participantes desta pesquisa, suas atividades didáticas e controlar variáveis importantes, tais como gênero, faixa etária, titulação e tempo de experiência como docente universitário. Além disso, o questionário visava também conhecer o tipo de aula ministrada pelo docente.

Posteriormente à esta etapa, iniciou-se a coleta dos dados referentes ao teste de expressividade. Para que os dados dessa etapa fossem fidedignos, alguns cuidados foram indispensáveis, principalmente no que diz respeito à seleção do ambiente físico. Durante a escolha desse ambiente utilizado para o experimento, levou-se em consideração os seguintes aspectos: nível de ruído do ambiente, sendo que este deveria ser inferior à 50dB (Behlau et al., 2001), bem como privacidade e facilidade de acesso para os informantes. Sendo assim, a segunda etapa dessa pesquisa foi realizada em uma sala silenciosa, com um nível de ruído que não excedeu 43 dB (A), medido com decibelímetro da marca Icel modelo 4000, curva de ponderação tipo A, na Faculdade de Educação (FAE), dentro do próprio campus da UFMG.

O primeiro teste realizado foi o de reconhecimento de expressões faciais, adaptado de Ekman, (1984). Neste teste foram apresentadas aos docentes fotos e perguntou-se, em cada caso, que emoção a pessoa da foto expressava. Inicialmente, não foram fornecidas opções de respostas aos informantes. Caso eles não obtivessem um escore de 100% de acerto, eram oferecidas opções de resposta com a identificação das 6 emoções básicas (raiva, nojo, medo, alegria, tristeza e surpresa). Os docentes deveriam novamente fazer o reconhecimento das expressões e nomeá-las.

Com o propósito de visualizar, de forma mais geral, a expressividade vocal dos docentes foi realizada a avaliação da prosódia, adaptada do teste Bedside aprosodia test, conforme descrito por Ross (1981) (apud Girodo, 2007), em que foi apresentada a seguinte frase neutra: “Eu vou assistir outro filme”. Ao participante foi solicitado que emitisse a frase com a entonação neutra, além das seis emoções consideradas básicas: raiva, nojo, medo, alegria, tristeza e surpresa. As amostras de fala foram registradas em um computador portátil Itautec W7635, processador Celeron M430 1.73 GHz, memória 512 MB, áudio integrado, acoplado a um microfone profissional de cabeça, LeSon HD 75, cardióide (unidirecional), posicionado lateralmente a uma distância de 5 cm dos lábios do falante. As gravações das amostras de fala foram controladas pelo VU meter, visível na tela de gravação, para que o sinal de entrada não sofresse distorção devido à saturação.

Em seguida os participantes foram solicitados a expressarem, de forma clara, uma situação vivida ou imaginária em que cada uma das seis emoções básicas (raiva, nojo, medo, alegria, tristeza e surpresa) tivesse tido a mais alta intensidade. Esse teste foi filmado por meio de filmadora digital SONY modelo DSC-S90, 4.1 mega pixels, 3.0x zoom e memória de 1GB. O equipamento foi acoplado a um tripé o que permitiu que a filmadora se mantivesse em posição estável.

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2.3. Métodos de análise dos dados Para análise dos dados referentes ao reconhecimento de expressões faciais (teste1), as respostas dos informantes foram consideradas da seguinte forma: 1. RC (reconhecida corretamente). Exemplo: a emoção expressa na foto apresentada é

raiva, o informante respondeu raiva. Neste caso o indivíduo reproduz literalmente a resposta referente à expressão facial;

2. RA (reconhecida por aproximação). Exemplo: a emoção é raiva, o informante respondeu “bravo”. Neste caso ocorreram substituições, dentro do mesmo campo semântico, de palavras num dado contexto, de forma que não se altera o significado da emoção;

3. NR (Não reconhecida). Exemplo: a emoção é raiva, o informante respondeu dúvida. Neste caso, o sujeito efetuou o que se pode chamar de resposta “errada” da emoção que estava expressa na foto.

Já os dados gravados em áudio, foram submetidos a análise acústica, por meio do

software PRAAT®, desenvolvido por Paul Boersma e David Weenink do Institute of Phonetic Sciences, University of Amsterdam. Foi utilizada a versão 4.6.34 do software, taxa de amostragem de 22050 Hz, canal mono e resolução de 16 bits. A análise realizada por esse programa permitiu a visualização de propriedades físicas do som como a freqüência fundamental, intensidade e duração que, quando associadas, ajudam a compor o fenômeno prosódico da fala.

Durante a análise dos dados, observou-se a curva de intensidade (em dB), a curva de pitch (em Hz) e a duração das emissões de fala, medidas estas sugeridas por Kent e colaboradores (1999) (apud Behlau et al., 2005) para análise da prosódia e da emoção durante a fala. Por meio da curva de pitch observou-se a maior e menor freqüência apresentada por cada indivíduo, durante a emissão da frase “Eu vou assistir outro filme” em todas as emoções básicas solicitadas. Da mesma forma, observou-se, por meio da curva de intensidade (loudness), a intensidade média utilizada por cada indivíduo durante a emissão da frase, em todas as emoções. Destaca-se que esses valores (pitch e loudness) foram fornecidos pelo próprio software utilizado. Os valores obtidos nessa análise foram comparados entre os indivíduos e entre os subgrupos (de acordo com as variáveis), ou seja, os dados acústicos analisados foram correlacionados com os dados obtidos no questionário para que se verificasse a possibilidade de uma relação entre os recursos de expressividade vocal utilizados pelos professores e seu perfil descrito no questionário. Não foram realizadas medidas de duração das emissões.

Para análise das filmagens, cumpre salientar que esta foi realizada em variadas etapas. Os dados, em um primeiro momento, foram vistos de uma forma mais geral e, posteriormente, a fala foi transcrita a partir da filmagem em câmara digital, e os dados analisados. Para a análise dos aspectos da fluência tomamos como base a avaliação descrita por Jakubovicz (1997), adaptada da proposta de Campbell e Hill (1994): após a transcrição da fala, calculou-se o total de palavras produzidas e o tempo de amostra. Em seguida verificou-se a freqüência e a tipologia das rupturas, classificadas quantitativamente (% total da disfluências) e qualitativamente (disfluências mais comuns e disfluências gagas). Além disso, realizou-se o cálculo da taxa de elocução que corresponde ao número de palavras expressas por minuto. Realizou-se também a análise da articulação e das pausas apresentadas em cada um dos seis episódios discursivos advindos de cada emoção básica produzida por cada informante. Para a

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análise dos aspectos não-verbais verificou-se a ocorrência de gestos e expressões faciais produzidos por cada informante em cada um dos seis episódios discursivos.

Ressalta-se que para escolha dessa abordagem metodológica, foram consideradas as orientações sugeridas por Chaves e colaboradores (2007), na qual os autores destacam a importância de analisar a expressividade de forma mais objetiva, incluindo a análise acústica dos parâmetros prosódicos e dos recursos de expressividade não-verbais utilizados pelos docentes, tais como a gestualidade, expressão facial e emoções. 3. Resultados e discussão

Nesta seção apresentaremos os resultados da análise dos dados, cujo objetivo principal foi analisar, por meio de uma pesquisa experimental, a expressividade de professores universitários. Outro objetivo foi investigar quais as variáveis diferenciam ou influenciam o desempenho dos professores nos testes aos quais foram submetidos.

A fim de facilitar a análise dos dados, os resultados serão apresentados em 4 seções:

• A primeira seção mostrará os resultados obtidos com a aplicação do questionário. Nessa seção será apresentado o perfil da amostra de acordo com as variáveis: gênero, faixa etária, titulação e tempo de experiência;

• A segunda seção apontará os resultados referentes aos parâmetros gerais da expressividade verbal e não-verbal dos informantes: pitch, intensidade, articulação, fluência, velocidade, pausas, expressão facial e gestos;

• Na terceira seção serão relacionados os dados obtidos nas análises dos questionários com os dados visualizados no teste de expressividade verbal;

• Na quarta seção serão discutidos os resultados da expressividade vocal de 2 docentes considerados exemplos prototípicos. Esta forma da análise quer privilegiar o entendimento da expressividade dentro de um

contexto maior. A partir da análise dos questionários será possível delinear as práticas e o perfil do professor e estabelecer possíveis relações entre esses dados e aqueles advindos da análise da expressividade.

3.1. Dados do questionário e perfil da amostra

Na tabela a seguir será possível visualizar a caracterização dos informantes de acordo

com as seguintes variáveis: gênero, idade, titulação e tempo de experiência como professor universitário. Os nomes dos informantes são fictícios a fim de garantir o anonimato dos participantes dessa pesquisa.

Como visualizado na tabela acima, há uma predominância de docentes do gênero feminino, a faixa etária dos professores variou entre 29 e 64 anos e o tempo de experiência como professor universitário variou de 2 a 37 anos.

Em relação aos resultados referentes à titulação, pôde-se perceber que, dos 13 docentes, 11 têm titulo de doutor e que, destes, 3 são pós-doutores. Além disso, 2 docentes tem título de mestre.

Ressalta-se que o informante 2 não possui nacionalidade brasileira e, apesar de esse fato poder interferir no teste de expressividade, optou-se por não excluí-lo da amostra, já que a inclusão de professores estrangeiros no corpo docente de universidades federais é uma realidade.

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Tabela 1 - Caracterização da amostra.

Além das variáveis gênero, idade, titulação e tempo de experiência, inicialmente

buscou-se analisar também o tipo de aula ministrada, considerando-se o relato do professor sobre o comportamento dos alunos durante as aulas, tipos de procedimentos utilizados para a realização das mesmas e as estratégias utilizadas/sugeridas para o desenvolvimento das atividades. No entanto, optou-se por não utilizar esses dados, a não ser na análise dos casos prototípicos, realizada na seção 4. Entretanto, saliente-se que a observação da sala de aula é de fundamental importância, a fim de compreender como essas práticas relatadas pelos professores ocorrem de fato no contexto da aula, e isto já foi feito embora não analisamos esses dados neste trabalho. 3.2. Expressividade 3.2.1. Vocal – variação de pitch e intensidade das emissões

A partir desse momento serão apresentados os resultados referentes à expressividade vocal de cada docente, considerando as variações de pitch e intensidade apresentadas em cada emissão da frase com diferentes entonações.

As medidas de F0 foram realizadas a partir de uma curva de freqüência apresentada em um gráfico cujas abscissas corresponde ao tempo (em segundos) e a ordenada corresponde à F0 (Hertz). Desta forma, é possível verificar a variação de F0 num determinado ponto da curva, bem como a sua variação em relação ao tempo. A figura 1 é a representação gráfica da curva de F0 (A - em azul) em relação ao tempo da emissão:“Eu vou assistir outro filme”. Observa-se, também, o oscilograma (B) do enunciado “Eu vou assistir outro filme” com entonação neutra, por um indivíduo do sexo masculino.

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Figura 1 - Representação gráfica da curva de F0/relação tempo da emissão. Na tabela 2 verifica-se as variações de pitch, destacando-se, para cada variação, os

valores mínimos, em azul, e máximos, em vermelho, para cada informante. Esse dado permite verificar que emoção teve o pitch maior e menor. Considera-se, também, os dados da Freqüência Fundamental (F0) média.

Os valores da freqüência fundamental revelam características específicas do indivíduo, como sexo, idade, ocorrência de patologias e até o estado emocional. Este quadro foi dividido por gênero já que há variação de pitch de acordo com variantes de sexo (feminino 2a e masculino 2b). A voz feminina tende a ser mais aguda, portanto, com valores de pitch mais elevados.

Os valores de pitch das informantes do sexo feminino tiveram como menor valor encontrado 173,8Hz e 283,4 Hz para os maiores valores. BEHLAU (1995), em um estudo feito em 90 sujeitos da cidade de São Paulo, determinou que os valores médios de F0 para mulheres podem variar de 150 a 250 Hz.

Os valores de pitch dos informantes do sexo masculino variaram entre 97,1 Hzpara o menor valor e 155,1 Hz para o maior valor. BEHLAU (1995), em um estudo feito em 90 sujeitos da cidade de São Paulo, determinou que os valores médios de F0 para homens podem variar de 80 a 150 Hz.

É importante destacar que o informante 2 realizou avaliação da prosódia tanto no português quanto em sua língua materna – inglês, a fim de verificar a possibilidade de diferenças entre as emissões. Esse participante emitiu as frases em português com maior variação de pitch que quando as apresentou em Inglês. Isto pode nos levar a hipótese de que o inglês tem padrões de entonação que tendem a uma menor variação ou que o participante tenta variar mais a expressão em português como forma de minimizar as dificuldades naturais ao ter que se expressar em outra língua ou ainda – e mais provavelmente - de que sua fala tem características de sua língua materna transpostas para a língua aprendida posteriormente.

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Tabela 2a – Valores de pitch: sexo feminino.

Tabela 2b – Valores de pitch: sexo masculino.

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As dificuldades de expressar a mesma frase “Eu vou assistir outro filme”, com diferentes entonações também foi observada pelos outros participantes, que mostravam ansiedade ao saber da tarefa, ou faziam uma expressão facial e corporal de apreensão frente a tarefa. Além disso, alguns informantes fizeram uso de estratégias como utilizar recursos não-verbais de forma evidente (expressão facial e modificação na postura corporal) ou acrescentavam à frase determinados recursos com o intuito, talvez, de caracterizar melhor o contexto. Destaca-se que, por exemplo, a emissão desta frase durante a emoção medo, foi dita pela informante 4 como “Ui, eu vou assistir outro filme”. Já a emissão da frase expressando nojo, foi dita pelos informantes 4, 5 e 6 da seguinte forma: “Hum, eu vou assistir outro filme” e a emissão da frase durante a emoção raiva, foi dita pela informante 6 como “Ah, eu vou assistir outro filme”. Esses dados podem ser justificados pelo fato de que interjeições podem ser utilizadas como recursos para expressar sentimentos muito intensos como, por exemplo medo, raiva e aversão (nojo), conforme investigação de Wundt (1900 apud Scherer, 1995).

Os resultados apresentados na tabela permitem observar que os informantes 8, 10,12 e 13 (todas do sexo feminino) foram os que demonstraram maior variação de pitch quando comparadas as emissão da frase ditas com menor valor de pitch e maior valor. As menores variações de pitch foram percebidas nos informantes 2 e 7 (sexo masculino). Percebeu-se, durante essa emissão, que as frases ditas por esses informantes não conseguem transmitir tão claramente a intenção do discurso.

Em relação à análise a emoção surpresa foi a que apresentou maior variação de pitch. A emissão da frase se caracterizou, em geral, por um pitch mais agudo e com curva ascendente. Essas características são encontradas, principalmente, em emissões de conteúdo mais positivo (Kyrillos, 2005).

As emoções tristeza e nojo foram as que apresentaram menor variação de pitch, caracterizando-se por um pitch mais grave e uma duração maior da emissão da frase. Scherer (1995) afirma que tais emoções são caracterizadas por uma freqüência fundamental mais grave, com menor variabilidade e velocidade de fala.

A seguir serão apresentados os resultados referentes ao padrão de intensidade. A medida de intensidade foi realizada com o auxílio do oscilograma, a partir de uma curva de intensidade apresentada no mesmo gráfico descrito anteriormente, onde a abssissa corresponde ao tempo (em segundos) e a intensidade (em dB) é representada na ordenada (figura 2).

Na tabela 3 serão apresentados os resultados referentes às médias de intensidade apresentadas por cada indivíduo, em cada emoção solicitada. A maior intensidade apresentada pelo informante foi destacada de vermelho e a menor intensidade, destacada de azul. Observa-se também o valor da variação de intensidade vocal quando as emissões são comparadas à emissão da frase neutra.

A intensidade vocal é um parâmetro físico relacionado diretamente à pressão subglótica da coluna aérea que, por sua vez, depende de diversos fatores, como amplitude de vibração e tensão das pregas vocais. A sensação psicofísica referente à intensidade, isto é, como o som é julgado, considerando-o mais forte ou mais fraco, recebe o nome de loudness (Behlau e Ziemer, 1988).

O controle da intensidade necessita de uma consciência da exata dimensão do outro e um refinado controle da projeção da voz no espaço (Behlau e Ziemer, 1988). A intensidade, quando utilizada de forma adequada, demonstra treino e domínio da própria voz (Kyrillos, Cotes, Feijó; 2003). Já uma intensidade fraca não alcança o ouvinte, e pode demonstrar, além de pouca experiência nas relações interpessoais, timidez, medo da reação do outro ou complexo de inferioridade (Behlau e Ziemer,1988). As emoções medo e raiva caracterizaram-se por

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diminuição da intensidade. Por sua vez, uma intensidade elevada pode demonstrar vitalidade e energia (Kyrillos et al., 2003), como no caso da emoção alegria.

Figura 2 - Representação gráfica da curva de intensidade em relação ao tempo da emissão.

Conforme os resultados observados na tabela 3, é possível observar que os informantes

apresentaram média de intensidade que variou de 72,8 a 79,1 dB. Ou seja, não foram encontradas grandes variações de intensidade quando comparadas à emissão da frase dita com menor valor de db e maior valor. A intensidade média de uma conversação em ambiente silencioso varia entre 55 a 75 dB. Assim, temos que nossos informantes apresentaram valores médios dentro do esperado.

Em relação à intensidade, a emoção alegria foi a mais intensa, quando comparada à emissão neutra de cada indivíduo. Segundo Kyrillos e colaboradores (2003) a utilização desse recurso reflete um discurso alegre e animado.

A emoção com menor intensidade de emissão foi a raiva. Esse dado se difere do proposto por Kyrillos (2005) em que a intensidade de fala reduzida é mais comumente associada à um discurso triste e melancólico e também de Scherer (1995) em que o autor afirma que a expressão da emoção raiva está associada a um aumento na intensidade média da voz. Já Behlau e colaboradores (2001) afirmam que, a intensidade reduzida caracteriza também uma voz de comando, demonstrando maior poder em relação ao indivíduo que grita.

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Tabela 3 – Valores médios de intensidade. 3.2.2. Fala – articulação, velocidade, pausas e disfluências

Ao analisar a articulação dos informantes e classificá-la em precisa/imprecisa, observou-se que apenas o indivíduo 2 – Crhistiano, apresentou articulação do tipo imprecisa. Vale ressaltar que sendo o informante falante de língua inglesa, os sons produzidos em sua língua materna nem sempre coincidem com os da língua portuguesa, e isso, possivelmente, implica na sua imprecisão articulatória.

Com relação ao parâmetro velocidade de fala, este também pode ser uma parâmetro para expressar uma atitude, fazer um apelo emocional, ou para chamar a atenção do falante. Ao analisarmos a média do número de palavras produzidas por minuto, constatou-se uma heterogeneidade de resultados, pois cada informante construiu sua velocidade de fala de acordo com o contexto solicitado.

Pelos parâmetros estabelecidos por Kyrillos e colaboradores (2003), segundo os quais a velocidade normal encontra-se na faixa de 130 a 180 palavras por minuto, apenas os indivíduos 2, 5 e 6 tiveram a velocidade de fala considerada normal. Talvez o parâmetro da variação da velocidade seja mais interessante de ser analisado.

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Outro recurso de expressividade de grande importância na organização do discurso é a pausa. Ela tem um papel essencial em conversações espontâneas, desempenhando várias funções. Está relacionada tanto a fatores lingüísticos: sintáticos, lexicais, gramaticais e de organização do discurso, assim como também a fatores extralingüísticos, como o conhecimento entre falantes, a idade dos interlocutores, a complexidade ou dificuldade do tema, a espontaneidade do discurso, e até a aspectos psicofisiológicos, como a necessidade de parar para respirar.

Os dados obtidos por nossa pesquisa apontaram para uma enorme quantidade de pausas – observou-se o predomínio de pausas não-silenciosas (56,7%) sobre as silenciosas (44,3%) no interior da sentença.

Pode-se observar que as pausas fizeram parte da narrativa de todos os informantes. Na maioria dos casos esse recurso foi preenchido com hesitações do tipo “ehh”, “né” e “mas”, como nos exemplos: ↓ pausa preenchida com hesitação

“ No ano passado....ehh... vim prestar o concurso aqui na Universidade ....” ↓ pausa preenchida com hesitação

“Alegria é fácil... né... o nascimento dos meus filhos...” pausa preenchida com hesitação ↓ ↓

“ Isso realmente me dá raiva eu demorei a lembrar .... mas .... né ... essa é uma situação...”

Kyrillos e colaboradores (2003), apontam que as pausas estão relacionadas aos sinais

de pontuação e à necessidade de respirar e que o uso exagerado pode tornar o discurso entrecortado e descontínuo. Kyrillos (2005), reforça que a utilização das pausas em locais estratégicos representa um recurso muito interessante que poderá provocar um efeito de expectativa no ouvinte. Este efeito pode ser conseguido pelos informantes 4, 8, 10 e 12. Porém Gonçalves (2000) destaca que se deve evitar preencher as pausas com elementos que denotam hesitação, por estas desviarem a atenção do ouvinte. Podemos acreditar que os indivíduos 2, 7 e 13, possam ter dificuldades de manter a atenção dos alunos em função do excesso de pausas que podem denotar insegurança e pode indicar que o falante está com dificuldade de buscar palavras para dar sentido ao seu discurso.

Para Marcuschi (1997), as pausas (silenciosas ou não) são importantes organizadores conversacionais, elas configuram um espaço de transição de um turno a outro. Segundo ele, as pausas podem ter as seguintes funções: 1. Função retórica (seguem perguntas que não possuem resposta, funcionando apenas

como um elemento que enfatiza o próprio trecho discursivo); 2. Função de organização de turnos conversacionais, uma vez que as pausas podem ser

elementos de passagem ou tomada de turno; 3. Função de reformulação, usada para marcar as correções feitas pelo próprio locutor; 4. Função indicativa de desconhecimento de assunto questionado em uma conversação.

Essas funções devem ser analisadas no contexto da sala de aula a fim de compreendermos seu real papel na organização temporal do discurso do professor. Além disso, será possível verificar a organização discursiva em relação à atitude do professor

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(hesitação, interação com o tema, interação com o aluno), ao gênero discursivo (narração, argumentação, descrição), ou ainda ao estilo do discurso (texto oral espontâneo ou leitura).

É sabido que as conversações espontâneas caracterizam-se por uma quantidade enorme de pausas, silenciosas ou não, mas também de repetições, falsos começos, alongamentos e outros preenchedores, que são elementos relacionados à continuidade ou não do discurso e, conseqüentemente, à classificação do discurso em fluente ou interrompido/hesitante/disfluente.

Quanto aos padrões de fluência, observou-se a ocorrência apenas de disfluências mais comuns (DMC), sendo essas quantificadas de acordo com a escala de severidade (ES) de Yowa que se divide em 7 níveis, sendo o nível 1 caracterizado por ausência de disfluências, e o nível 7 considerado grave em função do excesso de disfluências. Não foram encontradas disfluências do tipo gaga em nenhum dos informantes.

A maioria dos informantes, - 10 dos 13 – apresentou disfluências de grau suave a regular – escala 3 e 4. Os informantes 7 e 13 apresentaram um maior número de disfluências, moderadamente severa – escala 5 e 6 e o indivíduo 1 apresentou o menor número – correspondente `a escala 2. Acrescentamos que, das disfluências mais comuns (interjeições, repetições de palavras, de frases, hesitações e revisão de frases), as hesitações estiveram presentes em 100% da amostra, seguidas por interjeições, repetição de palavras e repetição de frases. Segundo Merlo (2007), num primeiro momento as hesitações são vistas como erros. Entretanto, atualmente, elas não são analisadas sob uma ótica tão negativa. Entretanto, é preciso ressaltar que em uma fala calculada e construída, as hesitações são consideradas atividades problemáticas de construção textual e aparecem quando o falante se depara com dificuldade no processamento ou na verbalização da informação. Desta forma, a hesitação é uma estratégia utilizada para a construção do texto falado, refletindo provavelmente dificuldades na competência comunicativa em relação à oralidade.

No que se refere à quantidade de disfluências, Andrade (1999), menciona que o número de ocorrências influencia de maneira decisiva na produção e na percepção da fala fluente. Bohnen (2005), ao referir-se a tal questão, também enfatiza que nem todas as disfluências são consideradas problemáticas, pelo fato de não existir pessoas que sejam totalmente fluentes. No entanto, quando a quantidade de disfluências desperta a atenção do ouvinte, pode comprometer o entendimento do discurso, ou seja, em sala de aula, podemos inferir que os alunos se “distraem” quando o número de disfluências produzidas pelo professor é alto – como no caso dos professores 7 e 13.

3.2.3. Recursos não verbais – expressão facial e gestos

Tendo em vista que um dos focos deste artigo é a investigação da expressividade não-verbal, optou-se por analisar, as expressões faciais (reconhecimento e expressividade facial) e gestos.

• Reconhecimento de expressões

Foi aplicado o teste de reconhecimento das expressões faciais, adaptado de (Ekman, 1984).Inicialmente, foi realizado um levantamento quantitativo das expressões faciais Reconhecidas Corretamente (RC), Reconhecidas por aproximação (RA) ou Não Reconhecidas (NR), por cada informante conforme discriminado no quadro 1.

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Quadro 1 - Respostas produzidas por informantes com e sem opção de respostas.

Em relação ao desempenho do teste, o informante 8 foi o único que obteve um escore de 100 % de reconhecimento das emoções sem opções de respostas. Para todos os outros informantes, foi necessário repetir o teste com as opções das respostas, pois eles não reconheceram prontamente alguma das emoções. Já o informante 6 foi o que demonstrou maior dificuldade, obtendo um escore de 33% de reconhecimento. Darwin (2004) afirma que este reconhecimento não é uma tarefa fácil e pode gerar incertezas em algumas opções.

Com base nos resultados evidenciados no quadro 2, referente ao reconhecimento das expressões, observa-se que as emoções alegria e tristeza foram as que apresentaram melhor índice de acertos. Verifica-se que as emoções nojo e surpresa foram as que os informantes demonstraram maior dificuldade de reconhecimento, ou seja, com menor índice de respostas corretas na apresentação das figuras sem opção de resposta. • Ocorrências de gestos e expressão facial

A partir desse momento serão apresentados os resultados referentes às ocorrências de gestos e expressões faciais. A filmagem realizada permitiu a representação de uma situação, a partir das experiências do informante, e a expressão das diferentes emoções (raiva, medo, nojo surpresa, alegria e tristeza). Posteriormente, foi realizada a transcrição de todos os dados e, em seguida, analisou-se as expressões emocionais de cada informante, calculando o total das ocorrências de gestos e expressões faciais.

Para a realização desta análise, buscou-se observar as filmagens de cada professor como um processo, ou seja, todo contexto de comunicação verbal foi analisado, transcrevendo-se toda a fala para situar a condição do aparecimento de cada gesto e cada expressão facial. Certamente, essa análise é importante para se detectar a forma de uso de recursos não-verbais pelo docente. Na tabela a seguir serão apresentados os gestos realizados pelos docentes em cada uma das emoções, durante o relato do seu discurso. Quanto à utilização dos gestos, podemos observar uma ocorrência de 453 deles, durante os relatos de todos os informantes. A princípio, este parece ser um número elevado. No entanto,

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há que se considerar que os informantes produziram 4.126 palavras. Apesar da diferença quantitativa, é preciso considerar que um mesmo gesto pode ter mais de um significado e pode substituir ou realçar várias palavras, dependendo do contexto da interação. Assim, é necessário relativizar essa análise quantitativa e compreender que o comportamento gestual dos professores pode necessitar de um olhar mais contextualizado.

Destaca-se ainda que o informante 5 foi o que apresentou o maior número de gestos, correspondente à 86 e o informante 1 apresentou o menor número de gesto, apenas 2 e somente na emoção medo. Interessante perceber que o informante 5 parece ter mais dificuldades com os recursos verbais e facilidade com os não verbais, o contrário também sendo verdadeiro para o informante 1.

Vale a pena salientar que além destes gestos, analisados de acordo com a proposta de McNeill (1995), observou-se também uma acentuada ocorrência de gestos de ‘autotoque’, que não foram quantificados nesta pesquisa. Tais gestos possuem funções auto-calmantes, geralmente utilizados para aliviar nervosismo ou para auto-conforto e auto-proteção (Otta e Vasconcellos, 2003). Destaca-se que estes gestos tiveram alta ocorrência em diversos informantes, durante a realização dos discursos. Burgoon e colaboradores (1996) (apud Otta e Vasconcellos, 2003) afirmam que o uso destes gestos deve ser evitado em público já que os mesmos revelam estados internos de ansiedade, nervosismo ou inibição (Andersen, 1999 apud Otta e Vasconcellos, 2003). Ao analisar a tabela 3 pôde-se verificar uma diversidade de ocorrência de gestos nas diferentes emoções. Entretanto, percebe-se que a emoção medo caracterizou-se por uma ocorrência maior de gestos, sendo encontrados 117, com predominância de gestos do tipo dêitico. Já a emoção com menor ocorrência de gestos foi a alegria, com 69 gestos, sendo que estes também se caracterizaram, principalmente, pelos do tipo dêitico.

Com relação à tipologia dos gestos e emoções, os gestos dêiticos ou de apontamento estiveram muito presentes em todas as emoções (total de 177 ocorrências). São gestos demonstrativos que indicam objetos e eventos do mundo concreto ou fictício. Esse apontar realiza-se no espaço gestual. São tipicamente realizados pela mão, com o dedo indicador esticado, embora também possam ser efetuados por qualquer outra parte do sujeito ou fazendo uso de algum objeto. Acredita-se que este resultado pode justificar-se pelo fato deste ser um gesto demonstrativo, podendo ser utilizado de diferentes maneiras, tanto para indicar objetos e eventos do mundo concreto como fictício.

Os gestos de batimento ficaram, em termos de ocorrência, em segundo lugar, 125 gestos. Estes marcaram a entonação, representam percursos curtos em movimentos rápidos e bifásicos. Os gestos icônicos, que se associam a um conteúdo concreto e têm uma relação formal com o conteúdo semântico da fala, apareceram em terceiro lugar em termos de ocorrência, 89. Os gestos metafóricos foram os que menos apareceram, 62 gestos – a ocorrência dos mesmos aconteceu em momentos de conteúdo abstrato.

A seguir serão abordados os resultados referentes às expressões faciais demonstradas pelos informantes durante o relato do discurso. Para realizar o cálculo da quantidade de expressões demonstradas em cada uma das emoções, foram analisadas as filmagens e observadas as mudanças na configuração facial dos professores conforme prescrito por Darwin.

Quanto à demonstração de expressões faciais, verificou-se que o individuo 10 foi o que mais apresentou expressões durante o seu discurso, sendo um total de 31 nas diferentes emoções. Já o indivíduo 1 apresentou apenas 3 expressões faciais, ficando no outro extremo do continuum. Este mesmo individuo também mostrou-se mais contido na expressão gestual.

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Tabela 4 – Ocorrência de gestos/emoção.

Diante dos resultados encontrados, percebe-se que a ocorrência de expressões faciais

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também variou de acordo com cada emoção. A emoção nojo apresentou a maior ocorrência de expressões faciais. Esta emoção se caracterizou, principalmente, pelo enrugamento do nariz, envergamento dos cantos da boca. Esses achados corroboram os achados de Darwin (2004), segundo os quais esses são movimentos típicos dessa emoção. A emoção com menor ocorrência de expressões faciais foi a raiva, sendo que, neste contexto da emoção, a expressão dos informantes foi caracterizada, predominantemente, por elevação das sobrancelhas. Esse resultado difere do proposto por Darwin (2004), segundo o qual esta expressão facial é característica das emoções surpresa e medo. Parece que os professores não souberam como expressar a emoção raiva de uma maneira não-verbal.

Assim, temos que as diferentes emoções caracterizam-se como um fenômeno complexo, mas parece haver certo parâmetro de expressão não-verbal para as emoções. Vale ressaltar que filmagens e gravações em vídeos podem evidenciar certa inibição da ação dos informantes em função da presença da câmera, mas como o foco desta pesquisa são os gestos e expressões faciais, esta forma de registro foi essencial para capturar os dados referentes à expressividade não-verbal. 3.3. Relação entre a expressividade e as variáveis

Um dos objetivos inicialmente traçados por este trabalho era relacionar a expressividade do docente universitário com as seguintes variáveis: idade, titulação, tempo de experiência e tipo de aula por ele ministrada. Após concluir a análise dos questionários e do teste de expressividade, os resultados apontaram que alguns dos parâmetros garantem uma maior expressividade – parâmetros pitch e intensidade vocal. Outros parâmetros mostraram-se neutros, ou seja, não parecem ser garantias de expressividade per si – articulação. E outros, ainda, quando presentes, dificultam a expressividade, ou seja, funcionam como elementos dificultadores – disfluências e pausas. Mesmo as disfluências consideradas comuns e as pausas de organização do discurso, quando ocorreram em quantidade exagerada, dificultaram a expressão do docente.

Os gestos e expressões faciais também podem contribuir – quando ocorrem de forma diversificada e adequada ao contexto do discurso ou limitar a expressão, quando ocorrem de forma restrita ou muito exagerada.

Assim, quanto à análise realizada, os informantes apresentaram resultados que podem ser expressos em um continuum:

Nível 1: Encontram-se nesse nível os informantes que apresentaram curva melódica pouco

expressiva e pouca modificação de loudness, além de alguma dificuldade quanto aos aspectos de fluência. Estes professores também apresentaram dificuldades na expressão não verbal.Foram classificados nesse nível os informantes 2 e 7.

Nível 2: Encontram-se nesse nível os que apresentaram curva melódica expressiva e pouca modificação da loudness, ou o contrário. Nesse grupo, há também alguns casos de excesso de disfluências comuns e alguns docentes com pouca expressividade não verbal. Para o nível 2, houve uma maior incidência de informantes: 1, 3, 5, 6, 9, 11 e 13.

Nível 3: Encontram-se nesse nível os informantes que apresentaram curva melódica expressiva e modificação da loudness, além de fala fluente e com ritmo adequados: 4, 8, 10 e 12. Ao cruzar os resultados do nível de expressividade X caracterização dos docentes,

podemos perceber que os professores com melhor performance expressiva (4, 8, 10 e 12)

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encontram-se na faixa etária acima de 40 anos, tem pelo menos 5 anos de experiência como professores universitários e são doutores.

Os informantes que foram caracterizados como nível 2 tem um perfil bastante heterogêneo, no que diz respeito às variáveis selecionadas e, nesse grupo houve uma maior incidência de informantes, ou seja, 60% da amostra.

Vale a pena relembrar a importância da observação do contexto de sala de aula, anteriormente destacado, a fim de avaliar como essa expressividade acontece de fato no cotidiano destes docentes, haja vista que o trabalho com mensuração da expressão emocional pode ser prejudicado pelas dificuldades de se produzir emoções intensas em laboratório (Scherer, 1995).

3.4. Expressividade – apresentação dos casos prototípicos

Serão apresentados, a seguir, 2 exemplos prototípicos (um caso representativo do nível 1 – indivíduo 7 e um representativo do nível 3 – indivíduo 8). Para ilustrar a importância da expressividade, que pode carregar, além do conteúdo lingüístico, informações sobre as intenções do falante e até mesmo seu estado emocional, serão apresentados os dados gerais de expressividade verbal e não-verbal destes docentes:

Quadro 2 – Casos prototípicos.

Quanto ao reconhecimento da expressão facial, temos que a informante 8 obteve um escore de 100% de reconhecimento. A quantidade de gestos foi pequena para ambos os casos.Já o informante 7 foi considerado foi considerado menos expressivo em relação à expressão facial . A variação da freqüência, intensidade e os padrões de fluência da fala podem agregar muito valor à expressão de um falante. Para exemplificar esse fenômeno, serão apresentadas 3 curvas, que se referem à emoção neutra e as de maior e menor variação de pitch de cada um destes informantes.

Se compararmos as produções em ambos os gráficos, a entonação da frase é caracterizada por um movimento descendente de F0. Este fato ocorre, provavelmente por tratar-se de uma sentença declarativa. Já na fala de um enunciado interrogativo, este movimento seria ascendente.

Percebe-se também que a curva melódica do primeiro exemplo é mais definida, ou seja, marcada pela maneira como o informante diz cada frase. As curvas do segundo exemplo apresentam menores modificações, inclusive entre emoções de conteúdo muito diferente.

Assim, temos que os picos de F0 que acontecem no interior da sentença representam um dos parâmetros vocais não-textuais que leva as informações do falante para o ouvinte, intencionalmente ou não. Dentre os outros parâmetros estão a velocidade de fala, intensidade, fluência, além dos recursos não verbais, todos estes podendo interferir no significado do enunciado.

Assim, podemos hipotetizar que a expressividade do docente pode ser vista como um recurso que regula a interação, uma ferramenta com que os professores podem contar para direcionar suas ações na sala de aula, para a organização e manejo da classe, e mesmo para servir de “chave de interpretação”, ou seja, direcionar o valor a ser atribuído a partes

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diferentes do enunciado, realçando ou reduzindo-as, de acordo com o contexto em que está inserido.

Gráfico 1 - Curva de pitch das vogais da frase “Eu vou assistir outro filme”. Exemplo 1: caso prototípico nível 3.

Ressalta-se que foram analisados os dados dos questionários destes docentes, que deram indícios sobre o tipo de aula ministrada, considerando-se o relato do professor sobre o comportamento dos alunos durante as aulas, os tipos de procedimentos utilizados para a realização das mesmas e as estratégias utilizadas/sugeridas para o desenvolvimento das atividades. Pôde-se perceber que o informante 7, exemplo prototípico de expressividade nível 1, ou seja, com dificuldades na performance comunicativa, relatou que seus alunos são apáticos, raramente se pronunciam, não se entusiasmam,exigindo dele grande esforço para motivá-los. Além disso, informou que os procedimentos mais utilizados por ele em sala de aula são aulas expositivas com projeção de slides, o que pode caracterizar uma aula menos interativa.

A informante 8, exemplo prototípico de expressividade nível 3, ou seja, sem dificuldades na performance comunicativa, relatou que seus alunos são atentos e têm uma participação ativa, expondo suas dúvidas e idéias próprias sobre o conteúdo abordado, são receptivos e colaboram com entusiasmo. Os procedimentos mais utilizados por esta docente

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em sala de aula são aulas práticas, atividades em grupo e atividades de resolução de problemas, o que pode caracterizar uma aula mais interativa.

Gráfico 2 - Curva de pitch das vogais da frase “Eu vou assistir outro filme”. Exemplo 2: caso prototípico nível 1. 4. Conclusão

Neste texto focamos a caracterização da expressividade dos professores em situação

controlada. Foram analisadas as variações de pitch, intensidade e fluência relacionadas às seis emoções básicas, bem como as articulações entre esses dados e o perfil do docente.

Os dados preliminares demonstraram que é incontestável o fato de que a expressividade verbal pode ser um dos parâmetros utilizados para revelar e fornecer a perspectiva sobre como o professor trabalha as intenções e o conteúdo do ensino. Ou seja, o modo pelo qual o docente se comunica pode influenciar a interação e a construção de significados por parte dos discentes.

Observou-se que professores com melhor performance comunicativa encontram-se, em sua grande maioria, na faixa etária acima de 40 anos, têm mais de 10 anos de experiência docente, tem título de doutorado e são mulheres..

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Em relação à expressividade e as práticas de sala de aula, os professores informantes desta pesquisa foram filmados e suas aulas serão analisadas para que se construa uma visão de conjunto de como as habilidades expressivas dos docentes aparecem nas salas de aula, além de ser possível comparar diferentes aulas, caracterizar as diferentes dinâmicas discursivas adotadas e relacionar evidências de estratégias de expressividade utilizadas pelos professores com o tipo de aula, conteúdos disciplinares em questão, envolvimento emocional do professor, dentre outros aspectos.

As conclusões desta pesquisa, entretanto, são apenas uma pequena ponta de um iceberg. Várias pesquisas ainda precisam ser realizadas para que se compreenda melhor a expressividade dos professores. Acreditamos que estudar e analisar como esses índices ou marcadores de expressividade utilizados pelos docentes funcionam em contexto de sala de aula e em que medida estes determinam a evolução da interação e construção de significados específicos, sejam elementos importantes para o planejamento do ensino e para a formação do professor.

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- T. A. Chaves é Graduado em Fonoaudiologia (Faculdade Metodistas Integrada Isabela Hendrix), Mestre em Lingüística (UFMG) e Doutoranda em Educação (UFMG). Endereço para correspondência: Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação. Av. Antônio Carlos 6627, Pampulha, Belo Horizonte, MG 31270-901, Brasil, Telefone para contato: +55-31-34995309. E-mail para correspond6encia: [email protected]. F.A. Coutinho é Graduado (Licenciatura) em Ciências Biológicas (UFMG), Mestre em Filosofia (UFMG) e Doutor em Educação (UFMG). Atua como Professor Adjunto III (PUC-MG). Endereço para correspondência: Rua Izabel Alves Martins, 403, Bairro Serrano, Belo Horizonte, MG 30882-390. E-mail para correspondência: [email protected]. E.F. Mortimer é Graduado em Química (Licenciatura e Bacharelado, UFMG), Mestre em Educação (UFMG) e Doutor em Educação (Universidade de São Paulo). Atua como Professor Associado (UFMG). Endereço para correspondência: Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação. Av. Antônio Carlos 6627, Bairro Pampulha, Belo Horizonte, MG 31270-901, Brasil. Telefone para contato: +55-31-34995309. E-mail para correspondência: [email protected].

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Observação das evidências cognitivas de aprendizagem motora no desempenho de jovens violonistas monitoradas por

eletroencefalograma: um estudo piloto

Observation cognitive evidences of the motor learning in the performance of young guitarists monitored by electroencephalogram: a pilot study

Ana Clara Bonini-Rocha, a, b, Marilda Chiaramontec, d, Milton Antonio Zaro a, c, Maria

Isabel Timme e Daniel Wolfff

aPrograma de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano (PPGCMH), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul,

Brasil; bPrograma de Pós-Graduação em Neurociências, UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; cPrograma de Pós-graduação em Informática na Educação, UFRGS (PGIE-

UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; dDepartamento de Engenharia e Informática, Universidade de Caxias do Sul (UCS), Campus Universitário de Bento

Gonçalves, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil; eCentro Nacional de Supercomputação (CESUP-RS), UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; fPrograma

de Pós-Graduação em Musica, UFRGS (PPGMUS-UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo

O artigo apresenta evidências cognitivas de aprendizagem motora por pesquisa com eletroencefalograma (EEG) cujo protocolo e tarefa buscou motivar dois violonistas a treinar e aprender a tocar uma seqüência de notas oferecida em partitura e áudio. Objetivou-se aumentar a demanda cortical para atenção seletiva, processamento, evocação de memórias e ampliação de representações mentais. Sabe-se que a aprendizagem é construída endogenamente, por ação cognitiva dos indivíduos sobre novas informações assimiladas e acomodadas em repertório prévio. Reorganizando-se, dá significância às novas informações e cria conhecimento e estes estados cognitivos relacionados com aprendizado motor exigem vigília, atenção, abstração e programação, o que causa mudanças nos sinais biológicos elétricos captados por EEG. Monitoraram-se sinais de EEG durante leitura, audição e prática da tarefa e calculou-se as medianas das freqüências (MFeeg) e médias aritméticas simples de ondas eletroencefalográficas em 3.000 e 60.000 milissegundos. O modelo estatístico foi ANOVA, Teste Bonferroni e Teste T para amostras pareadas (p<0,05); programas Excell 2003 e SPSS 14.0. A pesquisa mostrou a existência de específicas alterações de padrões de EEG, da aparente inatividade da pré-execução da tarefa à prática e memorização da partitura e desempenho motor. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 103-120. Palavras-chave: cognição; aprendizagem motora; EEG; prática musical.

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Artigo Científico

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Abstract

The article presents cognitive evidences of motor learning with electroencephalogram (EEG) whose protocol and task looked to cause two guitarists training and learning to touch a sequence of notes offered in score and sound. The demand aimed to increase cortical for selective attention, processing, evocation of memories and of mental representations. The motor learning is known when built the action with new assimilated and accommodated in formations - it creates knowledge. These cognitive states connected with driving demand wakefulness, attention, abstraction and planning and changes the biological electric signs caught by EEG. Signs of EEG were monitored during reading, audition and practice of the task and there were calculated the medium ones of the frequencies (MFeeg) and arithmetical simple averages of waves electroencephalographic in 3.000 and 60.000 milliseconds. The statistical model was ANOVA, Test Bonferroni and Test T for samples gauged tuns Test Bonferroni and Test T for gauged tuns samples (p <0,05); programs Excell 2003 and SPSS 14.0. The inquiry showed the existence of specific alterations of standards of EEG, of the apparent inactivity of the daily pay-execution of the task to the practice and memorization of the score and driving performance. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 103-120. Keywords: cognition; motor learning; EEG; musical practice.

1. Introdução A questão da aprendizagem sempre esteve presente na pesquisa educacional, moldada pela cultura e pelo contexto de cada momento histórico, e os instrumentos utilizados para lidar com a aprendizagem, como também se tentaram descrever na área da Pedagogia, estiveram comprometidos com a descrição e a subjetividade. Vale ressaltar a importância do pesquisador suíço Jean Piaget (1896-1980), biólogo que cultivava a objetividade científica, que pela primeira vez transpôs a barreira da especulação filosófica e dedicou-se a observar os processos da aprendizagem humana, propondo uma robusta teoria a respeito de seu desenvolvimento. Observar o processo da aprendizagem, pela nova postura proposta por Piaget, seria, então, observar a passagem dos alunos por estágios cognitivos, cuja existência – ou não – seria visível pela manifestação de informações (respostas relativas ao conteúdo) ou comportamentos (ação sobre o conteúdo). Essas informações e comportamentos quando assimilados, seriam acomodados em repertório prévio e reorganizados pelo sistema nervoso em significância e conhecimento (Piaget, 1987).

O fato de que Piaget estabeleceu uma teoria geral a partir da observação de poucos sujeitos (seus filhos), em situações não controladas, possivelmente difíceis de serem completamente reproduzidas, em função de diferenças culturais e mesmo de alterações na metodologia de observação utilizada, não diminuem a importância de sua obra e o pioneirismo do seu legado, na descrição do que chamou epistemologia genética, para explicar a gênese endógena da formação do conhecimento humano, através da construção ativa do conhecimento pelo sujeito. Se na sua gênese, este processo estivesse embasado na formação científica do pesquisador, mesmo sem instrumentos tecnológicos, ainda inexistentes, nem estratégias de validação, as constatações de Piaget já teriam sido testadas no seu aspecto biológico e a estruturação do pensamento já teria ido além de descrições, entrevistas e questionários, característicos da cultura qualitativa da contemporânea de pesquisa educacional no Brasil (Di Dio, 1974; Gouveia, 1971, 1974, 1976; Gatti, 2001, 2004). Especificamente quanto à aprendizagem motora, ou processo de aquisição de habilidades motoras, desde a década de 60, ela tem sido considerada como uma organização ou padronização espacial e temporal da atividade neural de controle e ajuste de partes do corpo no espaço. Foi descrita como um processo de aperfeiçoamento de habilidades cujas informações motoras, transformadas em código no sistema nervoso, transmitem-se por

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unidade de tempo no espaço (Fitts e Posner, 1967; Keele, 1968, 1982). Inicialmente conceituada como o processo interno de mudança neural que ocorre como resultado da experiência a partir de estímulos advindos do ambiente e armazenados como memória (Sage, 1984), o aprendizado como um todo é dependente de estado de vigília, da atenção, e da emoção envolvida além de outros estados que predispõem à formação de memórias (Gordon, 1989; Brooks, 1986b). Estudos com Ressonância Magnética Funcional por Imagem e com eletroencefalografia (EEG) comprovam as teorias quando mostram os parâmetros de estado do encéfalo humano vivo em tempo real. A Ressonância mostra, pelo aumento na concentração de fluxo sanguíneo nas diversas regiões anatômicas, que a exposição de sujeitos às tarefas cognitivo-motoras resulta em aumento de ativação de áreas de projeção (ou primárias - relacionadas diretamente com sensibilidade e motricidade) e em áreas de associação (secundárias e terciárias - responsáveis por relacionar as informações das áreas primárias e de realizar funções cognitivas complexas e estratégias comportamentais a partir das suas memórias). A atividade metabólica no encéfalo humano vivo exposto ao treinamento de determinadas tarefas sofre alterações na sua estrutura micro-anatômica (Dinesh et al., 2003; Faugeras, 2004; Jantzen et al., 2005; Cantero et al., 2004; Rossini e Pauri, 2000). Essas pesquisas comprovaram que as informações advindas dos exteroceptores, proprioceptores e viceroceptores se dirigem, primeiramente, para áreas primárias específicas do encéfalo, e depois ficam difusas por áreas secundárias e terciárias justapostas, quando se tornam conscientes ou não. No trajeto das informações elas são provavelmente decodificadas, conhecidas ou reconhecidas, armazenadas ou não (Squire e Kandel, 2003). O EEG mostra, pela atividade elétrica gerada pelas células nervosas, o comportamento fisiológico das freqüências de ondas eletroencefalográficas. O estudo clássico de Bressler (1990) põe em evidência as freqüências corticais e suas relações com o controle dos movimentos, como uma variável eletro-neuro-fisiológica medível e quantificável. Outros estudos vieram reforçar as hipóteses de Bressler como os de Pfurtscheller e colaboradores (1993), MacKay (1997), Popivanov e colaboradores (1999), Babiloni e colaboradores (2003), Dinesh e colaboradores, (2003), dentre outros. Ampla revisão de literatura sobre EEG e Aprendizagem Motora pode ser encontrada em Bonini-Rocha (2008) e Bonini-Rocha e colaboradores (2008). Este artigo apresenta o desenho experimental que causou mudanças no estado cognitivo e, conseqüentemente, nos sinais eletrofisiológicos captados, de dois músicos violonistas (V1 e V2) que foram confrontados a uma tarefa cognitivo-motora caracterizada por uma seqüência de notas musicais disponível em partitura e áudio. Eles foram monitorados por 10 eletrodos de EEG aderidos por toca e gel condutor ao escalpo. Desenvolveu-se o aparelho de EEG com software Labview para aquisição e processamento dos sinais bioelétricos e monitorou-se a efetividade do processamento neural e – possivelmente – do aprendizado motor (ambos relacionados à habilidade de executar a tarefa sem ler a partitura, isto é, de memória).

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Figura 1 - Violonista preparado para iniciar o experimento. 2. Experimento

No presente artigo, apresenta-se pesquisa com dois sujeitos, ambos masculinos, destros, idade de 18 e 20 anos, alunos do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que assinaram termo de consentimento livre e informado (CEP/UFRGS n. 2006654). Além do protocolo, também foram validados hardware e software Labview na aquisição e processamento de sinais bioelétricos para aparelho de EEG desenvolvido no local, com recursos matemáticos não disponíveis em equipamentos comerciais, testado e comparado contra um EEG comercial (Bonini-Rocha et al., 2008). O experimento foi realizado na

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade de Caxias do Sul (UCS - Região dos Vinhedos). Os eletrodos de superfície monitorados (Cz, C3, C4, Pz, P3, P4, T3, T4, T5, T6) foram escolhidos de acordo com a área que supostamente apresentaria aumento de função nos casos de confrontamento com a tarefa e suas etapas, conforme dita o referencial teórico sobre a demanda de processamento de informações neuroglial, necessária ao controle de aquisição de uma habilidade motora. Forma, estrutura e função do cérebro foram consideradas para escolha desses 10 canais, especificamente áreas motoras primárias, secundárias, somestésica, sensitiva, auditiva, têmporo-parietal e límbica terciárias; envolvendo região central do lobo frontal e lobo parietal (eletrodos C e P) e lobo temporal (eletrodos T) bilaterais (eletrodos ímpares no hemisfério cerebral esquerdo, eletrodos pares no hemisfério cerebral direito, e os eletrodos Cz e Pz centrais). V1 foi submetido a uma única sessão de aquisição de sinais, e V2 a cinco sessões, uma por semana, durante 30 dias. O objeto de aprendizado proposto para ambos foi de aprender uma tarefa cognitivo-motora musical até tocá-la de memória no violão. Ambos foram submetidos à mesma seqüência de notas musicais apresentadas em forma de partitura e de áudio, por igual protocolo, com duração total de 30 minutos. V1 tocou a seqüência de notas por 15 minutos e foram aproveitados os 2 primeiros e os 2 últimos minutos dessa prática. V2, supostamente treinou uma vez ao dia, e aproveitaram-se os sinais do 1° dia (considerado antes) e do 5° dia (considerado depois). 2.1. Desenho experimental O protocolo proposto teve como objetivo gerar sinais bioelétricos neurofisiológicos, que foram registrados por EEG e testados quanto à metodologia de coleta, processamento e análise dos sinais, inspirados nos modelos teóricos e experimentais descritos pelas Neurociências e pelas Ciências do Movimento Humano (Purves et al., 2005; LaMantia Katz, 2005a, 2005b; Ganong, 2003; Squire e Kandel, 2003; Lent, 2001a, 2001b, 2001c; Schmidt e Lee, 1999a, 1999b; Kandel et al., 1997a, 1997b; Jessel, 1997a, 1997b; Brooks, 1986a). O desenho experimental foi desenvolvido considerando-se a perspectiva comportamental do que é sistêmico, celular e molecular. A clássica teoria da polarização dinâmica, uma das bases da Neurofisiologia, sustenta que os eventos nervosos provocam a chegada de corrente elétrica aos neurônios e cujas somas, se superarem seus limiares de excitabilidade, geram potenciais de ação conduzidos ao elemento pós-sináptico de outro neurônio, formando uma rede entre conjuntos de neurônios e glia, transmitido por sinapse química. Os somatórios podem ser captados por eletrodos aderidos ao escalpo.

Assim, com o objetivo de motivar e de garantir a atenção necessária do sujeito ao aprendizado, desenvolveu-se desenho experimental baseado nas relações entre morfologia e função do sistema nervoso central, classificando-se as ondas eletroencefalográficas em Alfa, Teta, Beta e Gama de acordo como as relações feitas entre cognição e motricidade (Fairchough et al., 2005; Gevins et al., 1979a, 1979b; Shaw, 1996; Basar-Eroglu et al., 1996; Slobounov, Chiang, 2002; Luft, Andrade, 2007; Bressler, 1990; Pfurtscheller et al., 1993; Schieber, Hibbard, 1993; Mackay, 1997; Popivanov et al., 1999; Babiloni et al., 2003; Kim et al., 2005) (quadro 1).

Tentou-se gerar sinais bio-elétricos corticais referentes às freqüências das ondas eletroencefalográficas supostamente relacionadas com etapas do processamento de informação (aprendizagem) sob o efeito de prática cognitivo-motora da tarefa (Leitura, Audição e Prática no violão), e compará-los com os sinais de vigília com relaxamento de pré-execução (Base). Durante 2 minutos iniciais, monitorou-se a situação dos violonistas com os

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olhos abertos com suposta inatividade, e sem atenção em pensamento específico, o que foi considerado como situação de base.

Classificação das Ondas Eletroencefalográficas em Bandas de Freqüências

Teta (4-7,5 Hz)

Vigília com estado de atenção forçada (concentração); resolução de problemas lógicos e processamento de memórias.

Alfa (8-13 Hz)

Vigília com relaxamento.

Beta (14-40 Hz)

Vigília com estado de atenção.

Gama (40-100 Hz)

Vigília com estado de programação motora; transmissão difusa de informações corticais antes de o evento motor acontecer.

Morfologia X Função

Eletrodos Regiões cerebrais e as respectivas áreas de topografia sensório-motora.

CZ, C3, C4

Frontal - Área Motora Primária - correspondência com as partes do corpo; ativada juntamente com Área Motora Suplementar (secundária) quando um movimento complexo seqüencial é planejado e executado. Parietal - Área Somestésica Primária - correspondência com as partes do corpo, é ativada sempre que algum receptor sensitivo ou sensorial específico for estimulado.

PZ, P3, P4 Parietal - Área Sensitiva Secundária.

T3, T4, T5, T6

Temporal e Parietal - Área Sensitiva Primária Área Auditiva Primária Área Sensitiva Secundária, Área Temporo-Parietal Terciária Límbica - Área Límbica Terciária.

Quadro 1 - Classificação teórica em bandas de atividade cerebral, localização dos eletrodos no escalpo e função.

A hipótese de que o protocolo proposto seria capaz de monitorar diferenças nos sinais de EEG, entre o recebimento da informação sobre o que o violonista deveria aprender – Leitura, Audição e Prática - (processamento cognitivo relacionado ao controle motor) e as alterações dentro das bandas de freqüências foi confirmada. Aumentos de freqüências em Alfa e Beta nos eletrodos posicionados sobre as áreas primárias C e P, geradoras da atenção necessária para aquisição cognitiva da tarefa e em Teta e Gama, na etapa de Prática, nos eletrodos posicionados nas áreas secundárias e terciárias (T), mostraram a demanda de atenção exigida para a consolidação de novos padrões motores juntamente com a evocação de memórias “dinâmicas” (Monteiro, 2002: 47).

Acreditou-se que o tempo total de experimento assim como os tempos destinados a cada etapa para monitoração, foi suficiente para comportar aquisição, consolidação de memória e capacidade de evocação do objeto de aprendizado, e que a quantidade de dados monitorados em tempo real pode representar um processo. A justificativa para este desenho se sustentou em evidências científicas de que quando um sujeito é exposto a uma tarefa específica, ele inicia um processo cognitivo de conhecimento de informações sensoriomotoras relacionadas às necessidades exigidas pela habilidade. Supõe-se que ele cria novas capacidades, desenvolve controle motor e aprende a habilidade. Os violonistas foram expostos à necessidade de processamento de informações de leitura e de audição, relativas ao conhecimento e reconhecimento de padrões gráficos e

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sonoros relacionados com a tarefa, ambos relacionados com a prática motora que possibilita obtenção conhecimentos e reconhecimentos de padrões de controle motor, neste caso. O último dia de aquisição de sinais para V2 deu-se quando o ele aprendeu a tarefa motora, no caso, tocou a seqüência de notas sem ler a partitura, baseando-se em sua memória cognitiva e motora para execução do som harmônico no violão. 2.2. Tarefa A tarefa cognitivo-motora proposta foi uma seqüência de notas musicais inéditas, desenvolvida para o experimento, disponibilizada aos sujeitos em notação e em áudio, com tempo de 20 segundos, considerada por especialista como sendo de alto grau de dificuldade, com acordes não convencionais, o que, supostamente, garantiria a motivação e atenção máxima dos violonistas. Os sujeitos receberam orientação para, primeiramente, ler a partitura em silêncio (5 minutos); num segundo momento, ouvir a gravação (5 minutos); e praticá-la no violão (15 minutos), enquanto foram monitorados 2 minutos de sinais.

Os critérios de construção da tarefa foram: compasso binário (2/4); duração de aproximadamente 20 segundos (semínima igual a 100); duas sessões de 8 compassos cada; apenas as figuras de semínima, colcheia, semicolcheia e quiálteras de colcheia, com ou sem ponto de aumento, para facilitar a compreensão do ritmo. Por causa da variedade de informações inéditas, foram utilizadas notas de maior duração como pontos de repouso. Para garantir que a padronização dos movimentos fosse evitada, utilizou-se variação rítmica, mudança da ordem de utilização dos dedos, alteração da relação dedo-corda e variação de quais dedos foram utilizadas simultaneamente. A estrutura foi disposta da seguinte maneira: 1ª parte (compassos 1-8): Apenas cordas soltas; deixar as cordas soando (sem necessidade

de apagadores); digitação de mão direita indicada integralmente; apenas um dedo de mão direita por nota; repetição da mesma figura rítmica três vezes seguidas (compassos 5-7) com variação da digitação; final com nota longa (compasso 7-8) para outorgar ao violonista tempo de preparação para a segunda parte;

2ª parte (compassos 9-16): Nenhuma corda solta; uso exclusivo da primeira posição (para evitar translados); execução non-legato; digitação de mão esquerda indicada integralmente; acidentes utilizam sustenidos, nunca bemóis, para facilitar leitura; movimentos tonais e acordes familiares foram evitados para assegurar a complexidade na movimentação dos dedos com distensão longitudinal no último compasso.

Considerou-se que o nível de dificuldade exigido pela tarefa poderia gerar um estado

de estresse e que, o próprio objeto de aprendizado, poderia exercer efeitos secundários sobre a cognição. Considerou-se que os procedimentos realizados no experimento, como os eletrodos, aderidos por touca e gel ao escalpo, conectados por fios ao PC, poderia produzir um efeito do estresse e produzir respostas de ansiedade, dentre elas a distração cognitiva, ou seja, amnésia, devido ao não registro de estímulos extrínsecos (Wolpe, 1969). Sabe-se que a ansiedade é uma condição que não predispõe ao aprendizado (Squire, 2004) e, por isso, optou-se por agregar métodos da Psicologia para monitorar variável tão significativa para a pesquisa utilizando-se a Escala de Unidades Subjetivas.

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Figura 2 - Partitura Musical (tarefa desconhecida desenvolvida para o experimento). 2.3. Escala de Unidades Subjetivas (SUDS)

A SUDS é um instrumento qualitativo criado e utilizado pelos profissionais da Psicologia para medir a magnitude da resposta de ansiedade do paciente frente a estímulos provocadores do medo, e assim graduando as situações de potencial provocador de estresse e proporcionando a evidência de um padrão para julgar a eficácia do treino em relaxamento proposto pelo psicólogo (Caballo, 1996). Com o mesmo objetivo geral, ele está sendo utilizado nesta pesquisa contextualizado à medição da magnitude da resposta de ansiedade do violonista ante o estímulo provocador de estresse (no caso, a tarefa motora que deverá aprender).

Seguindo o protocolo, no primeiro dia do experimento, o sujeito foi solicitado à apontar a ansiedade mais aterradora que haja experimentado em situações relacionadas à prática no violão ou que possa se imaginar experimentando. A esse acontecimento deu-se o número 100. Logo, pediu-se para que recordasse a experiência mais tranqüila e agradável que tenha desfrutado. A esse acontecimento deu-se o escore 0. Após determinar os dois pólos extremos da escala, o sujeito foi solicitado a descrever experiências que se colocassem na metade do caminho entre estes dois extremos de ansiedade e tranqüilidade. A esses acontecimentos deu-se o número 50, pedindo-se também descrições entre 0 e 50 e entre 50 e 100. Em seguida e nos outros dias do experimento, antes da exposição às etapas da tarefa, os violonistas preencheram a SUDS (ver item 2.1.).

2.4. Metodologia de aquisição, processamento e análise dos sinais de EEG Utilizou-se para aquisição e processamento dos sinais o software Labview 8.2 e, como modelo matemático de processamento, a Transformada Rápida de Fourier (FFT), além da impedância de 3Ω; taxa de amostragem: 1500 amostras/s (fsampling); velocidade de aquisição de 4.500 amostras por janela de 3 segundos; em PC off-line de mesa. Houve cronometragem para precisão entre comando verbal e início da monitoração das sessões. Monitorou-se 10 canais bilaterais de EEG cujos sinais classificados de acordo Teta, Alfa, Beta e Gama foram conseguidos utilizando-se filtros, após terem sido transformados por FFT que mostra dados de médias, picos de freqüências e medianas. Foram calculadas as medianas das freqüências (MFeeg) e médias aritméticas simples de ondas eletroencefalográficas classificadas entre bandas de atividade Alfa, Beta, Teta e Gama, em 3.000 e 60.000 milissegundos. O modelo estatístico utilizado foi ANOVA de 2 caminhos, Teste de Bonferroni e Teste T para amostras pareadas (p<0,05), e cálculos de médias aritméticas simples, utilizando-se Excell 2003 e SPSS 14.0.

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3. Resultados 3.1. Apresentação da Escala de Unidades Subjetivas (SUDS) No caso deste estudo, V1 e V2 calibraram a SUDS antes de iniciar e no término de cada sessão do experimento (quadro 2). SUDS V1 = 0, e SUDS V2 = 10. Os escores mostraram que a variável ansiedade, de acordo com a qualidade do fator do seu estresse, não estava presente e por isso isolou-a da discussão dos resultados. Ressalta-se que se pode interpretar este escore sugerindo que a motivação e atenção dos sujeitos estavam voltadas para alcançar êxito no cumprimento da tarefa motora, classificada, pelo primeiro, como mecânica, sem envolvimento emocional. Sugere-se que a tarefa, para esta amostra, foi entendida como um desafio de aprendizado e não como teste de desempenho, absolutamente de acordo com os objetivos da pesquisa. 3.2 Apresentação dos sinais de EEG

Apresentam-se os sinais captados pelo aparelho de EEG, classificados em sinais adquiridos antes e depois do tempo de prática da tarefa (treinamento). No caso de V1, de 15 minutos, e de V2 de 30 dias. Analisou-se os dados do de acordo com médias aritméticas simples calculadas em 60.000 ms. Comparou-se a qualidade dos sinais de base com as três etapas da tarefa. As observações mostraram o comportamento das freqüências das ondas eletroencefalográficas no tempo real de treinamento para memorização da tarefa (Bonini-Rocha et al., 2008a, 2008b). Os gráficos mostram 20 janelas de 3.000 ms, escolhidas com baseline de 1.500 fsampling. Nota-se no gráfico 1, que durante largo tempo de 39.000 ms a banda de freqüência Alfa comportou-se em freqüências maiores comparados com o estado de base (traçado em preto), da mesma forma em que Teta na etapa de audição (amarelo), confrontadas com a leitura (rosa). Nota-se que uma janela de 3.000 ms não representou o sinal em 60.000 ms. No gráfico 2, observa-se o que ocorre entre os segundos 10-20 e 30-40; no gráfico 3, predominantemente em relação a prática 1 (verde) e prática 4 (vermelho), no segundo 36; e no gráfico 4, comparando-se a 5ª janela com a 18ª especificamente com a etapa leitura (rosa). O quadro 3, apresenta os eletrodos e as respectivas bandas onde houve altas freqüências em relação a base.

Os dados referentes à V2, foram analisados por ANOVA 2 caminhos (Tempo X Etapas), segundo classificação em Bandas (Alfa, Beta, Teta e Gama) (p < 0,05). Quanto as medianas das freqüências de EEG (MFeeg, foram classificadas em bandas e médias dessas MFeeg. A tabela 1, apresenta os resultados e mostra o principal achado estatístico destes dados: que, independentemente de qual tenha sido a etapa da tarefa, de um modo geral, as MFeeg, se alteraram de formas diferentes no tempo, principalmente em freqüências Teta e Gama, sendo o efeito estatístico das etapas sobre Teta predominante. A análise multivariada garantiu que a MFeeg sofre efeito do tempo de acordo com a classificação das bandas, e para testar este efeito (das bandas), realizou-se análise de covariância. Observou-se que existe uma interação entre a banda e o tempo (p < 0,05), podendo-se supor que uma banda, quando escolhida como variável, interfere e altera os resultados no tempo. O teste post hoc de Bonferroni (tabela 2), mostrou índices de significância que apontam para o destaque que tem a etapa de audição em relação a Teta e Alfa, reforçada pelo efeito do tempo nas etapas de audição e prática também. A tabela 2 mostra maiores freqüências para manter a vigília sobre a audição antes do treinamento, assim como para atentar-se aos efeitos da harmonia sonora enquanto prática.

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Quadro 2 - Calibração da SUDS realizada pelos violonistas 1 e 2, antes, durante e após cada sessão de confrontamento da tarefa cognitivo-motora com o desenho experimental.

Gráfico 1 – Traçados de EEG V1, eletrodo P4, banda de freqüência Alfa (de 8 a 13 Hz), 60 s de tempo (y = 20 janelas representativas de 3 s cada), etapas da tarefa (rosa = leitura, amarelo = audição, verde = prática 1 (1ª execução), vermelho = prática 4 (última execução) e base (preto).

Escore Viol. Calibração

1 "Tocando violão em casa, praticando técnica - gestos mecânicos - , que não seja peça de repertório, que não mexa com o emocional." 0

2 "Tocando no quarto sozinho."

1 "Tocando uma peça que não exija interpretação." 0 e 50

2 "Tocar em casa, uma peça de demonstração para alguém."

1 "Tocando para pessoas desconhecidas, descompromissadamente." 50

2 "Tocando na aula para os colegas."

1 "Sendo avaliado - sub ir na escala significa aumentar do nível de exigência da avaliação." 50 e 100

2 "Tocar numa aula para professor e colegas."

1 "Tocando em público, sendo avaliado por exigências a serem cumpridas, quando limites criteriosos são impostos à tarefa." 100

2 “Tocand o num recital.”

8

8,5

9

9,5

10

10,5

11

11,5

12

12,5

13

0 3 6 9 12 15 18 21 24 27 30 33 36 39 42 45 48 51 54 57 60 63

basep4a

leit

ouv

p1

p4

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Gráfico 2 - Traçados de EEG V1, eletrodo P4, banda de freqüência Teta (de 4 a 7,5 Hz) 60 s de tempo (y = 20 janelas representativas de 3 s cada), etapas da tarefa (rosa = leitura, amarelo = audição, verde = prática 1 (1ª execução), vermelho = prática 4 (última execução) e base (preto). Gráfico 3 – Traçados de EEG V1, eletrodo P4, banda de freqüência Beta (de 14 a 40 Hz) 60 s de tempo (y = 20 janelas representativas de 3 s cada), etapas da tarefa (rosa = leitura, amarelo = audição, verde = prática 1 (1ª execução), vermelho = prática (última execução) e base (preto). Gráfico 4 – Traçados de EEG V1, eletrodo P4, banda de freqüência Gama (de 40 a 100 Hz), 60 s de tempo(y = 20 janelas representativas de 3 s cada), etapas da tarefa (rosa = leitura, amarelo = audição, verde = prática 1 (1ª execução no violão), vermelho = prática 4 (última execução no violão) e base (preto).

4

4,5

5

5,5

6

6,5

7

7,5

8

0 10 20 30 40 50 60

baset4t

leit

ouv

p1

p4

14

19

24

29

34

39

3 6 9 12 15 18 21 24 27 30 33 36 39 42 45 48 51 54 57 60

basep3be

leit

ouv

p1

p4

40

50

60

70

80

90

100

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

basec4ga leit ouv p1 p4

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Quadro 3 – Eletrodos e bandas de atividade de EEG e as respectivas médias das medianas das freqüências captadas pelo EEG (mMFeeg) em Hz, 60.000 ms de tempo, que tiveram aumento durante exposição de V2 à tarefa cognitivo-motora nas etapas de leitura, audição e prática, confrontadas com os sinais de base (pré-exposição) antes e depois da prática de uma vez ao dia por um mês. Em vermelho os valores que aumentaram antes e depois do treinamento. Audi, audição; Leitu., leitura; Práti., prática.

TETA ALFA BETA GAMA Efeito do Tempo (0.184) (0.706) (0.112) (0.447) Efeito das Etapas (0.0001) (0.098) (0.094) (0.002)

Interação (Tempo X Etapa) (0.007) (0.002) (0.762) (0.455)

Tabela 1 - Comportamento das bandas de freqüência das ondas eletroencefalográficas e os efeitos no primeiro e no quinto dias nas etapas (leitura, ouvida, prática) em relação ao estado de pré-exposição (base), assim como a interação Tempo X Etapas. Medias das medianas de freqüência (mMFeeg) em Hz; (p<0,05).

Band Elet Etap mMFeeg antes

mMFeeg depois

Band Eletr Etap mMFeeg antes

mMFeeg depois

Alfa CZ Base 9,13 9,13 Alfa Cz Audi. 9,73 9,00 C3 9,03 9,03 C3 9,32 8,70 C4 9,11 8,70 C4 9,11 8,60 P3 9,25 9,25 P3 9,68 9,00 P4 9,27 9,00 P4 9,43 8,60 T3 9,08 9,08 T3 10,58 10,58 Cz Leitu. 9,00 9,00 Cz Práti. 10,45 10,45 C3 9,09 9,00 C3 9,32 9,00 C4 9,13 8,30 C4 10,26 10,30 P3 8,84 8,70 P3 9,27 9,00 P4 10,31 10,60 P4 10,52 10,45 T3 9,89 10,00 T3 9,92 10,00

Gama P3 Base 51,75 46,00 Beta P3 Base 16,77 16,00 Leitu. 57,07 47,00 T3 23,17 22,30 Audi. 56,45 45,00 P3 Leitu. 17,44 16,50 Práti. 52,65 50,00 T3 23,52 24,00

Teta T4 Base 4,78 4,30 P3 Audi. 19,12 17,00 Leitu. 4,89 4,65 T3 24,52 24,50 Audi. 5,45 5,30 P3 Práti. 18,50 16,20 Práti. 4,92 4,70 T3 23,69 21,00

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Band Etapas Antes Depois Band Etapas Antes Depois

Teta

base X leitura base X audição base X prática leitura X audição leitura X prática ouvida X audição

(0,0920) (0,0030) (1,0000) (0,0001) (0,8820) (0,0001)

(0,292) (0,015) (1,000) (1,000) (0,059) (0,002)

Alfa

base X leitura base X audição base X prática leitura X audição leitura X prática audição X prática

(1,000) (0,009) (1,000) (0,005) (1,000) (0,002)

(1,000) (1,000) (0,291) (1,000) (0,144) (0,100)

Beta

base X leitura base X audição base X prática leitura X audição leitura X prática audição X prática

(1,000) (1,000) (1,000) (0,883) (1,000) (0,339)

(1,000) (1,000) (0,324) (1,000) (1,000) (1,000)

Gama

base X leitura base X audição base X prática leitura X audição leitura X prática audição X prática

(1,00) (1,00) (1,00) (1,00) (1,00) (1,00)

(1,000) (1,000) (0,531) (1,000) (0,154) (0,777)

Tabela 2 - Teste de Bonferroni das médias das medianas de freqüências de ondas eletroencefalográficas em Hz, relacionando-se o efeito do tempo: Etapas (base - pré-execução, leitura, ouvida e prática) X Bandas (Teta, Alfa, Beta, Gama) X Tempo (antes = primeiro dia/depois = quinto dia). Itálico para os dados de significância estatística (p > 0.05). 4. Discussão

Pôde-se supor que Teta, Alfa, Beta e Gama sejam intimamente afetadas pelas diferentes etapas da tarefa, conforme está reforçado na análise estatística. Os dados bandas Teta (4 a 7,5 Hz), Alfa (8 a 13 Hz), Beta (14 a 40 Hz) e Gama (40 a 100 Hz) confirmaram a literatura quanto serem relacionadas às mudanças na atividade cognitiva, em geral, no aprendizado de tarefas cognitivas (Fairchough et al., 2005; Gevins, et al., 1979a, 1997b; Shaw, 1996; Basar-Eroglu et al., 1996; Andrew e Pfurtscheller, 1993; Slobounov et al., 2002), assim como no aprendizado de tarefas motoras (Fairchough et al., 2005; Luft, Andrade, 2007; Bressler, 1990; Pfurtscheller et al., 1993; Schieber e Hibbard, 1993; MacKay, 1997; Popivanov et al., 1999; Babiloni, et al., 2003; Kim et al., 2005). Observou-se que existe uma interação entre a banda e o tempo (p < 0,05), podendo-se supor que uma banda, quando escolhida como variável, interfere e altera os resultados no tempo.

O efeito estatístico das etapas sobre Teta foi predominante, ressaltando-se para o fato de que esta banda está descrita como forte indicadora de estados de concentração, operações lógicas e memórias evocadas, característica de regiões confluentes corticais, no caso desta pesquisa, a área de confluência têmporo-parieto-occipital, que provavelmente tenham sido monitoradas pelos eletrodos T5 e T6. Do ponto de vista funcional, estas capacidades do sistema nervoso parecem ser fundamentais para o desenvolvimento das habilidades de um violonista.

A exclusiva relação entre audição e todas as outras etapas no tempo antes, na faixa de freqüência Teta, permite que se reconheça a tarefa como musical e que se sugira sobre uma forte relação entre a aquisição de informação musical e evocação de memórias já consolidadas. Isto é reforçado pelo fato de que ouvida e prática apresentarem forte relação também após o aprendizado da tarefa, ou seja, talvez o sujeito tenha desempenhado a tarefa sem ler a partitura utilizando como base eletrofisiológica predominantemente informações contidas em memórias sonoras de harmonia, e não em representações gráficas. Cabe aqui, no geral, supor a importância da ouvida em situações de ensino e aprendizagem de música (Jourdain, 1998; Vasconcelos, 2002; Naveda, 2002; Krüger, 2003; Del Bem, 2003).

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Assume-se neste artigo que o processo de aprendizagem de uma tarefa motora seja simultaneamente cognitivo, desde a aquisição da determinada informação, objeto de aprendizado, como na sua consolidação e evocação quando necessário for. Memória e atenção são responsáveis por perceber, decidir, organizar e acionar movimentos (Sage, 1984; Brook, 1986b; Kandel et al., 1997a; Schmidt e Lee, 1999a; Kelso, 1999; Ganong, 2003; Squire e Kandel, 2003; Purves et al., 2005). O comportamento das freqüências no tempo está descrito como sendo fonte de interação neural entre as áreas do cérebro e a medula espinhal, por feixes descendentes até motoneurônios, ativadores dos padrões de contrações de grupos musculares. Esta hierarquia se dá a priori do comportamento motor porque representam capacidades de processamento geral de informação no sistema nervoso, processos sensoriais e cognitivos que antecipam o controle motor. Por exemplo, dentre as funções descritas para Gama está a de construir bloqueios para evitar a perda de atenção seletiva necessária para o controle dos movimentos pelo planejamento cognitivo (Bressler, 1990; Macay, 1997) e de estar relacionada com evocação de memórias relacionadas às representações da motricidade (Hirai et al., 1999; Basar-Eroglu et al., 1996; Cantero et al., 2004). Estes dados corroboram com o que é descrito na literatura sobre o comportamento de bandas eletroencefalográficas na aprendizagem cognitiva e motora (Fairchough et al., 2005; Luft, Andrade, 2007; Bressler, 1990; Pfurtscheller et al., 1993; Schieber, Hibbard, 1993; MacKay, 1997; Popivanov et al., 1999; Babiloni, et al., 2003). De forma simplificada, Alfa está descrita como a atividade representativa de estados cognitivos relacionados a estados de vigília; e Gama, presentes em condições de planejamento de movimentos. Além disso, Teta e Gama são relacionadas com evocação de memórias motoras. Por isso, é de se esperar que sejam faixas de freqüências muito influenciadas pelas etapas da tarefa, tendo em vista a especificidade das diferenças entre ler, ouvir, tocar violão e imaginar-se tocando, do ponto de vista de processamento de informações, planejamento e programação de comportamentos. Conforme mostram as conhecidas pesquisas nas áreas das ciências cognitivas e comportamentais, as informações específicas de qualquer tarefa provavelmente se unam às memórias, à emoção, e à sensibilidade, e gerem a programação e ativação muscular antecipatória ao desempenho. Recente estudo sugere que essa natureza antecipatória das representações mentais seja um modelo interno, em pequena escala representativo da realidade externa, armazenado durante a aprendizagem dada pela experiência, que será lançado a priori pelo sistema nervoso frente às metas de motivações em comportamentos no futuro (Pezzulo, 2008). 5. Considerações finais Considera-se que a seqüência de notas realmente tenha exposto os violonistas a um esforço cognitivo nas áreas monitoradas pelos eletrodos, que causou alterações nos sinais bioelétricos, neurofisiológicos, e que esta reação foi monitorada e medida por EEG. O desenvolvimento do desenho experimental e do objeto de aprendizado proposto pela pesquisa motivou os violonistas a aprenderem uma tarefa que, conforme os valores apresentados quanto às médias das medianas de freqüências eletroencefalográficas captadas por EEG, porque mostrou relações com o aumento de atenção, o processamento e a evocação de memórias, gerando aumento na demanda cortical seletivo. A ampliação de supostas representações mentais sobre o desenvolvimento do seu controle motor foi demonstrado no desempenho da meta da tarefa cognitivo-motora proposta e alcançada. O objetivo de testar o desenho experimental pelos sinais bioelétricos registrados durante o treinamento cognitivo-

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motor foi alcançado e mostrou as alterações nas freqüências eletroencefalográficas relacionadas com as etapas de aprendizado no tempo de prática. Especificadamente para este estudo, a análise estatística teve como finalidade a geração de resultados coerentes com as hipóteses conceituais. O EEG captou ondas no tempo real de exposição à tarefa pelo violonista em relação às funções das regiões onde estavam supostamente colocados os eletrodos no escalpo. Os resultados mostraram que a ativação do sistema musculoesquelético, expressa pelo desempenho do músico na qualidade do que foi tocado quanto à velocidade e incidência de erros, gerou modificações nas dinâmicas das freqüências difusamente pelos 10 eletrodos.

A perspectiva de desenvolver outras pesquisas, não só com violonistas, mas atingindo também outros perfis cognitivos, sociais, culturais e de saúde, com grupos maiores, em diferentes práticas de ação, por longos períodos, com períodos de retenção, com automatização do comportamento motor, tende a reforçar a discussão qualitativa até hoje levantada por métodos e técnicas de observação empírica em educação e aprendizagem do comportamento humano. Agradecimentos

Elnora de Paiva Ayres (Serviço de Eletroencefalografia do Hospital da Criança Santo Antonio de Porto Alegre); Liziane Bizarro (Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Pedro Sperb, Lucas Vasconcelos, Thiago Piccolo e Lúcio Chachamovich (Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Giovani Carrá (Universidade de Caxias do Sul); Aos orientadores Alberto Antônio Rasia Filho (Fundação Federal Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre) e Ricardo Demétrio de Souza Petersen (Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano). Ao colega Leonardo P. Tartaruga (Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano). À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 6. Referências bibliográficas Andrew, C. e Pfurtscheller. G. (1997). On the existence of different alpha band rhythms in the hand area of man. Neurosci. Letters, 222, 103-106. Babiloni, C.; Babiloni, F.; Carducci, F.; Cincotti, F.; Del Percio, C.; Hallet, M.; Kelso, S.; Moretti, D.; Liepert, J. e Rossini, P. (2003). Shall I move my right or my left hand? An EEG study in frequency and time domains. J. Psychophysiol., 17, 69-86. Basar-Eroglu, C.; Strüber, D.; Schurmann, M; Stadler, M. e Basar E. (1996). Gamma-band responses in the brain: a short review of phychophysiological correlates and functional significance. Intl. J. Psychophysiol., 24, 101-112. Bonini-Rocha, A.C. (2008). Evidências Cognitivas do Desenvolvimento da Coordenação e do Controle Motor no Processo de Aprendizagem: Pesquisa Experimental interdisciplinar em Educação, Saúde e Neurociências. 150 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Bonini-Rocha, A.C.; Timm, M.I.; Chiaramonte M.; Zaro, M. e Petersen R.D. (2008). Pesquisa Educacional no Brasil: interdisciplinaridade como forma de agregar valor científico e experimental. Revista Virtual e Anais, INTERTECH/2008, International Conference on Engineering and Technology Education (pp 718-721). São Paulo. Bressler, S.L. (1990). The gamma wave: a cortical information carrier? TINS, 13, 161-162. Brooks, V. (1986a). Controlled Variables. Em: The Neural Basis of Motor Control. (pp. 129-147). New York: Oxford University Press.

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- A.C.B. Rocha é Graduada em Fisioterapia, Especialista em Administração e Planejamento para Docentes, Especialista em Fisioterapia Neurofuncional, Mestre em Educação e Doutoranda (PPGCMH, UFRGS). Atua como Professora da Especialização em Dança (PUC-RS). Endereço para correspondência: Avenida Getulio Vargas, 670/08, Menino Deus, Porto Alegre, RS 90150-002. Telefones para contato: +55-051-32331709 ou +55-051-92090057. E-mail para correspondência: [email protected].

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Analogias em livros didáticos de química: um estudo das obras aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático Para o

Ensino Médio 2007

Analogies in chemistry textbooks: a study about the books approved by the National Plan of Textbooks for High School Students 2007

Wilmo Ernesto Francisco Junior

Departamento de Química, Universidade Federal de Rondônia (UNIR),

Porto Velho, Rondônia, Brasil

Resumo As analogias estão inseridas em diversas situações do dia-a-dia e configuram-se numa tentativa de explicar algo para outra pessoa, ou até mesmo de entender uma nova idéia associada às informações já conhecidas. A utilização das analogias é comum em livros de Ciências, sobretudo devido à existência de inúmeros conceitos abstratos. Além disso, com as novas políticas públicas federais, a influência desse material deverá ser maior, pois está prevista a distribuição de livros aos alunos de escolas públicas. Considerando tais fatores, o presente artigo apresenta um estudo sobre as analogias encontradas nos livros de Química aprovados pelo Plano Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio – PNLEM 2007. Após a leitura integral das obras, identificou-se 154 analogias, as quais foram divididas conforme sistema de categorias adaptado de outros estudos. Também foram discutidos apontamentos sobre o uso adequado das analogias em textos e em sala de aula, bem como sobre o papel dos professores no uso desse recurso. Os resultados indicaram que a maior parte das analogias encontradas nos livros de Química aprovados pelo PNLEM 2007 não favorece a aprendizagem. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 121-143. Palavras-chave: analogia; livro didático; PNLEM; química; educação. Abstract The analogies appear on diverse situations in daily lives and frequently configure an attempt to explain or understand the unknown by mean of the known. Analogies are commonly used by science textbooks, mainly to teach abstract concepts. Besides, with the new federal public policies, the influence of this material should be higher due its distribution to high school students. Taking this into account, this paper presents an analysis of the analogies presented by chemistry textbooks approved by Plano Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio – PNLEM 2007 (National Plan of Textbooks for High School Students). After textbooks´ reading, 154 analogies were identified. These analogies were classified according to proposes adapted from studies presents in the literature. This work also discusses appointments concerned to the adequate use of analogies in the texts and in the classroom, as well as aspects related to the teachers´ role. The results indicated that the most of the analogies is unfavorable to the learning. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 121-143.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 121-143 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 06/01/2009 | Aceito em 24/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Artigo Científico

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Keywords: analogies; textbooks; PNLEM; chemistry; education.

1. Introdução

É indubitável a importância e a utilização das analogias no decorrer do desenvolvimento humano, seja tanto na compreensão quanto na explicação de fatos e de fenômenos. As analogias estão inseridas em diversas situações do dia-a-dia e, geralmente, configuram-se numa comparação entre dois eventos: um que se pretende explicar e, portanto, desconhecido, e o já conhecido e que servirá de referência. Ao mesmo tempo, a história mostra que as analogias são consoantes à Ciência e ao desenvolvimento de inúmeras teorias. O raciocínio analógico está no bojo de renomadas teorias científicas tais quais as apresentadas por Maxwell, Rutherford, Einstein dentre outros. Além disso, Clement (1998) aponta que os estudantes tendem ao uso de analogias frente a problemas pouco familiares.

Todavia, não só as Ciências Naturais, mas outras bases de pensamento sejam elas filosóficas, sociológicas, lingüísticas ou artísticas foram e ainda são fortemente influenciadas pelo raciocínio analógico. Por isso mesmo, é um tanto arriscado precisar o início da utilização das analogias pelos seres humanos. Para Curtis e Reigeluth (1984), a origem do pensamento analógico remonta, possivelmente, ao aparecimento da linguagem. Entretanto, torna-se quase impossível dissociar o pensamento humano do uso de raciocínios analógicos para a compreensão de algo. Gentner (1983) aponta para essa relação praticamente inata da inteligência humana, na qual as associações analógicas estão arraigadas desde muito cedo. O raciocínio analógico é um importante componente da cognição humana (Dagher, 1995). Nos primeiros meses de vida, já se pode constatar a capacidade dos bebês em associar ritmos a estímulos visuais. A comparação entre novos e antigos estímulos propicia ao ser humano uma quase imediata identificação de novas informações. A concatenação de uma nova experiência à outra já existente pode resultar efeitos tanto cognitivos quanto afetivos (Pádua, 2003).

No que se refere ao ensino de Ciências, trabalhos com interesses em analogias surgem nos anos 60 (Oliva et al., 2001). Tal interesse se justificou tanto do ponto de vista psicológico bem como da educação científica. Segundo os mesmos autores, foi no início dos anos 80, porém, que a investigação do uso de analogias ganhou propulsão. Apesar do número de pesquisas relacionadas ao tema, grande parte dos professores continua a utilizar as analogias sem se preocupar com um delineamento de metas ou com os possíveis problemas de tal recurso, como apontam diversos trabalhos (Treagust et al., 1992; Ferraz e Terrazzan, 2002; Bozzeli e Nardi, 2006a, 2006b; Oliva et al., 2007). O uso de analogias requer cuidado, uma vez que seu emprego de forma simplificada e espontânea pode guiar o pensamento para uma visão concreta e imediata que impede a abstração necessária à formação do conhecimento científico.

Todavia, antes de prosseguir a discussão sobre os fatores que podem influenciar a aprendizagem quando do uso de analogias, é interessante delimitar o conceito de analogias aqui utilizado, visto a certa abrangência de significado que figura sobre o tema.

1.1. Demarcando o território das analogias

Como visto, há muito tempo as analogias vêm sendo utilizadas na construção de novas idéias devido a sua capacidade em trazer a tona figuras mentais que auxiliam a transferência de conhecimentos de um domínio conhecido para outro ainda desconhecido. Diversos autores utilizam diferentes denominações quanto aos conceitos comparados em uma analogia; porém, a discordância semântica destes termos não indica que eles sejam percebidos diferentemente por esses autores. Neste trabalho será adotada a denominação de conceito alvo para aquele

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conceito que se quer aprender (ensinar), e de conceito análogo para aquele que servirá de subsídio no alcance ao primeiro.

Outra questão relevante concerne à acepção do termo analogia. Embora as definições sejam parecidas, perduram ainda, controvérsias no tocante à abrangência do conceito analogia. Uma importante definição é a apresentada por Duit (1991), numa das primeiras e mais citadas revisões sobre o tema. Duit (1991: 651) considera a analogia uma “relação entre partes comuns das estruturas de dois domínios”, onde “compara explicitamente as estruturas de dois domínios”. Ainda para Duit (1991), a conexão entre o análogo e o alvo é mediada pelo o que o autor denomina modelo de analogia. Este estabelece a identidade estrutural (características similares) entre os conceitos análogo e alvo.

Similarmente, Harrison e Treagust (1993) definem a analogia como uma comparação baseada em similaridades entre estruturas de dois domínios diferentes, um conhecido e outro desconhecido. Em outro trabalho de revisão sobre o tema e de grande impacto na área de educação em Ciências, Dagher (1995: 295) argumenta que as analogias “referem-se a instâncias nas quais alguns domínios menos familiares se fazem compreensíveis pelo aparecimento de relações de similaridades com um domínio mais familiar”.

Todavia, ainda segundo Dagher1 (1994) citado por Mol (1999: 4), as analogias configuram um “amplo significado de uma família de semelhanças, incluindo metáforas, modelos e comparações simples”. Nessa visão, o termo semelhança é muito amplo, abarcando conceitos como os de metáforas, modelos e comparações, os quais às vezes são utilizados como sinônimos de analogia, idéia não compartilhada por todos.

Embora não haja tanta dissonância quanto ao significado e a função que uma analogia adquire, a abrangência que diferentes autores atribuem ao termo é um ponto importante a ser analisado, pois o que é classificado como analogia por um determinado autor pode não ser por outro. 1.2. Buscando uma definição

Não obstante às abrangências descritas, se reconhece em todas as definições a idéia de comparação entre o conhecido e o desconhecido ou pouco conhecido. As analogias sempre envolvem o estabelecimento de comparações. Comparar para acentuar semelhanças, comparar para pensar sobre as semelhanças (pontos em comum), comparar para concluir a respeito do novo.

Como propõe Mol (1999), num estudo que visou distinguir conceitualmente tais idéias, entende-se que tanto o conceito de analogia, como o de modelo ou o de metáforas estão subordinados a idéia geral de comparação. De acordo com Mol (1999: 58): “Comparação é o ato de confrontar dois conceitos com o objetivo de elucidar um conceito em estudo (alvo) através de características semelhantes a outro conceito” (análogo). As comparações podem ser divididas ainda quanto às relações expressas entre os conceitos. Assim, pode haver dois tipos de comparações: as comparações implícitas e as explícitas. Comparações implícitas são aquelas nas quais “as relações entre os conceitos não são claras” (Mol, 1999: 58). Esta classe de comparações inclui as metáforas.

Duit (1991: 651) distingue bem o conceito de metáforas e analogias. De acordo com este autor “analogias e metáforas expressam comparações e realçam similaridades, mas elas fazem isso de formas diferentes”. Enquanto as analogias explicitam as características comuns entre os dois domínios, “uma metáfora compara implicitamente, realçando características ou qualidades que não coincidem nos dois domínios” (Duit, 1991: 651). Literalmente, uma metáfora é uma comparação falsa.

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Por outro lado, as comparações explícitas diferem das implícitas por apresentarem relações bem mais evidenciadas entre os conceitos comparados. Ao se dizer que a Terra é como uma bola percebe-se que a relação entre os conceitos é a forma geométrica. Isto é, ambas possuem formato esférico. Conseqüentemente, as comparações explícitas “são um tipo de comparação em que as relações entre os conceitos são anunciadas” (Mol, 1999: 63).

Segundo Mol (1999: 67) “analogias são comparações explícitas feitas entre conceitos através da descrição de suas similaridades”. E, indo mais além, a descrição dessas similaridades pode ser feita com base em imagens e modelos. Conseqüentemente, um modelo pode servir também como uma representação física de uma analogia (que é um tipo de comparação). Vale assinalar que os modelos são aqui tratados, simplificadamente, como representações cujas relações analógicas estão no cerne de seu desenvolvimento. Para maiores detalhes sobre as variáveis quanto ao conceito de modelo podem ser vistos os trabalhos de Krapas e colaboradores (1997), Galogovsky e Adúriz-Bravo (2001) e Justi (2006).

Dado que as analogias não engendram um fim em si mesmas, a comparação explícita estabelecida em uma analogia será compreendida no presente contexto, como o primeiro passo de um processo cognitivo pelo qual, a partir da identificação das semelhanças entre dois conceitos, é possível fazer inferências sobre o conceito menos conhecido e predizer os aspectos não correspondentes entre ambos. Tal processo deve deflagrar não só a compreensão do conceito menos conhecido, mas também competências que permitam aplicar as idéias desenvolvidas em outras situações nas quais o conhecimento sempre evoluirá tornando-se mais completo. Em outras palavras, a analogia é uma forma de raciocínio, a partir do qual se pode conhecer um fenômeno desconhecido mediante o estabelecimento de correspondências com o fenômeno já conhecido. Esta concepção aproxima-se do que alguns autores vêm recentemente chamando de modelização analógica (Galagovsky e Adúriz-Bravo, 2001; Adúriz-Bravo et al., 2005).

O que foi descrito acima sublinhou a analogia como um processo psicológico ou um ato de cognição humana no entendimento de um conceito por meio de outro. Mas, ao mesmo tempo, sabe-se que tanto as analogias quanto os modelos são parte integrantes da comunicação humana, isto é, são dispositivos da linguagem. Ambos podem funcionar para comunicar algo e são empregados com o intuito de facilitar tal comunicação.

Portanto, pode-se ainda distinguir a analogia enquanto um instrumento para, deliberadamente, facilitar o entendimento de algo a alguém. É óbvio que para esse alguém compreender o objeto de ensino, ele deverá processar a analogia cognitivamente. Mas, a analogia para aquele que a utiliza como instrumento de ensino já foi processada cognitivamente e, torna-se, dessa maneira, uma forma de comunicação.

Essa distinção da analogia entre ato cognitivo e comunicativo raramente é feita. Porém, parece fundamental distinguir a analogia enquanto construção cognitiva pessoal e enquanto forma de comunicação, embora, na sala de aula, isso esteja altamente imbricado.

1.3. Analogias como recurso didático: potencialidades e limitações

O uso de analogias está relacionado a diversas competências cognitivas tais como percepção, imaginação, criatividade, memória, resolução de problemas além do desenvolvimento conceitual. Por isso, as analogias foram e são instrumentos extremamente importantes na cognição humana, marcando notadamente a comunicação e a aprendizagem em diversas áreas do conhecimento. Entretanto, elas funcionam bem quando as semelhanças predominam, e tendem a falhar quando as diferenças começam a prevalecer. Nesse sentido, muitos trabalhos (Oliva et al., 2001; Oliva, 2004; Duarte, 2005) mapearam as vantagens e

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desvantagens, as potencialidades e os problemas bem como o sucesso obtido com a aplicação de analogias, destacando-se as revisões realizadas por Duit (1991) e Dagher (1995).

Duit (1991) apresenta as seguintes vantagens quanto ao uso de analogias no ensino:

• Abrem outras perspectivas de ensino; • Facilitam a compreensão e a interpretação de conceitos abstratos por similaridades

com conceitos concretos; • Podem motivar os estudantes; • Podem auxiliar o professor a desvelar conceitos prévios dos estudantes sobre áreas já

estudadas. Em contrapartida, o mesmo autor considera o uso das analogias como uma “faca de

dois gumes”, destacando as seguintes desvantagens:

• Atribuição por parte dos alunos de características do análogo que não são compartilhadas pelo conceito alvo;

• Transferência de concepções prévias sobre o conceito análogo para o conceito alvo; • Compreensão equivocada do conceito alvo devido à sobreposição de similaridades

superficiais em relação aos aspectos estruturais. Clement (1993), estudando a utilização de analogias em situações de ensino e

aprendizagem, verificou que nem sempre elas produzem o resultado esperado. Para o autor, uma dessas razões é porque as analogias compreendidas como óbvias pelo professor não são vistas da mesma forma pelos estudantes. Outros trabalhos também revelam resultados pouco efetivos no uso de analogias em sala de aula (Friedel et al., 1990; Venville et al., 1994; Farman, 1996).

Os resultados insatisfatórios podem ser engendrados pelo uso espontâneo, geralmente inadequado, das analogias. Thiele e Treagust (1994a) observaram 43 aulas de quatro professores de Química, reportando um total de 45 analogias. Ferraz e Terrazzan (2002), analisando aulas de Biologia, assinalaram a ocorrência de 108 analogias num total de 162 aulas. Ambos os estudos relatam que a maioria das analogias é empregada de forma espontânea, ou seja, não há uma sistematização no uso de tal recurso. Assim, ao invés de facilitar a aprendizagem podem levar os alunos a desenvolverem conceitos equivocados cientificamente, os quais podem criar obstáculos à aprendizagem. Ao mesmo tempo, existem trabalhos que acenam positivamente quando do emprego das analogias de forma sistematizada (Harrison e Treagust, 2000; Chiu e Lin, 2005; Harrison e De Jong, 2005; Francisco Junior, 2008).

Na suplantação dos desafios em relação ao uso das analogias, é primordial conhecer os aspectos positivos e negativos relacionados aos seus usos, bem como os critérios a serem sopesados na seleção de analogias adequadas. Isso se torna importante, uma vez que as analogias são recursos muito presentes em livros didáticos e, muitas vezes, situações potencialmente interessantes sob o ponto de vista de aprendizagem não são aproveitadas, tanto pelo desconhecimento do professor quanto pela má utilização por parte do autor do livro. Do mesmo modo, verificam-se nos livros analogias que podem acarretar problemas de aprendizagem e que, amiúde, não são percebidas como tais.

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1.4. Analogias em livros didáticos

Sabe-se que os livros didáticos são importantes mecanismos de homogeneização de conceitos, conteúdos e abordagens de ensino e, em algumas ocasiões podem ser a única alternativa para a qual o professor recorre. Diante dessas tessituras, fomentadas também pelas novas políticas públicas para os livros didáticos, é importante conhecer como as analogias são tratadas em livros de Química. Com as novas políticas públicas federais destinadas ao Ensino Médio, sobretudo, o Plano Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio (PNLEM), a influência desse material será ainda maior, uma vez que está prevista a distribuição de Livros Didáticos aos alunos de escolas públicas. Dessa forma, o presente trabalho apresenta uma discussão sobre as analogias presentes nas obras de Químicas aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio (PNLEM 2007).

Trabalhos que discutem analogias em livros didáticos (Newton, 2003; Cunha, 2006; Raviolo e Garritz, 2008) sublinham que na maioria dos casos elas contribuem muito pouco para uma aprendizagem efetiva. Ademais, não há recomendações quanto ao uso das analogias propostas nos textos, fato que contribui ainda mais para aplicações de forma espontânea. O leitor geralmente desconhece os fundamentos das analogias e pode não identificar as limitações. Por isso, é interessante que os autores tenham uma estratégia claramente definida (conselhos, orientações, guias etc) para apresentar as analogias por escrito, auxiliando os leitores (alunos e professores) a identificarem e a aplicarem a analogia adequadamente (Oliva et al., 2001). Mas, infelizmente, são pouquíssimas as ocasiões nas quais isso ocorre.

Três estudos merecem destaque no tocante à análise de analogias em livros de Química. O primeiro deles é o trabalho de Curtis e Reigeluth (1984), o precursor nessa área de investigação. Esse estudo analisou livros de química americanos e serve de referência por ter estabelecido importantes critérios de análise. Outros estudos de sobremaneira importante são os apresentados por Thiele e Treagust (1994b, 1995), cuja análise se deu em livros australianos. Esses autores fizeram modificações nas categorias propostas inicialmente por Curtis e Reigeluth (1984), o que possibilita análises mais aprofundadas.

Ao encontro dessa linha de investigação, porém analisando especificamente o periódico Journal of Chemical Education, vale citar a tese de doutorado de Gerson Mol (1999), na qual é conduzida a descrição e categorização de 191 analogias publicadas no referido periódico de 1932 a janeiro de 1999.

No que tange à análise das analogias em livros de Química para o ensino médio brasileiro, o trabalho de Monteiro e Justi (2000) é um dos pioneiros, sendo uma referência nacional e até mesmo internacional para o tema. Monteiro e Justi (2000) reportam a análise de 11 coleções didáticas, apresentando tanto aspectos quantitativos como qualitativos das analogias. Por tais motivos, esse trabalho será tomado como referência básica durante a discussão dos resultados. 2. Metodologia

O primeiro momento deste trabalho consistiu na leitura integral das obras aprovadas pelo PNLEM para a identificação das analogias presentes. Para facilitar a discussão, os livros receberam códigos de identificação, os quais são apresentados pela tabela 1.

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Livro Título Autor(es) Editora Ano Edição

A Química para o ensino

médio Eduardo Mortimer e Andréa

Machado Scipione 2005 1ª

B Universo da Química José Carlos Bianchi, Carlos H.

Albrecht e Daltamir Justino Maia

FTD 2005 1ª

C Química na abordagem

do cotidiano Francisco Miragaia Peruzzo e

Eduardo Leite do Canto Moderna 2003 3ª

D Química e sociedade Gerson Mol, Wildson Santos

(coord.) Nova

Geração 2005 1ª

E Química Total Olímpio S. Nóbrega, Eduardo

R. Silva e Ruth H. Silva Ática 2007 1ª

F Química Ricardo Feltre Moderna 2004 6ª Tabela 1 - Livros analisados e os respectivos títulos, autores, editoras, ano de publicação (impressão) do exemplar analisado e edição.

Foram identificadas como analogias partes contidas no texto que estivessem de acordo com a definição apresentada anteriormente (uma comparação qual se pode conhecer um fenômeno desconhecido mediante o estabelecimento de correspondências com o fenômeno já conhecido), ou quando se verificou algum tipo de identificação da analogia. Expressões do tipo “semelhante a...”, “isso é como...”, “fazendo uma analogia...”, “analogamente...” foram caracterizadas como indicadoras da presença de analogia. Num segundo momento, as analogias identificadas foram classificadas de acordo com um sistema composto por dez categorias, apresentados abaixo:

1. Quantidade e freqüência das analogias; 2. Conteúdo do conceito alvo; 3. Tipo de relação analógica entre análogo e alvo; 4. Formato da apresentação; 5. O nível de abstração dos conceitos análogo e alvo; 6. A posição da analogia em relação ao alvo; 7. O nível de enriquecimento da analogia; 8. O nível de mapeamento feito pelo autor; 9. Presença de orientações pré -tópico; 10. Apresentação e discussão de limitações

Tal sistema de categorias, discutido a seguir, foi adaptado da proposta apresentada por Thiele e Treagust (1994b).

O primeiro item discute a distribuição das analogias em cada obra. Foi conduzida a quantificação das analogias em cada livro, calculada a freqüência de analogias por capítulo e por obra analisada. Na segunda categoria foram estabelecidos os tópicos e conceitos químicos considerados como alvo na analogia. O terceiro critério analisou o tipo de relação analógica, ou seja, se o análogo e o alvo compartilham atributos estruturais, funcionais ou ambos. A relação é dita estrutural quando o análogo e o alvo “poderiam possuir a mesma aparência física geral ou ser similarmente construídos” (Curtis e Reigeluth, 1984: 103). Por outro lado, uma relação funcional é aquela em que “a função ou comportamento do análogo é atribuída ao alvo” (Thiele e Treagust, 1994b: 67). Uma relação estrutural/funcional é aquela que

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“combina relações estruturais e funcionais” (Curtis e Reigeluth, 1984: 103). Foi considerada ainda uma quarta divisão (do tipo fórmula-funcionais), proposta por Mol (1999), na qual as analogias apresentam aspectos matemáticos em comum.

Na quarta categoria verificou-se a forma de apresentação da analogia no texto. A analogia foi considerada ilustrativo-verbal quando algum tipo ilustração, além do texto, representava o análogo. Analogias descritas unicamente pelo texto foram consideradas verbais. A categoria subseqüente diferencia o nível de abstração. As analogias dividem-se basicamente em concretas-concretas, concretas-abstratas e abstratas-abstratas. As analogias concretas-concretas são caracterizadas por ambos os conceitos, análogo e alvo, serem concretos. Por sua vez, as analogias concretas-abstratas possuem o conceito análogo concreto e o conceito alvo abstrato. Conseqüentemente, analogias abstratas-abstratas são aquelas nas quais ambos os conceitos comparados são abstratos. O sexto critério de análise foi responsável em verificar a posição da analogia, isto é, se a analogia foi apresentada antes, após, durante o conceito alvo, ou ainda a margem do texto. Há alguns casos nos quais a analogia é apresentada no texto principal (antes, durante ou após o alvo) e ainda a margem.

A sétima categoria diz respeito ao nível de enriquecimento, isto é, a extensão das semelhanças apresentadas. Basicamente, existem três níveis de enriquecimento. Um primeiro no qual as analogias possuem uma pequena semelhança, portanto são ditas analogias simples; um segundo em que são compartilhados alguns atributos entre as analogias, neste caso denominadas analogias enriquecidas; e um terceiro nível no qual utiliza-se diferentes análogos ou análogos modificados para descrever o conceito alvo, classificada como analogia estendida. As analogias foram classificadas como simples quando um único atributo é compartilhado com o conceito alvo. Analogias que compartilhassem mais de um atributo com o conceito alvo foram classificadas como enriquecidas. Quando mais de uma analogia foi empregada para a discussão de um mesmo conceito alvo, ou, quando a analogia sofreu uma modificação para compartilhar um novo atributo, ela foi classificada como estendida. Essa categorização difere da apresentada por Curtis e Reigeluth (1984), também utilizada em outros estudos (Monteiro e Justi, 2000). Nesses trabalhos, uma analogia foi classificada como simples quando o conceito análogo era conectado ao alvo por meio de expressões do tipo ‘é como’, ‘pode ser comparado a’, ‘é semelhante a’. Já para analogias enriquecidas devia haver explicitação dos atributos compartilhados.

O nível de mapeamento (categoria 8) buscou analisar se o(s) autor(es) discutem os conceitos correspondentes entre o alvo e o análogo e, além disso, até que ponto tal correspondência é debatida. Também foi verificado se o(s) autor(es) descreve(m) o conceito análogo como forma de familiarizar o leitor ao conceito. A nona categoria analisa a existência de explicações sobre a presença da analogia e/ou se os autores incluem alguma estratégia de identificação para indicar que o texto a seguir contém uma analogia. Expressões do tipo “fazendo uma analogia...”, “fazendo uma comparação...”, “assim como no exemplo...”, “analogamente...”, “como se fosse...” foram consideradas indicativas da presença de orientações pré-tópico.

A décima e última categoria verificou a apresentação de limitações da analogia ou alerta sobre a possibilidade de ocorrência de entendimentos não adequados, bem como a discussão de tais limitações. Para isso, houve uma divisão em sub-categorias: não reconhece limitações, reconhece limitações e discute as limitações. Embora em alguns casos os autores reconheçam as limitações das analogias, empregando expressões do tipo “guardadas as devidas proporções”, “fazendo uma comparação grosseira...”, as mesmas não são apresentadas e/ou discutidas.

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3. Resultados e discussão 3.1. Quantidade e freqüências das analogias

A tabela 2 ilustra o total de analogias encontradas para cada obra analisada. É possível depreender que há uma distribuição de certa forma homogênea quanto à presença das analogias nos livros. Em relação à média de analogias por capítulo, esta fica entre 0,36 e 1,44. Exceto pelo livro E (que apresenta um valor inferior aos demais) e pelo livro F (volumes 1 e 2), a média de analogias por capítulo é similar. É possível incorrer também, que os livros C e F apresentam uma quantidade de analogias superior aos demais. Essas duas obras são responsáveis por 61,7 % (95 incidências) do total de analogias encontradas. O livro F, por exemplo, excetuando o volume três, possui uma média de analogias superior a duas por capítulo, a mais elevada de todas as obras analisadas.

Dois fatores explicam esse resultado. Primeiro, os livros C e F são os únicos divididos em três volumes e, portanto, possuem quantitativamente mais conteúdo do que as demais obras. O segundo fator parece ser a própria importância que os autores atribuem a esse recurso didático.

C F Livros A B

v. 1 v. 2 v. 3 Total D E

v. 1 v. 2 v. 3 Total

Quantidade de analogias

13 14 16 12 8 36 21 12 30 22 6 58

Freqüência de analogias por capítulo

0,81 0,94 1,07 1,09 0,73 0,96 0,81 0,36 2,14 2,20 0,35 1,41

Tabela 2 - Quantidade de analogias e freqüência de analogias por capítulo para as obras analisadas.

Monteiro e Justi (2000) reportam a presença de 126 analogias, média de 11,5 analogias por coleção didática. Curtis e Reigeluth (1984) e Thiele e Treagust (1994b) retratam médias de 13 e 9,3 analogias respectivamente, também para livros de Química. Terrazzan e colaboradores (2005), analisando quatro obras de Biologia, Física e Química encontraram 414, 71 e 64 incidências respectivamente. Excetuando os resultados obtidos para os livros de Biologia, todos os valores são significativamente inferiores aos apresentados aqui, cuja média é de 25,7 analogias por coleção, sendo o total de analogias igual a 154. No caso do estudo de Terrazzan e colaboradores (2005), a única obra em comum é o livro F. Todavia, trata-se de edições diferentes. Por sua vez, Monteiro e Justi (2000) não analisaram o livro F, responsável pela maior parte das analogias. Além disso, sete das onze obras analisadas por Monteiro e Justi (2000) apresentam quantidade de analogias inferior ou igual a sete, fato que justifica a média inferior obtida por esses autores. Apenas uma das coleções analisadas (livro C) é comum neste e no estudo de Monteiro e Justi (2000), porém, são edições diferentes da mesma obra. 3.2. Conteúdo do conceito alvo

A tabela 3 apresenta as analogias distribuídas de acordo com os conceitos químicos para os quais foram empregadas. A maior parte se refere à estrutura atômica (16,9%), seguida de cinética química e estequiometria. Resultados similares são apresentados por Monteiro e

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Justi (2000). Possivelmente, isso está associado ao hábito dos autores em empregar analogias clássicas para determinados conteúdos, tais quais o sistema solar para o átomo de Rutherford e o pudim de passas para o átomo de Thomson. Embora a natureza abstrata desses conceitos até justifique o uso dessas analogias, atualmente, o advento da tecnologia possibilita o uso de outros recursos os quais podem prover o entendimento dessas idéias sem a necessidade de apresentar analogias. Os próprios livros recorrem, por exemplo, às imagens representativas do átomo Rutherford. O recurso às imagens seria suficiente para engendrar as idéias necessárias a compreensão do modelo atômico de Rutherford e de Thomson, justificando a supressão da analogia com o sistema solar e com o pudim de passas. Entretanto, parece que o uso de analogias clássicas está a tal ponto disseminado, que os autores e, muitas vezes os professores, não prescindem de seu uso.

Livros Tópicos

A B C D E F Total %

Estrutura atômica 4 - 5 4 3 10 26 16,9 Cinética 1 1 4 2 2 8 18 11,7 Geometria e estrutura molecular - 4 4 - 2 3 13 8,4 Estequiometria 1 1 3 3 - 4 12 7,8 Termoquímica 1 2 2 1 - 5 11 7,1 Substâncias: composição e propriedades - - 2 1 1 4 8 5,2 Quantidade de matéria 1 - 3 2 - 1 7 4,5 Elementos e propriedades periódicas - - - 3 - 4 7 4,5 Equilíbrio - 1 1 - 1 3 6 3,9 Eletroquímica - 1 2 1 - 2 6 3,9 Gases - - 2 1 - 2 5 3,2 História e filosofia da ciência - - 1 1 3 - 5 3,2 Transformações químicas 1 - - 1 - 3 5 3,2 Isomeria 1 1 1 - - 1 4 2,6 Ligações químicas 1 - 2 - - 1 4 2,6 Bioquímica 1 - 1 1 - 1 4 2,6 Propriedades coligativas - - - - - 3 3 2,0 Polímeros - 1 - - - 2 3 2,0 Cadeias carbônicas 1 1 - - - 1 3 2,0 Soluções - - 2 - - - 2 1,3 Radioatividade - 1 1 - - - 2 1,3

Tabela 3 - Quantidade e freqüência de analogias por tópico. 3.3. Relação analógica

Em termos da relação analógica, foram encontradas 76 analogias (49,4%) do tipo funcional, 55 (35,7%) estrutural e apenas 18 (11,7%) estrutural-funcional. Resultados semelhantes são apresentados por Monteiro e Justi (2000), que reportam a presença de 58% (73 no total) de analogias funcionais, 38% (48) de analogias estruturais e 4% (5) de analogias estruturais-funcionais nos livros pesquisados. Por sua vez, Curtis e Reigeluth (1984) encontraram 88% de relações analógicas funcionais, 10% estruturais e 2% estruturais-funcionais. Além de analogias funcionais, estruturais e estruturais-funcionais, foram encontradas 5 analogias (3,2%) do tipo fórmula-funcional. Tais analogias configuram-se por apresentarem aspectos matemáticos em comum, como a comparação que é feita pelo Livro F (v. 2, p. 30) entre a equação dos gases ideais e a equação da pressão osmótica.

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Considerando as coleções separadamente, os livros A e E são os únicos a encerrarem mais analogias do tipo estrutural do que funcional. Em todas as demais obras prevalecem analogias do tipo funcional. A principal razão para isso é a natureza dos conceitos químicos para os quais são empregados analogias. Tópicos relacionados à estrutura atômica e geometria molecular, por exemplo, tendem a conter analogias do tipo estrutural.

Tipo de Relação Analógica Forma de Apresentação

Nível de Abstração

estrutural funcional estrutural-funcional verbal ilustrativa-

-verbal concreta- abstrata

abstrata-abstrata

concreta-concreta

Livro A 7 4 2 6 7 10 3 0 Livro B 5 7 2 8 6 13 0 1 Livro C 12 18 2 18 18 24 7 5 Livro D 6 11 4 9 12 16 2 3 Livro E 7 3 2 8 4 11 0 1 Livro F 18 33 6 29 29 44 10 4 Total 55 76 18 78 76 118 22 14

Tabela 4 - Quantidade de analogias segundo o tipo de relação analógica, o formato de apresentação e o nível de abstração.

Quanto mais atributos puderem ser estabelecidos entre a analogia e o alvo, maior a

similaridade e menor, portanto, a possibilidade de transposição de idéias inválidas. Logo, seria recomendável que análogo e alvo pudessem compartilhar tanto atributos funcionais quanto atributos estruturais, fato incomum nos resultados apresentados. Entretanto, não são todas as analogias que permitem isso e, analogias somente do tipo estrutural ou somente do tipo funcional podem atingir os objetivos delineados, assim como analogias do tipo estrutural-funcional podem trazer sérios prejuízos à aprendizagem, como é o caso da analogia chave-fechadura que será discutida posteriormente.

Um exemplo de analogia funcional e potencialmente poderosa é a analogia entre uma “guerra de mamonas” e o equilíbrio químico apresentada pelo livro E (p. 468) e reproduzida no quadro 1.

Tal analogia é potencialmente poderosa, uma vez que permite explicar vários fatores das reações químicas em equilíbrio (o caráter dinâmico, a igualdade das velocidades das reações direta e inversa, bem como a diferença de concentração entre reagentes e produtos). Isso, desde que sejam discutidos os atributos correspondentes e as limitações da analogia, fato que não ocorre por parte dos autores do livro, impelindo ao professor a função de fazer tais discussões. Porém, caso o professor não tenha formação que o possibilite empregar criticamente as analogias, esse recurso diminui sua potencialidade didática. Nesse caso, especificamente, a analogia poderia ser mais bem explorada, elevando seu potencial em termos de aprendizagem, caso fossem apresentadas algumas orientações.

3.4. Formato de apresentação

Das 126 analogias encontradas por Monteiro e Justi, 54% foram classificadas como ilustrativo-verbal, 44% como verbal e 2% como ilustrativa. Curtis e Reigeluth (1984) assinalam para 29% de analogias ilustrativo-verbais e 71% de analogias verbais, resultados similares aos que apresentaram Thiele e Treagust (1994b) (53% de analogias ilustrativo-verbais e 47% de analogias verbais). Conforme apresentado pela Tabela 4, nas obras aprovadas pelo PNLEM 2007 os resultados não diferem substancialmente das análises acima mencionadas. Verifica-se um equilíbrio muito grande entre analogias do tipo verbal (50,6%) e

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ilustrativo-verbal (49,4%). Caso as coleções sejam comparadas, o equilíbrio de certa forma prevalece. Apenas os livros D e E apresentam respectivamente um predomínio de analogias ilustrativo-verbais (60 % contra 40 % de analogias verbais) e verbais (77,7% contra 33,3% de analogias ilustrativo-verbais).

Quadro 1 - Analogia entre uma brincadeira de “guerra de mamonas” e equilíbrio químico (livro E: 468).

Representações visuais são importantes na compreensão da analogia, pois fundamentam a formação dos modelos mentais a partir da percepção e da imaginação (Reiner; Gilbert, 2000; Justi, 2006). Portanto, apresentar, quando possível, imagens pelas quais o conceito em estudo possa ser representado, discutido e debatido, é uma forma de garantir maior compreensão dos estudantes. Todavia, o uso de ilustrações está associado ao tipo de relação analógica. O objetivo de se empregar as ilustrações é possibilitar ao estudante a formulação de idéias abstratas. Esse pode ser um dos fatores que levam os autores a optar por analogias ilustrativo-verbais. Isso não implica, todavia, que a simples visualização de uma estrutura pode levar a formulação de um conceito. Ao contrário, todo conceito ao ser formulado, tanto na história da Ciência como na estrutura cognitiva do aluno, passa por uma série de modificações e aperfeiçoamentos. Além disso, deve-se ter cuidado quanto às impressões imediatas que impedem o raciocínio abstrato e fomentam a formulação de obstáculos à aprendizagem.

Ao passo que a iniciativa de apresentar ilustrações pode favorecer a aprendizagem, propiciando a maior apreensão do análogo, ela também pode causar sérios problemas. A maior evocação das imagens pode solidificar atributos que não se correspondem, mais do que

A história do velho sábio

Em um bairro da periferia, vivia com seu avô um garoto chamado João. Na casa ao lado, moravam dois meninos que eram seus amigos favoritos. As casas eram separadas por uma cerca que, muitas vezes, era utilizada nas brincadeiras, como na “guerra de mamona”. O avô de João apreciava as brincadeiras, mas tanto ele quanto a mãe dos amigos de seu neto não gostavam de ver o quintal forrado de mamonas após as “terríveis batalhas”, o que causava alguns atritos com as crianças. Um belo dia, após uma tremenda guerra, o avô propôs um jogo. — Vamos realizar um jogo diferente? Aposto que vocês três não são capazes de jogar todas as mamonas para o meu quintal de modo a não deixar nem uma delas do lado de vocês. — Podemos juntar todas elas antes de começar a brincadeira? — perguntou um dos meninos. — Sim! — respondeu o avô. — Quando tiverem terminado, é só avisar. Os três amigos juntaram todas as mamonas que estavam espalhadas no quintal vizinho e chamaram o avô. — Já estamos prontos. Qual será o castigo para o time perdedor? — Quem perder vai juntar todas as mamonas dos dois quintais e ensacar, não deixando nada espalhado, e deverá fazer isso em todas as outras “batalhas”.

Rapidamente os três amigos começaram a lançar as mamonas para o quintal em que estava o velho senhor, que não parecia muito preocupado com a quantidade de mamonas que caía em seu quintal, nem com a rapidez com que eram lançadas.

Calmamente, começou a devolver as mamonas e, passados alguns minutos, embora os amigos se esforçassem ao máximo, a velocidade com que lançavam as mamonas foi diminuindo, pois o seu número já era pequeno e estavam espalhadas por todo o quintal. Ao contrário, a velocidade com que o avô devolvia as mamonas aumentava cada vez mais, pois o número de mamonas do seu lado era muito grande, facilitando o seu trabalho. Após certo tempo, a velocidade com que os garotos lançavam as mamonas era a mesma com que o avô devolvia e, assim, o número de mamonas nos dois quintais não mais se alterou, pois, quando uma mamona caía de um dos lados da cerca, outra ia parar do outro lado.

A brincadeira se prolongou por mais alguns instantes até que os amigos perceberam que não conseguiriam deixar o seu quintal livre das mamonas e, assim, desistiram, perdendo a aposta.

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se a analogia fosse apenas verbal. Um exemplo é o caso da analogia chave-fechadura, apresentada na figura 1.

Figura 1 - Analogia chave-fechadura apresentada pelo livro D (p. 552).

Utilizando a mesma analogia, o livro C descreve que a enzima possui “um formato tal

que permite à(s) substância(s) reagente(s), denominada(s) de substrato(s), se encaixar(em) perfeitamente nela, da mesma maneira como apenas uma chave com o formato certo encaixa em uma determinada fechadura e é capaz de abri-la” (livro C, p. 208, grifo nosso).

Essa analogia chave-fechadura é clássica em livros didáticos de Química, sobretudo os de nível médio (Francisco Junior, 2007). Devido a isso, livros de Bioquímica destinados ao ensino superior, como Nelson e Cox (2002), assinalam para o grave problema conceitual da analogia chave-fechadura. Enzima e substrato não possuem “encaixe perfeito”. Se assim fosse, o complexo enzima-substrato possuiria maior estabilidade do que os reagentes e os produtos da reação, desfavorecendo termodinamicamente a catálise enzimática que, por sua vez, não se processaria. Essa analogia tem papel apenas funcional, ou seja, enzimas específicas catalisam as reações de substratos específicos, assim como chaves específicas abrem determinadas fechaduras. Todavia, ela é empregada como uma analogia estrutural em detrimento ao caráter funcional. Nesse caso, a imagem apresentada fortalece o conceito equivocado de encaixe perfeito.

Diante de tais questões, Monteiro e Justi (2000) analisaram a presença de ilustrações quanto a sua necessidade ou não. Esses autores consideraram as ilustrações desnecessárias quando:

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(i) não eram empregadas como suporte para a discussão de idéias a elas relacionadas; (ii) não representavam o domínio análogo; (iii) não acrescentavam nenhuma informação nova ao texto.

Assumindo uma perspectiva problematizadora para as analogias (Francisco Junior, 2008), as ilustrações não são categorizadas como desnecessárias, uma vez que seu uso pode prover bons resultados, independentemente de sua adequação ao conceito em estudo. Exemplificando, após abordar o processo de catálise enzimática, o professor (ou o autor) pode apresentar a ilustração do mecanismo chave-fechadura com a seguinte questão: Por que a analogia chave-fechadura, sob o ponto de vista energético, não é adequada para explicar a catálise enzimática? Tal questão pode ser discutida em termos da tendência dos sistemas sempre se dirigirem para estados de menor energia, justamente o que aconteceria se a catálise enzimática fosse processada segundo essa analogia. Daí que o uso das analogias numa perspectiva problematizadora configura-se como uma nova forma de se pensar esse recurso (Francisco Junior, 2008).

Vale ressaltar, no entanto, que a categorização de Monteiro e Justi (2000) refere-se ao emprego dado pelos autores dos livros às ilustrações. Dessa forma, caso as mesmas sejam prejudiciais sob o ponto de vista didático, sua função como promotora da aprendizagem dentro da obra é totalmente questionável, por conseguinte, desnecessária segundo Monteiro e Justi (2000). 3.5. Nível de abstração

Um dos principais aspectos a serem considerados na seleção e no uso de uma analogia

é a familiarização dos alunos com a mesma; em outras palavras, os alunos devem compreender o análogo para compreender o conceito alvo. O conceito análogo deve, sempre, ser mais acessível do que o conceito alvo, isto é, deve ter relação direta, mais compreensível e mais cotidiana com os alunos. Na medida em que uma analogia demasiadamente abstrata torna-se pouco familiar aos estudantes, esta pode não contribuir para a transposição das idéias similares de um fenômeno ao outro.

Por isso, sempre que possível, a analogia deve ser concreta e pessoalmente significativa, o que a torna potencialmente mais familiar aos estudantes. Os resultados mostram que isso parece ser levado em conta para a proposição de analogias nos livros didáticos. Verificou-se que a grande maioria (117 - 76,0 %) das analogias encontradas na obras analisadas é do tipo concreta-abstrata. Analisando-se as coleções separadamente, evidencia-se também o predomínio de analogias do tipo concreta-abstrata sobre as demais. Analogias abstratas-abstratas e concretas-concretas correspondem respectivamente a 14,9% e 9,1% do total das analogias encontradas. Monteiro e Justi (2000) relatam que das 126 analogias encontradas, 93% foram classificadas como concreta-abstrata, 5% como abstrata-abstrata 2% como concreta-concreta.

Todavia, apenas o fato do conceito análogo ser concreto não o torna mais familiar ao estudante. O livro C (volume 2), por exemplo, apresenta uma analogia entre um restaurante tipo “bandejão” e reações não elementares.

“A velocidade da reação pode ser medida em mols por minuto e a do bandejão em pessoas por minuto. Suponha que cada um dos colocadores de alimento tenha habilidade para servir vinte pessoas por minuto. É óbvio que a fila do bandejão caminhará com velocidade vinte pessoas por minuto (...). Imagine, agora, que um dos colocadores seja mais lento que os demais e consiga servir apenas cinco pessoas por

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minuto. A fila, nesse caso, andará com velocidade cinco pessoas por minuto, pois não adianta os outros colocadores serem potencialmente rápidos se um deles “segura” toda a fila.” (livro C, v. 2: 193)

A analogia apresentada acima, embora categorizada como concreta-abstrata,

possivelmente é pouco familiar à maioria dos estudantes de ensino médio, na medida em que poucos deles conhecem o funcionamento de um bandejão. Como transpor, então, o conhecimento do análogo para o alvo se o primeiro é desconhecido? Tais cuidados devem ser considerados pelo autor/professor ao empregar analogias desse tipo, pois, o estudante/leitor por si, dificilmente será capaz de efetuar a transposição analógica. Ao mesmo tempo, analogias do tipo abstratas-abstratas podem engendrar efeitos positivos, como no exemplo da equação dos gases ideais e da equação da pressão osmótica citado anteriormente. Caso o estudante tenha a compreensão do conceito análogo, no caso, o significado e a relação entre cada um dos termos da equação dos gases ideais, a compreensão da equação da pressão osmótica pode ser facilitada. 3.6. Posição das analogias

Monteiro e Justi (2000) concordam com Curtis e Reigeluth (1984) quanto ao fato de que as analogias posicionadas antes ou durante a apresentação do alvo podem ser mais eficazes. Nesses casos, as analogias permitem estabelecer comparações mais diretas, pois, ao ser apresentado ao conceito alvo, o aluno pode, simultaneamente, estabelecer as relações necessárias (Monteiro e Justi, 2000). Por outro lado, há de se considerar que uma analogia pode ser empregada como forma de avaliação do conhecimento dos alunos (Francisco Junior, 2008). Após discutir um dado tema, o professor/autor pode apresentar uma analogia para que os estudantes façam as correspondências entre análogo e alvo. Quanto mais atributos similares e não similares os estudantes conseguirem identificar por si, maior foi a compreensão sobre aquele determinado assunto (Francisco Junior, 2008). Essa é uma função das analogias que não pode ser ignorada, mas que poucos autores de livros e poucos pesquisadores consideram. Por isso, como bem alertado por Monteiro e Justi (2000), a posição das analogias depende dos objetivos de quem a propõe, assim como da natureza dos conceitos alvo e análogo. Dessa forma, uma analogia pode encerrar tanto a função de facilitadora quanto de avaliadora da aprendizagem.

O que se observa pela tabela 5 é um predomínio das analogias antes e durante a apresentação do conceito alvo. Nesse caso, os autores parecem entender que a analogia funciona justamente despertando a atenção do estudante, para que as correspondências sejam devidamente estabelecidas, como apontam Monteiro e Justi (2000) e Curtis e Reigeluth (1984). Por outro lado, analisando as obras separadamente, observa-se que não há uma concordância sobre a posição das analogias. O livro A, por exemplo, apresenta a maior parte das analogias durante o alvo, enquanto nos livros B e D predominam as analogias dispostas à margem. Já os livros C e F tendem a apresentar as analogias antes do conceito alvo. Uma característica peculiar, sobretudo do livro D, é a apresentação da analogia durante e a margem do texto didático, o que explica a somatória superior ao total de analogias. Isso funciona como uma espécie de reforço da idéia apresentada. Assumindo que a aprendizagem é um processo gradual e incessante, essa estratégia é importante para o fortalecimento dos conceitos, uma vez que a aprendizagem é tão mais efetiva quanto maior for o contato com o objeto de estudo.

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Posição Nível de Enriquecimento

antes durante após à margem simples enriquecida estendida Livro A 0 11 2 0 9 4 0 Livro B 3 4 1 6 8 4 2 Livro C 19 10 4 3 26 4 6 Livro D 7 9 2 10 10 9 2 Livro E 1 3 5 3 4 6 2 Livro F 25 17 12 4 28 22 8 Total 55 54 26 26 85 49 20

Tabela 5 - Analogias de acordo com a posição em relação ao alvo e o nível de enriquecimento. 3.7. Nível de enriquecimento Como pode ser visto na Tabela 5, a maioria das analogias (85 – 55,2%) foi classificada como simples. Analogias do tipo enriquecidas e estendidas correspondem a 49 (31,8%) e 20 (13,0%) incidências respectivamente. Analogias simples são mais propensas a ocasionar problemas de aprendizagem, visto que os estudantes podem encontrar dificuldades para identificá-las e conseqüentemente não a aceitarem. Isso ocorre devido à baixa similaridade e, consequentemente, às várias limitações que as analogias simples apresentam. Além disso, a não discussão da analogia impele ao professor e/ou estudante a responsabilidade em estabelecer não só as similaridades, mas também as limitações da analogia. Isso pode resultar, além da não identificação das similaridades, o que torna a analogia inútil sob o ponto de vista de facilitar da aprendizagem, na transposição de comparações inválidas que por sua vez podem criar obstáculos de aprendizagem. Esse é o caso da analogia que compara a energia necessária para uma colisão efetiva com uma martelada para quebrar um copo (apresentada pelo livro E). A similaridade dessa analogia é demasiadamente superficial, uma vez que a única correspondência estabelecida é a necessidade de uma dada energia para que o processo ocorra. A orientação geométrica das colisões, por exemplo, não é abarcada por essa analogia. Isso pode conduzir ao leitor a idéia errônea de que qualquer colisão com energia suficiente resulta em formação de produtos. Ademais, uma séria limitação desconsiderada concerne ao próprio princípio de cada processo. A quebra de um copo de vidro é um processo essencialmente físico, diferentemente das reações químicas.

Por isso, recomenda-se o uso de analogias acompanhadas da identificação dos atributos compartilhados entre os conceitos alvo e análogo. Este é um cuidado fundamental que deve ser tomado por professores e autores de livros. A figura 2 ilustra um caso de analogia enriquecida, na qual mais de um atributo é compartilhado entre análogo e alvo, ao mesmo tempo em que são mapeados e discutidos tais atributos. Esse cuidado auxilia a transposição analógica entre os conceitos. Dessa forma, uma analogia simples, na qual um único atributo é compartilhado entre alvo e análogo, pode promover a aprendizagem, desde que sejam tomados os devidos cuidados em relação à identificação e ao mapeamento das similaridades e das limitações entre o alvo e o análogo.

Quando mais de um atributo de um análogo é empregado na discussão de mais de um conceito alvo ou dois ou mais análogos são utilizados para ensinar um mesmo conceito alvo, a analogia pode ser classificada com ampliada ou estendida, atingindo, assim, o mais alto nível de enriquecimento. Contudo, um alto nível de enriquecimento não significa, necessariamente, uma analogia adequada. Em alguns casos, devido ao uso de muitos análogos na tentativa de explicar um único conceito alvo, as comparações podem ser confusas para os estudantes, o que os levaria a não estabelecer as correspondências adequadamente.

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Figura 2 - Analogia do tipo enriquecida apresentada pelo livro F (p. 103) para as energias liberadas por uma queda d´água e por uma reação exotérmica. São estabelecidas as correspondências entre o análogo e o alvo. Também é feita a orientação da presença da analogia.

Deve-se procurar evitar, também, o uso de analogias as quais o estudante disponha de

concepções alternativas ou atitudes afetivas desfavoráveis referentes ao conceito análogo. Tal cuidado almeja evitar a transferência de concepções equivocadas ou a criação de obstáculos de aprendizagem. No livro D é apresentada uma analogia que compara detetives durante a investigação criminal com químicos durante a investigação das propriedades dos materiais. Por um lado, essa analogia compartilha questões como a busca por evidências que expliquem algum fato. Mas, por outro lado, dificilmente os estudantes conhecem as funções de um detetive criminalista e, muitas vezes, as idéias trazidas pelos estudantes estão infundidas pelo senso comum, devido aos filmes e seriados de televisão, nem sempre correspondentes às atividades reais de uma investigação criminal. Logo, tal analogia pode fomentar a transposição de concepções prévias não compartilhadas entre o análogo e o alvo. 3.8. Nível de mapeamento Nessa categoria, procurou-se identificar em quais situações os autores descreveram o análogo, fizeram a correspondência dos atributos comparados, bem como discutiram tais correspondências. No caso da descrição do análogo, em 97 (63%) casos houve uma explicação de seu funcionamento/estrutura. Todavia, a descrição do análogo não garante que o leitor atribua as correspondências corretamente. Logo, é papel do autor abarcar essa discussão. Porém, das 154 analogias, esse cuidado foi tomado em 73 (47,4 %) ocasiões (tabela 6). Ainda assim, estabelecer a correspondência entre os itens comparados não garante sua compreensão. É preciso que o leitor/estudante entenda a razão pela qual os conceitos são

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similares. Em outras palavras, é premente que os autores não somente façam as correspondências corretas, mas, acima de tudo, explicitem os fundamentos e motivos que levam dois conceitos a serem comparados. Todavia, tal preocupação foi observada somente em 24 % (37 casos) das analogias encontradas. Isto é, menos da metade das analogias têm as similaridades apresentadas e, menos de ¼ possui explicação dessas similaridades. Esse é um equívoco muitas vezes cometido por professores e autores de livros, pois, analogias que parecem óbvias para eles podem não ser para os leitores e estudantes. O insucesso quando do emprego das analogias está, muitas vezes, associado a não compreensão do análogo. Por mais óbvia que uma analogia possa parecer, é desejável que esta não seja destituída do mapeamento de similaridades.

Mapeamento das

Similaridades Orientações Pré-tópico

Limitações

sim não sim não reconhece não reconhece discute Livro A 8 5 2 11 0 13 0 Livro B 5 9 1 13 1 13 1 Livro C 17 19 16 20 0 36 0 Livro D 14 7 6 15 5 16 2 Livro E 9 3 2 10 1 11 1 Livro F 20 38 14 44 3 55 0 Total 73 81 41 113 10 144 4

Tabela 6 - Classificação das analogias conforme a presença de mapeamento das similaridades, de orientações pré-tópicos e de limitações. 3.9. Orientações pré-tópico

A apresentação de orientações acerca da presença de uma analogia pode ser um indicativo ou alerta para o leitor dos cuidados a serem levados em consideração. Isso porque, em toda analogia deve-se ter em mente que há atributos correspondentes bem como atributos não correspondentes. De tal forma, caso o leitor esteja familiarizado com esse recurso didático, a orientação pré-tópico funciona como um alerta das vantagens e desvantagens da estratégia adotada naquele trecho da obra. Somente 26,6 % das analogias encontradas estão acompanhadas de algum tipo de identificação das mesmas.

Em relação a essa categoria, Monteiro e Justi (2000) e Curtis e Reigeluth (1984) fazem uma interpretação um pouco diferente daquela aqui apresentada. Esses autores também analisam nessa categoria, a descrição do análogo feita pelos autores. Nesse sentido, Monteiro e Justi (2000) relatam que 10% das analogias presentes nos livros continham uma explicação do análogo, 21% apresentavam somente a identificação da estratégia, enquanto 53% tanto descreviam o análogo quanto identificavam a estratégia. Por sua vez, 16% das analogias não explicavam o análogo e nem identificavam o uso da analogia. Curtis e Reigeluth (1984) classificaram apenas 4% das analogias como apresentando orientações pré-tópicos, enquanto 36% não apresentaram uma explicação do análogo e nem foram identificadas.

No caso do presente trabalho, há a compreensão de que não basta o autor descrever o análogo caso as similaridades não sejam apresentadas e discutidas. Indubitavelmente, descrever o conceito análogo pode contribuir para a familiarização do mesmo, porém, a descrição do conceito análogo não garante que o leitor o compreenda, caso não se discuta as similaridades e limitações. Dessa forma, preferiu-se integrar a descrição do análogo à categoria “nível de mapeamento”, como já apresentado

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3.10. Limitações

Uma questão preocupante e que predomina em todos os livros é a quase ausência de discussões que abarquem as limitações das analogias, como reportam também outros estudos (Thiele e Treagust, 1994b; Monteiro e Justi, 2000). Na grande maioria dos casos, esse é um fator ignorado. Em apenas 10 analogias (6,50%) há reconhecimento das limitações e, destas 10 analogias, em apenas 4 casos (2,60%) ocorrem discussões sobre as limitações. Isso pode contribuir para a transposição de características inválidas do conceito análogo ao conceito alvo. O livro D, por exemplo, apresenta a comum analogia do átomo de Thomson com um panettone, na qual a parte maciça do modelo atômico de Thomson é comparada à massa e os elétrons são comparados às uvas passas do panettone. Por mais banal que possa parecer, insurge a questão: e as demais frutas cristalizadas do panettone? Seriam outras partículas de um átomo? Quando está ausente a devida problematização da analogia, aspectos óbvios podem atuar desfavoravelmente, visto que a maior parte dos estudantes, diferentemente do que parecem acreditar os autores, não identificam as correspondências entre análogo e alvo tão facilmente. Sendo assim, a discussão dos limites da analogia configura-se como uma etapa indispensável no uso desse recurso.

Esse baixo índice de reconhecimento e de discussão das limitações pode, de acordo com Monteiro e Justi (2000), ser ancorado por três suposições: (i) os autores pensam que as limitações analógicas não são relevantes para serem

incluídas nos livros; (ii) os autores presumem que os alunos não têm dificuldades em estabelecer as relações

analógicas corretas; (iii) os autores impelem aos professores a responsabilidade de estabelecer os limites das

analogias.

Em todos os casos o papel do professor em discutir as limitações e, como já apresentado, as correspondências das analogias presentes nos livros, faz-se necessário. Isso remonta a outra questão: os professores tiveram, em suas formações acadêmicas, tempo e espaço para estudarem o uso das analogias enquanto recurso didático? Como também discutido em outro momento, há diversos trabalhos que acenam para o uso indiscriminado de analogias espontâneas, geralmente inadequadas, em sala de aula. Esse parece ser um indicativo de que o tempo e o espaço destinado à discussão das analogias em cursos de formação de professores são praticamente ausentes e precisam ser pensados.

Um aspecto interessante são analogias cujos atributos não são correspondentes, como o decaimento radioativo e a combustão de uma vela, apresentada pelo livro B (figura 3). Isso parece incentivar os autores a identificar e discutir os aspectos não correspondentes entre os conceitos comparados. Percebe-se pela figura 3 que os autores apresentam os atributos inválidos, discutindo as razões dos mesmos não serem correspondentes. 4. Considerações finais

Muitos desafios precisam ainda ser suplantados no tocante ao uso das analogias enquanto instrumento de ensino. É fundamental que os professores reconheçam a importância das analogias tanto como promotoras quanto obstáculos da aprendizagem, dependendo, basicamente, de como são empregadas e de quais analogias são utilizadas. É imprescindível que tais discussões sejam conduzidas em cursos de formação inicial e de formação continuada de professores, caso contrário, as analogias continuarão a ser indiscriminadamente

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empregadas em sala de aula. O uso desse recurso, assim como de outros, exige o planejamento e o reconhecimento das vantagens e das desvantagens no tocante à aprendizagem. Nesse sentido, o professor é um ator essencial e que tem sua responsabilidade aumentada, pois, na maior parte das analogias presentes nas obras aprovadas pelo PNLEM 2007, é impetrada ao professor a incumbência de discutir os atributos correspondentes e não correspondentes, bem como as limitações das analogias. Mesmo para os livros alternativos (A e D) ao “ensino tradicional”, sem sombra de dúvidas, mais adequados ao Ensino Médio brasileiro, os resultados apresentados indicam que o uso das analogias é, de certa forma, ingênuo.

Figura 3 - Comparação entre a queima de uma vela e o decaimento radioativo, na qual são apresentadas as diferenças entre um e outro fenômeno (Livro B: 98-99).

Com o advento da tecnologia, o uso de muitas analogias, sobretudo algumas de caráter

estrutural, não faz mais sentido. Como exemplo pode ser dado a analogia átomo de Rutherford-sistema solar, a qual é empregada para facilitar a imaginação, em termos da localização espacial, entre núcleo e elétrons, tendo sido utilizada pelo próprio Rutherford. Porém, atualmente, a representação imagética desse modelo atômico pode propiciar muito

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bem a idéia de que os elétrons giram ao redor do núcleo, sem se recorrer ao aposto, “como os planetas ao redor do sol”. Até porque, para que tal analogia seja empregada adequadamente, haveria a necessidade de se discutir, por exemplo, as diferenças nos tipos de forças que regem o movimento de planetas e elétrons em torno do sol e do núcleo atômico respectivamente. Ainda assim, essa analogia pode ser verificada em quase todos os livros didáticos do ensino médio. Talvez, esse seja o momento de buscar a reestruturação dos livros didáticos de Química, visto que de acordo com o PNLEM 2007, as obras devem passar por avaliações para terem o aval de distribuição às escolas. No que concerne ao emprego das analogias, as análises dos livros didáticos poderiam ser mais rigorosas, haja vista que da forma com que são empregadas, muitas delas poderiam ser suprimidas pelos autores.

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- W.E. Francisco Junior é Bacharel/Licenciado em Química e Mestre em Biotecnologia (Instituto de Química da UNESP-Araraquara), Mestre em Educação, área de Metodologia de Ensino (UFSCar). Atualmente é Doutorando em Química (IQ-UNESP) e atua como Professor do Departamento de Química (UNIR). Endereço para correspondência: Departamento de Química, Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Campus Porto Velho, BR 364, Km 9,5, Porto Velho, RO 78912-190. Telefone: +55-69-21822277. E-mail para correspondência: [email protected].

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Utilização do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras como instrumento facilitador no ensino dos biomas brasileiros

Utilization the game Super Trunfo Brazilian Trees as a facilitator instrument education of

brazilian biomes

Alisson Reis Canto, a e Marcelo Augusto Zacariasb

aUniversidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil; bCentro Federal de Educação Tecnológica do Amazonas (CEFET-AM), Manaus, Amazonas, Brasil

Resumo A busca de novas metodologias que fujam da aula tradicional é com certeza bem vinda tanto pelos alunos, quanto pelos professores. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a funcionabilidade do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras como instrumento pedagógico para o ensino dos biomas brasileiros, além de verificar o nível de interesse dos alunos pelas aplicações de jogos como instrumento de ensino e suas aplicabilidades. Este estudo foi realizado através de observação e aplicação de questionários contendo questões objetivas e subjetivas. O resultado nos revela que um número significativo de alunos tem interesse na inserção de jogos no processo de ensino e aprendizagem e a utilização do jogo testado foi satisfatória enquanto instrumento facilitador da aprendizagem do assunto de biomas, contribuindo de forma positiva no aprendizado dos sujeitos da pesquisa, sendo a realização das atividades feitas de forma descontraída em ambiente alegre e favorável ao aprendizado. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 144-153. Palavras-chave: jogo didático; ensino e aprendizagem; biomas brasileiros; ensino em ciências.

Abstract The search for new methodologies that escaping the traditional classroom is certainly welcome by both students and the teachers. The objective of this study is to analyze the functionality of the game Super Trunfo brazilian trees as learning tool for the education of brazilian biomes, and check the level of interest of students by the applications of games as a teaching tool and its aplicabilidades. This study was conducted by observation and application of questionnaires containing questions open and closed. The result shows us that a significant number of students has an interest in the insertion of games in the teaching and learning and use of the game was satisfactorily tested as a tool facilitator of learning the subject of biomes, contributing in a positive way in learning the subjects of research, the conduct of activities being made so happy and relaxed environment conducive to learning. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 144-153. Keywords: didactic games; teaching and learning; Brazilian biomes; science teaching.

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Artigo Científico

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1. Introdução

Embora desconhecida a origem dos jogos, sabe-se que diversos povos como egípcios, romanos e maias, utilizavam-se destes para ensinar normas, valores e padrões de vida advindos das gerações antecedentes (Moratori, 2003). Deste modo, observa-se que desde a antiguidade os jogos já eram vistos como elemento de fundamental importância no processo de ensino e aprendizagem, pois se acreditava que por meio do mesmo, o ato de educar pudesse tomar rumos que abrangiam a imaginação, a curiosidade e a própria aprendizagem de maneira alegre e eficaz (Contin e Ferreira, 2008).

Segundo Huizinga (2000), os filósofos gregos já discutiam as vantagens da utilização dos jogos no ensino como forma de aplacar a violência e a opressão, além de acreditarem que as atividades lúdicas deveriam imitar as tarefas dos membros mais velhos para preparar as crianças para a vida adulta.

Entretanto, na atualidade, os jogos muitas vezes são vistos de forma negativa por ser considerado uma atividade inútil, “que não produz bens ou serviços”. Porém, Piaget, menciona que o jogo é uma nova prática pedagógica importante para o desenvolvimento (Cyrre, 2002).

A utilização de jogos como estratégia didática é previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (Brasil, 2000). Porém, é com pouca freqüência que vemos estes sendo aplicados nas salas de aula, pois o jogo no ambiente educacional nem sempre é bem visto, uma vez que se encontra associado ao prazer. Assim, o jogo é pouco utilizado e seus benefícios desconhecidos por muitos professores (Gomes e Friedrich, 2001).

Segundo Grando (2001), a inserção de jogos no contexto de ensino e aprendizagem implica algumas vantagens e desvantagens.

As vantagens são a introdução e desenvolvimento de conceitos de difícil compreensão; participação ativa do aluno na construção do seu próprio conhecimento; socialização entre alunos e a conscientização do trabalho em equipe, além de motivar os alunos a participarem da aula (Grando, 2001).

Entre as desvantagens podemos citar o tempo gasto que é maior, e se o professor não estiver preparado, pode existir um sacrifício de outros conteúdos; além de quando mal aplicado, o jogo pode ter caráter puramente aleatório, ou seja, os alunos jogam por jogar; e também existir o perigo da perda de ludicidade pela interferência constante do professor (Grando, 2001).

O assunto biomas brasileiros, embora faça parte do conteúdo programático de diversos livros didáticos de biologia do 3º ano do Ensino Médio, geralmente não é trabalhado, pois devido à falta de tempo, estes recebem pouca atenção por parte dos professores.

Ao reconhecermos as dificuldades que permeiam o professor nesse nível de ensino, e objetivando estudar uma forma de contribuir para o processo de ensino e aprendizagem dos biomas brasileiros, surgiu a idéia da aplicação do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras com o propósito de trabalhar este conteúdo programático de forma motivante e divertida com alunos de 3º ano do Ensino Médio. No entanto, este jogo pode ser perfeitamente utilizado no momento em que o professor decidir iniciar o estudo dos biomas brasileiros.

Este trabalho caracteriza-se como um estudo de caso de cunho descritivo-analítico, sendo desenvolvidas as seguintes técnicas de coletas de informações:

Entrevista, que permite a captação imediata e corrente da informação, aprofundando pontos desejados, além de permitir conhecer o ponto de vista e o interesse do entrevistado a respeito da utilização de jogos no processo de ensino e aprendizagem e do conhecimento destes sobre o assunto biomas brasileiros.

A observação direta é o meio essencial para a verificação de acontecimentos, práticas

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e narrativas ocorridas durante o fenômeno estudado. Sendo neste trabalho fundamental para analisar a funcionabilidade do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras como instrumento pedagógico para a motivação dos alunos.

2. O jogo

O jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras é um jogo de cartas, que comporta de dois a oito participantes, disputando 32 cartas (dimensões 9,5 cm x 6,5 cm), cujo objetivo é um dos jogadores ficar com todas as cartas do baralho.

As cartas contem informações sobre as árvores brasileiras mais conhecidas, as que são símbolos de Estados e regiões, bem como aquelas mais importantes para a biodiversidade e para a economia. Sendo os itens de confrontamento: altura, diâmetro, densidade da madeira e tempo de germinação das sementes (figura 1).

Figura 1 - Cartas que compõem o jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras (Disponível em http://www.progressoverde.blogspot.com).

Para iniciar o jogo, as cartas são igualmente divididas entre os participantes e cada

jogador forma sua “pilha”, sendo vista apenas a primeira carta pelo jogador. A rodada começa com a escolha de um dos itens de confrontamento que julga ter o valor capaz de superar o mesmo item da carta de seus adversários, se o valor de sua carta for superior, ele obtém todas as cartas da rodada e as coloca embaixo de sua pilha. Do contrário, ele deve dar sua carta ao ganhador que será o próximo a jogar e escolher o item de confrontamento.

O jogo foi aplicado em uma turma do 3º ano do Ensino Médio do Centro Federal de

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Educação Tecnológica do Amazonas (CEFET-AM) no turno matutino. A população amostral correspondeu a 17 alunos regulares, na faixa etária de 16 a 19 anos de ambos os sexos.

O CEFET-AM assim como os demais CEFET´s da federação brasileira, enquadra-se na classificação de escola pública, porém com algumas peculiaridades, entre estas a de possuir um processo de seleção para que o aluno conquiste o direito de freqüentar regularmente o Ensino Médio ou os demais níveis de ensino na instituição.

3. Aplicação e análise da funcionabilidade do jogo

Para a análise da funcionabilidade do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras como instrumento facilitador para o ensino dos biomas brasileiros, primeiramente avaliou-se o conhecimento prévio que os sujeitos participantes da pesquisa tinham sobre o tema, além de informações sobre a utilização de jogos para o processo de ensino e aprendizagem de ciências e biologia durante sua vida acadêmica, através de questionário contendo questões objetiva e subjetivas.

Em seguida uma aula expositiva de 10 minutos sobre o tema principais biomas terrestres e os biomas brasileiros foi ministrada, cujo objetivo foi conhecer alguns biomas do mundo, em particular os brasileiros, compreendendo-os como ecossistemas estáveis e característicos das regiões em que ocorrem.

Após a aula, os alunos foram divididos em três grupos, e cada um, recebeu um kit do jogo contendo as 32 cartas. Sendo as regras esclarecidas coletivamente para o perfeito andamento deste.

Ao término das atividades, foi aplicado um questionário contendo questões objetivas e subjetivas, para verificar o quanto o aluno fixou o assunto, além da opinião deste sobre o jogo utilizado.

Vale destacar que os procedimentos éticos necessários em pesquisas envolvendo humanos foram obedecidos, estando esta cadastrada na Comissão Nacional de Ética em Pesquisas – FR200494 (CONEP), sendo realizada com o consentimento da instituição de ensino e do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

4. Um Balanço Final da Utilização do Jogo: Resultados e Discussão

A turma no momento da pesquisa era composta por 17 alunos, sendo 71% do sexo masculino e 29% do sexo feminino, na faixa etária de 16 a 19 anos.

Segundo os participantes da pesquisa, quando questionados sobre a utilização de jogos para desenvolver o processo de ensino e aprendizagem de ciências ou biologia durante sua vida acadêmica, estes responderam que raramente ou nunca vivenciaram jogos na sala de aula (figura 2).

É nesse contexto que destacamos a pouca utilização de jogos como instrumento pedagógico. Porém, é grande o interesse dos alunos, e isso é demonstrado no discurso destes quando questionados se acham importante a inserção de jogos no processo ensino e aprendizagem, sendo praticamente unânime a opinião favorável, exceto um aluno que teve opinião contrária (figura 3).

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Figura 2 - Freqüência (%) de alunos que vivenciaram jogos durante o processo ensino aprendizagem do conteúdo de ciências e biologia.

Figura 3 - Freqüência (%) de alunos que acham importante a inserção de jogos para o processo ensino e aprendizagem.

As opiniões favoráveis a inserção do jogo tiveram os seguintes discurso:

“Sim, porque ajuda a estimular a aprendizagem de forma legal e educativa.” “Sim, porque o aluno aprende com maior facilidade ‘aprende brincando.’” “Sim, fica mais interessante a aula.” “Sim, porque diverte a aula.”

A opinião contrária à inserção do jogo teve o seguinte discurso:

“Não, porque diminui o desempenho escolar.” Uma vez que jogos são utilizados como atrativo para determinado conteúdo, deve-se

conhecer muito bem as possibilidades de aplicação deste e a preferência do público alvo, para que o “legal” não se torne “chato”.

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Diversos autores classificam os jogos de diferentes formas. Piaget (1962) criou uma classificação baseada nas fases de desenvolvimento infantil. Zatz (2007) classifica o jogo em quatro grupos: jogos de família, de estratégia, para crianças, de interação e de perguntas e respostas. Grando (1995) classifica os jogos em seis grupos: Jogos de azar ou sorte, quebra-cabeça, estratégia ou de construção de conceitos, fixação de conceitos, computacionais e pedagógicos. Com relação à preferência dos participantes desta pesquisa, os jogos de sorte ou azar e os computacionais são os preferidos, estando em último os jogos de perguntas e respostas (figura 4).

Figura 4 - Opinião dos alunos a respeito do tipo de jogo pelo qual tem preferência.

O jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras seguindo a classificação proposta por

Grando (1995) enquadra-se melhor como um jogo de sorte ou azar, estando os jogos com estas características na preferência dos alunos participantes da pesquisa, podendo esse ser um dos motivos pelo o qual o jogo foi bem aceito pela turma.

O envolvimento do aluno na aula constitui-se no foco principal do ensino e das atribuições da escola. Quando avaliado o interesse dos alunos pelo estudo da biologia, 82% afirmaram gostar de biologia.

Quando questionados sobre a importância do estudo da biologia 88% dos estudantes acham importante, pois a biologia é a ciência que explica o funcionamento de vários organismos vivos, sendo que os 12% restante não acham importante, pois não querem uma graduação na área de biológicas.

Uma vez que a turma apresentou resultados positivos quanto aos quesitos inserção de jogos no processo de ensino e aprendizagem e o gosto pelo estudo das ciências biológicas, esta possui pré-requisitos adequados para o bom andamento e aplicação de jogos com o propósito de trabalhar diversos conteúdos de biologia.

Durante a aplicação do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras todos colaboraram de forma espontânea e ordenada para o perfeito andamento deste, sendo visível a empolgação, o

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espírito de competição e a motivação no processo de ensino e aprendizagem. Também observou-se um interesse em adquirir o jogo, pois acharam as regras de fácil compreensão.

Com relação à funcionabilidade do jogo para o ensino dos biomas brasileiros, o resultado foi positivo.

Segundo Miras (1999), quanto mais o aluno for capaz de fazer relação entre o novo conteúdo e seus conhecimentos prévios, mais significativa será a aprendizagem. A falta de conhecimentos prévios pelos alunos participantes da pesquisa foi observada, sendo que, apenas 12% apresentaram conhecimento do tema biomas (figura 5).

Figura 5 - Freqüência (%) de acerto dos alunos quando perguntados 1. O que significa Bioma? 2. Cite alguns biomas brasileiros.

Para um feedback da absorção do conteúdo pelos alunos após a aplicação do jogo,

estes foram estimulados a responder questões parecidas com as anteriormente feitas. Para a questão um (1) o que significa bioma? cerca de 82% dos alunos participantes da

pesquisa responderam a questão corretamente. Para a questão dois (2) cite alguns biomas brasileiros. O resultado foi ainda melhor

94% dos alunos participantes da pesquisa responderam a questão corretamente. Essa diferença entre o número de acertos das questões pode ser explicada pelo fato de

que durante o jogo, nas cartas do Super Trunfo Árvores Brasileiras estão expostos os mais diversos biomas nos quais se encontram as árvores expostas, embora não saber o significado de bioma, os alunos sabiam citar diversos biomas por estarem em contato com estas informações durante todo o jogo.

A falta de conhecimentos prévios pelos alunos participantes da pesquisa pode ser explicada pela pouca atenção dada a este conteúdo durante o ensino da biologia, não só no planejamento do professor como também dos livros didáticos, que dedicam um curto capítulo a este assunto, quando não o enquadra dentro de outros assuntos no tema ecologia, dando pouco destaque a este. Isto é confirmado pelos alunos quando questionados se já haviam visto o assunto biomas em algum livro seja de biologia ou até mesmo geografia, 94% dos alunos responderam não ter visto esse assunto em nenhum livro. Apenas um aluno lembra ter visto o

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assunto, porém em um livro de geografia (figura 6).

Figura 6 - Freqüência (%) de alunos que já viram o assunto biomas em algum livro. Com relação à opinião dos alunos a respeito do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras,

o jogo foi bem aceito como se observa na figura 7.

Figura 7 - Opinião dos alunos a respeito do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras.

O jogo também teve sua contribuição na difusão do conhecimento de espécies nativas

do Brasil, pois das 32 espécies que continham no jogo, seis foram destacadas e perguntadas de que biomas brasileiros faziam parte, e aproximadamente 35% dos alunos souberam responder corretamente os biomas onde era possível encontrá-las, mostrando assim não apenas domínio do conteúdo básico, mas sim de um conhecimento mais específico e que requerer uma atenção a mais no jogo. Além de que durante o jogo, os alunos foram capazes de conhecer algumas espécies de árvores que não fazem parte do bioma presente na sua região.

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Diante do exposto defende-se a idéia de que os jogos merecem um espaço na prática pedagógica dos professores, por ser uma estratégia motivante e que agrega aprendizagem de conteúdo ao desenvolvimento de aspectos comportamentais saudáveis. Entretanto, vale ressaltar que os jogos pedagógicos não são substitutos de outros métodos de ensino. Sendo estes suportes para o professor e poderosos motivadores para os alunos como recurso didático para sua aprendizagem. 5. Considerações finais

Os alunos têm interesse na inserção de jogos no processo de ensino e aprendizagem, sendo os jogos de sorte ou azar e os computacionais os mais bem aceitos.

O jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras contribuiu no processo de ensino e aprendizagem, sendo a realização das atividades feitas de forma descontraída em um ambiente alegre e favorável.

Os resultados sobre a utilização do jogo Super Trunfo Árvores Brasileiras no processo de ensino e aprendizagem foram satisfatórios enquanto instrumento facilitador da aprendizagem do assunto biomas terrestre. 6. Referências bibliográficas Brasil. (2000). PCN Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Bases Legais. Brasília: Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Média e Tecnológica (Semtec). Contin, R.C. e Ferreira, W.A. (2008). Jogos: Instrumentos pedagógicos no Ensino da Matemática. Retirado em: 02/06/2008 de world wide web: http://www.portaldaeducacao. seduc.mt.gov.br/cefaprocaceres. Cyrre, M.R.L. (2002). O lúdico no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Ciências e Letras, 32, 235-244. Gomes, R.R. e Friedrich, M.A. (2001). Contribuições dos jogos didáticos na aprendizagem de conteúdos de Ciências e Biologia. Em: Rio de Janeiro, Anais, EREBIO, 1, 389-392. Grando, R.C. (1995). O jogo e suas possibilidades metodológicas no processo ensino-aprendizagem da matemática. Dissertação de mestrado em Educação, Universidade de Campinas, Campinas, SP. Grando, R.C. (2001). O jogo na educação: aspectos didático-metodológicos do jogo na educação matemática. Retirado em: 02/06/2008 de world wide web: http://www. cempem.fae.unicamp.br/lapemmec/cursos/el654/2001/jessica_e_paula/JOGO.doc. Huizinga J. (2000). Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva. Miras, M. (1999). Um ponto de partida para a aprendizagem de novos conteúdos: os conhecimentos prévios. Em: Coll, C. e Martín, E. (Eds.). O construtivismo na sala de aula (pp. 18-32). São Paulo. Moratori, P.B. (2003). Por que utilizar jogos educativos no processo de ensino aprendizagem?. Trabalho de conclusão da disciplina introdução a informática na educação, no Mestrado de Informática aplicada à Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Retirado em: 02/03/2008 de world wide web: http://www.nce.ufrj.br/ GINAPE/publicacoes/trabalhos/PatrickMaterial/TrabfinalPatrick2003.pdf. Piaget, J. (1962). Play, Dreams and Imitation in Childhood. New York: Norton. Zatz, A. (2007). Jogo é coisa de criança? Sim, mas de gente grande também! Retirado em: 02/05/2008 de world wide web: http://www.ilhadotabuleiro.com.br/?codn=17 &pag=colunas&link=home.

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- A.R. Canto é Licenciado em Ciências Biológicas (CEFET-AM) e Mestrando em Ciências de Alimentos (UEL). E-mail para correspondência: [email protected]. M.A. Zacarias é Graduado em Psicologia (Universidade Luterana do Brasil, ULBRA), Especialista em Psicologia Clínica (ULBRA) em Saúde Pública (Faculdade Serrana de Ensino Superior). Atua como Professor (CEFET-AM).

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A educação profissional de nível técnico de automobilística do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ): um olhar curricular para as questões

ambientais

The professional education of automobile curse at technical level in the Federal Center of Technological Education “Celso Suckow da Fonseca” (CEFET / RJ): a look at curriculum

for environmental issues

Jorge Luiz Silva de Lemos, a, b, Sidnei Quezada M. Leiteb, c e Marco Antonio F. da Costad

aCentro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; bPrograma em Ensino em Biociências e Saúde, Fundação

Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; cCentro Federal de Educação Tecnológica do Espírito Santo (CEFET-ES), Vitória, Espírito Santo, Brasil; dEscola

Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

A importância dada à relação entre ciência e sociedade vem levando, cada vez mais, à valorização de uma abordagem educacional que interliga conteúdos específicos aos aspectos políticos, econômicos e culturais. A educação profissional precisa estar comprometida com a transformação de métodos de trabalho, além da formação do cidadão. Neste sentido, o currículo é um processo compartilhado de produção educacional e cultural. Trata-se de uma pesquisa teórica, incluída na metodologia descritiva, com abordagem qualitativa, almejando a interpretação oriunda dos documentos oficiais relacionados ao curso técnico de Automobilística do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) com foco nas questões ambientais. O objetivo foi analisar, qualitativamente, as influências das questões ambientais do currículo de formação dos profissionais do curso em questão. A pesquisa buscou responder a seguinte pergunta: Como estão perpassando as questões ambientais no curso técnico de nível médio de Automobilística do CEFET/RJ? Foi, então, levantada uma hipótese de trabalho: as questões ambientais contribuem positivamente para a formação de profissionais mais holísticos do curso analisado. O currículo formal do curso técnico Automobilística do CEFET/RJ foi analisado e os resultados indicam que, atualmente, seria inadmissível pensar na formação de profissionais da área automobilística sem a preocupação de uma questão-chave para o século XXI: o desenvolvimento científico e econômico com sustentabilidade sócio-ambiental. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 154-170.

Palavras-chave: currículo; educação profissional; questões ambientais.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 154-170 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 10/11/2008 | Aceito em 14/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Artigo Científico

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Abstract

The emphasis on the relationship between science and society has led increasingly, the recovery of an educational approach that connects content to specific political, economic and cultural aspects. The professional on education must be committed to the transformation of working methods, as well as the formation of the citizen. Accordingly, the curriculum is a process of shared educational and cultural production. This is a theoretical research, included in the descriptive methodology, with a qualitative approach, aiming to interpret the official documents related to the technical progress of automotive technical course at the Federal Center of Technological Education - CEFET/RJ with a focus on environmental issues. The objective was to examine, qualitatively, the influences of environmental issues of the curriculum of the professionals of the course concerned. The research also aims at answering the question: How environmental issues in the high-school level of automotive technical course CEFET / RJ are being dealt with. It was then brought up a hypothesis for such work: the environmental issues contribute positively to the training of more holistic professionals of the analyzed course. The formal curriculum of the automotive technical course at CEFET / RJ has been analyzed and the results indicate that, nowadays, it would be unacceptable to consider the training of professionals in the automotive area without the concern of a key issue for the twenty-first century: the scientific and economic development with social and environmental sustainability. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 154-170.

Keywords: curriculum; professional education; environmental issues.

1. Introdução

No Brasil, os Centros Federais de Educação Tecnológica refletem a evolução de um tipo de educandário que, no século XX, acompanhou e contribuiu para o desenvolvimento do processo de industrialização do país (Manfredi, 2002). O Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) é uma Instituição Federal de Ensino Médio, Técnico, Superior e de Pós-graduação, que teve várias denominações ao longo de sua história, mas servindo como exemplo de renome de uma das instituições de Ensino Técnico do Estado do Rio de Janeiro.

Portanto, com viés para a educação profissional de nível técnico do CEFET/RJ, a instituição oferece, atualmente, cursos em automobilística, eletrônica, eletrotécnica, eletromecânica, edificações, estradas, mecânica, informática, enfermagem, meteorologia, administração, segurança do trabalho, telecomunicações e turismo, para alunos egressos do ensino fundamental. Vale ressaltar que no segundo semestre de 2008 houve a inclusão de dois novos cursos, tais como: TV digital como ênfase do curso de eletrônica e o de Portos. De acordo com a Lei 9394/96 - Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1996, o ensino técnico deve articular a formação do aluno com a realidade do mundo do trabalho contemporâneo, dotando-o de ferramentas que o possibilitem se inserir na sociedade de forma autônoma e crítica.

A vinculação da Educação em Ciências com a formação para a cidadania tem sido um dos eixos do movimento mundial do Ensino de Ciência – Tecnologia –Sociedade (CTS), que proporciona o Ensino de Ciências a partir de situações reais do cotidiano (Santos e Schnetzler, 2003). Diante da atual afirmativa, pode-se ter como norte a cidadania focalizada nos impactos ambientais e preservação ambiental que se fazem presentes no século XXI.

Durant (2005: 13) cita a seguinte reflexão sobre a alfabetização científica: “Designa o que o povo deveria saber a respeito da ciência, e a difusão do seu uso reflete uma preocupação acerca do desempenho dos sistemas educacionais vigente, existindo três abordagens muito diferentes, a primeira põe ênfase no conteúdo da ciência, a

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segunda acentua a importância dos processos da ciência e a terceira concentra-se nas estruturas sociais ou nas instituições da ciência.”

Quando a literatura menciona propostas para uma alfabetização científica, pensa-se

imediatamente nos currículos de ciências, os quais têm se apresentado cada vez mais de forma interdisciplinar, em uma perspectiva de ciência inter-relacionada com a tecnologia e com a sociedade. Tais currículos têm sido denominados de CTS. Ainda sobre o ensino de CTS, alguns autores preferem travar discussões sobre a Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT) com abordagens reducionistas ou ampliadas. Na perspectiva reducionista, os conteúdos operam por si mesmos ou como um fim em si. Já na ampliada, os conteúdos são considerados como meios para a compreensão de temas socialmente relevantes. Portanto, este último está mais próximo de uma concepção progressista de educação, uma vez que o primeiro reduz a ACT ao ensino de conceitos (Auler e Delizoicov, 2001).

Acredita-se hoje, no entanto, que para a compreensão dos fenômenos naturais e daqueles oriundos das transformações humanas, o docente deve direcionar os discentes ao entendimento da ciência e da tecnologia como uma atividade humana sócio-historicamente determinada, e foi exatamente esta vertente que a pesquisa teve como foco. A construção de conhecimento científico é um processo do qual os alunos podem fazer parte. Cabe ao docente direcioná-los para a apropriação crítica de tal conhecimento de modo que ele se incorpore no universo das representações sociais dos discentes e possa ser usado para sua ação no mundo (Delizoicov et al., 2002).

Sendo este artigo de cunho curricular, adotamos a concepção de currículo de Lima e Logarezzi (1999: 160):

“Currículo é aqui concebido de forma muito mais ampla e abrangente do que grade curricular. É a vida do curso. É o que lhe garante identidade, feição própria [...] não é entendido como algo estático, mas como forma particular de entrar em contato com a cultura, sendo que seu significado se constrói através das condições em que se realiza.”

Desta forma, o currículo não é um elemento transcendente e atemporal, ao contrário, é constituído de uma história vinculada à organização da sociedade e da educação, em que a sua constituição não se dá pelas parcelas pré-existentes de conhecimento, mas pelo conhecimento que é produzido na interação educacional.

Partindo-se do pressuposto de que o currículo é um espaço-tempo em que sujeitos diferentes interagem, tendo por referência seus diversos pertencimentos, e que essa articulação é um processo cultural que ocorre num lugar-tempo, esta pesquisa teve como objetivo, analisar, qualitativamente, as influências das questões ambientais do currículo de formação dos profissionais do curso técnico de nível médio de Automobilística do CEFET/RJ.

2. Metodologia

Trata-se de uma pesquisa teórica, incluída na metodologia descritiva, com abordagem

qualitativa, almejando a interpretação oriunda dos documentos oficiais relacionados ao curso de Automobilística do CEFET/RJ com foco nas questões ambientais.

O currículo formal do curso técnico Automobilística do CEFET/RJ foi selecionado dentre catorze cursos técnicos de nível médio oferecidos pela mesma instituição federal porque já expressava, claramente, a influência de um olhar que privilegiava as questões ambientais - como se pode observar a partir dos dados bibliográficos obtidos de seus

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currículos oficiais. Foram utilizados também dados quantitativos que emergiram ao longo do processo de trabalho. Vale frisar que a sustentabilidade desta pesquisa decorre da busca de construção de conhecimento teórico a partir de dados coletados na realidade estudada (Demo, 2000).

Como fontes de coleta de dados foram utilizados os seguintes documentos: desenho curricular do Ensino Técnico do CEFET/RJ, conteúdo programático e matriz curricular do Curso Técnico de Automobilística da instituição, Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2005-2009 do CEFET/RJ e as legislações educacionais. A análise dos dados foi realizada à luz da multireferencialidade (Arduíno, 1998).

3. Resultados e discussões 3.1. Currículo em foco

Na primeira metade dos anos 90, havia a predominância de um olhar para os estudos curriculares caracterizando-os como puramente políticos. A partir deste ponto, evoluindo para uma nova concepção hegemônica de que o currículo só pode ser compreendido quando contextualizado política, econômica e socialmente. Portanto, pretende-se analisar o currículo do curso técnico de nível médio em Automobilística do CEFET/RJ com este olhar mais abrangente. Inclusive, neste mesmo período, segundo Burnham1 (apud Lopes e Macedo, 2005), paralelamente às temáticas relacionadas ao conhecimento, houve produção de trabalhos em torno da questão da multirreferencialidade. A partir desta citação, identifica o campo de Currículo como complexo e capaz de exigir uma rede múltipla de referenciais para sua interpretação. Com isso, ratificando a nossa análise dos dados mencionada na metodologia. Segundo Lopes e Macedo (2005), o campo de Currículo na segunda metade da década de 90 no Brasil foi caracterizado pelo hibridismo, ou seja, a partir da contraposição das teorizações globais, sejam elas funcionalistas ou crítica marxista, diante a multiplicidade característica da contemporaneidade, resultaram em híbridos culturais decorrentes da configuração da tal multiplicidade que, além de servirem como diferentes tendências e orientações teórico-metodológicas, se inter-relacionam. Assim, pode-se considerar que há um campo intelectual na constituição do campo do Currículo, em que neste espaço determinadas concepções sobre a Teoria de Currículo são legitimadas a partir da presença de diversos atores sociais que são detentores de determinados capitais, social e cultural, além de disputarem pela autoridade na área. Nesse sentido, evidenciando a falta de uma hegemonia entre os pares. No período acima, houve três grupos principais da produção de currículo no Brasil, tais como: a perspectiva pós-estruturalista; o currículo em rede; e a história do currículo e a constituição do conhecimento escolar. Porém, será abordado apenas este último grupo, pelo fato de ter uma linha de estudo sobre a história das disciplinas escolares, a qual está relacionada com o presente trabalho que focaliza a história do curso de Automobilística do CEFET/RJ. No que diz respeito à fundamentação teórica voltada para a história das disciplinas escolares, vale destacar Goodson (2001), o qual nos ajuda a compreender a história do curso em questão, quando constata a busca pelo estudo sobre o desenvolvimento e a consolidação de disciplinas escolares ou áreas de conhecimento tendo por base a forma como se desenvolvem em instituições específicas. Com isso, direcionando os trabalhos para a interseção entre os estudos das disciplinas escolares e o estudo das instituições educacionais (Lopes e Macedo, 2005). Desta forma, torna-se pertinente o atual trabalho que visa correlacionar as disciplinas envolvidas no curso técnico de nível médio em automobilística

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com viés para as questões ambientais, e a instituição escolar que desempenha um papel sui generis na sociedade moderna, não se limitando simplesmente à transmissão de conhecimentos. Goodson (1995: 120) ao analisar a história curricular e a escola, afirma:

“A história curricular considera a escola algo mais do que um simples instrumento de cultura da classe dominante. Ela põe a descoberto as tradições e legados dos sistemas burocráticos das escolas, ou seja, fatores que impedem homens e mulheres de criar sua própria história em condições de sua própria escolha. Ela analisa as circunstâncias que homens e mulheres conhecem como realidade, e explica como, com o tempo, tais circunstâncias foram negociadas, construídas e reconstruídas.”

Portanto, não há um consenso no ato da construção das disciplinas escolares e sim como fruto de lutas que acontecem no espaço intra e extra dos sistemas educacionais, englobando poder, negociações e alianças entre indivíduos e entre os grupos distintos. Goodson (1997: 43) ratifica ainda que as disciplinas escolares são elaboradas “social e politicamente e os atores envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais à medida que prosseguem as suas missões individuais e coletivas”. De acordo com Goodson (1995: 120) há três hipóteses gerais sobre o processo de consolidação de uma disciplina escolar, tais como:

“as disciplinas não são entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições; estas passam de objetivos utilitários e pedagógicos até se consolidarem como disciplinas abstratas e acadêmicas, diretamente vinculadas às Universidades; e por fim, este processo deve ser analisado em termos de conflito entre as diferentes disciplinas em relação a status, recursos e território.”

Valer frisar que as hipóteses gerais acima, tem como subsídio o modelo explicativo

elaborado por Layton2 (apud Ferreira, 2005), em que normalmente as disciplinas escolares obtêm um espaço no currículo a partir de justificativas como relevância e utilidade, sendo lecionadas por docentes não especializados. Posteriormente à este contexto, Goodson (1990, 1995) destaca que os mecanismos de consolidação das disciplinas são decorrentes da emergência e de uma constituição de uma tradição acadêmica, além da existência de um conjunto de especialistas formados nessa tradição. Assim, as disciplinas escolares se distanciam de seus objetivos primários, passando a ensinar contéudos abstratos e distantes da realidade e dos interesses dos discentes. Portanto, essa tendência à abstração e ao academicismo deve ser compreendida como uma busca por status, dotada de estreita relação com as disputas por recursos materiais e por um interesse na constituição de uma carreira profissional de maior prestígio.

Por acreditar que uma determinada instituição de ensino, com suas características sui generis, pode influenciar no currículo de uma disciplina, no item a seguir, é feita uma retrospectiva da instituição que oferece o curso técnico em Automobilística, objeto de pesquisa. Encontra-se nas pesquisas de currículo uma associação entre o estudo da história das disciplinas escolares com trabalhos que privilegiam a escola como uma instituição que apresente uma autonomia relativa, como uma totalidade em que o cultural e o social se apresentam mediados pelo pedagógico. Assim, na medida em que os currículos se materializam em determinadas instituições de ensino, que apresentam determinadas especificidades, os estudos realizados pelo grupo no âmbito da história das disciplinas escolares têm se referenciado a instituições específicas, de modo que as particularidades de

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cada caso concreto se evidenciem na lógica global do percurso de cada disciplina (Lopes e Macedo, 2005). 3.2. Desenho curricular e conteúdo programático da educação profissional de nível técnico do CEFET/RJ

Ao se pensar numa pesquisa curricular, sabe-se que o currículo pode ser formal (escrito), vivido (ação), nulo ou oculto. Porém, o ponto de partida da atual pesquisa foi dar ênfase ao primeiro tipo mencionado de currículo. Assim sendo, buscou-se analisar o desenho curricular vigente dos cursos técnicos de nível médio do CEFET/RJ com foco nas questões ambientais.

Este tipo de desenho curricular foi construído para as unidades existentes do CEFET/RJ, tais como: Maracanã, Maria da Graça e Nova Iguaçu, tendo sido elaborado em 2001 para as duas primeiras unidades e somente em 2003, para a terceira, quando da inauguração da unidade.

No que diz respeito à análise do documento oficial, desenho curricular, constatou-se explicitamente as questões ambientais em número reduzido de cursos, de acordo com a tabela 1.

Curso Disciplina explícita Período Carga horária Administração Gestão ambiental 2º 36h/a Automobilística Gestão ambiental 1º 18h/a Edificações (Construção Civil)

- - -

Eletromecânica - - - Eletrônica - - -

Eletrotécnica -

-

-

Enfermagem - - - Estradas (Construção Civil)

-

-

-

Informática - - - Mecânica - - - Meteorologia - - -

Segurança do trabalho Proteção ambiental Proteção ambiental

3º 4º

54h/a 54h/a

Telecomunicações - - -

Turismo Ecologia

Legislação ambiental 4º 5º

36h/a 18h/a

Tabela 1 - Desenho curricular vigente dos cursos da Educação Profissional de Nível Técnico do CEFET/RJ com foco nas questões ambientais (fonte: documento oficial do CEFET/RJ, desenho curricular, disponibilizado pelo Departamento de Ensino Médio e Técnico da Instituição).

A priori, vale ressaltar que dos catorze cursos técnicos de nível médio oferecidos pelo CEFET/RJ em suas três unidades existentes, quatro apresentam disciplinas relacionadas explicitamente com as questões ambientais, tais como: administração (Gestão ambiental), automobilística (Gestão ambiental), segurança do trabalho (Proteção ambiental) e turismo

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(Ecologia e Legislação Ambiental). No entanto, teve a necessidade de se averiguar, nos outros documentos referentes aos cursos, a possível presença das questões ambientais sob a forma de conteúdo programático, competências, habilidades, bases tecnológicas e perfil profissional. Para isso foram analisados documentos relativos aos conteúdos programáticos das disciplinas desses cursos, conforme a tabela 2.

Tabela 2 - Cursos da Educação Profissional de nível técnico do CEFET/RJ com foco nas questões ambientais (fonte: documento oficial do CEFET/RJ, Plano de Curso, disponibilizado pelo Departamento de Ensino Médio e Técnico da Instituição).

Constatou-se na tabela 2 que o curso Automobilística é o que apresenta maior olhar

para as questões ambientais em detrimento dos demais cursos oferecidos pela própria instituição. Portanto, a seguir serão apresentados somente os dados obtidos no curso técnico de Automobilística do CEFET/RJ oferecido na unidade de Maria da Graça, em detrimento dos treze demais cursos, já que o propósito é evidenciar a história deste curso para compreender como as questões ambientais perpassam no presente currículo. 3.3. Breve caracterização do curso técnico Automobilística do CEFET/RJ A existência do curso em questão deu-se exatamente a partir de um estudo sobre a cadeia produtiva automobilística. Em 2000, foram elaboradas as bases do curso e desenvolvida as ementas. A primeira turma iniciou-se em 2001 e a conclusão desta foi em 2003, portanto o curso tem a duração de três anos.

Curso D

isci

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Com

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o

Bas

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ógic

a

Hab

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de

Obj

etiv

o

Administração 02 03 - - - - - Automobilística 19 - 03 13 - - - Edificações (Construção Civil)

- - 03 - 02 - -

Eletromecânica 13 - 04 - 01 02 - Eletrônica - - - - - - - Eletrotécnica 03 01 02 - Enfermagem - - - - - - - Estradas (Construção civil)

- - 02 - 03 - -

Informática - - - - - - - Mecânica 06 - 01 - - - - Meteorologia 01 - - 01 - - 05 Segurança do Trabalho 01 - 04 - 06 02 - Telecomunicações - - - - 01 - - Turismo 02 - - - - - -

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CEFET/RJ Diretoria de Desenvolvimento Educacional Departamento de Ensino Médio e Técnico

Curso Técnico em Automobilística Desenho do Modelo Curricular - Carga Horária - Semestral

1º Ano 2º Ano 3º Ano Nº Disciplina Código Lab 1º

Sem 2º

Sem 1º

Sem 2º

Sem 1º

Sem 2º

Sem CH

1 Desenho Técnico DEST 36 36

2 Informática Aplicada

Termodinâmica INFO X 18 18

3 Gestão Ambiental GEAM 18 18

4 Segurança do Trabalho, Relações Humanas no Trabalho, Gestão Ambiental Metrologia

SETR 36 36

5 Relações Humanas no Trabalho RHTR 36 36 6 Termodinâmica TER 18 36 54 7 Metrologia METR X 36 36 8 Hidráulica e Pneumática HIP X 18 36 54 9 Tecnologia dos Materiais TEM 36 18 54 10 Eletroeletrônica ELT X 36 54 90 11 Lubrificantes e Combustíveis LUCO X 54 54 12 Gestão pela Qualidade GEQ 18 18 36 72 13 Motores MOT X 36 54 36 126 14 Logística LOG 18 72 90 15 Sistemas Eletroeletrônicos Veiculares SEV X 36 36 36 108 16 Tratamento de Superfície TSU X 72 18 90 17 Tecnologia Automobilística TEA 36 36 72 18 Sistema de Alimentação e Ignição SAIG X 36 36 19 Sistema de Transmissão SITR X 36 36 20 Sistema de Freio SIFR X 36 36

21 Sistema de Suspensão e Direção SSDI X 36 36

22 Inspeção Veicular INV X 36 36 72 23 Legislação de Trânsito LETR 18 18 24 Código de Proteção e Defesa do Consumidor CPDC 18 18 25 Projetos Automobilísticos PRAU 72 72 26 Desenho Assistido por Computador DACO X 72 72 Total Parcial 144 144 216 216 360 360 1440

27 Estágio Supervisionado 400 Total Final 1840

Dias de Aulas na Semana Ter e Qui (M)

Seg, Qua e Sex (M)

Seg,Ter,Qua, Qui e Sex

Tabela 3 - Matriz curricular do Curso Técnico em Automobilística: carga horária semestral (fonte: Material oficial cedido pelo professor Nilton da Costa Silva, criador e docente do curso técnico de Automobilística do CEFET/RJ). O curso de Automobilísitica pertence à área de Indústria e está voltado para o segmento total da cadeia produtiva de Automobilística, aonde se tem o objetivo de inserir os profissionais no mercado com base em áreas de elétrica, mecânica e pintura.

Historicamente, a criação do curso foi decorrente de um projeto de qualificação profissional para este segmento da automobilística que existia na instituição CEFET/RJ desde

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de 1994 à 2000 com a participação da Volkswagen, depois com a participação da General Motos, e por fim da Petrobrás por meio da BR Distribuidora. O CEFET/RJ assumiu a responsabilidade na formação de técnicos em automobilística, pois na época havia pouquíssimas instituições do Brasil a oferecer tal habilitação. O processo seletivo para o curso de automobilística obedeceu a sistemática adotada para o ingresso de alunos do CEFET/RJ, clássico, por meio de edital público.

Atualmente o corpo docente do curso em questão é constituído por doze professores e o quantitativo do corpo discente por semestre é em torno de vinte alunos.

A matriz curricular do curso técnico de Automobilística do CEFET/RJ, encontra-se na tabela 3

3.4. Questões ambientais presentes no curso Automobilística do CEFET/RJ

O curso técnico de Automobilística do CEFET/RJ apresenta dezenove disciplinas de cunho ambiental a priori, seja por meio de sua própria nomenclatura ou pela competência específica ou, finalmente, pelo conteúdo programático, conforme o quadro 1.

É indispensável uma formação com um olhar de preocupação para os problemas sócio-ambientais do século XXI. Com isso, no currículo de Automobilística os alunos se deparam com as questões ambientais durante toda a sua formação acadêmica. Portanto, temos como pressuposto que por meio desta cultura do colegiado, irá proporcionar, seguramente, uma formação acadêmica mais holística, cujo viés fundamental é a formação de cidadãos com consciência ambiental.

Moreira e colaboradores3 (apud Lopes e Macedo, 2005) citam o seguinte argumento central:

“A compreensão do processo de construção e reconstrução de uma área ou disciplina escolar, em um dado estabelecimento de ensino, exige a consideração dos contextos sócio-histórico-cultural, institucional e biográfico nos quais o processo se desenrola. Sustentamos, assim, o ponto de vista de que o caminho seguido por uma disciplina em uma determinada instituição é condicionado por fatores internos e externos, a serem examinados em uma perspectiva sócio-histórica.”

A afirmativa acima é ratificada a partir do momento em que é dada ênfase às questões

ambientais com foco nos impactos ambientais ao longo de toda a formação profissional dos futuros técnicos em automobilística, onde tais questões se inserem principalmente nas disciplinas inspeção técnica veicular e gestão ambiental. Portanto, foca uma preocupação sócio-histórico-cultural, e a relaciona com os fatores externos, de nível macro e que são relevantes no contexto atual, em que a humanidade está aclamando por medidas mitigadoras para minimizar os impactos ambientais existentes no século XXI.

Exemplificando por meio da compreensão da história da disciplina Inspeção Técnica Veicular oferecida atualmente na matriz curricular do curso em questão, a qual discute significativamente as questões ambientais, faz-se necessário resgatar os fatores externos que podem ter sido determinantes para a inclusão desta no currículo. Segundo Rodrigues (2004:47-48) em sua dissertação de mestrado, ressalta-se que:

“O Processo de Inspeção Técnica Veicular é uma atividade recente que vem se desenvolvendo em nosso País, e necessita de novas formas de qualificação para os profissionais que vão atuar nesta atividade. Este fato fez com que uma empresa atuante desta área, o DETRAN/RJ, firmasse um convênio com uma Instituição de Educação

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Profissional, o CEFET/RJ, no intuito de utilizar a experiência acumulada desta Instituição de Ensino na formação e capacitação tecnológica de mão-de-obra especializada. Com a finalidade de atender aos objetivos do Projeto de Capacitação de Recursos Humanos de níveis técnico, médio e superior, oriundo do convênio entre as Instituições, elaborou-se um curso na Área de Extensão sobre Inspeção Técnica Veicular.”

Disciplinas Competência Específica Conteúdo Programático

Gestão Ambiental

* Interpretar a legislação e as normas técnicas referentes à manutenção, à saúde e segurança no trabalho, à qualidade e ao ambiente. * Avaliar o impacto ambiental da manutenção. *Avaliar a influência do processo e o produto no ambiente.

* Elementos poluidores do meio ambiente * Poluição do ar * Camada de Ozônio * Desertificação * Esgotos e Poluição Industrial * Cargas Perigosas * Água potável * Ecossistemas * Leis Ambientais * Categorias de áreas protegidas (parques, reservas, florestas, áreas de lazer e sítios arqueológicos) e seus requisitos.

Segurança do trabalho (1)

Tratamento de superfície I (2)

* Interpretar a legislação e as normas técnicas referentes à manutenção, à saúde e segurança no trabalho, à qualidade e ao ambiente.

* Riscos ambientais (1) *Agressividade do ambiente (2)

Termodinâmica I Termodinâmica II

Metrologia EletroeletrônicaI

Eletroeletrônica II Código de Defesa do Consumidor

Legislação de Trânsito

* Interpretar a legislação e as normas técnicas referentes à manutenção, à saúde e segurança no trabalho, à qualidade e ao ambiente.

Tecnologia dos materiais II Tecnologia automobilística I

Tecnologia automobilística III

* Avaliar a influência do processo e do produto no ambiente.

Tratamento de superfície II

* Interpretar a legislação e as normas técnicas referentes à manutenção, à saúde e segurança no trabalho, à qualidade e ao ambiente. * Avaliar a influência do processo e do produto no ambiente.

* Cuidados no ambiente de trabalho

Sistema Eletroeletrônico Veicular I Sistema eletroeletrônico Veicular II

Sistema Eletroeletrônico Veicular III Inspeção técnica Veicular I

Inspeção Técnica Veicular II

* Interpretar a legislação e as normas técnicas referentes à manutenção, à saúde e segurança no trabalho, à qualidade e ao ambiente. * Avaliar a influência do processo e do produto no ambiente.

Quadro 1 - Disciplinas, competências específicas e conteúdos programáticos do curso técnico de Automobilística do CEFET/RJ com foco nas questões ambientais (fonte: Plano de curso referente à Automobilística do CEFET/RJ cedido pelo Departamento de Ensino Médio e Técnico da própria instituição).

Goodson (1995) de certa forma já antecipara a reflexão acima ao abordar as disciplinas escolares como um exemplo de “tradição inventada”, ou seja, como construções sociais que foram elaboradas em situações históricas particulares, tendo como referência determinadas prioridades sócio-políticas, mas que vieram perdendo esses vínculos sócio-históricos e se naturalizaram ao longo do tempo.

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3.5. Documentos educacionais oficiais à luz de aportes teóricos do campo de políticas de currículos

Pode-se considerar que há uma área intelectual na constituição do campo do Currículo, em que neste espaço determinadas concepções sobre a Teoria de Currículo são legitimadas a partir da presença de diversos atores sociais que são detentores de determinados capitais, social e cultural, além de disputarem pela autoridade na área. Nesse sentido, evidenciando a falta de uma hegemonia entre os pares. No que se refere ao Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2005- 2009 do CEFET/RJ (2005: 9), pode inicialmente levantar a situação de que a educação cada vez mais se torna uma questão de mercado, ao citar a missão institucional que visa:

“Promover a educação mediante atividades de ensino, pesquisa e extensão que propiciem, de modo reflexivo e crítico, na interação com a sociedade, a formação integral (humanística, científica e tecnológica, ética, política e social) de profissionais capazes de contribuir para o desenvolvimento cultural, tecnológico e econômico dessa mesma sociedade.”

Ainda sobre este documento, destacamos um dos objetivos prioritários da instituição que ratifica este olhar para o capitalismo, quando é explicitado “ministrar educação profissional técnica de nível médio, de forma articulada com o ensino médio, destinada a proporcionar habilitação profissional para diferentes setores da economia”. Outro objetivo do CEFET/RJ relevante para relacionar com a temática de política de currículo é o fato de que PDI preconiza “estimular a produção cultural, o empreendedorismo, o desenvolvimento científico e tecnológico, o pensamento reflexivo, com responsabilidade social”. Esse objetivo é está de acordo com Sacristán (1999: 148), quando é citado:

“É importante considerar o tema da cultura para entender a educação e para projetá-la; esquecendo-o, estaríamos falando de ações e de práticas esvaziadas, de certa maneira, de seu sentido. Sem conteúdos culturais densos, considerados como substanciais e relevantes, a escolaridade perde sua significação moderna de elevação dos sujeitos e uma de suas mais fundamentais funções de socialização. O debate essencial da educação é, então, aquele, que gira em torno de qual projeto cultural queremos que ela sirva.”

No que tange à globalização, articulação entre o global e o local, o CEFET/RJ traz no

seu PDI, uma consideração sobre o macrocenário, destacando alguns aspectos da realidade mundial e brasileira, nas dimensões: econômica, política e educacional, conforme o quadro 2. Diante deste contexto acima, pode-se afirmar que a preocupação do CEFET/RJ é corroborada com Taylor e colaboradores4 (1997 apud Lingard, 2004) que mostra como a globalização é considerada e utilizada como uma justificativa contextual no estabelecimento de prioridades de políticas educacionais dentro de sistemas educacionais locais e nacionais. A reforma educacional brasileira, ocorrida em todos os níveis e modalidades, teve seu início com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB9394/96 e com o passar do tempo, diversos Decretos e Pareceres foram inseridos, de acordo com cada modalidade. Regulamentando a Educação Profissional, modalidade de ensino vinculado com objeto de estudo do presente artigo, além da LDB, há o Decreto nº 2.208/97; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional (Parecer CNE/MEC 16/99); os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional (Resolução CNE/MEC 04/99); e atualmente

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o Decreto nº 5154/2004, que regulamenta o parágrafo 2º do artigo 36 e os artigos 39 a 41 da Lei nº 9394 (LDB), substituindo o Decreto nº 2 208/97.

Realidade Mundial Realidade Brasileira Econômica

- reestruturação produtiva em uma economia globalizada; - mudanças tecnológicas em uma sociedade em que o conhecimento se transformou em força produtiva; - desemprego estrutural; - precarização das relações formais de trabalho; - aceleração do ritmo de aparecimento e desaparecimento de profissões.

- modernização do parque industrial; - abertura da economia; - retomada do crescimento ainda sem o correspondente investimento em desenvolvimento social; - elevado nível de desemprego e expansão da informalidade no trabalho e renda; - escassez de disponibilidade financeira

Política - alinhamento dos países não-hegemônicos na condução de interesses comuns e formação de blocos econômicos; - negociação do Mercosul e Alça; - resistência da sociedade em movimentos organizados em nível mundial; - crescimento das organizações do terceiro setor; - o meio ambiente como agenda política da sociedade.

- governo comprometido com as questões sociais, envolvendo também a educação; - política integrada de desenvolvimento nacional; - construção participativa das Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior; - proposta de reestruturação da polítca de educação profissional com interveniência do MEC e Ministério do Trabalho; - proposta de Reforma Universitária.

Educacional - conscientização progressiva dos problemas sociais e ambientais; - valorização do conhecimento como estratégia de desenvolvimento; - utilização de recursos eletrônicos como mecanismos de ampliação e difusão do conhecimento (rede de conhecimento); - necessidade de formação profissional continuada; - demandas para qualificação de professores.

- demanda crescente para educação de nível médio e superior e da educação profissional continuada; - mudança nos mecanismos de avaliação educacional instituído pelo Governo Federal; - lançamento do PROUNI; - utilização crescente da informática; - burocratização no controle de gestão das instituições de educação pública.

Quadro 2 - Macrocenário econômico, político e educacional (fonte: PDI 2005-2009 do CEFET/RJ).

No que se refere à LDB 9394/96 fica explícito a presença do sistema dualista, em que a formação geral está desarticulada da formação profissional e, em seus artigos 39 a 42, preconiza que a Educação Profissional tem por interesse “conduzir o permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva”.

Este fato decorre da alteração do processo produtivo, em que se busca atualmente uma adequação do profissional ao mercado de trabalho, onde será observado o desenvolvimento de

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um trabalho em equipe, havendo todo um reconhecimento das habilidades intelectuais e do raciocínio abstrato.

Ainda sobre a LDB 9394/96, julgamos relevante neste momento, salientar várias colocações preconizadas que se fazem presentes no corpo do documento oficial, como forma de evidenciar em prol das discussões realizadas ao longo deste trabalho com diversos aportes teóricos, tais como:

No Título I (Educação) § 2º do Art 1º diz que a “educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”. Portanto, é o contexto macro influenciando o micro e a realidade social que é socialmente construída e que está constantemente sendo reconstruída. No entanto, vale frisar que se deve parar com a dicotomia de macro e micro.

Em relação ao Título II (Princípios e Fins da Educação Nacional) Art. 2º afirma que: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Assim como os princípios do ensino presentes no Art. 3º “I - igualdade de condições

para o acesso e permanência na escola e II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. Pode-se, desta forma, afirmar que é contexto de pensar na educação na modernidade com idéias iluministas – liberdade, igualdade e fraternidade.

No que diz respeito ao Título IV (Organização da Educação Nacional) em seu Art. 9º diz que a União incumbir-se á de “IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. Assim, pretende-se com essa posição, obter a centralização e ao mesmo tempo a homogeneização da estrutura escolar, já que há essa produção cultural com foco na padronização, Ball (2001) critica o fato de o Estado determinar algo, já que as práticas geram pluralidade de sentidos nas políticas. Portanto, trata-se de uma política que pretende uniformizar, mas de outro lado, há uma complexidade, pois cada um vai ressignificar.

Finalmente, a última abordagem feita no que se refere à LDB 9394/96 está inserida na Seção IV (Ensino Médio) no Art. 35 – IV em que ressalta a “compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”, o que é corroborado por Perrenoud (1999) que ressalta que por meio da articulação entre teoria e prática é que se alcançará o incremento da qualidade do ensino, além de proporcionar o desenvolvimento das competências profissionais em sala de aula. Nesta temática, entende-se por competência profissional a “capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”(Parecer CNE/CEB Nº 16/99 e Parecer CNE/CEB Nº 04/99).

Ainda, o Parecer CNE/CEB Nº 16/99 cita que:

“Alguém tem competência profissional quando constitui, articula e mobiliza valores, conhecimentos e habilidades para a resolução de problemas não só rotineiros, mas também inusitados em seu campo de atuação profissional. Assim, age eficazmente diante do inesperado e do inabitual, superando a experiência acumulada transformada em hábito e liberando o profissional para a criatividade e a atuação transformadora.” (Parecer CNE/CEB Nº 16, 1999:25)

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Deste modo, a argumentação referente à reforma da educação profissional perpassa pela qualificação e adequação ao mercado de trabalho. No ano de 1999 é homologado o Parecer CNE/CEB Nº 16/99 que estabelece as diretrizes curriculares da educação profissional de nível técnico. Neste documento oficial existe uma tentativa de completar a lacuna deixada pela LDB Nº 9394/96 que relaciona a educação profissional apenas a vida produtiva. Portanto, o novo Parecer atribui a preparação para as profissões técnicas, o aprimoramento como pessoa humana, o desenvolvimento da autonomia intelectual e o pensamento crítico, bem como, atenta para a “nova dimensão da educação profissional como direito do cidadão ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida social e produtiva” (CNE/MEC 16/99).

O presente Parecer traz princípios norteadores da educação profissional de nível técnico, tais como: respeito aos valores estéticos, políticos e éticos; desenvolvimento de competências para a laborabilidade; flexibilidade, interdisciplinaridade e contextualização; identidade dos perfis profissionais de conclusão de curso, além de outros.

O Parecer CNE/CEB Nº 04/99 traz as áreas profissionais, com as respectivas caracterizações, competências profissionais gerais e cargas horárias mínimas de cada habilitação. Fazendo um paralelo com o objeto de estudo do presente artigo, a área profissional do curso técnico Automobilística do CEFET/RJ é Indústria com carga horária mínima de 1.200 h e as competências profissionais gerais do técnico na área de Indústria são apresentadas no quadro 3.

Analisando o quadro anterior, resgatamos o posicionamento de Lopes e Macedo (2002:120):

“Tendo em vista a indissolúvel relação entre competência e situações contextuais, as competências seriam construídas na pratica social concreta. Parecendo simples imaginar como os sujeitos se tornam, pela prática partilhada, competentes em diferentes domínios de atividades cotidianas. A dificuldade parece residir em como experiências escolares podem ser planejadas para construir competências situacionais.”

Enfim, buscou-se neste artigo fazer uma discussão curricular com foco na educação profissional, direcionado ao Ensino Técnico de Automobilística do CEFET/RJ, em que as questões ambientais são perpassadas neste currículo escrito. 4. Considerações finais

Os resultados apontam que o currículo é uma produção cultural à luz da concepção crítica de currículo, assim como, a instituição de ensino, constituída por uma comunidade, produz uma cultura escolar.

A inserção das questões ambientais no curso estudado irá influenciar positivamente na formação do trabalhador, uma vez que as mesmas servirão como aporte teórico para as competências a serem desenvolvidas na educação profissional. Embora haja diferenças encontradas no espaço escolar, haverá sempre o discurso de emancipação, universalização de oportunidade para todos e a formação de cidadão pleno, defendida neste trabalho como a formação holística do ser humano, ampliando a sua formação técnica para uma construção de uma consciência ambiental.

Os resultados mostram também que atualmente é inadmissível se pensar na formação do técnico em automobilística sem a preocupação para os problemas sócio- ambientais do século XXI.

Apesar dos impactos ambientais existentes e alarmantes do século XXI causarem uma dificuldade de se pensar no futuro diante da instabilidade ambiental, sinalizamos como saída a

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esperança de um mundo melhor, porém, é necessário que saibamos que a esperança está no presente da ação humana.

Competências Profissionais Gerais da Área de Indústria

- coordenar e desenvolver equipes de trabalho que atuam na instalação, na produção e na manutenção, aplicando métodos e técnicas de gestão administrativa e de pessoas. - aplicar normas técnicas de saúde e segurança no trabalho e de controle de qualidade no processo industrial. - aplicar normas técnicas e especificações de catálogos, manuais e tabelas em projetos, em processos de fabricação, na instalação de máquinas e de equipamentos e na manutenção industrial. - elaborar planilha de custos de fabricação e de manutenção de máquinas e equipamentos, considerando a relação custo e benefício. - aplicar métodos, processos e logística na produção, instalação e manutenção. - projetar produto, ferramentas, máquinas e equipamentos, utilizando técnicas de desenho e de representação gráfica com seus fundamentos matemáticos e geométricos. - elaborar projetos, leiautes, diagramas e esquemas, correlacionando-os com as normas técnicas e com os princípios científicos e tecnológicos. - desenvolver projetos de manutenção de instalações e de sistemas industriais, caracterizando e determinando aplicações de materiais, acessórios, dispositivos, instrumentos, equipamentos e máquinas - projetar melhorias nos sistemas convencionais de produção, instalação e manutenção, propondo incorporação de novas tecnologias. - identificar os elementos de conversão, transformação, transporte e distribuição de energia, aplicando-os nos trabalhos de implantação e manutenção do processo produtivo. - coordenar atividades de utilização e conservação de energia, propondo a racionalização de uso e de fontes alternativas - avaliar as características e propriedades dos materiais, insumos e elementos de máquinas, correlacionando-as com seus fundamentos matemáticos, físicos e químicos para a aplicação nos processos de controle de qualidade. - aplicar técnicas de medição e ensaios visando a melhoria da qualidade de produtos e serviços da planta industrial.

Quadro 3 - Competências da área profissional Indústria (fonte: parecer CNE/CEB Nº 04/99). 5. Referências bibliográficas Arduíno, J. (1998). Abordagem multirreferencial das situações educativas e formativas. Em: Barbosa, J.G. Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: UFSCAR. Auler, D. e Delizoicov, D. (2001). Alfabetização científico-tecnológica para quê? Ensaio-pesquisa em educação em ciências. 03 (01), 1-13. Ball, S. (2001). Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteiras, 1 (2), 99-116. Brasil. (1996). Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília. Brasil. (1997). Ministério da Educação. Decreto Nº 2.208: Brasília.

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- J. L. S. de Lemos é Mestre em Ciências pelo Programa de Ensino em Biociências e Saúde (Fiocruz) e Doutorando do Programa de Ensino em Biociências e Saúde (Fiocruz). Atua como Docente do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (CEFET/RJ). Endereço para correspondência: Av. Maracanã, 229, Bloco D, Coordenação de Biologia. Bairro Maracanã. Rio de Janeiro, RJ 20271-110, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected]. S.Q.M. Leite é formado em Engenharia Química e em Licenciatura em Química (Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), Mestre em Ciências em Engenharia Química (COPPE/UFRJ) e Doutor em Ciências em Engenharia Química (COPPE/UFRJ). Atua como Pesquisador Associado no Programa de Pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde (Fiocruz) e Professor Associado do Instituto Federal do Espírito Santo. E-mail para correspondência: [email protected]. M.A.F. da Costa Mestre em Educação e em Psicopedagogia e Doutor em Ciências. Atua como Pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fiocruz). E-mail para correspondência: [email protected].

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Acerca dos possíveis compromissos entre as obras de Gaston Bachelard e de Jean Piaget

On the relationship between Gaston Bachelard’s and Jean Piaget’s works

Marcelo Leandro Eichler

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo A interlocução entre autores, ou entre suas obras, é uma das práticas da filosofia. Neste artigo, a partir de um relato de um colóquio internacional sobre as obras de Gaston Bachelard e de Jean Piaget, faz-se uma revisão da literatura que visa a indicar possíveis comparações entre suas interpretações epistemológicas e seus mútuos entendimentos sobre a educação em ciências. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 171-194. Palavras-chave: didática das ciências; epistemologia genética; filosofia das ciências. Abstract The dialogue between authors - or between their works - is a common practice in philosophy. Based on an International Colloquium on Gaston Bachelard’s and Jean Piaget’s works, this study provides a literature review and aims to compare possible parallels between epistemological interpretations and understanding of science education in the works of these authors. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 171-184. Keywords: science education; genetic epistemology; philosophy of science.

Introdução

“A verdade é filha da discussão e não filha da simpatia” (Bachelard, 1991: 125)

As obras filosóficas e literárias são sujeitas às múltiplas interpretações, por isso suas

análises críticas são constantes e as discussões, muitas vezes, acaloradas. Neste artigo, faz-se um relato de um colóquio internacional, realizado em Lyon, na França, em maio de 2006, sobre as obras de Gaston Bachelard, Ferdinand Gonseth e Jean Piaget1. Participaram do colóquio cerca de cinqüenta pesquisadores e acadêmicos do Brasil, E.U.A., França, Grã-Bretanha, Itália, Portugal, Romênia e Suíça. Os debates se estenderam por três dias e, aqui, quer-se compor um texto que reproduza as principais exposições do colóquio, acrescidas de uma revisão bibliográfica.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 171-194 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 14/06/2008 | Revisado em 13/10/2008 | Aceito em 26/01/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Revisão

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No colóquio, a maior parte dos palestrantes falou sobre Bachelard ou sobre Piaget, poucos fizeram uma aproximação entre os autores e apenas um pesquisador dissertou sobre Gonseth. Por isso, e também pela maior difusão das obras desses pensadores, neste artigo serão abordadas as aproximações possíveis entre as obras de Bachelard e de Piaget.

Inicialmente, é interessante observar que, na idéia geral desse evento, pretendia-se fazer uma discussão sobre o imaginário racional e a educação aberta, partindo de questionamentos sobre as interpretações cerebrais para a aquisição do conhecimento. Vejamos as seguintes linhas do documento de convite à participação do evento:

“Em sua obra A Filosofia do Não, Bachelard defende a seguinte tese: ‘A criança nasce com um cérebro inacabado e não com um cérebro inocupado, como o antigo postulado pedagógico afirmava’. Convém, então, renunciar a todo método de educação coercitivo (instrução). ‘Deve-se entender o cérebro da criança como um organismo aberto, como um organismo de funções mentais abertas’. Ou, levando-se em conta os trabalhos e as reflexões realizadas por Gonseth e Piaget, vê-se que eles se associam, sem reserva, aos pensamentos formulados por Bachelard sobre a educação.” (tradução do autor)

Sobre essa circunscrição temática e em relação à citação de Bachelard pode ser

interessante ampliar o que consta no convite aos participantes. No livro A Filosofia do Não, encontra-se o que o autor supunha o que realizaria e causaria o acabamento das estruturas e funções cerebrais:

“(...) do ponto de vista estritamente neurológico, Korzybsky [Alfred; Science and sanity: an introduction to non-aristotelian systems and general semantics, 1933] considera a criança como um domínio especial. A criança nasce com um cérebro inacabado e não, como afirmava o postulado da antiga pedagogia, com um cérebro inocupado. A sociedade acaba na verdade o cérebro da criança; acaba-o através da linguagem, através da instrução, através da educação. Pode acabá-lo de diversas maneiras. Em particular – e é nisto que consiste a educação não-aristotélica proposta por Korzybsky – dever-se-ia acabar o cérebro da criança como um organismo aberto, como o organismo das funções psíquicas abertas.” (grifos do autor; Bachelard, 1940/1991: 119-120)

É importante salientar que Bachelard traz essa citação à tona, pois:

“(...) as condições psicológicas e até fisiológicas de uma lógica não-aristotélica foram resolutamente encaradas no importante trabalho do conde Alfred Korzybsky2. (...) Esta obra de quase 800 páginas é o prelúdio de uma enciclopédia cujo plano encara a reforma, no sentido não-aristotélico, de várias ciências.” (Bachelard, 1940/1991: 118)

Sobre as influências biológicas, fisiológicas e neurológicas de Piaget, como procurei

mostrar em outro lugar (Eichler, 2006), é útil destacar que o modelo por ele elaborado foi tributário tanto da epigênese e da assimilação genética de Conrad Hal Waddington (1905–1975), quanto da teoria de sistemas hierárquicos de Paul Alfred Weiss (1898 – 1989) e de Ludwig von Bertalanffy (1901–1972). Porém, como seria de se esperar, tanto os suportes teóricos de Piaget como os de Bachelard estão defasados sobre o assunto, sendo necessário atualizar esse debate, como proponho em Eichler e Fagundes (2005).

O tema das neurociências, ou a relação entre conhecimento e cérebro, não foi um assunto reiterado durante o colóquio, como poderia se esperar pelo convite aos participantes. Os principais assuntos abordados foram a enunciação das epistemologias dos pensadores e

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suas relações com os temas racionalidade, imaginação e educação aberta. Nas próximas secções deste artigo são particularizados alguns dos principais momentos do colóquio, que são descritos a partir das minhas anotações realizadas durante a audiência deste colóquio. O texto, a seguir, altera momentos de relato do evento com uma revisão da literatura acerca dos principais temas debatidos.

Educação aberta

No colóquio, a expressão educação aberta foi utilizada por diversos debatedores. Por exemplo, Maryvonne Perrot, diretora do Centro Gaston Bachelard, na Universidade da Borgonha, em Dijon, na França, ressaltou que alguns entendimentos acerca da pedagogia aberta de Bachelard podem ser encontrados em A Filosofia do Não. Nesse sentido, ela chama a atenção da necessidade de se evitar a educação mutilante, tradicional e diretiva, que representa uma transmissão cultural negativa, apoiada, entre outros, sobre o complexo de superioridade do professor. Na mesma direção, Teresa Castelão-Lawless, do Departamento de Filosofia da Grand Valley State University, no Michigan (E.U.A.), indica que haveria uma relação entre as concepções sobre educação de Bachelard e as proposições pedagógicas escolanovistas de Maria Montessori (1872–1952).

Uma das principais aproximações realizadas entre as obras de diferentes pensadores foi feita por Frédéric Worms, filósofo da Universidade de Lille 3, em Villeneuve-d'Ascq, na França, que defendeu que “existe uma relação profunda entre Bachelard e Bergson3”. Segundo Worms, para esses autores a idéia de educação aberta deriva da própria ação humana, embora essa idéia seja contraditória para eles e difícil de ser definida. Nesse sentido, indicou que a partir dessas duas doutrinas existem soluções diferentes para as questões da filosofia aplicada à educação aberta. As diferenças são não só práticas, mas políticas; não só metodológicas, mas teóricas. As soluções propostas por esses autores para o problema: em Bergson, a filosofia literária e artística; em Bachelard, a educação científica e democrática.

A discussão sobre a idéia de educação aberta, conforme Worms, relaciona-se com a distensão que existe entre o fechado e o aberto. Assim, utilizando um termo caro a Bachelard, pode-se dizer que há uma ruptura quando uma educação passasse de uma forma fechada para uma forma aberta. Worms propõe uma instigante questão: “por que o fechamento nos aparece como inimigo?”. Em uma parte de sua resposta, indica que “a gravidade da distensão é acompanhada da dificuldade de sua realização”. Nesse sentido, sugere que a abertura é por si mesma uma característica da racionalidade científica e que o problema da transmissão da abertura é o problema da educação. Além do mais, a passagem da educação fechada para a educação aberta não é um processo individual, mas histórico e social. Worms encerra sua fala lembrando do trabalho de Popper4, sobre A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Popper, 1987). Essa seria uma sociedade tolerante e pacífica, em contraposição a uma sociedade fechada, como atualmente se manifesta em diversos lugares.

Como pode se depreender dessas declarações a expressão ‘educação aberta’ é associada a diferentes autores, sob diversos significados. Nesse sentido, pode ser útil buscar outro entendimento, segundo a tradição pedagógica. Conforme Hein (1975), a educação aberta representa um conjunto de idéias que possui uma longa história que permanece amplamente inexplorada. Em uma primeira aproximação, à época em que escreveu o artigo, esse autor apontou seus atuais fundamentos na psicologia do desenvolvimento de Piaget. Assim, conforme descrito em detalhes pelos colaboradores de Piaget, pode-se considerá-la uma abordagem centrada no indivíduo, que defende a participação ativa dos sujeitos em sua própria aprendizagem, através da interação com os materiais, em um proposta de integração curricular.

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Desde outro ponto de vista, segundo Traub e colaboradores (1972), a educação aberta é uma estratégia para influenciar o desenvolvimento cognitivo, volitivo e afetivo das crianças. Assim, pode-se inferir que a educação aberta deve fornecer às crianças diversas oportunidades para: i) explorar seu ambiente escolar; ii) tomar decisões sobre sua própria aprendizagem; iii) trabalhar em seu próprio ritmo conforme seu estilo pessoal; iv) aprender através de experiências concretas antes de fazer generalizações abstratas; v) cometer erros sem medo ou censura; vi) ser ajudado a aprender com os seus colegas.

Nesse sentido, segundo esses autores, a experiência de Summerhill5 é, talvez, o melhor exemplo dessa abordagem.

Conforme esses autores, algumas premissas são emblemáticas na abordagem da educação aberta: i) as crianças são curiosas inatas; ii) as crianças explorarão seu ambiente quando ele não for ameaçador; iii) as crianças tem a competência e o direito de tomar decisões significativas em relação a

sua própria aprendizagem; iv) as crianças que aprenderam alguma coisa que julgam importante desejam partilhar isso

com os outros; v) as crianças se desenvolvem intelectualmente ao seu próprio ritmo e em seu próprio

estilo; vi) o desenvolvimento intelectual ocorre melhor em uma seqüência de experiências

concretas seguidas por abstrações verbais; vii) os erros são uma parte essencial da aprendizagem; viii) a aprendizagem das crianças é melhor avaliada através de observações concluídas

sobre um longo período de tempo. Porém, é preciso fazer uma ressalva. Como Hein (1975) sugeriu, “não existem idéias

novas; o que é novo sobre a educação aberta é a combinação de um conjunto de opiniões, a defesa de uma filosofia abrangente e um ponto de vista”. Portanto, essa abordagem envolve a combinação de uma teoria de aprendizagem, uma teoria do conhecimento (poder-se-ia dizer, epistemologia) e, acima de tudo, uma teoria social consistente com tais pontos de vista, o que tornava, à época, a educação aberta uma proposta amplamente debatida para implementação.

Atualmente, há novidades. São novos os suportes tecnológicos, através da informática, e conceituais, a partir das neurociências. Nesse sentido, é importante trazer uma citação como advertência ao entendimento contemporâneo da educação aberta. Em um documento da UNESCO, Perraton e Creed (2000) definem a educação aberta como uma atividade educativa organizada, que se apóia sobre as matérias de ensino, permitindo reduzir as dificuldades impostas ao estudo, tais como: acessibilidade, tempo e lugar, ritmos e métodos pedagógicos, ou todas as combinações desses fatores. Assim, parece que a tecnologia traz novas oportunidades e a educação aberta é bem-vinda. Porém, nesse mesmo documento, chega-se a entender que a educação aberta, e à distância, teria duas grandes finalidades: substituir a educação realizada nos estabelecimentos escolares no que diz respeito (i) ao final do ensino fundamental6 e (ii) à formação de professores7, momentos em que se iniciam ou ampliam a utilização de tecnologias informáticas.

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Feitos esses comentários, encontrados na literatura, voltemos às declarações feitas no colóquio. Vejamos como o entendimento de educação aberta, encontrado em documentos oficiais da UNESCO (Perraton e Creed, 2000), está longe do entendimento acadêmico dos participantes do colóquio. Por exemplo, Eric Emery, presidente da Associação dos Amigos do Centro Ferdinand Gonseth, em Grandvaux, na Suíça, postulou que, como o termo sugere, a educação aberta é oposta ao que se poderia chamar de educação fechada, que representaria a educação dita tradicional, a “educação bancária” cunhada por Paulo Freire. É claro que Paulo Freire não concordaria com a idéia de educação aberta do citado documento da UNESCO, embora pudesse aceitar os significados apresentados no colóquio.

Algumas das discussões acerca da educação aberta foram particularizadas ou exemplificadas em relação ao próprio fazer científico. Na exposição de Marly Bulcão8, professora de filosofia da UERJ, foi ressaltada a pluralidade e a mobilidade do racionalismo bachelardiano, o que seria uma vantagem em relação a outras abordagens filosóficas. Por exemplo, “Bachelard vai dizer que os sistemas filosóficos fechados são incapazes de explicar a variabilidade da ciência” (Bulcão, 1999: 18).

Nesse sentido, conforme a fala de Castelão-Lawless, as noções de cientificidade influenciam as concepções sobre a educação das ciências, cuja importância é compreendida uma vez que “uma má educação em ciências resulta em uma educação incompleta”. Porém, não nega a existência da dificuldade dos alunos em compreender a ciência moderna, sugerindo que isso é culpa da tradição escolar, onde não há uma ciência bem socializada, mas sim bem imobilizada. É justamente essa escola imobilizada aquela que não atinge os alunos. Portanto, Castelão-Lawless defendeu uma escola aberta que, entre outras funções, poderia, também, servir de local para a popularização das ciências.

A exposição de Castelão-Lawless sobre a educação em ciências suscitou diversos apartes dos participantes do colóquio. Por exemplo, o teólogo suíço Pierre-Marie Pouget fez uma crítica ao movimento CTS9, sugerindo que “o ensino de ciências, na escola, cada vez mais tem se aproximado de um aspecto utilitário, visando ao uso imediato do conhecimento”. Porém, embora concordando parcialmente com essa idéia, Thomas Kesselring, filósofo e professor da Universidade de Berna, Suíça, ressaltou que o sistema CTS na educação em ciências apresenta importantes relações com a motivação para a aprendizagem. Ainda em relação a esse debate, Julien Lamy, doutorando em filosofia da Université Jean Moulin - Lyon 3, concordou com esses depoimentos, pontuando que “a pedagogia atual está demasiada voltada à aquisição de técnicas e de competências”, defendo que para Bachelard “a pedagogia seria outra, mais baseada no fazer científico”.

Em relação aos debates sobre a cientificidade, cabe lembrar que Lecourt (2002) postula que a própria epistemologia de Bachelard deve ser considerada como uma filosofia “aberta”. Lecourt indica que ela será aberta a tal ponto que, se a evolução da conjuntura científica o exigir, pode-se conceber, no sentido bachelardiano do termo, uma epistemologia não-bachelardiana. Nas próximas secções apresento um breve resumo das compreensões de Bachelard e de Piaget acerca da epistemologia.

Sobre a epistemologia de Bachelard

Antes que se abordem as declarações reunidas do colóquio, é pertinente apresentar algumas definições sobre a epistemologia de Bachelard encontradas na literatura. Inicialmente, é oportuno indicar que “a arquitetura do texto de Bachelard é complexa” (Lecourt, 2002: 14). Isso sugere, por exemplo, a multiplicidade de interpretações que podem ser encontradas na literatura secundária sobre sua obra.

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Segundo Laberge (2003), Bachelard continua sendo um dos filósofos franceses mais traduzidos e o seu pensamento e os seus livros atravessam as disciplinas, as épocas e as nações, porém segundo percursos muito diferentes, em razão de sua produção abundante e variada. Nesse sentido, conforme esse autor, em certos países, como em Portugal, na Itália e nos países árabes, foram privilegiados os textos filosóficos e epistemológicos de Bachelard, enquanto em outros lugares foram os livros sobre o imaginário e a poética dos elementos (fogo, água, ar e terra) que inspiraram os textos de interpretação e de extensão de sua obra.

Dessa forma, conforme Bulcão (1999), a riqueza e a complexidade da obra de Bachelard favorecem a existência de inúmeras interpretações de sua obra, que convergem, porém, para o reconhecimento de sua importância no contexto da cultura atual. Portanto:

“as categorias bachelardianas estão presentes em quase todos os debates teóricos que acontecem nas mais distintas áreas de saber. Acolhidas, contestadas ou discutidas marcam presença nas ciências físico-químicas, na psicologia, na pedagogia, na história, na crítica literária e até mesmo na ética.” (Bulcão, 1999: 147)

As múltiplas interpretações anunciadas na literatura fizeram parte das tensões

presentes no colóquio. Nesse sentido, a apresentação de Paolo Montanna, professor da Universidade de Milão, na Itália, é exemplar. Montanna disse que Michel Fabre (1995) propôs uma articulação entre o Bachelard epistemólogo e o Bachelard poético, observando dois períodos em seu pensamento e uma evolução entre eles. No primeiro Bachelard, o racionalismo domina sua obra. No segundo Bachelard, é a poesia que domina, e isso foi feito para compreender e exercer o saber transdisciplinar.

Nesse sentido, Montanna sugeriu que é necessário recuperar a dupla leitura de Bachelard: a científica e a imaginativa simbólica. Além do mais, conforme recordou, Fabre (1995) disse que “se deve aprender para compreender Bachelard”. Nessa interpretação – que eu considero francesa e ortodoxa – uma vez que sua obra é considerada hermética, o aprendizado dela necessita da orientação de especialistas – entendo que está subjacente que tal orientação seria aquela dos filósofos franceses que estudam o imaginário bachelardiano.

Utilizando uma noção muito cara à Bachelard, a partir da exposição de Montanna pode se depreender a seguinte pergunta: a falta de conhecimento aprendido (ou ensinado) poderia ser um obstáculo epistemológico para a compreensão da obra de Bachelard?

Porém, é preciso salientar, conforme Bulcão (1999), que a noção bachelardiana de obstáculo epistemológico “apesar da enorme importância que tem para o pensamento de Bachelard, se apresenta como uma noção bastante ambígua, dando margem às mais diversas e até mesmo contrárias interpretações” (Bulcão, 1999: 33). Entende-se por obstáculo epistemológico as perturbações que se incrustam no próprio ato de conhecer e que constituem os atrasos ou as causas da inércia do pensamento. Assim sugere que:

“(...) esses obstáculos não são externos, como por exemplo, a complexidade dos fenômenos, a debilidade dos sentidos ou do espírito humano, mas estão no ato mesmo de conhecer. (...) Bachelard classifica os ‘obstáculos epistemológicos’ em gerais e particulares, dando mais importância aos primeiros, que resumem duas atitudes radicalizadas, sempre presentes no conhecimento. Os obstáculos gerais podem ser reduzidos às metafísicas opostas que constituem motivo de crítica constante na obra de Bachelard: realismo e racionalismo. Os obstáculos particulares [verbalismo, substancialismo e animismo] são mais específicos e muitas vezes já estão implícitos nos gerais, sendo destacados por Bachelard mais por uma questão de clareza de exposição.” (Bulcão, 1999: 34-37)

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Como extensão da elaboração do conhecimento científico, a noção de obstáculo epistemológico é muito utilizada no âmbito da educação em ciências, como se pode encontrar, por exemplo, em Silva (1999). Nesse sentido, o lugar do obstáculo epistemológico no processo de conhecimento é variável. De acordo com Lecourt (2002: 55) “ele pode surgir ao momento da constituição do conhecimento, ou em um estágio posterior de seu desenvolvimento, uma vez que ele já foi constituído em conhecimento científico”. Especificamente em relação à educação científica, Castelão-Lawless (2005) indica que:

“[Bachelard] identifica alguns dos obstáculos epistemológicos aos quais os alunos, professores de ciência e cientistas devem estar constantemente alerta. Estes incluem o animismo, o substancialismo, a opinião, a experiência concreta quotidiana, a observação direta, a ciência dogmatizada, a fixidez da razão, o conhecimento quantitativo, o inconsciente coletivo, os sonhos, os livros, os professores, os obstáculos verbais, as leis gerais, a utilidade dos fenômenos naturais, a unidade da natureza, etc. Todos são ‘causas da estagnação e da regressão’ do pensamento científico. Mesmo o pensamento mais exigente é influenciado por estes elementos que subsistem nas ‘zonas obscuras’ do espírito e são eles que distorcem a qualquer momento a interpretação da descoberta científica.” (Castelão-Lawless, 2005: 323-324)

Apesar da importância e da ampla utilização dessa noção, é evidente que

epistemologia de Bachelard é muito mais ampla do que suas declarações sobre o que obstaculiza a elaboração do conhecimento científico. Em vários de seus livros, Bachelard expõe as tarefas da filosofia das ciências, fixando as principais características de sua epistemologia, e mostrando em que consiste o racionalismo na ciência contemporânea, discernindo as mudanças que marcaram o desenvolvimento das ciências físico-químicas. Segundo Bulcão (1999), “para ele, a epistemologia deve analisar a atividade concreta da ciência, despreocupada em estabelecer a essência do conhecimento científico, visando descobrir as interferências que retardam o desenvolvimento da ciência” (Bulcão, 1999: 10).

Conforme Lecourt (2002), Bachelard mostra que, por um lado, a filosofia utiliza conceitos de realidade, de matéria, de espaço e de tempo, por exemplo, “como se a ciência não dissesse nada, ou como se o que ela dissesse não lhe interessasse” (Lecourt, 2002: 19). Por outro lado, “a filosofia, quando toma a ciência por objeto, visa a uma ciência ideal, muito diferente da ciência tal como ela existe efetivamente” (Lecourt, 2002: 19).

Em certo sentido, conforme já analisado em outro lugar10 (Eichler, 2001), esse objetivo é partilhado por Bunge (1998), que pedindo escusas pela metáfora, sugere que: “para entender como a ciência funciona alguém deve olhar em sua face. (...) De outra maneira, não se contribuirá com qualquer verdade, quanto mais original, para o conhecimento do conhecimento científico” (Bunge, 1998: 405). Esse olhar na face da ciência ocorreria por quê:

“(...) qualquer autêntico filósofo da ciência tem dois objetivos, um epistêmico, outro pragmático. O primeiro é compreender a pesquisa científica e alguns de seus achados. A outra finalidade é auxiliar os cientistas a aguçar alguns conceitos, refinar algumas das teorias, escrutinar alguns métodos, revelar pressupostos filosóficos, resolver controvérsias e introduzir dúvidas sobre pontos aparentemente controversos. Um objetivo complementa o outro.” (Bunge, 1998: 405)

Nesse sentido, há, também, em Bachelard o mesmo desencantamento com a filosofia

que manifestaram Bunge (2001) e Piaget (1983), embora esses autores tenham razões diferentes para tal desencanto. Por exemplo, Bulcão (1999) sugeriu que a novidade e que a

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originalidade de Bachelard, em relação a sua época, foi a orientação de sua filosofia das ciências, que deixou de ser filosófica, relegando a segundo plano seus princípios gerais e refletindo “o pensamento científico na sua especificidade, na sua mobilidade e na sua dinamicidade” (Bulcão, 1999: 149). Dessa forma, de acordo com essa autora:

“(...) não é muito fácil apresentar as características da nova filosofia das ciências, pois, embora Bachelard afirme a necessidade de se estabelecer novas11 bases para analisar a ciência contemporânea, em nenhum de seus livros é possível encontrar claramente delineadas tais características. É sempre em relação à inadequação das filosofias de sua época que Bachelard coloca as tarefas da nova epistemologia.” (Bulcão, 1999: 16)

A descrição do contexto científico da época pode ser útil para compreender a novidade

enfrentada e refletida por Bachelard. Por exemplo, Lecourt (2002) recorda que em:

“1927, o ano em que Gaston Bachelard defende suas duas teses de doutorado, testemunha Max Born enunciar a teoria probabilística do elétron, [Werner] Heisenberg formular o princípio da incerteza e [Georges-Henri] Lemaître a hipótese do universo em expansão. Quando se observa essa década, percebe-se que ela não é menos rica em trabalhos científicos de grande importância: em 1925, [Robert] Millikan descobriu os raios cósmicos, em 1924 Heisenberg fundou a Mecânica Quântica e foi em 1923 que foram publicados os primeiros trabalhos de Louis de Broglie sobre a mecânica ondulatória. Acrescente-se (...) que a obra de Einstein sobre a teoria da relatividade restrita e geral apareceu em 1913. Tomando conhecimento desses trabalhos, Bachelard logo teve uma consciência aguda da aceleração do momento científico. Porém, o que lhe chamou mais a atenção foi, sobretudo, a novidade dessas teorias e dos conceitos que elas punham em jogo.” (grifos do autor; Lecourt, 2002: 17)

Além do mais, ainda seguindo o breve histórico desse autor:

“(...) os anos 1930 são na Física anos de profundas transformações. É em 1930 que [Paul] Dirac apresenta sua interpretação relativista da mecânica ondulatória e a hipótese do elétron positivo. Em 1931, [Wolfgang] Pauli descobre12 os neutrinos e, em 1932, [Carl] Anderson descobre os pósitrons nos raios cósmicos. Ao mesmo ano é posto em funcionamento o primeiro ciclotron, por [Ernest] Lawrence. Em 1934, [James] Chadwick descobre o nêutron; o méson é descoberto em 1936. Essas datas são dadas de forma indicativa, pois se relacionam com eventos sobre os quais Bachelard refletiu, em um momento ou outro de sua obra.” (Lecourt, 2002: 93)

Portanto, a partir da análise da obra de Bachelard, Bulcão (1999) sintetiza as principais

tarefas que uma filosofia das ciências adequada à atividade científica contemporânea deveria cumprir:

i) procurar analisar as construções racionais da ciência, em lugar de considerar a ciência

como uma continuação do conhecimento comum, pois só assim se estaria reconhecendo e valorizando a novidade do pensamento contemporâneo;

ii) refletir sobre a linguagem científica, a fim de mostrar sua oposição à linguagem comum;

iii) mostrar o caráter social da ciência, salientando que o trabalho científico não pode ser individual e que a racionalidade é uma conquista da comunidade de sábios;

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iv) tornar ‘aberta’ a filosofia das ciências, isto é, não se deixar vincular a nenhum sistema filosófico prévio, conseguindo, assim, acompanhar a evolução da ciência, deixando-se ao mesmo tempo determinar por ela.

Uma vez realizadas essas tarefas, a sua época, Bachelard pôde elaborar um recorte

histórico e descrever a evolução do pensamento científico em três etapas. Segundo a descrição de Bulcão (1999):

“(...) o primeiro período, denominado por ele de estado pré-científico, compreende a Antigüidade clássica, a Idade Média, o Renascimento e os séculos XVI, XVII e XVIII, quando novos esforços nos campos da ciência se fazem evidentes. O segundo período representa o estado científico, tendo início na segunda metade do século XVIII, atravessando o século XIX, até o início do XX. O terceiro é o estado do novo espírito científico, que se caracteriza pelas revoluções ocorridas na ciência, quando o aparecimento de novas teorias contraria conceitos primordiais que haviam sido fixados como verdades absolutas para sempre. É a época em que a razão ensaia as abstrações mais audaciosas como podemos constatar nas teorias contemporâneas.” (Bulcão, 1999: 34)

Nesse sentido, conforme Wunenburger (2005), os estudos sobre a formação do espírito

científico de Bachelard, ou seja,

“(...) sobre a passagem do espírito pré-científico ao espírito científico nas histórias inspiradas por suas concepções da psicologia genética (num sentido próximo ao da de Piaget13), convergem com a idéia de que o espírito está inicialmente imerso numa iconosfera subjetiva, cujas produções permanecem muito dependentes das necessidades e emoções e da vida inconsciente. A educação para a racionalidade e para a cultura partilhada necessita então de uma inversão, uma depuração desse imaginário primeiro, com a ajuda de um trabalho de purificação semelhante ao da psicanálise.” (Wunenburger, 2005: 40)

Na busca dos compromissos possíveis entre as interpretações, dos diferentes autores,

acerca da teoria do conhecimento seria possível fazer uma análise dos pontos sugeridos por Bulcão (1999) – citados anteriormente. Nesse sentido, desde uma tradição de pesquisa bachelardiana, poder-se-ia mostrar a elaboração e o desenvolvimento da psicologia e da psicologia genéticas, descrevendo e analisando o programa de pesquisas piagetiano no estabelecimento e na evolução dessas disciplinas. Além disso, seria preciso assegurar que as ditas análises bachelardianas não fossem “fechadas” em relação à ciência ou a disciplina que contemplam. Assim, na próxima secção, descrevem-se, brevemente, as características do projeto de pesquisa piagetiano sobre a teoria do conhecimento: a epistemologia genética.

Sobre a epistemologia de Piaget

A abordagem da teoria do conhecimento postulado por Piaget analisa os métodos pelos quais são elaboradas as teses epistemológicas. Assim, parece ser aceito pelos filósofos da ciência que todos os problemas epistemológicos são encontrados em uma perspectiva histórico-crítica. Essa perspectiva não é entendida como uma “história anedótica das descobertas, mas como história do próprio pensamento científico (...), o método histórico-crítico consiste, precisamente, em julgar o alcance real das noções por sua construção

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histórica” (Piaget, 1970/1973: 108). Conforme Piaget, essa perspectiva afasta o improviso que possa existir nas filosofias.

No entanto, esse método não é o único. Segundo Piaget (1970/1973), é possível “prolongar a análise histórico-crítica com uma investigação psicogenética” (Piaget, 1970/1973: 109), entendida como o estudo da origem e evolução das funções mentais. Nesse sentido, deve-se lembrar que os trabalhos de Piaget não são os únicos a seguirem esse curso, uma vez que: “os belos estudos de Leon Brunschvicg [terminam] por um esboço da gênese mental das noções [e] cada estudo crítico de Henri Poincaré utiliza tal recurso” (Piaget, 1970/1973: 110). Ocorre que os autores citados por Piaget faziam a investigação psicogenética através da análise das noções, sem submetê-las a comprovações experimentais. Ou seja, como verificar se as inferências desses autores seriam verdadeiras? Piaget entendeu que o exame dos comportamentos da criança poderia trazer mais aportes para esse debate e, então, talvez corroborasse os postulados desses filósofos da ciência.

A maior parte dos estudos de Piaget seguiu o caminho psicogenético. Os tratados escritos por Piaget – relatórios de pesquisas desenvolvidas em cooperação com seus diversos colaboradores – contemplam o problema central da teoria do conhecimento: quais as relações envolvidas entre sujeito (conhecedor) e objeto (conhecido). O estudo dessas relações abarcou tanto as características da experiência quanto as do pensamento. Nesse particular, é importante lembrar que, em geral, Piaget não se interessou pela individualidade das crianças participantes de seus estudos, seu interesse foi pelo “sujeito epistêmico, ou seja, por estruturas cognitivas comuns a todas as crianças” (grifo do autor; Kesselring, 1997: 27).

A teoria do conhecimento, também chamada de epistemologia, costuma ser descrita como umas das partes da filosofia como também são a metafísica, a ética e a lógica. Entendendo-se assim, no campo da filosofia, quem se dedica à teoria do conhecimento visaria, de preferência, estabelecer critérios para o conhecimento que, possivelmente, colocariam limites ao que pode vir a ser conhecido. Ocorre que essa separação das partes da filosofia é mais para efeitos de estudo, ou seja, o que se estuda em uma parte está relacionada a outra. Citando um exemplo, as concepções que se têm acerca da estrutura da realidade - objeto da metafísica - estão relacionadas com aquilo que está ao alcance do conhecer - objeto da teoria do conhecimento. Então, como delimitar, para efeito de estudo, questões voltadas à teoria do conhecimento, sem que se entre nos domínios da metafísica?

Na obra de Jean Piaget há algumas passagens que podem ser úteis para saber como ele colocava em questão seu objeto de estudo. Conforme Piaget (1970/1973) é possível dissociar a teoria do conhecimento da metafísica desde que se delimite metodicamente o objeto de estudo. Assim, por exemplo, trata-se de estudar: “como aumentam os (e não o) conhecimentos” (Piaget, 1970/1973: 32), “considerados em sua multiplicidade e, principalmente, na diversidade de seus respectivos desenvolvimentos” (Piaget, 1970/1973: 104). Bem como, “por quais processos uma ciência passa de um conhecimento determinado, julgado depois insuficiente, a outro conhecimento determinado, julgado depois superior pela consciência comum dos adeptos desta disciplina” (Piaget, 1970/1973: 32-33). Essa segunda questão, por si só, já bastaria para afastar o estudo das conotações metafísicas.

Sendo essas as questões mais gerais, pode-se delas retirar pressupostos e implicações. Assim, se todo conhecimento é sempre um vir a ser - e “jamais se considera seu estado como definitivo” (Piaget, 1970/1990: 4) - as questões estão relacionadas ao processo de passar de um conhecimento menor - e “jamais existem começos absolutos” (Piaget, 1970/1990: 3) - para um estado mais completo e mais eficaz, então, “é claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de analisá-lo da maneira mais exata possível” (Piaget, 1970/1990: 14).

Nesse sentido, lembra-se que “todo aumento do conhecimento científico supõe, sem dúvida, um processo de pensamento, isto é, um raciocínio, de uma forma ou de outra” (Piaget,

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1970/1990, p. 1). Então, se todo conhecimento contém um aspecto de elaboração nova (ou seja, a passagem de um conhecimento menor para outro mais completo e eficaz), que opiniões, postulados, teorias gerais ou modelos teóricos poderiam explicar o processo de pensamento envolvido na elaboração dos conhecimentos?

Nas muitas obras de Piaget essa questão está presente, mas parece ter sido abordada mais objetivamente nos livros dedicados ao desenvolvimento do pensamento (Piaget, 1977) e às abstrações (Piaget, 1977/1995). Nesses e em outros livros, conforme postula Ramozzi-Chiarottino (1997), “[Piaget] criou modelos abstratos, formais, para explicar um fenômeno natural, mas não diretamente observável, ou seja, o funcionamento das estruturas mentais do ser humano” (Ramozzi-Chiarottino, 1997: 111).

Assim, depreende-se que Piaget propôs – e submeteu à experimentação – modelos teóricos para o sistema cognitivo, ou em outras palavras, a partir de seus diversos estudos, ele propôs um conjunto de teorias específicas relacionadas à teoria do conhecimento. Sendo este um de seus maiores méritos: “haver tirado a epistemologia do domínio da filosofia especulativa, para transformá-la em uma disciplina suscetível de corroboração e refutação empírica, ou por assim dizer, para transformá-la em ciência” (Garcia, 1996: 56).

Durante o colóquio que venho relatando, uma importante contribuição acerca da obra de Piaget, bem como sobre as aproximações possíveis com a obra de Bachelard, foi dada por Jean-Jacques Ducret, pesquisador do Service de la recherche en éducation du Cantón de Genève e presidente da Fondation Jean Piaget. Iniciando sua fala, Ducret declarou que Bachelard e Piaget foram os autores que o formaram – embora só houvesse conhecido pessoalmente o segundo. Assim, sugeriu que ambos os autores empreenderam um estudo sobre a razão humana, particularmente, a razão científica, que é chamada de racionalidade. Nesse sentido, ele ponderou que comparar Bachelard e Piaget seria retirar “as conseqüências pedagógicas da razão humana”.

Conforme Ducret, interpretando a obra de Piaget, pode-se dizer que “a razão científica é a melhor expressão da razão humana” e, de forma mais particular, que “a atividade intelectual do sujeito está ligada às necessidades interiores”. Nesse sentido, Ducret apontou que, desde as diversas tradições epistemológicas, é possível estudar tanto a razão constituída quanto a razão constituinte. Uma vez que o estudo da razão constituinte permite contemplar o dinamismo e a abertura própria da razão, Piaget optou por estudar essa, porém conhecendo os contornos daquela, em relação ao pensamento científico de sua época.

Em resumo, Ducret sugeriu que as pesquisas piagetianas em epistemologia genética, ao abordar a razão constituinte, possuem algumas características comuns:

1) as pesquisas são realizadas sobre as ações das crianças, buscando depreender a

significação das ações em relação a suas coordenações inferenciais. 2) as pesquisas visam estudar o funcionamento do pensamento (e não apenas a estutura). 3) os resultados apresentados manifestam o papel epistemológico dialético e interativo

das ações dos sujeitos. 4) existe a busca por um novo motor, no qual se possa expressar a necessidade que a

criança tem de encontrar a verdade constituinte das coisas, ou de suas ações sobre as coisas. Nas próximas secções, mantendo o objetivo indicado ao início deste artigo, serão

abordados alguns dos compromissos possíveis entre as obras de Bachelard e de Piaget, bem como suas implicações para a educação em ciências. Compromissos possíveis

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Durante o colóquio, foi Ducret quem melhor abordou as aproximações entre as obras epistemológicas. Segundo Ducret, tanto Bachelard quanto Piaget realizaram estudos sobre a explicação científica, utilizando uma estrutura materialista. Nesse sentido, ele indicou que duas possíveis comparações (ou compromissos) entre as obras de Piaget e de Bachelard são em relação às enunciações sobre a filosofia das ciências e em relação às propostas pedagógicas e implicações educativas subjacentes as suas abordagens filosóficas.

Em relação à primeira comparação, o compromisso possível entre as duas obras poderia, segundo Ducret, ser buscado em um estudo paralelo sobre os principais mecanismos epistemológicos comuns, como por exemplo, os mecanismos de abstração e de generalização. Na opinião de Ducret, embora os pontos de vista sejam diferentes, eles não são contraditórios. Por exemplo, as evidências das pesquisas de Piaget se dão no nível da generalização implicativa, enquanto que as evidências de Bachelard se dão no nível da generalização construtiva. Nesse sentido, talvez haja uma continuidade entre tais interpretações. Por outro lado, Ducret aponta que Bachelard jamais citou Piaget, embora o contrário tenha acontecido bastante. Na busca por esse compromisso, seria necessário investigar as declarações de um e os silêncios de outro.

Desde outro ponto de vista, em uma segunda comparação, os dois autores são importantes para educação. Conforme Ducret, na educação científica, por exemplo, os estudos de Piaget podem servir de implicação para pesquisas ou estratégias que procurem centrar foco sobre a importância do aluno nas atividades didático-pedagógicas. Por sua vez, nessas mesmas atividades, os estudos de Bachelard são muito úteis quando se quer ressaltar a importância do professor. Essas visões seriam, portanto, complementares do ponto de vista da educação.

Essa segunda comparação será aprofundada na próxima secção. A seguir se destaca alguns dos compromissos possíveis em relação à filosofia das ciências, conforme se depreende de revisões bibliográficas, a partir de temas como: i) as opiniões sobre filósofos contemporâneos aos autores (Emile Meyerson, por exemplo); ii) a continuidade ou a descontinuidade do desenvolvimento científico; e iii) a construção do objeto científico.

Em um livro que aborda a razão constituída, para usar os termos propostos por Ducret durante o colóquio, Piaget (1983) faz uma crítica ao alcance da filosofia no estudo dos problemas acerca do conhecimento. Nesse livro, algumas vezes ele cita Bachelard. Por exemplo, sobre sua experiência na Sorbonne14, Piaget (1983) relata a recepção de sua obra sobre a epistemologia genética: “(...) G. Bachelard não parecia me querer mal e os outros colegas não tinham sem dúvida lido essa obra exageradamente grande, em três volumes [Introduction à l’Epistémologie Génétique]” (Piaget, 1983: 85). Ainda nesse livro, mais adiante, Piaget faz os necessários elogios aos filósofos em debate no colóquio que venho relatando neste artigo:

“(...) as filosofias correntes procedem reflexiva ou dialeticamente, sem ligar-se ao aparelho conceitual da ontologia fenomenologista, fazem muitas vezes apelo às questões de fato, já que elas se ocupam do conjunto da realidade e não apenas da lógica formal. (...). A questão é então examinar como os filósofos abordam as questões de fato, dado que toda sua formação prepara-os para tratar de seus problemas por meios puramente reflexivos, enquanto que um fato presume no minimum uma constatação e mesmo uma constatação não se pode efetuar sem método. (...). Que eu saiba, uma única filosofia contemporânea abordou esse problema de método, salvo, é claro, as filosofia da ciências que estudaram o que é fato em uma ciência experimental: por exemplo a admirável análise de G. Bachelard sobre La connaissance approché. (...). Parece-me que a única filosofia que levou a sério esse problema foi o ‘idoneísmo’ de F. Gonseth,

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uma filosofia das ciências antes de mais nada, é verdade, mas que não teme as questões gerais como, se a ocasião se apresentar, a da liberdade. Ora, entre os princípios que Gonseth coloca no início de sua filosofia, como o da abertura, etc., há um que se notou muito pouco porque no seu contexto ele parece evidente: é o da ‘tecnicidade’, segundo o qual todo o conhecimento é relativo ao emprego de uma técnica particular, que permite sozinha assegurá-lo, como a formalização axiomática para os conhecimentos dedutivos ou os diferentes tipos de observação metódica (com controle estatístico) ou de experimentação para os conhecimentos dos fatos.” (Piaget, 1983: 178-179)

Como abordado anteriormente, as citações mútuas são raras e, portanto, de difícil

análise. Um das estratégias que pode ser utilizada no estudo dos compromissos possíveis é a análise que os diferentes autores comparados fazem de diversos pensadores que lhes são contemporâneos ou que lhes antecederam. Bachelard e Piaget, no decorrer de suas obras, elaboraram críticas aos entendimentos epistemológicos de Meyerson15. Nesse sentido, poder-se-ia comparar as críticas que esses autores fazem a Meyerson com o objetivo de verificar, a partir de um mesmo e importante referencial filosófico, em que esses autores concordam ou discordam, ou seja, quais seriam os compromissos filosóficos possíveis entre Bachelard e Piaget? Ou, ainda, quais seriam as inspirações e matrizes filosóficas comuns a esses autores? Mesmo que neste artigo não se busque esgotar as respostas a essas questões, alguns apontamentos são pertinentes.

A vulgarização do termo epistemologia é devida à Meyerson. Bulcão (1999) indica que o termo ‘epistemologia’ foi utilizado por Meyerson como um neologismo equivalente de filosofia das ciências e, então, foi disseminado na cultura filosófica francesa. Posteriormente, observa-se, conforme Lecourt (2002), “a obstinação que Bachelard se põe em refutar Meyerson” (Lecourt, 2002: 28).

Segundo Barbosa e Bulcão (2004):

“Toda a obra meyersoniana tem como intuito demonstrar que a ciência é, em última instância, ontologia e, nesse sentido, sua preocupação primordial é expressar de forma absoluta a natureza. Para Bachelard, ao contrário, a ciência é construção e tem como finalidade concretizar fenômenos que são pensados teoricamente. Assim, segundo a epistemologia bachelardiana, não há um real que anteceda ao ato mesmo de conhecer, pois a ciência constitui seu próprio objeto ao longo do ato cognoscente. (...) Um outro ponto de divergência profunda entre os dois pensadores diz respeito à concepção de razão. Para Meyerson, a razão se desenvolve a partir de categorias absolutas, presentes em toda atividade cognitiva, enquanto para Bachelard a razão é fundamentalmente descontínua retificando-se a si mesma, a seus métodos e a seus próprios princípios, o que a torna dinâmica e inconstante.” (Barbosa e Bulcão, 2004: 22)

Por sua vez, Piaget (1927/2001, 1971, 1974) apreciou constantemente e criticamente a

obra de Meyerson em relação à explicação científica e seus componentes de legalidade e de causalidade. Por exemplo, em Piaget (1971) há o propósito de discutir a obra de Meyerson por que:

“(...) nenhum autor soube, com tanta lógica e coragem intelectual, descrever esse ‘monstro amputado’ que é a razão exclusivamente identificadora. O reducionismo de Meyerson e sua crença no primado da identificação estão muito distantes de nossas próprias crenças, [porém] nos pareceu indispensável tentar um exame crítico um pouco cuidadoso.” (Piaget, 1971: 152)

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Como se pode depreender a crítica é similar: ataca-se ao reducionismo, porque ele não descreve e justifica o estatuto da ciência, o desenvolvimento científico, ou mesmo, o próprio objeto da ciência. Nesse sentido, apesar nas nítidas diferenças em escolhas de termos, parece haver um compromisso possível pelo aspecto de construção do conhecimento científico (e por extensão, do objeto da ciência e da própria ciência). Pois, conforme Piaget (1971):

“(...) reduzir a razão apenas ao processo de identificação é, de fato, condenar-se à interdição de toda a construção. (...) A conveniência do construtivismo é (...) reconciliar o real e a inteligência do sujeito, conferir-lhe um estatuto comum conforme o que nos informa a experiência: que todos os dois produzem novidades sem parar, o primeiro através do desencadeamento temporal de sua causalidade e o segundo através das abstrações reflexionantes que conduzem às contínuas organizações operatórias, quer dizer, a uma superposição indefinida de operações efetuadas sobre outras operações.” (Piaget, 1971: 208)

Essa discussão sobre o aspecto construtivo da ciência enseja uma segunda possível

abordagem nos estudos comparativos das enunciações em filosofia da ciência feitas por Piaget e por Bachelard. Bulcão (1999) indica que a epistemologia de Bachelard caracteriza a trajetória de progresso da ciência de forma descontinuada, durante a qual se constrói um saber renovado a partir de rupturas com as tradições anteriores. O conhecimento novo é mais consistente e mais operatório que o anterior. Portanto, “Bachelard, negando o continuísmo, defende a tese de que o progresso das ciências é descontínuo, mostrando que o desenvolvimento da ciência se faz por mutações, isto é, por mudanças de perspectivas determinadas pela própria evolução do pensamento” (Bulcão, 1999: 152).

Porém, além de uma enunciação epistemológica que se pretende universal, Bulcão (1999) lembra que “Bachelard afirma que a prática científica atual se realiza através de racionalismos setoriais, o que significa que cada campo do saber possui especificidades, que se refletem no objeto, no método e no desenvolvimento de cada área do saber” (Bulcão, 1999: 3). Mais adiante, indica que “para Bachelard, não se trata, pois, de propor uma definição de ciência, mas sim de mostrar como se deu a produção de conceitos e o desenvolvimento da racionalidade através da evolução de certa região do saber” (Bulcão, 1999: 150).

Isso é importante no sentido de suprimir um pouco das esperanças do reducionismo fisicalista, em que se pretende interpretar toda a realidade através dos modelos da Física. Por exemplo, na atualidade, sobressai o reducionismo dos fenômenos em diversas escalas métricas e temporais aos modelos quânticos16, cuja escala é determinada e muito reduzida.

Nesse sentido, cabe lembrar que: “o espírito pré-científico (...) desconhece a realidade das escalas e, por isso, transporta conclusões experimentais do pequeno ao grande e vice-versa. Isso é criticado por Bachelard, que afirma que as idéias simples de proporcionalidade exercem uma sedução sobre as pessoas, quando, na verdade, é impossível transpor conclusões para ordens de grandeza diferentes.” (Bulcão, 1999: 49)

Em seu volumoso tratado sobre epistemologia genética, Piaget (1974) indica a

importância e a acuidade da interpretação filosófica de Bachelard:

“(...) a obra de Bachelard constitui a ligação mais íntima entre a análise histórica e a preocupação genética [como nos estudos, em O Racionalismo Aplicado, das ações e das técnicas que elas mesmas desenvolvem], pela constante precisão com a qual ele localiza

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o problema epistemológico nas próprias transformações [do conhecimento]. Essa passagem de um conhecimento menor a um conhecimento superior, sobre o qual constantemente se volta as obras de Bachelard, é interpretada por ele em função de dois mecanismos fundamentais, entre os quais oscilam todas as suas explicações: a retificação, por aproximações sucessivas, e a ‘abertura’ das teorias até então fechadas. Ou, a sucessão de aproximações retificadoras é a conquista de uma objetividade crescente, enquanto a abertura dos sistemas anteriormente fechados é o refinamento da própria razão. Os dois pólos da epistemologia de Bachelard serão, assim, uma teoria do tornar-se objeto e uma teoria complementar do sujeito em sua própria construção. Mas, seu denominador comum permanece a idéia do ‘inacabamento’.” (Piaget, 1974: 317)

Nesse sentido, Piaget cita a Filosofia do Não, concordando que “(...) a doutrina

tradicional de uma razão absoluta e imóvel nada mais é que uma filosofia (...) caduca [‘ périmée’, no original]”. (Piaget, 1974: 317).

Porém, o foco de interesse de Piaget está na existência das próprias etapas do desenvolvimento científico e, sobretudo, na evidência e no debate do porquê dessa ordem de sucessão e das causas desse desenvolvimento. Nesse sentido, ele se afasta do debate entre a continuidade ou descontinuidade entre as etapas:

“Um conhecimento não poderia estar dissociado do seu contexto histórico, e que, por conseqüência, a história de uma noção fornece alguma indicação sobre o seu significado epistêmico. Mas para conseguir uma tal ligação é ainda necessário colocar os problemas em termos de linhas de força, portanto, da evolução das normas a uma escala que permita discernir as etapas, não propriamente em termos factuais de influência de um sobre o outro, e, em especial, do problema controverso, mas sem grande interesse, do papel dos precursores na conclusão posterior de um novo sistema de conjunto. O essencial é caracterizar os grandes períodos sucessivos do desenvolvimento de um conceito ou de uma estrutura, ou ainda das perspectivas de conjunto sobre determinada disciplina, e isso com ou sem acelerações e regressões, ações dos precursores ou ‘cortes epistemológicos’.” (Piaget e Garcia, 1987: 22)

Esse excerto pode servir com um bom exemplo de delimitação de campos de

pesquisas, a história da ciência, em Bachelard, e a epistemologia genética, em Piaget. Há de se prestar atenção na referência implícita à Bachelard, em relação aos cortes epistemológicos. Posteriormente, nas conclusões de seu livro dedicado à história das ciências, principalmente da física, Piaget e Garcia (1987) indicam que:

“A nossa interpretação tem, sem dúvida, uma relação direta com a posição de Gaston Bachelard, que foi o primeiro a indicar a importância daquilo que ele chama ‘obstáculo epistemológico’ e ‘ruptura epistemológica’ no desenvolvimento da ciência. (...). De fato, G. Bachelard considera que existe uma ‘ruptura’ total entre as concepções pré-científicas e científicas, ao mesmo tempo que identifica como o maior obstáculo epistemológico o irracionalismo pré-científico. Nós próprios cremos, por um lado, que existe uma maior continuidade entre o pensamento pré-científico e científico, na medida em que os mecanismos em jogo no processo cognitivo são os mesmos e, por outro lado, consideramos que há um determinado tipo de ‘ruptura’ cada vez que se passa de um estado de conhecimento a um outro, tanto na ciência como na psicogênese. Podemos aceitar com facilidade que se trata de uma ruptura mas no sentido de uma mudança do quadro epistêmico. (...). Para nós, a cada momento histórico e em cada sociedade,

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predomina um determinado quadro epistêmico, produto de paradigmas sociais e que é a origem de um novo paradigma epistêmico. Uma vez constituído um determinado quadro epistêmico, torna-se impossível dissociar a contribuição proveniente da componente social daquela que é intrínseca ao sistema cognitivo. Assim constituído, o quadro epistêmico começa a atuar como uma ideologia que condiciona o desenvolvimento posterior da ciência. Esta ideologia funciona como um obstáculo epistemológico que não permite qualquer desenvolvimento fora do quadro conceitual aceite. É somente nos momentos de crise, de revoluções científicas, que se dá uma ruptura com a ideologia científica dominante e que se passa a um estado diferente com um novo quadro epistêmico distinto do precedente.” (Piaget e Garcia, 1987: 234)

Nesse sentido, as enunciações epistemológicas de Piaget e de Bachelard poderiam ser

confrontadas em outras áreas de saber onde não foram aplicadas por seus autores, como nas ciências da vida ou nas geociências, por exemplo. No âmbito da geologia, Laudan (1987) faz uma oportuna análise epistemológica e histórica onde demonstra que, entre outros, os postulados de Thomas Kuhn17 sobre o desenvolvimento científico por mudanças de “paradigmas” não se aplica à geologia. Segundo essa autora, a geologia apresenta, pelo menos no período de formação dessa ciência, um desenvolvimento gradual e sem rupturas. Portanto, é preciso recordar a própria advertência de Bachelard às enunciações epistemológicas universais e baseadas na física, que podem ser facilmente contrariadas ao se estudar outros campos científicos.

Por fim, na busca das inter-relações entre as enunciações epistemológicas, o terceiro compromisso possível seria em relação à construção do objeto científico. Nesse sentido, começa-se a enfatizar algo já abordado previamente: “toda a epistemologia bachelardiana se apóia na tese da construção do objeto científico. É a partir dela que todos os seus demais conceitos poderão ser compreendidos” (grifos meus; Bulcão, 1999: 65).

Assim, é a questão da objetivação que está em foco. Em relação à objetivação da matéria, por exemplo, cabe notar que existe alguma solidariedade entre as interpretações epistemológicas que vem sendo debatidas. Bachelard (1991) postulou que a interpretação do espaço no atomismo está associada a um problema filosófico muito geral, a relação entre representação e realidade. Haveria uma supremacia do espaço representado sobre o espaço real, ou mais exatamente sobre o espaço que se considera real. Ele afirma que “o espaço em que se olha, em que se examina é filosoficamente muito diferente do espaço em que se vê” (grifos do autor; Bachelard, 1991: 69).

Nesse sentido, Piaget e Inhelder (1971) indicaram que Bachelard mostrara que “os modelos intuitivos, tendo servido de suportes nos primórdios do atomismo, deve[ria]m ser procurados nas poeiras e nos pós” (Piaget e Inhelder, 1971: 123). Portanto, esses autores procuraram evidenciar em suas análises psicogenéticas a “‘metafísica da poeira’ (...) [manifesta pela] criança ante o espetáculo dos grânulos de açúcar em via de dissolução” (Piaget e Inhelder, 1971: 110). Nessas análises indicaram que o atomismo tem relação com a percepção e com as operações. Por exemplo, no estudo da dissolução do açúcar revelaram que “a percepção prepara relações que a operação [mental ou do raciocínio] transformará, contemplando-as: a operação é ao mesmo tempo, continuação e correção da intuição inicial” (Piaget e Inhelder, 1971: 122). Dessa forma, alertaram que é preciso compreender que explicação pelo atomismo não se trata de uma experiência imediata. A própria “‘leitura’ [da experiência] consiste numa dedução e não numa percepção” (Piaget e Inhelder, 1971: 131).

Portanto, a objetividade pode ser entendida como uma conquista, que somente seria “alcançada após um esforço do sujeito que conhece e que ativamente cria as condições de

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objetividade. (...) Conforme mostra Bachelard, chega-se a um conhecimento objetivo expondo-se um método de objetivação” (Bulcão, 1999: 157).

Na próxima secção, abordamos como tais abordagens epistemológicas, bem como seus compromissos possíveis, são ainda parcialmente interpretadas e utilizadas no âmbito da educação em ciências.

Sobre a educação em ciências

Essa secção é iniciada com o autor que é mais freqüentemente citado no campo da pedagogia: Piaget. Conforme Parrat-Dayan e Tryphon (1998), porém, quando se examina melhor o conteúdo dessas referências, percebe-se que tratam exclusivamente de sua obra psicológica. Assim, “os escritos de Piaget sobre educação permanecem praticamente ignorados” (Parrat-Dayan e Tryphon, 1998: 7). Segundo essas autoras, os artigos pedagógicos de Piaget sustentaram, de 1930 a 1970, seu ponto de vista epistemológico e sua posição construtivista e interacionista. Nesse sentido, duas foram as temáticas fundamentais desses textos: a atividade do sujeito, por um lado; e o papel do professor e a importância do material e das situações experimentais, por outro.

Em relação ao ensino das ciências naturais, Piaget (1949/1998b) sugere que cabe à própria criança observar e experimentar, ou seja:

“Em outras palavras, (...), a criança não deveria permanecer passiva e receptiva, mas deve estar a cada instante livre para desenvolver por conta própria todos os recursos da experimentação e do método indutivo (...). Porém, no próprio terreno da experimentação concreta, ainda existem duas maneiras de conceber a relação do professor com a criança e desta com os objetos sobre os quais incide sua ação. Uma é preparar tudo, de tal modo que a experiência consiste numa espécie de leitura compulsória e totalmente regulada de antemão. A outra é provocar no aluno uma invenção das próprias experiências, limitando-nos a fazer com que tome plena consciência dos problemas, que em parte ele mesmo já se coloca, e a ativar a descoberta de novos problemas, até fazer dele um experimentador ativo que procura e acha as soluções, por meio de inúmeras tentativas talvez, mas por seus próprios meios intelectuais.” (Piaget, 1949/1998b: 179)

Em relação às estratégias de ensino, Piaget (1935/1998a) chama bastante atenção ao

trabalho em grupo, porque “a solidez do saber é função da atividade dispensada para sua assimilação e o trabalho em grupo é, em princípio, mais ‘ativo’ que o trabalho puramente individual” (Piaget, 1935/1998a: 149-150). Além disso, ao enfatizar o trabalho em grupo no ensino de ciências naturais, sugere que:

“a experimentação se completa pela discussão conjunta, a redação ou o desenho nos cadernos de observação convoca a colaboração dos pesquisadores, em suma, o exercício das operações constitutivas do saber supõe essa cooperação intelectual que é o meio necessário para a organização das próprias operações individuais. É aqui que o papel do professor volta a ser central, enquanto animador das discussões, depois de ter sido o instigador, junto a cada criança, da apropriação desse admirável poder de construção intelectual que toda atividade real manifesta.” (Piaget, 1949/1998b: 180)

A relação entre a concepção construtivista do conhecimento e a aprendizagem escolar,

desde um ponto de vista piagetiano, pode ser encontrado em diversos autores genebrinos.

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Conforme Bovet e colaboradores (1989), algumas vezes Piaget chamou sua posição de construtivista para capturar o sentido em que a criança deve produzir e reproduzir os conceitos básicos e as formas lógicas de constituem o pensamento e a inteligência. Nesse sentido, deve-se dizer, Piaget preferia falar que a criança está inventando, ao invés de descobrindo, idéias. Parrat-Dayan (2003) aponta que o aluno como sujeito é sempre o autor de seu próprio conhecimento. Nas situações escolares, como em outras, é o sujeito quem escolhe, verifica, ajusta, elimina, coordena, organiza e reorganiza os dados que ele pode assimilar.

Segundo Parrat-Dayan (2003), a aprendizagem escolar não pode ser entendida como uma recepção passiva do conhecimento, mas como um processo ativo de elaboração. Por isso, o construtivismo, o relativismo e o interacionismo, quando aplicados ao processo de aquisição de conhecimentos, são características importantes da aprendizagem escolar. Além disso, ela ressalta que a teoria de Piaget estudou a gênese de noções e conceitos que se relacionam com alguns conteúdos escolares, principalmente nas áreas da matemática e da física. Dessa forma, essa teoria se torna interessante para a educação em ciências.

Em relação à docência, desde outro ponto de vista, Barbosa e Bulcão (2004) relatam que: “quando Léon Brunschvicg estranhou o fato de Bachelard ter atribuído tanta importância ao aspecto pedagógico das noções científicas, este lhe respondeu que se considerava muito mais como professor do que como filósofo, pois achava que a melhor forma de avaliar suas próprias idéias era ensinando-as” (Barbosa e Bulcão, 2004: 59). Essas autoras sugerem que, embora o assunto educação não fosse tratado de forma explícita e direta por Bachelard, de sua obra se pode “retirar contribuições importantes para a pedagogia que levariam à constituição de um novo modelo de escola e de aprendizagem” (Barbosa e Bulcão, 2004: 50).

Conforme Castelão-Lawless (2005), Bachelard conhecia as obras pedagógico-filosóficas de Schopenhauer e de Montessori. Entretanto, sua crítica à escola tradicional é ao mesmo tempo menos emocional do que a do primeiro e mais normativa do que a segunda. Nesse sentido, “embora ele concorde com Montessori no que diz respeito ao desastre pedagógico do dogmatismo ilegítimo das autoridades e dos programas educativos impostos ‘de cima’, discorda radicalmente desta em questões de metodologia educacional e de epistemologia do conhecimento científico” (Castelão-Lawless, 2005: 318). Para Montessori a aquisição de conhecimentos, incluindo os intelectuais, deve estar sempre em continuidade com o que é espontâneo. Assim, o professor nunca deve obstruir ou desencorajar a imaginação fértil do aluno. Castelão-Lawless lembra que em

“Le Matérialisme rationnel (1953), Bachelard refere sem hesitação o erro do método Montessori quando aplicado ao ensino de ciências. (...). Para Bachelard, fazer ciência implica um esforço em redirecionar o pensamento para a racionalidade e a objetividade e contra a arbitrariedade da subjetividade, criativa em literatura, mas obstáculo epistemológico em ciência.” (Castelão-Lawless, 2005: 319)

Porém, existem múltiplas e possíveis interpretações filosóficas da prática científica

contemporânea que são inspiradas na obra de Bachelard. Por exemplo, conforme a interpretação pós-moderna de Barbosa (1997), Bachelard se posicionaria contra toda e qualquer situação de estabilidade e acomodamento. Nessa interpretação, a sua obra romperia a tradição dos sistemas e discursos com pretensões universalizantes e introduziria o leitor num mundo de reflexões por meio da razão e da imaginação.

O trecho a seguir é extenso, mas é um interessante depoimento de Castelão-Lawless (2005), acerca das dificuldades de compreensão das ciências:

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“Os estudantes dos meus cursos de filosofia das ciências e de história das ciências distribuem-se em dois grupos. Os positivistas ingênuos vêm das disciplinas científicas com o preconceito de que a ciência é um conjunto de verdades irrefutáveis, que as provas dos testes de verificação de hipóteses são sempre inequívocas, que o método científico é fixo, e que existe uma demarcação rígida entre o sujeito e o objeto. Os relativistas ingênuos aprenderam nas cadeiras de estudos culturais e das humanidades que a ciência é uma mera construção social do ocidente e que outros modos de pensar noutras culturas têm o mesmo valor epistemológico da primeira, que o método científico é um mito, e que a falta de distinção entre o sujeito e o objeto impossibilitam a objetividade. Ambos ignoram o papel, fundamental na prática científica, da tensão, do erro e da incerteza. Ambos representam também duas posições filosóficas relativamente à ciência moderna que Bachelard ataca na sua obra e que, segundo ele, constituem obstáculos epistemológicos à sua aprendizagem. (...) Porque é que os estudantes universitários caem inevitavelmente numa destas duas posições epistemológicas? Para Bachelard, a resposta a esta questão passa por uma análise profunda tanto da prática da educação como do próprio conteúdo da ciência. (...) O problema diz respeito aos métodos de ensino, tanto nos cursos de ciência como nos cursos de filosofia das ciências. É aí que a epistemologia da prática científica e o valor epistemológico do erro são rejeitados a favor de uma ciência livresca que fixa o espírito onde ele deveria ser dialetizado e dinamizado (...) e rouba a inevitabilidade da tensão essencial entre idéias a favor de um falso presentismo histórico. Assim, a tensão e o erro são ignorados pelos professores de ciência que não compreendem que não se compreenda.” (Castelão-Lawless, 2005: 321)

Dessa forma, Silva (1999) compreende que, a partir de uma perspectiva bachelardiana,

pode-se afirmar que “é pouco provável que se forjem bons métodos de ensino de ciências desligados da preocupação e dos métodos da própria ciência” (Silva, 1999: 134). Sob essa perspectiva, o autor sugere que não se imagine ou se conceba o papel do professor como um facilitar da aprendizagem, mas sim como um complicador da realidade. Isso por que “o professor só facilita quando complica. (...). Complica, à medida que desafia, à medida que propõe a análise de cada perspectiva. (...). Quando provoca a exposição do erro de forma discursiva, complica o saber fácil, dificulta os juízos apressados” (Silva, 1999: 138).

A interlocução entre autores, ou entre suas obras, é uma das práticas da filosofia. O colóquio realizado em Lyon teve isso por objetivo. Porém, em poucos momentos o debate tangenciou o compromisso possível, entre as obras de Piaget e Bachelard, sobre a educação em ciências e nenhuma proposta ou declaração foi registrada. Dessa forma, entende-se que no âmbito da Didática das Ciências, a interlocução entre esses autores ainda está por ser realizada, ou mais bem divulgada.

Conclusões

Este artigo teve por objetivo apresentar um breve relatório de um colóquio internacional que visou a debater as aproximações possíveis entre importantes obras epistemológicas. Nesse sentido, foi realizada uma revisão da literatura para melhor circunscrever e contextualizar os debates que tiveram lugar durante o colóquio.

Inicialmente, procurou-se discutir a utilização do termo ‘educação aberta’ para descrever práticas filosóficas ou pedagógicas de diversas origens e sujeitas às múltiplas interpretações. Obviamente, como a própria idéia de ‘abertura’ permite. Porém, foi apresentado um entendimento estrito ao termo ‘educação aberta’, conforme documento da

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UNESCO (Perraton e Creed, 2000). Nesse particular, existem novidades subjacentes à educação aberta. Ela está apoiada em dois esteios: um suporte tecnológico, que envolve a informática e a educação à distância; uma interpretação conceitual em neurociências, que envolve uma pedagogia voltada a interpretações parciais de funções básicas e superiores da psicologia, como atenção, memória e linguagem. Um entendimento estrito de ‘educação aberta’ não foi apresentado durante o colóquio. Nesse sentido, é oportuno apresentar a advertência de Hein (1975):

“(...) se nós chamamos cada inovação educacional pelo mesmo nome, nós não teremos mudanças pra identificar práticas coerentes de sucesso, desde as mudanças descuidadas até as causas das mudanças, ou reconhecer qual foi resultado do planejamento e da aplicação da uma ideologia e estratégia coerente, ou qual mudança de eventos ou atividades ocasionais não foram dessa forma conectadas.”

Portanto, seja o que se queira retirar de implicações pedagógicas das obras de Piaget e

de Bachelard, sugere-se que seja feito segundo outros termos ou expressões que aqueles relacionados à ‘educação aberta’.

Posteriormente, este artigo passou a enunciar algumas características das obras epistemológicas de Bachelard e de Piaget. Entendeu-se isso como necessário para fazer algumas comparações possíveis entre essas obras. Conforme descrito, durante o colóquio Jean-Jacques Ducret abordou as aproximações entre essas obras epistemológicas e sugeriu que duas possíveis comparações, em relação: i) às enunciações sobre a filosofia das ciências; ii) às propostas pedagógicas e implicações educativas subjacentes as suas abordagens

filosóficas.

Neste artigo, com o objetivo de indicar as articulações possíveis entre as interpretações epistemológicas, sem o intuito de esgotá-las ou de ser profundo e rebuscado, apresentaram-se os compromissos possíveis a partir de temas como: a) as opiniões sobre filósofos contemporâneos aos autores (Emile Meyerson, por

exemplo); b) a continuidade ou a descontinuidade do desenvolvimento científico; c) a construção do objeto científico.

Nesse sentido, muito ainda pode ser feito. Conforme a apresentação de Bulcão (1999),

para as tarefas da nova filosofia das ciências, indicou-se que seria pertinente e oportuno, em futuros estudos, mostrar a elaboração e o desenvolvimento da psicologia e da psicologia genéticas, descrevendo e analisando, sob ótica bachelardiana, o programa de pesquisas piagetiano no estabelecimento e na evolução dessas disciplinas. Desde outro ponto de vista, poderia ser realizado um estudo analítico da epistemologia de Bachelard, sob a ótica dos processos de abstração e generalização, conforme descrito por Piaget (1995), por exemplo. Além de estudar uma disciplina – ou tradição de pesquisa – sob o enfoque da outra, ou vice-versa, poderiam ser realizados estudos que mostrassem a pertinência desses referenciais, ou de suas teses, em um mesmo campo de pesquisa contemporâneo. Neste artigo, indicou-se a existência de estudos sobre o conhecimento em geologia que mostram que as enunciações epistemológicas universais e baseadas na física podem ser facilmente contrariadas.

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Por fim, uma segunda comparação entre os dois autores foi realizada em relação à educação em ciências. Nesse sentido, mostrou-se que os estudos de Piaget podem servir de implicação para pesquisas ou estratégias que procurem centrar foco sobre a importância do aluno nas atividades didático-pedagógicas. Por sua vez, nessas mesmas atividades, os estudos de Bachelard são muito úteis quando se quer ressaltar a importância do professor. Essas visões seriam, certamente, complementares do ponto de vista da educação. Portanto, no âmbito da Didática das Ciências, existe espaço e oportunidade para aprofundar e divulgar a interlocução entre esses autores.

Agradecimentos

Ao CNPq pelo financiamento concedido (AVG, Processo número 450247/2006-6), que permitiu à participação no evento aqui relatado.

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Notas (1) O colóquio foi promovido por Archives Jean Piaget (Université de Genève), Centre

Gaston Bachelard (Université de Bourgogne) e Centre de Recherches Philosophiques (Université Jean Moulin – Lyon 3), com a colaboração de Association des Amis du Centre Ferdinand Gonseth (Nêuchatel, Suíça) e Association des Amis de Gaston Bachelard (Dijon, França).

(2) Como em outros nomes de origem eslava, o sobrenome se encontra grafado diferentemente, Alfred Habdank Skarbek Korzybski nasceu em Varsóvia, Polônia, em 1879, e faleceu em Lakeville, Connecticut (EUA), em 1950 [Essa e outras informações enciclopédicas foram extraídas da http://www.wikipedia.org].

(3) Henri-Louis Bergson nasceu, em 1859, e faleceu, em 1941, em Paris, na França. Foi um filósofo muito influente na primeira metade do Século XX.

(4) Karl Raimund Popper nasceu em Viena, em 1902, e faleceu em Londres, em 1994. Foi considerado por muitos como o filósofo mais influente do Século XX a tematizar a ciência.

(5) Para o leitor deste periódico que não é especialista em educação ou pedagogia, Summerhill é uma escola inglesa diferente dos padrões tradicionais, que foi fundada em 1921 por Alexander Sutherland Neill (Escócia, 1883-1973). É uma das pioneiras dentro do movimento das escolas democráticas. Atende crianças do ensino fundamental e do ensino médio. Atualmente, a diretora é a filha de Neill, Zoe Readhead.

(6) No original, consta ‘premier cycle du second degré’, que envolve alunos, em geral, entre 11 e 15 anos de idade.

(7) É oportuno registrar que nesse documento da UNESCO se indica que “a formação de professores na forma de ensino à distância não custa mais que um terço a dois terços do preço de custo da formação do professores tradicionais”, evidenciando a lógica econômica que subjaz os discursos de formação por ensino à distância, ainda que o dado possa ser contestado.

8) Marly Bulcão Lassance Britto. Cita-se seu nome conforme é mais conhecida e como consta nas capas dos livros por ela publicados, embora academicamente chegue a ser citada de outras formas. Durante o colóquio sua intervenção foi lida, pois a participante não pôde comparecer ao evento.

(9) Os estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (habitualmente identificados pelo acrônimo CTS) apresentam-se como uma análise crítica e interdisciplinar da Ciência e da Tecnologia num contexto social, com o objetivo de compreender os aspectos gerais do fenômeno científico-tecnológico. Informações mais amplas podem ser encontradas em www.oei.es/cts.htm. Embora esse enfoque tenha se revigorado na década de 1980, suas origens remontam a várias experiências, como as de Maria Montessori, por exemplo, na Itália da década de 1920, em que orientava a implantação de laboratórios científicos nas escolas com o intuito de serem abordados conteúdos das ciências, da tecnologia e da sociedade, conforme a mostra “Dagli archivi delle scuole romane”, exposta no outono de 2006, no Complesso del Vittoriano, em Roma.

(10) Onde se buscou as aproximações possíveis entre as compreensões epistemológicas de Jean Piaget e de Mário Bunge.

(11) Como bem indica Lecourt (2002), o novo deve ser levado em consideração à época em que Bachelard escreveu seus primeiros livros.

(12) É interessante verificar que um autor estudioso de Bachelard, que enfatizou tanto a fenomenotécnica, utilize o termo ‘descobrir’ de maneira inapropriada para as subpartículas atômicas, quando o mais indicado seria escrever que elas foram ‘detectadas

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(ou captadas) pela primeira vez’. No caso do trabalho de Pauli em relação ao neutrino, talvez, seria melhor dizer que foi pela primeira vez ‘postulada a sua existência’.

(13) Isso deveria ser mais bem investigado, uma vez que Bachelard não cita Piaget, mas James Mark Baldwin, que nasceu, em 1861, e morreu, em 1934, em Colúmbia, Carolina do Sul (E.U.A.). Ele foi um filósofo e psicólogo que fez importantes contribuições no campo da psicologia, da psiquiatria e da teoria da evolução.

(14) Jean Piaget foi professor de Psicologia Genética na Sorbonne, em Paris, entre os anos de 1952 e 1964. Por sua vez, Gaston Bachelard foi professor de História e Filosofia das Ciências na mesma universidade entre os anos de 1940 e 1955.

(15) Émile Meyerson nasceu em 1859, em Lublin, na Polônia, e morreu em 1933, em Paris, na França.

(16) Os exemplos aqui são abundantes, seja nos meios universitários, seja na vulgarização multimídia, como mostra o recente filme documentário Quem Somos Nós (1985; ‘What the Bleep do we Know?’, no original), de Betsy Chasse, Mark Vicente e William Arntz (maiores detalhes em: http://www.whatthebleep.com ou http:www.playarte.com.br/Filme/ Default.asp?id=25) e seus diversos subprodutos (livros, DVD’s e revistas).

(17) Thomas Samuel Kuhn nasceu em Cincinnati (Ohio, E.U.A.), em 1922, e morreu em Cambridge (Massachusetts, E.U.A.), em 1996.

- M.L. Eichler é Licenciado em Química, Mestre e Doutor em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Atua como Professor (UERGS) e Pesquisador da Área de Educação Química (UFRGS). Endereço para correspondência: Área de Educação Química – UFRGS. Av. Bento Gonçalves, 9500, Sala D114, Campus do Vale, Porto Alegre, RS 91501-970. E-mail para correspondência: [email protected]. Telefone para contato: +55-51-33086270. Fax: +55-51-33087304.

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Reflexões sobre palavra, sentido e memória em Freud e Saussure

Reflections about word, meaning and memory in Freud and Saussure

Coraci Helena do Prado

Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil; Universidade Federal de Goiás/Campus de Jataí (UFG/CAJ),

Jataí, Goiás, Brasil Resumo Este ensaio apresenta um estudo acerca de palavra, sentido e memória em Freud e Saussure. Trata-se de uma reflexão sobre as relações que tais elementos, no interior de cada corpo teórico, estabelecem entre si, com a linguagem e com a realidade externa; e ainda sobre em que aspectos e em que medida as teorias dos dois autores aproximam-se e/ou se afastam. Resulta desse estudo que são possíveis algumas aproximações entre os elementos da psicologia freudiana e os da lingüística saussuriana, concernentes à sustentação da distinção filosófica entre a palavra e a coisa, contida na noção de representação; à associação de elementos psíquicos no processo de representação, quais sejam, uma imagem acústica e um conceito ou uma imagem visual; ao pressuposto tanto de fechamento do sentido no limite da palavra quanto de abertura, seja das associações mentais, seja das representações objectuais. Mas, sobretudo, destacam-se diferenças, que dizem respeito ao tipo de relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos: paralelos e simultâneos, na representação freudiana; independentes e em seqüência temporal, na representação saussuriana; e, principalmente, às concepções essencialmente distintas de inconsciente nos processos psíquicos de associação: um lugar psíquico onde as associações se realizam, para Freud; o modo como uma palavra suscita outras no processo, para Saussure. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 195-207. Palavras-chave: linguagem; inconsciente; Freud; Saussure. Abstract This paper presents a study regarding word, meaning and memory in Freud and Saussure. It is a reflection on the relationship that such elements, inside each theoretical basis, set among themselves, with language and the external reality. It is also focused on the extent to which the two authors’ theories are close or fall apart. The results show that some nearness is possible between the Freudian Psychology and the Saussurian Linguistics, concerning the support for the philosophical distinction between the word and the thing, contained in the notion of representation; the association of psychic elements in the process of representation, that is, an acoustic image and a concept or a visual image; the assumption either of enclosure of meaning in the limit of the word or of openness, either of mental associations or of objectual representations. Nevertheless, some differences emerge, regarding the sort of relationship between the physiological and psychic processes: parallel and simultaneous, in the Freudian representation; independent and in a temporal sequence, in the Saussurian representation; and, mainly, differences concerning the essentially distinct conceptions of unconscious in the association psychic processes: a psychic place where associations are realized, according to

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Ensaio

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Freud; a way in which a word evokes others in the process, according to Saussure. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 195-207. Keywords: language; unconscious; Freud; Saussure.

1. Introdução

Este ensaio apresenta um estudo acerca de palavra, sentido e memória em Freud, a partir dos textos A interpretação das Afasias (1891/1979) e a Carta 52 de Freud a Fliess (apud Masson, 1986), e em Saussure, com base no Curso de Lingüística Geral (1916/2004). Trata-se de uma reflexão sobre como esses elementos da linguagem comuns aos textos, mas tomados de diferentes lugares epistemológicos e com objetivos diversos, participam da construção de cada corpo teórico, quer dizer, em que consistem e que relações estabelecem entre si, com a linguagem e com a realidade externa. Essa reflexão talvez permita, ainda, considerar em que aspectos e em que medida as teorias de Freud e de Saussure aproximam-se e/ou se afastam. Subsidiam esta leitura, leituras de Lacan, que em muitos momentos de seus Escritos e seus Seminários fundamenta suas reflexões nos textos citados (com exceção de A interpretação das Afasias), além de outros autores cujas considerações se mostrem elucidativas. 2. Articulações saussurianas: o signo

A reflexão proposta inicia-se com uma pontuação das formulações saussurianas, porém não sem antes atentar para os preâmbulos já bastante conhecidos sobre a edição do Curso de Lingüística Geral (1916/2004), doravante CLG, a qual resultou da reconstituição das idéias do mestre genebrino por dois de seus discípulos1, a partir das anotações de alunos de três cursos ministrados por ele na Universidade de Genebra. Essa interpretação foi tomada, por quase um século, como sendo o próprio pensamento de Saussure, e produziu efeitos de tamanha significação que a obra demarcou a fundação da ciência da língua, difundiu o método estrutural como modelo nas diversas áreas das ciências sociais e tornou-se referência obrigatória a quantos estudos da linguagem a seguiram, sejam de continuadores, opositores ou subvertores. Portanto, cumpre lembrar, em relação à obra tomada aqui como base das referências metonímicas a Saussure, a possível redução de suas idéias à interpretação de seus alunos; o apagamento das lacunas e das idéias em suspenso; bem como o descontentamento e os dilemas de Saussure com o desenvolvimento de seus cursos2.

Pode-se inferir, pois, em relação ao Saussure que nos é dado a conhecer no CLG, que é em nome da cientificidade, ou, em termos lacanianos, por um deslizamento para o discurso do senhor, que ele opera recortes na linguagem, que, “multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios”, não se deixa classificar, e toma apenas “uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente”, como objeto da lingüística: a língua, “um todo por si e um princípio de classificação” (Saussure, 1916/2004: 17). Saussure entende que qualquer fenômeno lingüístico apresenta um princípio geral válido para qualquer ponto de vista: o fato de apresentar perpetuamente duas faces correspondentes e inseparáveis, das quais uma não vale senão pela outra. Tal princípio, implicado na noção mesma de signo lingüístico, uma coisa dupla, constituída da união de dois termos, resulta na definição do signo como unidade da língua, e da língua como norma para toda e qualquer manifestação de linguagem. Além disso, os dois termos do signo são caracterizados, na formulação saussuriana, como sendo ambos psíquicos e unidos em nosso cérebro por um vínculo de associação, o que explicita que se trata da união não de uma coisa e uma palavra, mas de um conceito e uma imagem acústica. Tal definição de signo sustenta, portanto, um ponto de vista acerca da relação da língua com

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as coisas do mundo: a língua não é uma nomenclatura para as coisas; ela não supõe idéias feitas, preexistentes às palavras, mas consiste numa representação das coisas.

Para distinguir e realçar os elementos psíquicos constitutivos do signo, Saussure propõe utilizar o termo signo para designar a unidade total e substituir conceito por significado e imagem acústica por significante, pois esses termos assinalariam, segundo ele, a oposição que tanto os separa entre si quanto em relação ao total de que fazem parte. Por outro lado, propõe trabalhar sobre a palavra, tendo em vista que não se pode captar diretamente o signo e também que, mesmo “sem recobrir exatamente a definição da unidade lingüística, [as palavras] dão dela uma idéia pelo menos aproximada, que tem a vantagem de ser concreta” (Saussure, 1916/2004: 81). A imagem acústica, por sua vez, trata-se não do som material, da coisa puramente física, mas da impressão (empreinte) psíquica desse som ou da representação que nossos sentidos nos dão dele. Quanto ao conceito, ele se divide entre a significação e o valor do signo, entre os quais há uma distinção “delicada”: a significação é a contraparte da imagem auditiva nos limites da palavra, quando se a considera como um domínio fechado existente por si próprio; já o valor, ele se caracteriza por, de um lado, constituir um elemento da significação, do qual ela depende, mas, de outro lado, ser a contraparte da relação de um signo com os outros signos da língua, constituindo a língua como um sistema solidário, em que o valor de um termo resulta unicamente da presença simultânea de outros. Em suma, o valor do signo diz respeito ao sistema lingüístico: uma série de diferenças de sons combinados com uma série de diferenças de idéias, cuja confrontação engendra um sistema de valores; tal sistema é que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo.

Com base nessa noção de valor, que Saussure reconhece como o aspecto paradoxal da questão, pode-se propor a existência de graus distintos de significação, conforme o signo seja tomado em si mesmo, como termo positivo, ou por seu valor diferencial no sistema da língua. No primeiro caso, o signo carrega um sentido intrínseco e absoluto e tem uma função representativa, visto que a associação da imagem acústica com o conceito “pode, em certa medida, ser exata e dar uma idéia da realidade” (Saussure, 1916/2004: 136). Por outro lado, tomado por seu valor em relação aos outros signos do sistema da língua, o signo tem seu sentido relativizado por sua função estrutural, visto que depende do que está fora, ao seu redor. Portanto, somente se o signo é tomado em sua totalidade, tem-se uma coisa positiva em sua ordem, ou seja, uma palavra com sentido; caso contrário, “quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema” (Saussure, 1916/2004: 136). Tais diferenças e relações, segundo Saussure, desenvolvem-se em duas ordens, que correspondem a duas formas de nossa atividade mental: a combinação, que diz respeito às relações baseadas no caráter linear da língua, ou seja, as relações que os termos estabelecem entre si in praesentia, em virtude de seu encadeamento no discurso; e a associação, que se refere ao processo pelo qual, fora do discurso, as palavras se associam in absentia, na memória, constituindo séries mnemônicas virtuais, quer dizer, grupos organizados por relações diversas, conforme o que as palavras têm em comum. Tal é o princípio pelo qual, constituindo as famílias de palavras em número indefinido e ordem indeterminada, uma palavra faz “surgir inconscientemente no espírito uma porção de outras palavras” (Saussure, 1916/2004: 143).

Para não deixar dúvidas quanto ao tipo de vínculo que há entre os elementos constitutivos do signo, quer sejam a idéia e os sons, o conceito e a imagem acústica, ou ainda o significante e o significado, como se queira, Saussure (1916/2004: 130-31) constrói metáforas, como a de uma nebulosa: “tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias preestabelecidas, e nada é

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distinto antes do aparecimento da língua”; a de vagas (uma série de divisões formadas pela decomposição de uma capa de água em contato com o ar, caso mude a pressão atmosférica): “são essas ondulações que darão uma idéia da união e, por assim dizer, do acoplamento do pensamento com a matéria fônica”; a de uma folha de papel, em que “o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um lado sem cortar, ao mesmo tempo, o outro”. O conjunto dessas imagens demonstra a constituição das unidades da língua como articulus, entendido como a fixação de uma idéia num som, de forma que um som se torne o signo de uma idéia, sendo que nesse processo o papel da língua é o de intermediária entre essas “duas massas amorfas”. Segundo Saussure (1916/2004: 130, grifos do autor), “esta combinação produz uma forma, não uma substância”, e nesse terreno trabalha a lingüística. Por outro lado, uma separação entre som e pensamento só seria possível “por uma abstração cujo resultado seria fazer Psicologia pura”.

Do que se pontuou até agora do construto saussuriano, algumas questões já se colocam: o que há antes dessas massas amorfas, ou seja, de que se constitui essa nebulosa do pensamento tomado em si, que, embora não contendo idéias preestabelecidas, tem um em si? O que há aí que, de modo misterioso, é forçado a precisar-se ao se decompor, como vagas? Essas questões remetem a Freud, mais especificamente à leitura que Lacan (1988: 180) faz do texto freudiano, a qual entende uma afirmação de que “é preciso sempre supor uma organização anterior, pelo menos parcial, de linguagem, para que a memória e a historicização possam funcionar. (...) É preciso já ter o material significante para fazer significar seja o que for”.

Por sua vez, Lacan (1988: 174) conclui que se trata de um “significante primordial” dentro de um “primeiro corpo de significante”, em cujo interior “Freud supõe se constituir o mundo da realidade, como já pontuado, já estruturado em termos significantes”. Porém o significante dado primitivamente “ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história” (Lacan, 1988: 180), e isso, segundo Lacan afirma em outra ocasião (1985a: 46), simplesmente porque não há realidade pré-discursiva; a coletividade, “os homens, as mulheres e as crianças, não são mais do que significantes”. Daí se pode inferir que, antes daquela união da matéria plástica com o pensamento caótico, ou seja, antes do signo saussuriano, há algo, o significante, que é linguagem e carrega algo de real, mas que também é nada, até que entre na história do sujeito, quer dizer, até que se torne algo do simbólico. Enfim, trata-se de supor, nos termos de Pommier (2005: 11), uma “‘realidade’ habitada pela subjetividade”, e um real além dela. Esse aparte antecipa o que será tratado mais adiante e coloca, já, o fundamento da subversão que Lacan opera no signo saussuriano com a inversão de seu esquema representativo, que passa a indicar a prevalência do significante sobre o significado, e a inclusão da barra resistente à significação. Tal subversão se apóia na convicção de fracasso em sustentar a questão da natureza da linguagem “enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado” (Lacan, 1998: 501). E isso Lacan lê em Freud, embora atribua à lingüística a introdução da dimensão significante.

Em relação à lingüística, Lacan (1985a: 42) a acusa de introduzir na fala uma dissociação que não se justifica, pois funda a distinção do significante e do significado no que lhe parece (a Lacan) espontâneo, visto que “quando falamos, isso significa, isso comporta o significado e, ainda mais, até certo ponto isso só se suporta pela função de significação”. A essa distinção, Lacan contrapõe que “distinguir a dimensão do significante só ganha relevo ao se colocar que o que vocês entendem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa”. Dessa forma, esse autor inscreve a noção de escrita como aquilo que não é para ser compreendido e, portanto, não é, de forma alguma, o significado do que se ouve do significante: “o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a

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leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito de significante” (Lacan, 1985a: 47).

Por outro lado, Lacan (1998) considera que Freud, na formulação do aparelho psíquico, exposto na Carta 52 e retomado em Além do princípio do prazer e A Interpretação dos sonhos, descreve todo o jogo da aproximação da representação com o significante primitivo. Pode-se então deduzir que nesse ponto é que Freud ultrapassa a “psicologia pura” e inicia uma metapsicologia, ao entrar nos domínios da linguagem e indiciar o inconsciente nesse “jogo” da representação, embora seja mesmo uma psicologia que Freud se propõe construir quando, ainda neurologista, percebe que as perturbações da linguagem não se explicam pelo recurso à anatomia ou à fisiologia do cérebro e propõe estudá-las sob o ponto de vista psicológico. Contudo, desde o início, tratava-se de uma “nova” psicologia, como Freud mesmo avalia na Carta 52 (apud Masson, 1986: 209): “Se eu pudesse fornecer uma explicação completa das características da percepção e dos três registros, teria descrito uma nova psicologia”. O que de fato se vê nascer aí é uma teoria em que linguagem e inconsciente se implicam numa relação constitutiva – que Lacan mais tarde leria como a estrutura de linguagem do inconsciente e Saussure ignoraria –, na qual com certeza não há uma simples separação entre som e pensamento, mas uma complexificação tanto da associação quanto da constituição de cada um dos elementos da linguagem. 3. Articulações freudianas: o aparelho de linguagem

Desde o texto sobre as afasias, Freud já sugeria existir algo de inconsciente no mecanismo da linguagem. Nesse texto, Freud concebe um “aparelho de linguagem” (“de” e não “para a” linguagem, posto que não a constitui, mas é constituído por ela ) no interior do qual a palavra, unidade da função de linguagem, é entendida como “uma complexa representação que se apresenta composta de elementos acústicos, visuais e cinestésicos” (Freud, 1891/1979: 67). Esses elementos, associados entre si, constituem as imagens mnêmicas, que dão origem às representações. Porém a complexidade do processo de representação não diz respeito apenas à pluralidade de elementos sensíveis à percepção, mas principalmente ao fato de que esse processo, tal como concebido por Freud, é composto de dois campos associativos: o da representação-objeto e o da representação-palavra.

Assim, no funcionamento desse aparelho de linguagem, o que dá sentido à palavra (pelo menos quando se consideram os substantivos) é sua ligação, por meio da imagem acústica, com a representação-objeto. Esta, por sua vez, concebida no caminho da filosofia3, também não é uma simples imagem da coisa, mas um complexo constituído de associações visuais, tácteis, acústicas etc., enfim, um leque de impressões sensoriais que a qualificam como um complexo aberto. Desse complexo aberto, contudo, resulta uma unidade pela associação com a representação-palavra, por intermédio da associação visual. Já a representação-palavra é qualificada como “um complexo fechado de representações (...) algo de fechado embora susceptível de ampliação” (Freud, 1891/1979: 71-72), que é representado pela imagem acústica. Como se observa, a ligação entre os dois campos associativos – da palavra e do objeto – não ocorre a partir de todos os elementos que neles estão associados, pois cada campo é representado, respectivamente, pela imagem acústica e pela imagem visual. Não obstante, a idéia de rede associativa está aí colocada.

Quanto à natureza da representação, Freud afirma que ela não é a projeção direta no córtex de um estímulo externo, mas um complexo processo que “está privado destas relações diretas com a periferia do corpo” (Freud, 1891/1979: 66). Segundo o autor, o córtex cerebral contém a periferia do corpo da mesma maneira que “um poema contém o alfabeto, isto é, num arranjo completamente diferente servindo a outros propósitos, em variadas associações dos

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elementos individuais, dos quais alguns podem ser representados várias vezes, outros não” (Freud, 1891/1953: 53)4. 4. Contrapontos

Freud reconhece uma relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos relativos ao campo da linguagem, porém observa que essa relação não é de causalidade; ao contrário, trata-se de processos paralelos e simultâneos (“a dependent concomitant”). São paralelos porque sensação (percepção) e associação designam “duas diferentes perspectivas do mesmo processo” (Freud, 1891/1979: 57), uma fisiológica e outra psíquica, respectivamente; além disso, são indivisíveis; não se pode ter uma sensação sem que haja uma associação simultânea. Enfim, a hipótese de Freud é de que a região cortical da linguagem é um articulado tecido cortical, como uma rede, dentro da qual as associações e as transmissões procedem de forma muito complexa.

Esse complexo processo associativo foi analisado e descrito por Freud em relação a cada uma das atividades da linguagem (falar, aprender uma segunda língua, ler, soletrar, escrever). Os processos da fala e da compreensão da palavra ouvida, por exemplo, são descritos por ele da forma transcrita abaixo:

“Aprendemos a falar na medida em que associamos uma ‘imagem acústica da palavra’ com uma ‘sensação ao nível de inervação da palavra’. Quando falamos, chegamos à posse de uma ‘representação motora da linguagem’ (sensações centrípetas dos órgãos da linguagem) de tal modo que a ‘palavra’ é para nós duplamente determinada a nível motor. (...) Além disso, após o falar obtemos uma ‘imagem acústica’ da palavra pronunciada.” (Freud, 1891/1979: 67, grifos do autor)

“Provavelmente não devemos representar-nos a compreensão da palavra no caso de estímulo periférico como uma simples prossecução dos elementos acústicos aos da associação objectual; pelo contrário, parece que na audição acompanhada pela compreensão de um discurso a atividade de associação verbal é estimulada ao mesmo tempo a partir de elementos acústicos.” (Freud, 1891/1979: 84)

Como Freud, Saussure refere-se a processos psíquicos e fisiológicos quando descreve

o modo como se dá a associação entre o conceito e a imagem acústica; porém, para o lingüista, trata-se de processos isolados, em que um fenômeno inteiramente psíquico é seguido de um processo fisiológico na produção da fala, como denotam as expressões temporais depois, em seguida constantes de sua exposição. Já na recepção ocorre o inverso, conforme se observa no circuito de fala transcrito abaixo:

“Suponhamos, então, duas pessoas, A e B, que conversam. O ponto de partida do circuito da fala se situaria no cérebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de consciência, a que chamaremos conceitos, se acham associados às representações dos signos lingüísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los. Suponhamos que um dado conceito suscite no cérebro uma imagem acústica correspondente: é um fenômeno inteiramente psíquico seguido, por sua vez, de um processo fisiológico: o cérebro transmite aos órgãos da fonação um impulso correlativo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A até o ouvido de B: processo puramente físico. Em seguida, o circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvido ao cérebro,

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transmissão fisiológica da imagem acústica; no cérebro, associação psíquica dessa imagem com o conceito correspondente.” (Saussure, 1916/2004: 19, grifos do autor)

Em suma, do que foi até agora pontuado, podem-se perceber algumas aproximações

entre a palavra da psicologia freudiana e a da lingüística saussuriana. Há, em ambos os casos, a sustentação da distinção filosófica entre a palavra e a coisa, sendo que a palavra comporta o pensamento da coisa, é sua representação. Da mesma forma, em ambas as noções de representação há a associação de elementos psíquicos: uma imagem acústica, de um lado, e, de outro, um conceito ou uma imagem visual. E ainda, ambas prevêem tanto um fechamento do sentido no limite da palavra quanto uma abertura, seja das associações mentais, seja das representações objectuais. Por outro lado, também se apresentam diferenças, como a que diz respeito ao tipo de relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos: paralelos e simultâneos, na representação freudiana; independentes e em seqüência temporal, na representação saussuriana; e, principalmente, a que concerne à natureza da associação: complexa na primeira, constituindo uma rede associativa; simples na segunda, ocorrendo “inconscientemente no espírito”, tanto na união dos elementos do signo quanto na ligação de uma palavra com outras palavras de uma série mnemônica virtual.

Esse último ponto é essencial ao propósito desta reflexão, ou seja, o fato de Saussure pressupor um lugar no cérebro onde os fatos de consciência, ou os conceitos, acham-se já associados às representações dos signos lingüísticos ou imagens acústicas, prontos para serem suscitados no momento da fala. Quer dizer, para o lingüista, haveria um lugar virtual no cérebro onde as palavras, como unidades lingüísticas concretas, representantes do signo em sua totalidade, acumular-se-iam e facultariam o sentido ao sujeito falante. Essa questão, a ser analisada na etapa seguinte, que discute o terceiro elemento deste estudo, a memória, marca mais explicitamente a natureza dos processos da representação freudiana e, conseqüentemente, acentua o afastamento entre as noções de palavra e de sentido construídas em cada teoria.

Várias passagens do CLG, como as transcritas a seguir, além das já mencionadas, supõem uma concepção de memória, embora Saussure não a tenha abordado especificamente:

“Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum.” (Saussure, 1916/2004: 21, grifos meus)

“É ouvindo os outros que aprendemos a língua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências. (...) A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos.” (Saussure, 1916/2004: 27, grifos meus)

“Nossa memória tem de reserva todos os tipos de sintagmas mais ou menos complexos, de qualquer espécie ou extensão que possam ser, e no momento de empregá-los, fazemos intervir os grupos associativos para fixar nossa escolha.” (Saussure, 1916/2004: 150-151, grifos meus)

Como mostram os destaques nos excertos, a memória, no texto saussuriano, significa

“armazenagem” ou “depósito” no cérebro não só de imagens verbais, que constituem um

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dicionário, mas também de um sistema gramatical, que inclui todos os tipos de sintagmas; enfim, trata-se de um “tesouro virtual”. A origem desse material virtual, segundo o lingüista, é o meio social; o conteúdo, o conjunto de convenções adotadas pelo corpo social; e o meio, a fala dos indivíduos. Tal concepção de memória lingüística autoriza Saussure a assegurar que todos os indivíduos unidos pela linguagem reproduzem aproximadamente os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos. Esse pressuposto revela a confusão em tomar virtual como sinônimo de psíquico e, ao mesmo tempo, oposto a real, o que se infere a partir da explicação de Pommier (2005: 98) de que o real não se opõe ao virtual; “o virtual é um real passado ou um real ainda não atualizado. O virtual se opõe, em todo caso, ao atual, quer dizer, a aquilo que resulta do ato de percepção”.

De modo distinto, a concepção de memória de Freud, que contém “alguma coisa de inacessível à experiência”, segundo avalia Lacan (1988: 176), constrói-se justamente sobre essa distinção entre virtual e atual e sobre esse caráter de atualidade da percepção. Sua hipótese é de que as imagens mnêmicas constituem-se na complexa associação entre a representação-objeto e a representação-palavra. Essa associação, que de forma alguma é quiescente, mas tem a natureza de um processo, deixa no córtex, ao final, apenas uma “possibilidade da recordação” (Freud, 1891/1979, p. 57), designada de imagens mnêmicas. Dessa forma, Freud afirma (apesar da dúvida retórica) que a recordação não corresponde ao acesso pela consciência a uma “imagem mnésica latente”; ao contrário, a possibilidade de recordação consiste em que a cada vez que esse estado do córtex for novamente excitado, todo o processo seja novamente desencadeado, em processos de superassociação.

A noção de superassociação implica, pois, a de repetição, porém esta se refere à atualização do processo, não a algo fixo e latente, e isso simplesmente porque, na repetição, “não se encontra jamais o mesmo objeto” (Lacan, 1988: 174). Acerca do mecanismo da repetição, Lacan (2003: 79) afirma que “ela está aí para fazer surgir, para lembrar, para fazer insistir alguma coisa que não é nada mais, em sua essência, do que um significante”. Nisso consiste a essência da repetição, fundamental para as formulações freudianas da dinâmica psíquica da representação, as quais, surgidas num momento de contestação às concepções neurológicas tradicionais da época, podem estender-se a Saussure, uma vez que tal dinâmica, não sendo superposição mas re-petição de processos associativos, inviabiliza tanto a hipótese de memória como soma de sinais idênticos depositados em cada cérebro, como também a de associação como fixação de uma escolha dentre os sinais disponibilizados. Conseqüentemente, a noção de superassociação desfaz qualquer possibilidade de que os indivíduos unidos pela linguagem reproduzam aproximadamente os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos, visto que os processos associativos, além de serem sempre redescobertas da realidade, são singulares e imprevisíveis, ocorrendo de maneira diversa em cada sujeito. Por fim, o mesmo conceito exclui também a hipótese de que a aprendizagem da língua materna ocorra pela sobreposição de experiências no cérebro, pois é sempre como um processo de superassociação que deve ser pensada a aprendizagem de cada uma das funções da linguagem, como a fala, a leitura, a compreensão, a escrita, a língua dos outros.

Na Carta 52, Freud (apud Masson, 1986) apresenta em esquema seu aparelho de memória, o qual, compreendendo todo o mecanismo psíquico, demonstra que consciência e memória se excluem mutuamente e que a memória não é simples, mas constitui-se de forma muito complexa, ao longo de diversas vezes. Essa complexidade diz respeito ao rearranjo ou reescrição dos traços mnêmicos em três diferentes registros, de acordo com cada nova circunstância e conforme os neurônios que os veiculam. Assim, segundo o esquema freudiano, entre as instâncias da percepção e da consciência encontram-se tanto os registros inconscientes, que incluem o de indicação da percepção dos traços e o das lembranças conceituais, quanto o registro pré-consciente, ligado à representação-palavra. Esses registros,

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segundo Freud, representam conquistas psíquicas de fases sucessivas, em cujas fronteiras deve ocorrer a tradução dos traços mnêmicos, pois cada fase de excitação só se esgota e só é inibida pela transcrição posterior; logo, se esta transcrição falta, prevalecem as leis do período psíquico precedente. Em síntese, analogamente a um “bloco mágico”5, o aparelho de memória é constituído por dois sistemas: um sistema perceptivo que recebe as impressões, mas não retém traços, e um sistema mnêmico que os retém. Logo, uma percepção não significa uma atribuição de sentido imediata, pois não apenas não há sentido consciente anterior ao processo inconsciente, como também não há memória fixa, onde os sentidos pudessem ser armazenados e acessados a cada novo estímulo. O que há são traços rearranjados, reescritos, cifrados e decifrados nas instâncias inconscientes, para só então a palavra ser disponibilizada como signo na pré-consciência e poder ser resgatada com sentido pela consciência.

Quer dizer, os registros inconscientes representam o processo necessário para que o objeto percebido chegue à consciência, e isso só ocorre passando pelo simbólico; como observa Lacan (1973: 48), “para que isso passe para a memória, é preciso primeiro que seja apagado na percepção, e reciprocamente”. De outro modo, se uma percepção permanece no campo da coisa, quer dizer, se a coisa retorna ao sujeito sem palavra, resta uma possibilidade alucinatória, que provoca não um sentido, mas uma sideração. Segundo Lacan (1985: 141), foi esse problema da relação da alucinação com a realidade que levou Freud a formular o aparelho de memória, pois era necessário contrapor à concepção do aparelho psíquico como “mera placa sensível”, na qual uma excitação reativaria sempre uma mesma série de experiências e produziria sempre uma mesma imagem, um “teste da realidade”, que “supõe uma comparação da alucinação com algo que seja recebido na experiência e conservado na memória do aparelho”. Outra coisa é o recalque, que, segundo Freud, ocorre por uma falha na tradução; ou seja, como o campo simbólico é furado e não recobre tudo, nem tudo que é percebido chega à consciência. Assim, no inconsciente restam os desejos que “não se extinguem jamais, porque aqueles que se extinguem [tornam-se conscientes], por definição não se fala mais deles” (Lacan, 1988: 176). Os desejos que restam são os que causam desprazer e, por isso, são re-calcados; porém, “continuam a circular na memória e (que) fazem com que, em nome do princípio do prazer, o ser humano recomece indefinidamente as mesmas experiências dolorosas”. 5. A relação entre linguagem, real e inconsciente

Retomando a discussão da representação pelo caminho indicado por Lacan, coloca-se então em causa o que há antes do signo lingüístico: de onde vêm e/ou de que se constituem as massas amorfas, que, por sua vez, constituem as unidades verbais e os sentidos das palavras em seus domínios ou complexos. A essa questão, o aparelho psíquico freudiano, como também seus efeitos em Lacan, fornece uma possibilidade de resposta: há escrita, letra, significante. Lacan (1973) define que significante é o verdadeiro nome dos signos de percepção, creditando a Freud a formulação da noção de sincronia significante, quando este, cinquenta anos antes dos lingüistas, postula a simultaneidade de constituição dos signos de percepção. E é da escrita que se dá o nascimento do significante como parte daquilo de que ele é signo; nas palavras de Lacan (2003: 101): “alguma coisa está ali para ser lida, lida com a linguagem quando ainda não há escrita. E é pela inversão dessa relação, e dessa relação de leitura do signo, que pode nascer em seguida a escrita”. Em Lituraterre (1971: 118), Lacan afirma: a escrita, a letra é no real, e o significante, no simbólico. Quer dizer, o significante não é nada enquanto não entra na história do sujeito, e essa entrada, como o aparelho de memória freudiano mostra, dá-se com a leitura do escrito ou a transliteração, na expressão de Allouch (1995), ou seja, uma leitura regida não pelo sentido ou pelo som, mas pela letra.

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Logo, embora as noções de letra e escrita sejam elaborações lacanianas, a existência de alguma coisa da ordem da escrita na linguagem e, por conseguinte, sem relação com a consciência, foi sugerida desde o princípio por Freud. Como observa Moraes (no prelo), Freud usa, em sua caracterização de memória, “todo um vocabulário que é da ordem da escrita. Ele toma a impressão [Eindruck] do mundo exterior como uma escrita [Niederschrift] e posterior reescrição [Umschrift] do signo [Zeichen] em traço mnêmico [Erinnerungsspur]”.

Parece claro, assim, que a condição necessária para que o significante possa vir a significar é a entrada do sujeito no simbólico, enquanto sujeito tomado pela linguagem; e isso desfaz qualquer hipótese de anterioridade seja do sujeito, seja do conhecimento do real. E, conforme observa Julien (1993: 101), leitor de Lacan, “é apenas pela letra que a relação do simbólico com o real pode finalmente ser apresentada”. Portanto, em resposta à questão colocada acima, chega-se ao entendimento de que o antes da linguagem é uma escrita em que o inconsciente se escreve, ou seja, cifra seu real. Por outro lado, infere-se daí que o sujeito não está no sentido, mas, ao contrário, está onde este falta, na falha do simbólico, no não-sentido, uma vez que o trabalho do inconsciente é justamente cifrar nesse ponto de falta do simbólico, do gozo recalcado, o sujeito desejante. Esta falta se escreve com a letra, que responde pelo real como impossível, diz Julien, que explica, na mesma obra: o trabalho de cifrar do inconsciente faz-se em três tempos: a leitura de uma escrita anterior, feita de traços, rasura, signos, marcas do objeto – do real – que, quando lidas com linguagem (fonetizadas), se tornam letras, as quais, por sua vez, apagam o objeto e fazem litoral entre o real e o simbólico. O que daí resulta, desse processo inconsciente em três tempos, é o significante: “A letra é o que, do significante barra-o de todo significado pré-estabelecido” (Julien, 1993: 106). Já Pommier (1993: 3) analisa que é a letra, como suporte do significante, que denota o recalcamento: “‘qualquer coisa’ que foi recalcada traça / escreve / sulca [se fraie] uma via sob uma forma literal que se escuta no que se diz (como no lapso), que se mostra (como no sonho), ou que se escreve no corpo (como o sintoma)”.

Além disso, a concepção dinâmica da memória freudiana permite que se depreenda a diferença entre língua e linguagem, de forma relacionada à divisão do sujeito, na medida em que ao mesmo tempo em que a língua é o lugar da apresentação das intenções, do querer dizer, das certezas do Eu, também é o lugar da possibilidade de que se manifestem elementos da linguagem inconsciente, “daquilo que fala no Eu sem seu consentimento”, como observa Moraes (no prelo). Cumpre observar, pois, que a separação entre língua e linguagem, como Saussure quis fazer, não existe de fato, mas é tão-somente um efeito do discurso analítico, pois é na língua que se apresentam os fatos de linguagem; ou seja, nas palavras de Lacan (1985a: 47), “cada um em seu lugar, isto só funciona dentro do discurso”.

Para ilustrar esse efeito do discurso analítico, primeiro, do lugar da lingüística, toma-se uma passagem do CLG (1916/2004: 145-146), inserida em nota de rodapé, em que o fenômeno lingüístico “Les musiciens produisent les sons et les grainitiers les vendent”6 é citado como exemplo de casos raros ou anormais de associações, “pois o espírito descarta naturalmente as associações capazes de perturbarem a inteligência do discurso”. Contudo, continua a nota, é provada a existência dessas associações “por uma categoria de jogos de palavras que se funda em confusões absurdas que podem resultar do homônimo puro e simples”. Tal como analisa Milner (1987: 73), o alvo da representação saussuriana é a verdade, que pressupõe um “todo” que a língua pudesse abarcar; quer dizer, a adequação de uma associação consistiria em que as seqüências de língua tivessem valor de verdade: “todo X que entraria com um elemento de língua em tal relação tomaria figura de verdade”. Não obstante, segundo Milner, o “não-todo” não cessa de se inscrever na “alíngua” (lalangue)7, caracterizando-a como uma proibição cujo campo é a proferição, esta entendida, pois, como o ponto onde a língua e a linguagem se confrontam. Decorre daí o esforço e os subterfúgios da

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lingüística para recobrir o excesso da alíngua, como “a invenção de símbolos de duplo sentido, anotando, recobrindo e [porém] atestando, ao mesmo tempo, a presença de pontos de desfalecimento” (Milner, 1987: 73). Assim, explica Milner, tomando-se uma seqüência qualquer de língua, “basta que um sujeito de desejo aí faça signo em um ponto, para que, ao mesmo tempo, tudo bascule: a possibilidade de cálculo sintático cessa, a representação gramatical cede e os elementos articulados viram significantes” (Milner, 1987: 64).

Portanto, nesse lugar de confronto entre língua e linguagem, onde a alíngua nomeia o não-todo, inscreve-se uma outra ordem, onde se situa o discurso psicanalítico. Deste lugar, Moraes (no prelo) analisa que homônimos e parônimos constituem manifestações de linguagem em que a associação ocorre no processo primário do funcionamento psíquico, um modo de funcionamento do aparelho submetido ao princípio de prazer a que Freud chama trabalho do sonho, nas manifestações da fala na histeria. Em tais manifestações, que, via de regra, são desdenhadas pelo pensamento consciente, segundo Moraes, evidencia-se um jogo de intenções que, desconhecidas pelo sujeito, revelam um descompasso entre o que o sujeito quer dizer e o que é dito. Tomada nessa direção, a homonímia presente no fenômeno transcrito acima poderia representar não uma associação anormal, fundada em confusões absurdas, mas uma “ponte de algo da linguagem para a língua”, ainda nas palavras de Moraes.

Assim, o campo da psicanálise torna possível que fenômenos de linguagem como o lapso, o chiste, o sonho, cujos instrumentos de manifestação na língua são a homonímia, a homofonia, a negação, as interrupções, as pausas etc., compreendam não confusões absurdas, mas uma outra ordem de produção de sentidos, completamente estranha à consciência do sujeito. Enfim, quando se olha desse outro lugar, o que há de sentido na língua não passa de possibilidades; afinal, como mostra o aparelho de memória de Freud, sentido e consciência resultam de um complexo processo inconsciente de inscrição, reescrição e transliteração, e não são garantidos. Por tudo isso, conclui-se que, em vez de se procurar por um sentido nos fenômenos lingüísticos, resta reconhecer neles tão-somente uma possibilidade de manifestação de algo que não é para ser compreendido, mas apenas lido como escrito, tendo em vista que “é pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem (...) que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático” (Lacan, 1985a: 51). 6. Considerações finais

Finalmente, o que se pode dizer acerca de uma relação possível entre palavra, sentido e memória, consoante com a proposta inicial, é que nenhum desses elementos da linguagem existe por si, independentemente, mas, ao contrário, há entre eles uma implicação mútua. A memória corresponde, por um lado, ao aparelho de linguagem, pois constitui os processos associativos das representações; por outro lado, ao aparelho psíquico, constituído por esses mesmos processos. Assim, a memória responde tanto pela relação da linguagem – da palavra e do sentido – com o real, como pela entrada do sujeito na linguagem. Em suma, antes da consciência, instância do sentido e do ser, há, necessariamente, uma instância do não-sentido e do sujeito, isto é, o inconsciente. É de fundamental importância ressaltar, contudo, que essas instâncias se referem não a um tempo cronológico ou a um espaço físico, mas a lugares psíquicos e a tempos lógicos. Enfim, uma vez que “o inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo (ou a virtude) da consciência” (Lacan, 1998a: 844), o inconsciente da representação freudiana, um lugar psíquico onde as associações se realizam, é essencialmente distinto do inconsciente da representação saussuriana, o modo como uma palavra suscita outras no processo. Tal é, pois, o princípio da impossibilidade de aproximação entre as duas perspectivas teóricas; isto é, o

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fato de que palavra, sentido e memória são coisas distintas para Freud e Saussure, do mesmo modo que as formas substantiva e adjetiva de inconsciente o são. 7. Referências bibliográficas Allouch, J. (1995). Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. (Duque Estrada, D. Trad.). Rio de Janeiro: Campo Matêmico. Freud, S. (1891/1979) A interpretação das afasias: um estudo crítico. (Ribeiro, A.P., Trad.). Lisboa, Edições 70. Freud, S. (1891/1953). On Aphasia, a critical study. (Stengel, E., Trad.). International Universities Press, Inc., New York. Julien, P. (1993) O retorno a Freud de Jacques Lacan: A Aplicação ao Espelho. (Jesuíno, A.; Settineri, F.F., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas Sul. Lacan, J. (1971). Lituraterre. Em: Lacan, J. O seminário, livro 18: De um discurso que não seria do semblante. Lição 7. (Queiroz, T. C. N., Trad.; inédito). Lacan, J. (1973). O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (Magno, M.D., Trad.) Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. Lacan, J. (1985). O seminário, livro 2, O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. (Penot, M.C.L e Andrade, A.L.Q., Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Original publicado em 1978). Lacan, J. (1985a). O seminário, livro 20, Mais, ainda. (Magno, M.D., Trad.). Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1975). Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3, As psicoses. (Menezes, A., Trad.). 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1981). Lacan, J. (1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Em: Lacan, J. Escritos. (Ribeiro, V.R., Trad.). (pp. 496-533). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Lacan, J. (1998a). Posição do inconsciente. Em: Lacan, J. Escritos. (Ribeiro, V.R., Trad.). (pp. 843-864). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Lacan, J. (2003). O seminário, livro 9: A Identificação. Lições VI e VII. (Publicação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife). Masson, J.M. (Ed.). (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904. (Ribeiro, V., Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Milner, J.-C. (1987). O amor da língua. (Jesuíno, A. C., Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. Moraes, M. R. S. Toda língua materna é estrangeira. (No prelo) Pommier, G. (1993). A instância da letra no inconsciente e a escrita. Em: Pommier, G. Naissance et Renaissance de L’écriture. Paris: Presses Universitaires de France. (Moraes, M.R.S. Trad., inédito). Pommier, G. (2005). Qué es lo “real”? Ensayo psicoanalítico. Buenos Aires: Nueva Visión. (Prado, N., Trad.). (Original publicado em 2004). Saussure, F. (1916/2004). Curso de Lingüística Geral. 26 ed. (Org. Charles Bally e Albert Sechehaye). (Chelini, A.; Paes, J. P.; Blikstein, I., Trad.). São Paulo: Cultrix. Notas (1) Reconstrução elaborada por Charles Bally e Albert Sechehaye. (2) No Prefácio à edição brasileira, Isaac Nicolau Salum cita De Mauro (Corso), que, por sua

vez, cita L. Gautier (Les sources manuscrites), a quem Saussure teria confessado seu descontentamento e seus dilemas com o desenvolvimento da matéria que ensinava, não apenas pela limitação imposta pela necessidade de obedecer a um programa e pela própria

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limitação da compreensão de seus alunos, como também por não sentir como definitivas suas idéias. A recente publicação de Escritos de Lingüística Geral, em 1996, na França, organizado e editado por Rudolf Engler e Simon Bouquet, a partir dos manuscritos de Saussure guardados pela família, permite entrever algo dos anseios do fundador da lingüística moderna e sugere que Saussure vai além do Curso de Lingüística Geral.

(3) Freud cita Stuart Mill (Logik, I, cap. III, e An examination of Sir William Hamilton’s philosophy), para caracterizar a representação objectual.

(4) Tradução para o português de Maria Rita Salzano Moraes (inédito). (5) O bloco mágico é um objeto contemporâneo de Freud usado para se escrever ou desenhar,

constituído de uma prancha de resina ou cera sob uma folha fina e transparente, sendo que aquilo que se escrevia ou desenhava sobre a folha desaparecia, ao se levantá-la; assim, a folha ficava sempre livre para receber novas impressões. Porém, as impressões sobre a folha deixavam marcas na resina, sob ela, que apreciam sob uma luz adequada.

(6) “Os músicos produzem as notas e os perdulários as gastam”. (7) Para Lacan, “a linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua [lalangue]. É uma elocubração

de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem” (Lacan, 1985a: 190).

- Prado, C.H é Graduada em Comunicação Social/Relações Públicas (UFG) e em Letras (UFG), Especialista em Educação Brasileira (UFG), Mestre em Lingüística (UFU) e Doutoranda em Lingüística Aplicada (UNICAMP/IEL). Atua como Professora Titular (UFG/CAJ). Endereço para correspondência: Rua Tiradentes, 1587, Setor Samuel Grahan. Jataí, GO 75804-067. E-mail para correspondência: [email protected].

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Inteligência artificial e pensamento: redefinindo os parâmetros da questão primordial de Turing

Artificial intelligence and thinking: redefining parameters of Turing's primordial question

Diego Zilio

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica, Universidade

Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Marília, São Paulo, Brasil

Resumo A primeira parte do ensaio apresenta as idéias fundamentais de Turing que contribuíram para o desenvolvimento da ciência cognitiva. Assume-se que, embora tenha apresentado uma definição operacional de pensamento, Turing não consegue escapar do antropocentrismo, já que o teste baseado no jogo da imitação tem como parâmetro o ser humano. Consequente-mente, o objetivo da ciência cognitiva influenciada por Turing passou a ser o de formalizar o pensamento humano. A possibilidade dessa tarefa é analisada na segunda parte do ensaio, na qual também são apresentadas as principais características do processo de raciocínio humano. O resultado dessa análise sugere que a formalização do pensamento humano em máquinas é uma tarefa muito difícil, senão impossível. Ressalta-se, todavia, que desse resultado não implica a negação da proposta de Turing. É preciso apenas redefinir os parâmetros de seu teste. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 208-218. Palavras-chave: Turing; ciência cognitiva; lógica; pensamento; raciocínio; modelos mentais. Abstract The first part of the essay presents Turing’s fundamental ideas that contributed to development of cognitive science. Since the test based on imitation game has the human being as parameter, it is assumed that, despite his operational definition of thinking, Turing doesn’t escape from anthropocentrism. Therefore, formalize human thinking has become the goal of cognitive science influenced by Turing. The possibility of this task is analyzed in the second part of the article, where are also presented the principal characteristics of reasoning in human. The result of this analysis suggests that the formalization of human thinking in machines is a very difficult task, if not an impossible one. However, this result doesn’t imply the invalidation of Turing’s proposal. Redefining parameters of his test is just what is needed. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 208-218. Keywords: Turing; cognitive science; logics; thinking; reasoning; mental models.

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Ensaio

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A proposta de Turing e a gênese da ciência cognitiva clássica

A primeira sentença do texto “Computing Machinery and Intelligence”, de Allan Turing (1950), é um convite à reflexão. O tema proposto é precisamente delimitado em sua questão primordial: “podem as máquinas pensar?” (p. 433). Com a questão posta, faltava apenas uma definição clara dos termos envolvidos. O que é “máquina”? O que é “pensamento”? Turing logo se deu conta de que esses são termos perigosos, pois há uma gama enorme de significados que os acompanha, o que acabaria por dificultar uma definição precisa. Com esse problema em mãos, o autor encontrou uma resposta no “jogo da imitação”. A versão “humana” do jogo seria assim: um participante faria perguntas a outros dois participantes sem poder vê-los e sem ter acesso direto às suas respostas, sendo essas apresentadas por um mediador. Ambos os participantes deveriam convencer com suas respostas serem mulheres. Dessa forma, o homem deveria persuadir quem fizesse as perguntas enquanto a mulher deveria provar que, de fato, ela é a mulher. O intuito do jogo seria descobrir qual dentre os dois participantes é o homem e, consequentemente, qual é a mulher. Turing, então, muda as regras do jogo colocando uma máquina no lugar de um desses participantes. Nessa nova situação, o objetivo seria descobrir qual, dentre os dois participantes, seria o ser humano e qual seria a máquina. Se conseguir agir por meio de suas respostas tal como um ser humano sem que o participante que faz as perguntas perceba, essa máquina seria considerada inteligente e, por consequência, um ser pensante. É importante ressaltar, todavia, que de maneira alguma Turing partiu do pressuposto de que os homens pensariam de maneira diferente se comparados às mulheres. Esse problema não era de seu interesse. O jogo da imitação entre homem e mulher foi apenas uma tática didática para se chegar ao verdadeiro teste de Turing; o teste em que uma máquina deveria passar-se por um ser humano para ser considerada um ser pensante.

De acordo com Dennett (1985/1998), Turing não estava interessado em criar uma máquina que pensasse da mesma forma que os seres humanos, nem queria estabelecer os parâmetros de validade das teorias sobre inteligência ou, de forma mais geral, sobre os processos cognitivos. Mas foi exatamente isso o que aconteceu. A idéia de Turing foi decisiva para o desenvolvimento da ciência cognitiva, especialmente em seu desdobramento na inteligência artificial simbólica. Há três motivos principais que justificam a influência de Turing. Primeiramente, seu teste estabeleceu, mesmo que indiretamente, a independência entre a estrutura material da máquina (o hardware) e sua função (o software). De certa forma, o autor propiciou uma nova forma de análise que, embora mecanicista, seria independente da matéria física (Pylyshyn, 1986). Afinal, a máquina não estaria visível ao participante, que só teria acesso às suas respostas. Essa divisão culminou na visão funcionalista da mente. Há dois princípios básicos do funcionalismo: (1) entender como a mente funciona implica conhecer os estados funcionais que a caracterizam; e (2) os estados funcionais podem ser realizados em qualquer configuração física. Para entender o que o isso significa, tomemos o exemplo clássico de Putnam (1967/1991), o precursor do funcionalismo no contexto da filosofia da mente. O autor, numa crítica incisiva à teoria da identidade mente-cérebro, indagou se seria correto afirmarmos que as dores são nada mais que estados cerebrais. Segundo o funcionalismo, a resposta é negativa. A dor seria um estado funcional resultante da relação entre os estímulos ambientais que modificam os estados corporais; entre outros estados funcionais (mentais); e entre as respostas comportamentais. Por exemplo, só é possível afirmar que, no cérebro humano, as dores estão relacionadas com os disparos de neurônios específicos por conta dos estados funcionais mentais e das respostas comportamentais que fazem parte dessa relação. Um alienígena poderia ter outra constituição física, mas, mesmo assim, possuir estados funcionais aos quais classificaríamos como dor. O funcionalismo

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embasou a tese de que a mente, isto é, os estados funcionais, poderiam ser instanciados em qualquer configuração física. Putnam afirma, especificamente, que a máquina de Turing (da qual falaremos adiante), por ser universal, forneceu a estrutura básica para que isso fosse feito. Assim, o ponto de vista funcionalista é intrínseco à ciência cognitiva.

O segundo motivo que justifica a grande influência de Turing na ciência cognitiva está em sua definição clara e precisa sobre o que é o pensamento: pensar é processar informações a ponto de conseguir resolver problemas. Se a máquina conseguir com sucesso responder às perguntas feitas pelo participante do jogo de Turing, o que implica processar informações, a ponto de enganá-lo passando-se por um ser humano, ela seria considerada uma máquina pensante. Tanto a separação entre máquina e função quanto a definição operacional de pensamento propiciaram uma suposta emancipação do objeto de estudo. Pensar não seria mais uma característica dos seres humanos. Qualquer coisa que processasse informações, a ponto de conseguir com sucesso ser classificada como inteligente, pensaria. Em poucas palavras, Turing supostamente havia se livrado do antropocentrismo.

Finalmente, o terceiro motivo está no fato de que Turing também acabou por estabelecer o teste empírico em seu jogo da imitação. A máquina pensaria se conseguisse enganar o interlocutor. Com esse trabalho, Turing estabeleceu a agenda de pesquisa da ciência cognitiva, fazendo com que a computação, a matemática e a lógica trabalhassem juntas (Clark, 2001). Afinal, não há processamento de informações sem algoritmos. Uma definição precisa de algoritmo é apresentada por Knuth (1977): um conjunto de fórmulas, regras e parâmetros computáveis que possibilitam a produção de um conjunto específico de informações (output) quando na presença de um conjunto específico de informações (input). Uma máquina computa informações que chegam ao seu sistema de entrada (input). Essas informações são manipuladas de acordo com os algoritmos da máquina que, assim, apresenta uma resposta (output).

Turing (1950) também discorreu sobre o funcionamento de sua máquina. A hipotética máquina de Turing seria constituída por uma fita de dados de tamanho infinito, mas de estados finitos (“finite state machine”); por um processador de informações; e por um cabeçote capaz de ler, apagar e escrever informações na fita, além de poder movimentá-la. A máquina seria capaz de processar informações serialmente, com “memória” capaz de recordar qual a função do símbolo que está inscrito na fita e qual o estado da máquina no momento da leitura, podendo, assim, determinar a próxima ação (que é efetivada pelo cabeçote) e, consequentemente, o próximo estado finito da máquina (que está inscrito na fita). A universalidade da máquina de Turing consiste na possibilidade de imputar nela qualquer algoritmo, não havendo, assim, ao menos em princípio, limites para os tipos de processos que ela poderia instanciar. A máquina de Turing acabou por instituir o padrão de funcionamento de todas as máquinas digitais que conhecemos.

Assim temos uma definição clara dos termos envolvidos na questão primordial de Turing. A máquina a qual nos referimos é a máquina de Turing. Pensar é processar informações. E mais, a máquina pensa se conseguir resolver, por meio do processamento de informações, problemas a ela apresentados. É importante ressaltar a magnitude do teste de Turing. Não há regras para os problemas que poderão ser apresentados para a máquina em forma de questões. O interrogador poderá fazer perguntas a respeito de qualquer assunto, dentro de qualquer contexto, e da forma que quiser. Dennett (1985/1998) assevera que o teste de Turing é o mais difícil de todos. O autor cita como exemplo a máquina PERRY, que apresentava padrões de resposta típicos de pacientes psicóticos. PERRY enganou diversos psiquiatras que não conseguiam diferenciar suas respostas quando comparadas às de pacientes psicóticos humanos. Levando-se em conta o fato de que os psiquiatras faziam perguntas que eram tipicamente dirigidas aos pacientes psicóticos, é possível afirmar que PERRY passou no

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teste de Turing? Para os críticos, não. Uma das críticas mais espirituosas, também citada por Dennett (1985/1998), foi a de Joseph Weizenbaum. O autor afirmou que assim como Kenneth Colby, criador de PERRY, ele também havia criado com sucesso uma máquina capaz de simular um problema mental humano. Entretanto, ressaltou o autor, por conta do baixo orçamento, ele teve que usar máquinas de escrever ao invés de computadores digitais. Sua máquina simulava respostas típicas da pacientes com autismo. A ironia do argumento é evidente e cumpre sua função. Colby fez um recorte minúsculo da realidade mental humana. Embora complexo, o repertório de respostas possíveis que se pode esperar de um paciente psicótico é finito. A força do teste de Turing, por sua vez, está em não estabelecer barreiras, isto é, não deve haver regras que limitem tanto o modus operandi da máquina quanto as perguntas (i.e., os problemas) que a ela poderiam ser apresentadas.

Entretanto, há uma característica importantíssima no teste de Turing que ainda não foi aqui contemplada. A máquina pensaria se, e somente se, conseguisse com sucesso emular um ser humano, condição essa da qual se conclui que o parâmetro classificatório da máquina como pensante ou não-pensante é o próprio homem. Isto é, é o ser humano, enquanto ser pensante, quem profere o veredicto final. Turing, no final, não conseguiu se livrar inteiramente do antropocentrismo, já que o ser humano está no centro de seu teste. É o homem quem deve ser enganado. E o princípio da enganação seria a máquina ser comparada, sob a óptica do enganado, com um ser humano. Esse detalhe acabou por influenciar profundamente as pesquisas em ciência cognitiva, que, por um lado, atribuiu aos processos cognitivos humanos o status de fonte de dados primordial dos processos estudados, e, por outro lado, concentrou-se no desenvolvimento de máquinas na qual se pretendia simulá-los.

O ponto inicial desse processo de pesquisa estava na constatação de que o ser humano revela, por meio de suas ações, conhecimento sobre o mundo que o cerca. Consequentemente, uma boa estratégia para simular o pensamento em máquinas seria, então, formalizar esse conhecimento, isto é, transformar o conhecimento em algoritmos que possibilitem às máquinas agir tal como um ser humano, emitindo respostas específicas tipicamente “humanas” (outputs) na presença de problemas específicos tipicamente “humanos” (inputs). Hayes (1979/1990), por exemplo, propôs formalizar o conhecimento intuitivo humano a respeito do mundo físico. A “física ingênua”, nas palavras do autor, implicava formalizar o conhecimento humano a respeito dos objetos físicos, tratando de conceitos como “força”, “movimento” e “substância”, “liquidificação”, entre outros, na construção de algoritmos que supostamente fariam com que a máquina interagisse com o mundo físico tal como os seres humanos. Mcdermott (1987/1990) sustenta que essa tentativa é um produto do “argumento logicista”, cujas premissas básicas seriam: (1) Um programa capaz de emular o pensamento humano deve possuir uma grande

quantidade de conhecimento; (2) Esse conhecimento deve ser representado de alguma forma pelo programa; (3) Os programadores devem ter conhecimento a respeito do “conhecimento” que o

programa precisa representar antes de desenvolver o programa em si; (4) A lógica e a matemática fornecem a notação necessária para representar o

conhecimento nos programas; (5) Grande parte do conhecimento, senão todo, pode ser representado pela lógica

dedutiva. A ciência cognitiva influenciada por Turing assenta suas bases no argumento logicista

e grande parte de seus problemas, como veremos adiante, decorreram desse fundamento. O argumento logicista apresenta uma forma de pensamento essencialmente lógico-formal e

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mecanicista. O formalismo significa que os algoritmos são nada mais que regras lógicas. O mecanicismo, por sua vez, está relacionado com a questão da causalidade mecânica que norteia o funcionamento da máquina e é um princípio presente desde as pesquisas em cibernética que tiveram início durante a 2ª guerra mundial (Wisdom, 1951). É possível encontrar uma definição precisa sobre o assunto nos textos de Ashby (1947, 1962). Segundo o autor, o mecanicismo só faz sentido se relacionado ao modo de funcionamento da máquina, que é em si mecânico. Logo, o mecanicismo consiste na idéia de que sempre o estado finito presente da máquina determinará qual será o próximo estado finito. Se, de acordo com o algoritmo imputado na máquina, o estado finito “X” causar o estado finito “Y”, não haverá circunstância em que ocorrerá de outra forma. “Y” sempre seguirá de “X”. Assim, o mecanicismo implica uma forma de funcionamento, ou melhor, de causalidade, essencialmente determinística.

Resta-nos averiguar se o pensamento humano se enquadra nesse modelo. No âmbito das máquinas, Turing define pensamento como a capacidade para processar informações a ponto de conseguir resolver problemas. Por outro lado, a resolução de problemas se encontra, enquanto característica cognitiva, nos processos de raciocínio. Trata-se de definições correlatas. Logo, talvez seja viável buscar aproximações entre a proposta de Turing, no âmbito do pensamento das máquinas, e a proposta dos estudos da Psicologia Cognitiva sobre o processo de raciocínio. Raciocínio e resolução de problemas

O raciocínio é definido, no contexto da Psicologia Cognitiva, como o processo de tomada de decisão (Girotto e Johnson-Laird, 1993; Johnson-Laird e Shafir, 1993; Leighton, 2004). Trata-se de uma característica do pensamento fundamentalmente dirigida para a resolução de problemas. As pesquisas nessa área buscam entender como se estrutura e qual a lógica de funcionamento do raciocínio. Deve-se compreender a passagem “lógica de funcionamento” no sentido literal, já que grande parte das pesquisas sobre o raciocínio abrange discussões da Lógica, sendo justamente essa característica que nos interessa neste ensaio. Nesse contexto, Johnson-Laird (2004b) desenvolveu a teoria dos modelos mentais. A idéia básica dessa teoria é que as pessoas utilizam o conhecimento geral que possuem do mundo para construir modelos mentais dos possíveis estados de coisas desse mundo. Ou seja, cria-se, pelos modelos mentais, um mundo hipotético onde a pessoa testa suas decisões antes de aplicá-las no mundo real. Há três características básicas dos modelos mentais. A primeira é que todos os modelos mentais representam uma possibilidade de estados de coisas do mundo. A segunda é que os modelos mentais são icônicos, isto é, suas constituições correspondem às constituições dos estados de coisas do mundo que representam. A terceira, definida como princípio da verdade, é que os modelos mentais representam apenas o que é verdadeiro em relação aos estados de coisas que os constituem. De acordo esse princípio, as pessoas normalmente não buscam delimitar o que é falso a partir de suas representações dos estados de coisas, mas, pelo contrário, buscam delimitar quais as possibilidades potencialmente verdadeiras para, assim, interagir com sucesso no mundo.

Os modelos mentais constituem a base fundamental de qualquer processo racional humano (Johnson-Laird, 1981, 1985, 2002, 2004a; Johnson-Laird et al., 2004; Johnson-Laird e Yang, 2008). Entretanto, o raciocínio não é em si lógico no sentido formal do termo. Não há uma estrutura determinada para o raciocínio. As pesquisas de Johnson-Laird e de seus colaboradores mostram que cada pessoa constrói suas próprias estratégias para resolução de problemas. Tais estratégias são construídas ao longo da história de vida do sujeito e são mantidas de acordo com o sucesso em resolver problemas. A única constante, portanto, é a

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existência desses modelos mentais e não a existência de uma estrutura lógica do pensamento. Essa constatação nos leva ao princípio da modulação, cuja idéia central é que o conhecimento prévio e as crenças de um sujeito modulam sua forma de raciocinar.

Há diversas pesquisas que confirmam a teoria dos modelos mentais. A estratégia básica implica constatar, dentre outras coisas, as similaridades e diferenças entre os processos de raciocínio dos sujeitos experimentais e as regras lógico-formais. Os resultados sugerem discrepâncias fundamentais entre esses dois âmbitos. Há diferenças significativas a respeito de como os sujeitos apreendem a noção de causalidade (Frosch e Johnson-Laird, 2006; Goldvarg e Johnson-Laird, 2001); a noção de lógica silogística (Bucciarelli e Johnson-Laird, 1999); a noção de necessidade e possibilidade da lógica modal (Evans et al., 1999); e a noção de lógica clássica proposicional (Johnson-Laird, 2004a).

O intuito deste ensaio não é detalhar passo a passo os resultados dessas pesquisas. Sendo assim, um pequeno exemplo já nos fornece a base necessária para a argumentação conseguinte. O que todos os resultados apontam é que o processo de raciocínio, em pessoas que não possuem conhecimento de Lógica, quase nunca segue regras formais, mas é modulado pelo conhecimento e pelas crenças que os sujeitos possuem a respeito dos estados de coisas referidos pelos problemas. Dessa forma, por exemplo, tomemos a regra da disjunção, “A ou B. Não B. Então A.”, que no problema teria esta estrutura: João está em Bauru ou ao menos no estado de São Paulo. João não está no estado de São Paulo. Então, João está em Bauru. Embora formalmente correta, ninguém defenderia esta conclusão, pois se sabe que Bauru é uma cidade do estado de São Paulo e, se João não está nesse estado, tampouco está em Bauru. Assim, o conhecimento e as crenças, além de modularem a resolução de problemas, também afetam o próprio processo de raciocínio. O resultado dessa conclusão é que não há uma estrutura lógica determinada, e muito menos uma que tenha as regras lógico-formais como base, para os processos de tomada de decisão perante problemas.

As constatações de Johnson-Laird não são aceitas sem críticas pelos estudiosos do raciocínio (Bonati, 1994; O'Brien et al., 1994). O’Brien (2004), por exemplo, apresenta uma teoria cuja premissa básica é justamente a presença de uma estrutura lógica determinada. Entretanto, ressalta o autor, não há razão alguma para crer que a lógica do raciocínio se equipare à lógica formal desenvolvida pelos logicistas. Isso significa que, mesmo que exista uma estrutura lógica determinada do raciocínio, é errado relacioná-la com as formas lógicas. Em poucas palavras, a lógica da mente não é a lógica formal. É evidente que a lógica formal decorre da lógica da mente, já que é resultado dos processos de pensamento dos seres humanos. Mas é errado pensar que, por conta disso, é possível cingir o processo de pensamento por meio de sistemas formais. Tal constatação é problemática ao “argumento logicista” da ciência cognitiva, pois sua proposta era justamente formalizar o pensamento.

Entretanto, uma das premissas do argumento logicista é que a máquina deveria representar o conhecimento que o homem possui para, assim, manipular as informações e chegar às respostas dos problemas apresentados a ela. O teste de Turing, por sua vez, exigiria que a máquina fizesse isso com tamanha acurácia a ponto de conseguir enganar o interlocutor. Voltemos-nos ao exemplo citado anteriormente. A intuição nos diz que, se a máquina tiver acesso à informação de que Bauru é uma cidade do estado de São Paulo, ela provavelmente chegará à mesma conclusão que as pessoas, subvertendo a regra lógica da disjunção. Mas suponha-se, então, que um dos algoritmos que norteiem o funcionamento da máquina seja propriamente a regra da disjunção. Se assim for, a máquina chegará à resposta contraditória de que João está Bauru mesmo não estando no estado de São Paulo. Mcdermott (1987/1990), antes um defensor ferrenho do argumento logicista, assevera que não importa a quantidade de informações imputadas na máquina porque, afinal, as inferências e deduções não decorrerão delas. Para esclarecer o que isso significa é interessante dividir conceitualmente o conteúdo e

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o processo mental, em que o primeiro diz respeito ao conhecimento e as crenças das pessoas a respeito dos estados de coisas do mundo e o segundo é a forma como elas usam esse conhecimento e essas crenças para resolver problemas. Baseando-se nas constatações de Johnson-Laird e de seus colaboradores é factível sustentar que é impossível dividir tais âmbitos no processo de raciocínio. Ora, o conhecimento e as crenças modulam as estratégias de raciocínio das pessoas. Mcdermott (1987/1990), por outro lado, afirma que a ciência cognitiva apresenta uma notação essencialmente formal, o que significa que seu foco é apenas o processo. Nas máquinas, a estrutura formal do processo de pensamento precede o conteúdo informativo, manipulando-o conforme as regras lógicas implementadas. Assim, se a regra da disjunção, por exemplo, faz parte da “natureza” da máquina, esta a seguirá não importando os resultados que decorrerão disso. Para a máquina, João estará em Bauru, sendo irrelevante que tal resultado decorra do fato de que João não está no estado de São Paulo.

Alguns defensores do argumento logicista, na esperança de conseguir acabar com esse problema, desenvolveram máquinas capazes de modificar e de criar novos dados informativos (Mcdermott, 1987/1990). Mas o problema, mesmo assim, permanece. Mesmo se as máquinas fossem capazes de rever todo o seu “conhecimento” e colocar todas as suas “crenças” à prova, elas não poderiam modificar sua estrutura lógica de pensamento. O processo de revisão dos conteúdos e de reestruturação das estratégias de raciocínio, por sua vez, é uma característica essencial do pensamento humano e a impossibilidade de simulá-lo em máquinas sugere a conclusão pessimista de que as máquinas não poderão pensar tal como os homens (Johnson-Laird, 1981, 1985; Johnson-Laird e Yang, 2008). É possível criar máquinas peritas em diversos assuntos ou que sigam diversas regras lógicas, tal como PERRY, mas o teste de Turing exige algo mais. Como dissemos anteriormente, não deve haver barreiras ou regras que limitem tanto o modo de funcionamento da máquina quanto as perguntas que a ela serão feitas; assim como não há regras fixas que norteiam o processo de raciocínio humano. Afinal, podem as máquinas pensar?

Na primeira parte deste ensaio, foram apresentadas as principais idéias de Turing a

respeito da possibilidade de se criar uma máquina pensante. Ressaltou-se que há na ciência cognitiva, especialmente em seu desdobramento na inteligência artificial simbólica, o pressuposto do argumento logicista, segundo o qual seria possível formalizar o processo de pensamento, assim como o conhecimento humano, por meio das regras lógicas. A segunda parte, por sua vez, tratou da teoria dos modelos mentais de Johnson-Laird. A principal constatação extraída dessa teoria é que o raciocínio, enquanto processo de tomada de decisão perante problemas, fundamenta-se principalmente no conhecimento e nas crenças, que, por sua vez, modulam as estratégias para a resolução de problemas. A única constante nesse processo é a existência de modelos mentais que não são, em si, processos lógicos. Assim, a teoria dos modelos mentais sugere que há uma relação de síntese entre conteúdos (conhecimentos e crenças) e processos de raciocínio; relação essa denominada princípio da modulação. Nesse contexto, o termo “estratégias” para resolução de problemas cabe perfeitamente, já que não comprometeria o processo com alguma forma lógica fixa.

A questão mais importante, todavia, reside no fato de que não há normatividade nos processos de pensamento. Não há regras para a resolução de problemas, ou melhor, nas palavras de Johnson-Laird (2002), não há algoritmos. Podem existir similaridades entre sujeitos que estejam inseridos no mesmo contexto cultural, por exemplo, mas, mesmo assim, prevalecem as diferenças individuais nas estratégias de raciocínio (Lee e Johnson-Laird, 2006). Os sujeitos utilizam-se das estratégias que quiserem. O ajuste fino ocorrerá de acordo com o sucesso dessas estratégias na resolução de problemas. O fracasso, portanto, não implica

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que o sujeito que falhou “não pensa” ou “não raciocina”. Tal liberdade, por sua vez, é impossível nas máquinas porque a natureza do processamento de informação é essencialmente mecanicista e normativa. Enfim, as máquinas podem rever seus conteúdos informativos e criar informações novas, mas nunca poderão mudar a sua própria “natureza” normativa lógico-formal, que, por sua vez, foram a elas atribuídas pelo homem enquanto ser pensante.

Essas constatações podem encorajar a defesa de uma distinção radical entre os processos lógico-formais e o pensamento. De fato, separar a Lógica do pensamento humano não é uma idéia nova. Frege foi o primeiro a estabelecer essa distinção com seu antipsicologismo (Oliveira, 1998). Para Frege, a Lógica não teria relações necessárias com os processos mentais, já que estes seriam subjetivos e privados enquanto ela seria objetiva e pública. Frege, então, propôs uma separação entre “pensamento” e “idéia”. A idéia seria o objeto de estudo da Psicologia, constituindo os eventos mentais privados e subjetivos. Já o pensamento seria um objeto abstrato, uma proposição. Assim definido, o pensamento seria acessível e público, podendo constituir o campo de estudo da Lógica. Entretanto, tal como sustenta Haack (1978/1998), o argumento de Frege não nos obriga a separar o pensamento dos processos mentais. Definir o pensamento como um objeto abstrato proposicional ainda deixa em aberto o problema de como o sujeito o apreende. Apresenta-se, então, um dilema: ao passo em que os processos de pensamento não são formalizáveis tal como a ciência cognitiva sustenta, tampouco é possível separar a Lógica da Psicologia.

Haack (1978/1998) afirma que há três posições básicas a respeito do debate entre Lógica e Psicologia. A primeira é o já citado antipsicologismo de Frege, que sugere uma distinção radical entre Lógica e Psicologia. A segunda posição, definida pela autora como descritivista, sustenta que a Lógica apresenta a descrição de como nós pensamos. Parece ser a posição sustentada pela ciência cognitiva. Entretanto, os dados apresentados anteriormente neste ensaio sugerem que o processo de pensamento, embora abarque a lógica formal, não é formalizável. Finalmente, a terceira posição é classificada como prescritiva. Como o termo sugere, a idéia fundamental seria que a Lógica apresenta as normas de como nós deveríamos pensar.

Talvez uma resposta possível ao problema da ciência cognitiva delineada há mais de cinqüenta anos por Turing se encontre nessa última posição. Não haveria sentido em afirmar que a Lógica é prescritiva se os processos de pensamento fossem em si lógico-formais. Ora, a prescrição é um conjunto de regras, avisos e leis a respeito de como as coisas devem ser e não de como as coisas são. Assim, é plenamente possível sustentar que o pensamento humano não possui em si uma estrutura lógico-formal ao mesmo tempo em que se defende que a Lógica apresenta as formas corretas de como se deve pensar.

Nesse momento, é pertinente relembrar uma característica essencial das idéias de Turing: o antropocentrismo. No jogo da imitação o parâmetro responsável pela classificação das máquinas como pensantes ou não-pensantes é o ser humano. Nesse sentido, tendo o homem como referência, a pergunta central não seria apenas se as máquinas pensam, mas sim se as máquinas pensam tal como os seres humanos a ponto de enganá-los. Embora Turing tenha se esforçado para se livrar do antropocentrismo, seu teste acabou por aproximar a ciência cognitiva da Psicologia. A máquina deveria pensar como o ser humano. Só assim ela seria considerada um ser pensante. Todavia, os dados das pesquisas de Johnson-Laird e de seus colaboradores mostram que, neste caso, dificilmente (para não dizer impossível) haverá uma máquina que pensa.

Ao passo em que ofereceu uma definição operacional precisa de pensamento, o erro crucial de Turing foi não abandonar o antropocentrismo em seu teste. Esse problema acabou por direcionar a ciência cognitiva para um caminho problemático, em que havia a promessa

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de que um dia máquinas pensariam tal como os seres humanos e de que era isso o que Turing queria provar em seu texto. O desenvolvimento histórico da ciência cognitiva foi, possivelmente, influenciado por isso. As dificuldades encontradas pelo modelo formal da inteligência artificial simbólica acabaram por fortalecer o programa conexionista das redes neurais artificiais. As dificuldades em simular os processos de pensamento do ser humano encontradas por esses modelos, por sua vez, levaram os cientistas cognitivos a crerem que o problema estava no fato de que as máquinas eram “paralíticas”, ou seja, que elas não possuíam corpo e nem interagiam com o ambiente; constatação que deu origem aos modelos da cognição incorporada e situada.

A despeito da importância de todos os modelos propostos pela ciência cognitiva – o intuito deste ensaio não é criticá-los ou apresentá-los de forma detalhada –, é preciso tomar cuidado para não abandonar o projeto de Turing por conta do erro antropocêntrico. Se a normatividade da Lógica for aceita, isto é, se, de fato, for consenso que a estrutura lógico-formal apresenta a maneira correta de como se deve pensar, é plenamente possível dar uma resposta positiva à questão primordial de Turing. A única condição necessária é que se abandone o parâmetro humano para classificar a máquina como pensante. Abandonando-se o teste de Turing, o que resta é uma definição de pensamento plenamente compatível com a de raciocínio humano, em que não há nenhuma sugestão sobre como deve ser o processo. Aceitando-se essas condições, é possível afirmar que as máquinas não pensam tal como os seres humanos, mas pensam tal como máquinas, isto é, de maneira mecanicista e seguindo normas lógico-formais.

Alguns autores, como Wittgenstein (citado por Shanker, 1987) e Piaget (1968), sustentam que mesmo nesses termos não seria possível afirmar que as máquinas pensam, pois o pensamento seria uma característica humana, não se tratando de um processo mecânico estruturado por regras lógicas. Caracterizá-lo dessa forma seria transgredir sua própria natureza. Todavia, devemos nos lembrar da definição de pensamento proposta por Turing: pensamento é o processo pelo qual se resolve problemas manipulando-se informações. Essa definição está de acordo com a de raciocínio apresentada pela Psicologia Cognitiva. Assim, algo que pensa é algo que resolve problemas, não importando se o processo pelo qual se chega às respostas seja lógico-formal e mecanicista ou baseado em modelos mentais e estratégias. Dessa forma, há tanto homens quanto máquinas plenamente capazes de resolver problemas.

Concluindo, já que este parece ser o único âmbito, dentre os citados por Haack (1978/1998), em que é possível unir sem problemas a Psicologia e a Lógica, talvez a questão mais importante que nos resta, afinal, seja essencialmente normativa: deveriam os seres humanos pensar tal como as máquinas? Referências bibliográficas Ashby, W.R. (1947). The nervous system as physical machine: with special reference to the origin of adaptive behavior. Mind, 56 (221), 44-59. Ashby, W.R. (1962). Principles of the self-organizing system. Em: Foersterand, H.V. e Zopf, G.W. (Eds.), Principles of self-organization: transactions of the University of Illinois symposium (pp. 255-278). London: Pergamon Press. Bonatti, L. (1994). Prepositional reasoning by model? Psychological Rev., 101, 725-733. Bucciarelli, M. e Johnson-Laird, P.N. (1999). Strategies in syllogistic reasoning. Cognitive Sci., 23 (3), 247-303. Clark, A. (2001). Mindware: an introduction to the philosophy of cognitive science. New York: Oxford University Press.

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Erros humanos: considerações sob um ponto de vista cognitivo aplicado a processos criativos de negócios

Human errors: consideration under an applied cognitive point of view to creative

processes of businesses

Antonio Costa Gomes Filho, a, b, Tarcisio Vanzin, a, c e Fernando Antonio Forcellini, a, d

aPrograma de Pós Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (PPG-EGC), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil;

bDepartamento de Administração, Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava, Paraná, Brasil; cDepartamento de Engenharia do Conhecimento, UFSC,

Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; dDepartamento de Engenharia de Produção e Sistemas, UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

Resumo

Neste ensaio, apoiados no paradigma da pesquisa transdisciplinar, os autores propõem um framework conceitual de referência para o conceito cognitivo de erros humanos tendo por base os conceitos de verdade, realidade e conhecimento. Paradigmas existem dentro de determinada lógica, sendo que sua formação resulta de um processo cognitivo. Conceitos são instrumentos de julgamento dentro de paradigmas estabelecidos. Os paradigmas e os conceitos de processos de negócios que exigem criatividade passam pela necessidade de materialização do conceito de erro humano. Normalmente, erros são cometidos pela obscuridade do paradigma ou pela não clareza das próprias regras ou políticas das organizações, sendo, portanto, assunto complexo. Este ensaio tem por objetivo apresentar reflexões sobre a relação existente entre os conceitos de erros humanos e criatividade como elementos de referência aplicáveis a processos de negócios que exigem criatividade. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 219-232. Palavras-Chave: criatividade; erros humanos; processos de negócios; modelo conceitual.

Abstract In this rehearsal, leaning in the paradigm of the research transdisciplinary, the authors propose a conceptual framework of reference for the cognitive concept of human mistakes with base in the truth reality knowledge concepts. Paradigms life in certain logic inside and their formation results of the cognitive process. Concepts are instruments of judgment inside of established paradigms. The paradigms and the concepts of the processes of the businesses that demand creativity go by into need of materialization of the concept of human mistake. Usually, mistakes are made by the obscurity of the paradigm or for the non clarity of the own rules or politics of the organizations, being, therefore, complex matter. This rehearsal has for objective to present reflections about the existent relationship between the concepts of human mistakes and creativity as applicable reference elements for processes of businesses that demand creativity. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 219-232.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 219-232 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 22/09/2008 | Revisado em 18/03/2009 | Aceito em 23/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Ensaio

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Keywords: creativity; human mistakes; business processes; conceptual framework.

1. Introdução

O erro humano se caracteriza pelo ato do julgamento. Não há condições de se

qualificar um erro sem um conveniente processo de avaliação. A avaliação, por sua vez, pressupõe um fato a ser analisado e um conceito do que seja a verdade, que deve estar amparada por um paradigma estabelecido. Assim, o paradigma é um conhecimento previamente abstraído e aceito tanto em nível individual quanto social. O estabelecimento dos paradigmas que permitem o julgamento coincide com o processo de aprendizagem ou modificação de um conhecimento pré-residente no indivíduo.

Iniciando um ensaio de entendimento no campo dos paradigmas, é conveniente estabelecer, que eles constituem modelos abstratos vigentes em determinado tempo e espaço. Kuhn (1998), tratando do conhecimento científico, afirma que a ciência se desenvolve a partir da aceitação, por parte da comunidade científica, de um conjunto de teses, pressupostos e categorias que facilitam a relação entre os saberes gerados. Ou seja, trata-se de um conjunto de normas dentro das quais tradicionalmente a ciência se move e se orienta. O conhecimento científico é, por suas características, disciplinado, ao contrário de suas outras formas.

A formação de um paradigma resulta de um processo cognitivo que admite todas as etapas identificadas pela epistemologia. Uma vez constituído, espera-se que o paradigma seja operacionalizado com facilidade e rapidez pelo indivíduo.

De uma forma geral, os paradigmas podem ser classificados em duas categorias, os que constituem o “esperado” e aqueles que tratam daquilo que deve ser “evitado”. Nessas duas grandes categorias estão embutidas as variações das formas que incluem a verdade e a falsidade no jogo de verificação do correto e/ou incorreto, do sucesso e do fracasso, da realidade e da ficção e muitas outras formas de apresentação. Especificamente para o caso da verdade, Chauí (2000) destaca que podem ser identificados três distintos entendimentos: para o povo judeu, “Deus falou”; para o povo latino, a verdade é o que está escrito; e, para os gregos, a verdade faz-se revelar no “raciocínio” do filósofo. Essas três formas põem em evidência o caráter sócio-cultural da formação dos paradigmas e a decorrente lógica empregada em sua utilização.

A lógica muda de acordo com o paradigma e com o meio sócio-cultural no qual ele foi adotado. Num exemplo mais concreto, ao se afirmar que “matar é errado”, pode-se recorrer a diferentes argumentos: ou não se pode matar por determinação divina, ou porque está escrito no Código Penal, ou por que simplesmente o raciocínio Platônico sobre “bondade do homem” leva à preservação da vida. No entanto, em situações de exceção, tais como guerras ou defesa pessoal, esse conceito se torna relativo ao julgamento. Infere-se daí que abordar o assunto “erros humanos” é tarefa complexa, que exige ir além da visão disciplinar da ciência.

Esses conceitos ao serem aplicados ao ambiente de empresas, tornam-se essenciais ao entendimento do que se entende por sucesso ou fracasso, processos rotineiros ou processos não rotineiros. Num momento em que a inovação se torna um elemento de referência ao paradigma pós-industrial, erros humanos devem ser abordados à luz da multidisciplinaridade.

Na abordagem deste texto, conceitos são instrumentos de julgamentos dentro de paradigmas alusivos a processos de negócios que exigem criatividade e que contribuem para a inovação empresarial. Portanto, a motivação inicial dos autores, formulada como problema de pesquisa é a seguinte:

Qual a relação existente entre o conceito de erros humanos e criatividade? Por que na realidade infantil o erro é permitido e visto com naturalidade e na maior parte do mundo dos

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negócios quem erra é penalizado? Derivado dessas questões, os objetivos do texto são apresentar uma reflexão sobre a relação existente entre os conceitos de erros humanos e criatividade como elementos de referência aplicáveis a processos de negócios que exigem criatividade e propor um framework para o conceito cognitivo de erro humano.

2. Suporte teórico

Nesta seção são resgatados os conceitos de realidade, verdade e conhecimento, sendo

aqui chamados de primeiro, segundo e terceiro pilares demarcadores, respectivamente. O objetivo é contextualizar o leitor sobre a necessidade de ancorar o conceito de erro humano nesses conceitos mínimos de referência, pois que “definido como um aspecto do pensamento, conceito é uma espécie de unidade em termos da qual se pensa; uma unidade menor do que um julgamento, proposição ou teoria, mas que forçosamente toma parte neles” (Silva, 1986: 232). 2.1. Conceitos: verdade, realidade e conhecimento

O aprofundamento da reflexão sobre o paradigma que permite o julgamento de um

fato passa, necessariamente, pela visitação aos conceitos de realidade, verdade e conhecimento. Então cabe inicialmente perguntar o que é realidade, aqui denominada de primeiro pilar demarcador. Nas palavras de Chaui (2000) ratificada por Murcho (2006) o ser humano identifica a realidade como sendo uma espécie de moldura de um quadro, em cujo interior ele se instala e existe. Desta forma, existe a realidade natural, social, política e cultural. Murcho (2006) põe em evidência a afirmação de Kant na qual, segundo ele, a realidade como é conhecida filosoficamente e cientificamente não é uma realidade em si das coisas, mas a realidade tal como é estruturada pela razão, tal como é organizada, explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento.

Nessa forma de pensar, a atitude humana é chamada de dogmática ou natural e Chauí (2000) lembra que o ser humano aceita a realidade exterior que, embora externa e diferente de si, pode ser conhecida e tecnicamente transformada pelo indivíduo. As pessoas acreditam que o espaço existe e que nele as coisas estão como receptáculos. Elas aceitam que o tempo também existe e que nele as coisas e o próprio ser humano estão submetidos à sucessão dos instantes.

Como segundo pilar necessário ao entendimento da dimensão conceitual de erro humano, o questionamento passa pelo conceito de “verdade”. Aqui se faz necessário lembrar a relação existente entre os conceitos de “realidade” e de “verdade”. O entendimento do que seja a “verdade”, ora adotado, é aquele que a considera como a “certeza da existência da realidade”, certeza esta que é percebida pelo ser humano. Desta forma, a verdade sempre possui um portador, que pode ser: pessoas ou coisas, sentenças assertivas, proposições ou crenças. Costa (2005) apresenta uma abordagem sintetizada das quatro teorias da verdade mais conhecidas, quais sejam: 1) Teoria da Redundância: essa teoria baseia-se na constatação de que enunciados do tipo “p é verdadeiro” podem ser substituídos por enunciados do tipo “p” sem que nada seja perdido. Como exemplo eu nada teria acrescentado à minha afirmação “Está nevando” se tivesse dito “É verdade que está nevando”, além de uma certa ênfase de modo que poderia ser substituído por “É...está chovendo” ou “Com efeito, está chovendo”. Dessa forma, “é verdade” nada parece acrescentar ao conteúdo da asserção. Ramsey1 foi um dos pioneiros na defesa da teoria da redundância, e considerou o caso da asserção “Tudo o que ele diz é verdadeiro”, em que o

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predicado “é verdadeiro” não pode ser elidido. No entanto, a asserção pode ser substituída por “Para todo p, se ele afirma p, então p”, na qual o predicado “é verdadeiro” é eliminado. Melhor esclarecendo, embora “então p” pareça incompleto, querendo dizer “então p é verdadeiro”, isso se deve a uma deficiência de linguagem. 2) Teoria Pragmática da Verdade: Sugerida por James2, consiste na aceitação de uma proposição como verdadeira se houver vantagem prática em sustentá-la. A asserção “Deus existe” é uma proposição verdadeira, pois é vantajoso crer em Deus. Nesta teoria, há confusão no conceito de verdade, que é vista a partir da utilidade. Todos concordariam que o conhecimento da verdade, freqüentemente, é útil, mas dizer que algo é verdadeiro porque é útil é confundir o efeito com a causa. Para Meneghetti (2007), James atribui a Pierce3 a origem do pragmatismo, surgido nos EUA em meados do século XIX, com presença significativa até a segunda década do século XX. 3) Teoria Correspondencial: é a mais antiga e também a única que se encontra em dicionário organizado. Foi proposta por Platão, complementada por Aristóteles e após diversas interpretações, foi sintetizada na afirmação de que a verdade é a adequação ou correspondência do que se pensa com a realidade. Dessa forma, deve-se substituir a palavra “intelecto” por “proposição” ou “pensamento”, ou seja, pelo nome do portador da verdade. Em vez de coisas, é mais correto falar de fatos porque não se diz das coisas serem verdadeiras, mas de um complexo que geralmente inclui o estado da coisa, ou seja, a verdade é a correspondência da proposição, do pensamento, com o fato. A identificação entre “é verdadeiro” e “corresponde ao fato” é evidenciada na proposição: p é verdadeira = p corresponde ao fato. Por meio da teoria correspondencial, é possível elaborar pressupostos e comparar se os fatos são verdadeiros, no entanto, uma objeção geralmente feita à teoria correspondencial é que proposições só podem ser comparadas com proposições. A contra-argumentação dos defensores da teoria é que quando se pretende comparar proposições hipotéticas a observações, o que se faz, na verdade, é comparar proposições hipotéticas a proposições observacionais. 4) Teoria Coerencial: surgiu com filósofos idealistas, a exemplo de Hegel, e com a afirmação de que a verdade está no todo. Foi desenvolvida por idealistas e por empiristas, tendo por idéia básica o entendimento de que uma proposição é verdadeira somente quando é coerente com o conjunto de proposições que constituem o sistema de crenças. Uma maneira básica de entender coerência é em termos de consistência, ou seja, uma proposição p é consistente com o conjunto de proposições q,r,s,t quando, sob a suposição de que essas proposições são verdadeiras, p poderá continuar sendo verdadeira. Isso não seria possível, se, por exemplo, p fosse negação de q & r, ou seja, implicassem em não-p. Essa teoria também é aberta a objeções, por exemplo, uma proposição de um conto de fadas pode ser verdadeira, na medida em que é consistente com as outras proposições do conto de fadas. Na consideração de sistemas abstratos e na inconsistência entre eles, a teoria coerencial considera o “sistema realidade” como referência, negando a existência dos outros.

O terceiro e último pilar demarcador para sustentar a proposição teórica sobre o conceito de erros humanos é o conceito de “conhecimento”. O conhecimento no nível individual leva à consciência que o ser humano tem de si mesmo. Já na interação com a realidade, essa consciência pode ser percebida em maior ou menor grau, dependendo do tipo de conhecimento que o ser humano possui.

Em Marconi e Lakatos (2007), é encontrada a definição dos diversos tipos de conhecimento, quais sejam:

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• Conhecimento popular: é o conhecimento do dia-a-dia utilizado para resolver problemas e diz respeito a questões do desenvolvimento de pessoas, grupos, sabedoria popular, dentre outros;

• Conhecimento religioso: é baseado na experiência individual, não pode ser repassado, não é representativo de grupo, pois são os dogmas, as crenças de cada pessoa;

• Conhecimento filosófico: é o questionamento sem respostas, afinal: quem somos, para onde vamos, são perguntas pertencentes ao campo da filosofia;

• Conhecimento científico: é falível (vai até prova em contrário), é sistemático, metódico, sistêmico, verificável, e útil devido à sua objetividade. Paradigmas de negócios, com propriedade, são influenciados e formados a partir dos

conceitos de realidade, verdade e conhecimento, portanto, não se trata, de escolher um ou outro conceito, mas tratá-lo como elementos de referência necessários ao entendimento do modelo de negócios estabelecido em determinado caso. O raciocínio vai, pois, do modelo de negócios estabelecidos ao encontro dos elementos conceituais que expliquem aquele paradigma.

Para melhor entendimento do erro humano e sua relação com os paradigmas, lembra-se que é no conhecimento científico que Popper (1993), criador do método hipotético-dedutivo, depois de ter estabelecido a distinção entre certeza e verdade, lembra que o caminho na busca da verdade, passa pela abordagem dos erros humanos. Para ele, sem “verdade” não podem existir nem “erro” nem “falseabilidade” e aquilo que é feito ao submeter as teorias à verificação é procurar descobrir os erros que podem estar escondidos nelas. 2.2. O conceito de erro humano

Entendendo-se que todo conceito é relativo e leva a novos conceitos, a opção em demarcar o conceito de erros humanos nos pilares da “realidade”, “verdade” e “conhecimento” é, reconhecidamente, insuficiente. No entanto, para efeitos deste ensaio, a linha de raciocínio inicialmente seguida é que, para entender o conceito de erro é necessário entender o conceito de acerto, que, por sua vez, deriva de certo, justo, correto, verdadeiro. Estes levam ao conceito de verdade, que tem relação direta com realidade e conhecimento.

Em princípio, é possível afirmar que não se entende o que não se conhece, e não se erra quando não se entende. Todavia, a imagem que o indivíduo é capaz de construir do desconhecido funciona como o paradigma inicial – aquele que vai ser submetido à prova. Na medida em que esse paradigma é experimentado ele se reconstrói a partir de uma certa “lógica de raciocínio”. Então, a diversidade de formas como se apresentam os diferentes paradigmas mostra a dificuldade da sistematização disciplinar dos erros humanos, porque os paradigmas podem se apresentar em escalas de convicção que tem no seu nível mais baixo a formulação do objeto paradigmático em forma de suspeita, hipótese ou questão e no topo da escala a convicção absoluta e inequívoca (tese).

A verdade não é senão a percepção da realidade traduzida em um operador de confronto simplificado em forma de paradigma. No entanto, as percepções das pessoas podem enganá-las a despeito da própria realidade, por exemplo, pode-se perceber que uma flor é branca, mas se a pessoa estiver doente pode vê-la na cor amarela; percebe-se o Sol muito menor do que a Terra, embora ele seja maior do que ela. Apesar desses enganos perceptivos, entende-se que toda percepção percebe qualidades nas coisas (cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas. Então se deve, ou abandonar as idéias formadas a partir das percepções individuais, ou

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encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas. No primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o “Ser Verdadeiro”. No segundo caso, o intelecto purifica o testemunho sensorial.

Quando, porém, é examinada a idéia latina da verdade como veracidade de um relato, é observado que, agora, o problema da verdade e do erro, do falso e da mentira se deslocou, diretamente, para o campo da linguagem (Chaui, 2000). O verdadeiro e o falso, no paradigma atual, estão menos no ato de ver (com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito) e mais no ato de dizer. Por isso, a pergunta dos filósofos, agora, é exatamente contrária à anterior, ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível?

Então, se a verdade está no discurso ou na linguagem, não depende apenas do pensamento e das próprias coisas, mas também da vontade de dizê-la, silenciá-la ou deformá-la. O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas, no caso, entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados, mas depende também do querer. Para Elster (1994), de forma conjunta, as oportunidades e desejos são as causas imediatas da ação, mas a uma distância maior apenas as oportunidades importam, uma vez que também modelam o desejo. O desejo, por sua vez, constitui, em certa instância, um paradigma de julgamento e, como tal, leva à qualificação ou sentença do fato comparado.

O ser humano tem o raciocínio simbólico por economia de energia. Isto é, age desta maneira porque é mais fácil, rápido e menos dispendioso pensar operando símbolos e julgar por paradigmas simplificados, do que operar com todas as informações e conhecimentos que intervém em cada fato. Essa é uma característica do indivíduo que tem reflexos no coletivo. Ou seja, pela linguagem um paradigma individual atinge e é absorvido pelo coletivo e pode passar a operar como um símbolo.

A rigidez do conhecimento científico ajuda a compreender a aparente complexidade e variabilidade das outras formas do conhecimento, nas quais a precisão conceitual tem implicação direta. Ao se operar com diversas realidades, verdades e conhecimentos, na figura dos paradigmas, torna-se um pouco mais claro o meio no qual se insere o conceito de “erro humano”. Neste sentido, a Psicologia Cognitivista parece ser um bom referencial de base para a abordagem do tema porque possibilita pensar em um “conceito cognitivo de erro humano”, onde a aquisição da linguagem falada é um estágio de desenvolvimento, sendo a linguagem apenas uma das formas de manifestação da função simbólica.

Piaget concebe o desenvolvimento do conhecimento como um processo contínuo de organização e reorganização estrutural, em que as estruturas de conhecimento sofrem desequilíbrios e reequilibrações constantes, diferenciando-se e integrando-se umas das outras, mas sempre em direção a um melhor equilíbrio ou equilibração majorante relembra (Chakur, 2002). É o processo dinâmico e permanente da construção do conhecimento, que coincide, neste caso, com a reformulação dos paradigmas que, no nível individual são utilizados nos julgamentos dos fatos.

3. Erros humanos e processos de negócios que exigem criatividade

Nesta seção, é feita a conexão entre realidade, verdade e conhecimento com criatividade, processos de negócios e processos criativos de negócios passando pelos erros humanos (figura 1).

O estudo dos erros humanos, pelos três pilares anteriormente descritos, pressupõe o domínio de conceitos como “realidade, conhecimento e verdade”, aplicáveis pela via dos paradigmas, aos julgamentos e avaliações dos próprios atos, no caso da abordagem individual, e dos atos de outros pela via do julgamento externo, com os paradigmas socialmente compartilhados. A operacionalização dos complexos conceitos de erros humanos nos

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processos de negócios que requerem criatividade passa, necessariamente, pela configuração que lhe é atribuída pelas ciências cognitivas.

Figura 1 - Framework conceitual de referência para o conceito cognitivo de erros humanos (elaborado pelos autores).

Sully4 é considerado como possível pioneiro na tentativa de classificar o amplo escopo

do campo do erro humano e, para tanto, buscou princípios comuns. Ele definiu “ilusão” como sendo todo tipo de erro que contradiz o conhecimento imediato, auto-evidente e intuitivo, seja por sensação-percepção ou por processo. Ele também tentou separar o conhecimento em duas áreas, quais sejam: primária ou intuitiva e secundária ou inferencial. Em seguida, nas duas primeiras décadas do século XX, surgiram numerosas tentativas de compreender as origens psicológicas da falibilidade humana e o mais conhecido dos esforços foi apresentado por Freud na figura da psicopatologia da vida cotidiana. Os lapsos constituíram um vértice de sua abordagem.

Porém foi somente nas duas décadas finais do século XX, por meio das Ciências da Cognição, que surgiu a primeira abordagem operacional para os erros humanos, especificamente nas contribuições oferecidas por Norman (1988), Rasmussen (1983) e Reason (2002). Norman subdividiu o comportamento fora do esperado em “deslizes” e “erros”. Rasmussen propôs uma arquitetura cognitiva com três níveis de comportamentos: baseados em habilidades, baseados em regras e baseados em conhecimento. Fazendo convergir os dois anteriores, Reason (2002) propôs, em 1990, o modelo GEMS (Generic

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Error-Modelling System). O “conceptual framework” que constitui o modelo GEMS é composto por três níveis: erros configurados como lapsos e deslizes (baseados em habilidades), erros baseados em regras e erros baseados em conhecimento.

É importante observar que erros do tipo lapsos e deslizes podem levar à ocorrência de problemas no nível dos erros baseados em regras. Exemplificando como isso funciona na prática, apertar um botão errado, ou vários botões errados no painel de uma usina nuclear por falta de atenção ou por condições de estresse podem levar a uma instabilidade em um sistema nuclear, que somente será percebido como problema no segundo nível, como um problema de regra. Ou seja, em um conjunto de regras que compõe um comportamento esperado podem ocorrer deslizes localizados e pontuais ao longo desse processo.

O modelo GEMS tem sido aplicado com sucesso em situações em que erros humanos podem levar a catástrofes, como tem acontecido no caso de Usinas Nucleares, onde uma interação complexa entre o operador e os equipamentos levam a eventos significativamente perigosos e, em alguns casos, à liberação de radioatividade para a atmosfera. Deficiências no desempenho humano ocorreram tanto antes do inicio do evento, em áreas tais como manutenção, treinamento e planejamento, quanto em resposta ao evento (Ambros, 2005).

A conexão entre erros humanos e criatividade ocorre na passagem do segundo nível, na arquitetura cognitiva de Rasmussen (1983), que trata de comportamentos baseados em regras, para o terceiro nível, que trata dos comportamentos baseados em conhecimentos. Dessa arquitetura é que tem origem o modelo GEMS, que tem demonstrado eficácia principalmente no trato do primeiro e segundo níveis, dentro de regras e paradigmas estabelecidos. No entanto, a criatividade é justamente a quebra de regras e/ou a incorporação de novos elementos de referência no paradigma estabelecido. Daí se extrai que o nível dos erros baseados em conhecimento é uma área nebulosa, porque opera com uma representação da realidade a partir do conhecimento residente na estrutura cognitiva do indivíduo e as associações que ele é capaz de fazer na montagem do seu plano de ação. Esse plano de ação configura o paradigma de julgamento individual (que pode atingir o coletivo) e que, ao ser submetido à realidade e em apresentando resultado satisfatório passará a compor novo conjunto de regras de ação. Com isto, essa nova situação passa a ser paradigmática, isto é, desce para o segundo nível de habilidade cognitiva proposto por Rasmussen (1983).

Este ensaio propõe a existência de uma relação entre os procedimentos criativos em processos de negócios com o nível baseado em conhecimento, no qual, quando há um problema para o qual se busca uma nova solução e não uma já conhecida (regra) ocorre um alinhamento com o próprio procedimento criativo. Neste caso, há uma racionalidade consciente na compreensão do paradigma vigente como carente de reformulação dentro de uma determinada lógica e sua efetiva alteração. Ou seja, tenta-se “racionalmente” entender o paradigma vigente e a lógica necessária a esse modelo de referência para trazer ao nível das regras visando à implementação de mudanças e rotinas. Com isso, quando utilizado o “conceito cognitivo” de erro humano, o julgamento do que é certo e o que é errado fica atrelado a um novo paradigma que pressupõe a possibilidade de ocorrência de erro na busca do acerto. O conceito cognitivo resultante do plano de ação e que opera como paradigma nos processos criativos de negócios é o embrião tanto da Criatividade, quanto da Inovação (conceitos de forte apelo na sociedade capitalista).

Deslizes não constituem indicativos de falta de conhecimento das regras vigentes nem pressupõe uma ação intencional de violação, mas são sempre decorrentes de condições extemporâneas como estresse ou desatenção. Os lapsos, por sua origem funcional orgânica, são de identificação quase que exclusiva do indivíduo que acessa a memória e, portanto, configuram um esquecimento ocasional e não intencional que, todavia, pode, em alguns casos, levar a conseqüências indiretas de descumprimento de regras. Com base nessa

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conceituação e por serem, de certa forma, incontroláveis, ficam desconsiderados nestas reflexões sobre os processos criativos de negócios.

Uma vez argüido o entendimento da sustentação teórica da formulação do paradigma do erro humano pelos pilares dos conceitos de realidade, verdade e conhecimento, torna-se oportuno clarear as conceituações operacionais de criatividade, processos de negócios e processos criativos de negócios.

A criatividade é aqui entendida como “o processo que resulta na emergência de um novo produto (bem ou serviço), aceito como útil, satisfatório e/ou de valor para um número significativo de pessoas em algum ponto no tempo”, sendo essa definição resumida por Alencar, (1996: 15) a partir de mais de cem definições disponíveis na literatura. Para Joahnsson (1995), Rummler, Brache (1994), Davenport (1994) Harrington (1994) processos de negócios são etapas seqüenciais que dispõem de entradas, saídas, tempo, espaço, ordenação, objetivos e valores que, interligados logicamente irão resultar em uma estrutura para fornecer produtos ou serviços ao cliente. No âmbito deste ensaio, o termo “processo criativo de negócio” é aplicado em especial aos casos que exigem criatividade, aqui subtendidos como sendo aqueles enquadrados em “situações complexas”, a exemplo da elaboração de um planejamento estratégico, resolução de problemas em ambientes de incertezas, desenvolvimento de conceitos de novos produtos, dentre outros.

Utilizando como exemplo o desenvolvimento de conceitos de novos produtos, o conhecimento de domínio é a condição básica para o reconhecimento da inovação, que tem por base a criatividade. Dessa forma, afirmar o que é criatividade fica a encargo do chamado expert no assunto. Reason (2002) explica que “experts” representam o espaço do problema num nível de abstração maior que “nonexperts”.

Os pesquisadores não mudaram essencialmente o modo de conceber as etapas do processo criativo desde Wallas5. Segundo ele, estas etapas são: encontro, preparação, concentração, incubação, iluminação, verificação e persuasão. Muitos autores apresentaram propostas de classificação, mas, como identificado por Ford e Harris (1992), não se verificam diferenças muito significativas.

Segundo Wechsler (1998), a criatividade como processo é uma abordagem teórica onde se enquadram as investigações e os questionamentos sobre o tipo de pensamento que leva o indivíduo à descoberta criativa. Estudam-se também os aspectos relacionados aos passos necessários para se atingir uma produção criativa, onde a preparação, a incubação e a verificação merecem atenção especial.

Ao discorrer sobre o processo criativo, Gabora (2002) discute os seguintes estágios:

• Preparação: o criador se envolve no problema, coleta dados relevantes e abordagens tradicionais e, possivelmente, tenta resolvê-lo (sem sucesso);

• Incubação: o criador não tenta ativamente resolver o problema, mas seu subconsciente continua trabalhando nele;

• Iluminação: uma possibilidade vem à tona, em uma forma vaga e não trabalhada. • Verificação: a idéia é trabalhada e formatada de modo que possa ser provada e

comunicada a outras pessoas. Esse ciclo mostra os estágios de preparação e verificação com clareza, mas deixa uma

definição muito aberta nos estágios intermediários. A criatividade é tratada como uma “inspiração”, e a conceituação não inclui as possíveis influências às idéias geradas e isso não se alinha com o entendimento geral sobre o tema. Estudos mais recentes tentam descrever mecanismos cognitivos e condições que levam à produção criativa com mais detalhes (Shneiderman, 1999), dando à inspiração um destaque menos acadêmico. Na interpretação de

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Ward e colaboradores (1999), a marca da criatividade humana é a capacidade de ir além de experiências passadas, utilizando processos caracterizados pela investigação experimental. Estes pressupostos formam a bases da sua abordagem de “cognição criativa”. O modelo GENEPLORE proposto por eles, sugere a existência de duas etapas na atividade criativa: a primeira, da geração de idéias candidatas, seguida por uma de exploração destas idéias. O modelo assume que as pessoas alternam entre estas duas etapas, trabalhando nas estruturas de acordo com as restrições da tarefa em questão.

A geração de idéias iniciais inclui a busca por estruturas existentes na memória, a formação de associações ou combinações entre estas estruturas, a síntese ou transformação de estruturas em novas formas ou a transferência de conhecimentos de um domínio para outro. Já os processos exploratórios incluem a busca por novos atributos nestas estruturas de memória, a busca por implicações ou funcionalidades em potencial das estruturas, a avaliação destas a partir de diferentes pontos de vista ou em diferentes contextos, a avaliação de possíveis soluções e a busca por limitações sugeridas pelas estruturas. O modelo assume que podem ser introduzidas restrições ao produto final em qualquer das duas etapas, de modo a limitar os espaços de busca e solução. Esta descrição é inteiramente compatível com o terceiro nível da arquitetura cognitiva proposta por Rasmussen (1983) e apropriada no modelo GEMS.

Em outra descrição da dinâmica do processo criativo, o indivíduo trabalhando dentro de um domínio, apresenta seu trabalho para os “guardiões” desse domínio, que julgarão se seu trabalho deve ser aceito no domínio como uma contribuição criativa ou não (Csikszentmihalyi, 1996). Segundo ele, a criatividade não ocorre nas cabeças das pessoas, mas na interação entre os pensamentos de uma pessoa e o contexto sociocultural, e na sua visão sistêmica de criatividade, existem três componentes: domínio (de aplicação), campo (os indivíduos que atuam como guardiões do domínio) e o indivíduo que manifesta sua criatividade:

• Domínio (domain): é a área de conhecimento na qual o indivíduo trabalha.

Compreende o conhecimento, regras, código e símbolos compartilhados por todos os que trabalham nesse domínio. Estabelece o que se sabe e o que é geralmente aceito por pessoas envolvidas com o domínio, trabalhos anteriores, etc;

• Campo (field): é um conjunto de participantes do domínio que tem condições para avaliar o produto gerado para determinar se pode ou não ser considerada uma contribuição criativa. Este pode ser um grupo grande ou pequeno de indivíduos que, dado seu conhecimento do domínio, tem a capacidade de avaliar as contribuições ao mesmo;

• Indivíduo (individual): é o indivíduo que criará algo. O que quer que seja criado estará relacionado a um ou mais domínios e, muito provavelmente, se baseará nos símbolos, códigos, regras e história do domínio. Esses elementos interagem entre si para viabilizar a produção criativa e esta definição

de “sistema criativo” enfatiza o aspecto social da criatividade (na medida em que o indivíduo deve interagir com os especialistas de domínio para validar e conduzir seu trabalho).

Deste modo, o indivíduo constrói e modifica o domínio em que atua e um grupo de “juízes de domínio” decide o que é ou não uma contribuição aceitável. Ele salienta a importância de consultar especialistas de domínio durante o processo de trabalho e a necessidade de disseminação do trabalho dentro do domínio, de modo que o trabalho se torne parte deste. Este modelo recebeu ampla aceitação, provavelmente devido ao fato de que os pesquisadores reconhecem o funcionamento de seus próprios campos de atuação e métodos de pesquisa refletidos nele. No entanto, este modelo não leva em consideração a criação coletiva

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ou como a interação dentro de um grupo de trabalho, leva à geração e exploração de idéias. É possível adotar seu modelo como base, e pensar em um grupo de indivíduos (ao invés de um indivíduo sozinho) e explorar as interações dentro do grupo e entre o grupo, o domínio e o campo ao tentar gerar soluções criativas para problemas.

Na visão de Alencar e Fleith (2003), o modelo de sistemas de Csikszentmihalyi (1996), ao propor que, criatividade seja vista como um processo que resulta da intersecção de três fatores: indivíduo (bagagem genética e experiências pessoais), domínio (cultura) e campo (sistema social), permite que esse modelo sistêmico defina a criatividade como um ato, idéia ou produto que modifica um domínio existente ou transforma esse em um novo. Para que isso ocorra, é necessário que o indivíduo tenha acesso a vários sistemas simbólicos e que o ambiente social esteja receptivo a novas idéias, ou seja, que o paradigma instituído seja propício à inovação.

A função do especialista de domínio é atuar como juiz, que utiliza paradigmas e que os confrontam com os fatos, atos ou situações de controle do sistema em estudo. Nesta ocasião, pode haver um erro. Por exemplo, o produto final não satisfaz (não chegou a atender o projeto ou objetivos da organização). Ou ao contrário, atendeu, foi bem sucedido, atingiu o esperado. Mas também pode atender em parte a expectativa, apresentando erros parciais que não prejudicam substancialmente o projeto como um todo, mas lhe confere um determinado grau de insatisfação, o que é suficiente para o estabelecimento de um novo paradigma para um novo projeto que desencadeia uma ação. Basicamente esses acontecimentos compõem a dinâmica que leva o comportamento cognitivo baseado em regras (operado por signos) para o nível do comportamento baseado em conhecimento (operado por símbolos) no modelo proposto por Rasmussen (1983).

O assunto, todavia, não se esgota de forma tão simples. As realidades diferentes que compõe o habitat das situações em que operam os julgamentos e os paradigmas não possibilitam um trato absolutamente linear em todas as ocasiões. Os elementos de reflexão sobre os erros humanos devem ir além dos limites de domínio das ciências, passando pela multi, inter e transdisciplinaridade. Porém, isso demanda um modelo de referência que contemple todos esses elementos, modelo esse que não está disponível à ciência. Mas esse fato não invalida a necessária reflexão sobre todas essas implicações, principalmente quando a visão de Jupiassu (2006) parece estar tão alinhada à dimensão da pesquisa transdisciplinar e da realidade em que o tema Criatividade se insere.

“Creio que esse novo paradigma a ser criado, tendo por objetivo utópico a compreensão do mundo presente - embora reconhecendo a independência das disciplinas -, promove sua comunicação sem ter que recorrer a nenhuma forma de redução. Por exemplo, do biológico ao físico-químico ou do antropológico ao biológico; donde seu caráter enciclopédico, no sentido grego de Enkyclios Paidéia, pondo em ciclo (círculo) pedagógico todas as esferas do saber (disciplinas) até então incomunicáveis, mediante uma articulação teórica das atividades dos especialistas em torno da tentativa de resolução de um problema comum. Trata-se de um paradigma mais atento à legitimação epistemológica dos conhecimentos, permitindo produzir, ensinar e praticar. Define-se pela concepção de representações ricas dos contextos considerados, sobre os quais podemos raciocinar de modo ao mesmo tempo engenhoso e comunicável, com o objetivo de elaborar propostas para a ação, procurando lançar mão do principal instrumento de que dispõe o espírito para representar e raciocinar: a conjunção, a capacidade de religar, contextualizar e globalizar.” (Jupiassu, 2006: 6)

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E criatividade é o principal ingrediente dos processos criativos de negócios que permitirão às corporações a prática da inovação, palavra de ordem no momento atual. 4. Conclusões

No mundo infantil, a relação entre o erro humano e o julgamento é tratada com naturalidade, pois que, quando a criança erra, vai aprendendo a operar com as diversas realidades que encontrará no mundo adulto. Já no ambiente de negócios erros não são tolerados e, no ato de julgamento, normalmente, são punidos. Pequenos lapsos e deslizes tradicionalmente são desconsiderados enquanto que os erros de regras, dependendo da gravidade, demandam atitudes com conseqüências mais sérias. A questão crucial é que existem processos de negócios em que as regras estão claramente estabelecidas e muitas vezes descritas em manuais. Já outros processos, por não possuírem regras claras em manuais formais, são impulsionados por políticas de gestão. A diferença entre regras e políticas é que as políticas dão certa margem de flexibilidade, enquanto as regras não. Essas diferentes características deixam clara a facilidade ou dificuldade de atuação bem sucedida, porque a atuação criativa pressupõe menos rigidez e maior grau de liberdade. No entanto, nenhum colaborador cometerá um erro por vontade própria, a não ser em casos explícitos de violação. Na maioria das vezes, estes são cometidos pela inadequada aplicação das regras ou percepção do fato, causados ou pela obscuridade do paradigma ou pela não clareza das próprias regras ou políticas. As causas dos erros, portanto, contém elementos sistêmicos atuando.

Os “processos criativos de negócios” possuem necessidades diferenciadas, pois operam no nível da incubação de idéias, como no exemplo do desenvolvimento do conceito de um novo produto, onde há uma relativa liberdade de ação e menor número de regras rígidas a serem seguidas. Nessa fase, regras e clareza do paradigma são entraves à criatividade. No entanto, ao se passar para a fabricação do produto, o julgamento passa a ser fator relevante, onde regras e paradigmas são elementos essenciais a um modelo de referência que permita levar ao acerto (sucesso) ou ao erro (fracasso). Por isso ganha importância o “conceito cognitivo de erro humano”, que dá um sentido relativo ao julgamento do erro em ambiente empresarial. Tem origem, aqui, uma sutil variação conceitual em relação ao “erro de conhecimento” proposto pelo modelo GEMS. Neste caso, a relativização do conceito de erro, admitindo-o como parte do aprendizado e como integrante do processo de proposição de novas soluções ou formas de negócio mais eficientes, perde o caráter taxativo de “falha” ou “erro de conhecimento” tal como concebido por Reason (2002). Como parte do processo de concepção de novas e melhores soluções o “procedimento” resultante da proposição pode ser considerado como a “experimentação” de um plano ainda em construção e que só é dado por concluído quando todas as variáveis envolvidas na situação complexa forem satisfeitas. Isto implica em admitir que o experimento possa demandar diferentes estágios. Assim, o conceito de “erro de conhecimento” do modelo GEMS, para este caso, fica abrandado enquanto o erro de regras permanece íntegro. De outra forma pode-se propor a afirmação de que, para o caso de “negócios que requeiram criatividade” somente ocorre erro quando regras e paradigmas estão perfeitamente claros, ou seja, convencionados pelo grupo e aceito pelo indivíduo.

Muito embora o modelo GEMS, por sua simplicidade e operacionalidade, seja uma ferramenta eficaz no trato da classificação dos erros humanos sob a ótica cognitiva, não constitui uma solução tão geral que esteja imune a ajustes em situações específicas como a que aqui é apresentada. Outras situações semelhantes podem aparecer e propor questionamentos nessa linha sem invalidar esse modelo, principalmente em ocasiões onde o julgamento (avaliação pelo paradigma consensualmente aceito) se baseia em uma seqüência de parâmetros de fraca rigidez, característica da convergência de diferentes realidades. Nesse caso a apreciação da situação requer uma visão transdisciplinar, para a qual se desconhece um

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modelo que a atenda em sua plenitude. Fica, portanto, identificada aqui uma “inconclusão” que se soma a esta conclusão.

Concluir é encontrar uma forma de finalizar algum assunto e (in) concluir sugere que o assunto não está esgotado por inteiro. Assim, espera-se que este estudo tenha contribuído para evidenciar a aplicabilidade do modelo GEMS com sua conveniente re-interpretação. Espera-se, também, que as (in) conclusões finais proporcionadas pela necessidade da visão transdisciplinar, possam ter contribuído para apresentar reflexões sobre a relação existente entre os conceitos de erros humanos como elementos de referência aplicáveis (ou não) a processos de negócios que exigem criatividade. O framework conceitual de referência para o conceito cognitivo de erros humanos (figura 1) é a proposta dos autores deste ensaio. A transdisciplinaridade é a inspiração. Referências Bibliográficas Alencar, E.M. (1996). A gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books. Alencar, E. M. e Fleith, D. de S. (2003). Contribuições recentes ao estudo da criatividade. Psicologia: teoria e pesquisa. Brasília. 19 (1), 1-8. Jan./Abr. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ptp/v19n1/a02v19n1.pdf. Acesso em 18 dez.2007. Ambros, P.C. (2005). Avaliação da metodologia Atheana para sua utilização na análise da confiabilidade humana em usinas nucleares. Tese (Mestrado em Engenharia Nuclear) COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Chakur, C.R. (2002). O social e o lógico-matemático na mente infantil: cognição, valores e representações ideológicas. São Paulo: Arte e Ciência. Chauí, M. (2000). Convite à Filosofia. São Paulo: Ática. Costa, C.F. (2005). Teorias da verdade. Crítica: Revista de Filosofia e Ensino, Portugal, 1, 1-9. Publicado em http://criticanarede.com. Disponível em http://www.filosofia.cchla.urfn.br/ claudio/filosofia_linguagem/teorias_da_verdade.pdf. Acesso em 18 dez. 2007. Csikszentmihalyi, M. (1996). Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention. New York: Harper Collins Publishers. Davenport, T. (1994). Reengenharia de processos. Rio de Janeiro: Campus. Elster, J. (1994). Peças e engrenagens das ciências sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Ford, D.Y e Harris, J.J. (1992). The elusive definition of creativity. J. Creative Behav., 26 (3), 186-198. Gabora, L. (2002). Cognitive mechanisms underlying the creative process. Em: Hewett, T. e Kavanagh, T. (Eds). Proceeding of the Fourth International Conference on Creativity and Cognition, October 13-16, Loughborough University, UK, p. 126-133. Harrington, H.J. (1994). Aperfeiçoando processos empresariais. São Paulo: Makron Books. Johansson, H.J. (1995). Processos de negócios. São Paulo: Pioneira. Jupiassu, H. (2006). O espírito interdisciplinar. Cadernos EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Rio de Janeiro, 4 (3) out./dez. Disponível em http://www.ebape.fgv.br/cadernosebape. Acesso em: 18 dez. 2007. Kuhn, T. (1998). A estrutura das revoluções científicas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva. Marconi, M.A. e Lakatos, E.M. (2007). Fundamentos de metodologia Científica. (pp. 75-81 cap. 3). São Paulo: Atlas. Meneghetti, F.K. (2007) Pragmatismo e os pragmáticos nos estudos organizacionais. Cadernos EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Rio de Janeiro, 5 (1), mar./maio. Disponível em http://www.ebape.fgv.br/cadernosebape. Acesso em: 18 dez. 2007.

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Notas (1) Ver Ramsey, P. (1927). “Facts and Propositions”.. Ver também Strawson, P.F. (2001).

“Truth”. Em: Linch, M.P. (Ed.). The Nature of Truth. Cambridge: Bradford. (2) Ver James,W. (2001). Pragmatism’s Conception of Truth. Em: Linch, M. P. (Ed.) The

Nature of Truth. Cambridge: Bradford. (3) Ver Pierce, C.S. (1877). The fixation of belief. Popular Science Monthly, 12, 1-15.

Illustrations of the logic of science. Disponível em: http://www.peirce.org/writings.html. (4) Não apresenta afirmação categórica, por isso a afirmação fica como uma possibilidade

provável, ver Sully, J.A. (1881). Psychological Study. London: C. Kegan Paul & Co. (5) Melhores detalhes, ver Wallas, G. (1926). The art of Thought. New york: Harcourt, Brace

& World.

- A. C. Gomes Filho é Mestre em Biblioteconomia e Ciência da Informação (PUC/Campinas) e Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC/UFSC). Atua como Professor (Departamento de Administração, UNICENTRO). Endereço para correspondência: Rua Europa, 390, apto. 1244, Bairro Trindade, Florianópolis, SC 88036-135, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected]. T. Vanzin é Professor (UFSC) e ministra a disciplina Erros Humanos, área de Concentração – Mídias do Conhecimento (EGC/UFSC). Endereço para correspondência: Campus Trindade, Cx. Postal 476, Centro Tecnológico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC 88036-135, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected]. F.A. Forcellini é Professor (UFSC), participa do Programa de Pós Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC/UFSC) e é Diretor de Inovação da Agência de Inovação Instituto Fábrica do Milênio. Endereço para correspondência: Campus Trindade, Cx. Postal 476, Centro Tecnológico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC 88036-135, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected].

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A necessidade de contribuições da ciência cognitiva para o aumento da produtividade do trabalho humano nas organizações

The need for contributions of cognitive science for increase the productivity of human

work in organizations

Thaís Spiegel e Vinícius Carvalho Cardoso

Grupo de Produção Integrada (GPI), Escola politécnica/Universidade Federal do Rio de Janeiro (Poli/UFRJ), Rio de janeiro, Rio de Janeiro Brasil; Instituto Alberto Luiz Coimbra de

Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE), UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo Este ensaio foi motivado pela percepção de uma tendência de aumento da importância do trabalho cognitivo nas organizações. Assim, a partir da perspectiva de se buscar o aumento de produtividade do trabalho amplamente debatida nas áreas de conhecimento da Engenharia de Produção, Administração de Empresas e correlatas; este texto sugere que há limitações teóricas e práticas nessas áreas para lidar corretamente com o trabalho cognitivo. Estas limitações, possíveis indícios da necessidade de revoluções científicas sugeridas por Kuhn, clamam por novos métodos para analisar, projetar e avaliar essa natureza de trabalho. Argumenta-se que resultados comprovadamente melhores de aumento de produtividade passariam pelo desenvolvimento de novos métodos e ferramentas adequadas ao trabalho cognitivo, e não da adaptação dos métodos tradicionais. Por fim, indica-se a importância de contribuições dos corpos teóricos da Ciência Cognitiva na lacuna identificada em projetos de pesquisa multidisciplinares. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 233-245. Palavras-chave: trabalho cognitivo; produtividade; teoria organizacional.

Abstract This essay was motivated by a perceived trend of the rising relevance of cognitive work in organizations. Adopting the perspective of increasing productivity in organizations, widely discussed in Production Engineering, Management and related areas, this text argues that there areas have several theoretical and practical limitations to deal properly with cognitive work as a research object. These limits, what Khun could consider clues for the need of scientific revolutions, seem to claim for new methods to analyze, design and evaluate this kind of work. We suggest that to achieve raisings of productivity should deal with developing new techniques and methods to consider cognitive work, instead of adapting traditional methods. Finally, it’s pointed out that Cognitive Science theoretical framework is fundamental to this issue. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 233-245. Keywords: cognitive work; productivity; organizational theory.

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Ensaio

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1. Introdução: a mudança na natureza do trabalho

Seja sob o título de a “Terceira Revolução Industrial”, a “Nova Economia”, “Era da Informação” ou “Sociedade do Conhecimento”, há consenso que a velocidade dos avanços tecnológicos tem proporcionado impactos significativos no funcionamento das organizações1.

Como resultado destes avanços, diversos autores vêm afirmando que o trabalho está cada vez mais baseado em conhecimento e, neste sentido, seus resultados são cada vez mais dependentes da “força mental” em comparação à força estritamente física. De Masi (2005a: 407; 2005b: 186, 239) ressalta que a crescente automação provocada pela tecnologia da informação2 elimina a necessidade de trabalho repetitivo e burocrático (executivo), liberando o potencial humano para executar as atividades de maior valor agregado, notadamente a criação.

Drucker (2002: 134) acrescenta a essa visão que o principal desafio das organizações no século XXI é a gestão. Neste paradigma, estariam dentro do escopo da gestão das organizações principalmente, as atividades de tomada de decisão e inovação, já que as demais atividades transacionais encontrar-se-ão cada vez mais automatizadas.

Alinhado com estas visões, Cardoso (2004: 1) expõe que conforme evoluem as tecnologias de gestão e produção, bem como as práticas profissionais e sociais, o papel do homem nas organizações se modifica, e, conseqüentemente, sua importância acompanha estas modificações. Nos dias de hoje, cada vez mais o papel dos seres humanos nas organizações vem se restringindo às atividades de natureza mais complexa que ainda não são passíveis de delegação a sistemas automatizados. Neste sentido, cada vez mais, espera-se do homem justamente aquilo que lhe diferencia de todos os demais recursos da organização, a inteligência.

De Masi (2005a: 407; 2005b: 186, 239) mostra ainda que esse tipo de trabalho baseado no conhecimento sempre existiu, de modo que a principal diferença é a preponderância do trabalho mais cognitivo sobre o trabalho predominantemente braçal. Isso se manifesta em diferentes tipos de organizações:

• Nas organizações que realizam processos produtivos repetitivos, geralmente produtores de

bens, ou seja, as manufaturas clássicas. A partir de tecnologias como a automação, o papel principal do homem no processo de trabalho muda, saindo de realizar tarefas repetitivas para decidir sobre as exceções que fogem do controle do sistema técnico. Nesses casos, obviamente, grande quantidade de conhecimento por parte dos trabalhadores é requerida. (Castells, 1999).

• Nas organizações que empregam a criatividade e o conhecimento como “insumo” ou como “produto”, tais como instituições de ensino, laboratórios de pesquisa, agências de publicidade e centros cirúrgicos (De Masi, 2005a, 2005b).

• Nas organizações que produzem serviços, cada vez mais importantes na economia, constituindo o centro da atividade econômica da maioria dos países e já respondendo pela maior parte do crescimento dos novos empregos (Lovelock e Wright, 2005).

• Nas organizações onde o trabalho requer a tomada de decisões difíceis, seja por tempo e/ou por responsabilidade, tais como a polícia, bombeiros, equipes de atendimento médico de emergência, organizações militares, governos e altos gestores (Beach, 1997; Klein, 1999).

Associa-se a essa modificação a iminência do estabelecimento amplo de uma

sociedade (e de organizações) em rede, como ressaltam Castells (1999) e Hayes e colaboradores (2008), a partir do fenômeno da Globalização, onde inclusive se questiona o

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centralismo da organização como objeto de análise das teorias da administração, em detrimento da rede. Num contexto mais amplo, somam-se também questões de ordem ambientais e éticas na conformação desta nova configuração do trabalho humano.

2. Delimitando o objeto: trabalho cognitivo

Nonaka e Takeuchi (1995) argumentam que, conforme apregoa a filosofia oriental,

corpo e mente são indissociáveis e funcionam como um todo, único. Ou seja, trata-se de (re)afirmar que todo trabalho dito braçal também possui uma componente mental e que, vice versa, o trabalho dito mental também precisa do corpo. Na literatura de Administração de Empresas e afins, os termos “trabalho braçal” ou “trabalho manual” normalmente são utilizados para se referir às atividades que dependem pouco dos conhecimentos e expertises3 humanas para sua execução, ou seja, pouco intensivas em conhecimento. De forma análoga, os termos “trabalho mental” e “trabalho cognitivo” normalmente designam as atividades que demandam predominantemente o uso de conhecimentos e expertises humanas, tipicamente executadas por especialistas. Entretanto, como se pode verificar a seguir, o critério de diferenciação adotado neste artigo não será apenas o grau de utilização do conhecimento na atividade.

Vimos que ao passo que a tecnologia avança, a complexidade do trabalho humano nas organizações aumenta. Isto ocorre tanto porque os novos dispositivos tecnológicos automatizam as atividades puramente mecânicas e/ou lógicas, restringindo a atuação das pessoas às atividades que exigem características específicas da inteligência humana, quanto porque estas atividades são acrescidas de inovações mais freqüentemente, ampliando a sofisticação do conhecimento necessário para executá-las4. Assim, pode-se dizer que há um processo acelerado de intelectualização da mão-de-obra em curso e que, no futuro, o papel das pessoas na organização será cada vez mais distinto dos demais recursos.

É possível esperar que, expandidas as possibilidades de automação, em algum momento reste aos seres humanos apenas às funções produtivas de analisar evidências e cenários, criar soluções, decidir cursos de ação e orientar o desenvolvimento das pessoas e dos processos organizacionais, entre outras da mesma natureza. Acompanhando esta percepção de que o grau de automação é decisivo na distinção entre os tipos de trabalho, para simplificar a linguagem do trabalho e delimitar o escopo no que diz respeito ao tipo de atividade humana a ser estudado, referir-se-á a “trabalho mental” ou a “trabalho cognitivo” para denotar o tipo de atividade que não está automatizada.

A partir desta definição, formula-se um objeto de pesquisa que seria necessariamente dinâmico e com, pelo menos, dois vieses de análise. No primeiro viés, considerar-se-ia aquele trabalho que não pode ser automatizado por limitações tecnológicas. Como exemplo de atividades que se enquadram no objeto de pesquisa delimitado, temos aquelas que dependam de criatividade, sensibilidade, interpretação e contextualização, tais como a decisão, negociação, ensino, aprendizado e inovação. Contudo, ressalta-se que este tipo de trabalho não é restrito a alta gerência das organizações. As tarefas desempenhadas por enfermeiras e pelo corpo de bombeiro são exemplos que ilustram bem a relevância destas características, como a sensibilidade e a contextualização são críticas para a interpretação dos resultados e como a ausência destas pode ter consequências danosas.

No segundo, encontra-se o trabalho que, no estágio atual da tecnologia, é passível de automação, mas que por questões de viabilidade econômica não está automatizado. No caso do processo de tomada de decisão, por exemplo, toda vez que o problema a ser resolvido for “lógico”, passível de modelagem e programação, não se estaria referindo a um trabalho cognitivo. Uma vez que apesar da base de conhecimento necessária a sua realização, há

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condição de modelar o problema e “empurrar” sua solução para um agente não humano. Entretanto, a não automatização das decisões, isto é, a manutenção destas como atribuição dos indivíduos devido fundamentalmente ao custo atualmente associado a essas tecnologias, configura-as como cognitivas de acordo com o segundo viés.

A evolução dessas duas perspectivas expostas acima tem, respectivamente, um foco mais de ciência e tecnologia, e outro mais de inovação e aplicação tecnológica. É interessante notar que pesquisar o objeto em ambas as frentes implica em, de certa forma, dedicar-se a finalidade de restringir cada vez mais o trabalho humano à natureza cognitiva, mas, também, tornar este trabalho cognitivo mais “humano”, ou saudável.

Os aplicativos de Inteligência Artificial ilustram esta questão para o primeiro viés. À medida que novas tecnologias são desenvolvidas, como o desenvolvimento de agentes racionais, por exemplo, que combinam informações e tomam ações para atingir objetivos. Tarefas, que antes eram atribuídas aos indivíduos, passam a serem desempenhadas por computadores.

3. A busca pela maior produtividade

O comportamento da eficiência produtiva ao longo do tempo, particularmente a

produtividade do trabalho, “é um dos fenômenos mais estudados nos negócios, na economia e no comportamento organizacional” (Hayes et al., 2008: 301). Segundo os mesmos autores, as tentativas de explicar os índices e as causas de melhorias observadas e prever níveis futuros têm alimentado múltiplas teorias de crescimento econômico, estrutura industrial e vantagem competitiva.

Do ponto de vista histórico, observamos que o interesse por este fenômeno não é recente. Esta percepção é corroborada pelo relato de Antunes Jr. (1998) sob o ponto de vista histórico da evolução dos sistemas produtivos ao longo dos períodos: Pré-Paradigmático, Paradigma da Melhoria das Operações e Paradigma da Melhoria nos Processos.

O primeiro período, o Pré-Paradigmático, se dá após a primeira Revolução Industrial com um marco importante no aumento da produtividade industrial que foi a divisão do trabalho. Esta percepção é amplamente difundida por Adam Smith em 1776 (Smith, 1996) em a “A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas”. Ao atribuir a criação da riqueza das nações também ao aumento de produtividade do trabalho, o autor se justifica da seguinte forma:

“Esse grande aumento da quantidade de trabalho que, em conseqüência da divisão do trabalho, o mesmo número de pessoas é capaz de realizar, é devido a três circunstâncias distintas: em primeiro lugar, devido à maior destreza existente em cada trabalhador; em segundo, à poupança daquele tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de trabalho para outro; finalmente, à invenção de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, possibilitando a uma única pessoa fazer o trabalho que, de outra forma, teria que ser feito por muitas.” (Smith, 1996: 68)

Em seguida, no âmbito do Paradigma da Melhoria das Operações, destacam-se duas

vertentes importantes de avanços, a primeira relacionada à padronização de ferramentas e medidas e ao aperfeiçoamento das técnicas de produção. A segunda foi o desenvolvimento da Administração Científica, com a separação entre os gestores e os operários. Esta segmentação contribuía ainda mais para desapropriar o conhecimento acerca do processo produtivo dos trabalhadores, recorrendo à especialização de homens a operações específicas como vetor para o ganho de eficiência. Drucker (1999: 111) defende que a contribuição mais importante

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da Administração no século XX foi o aumento, em 50 vezes, da produtividade do trabalhador manual em fabricação.

Por fim, no paradigma da melhoria nos processos, constata-se que a lógica do anterior, que encara o processo como um conjunto de operações, levava “à falsa suposição de que, melhorar as operações automaticamente conduziria à melhoria nos processos e, em consequência, nos Sistemas Produtivos” (Shingo, 1996: 221 apud Antunes Jr., 1998: 87). Neste novo Paradigma, estabelece-se uma clara diferença entre os fins que estão diretamente relacionados com as melhorias nos processos, e as consequências econômicas daí advindas e os meios que muitas vezes estão relacionados com a melhoria das operações, porém, sempre tendo em vista o aumento do desempenho do processo como um todo.

Observa-se que em todos estes paradigmas as teorias estão fortemente orientadas para a melhoria do desempenho da manufatura, onde o trabalho é predominantemente braçal. No entanto, retomando a expectativa de um cenário onde há preponderância do trabalho cognitivo, a replicação dos métodos forjados na tradição manufatureira para lidar com esta natureza de trabalho traria, certamente, restrições à capacidade de se criar eficiência e eficácia nos sistemas produtivos contemporâneos.

Abaixo são expostas algumas percepções sobre as teorias existentes, descrevendo-as a partir de duas vertentes, as teorias nas quais não são contempladas as particularidades afetas a natureza do trabalho e as que diferenciam. Em relação às teorias da primeira vertente pode-se questionar a aplicabilidade da divisão do trabalho como estratégia para melhoria do desempenho. Tal como apresentada por Adam Smith, a divisão do trabalho proporcionaria ganhos na medida em que o trabalhador adquiriria maior destreza nas atividades que desempenhava. Entretanto, esta premissa pode não se mostrar verdadeira quando o objeto deixa de ser um operário produzindo o corpo ou a cabeça do alfinete e passa a ser o de um operador de mesa na bolsa de valores. Neste último exemplo, as múltiplas habilidades desenvolvidas, através das experiências as quais o indivíduo foi submetido no desempenhar de diversas atividades, podem conformar ações melhores no futuro.

A segunda indicação de Adam Smith referia-se a eliminação do tempo entre o término de uma atividade e o início da seguinte. Sobre esta, uma primeira questão que se coloca é o desconhecimento e a imprevisibilidade associada às atividades de natureza mais complexa e criativa. Enquanto antes, na lógica da Administração Científica e da atividade manufatureira, a preocupação centrava-se na melhor forma de executar a tarefa, no contexto atual o foco muda para a identificação de qual é a tarefa a ser desempenhada (Drucker, 1999). Assim, quando esta questão coloca-se, a orientação de evitar a passagem de uma atividade para outra se torna secundária e possivelmente não aplicável. Há ainda questões associadas à previsão da ocorrência das atividades (Klein, 1999). Em uma fabrica escura5, por exemplo, faria sentido colocar um trabalhador disponível para cada tipo de incidente possível? Como o “problema” pode nunca ocorrer, ao colocar pessoas de prontidão, pode-se estar desperdiçando recurso.

A noção da curva de aprendizado também pode ter resultados contrários aos esperados se aplicada irrestritamente. Quando assumimos que as pessoas passam a fazer melhor e com mais produtividade ao longo do tempo, a tendência é submeter os trabalhadores a uma série de experiências (Endsley et al., 2003), treinamentos e avaliações especializados. Porém, ao submeter um profissional a uma situação repetida vezes, há também o desenvolvimento de um sentimento de autoconfiança. Esta tendência, se tornada excessiva, pode levar a um comportamento descompromissado, descuidado e/ ou desatento que ocasiona o erro, apesar dos êxitos nas diversas situações anteriores (Thagard, 2000).

A orientação inicial que contempla uma distinção entre os tipos de trabalho encontra-se no paradigma da melhoria das operações, com a indicação de que sejam separadas as atividades do gerente e do operário (Taylor, 1990). Esta separação, apesar de diferenciar as

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atividades, possui como pano de fundo uma visão de que “o operário não pensa”. Entretanto, esta não é uma distinção razoável em algumas organizações, como as profissionais6, por exemplo. Nestas os trabalhadores que estão na “ponta” possuem uma autonomia grande para decidir e recorrem o tempo todo a uma grande base de conhecimento e, principalmente, expertise.

4. Problematização: a necessidade de uma nova abordagem para teoria das organizações

Conforme visto anteriormente, a Teoria Organizacional desenvolveu ao longo do

tempo um conjunto de conceitos, métodos e abordagens visando o aumento da produtividade do trabalho. Entretanto, tal corpo teórico apresenta limitações quando o objeto de estudo trata-se do trabalho cognitivo.

Boff (2000: 12) corrobora desta percepção ao ressaltar que, apesar dos inúmeros apontamentos para a discussão, são apresentados poucos modelos que identificam a maneira como as atividades são realmente realizadas. As iniciativas de pesquisa que se aproximam do objeto surgiram nos anos 90 e dão ênfase à produtividade dos trabalhadores de conhecimento7, empenhadas em estabelecer claras diferenças entre os setores de serviços e produção e separar tarefas estruturadas e procedimentos de rotina das atividades ligadas ao trabalho de conhecimento. Davis e colaboradores (1991) estabeleceram uma base teórica para entender a natureza do trabalho de conhecimento e como as atividades desse segmento podem produzir melhores resultados. Thomas e Schmidt (1992) desenvolveram a base de um sistema para apoiar atividades de trabalho de conhecimento com o objetivo de reduzir os problemas e aumentar o desempenho dessas atividades.

Outras tentativas de tratamento do objeto provêm do campo da Ergonomia (Guérin et al., 2001; Vidal e Petzhold, 2003; Iida, 2005), seja na vertente francesa, com abordagem física, prescrevendo a cadeira ideal, a distância da tela do computador, a temperatura adequada, entre outros; seja no viés anglo-saxão, denominado atualmente de Engenharia de Sistemas Cognitivos (Vicente, 1999; Hollnagel e Woods, 2005; Crandall, el al., 2006; Woods e Hollnagel, 2006), preocupado com a usabilidade dos sistemas, a forma pela qual o homem lida com a complexidade, como os artefatos são utilizados, entre outros.

No âmbito da Administração de Recursos Humanos (Walker, 1980; Serson, 1985; Becker et al., 2001; Gramigna, 2002; Chiavenato, 2005) há orientações em relação às boas práticas da “gestão de pessoas”, por exemplo, quanto a melhoria dos métodos para determinação do tipo de capacitação que os trabalhadores devem ser submetidos. Contudo, estas teorias buscam o estabelecimento de padrões comprovados empiricamente pelo comportamento diretamente observável. Assim, as discussões giram normalmente em torno de curvas de aprendizagem e experiência, a partir das quais se infere que com o tempo e a escala, a atividade é desempenhada de forma mais produtiva. Um exemplo adicional pode ser visto nas estratégias motivacionais, nas quais se orienta que as pessoas sejam motivadas, pois apesar de não se saber ao certo a explicação acredita-se que um indivíduo bem motivado produza mais.

Ainda na literatura de “gestão”, em particular a que trata de Cultura Organizacional, Gestão de Conhecimento, Learning Organizations (Organizações que Aprendem), Capital Intelectual, dentre outros temas correlatos, na maioria dos casos, volta-se a prescrever a criação de condições ambientais que tornem os locais de trabalho melhores no sentido de induzir o trabalhador a ter “boa vontade” e recursos suficientes para criar conhecimento e produzir intelectualmente (Senge, 1990; Schein, 1992; Nonaka e Takeuchi, 1995; Gratton, 2004).

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Estes trabalhos apresentam contribuições importantes, mas reforçam a limitação do conjunto de métodos disponíveis para aumentar a produtividade do trabalho em si, quando o objeto migra para uma configuração preponderantemente cognitiva. Neles, os processos cognitivos do trabalhador não são evidenciados, seguem sendo tratados como uma “caixa-preta”. Esta abordagem simplificada do objeto induz os pesquisadores a trabalharem de modo mais especulativo e, consequentemente, com margens de erro maiores.

Ao investigar o problema, no processo de “abrir a caixa”, depara-se com o que diferencia este tipo de trabalho dos demais, o aparato cognitivo dos trabalhadores. Segundo Boff (2000: 39), “processos cognitivos são considerados mediadores entre os estímulos recebidos do ambiente e as respostas geradas”. Em outras palavras, um indivíduo recebe informações e incorpora essas informações aos seus modelos mentais (confirmando-os ou modificando-os), permitindo que a situação captada seja representada e, conseqüentemente, sejam produzidos resultados (solução de problemas, tomada de decisões e geração de idéias, por exemplo.).

Best (1992) propõe que os processos cognitivos são eventos mentais que transformam continuamente os estímulos externos em códigos abstratos. Uma vez criados (transformados), os códigos podem ser reduzidos ou elaborados. A redução é um processo importante que permite ao indivíduo armazenar o significado da informação e não todos os seus detalhes. A elaboração de um código é a capacidade cognitiva de fazer ligações com outros códigos que tenham atributos em comum. O armazenamento e a recuperação de códigos são processos cognitivos relativos à memória. Através da redução, esses processos são capazes de proporcionar a reconstrução de códigos que fazem parte do conhecimento do indivíduo. Finalmente, os processos cognitivos criam códigos que são utilizados pelas pessoas para o trabalho, para tomar decisões, estudar, dirigir etc. Esse processo é a peça mais importante para ser tratada no contexto do trabalho cognitivo.

5. Conclusão: encaminhamentos a partir da identificação do problema de pesquisa

A importância do processo cognitivo está baseada em duas premissas: (1) o

trabalhador precisa gerenciar a informação (buscar, selecionar, processar, compreender) para desenvolver suas atividades; e (2) o resultado das suas atividades não é apenas um produto, mas também conhecimento, que pode ser armazenado como novo conhecimento ou nova informação.

Quando definimos o trabalho cognitivo como aquele conjunto de atividades não automatizadas, assumimos implicitamente a hipótese de que é tudo aquilo que não conhecemos, não entendemos ao certo como funciona, e por isso, não somos capazes de automatizar. Afinal, para automatizar seria necessário, por exemplo, um projeto de engenharia reversa; ou seja, desmontar para entender o mecanismo de funcionamento. Entretanto, como estamos lidando com o cérebro humano, o caminho que se coloca para desmembrar as partes é o estudo do que já foi e está sendo desenvolvido na Ciência Cognitiva8.

A Ciência Cognitiva tem abordado a investigação de conhecimentos a partir de uma perspectiva de investigação fundamental. A meta primária de cientistas cognitivos é compreender a natureza da inteligência humana e como ela funciona (Farrington-Darby e Wilson, 2006: 23). Nas palavras de Howard Gardner:

“Os cientistas cognitivos procuram entender o que é conhecido - os objetos e sujeitos do mundo externo - e a pessoa que conhece - seu aparelho perceptivo, mecanismos de aprendizagem, memória e racionalidade. Eles investigam as fontes do conhecimento: de onde vem, como é armazenado e recuperado, como ele pode ser perdido? Eles estão

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curiosos com as diferenças entre os indivíduos: quem aprende cedo ou com dificuldade.” (Gardner, 2003:18)

Anderson (2000: 4) indica que esse objetivo “tem valor para proporcionar uma base de

entendimento para outras ciências (psicologia clínica, economia e ciência política, por exemplo)”. Além disso, a ciência cognitiva fornece conhecimentos para permitir o desenvolvimento de aplicativos específicos, desenvolvidos com a premissa de que “se nós realmente entendermos como as pessoas adquirem conhecimentos, então seremos capazes de melhorar a sua formação intelectual e consequentemente o seu desempenho”. (Anderson, 2000: 4).

Apesar de a cognição figurar entre os focos de pesquisa mais antigos da humanidade (Keil e Wilson, 1999; Gardner, 2003; Thagard, 2007), é ainda um assunto com muitos pontos em aberto em todos os campos que a tem como objeto. Tendo permitido que se acumulasse um imenso acervo a seu respeito, bem como um sem número de questões a responder. Há muito pouco tempo, relativamente a outros campos, as áreas correlatas à gestão das organizações, ingressaram neste grupo de interessados. Este envolvimento recente somado com a falta de interlocução com as disciplinas que tradicionalmente lidam com a questão da cognição humana podem ser alguns dos elementos que explicam a configuração de uma lacuna de tecnologia para aumentar a produtividade do trabalho cognitivo.

Sob a ótica do progresso científico, estas limitações apontam para a necessidade de melhorar os métodos de pesquisa e explorar o tema sob diferentes perspectivas. Na visão de Thomas Kuhn9, esta incapacidade dos métodos disponíveis de lidar com as novas questões que se colocam pode ser um indício da instauração da fase de crise. Por outro lado, se adotada a concepção de Imri Lakatos10, estes indicariam a necessidade de rever o cinturão protetor.

Deste modo, embora o “processo de trabalho humano” e as organizações sejam temas já estudados amplamente pela Teoria das Organizações, acredita-se ser necessária uma nova abordagem, na qual sejam incorporadas, na base teórica, as explicações sobre o elemento central deste novo tipo de trabalho, a cognição humana. Portanto, este trabalho reconhece e incorpora os aspectos cognitivos como essenciais para adequar os métodos que visam o aumento da produtividade do trabalho.

A ênfase, o direcionamento da pesquisa não é o desenvolvimento de teoria no campo da Ciência Cognitiva11, como é característico de um programa de pesquisa nessas áreas do saber, mas sim o uso, a aplicação dessas teorias no contexto real de trabalho. No âmbito da Teoria das Organizações o relevante são as “ferramentas” da Ciência Cognitiva. Em outras palavras, a necessidade é da transformação das pesquisas básicas desses campos em pesquisas aplicadas em Teoria das Organizações e também da transformação das pesquisas aplicadas em realidade.

Esta proposição é resultado natural do processo de análise do problema. Diante da questão de pesquisa, os métodos de análise e solução de problema direcionam para o estudo do problema. Na busca pelo entendimento do objeto, depara-se com a cognição como um aspecto fundamental no estudo de um tema baseado fortemente na capacidade intelectual do homem. Diante da identificação deste elemento diferenciador, o caminho aponta para a exploração dos processos cognitivos. Segue-se então que a teoria, pela forma como é designada, induz aos corpos de conhecimento da Ciência Cognitiva como fonte de informação para o entendimento da cognição.

Em suma, frente aos dois conjuntos de mudanças (na natureza do trabalho e nas organizações), a abordagem proposta neste documento é que a Teoria Organizacional caminhe rumo a conceitos basais diferentes para aumentar a produtividade do trabalho cognitivo nas (redes) de organizações, tipicamente o que Kuhn chamaria de um novo

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paradigma12. Espera-se que a Teoria das Organizações deixe de se basear apenas nas fontes construídas a partir de uma natureza de trabalho diferente da que se espera que seja preponderante no futuro.

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Notas (1) “Sempre que duas ou mais pessoas se unem para se ater a um propósito comum uma

organização é formada. Organização, a estrutura sobre a qual os indivíduos se unem, é essencial ao alcance de um objetivo comum” (Carson, 1967:1). As organizações são entendidas neste trabalho como “unidades sociais (ou agrupamentos humanos) intencionalmente construídas e reconstruídas, a fim de atingir objetivos específicos. Incluem-se as corporações, os exércitos, as escolas, os hospitais, as igrejas e as prisões; excluem-se as tribos, as classes, os grupos étnicos, os grupos de amigos e as famílias” (Etzioni, 1984).

(2) Entendida num sentido amplo, como a “utilização casada da expertise tecnológica disponível em informática, engenharia de sistemas, eletrônica, mecatrônica e telecomunicações, incluindo redes de computadores e internet” (Cameira, 2003: 3).

(3) Refere-se aos mecanismos intrínsecos de desempenho superior de um especialista, isto é “aquele que tenha adquirido uma habilidade especial ou conhecimento de um assunto específico através de formação profissional e experiência prática” (Keil e Wilson, 1999: 298)

(4) Alinhado a percepção de que, atualmente, são necessários muitos conhecimentos, interdisciplinares e complexos, para gerar uma inovação, De Pellegrin (2006) coloca que a base de conhecimento necessária para inovar é extremamente complexa, principalmente quando são analisadas determinadas áreas, como robótica, nanotecnologia e biotecnologia.

(5) Uma fábrica escura caracteriza-se por ambientes povoados por robôs e máquinas que dispensariam a presença humana para a operação, linhas de produção 100% automatizadas.

(6) A forma profissional de organização aparece onde quer que o trabalho operacional de uma organização seja dominado por trabalhadores habilidosos, que usem procedimentos difíceis de aprender ainda que bem definidos. Isso significa uma situação que é tanto complexa como estável. Complexa o suficiente para exigir procedimentos que só possam ser aprendidos por meio de treinamento intensivo, porém estável o suficiente para que seu uso possa se tornar padronizado. (Mintzberg et al., 2003: 315)

(7) O trabalho de conhecimento, ainda que com grandes sobreposições, não designa o mesmo objeto delimitado nesta pesquisa como trabalho cognitivo. O termo “trabalho de conhecimento”, popularizado por Peter Drucker, foi proposto inicialmente por Fritz Machlup (1962) no final da década de 50, quando os computadores passaram a ter uso comercial. Machlup era um economista interessado em como o conhecimento era criado e distribuído e qual a sua importância econômica. Atualmente o seu significado está associado a concepção de Drucker (1988) para classificar trabalhadores de conhecimento como especialistas em gestão e profissionais. Na visão do autor, estes trabalhadores do conhecimento se diferenciam pelas seguintes características: educação formal (é requerida educação formal deste trabalhador, como um fator da complexidade das tarefas que irá desempenhar); aplicação de conhecimento teórico e analítico (além do conhecimento

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teórico, demanda-se deste trabalhador a capacidade de análise e decisão); aprendizado contínuo (o trabalhador do conhecimento precisa acompanhar a velocidade das mudanças e da produção de conhecimento da sociedade atual, estando em processo de contínuo aprendizado); especialista (o trabalhador do conhecimento é perito no domínio em que atua); e trabalho em equipe (a capacidade de trabalhar em equipe é necessária à transferência e aproveitamento do conhecimento do grupo). Adicionalmente, Reich (1991) considera o trabalhador de conhecimento um indivíduo “analítico-simbólico”, que possui habilidades variadas como identificação de problemas (marketing, propaganda, assistência ao cliente), solução de problemas (pesquisa e desenvolvimento de produto, produção) e intermediação de informações (finanças, prospecção, contratação).

(8) Preocupados com um objeto diferente e vindo de outra tradição, emerge em meados de 1950 a Ciência Cognitiva como a integração de disciplinas que já lidavam com a questão da mente humana. Segundo Fetzer (2001: 15), a Ciência Cognitiva é “uma nova disciplina com uma antiga história (...) que está encontrando novas maneiras de atacar velhos problemas”. Essas novas maneiras devem-se fundamentalmente aos esforços integradores que as seis disciplinas (Filosofia, Psicologia, Neurociência, Inteligência Artificial, Linguística e Antropologia) que a constituem passaram a desempenhar.

(9) Thomas Kuhn (1995) propõe que o progresso científico tem um caráter revolucionário. Segundo o autor, uma revolução implica no abandono de uma estrutura teórica e sua substituição por outra. A descoberta da anomalia começa com “o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a Ciência Normal” (Kuhn, 1995: 78). Segue-se, a partir da descoberta das anomalias, uma exploração mais ou menos ampla das mesmas. Durante este período, os cientistas normais tentarão ajustar estas anomalias ao seu Paradigma. Porém, se estas anomalias vão se acumulando, fugindo de controle, por assim dizer, então se instaura uma crise de Paradigmas. A crise é resolvida como resultado de um conjunto de saltos qualitativos que fazem emergir a “Nova Ciência Normal”. Estes saltos qualitativos correspondem às chamadas revoluções científicas. É precisamente esta ruptura, esta descontinuidade qualitativa que constitui uma “Revolução Científica”. Este salto qualitativo permitirá, via a constituição de uma nova teoria, a solução de um grande número de problemas o que fará com que esta nova teoria torne-se amplamente aceita pela comunidade científica. Configura-se, então, uma nova Ciência Normal.

(10) A principal característica que sustenta a lógica da Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica (MSRP) de Imri Lakatos é a continuidade com que as diversas teorias são criadas, ajustadas e conectadas pelos adeptos do programa, para o crescimento da ciência. Esta continuidade evolui a partir do estabelecimento de um novo programa de pesquisa e de algumas regras metodológicas: algumas definindo que caminhos de pesquisa evitar (heurística negativa) e outras definindo que caminhos perseguir (heurística positiva). Na idéia de heurística negativa, pode-se racionalmente decidir por não permitir refutações ao núcleo duro enquanto o conteúdo empírico corroborado do cinturão protetor de hipóteses auxiliares continue crescendo. Assim, o cientista pode decidir conscientemente pela não explicação, naquele momento, de uma anomalia, para não se desviar do caminho de investigação que está seguindo. No entanto, se o programa pára de antecipar novos fatos, aí sim, o seu núcleo duro deve ser abandonado (Lakatos, 1970).

(11) Não cabe aqui tratar dos limites da cognição humana do ponto de vista biológico, porém são provavelmente nestes que se encontram os pontos de ruptura da ciência normal no campo das Ciências Cognitivas ou, dito de outra forma, os portões da ciência pós-normal, onde provavelmente o processo cognitivo será efetivamente um recurso a ser gerenciado, com pouca ou nenhuma intermediação do homem que o detém. Não restam dúvidas de

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que a partir de descobertas como estas e todos os seus desdobramentos tecnológicos possíveis, estaremos sim ante um novo paradigma, que provavelmente altera de forma determinante as bases dos estudos organizacionais, na medida em que os indivíduos não serão mais tão misteriosos.

(12) O termo Paradigma pode assumir diversos significados, entretanto, segue-se aqui os dois sentidos essenciais propostos por Kuhn (1995) para compreender a noção de Paradigma. No primeiro é “uma constelação de crenças, valores, técnicas etc, partilhadas pelos membros de uma comunidade” (Kuhn, 1995: 218) e no segundo envolve a noção do desenvolvimento de “soluções concretas do quebra-cabeça como modelos ou exemplos,” que “podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da Ciência Normal” (Kuhn, 1995: 218).

- Thaís Spiegel é Graduada em Engenharia de Produção (Poli/UFRJ), Mestranda em Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ). Atua como Pesquisadora do Grupo de Produção Integrada (GPI/COPPE/UFRJ). Endereço para correspondência: Centro de Tecnologia – LabCIM, bloco I, fundos bloco D. Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro. RJ 21941-972. Telefone: +55-21-2562-7415 ou +55-21-25627416. E-mails para correspondência: [email protected] e [email protected]. V.C.Cardoso é Doutor em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ). Atua como Professor (Poli/COPPE/UFRJ) e como Pesquisador (GPI/Poli/COPPE/UFRJ). Endereço para correspondência: Centro de Tecnologia – LabCIM, bloco I, fundos bloco D. Cidade Universitária, Ilha do Fundão. Rio de Janeiro, RJ 21941-972. Telefone: +55-21-25627415. E-mails para correspondência: [email protected] e [email protected].

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A sexualidade negada do doente mental: percepções da sexualidade do portador de doença mental por profissionais de

saúde

Sexuality denied of mental ill: perceptions of sexuality holder mental illness by health professionals

Patrícia Francisca de Brito e Cleide Correia de Oliveira

Especialização em Saúde Mental, Departamento de Enfermagem, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Regional do Cariri (URCA), Crato, Ceará, Brasil

Resumo

O presente artigo teve como objetivo, identificar as percepções da sexualidade de portadores de doença mental pelos profissionais de saúde que trabalham com os mesmos, destacando a importância da percepção para o profissional de saúde, na sua prática profissional, principalmente na maneira de lidar com esse sujeito, favorecendo ou não a recuperação. Trata-se de um estudo do tipo exploratório descritivo com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada, na qual participaram do estudo 20 profissionais, funcionários de uma instituição psiquiátrica da cidade de Crato, CE. Os resultados mostram que a concepção dos profissionais de saúde a respeito da sexualidade do doente mental é expressa através da negação, da associação aos desvios, transgressões e doença. Evidencia-se, portanto, a necessidade de um olhar atento para as questões que envolvem a sexualidade deste indivíduo que precisa ser assistido em todas as suas dimensões: física, afetiva e social. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 246-254.

Palavras-chaves: saúde mental; doença mental; sexualidade; percepção. Abstract This article had as goal to identify perceptions of sexuality of people with mental illness by health professionals that work with the same, underscoring the importance of perception for professional health to professional practice and it consequently influences in the way to deal with this subject, on favor or not recovery. This is a study of type explorative with descriptive qualitative approach. The data was collected through interview semi-processed structured, in which participated in the study 20 Professional staff of an institution from the city of Crato, CE. The results show that the conception of health professionals about sexuality mental ill is expressed through denial, from the association to the deviations, transgressions and disease. It proves, therefore, the need for a watchful attention to issues involving the sexuality of that needs to be assisted in all its dimensions: physical, affective and social. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 246-254. Keywords: mental health; mental illness; sexuality; perception.

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Artigo Científico

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1. Introdução

Cada profissional de saúde utiliza um modo particular para se posicionar em relação ao doente mental e, assim, circunscreve uma percepção da sexualidade do mesmo, na imprecisão dos sinônimos atribuídos. Seu posicionamento, enquanto opinião revela seu comportamento e seus juízos de valor, direcionando o desempenho desse papel profissional que, à primeira vista, tende a certa neutralidade sobre as manifestações da sexualidade do doente mental.

O profissional é solicitado, continuamente, a emitir opiniões e transmitir informações, no interior da instituição a que pertence, seja aos pacientes, seja aos familiares e pessoas da comunidade em geral. O profissional da saúde estabelece uma maneira de inferir sobre a questão que geralmente consiste na negação da sexualidade do portador de doença mental. A tendência à homogeneidade, na atitude deste, tem por base a forma como a sexualidade é abordada no contexto institucional, sem eliminar a interferência da maneira como cada indivíduo vê e interpreta a questão (Amarante, 2003).

Miranda e Furegato (2004) se referem ao preconceito manifesto sobre a sexualidade do doente mental como parte de um mascaramento social ou uma negação maior e espúria. A negação, repetida no contexto institucional e profissional, simula um fragmento da sociedade.

Os mesmos autores falam que a imagem corporal do doente mental, na conjuntura da instituição, pode ser descrita como um corpo despojado de beleza e de vigor físico confirmando assim, a negação de um sujeito sexualmente desejável e desejante. Sobre os aspectos físicos desses indivíduos advém o preconceito por não se reconhecer, no contexto institucional, o corpo jovem, funcional, útil e desejado.

Segundo Kempton (1980 apud Ballone, 2006)¹, atrelar Doença Mental e Sexualidade, faz insurgir um conjunto de atitudes, por parte dos profissionais, que beneficia muito mais a repressão e negação da sexualidade no sujeito portador de doença mental do que a sua vivência saudável.

Kempton (1983 apud Ballone, 2006)², resumindo as diferentes atitudes face à sexualidade das pessoas portadoras de doença mental, avalia que estas podem ser encaradas como eternas crianças, dignas de piedade, pelo que precisam ser tratadas com benevolência. Esta atitude, paternalista, avalia a sexualidade nas pessoas portadoras de deficiência mental como inexistente; se existe, apesar de tudo, há que negá-la e sublimá-la; uma outra atitude perante a esse indivíduos é que são considerados como seres Infra-humanos, como seres imperfeitos ou grosseiros, mais próximos dos instintos dos animais do que dos seres humanos e devem, por isso, permanecer reclusas. Quando acontecem comportamentos sexuais as reações são, na generalidade, de medo e de repulsa.

Historicamente como aponta Engel (1999) percebe-se a insistência de médicos e psiquiatras em buscar, no comportamento sexual dos pacientes observados, a presença de desvios que eram imediatamente relacionados às causas, aos efeitos e/ou aos sintomas da doença que queriam diagnosticar, existindo uma profunda proximidade entre a loucura e as anomalias do instinto sexual, definidas como a diminuição ou ausência, o exagero (veemência ou insaciabilidade) e a perversão (ou aberração) do desejo sexual. O excesso, a falta e/ou a perversão instituíam, portanto, os elementos básicos que definiam os limites vastos e incertos das anomalias sexuais. Observa-se, no entanto, que os alienistas trataram de definir também, de um modo até mais intenso e evidente, os limites da normalidade das práticas sexuais, circunscritas, simultaneamente, ao prazer moderado e à finalidade reprodutora.

As anomalias e/ou perversões da sexualidade ajudariam, qualitativas ou quantitativas, a construir e solidificar a noção psiquiátrica de doença mental, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos (Foucault, 2001).

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Considerando os estigmas anteriormente relatados que cercam a sexualidade do portador de doença mental, este trabalho teve por objetivo identificar e analisar as percepções da sexualidade de portadores de doença mental por profissionais de saúde mental da cidade de Crato, buscando com isto investigar se esses profissionais compartilham de uma visão tecnicista e fragmentada do doente mental ou se, pelo contrário, existe um olhar mais humanizado. É importante destacar que a percepção que o profissional possui norteia a sua prática profissional e conseqüentemente influencia na maneira de lidar com esse sujeito, favorecendo ou não a recuperação. 2. Metodologia

Trata-se de um estudo do tipo exploratório/descritivo com abordagem qualitativa. A

respeito desta pesquisa, Godoy (1995) afirma que, a abordagem qualitativa não procura enumerar e/ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental estatístico na análise dos dados, envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo. Para Gil (1999), o trabalho de natureza exploratória envolve levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas que tiveram (ou tem) experiências práticas com o problema pesquisado e análise de exemplos que estimulem a compreensão. Sendo assim, as pesquisas exploratórias/descritivas, segundo Gil (2002), visam proporcionar uma visão geral de um determinado fato, do tipo aproximativo.

Tendo como lócus da pesquisa na Casa de Saúde Santa Tereza Ltda., na cidade de Crato-CE, participaram da pesquisa 20 profissionais, funcionários de ambos os sexos, 10 de nível médio e 10 de nível superior: 2 assistentes sociais, 2 enfermeiras, 2 médicos, 2 psicólogas, 2 terapeutas ocupacionais, 4 auxiliares de enfermagem e 6 técnicos de enfermagem. Os participantes da nossa pesquisa tinham em média 38 anos variando a idade de 20 a 51 anos, a maioria casada (60%); dos participantes, 75% (15) declararam ter religião, dentre estes 7 afirmaram ser da religião católica, 7 são evangélicos e 1 espírita. Um fato que chamou a atenção foi que 25% (5) do total dos entrevistados afirmaram não possuir nenhuma religião, mas a própria instituição desenvolve atividades de cunho religioso, até mesmo como forma de educação sexual para os doentes mentais.

Para obtenção dos dados foi utilizada entrevista semi-estruturada com questões acerca dos significados atribuídos a sexualidade dos doentes mentais pelos profissionais de saúde e com perguntas relativas ao perfil sócio-demográfico da amostra. Sobre a entrevista Gaskell (2002) diz que é um instrumento no qual o entrevistador tem por objetivo obter informações do entrevistado relacionadas a um objetivo específico. No tipo semi-estruturada, o entrevistador tem uma participação ativa, apesar de observar um roteiro, ele pode fazer perguntas adicionais para esclarecer questões para melhor compreender o contexto.

A análise do material proveniente das entrevistas foi feita a partir da análise de conteúdo categorial temática proposta por Bardin (1997), que permite a compreensão crítica do sentido das comunicações, do seu conteúdo, seja ele latente ou manifesto, e das significações.

3. Resultados e discussão 3.1. As concepções sobre a sexualidade do doente mental

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Os discursos dos entrevistados acerca da sexualidade do doente mental foram lidos exaustivamente, agrupados e categorizados nos seguintes temas:

• O ato sexual como única expressão da sexualidade; • Verbalização intensa do desejo de praticar o ato sexual manifestada pelo doente

mental; • A Masturbação como uma expressão da sexualidade do doente mental; • Um aumento significativo da libido (erotização exagerada) quando o paciente entra em

surto (crise); • Prática sexual encarada como sendo apenas um ato sexual e heterossexual; • O surto em forma de delírio, como justificativo para a manifestação da sexualidade do

doente mental; • A negação da sexualidade do doente mental. 3.1.1. O ato sexual como única expressão da sexualidade

Ao falarmos de sexualidade, com os profissionais entrevistados percebemos que a percepção destes a respeito dessa temática está intimamente ligada ao ato sexual em si, encarando a sexualidade como uma necessidade física do ser humano, como podemos observar em algumas falas o que esses profissionais entendem sobre sexualidade:

“Entendo que é uma necessidade fisiológica de todo ser humano, aliás, de todo animal, é uma necessidade fisiológica... o corpo pede, a mente pede.” (E4, PNS)³

“Sexualidade quando a gente vê falar, a gente pensa logo numa relação a dois, ou seja, a dois ou duas pessoas do sexo oposto.” (E16, PNS)

Pode-se perceber que as concepções da maioria dos entrevistados sobre a sexualidade,

estão mais calcadas numa sexualidade ligada diretamente ao sexo. Estas percepções estão bem distantes da definição de sexualidade de Ballone (2006) que, segundo ele, não é um instrumento ligado unicamente ao ato sexual, e que deve ser entendida como: expressão da afetividade, capacidade de estar em contato consigo e com o outro; como construção da auto-estima e do bem-estar.

Assim essa categoria vem a subsidiar as posteriores impressões dos profissionais da área de saúde a respeito da sexualidade do doente mental.

3.1.2. Verbalização intensa do desejo de praticar o ato sexual manifestada pelo doente mental

O portador de doença mental utiliza-se da verbalização exacerbada como uma das formas predominantes de expressão da sua sexualidade, já que a prática sexual é em todas as suas instâncias negligenciada pela instituição.

Segundo Gejer (2006) o deficiente mental, como qualquer outro sujeito, tem necessidade de expressar seus sentimentos de maneira particular e intransferível.

Assim segundo a maioria dos profissionais entrevistados as falas bem recorrentes, e excessiva, utilizadas pelos pacientes, estão associadas ao ato sexual, como quando estes falam nas esposas, desejando o ato sexual e/ou querem arrumar namoradas, bem como fantasias eróticas homossexuais.

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“[...] aqueles que têm libido mais alta, são aqueles que não param de falar nas esposas... vivem dizendo que vão arrumar namoradas [...]” (E2, PNM)

“[...] as mulheres falam muito em sexo, falam muito que precisam de homens, que faz muito tempo que não tem homem, elas falam que gostam, é esse tipo de coisa [...]” (E13, PNM)

A percepção destes profissionais acerca da verbalização erótica do doente mental,

parece está associada como mais uma forma de manifestação de um estado delirante (surto) do mesmo. 3.1.3. A masturbação como uma expressão da sexualidade do doente mental

Além da verbalização erótica, por parte do portador de doença mental, uma outra forma freqüente de manifestar a sua sexualidade é através da prática da masturbação, ato este que é percebido pela maioria dos profissionais como prática comum, entre os internos psiquiátricos como pode ser observado a seguir:

“[...] a libido deles é bem aguçada mesmo. E não conseguem controlar, né... Se masturbam... Tanto as mulheres como os homens estão sempre se masturbando [...]” (E6, PNM)

“[...] eles ficam pensando na mulher, estão fora de casa, passam muito tempo aqui. Às vezes um mês, um mês e pouco, dois meses. Aí ficam nessa dependência... Com vontade de fazer, de se masturbar [...] quando eles tão nessa fase a gente medica. A gente fala com o médico e ele passa uma medicação e vai administrando. Ou então, ele muda a medicação justamente para que ele não entre assim nessa dependência.” (E18, PNM)

Freud (1923 apud Araújo, 2002)4 coloca o narcisismo como uma etapa entre o auto-

erotismo (masturbação) e o amor objetal abordando a possibilidade que a libido tem de reinvestir o ego desinvestindo o objeto. Objeto esse da pulsão, que produz prazer de órgão também passando a ser objeto da atividade narcísica. Assim as atividades das zonas erógenas podem passar a serem utilizadas independentemente do prazer ou desprazer que causem, simplesmente para satisfazer a superioridade do ego, verificadas assim na masturbação.

Segundo Miranda e Furegato (2004), a respeito do auto-erotismo, diz que essa expressão da sexualidade é vigiada e controlada pelos profissionais por meio da observação contínua e se possível sob contenção no banho individual, bem como, o uso da medicação, pela possibilidade da masturbação, como controle sobre o corpo do doente mental.

3.1.4. Um aumento significativo da libido (erotização exagerada) quando o paciente entra em surto (crise)

Os entrevistados associam a exacerbação da libido, do paciente portador de doença mental, ao momento de delírio. Segundo tais profissionais a verbalização do desejo sexual bem como as práticas sexuais é evidenciada de forma excessiva quando o indivíduo está em surto, o que se pode perceber, nas entrevistas, que este excesso está intimamente ligado à patologia deste indivíduo.

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“[...] elas na crise, muitas, não estou dizendo todas, mas uma boa parte, uma terça parte, elas afloram sexualidade, elas só falam nisso, e só pensam que querem fazer, que querem assediar[...]” (E11, PNM)

“[...] Masturbação, com certeza, isso é a coisa mais normal do mundo você encontrar. Têm pacientes que se apaixona por você na crise dele, ele se apaixona por você. Então quando ele escuta sua voz ele começa a se masturbar, só por que ouviu sua voz. [...] assim entre si, e entre mulher com mulher e homem com homem, na crise mesmo se você não tiver cuidado eles vão ter relações sexuais que depois eles vão se arrepender [...]” (E20, PNS)

De acordo com Akiskal (2001 apud Moreno, 2005)5, o aumento da libido é

característico dos estados (episódios) maníacos psicóticos,

“Enfatizaram a ativação psicomotora como central na mania, humor depressivo ou ansioso, além de eufórico ou irritável, ausência de crítica e quatro dos seguintes sintomas: aumento de energia, diminuição da necessidade de ajuda, grandiosidade, sociabilidade excessiva, aumento da libido, fuga de idéias e distratibilidade.” (Grifos nossos)

Percebemos que a percepção dos profissionais a cerca da libido exacerbada no momento do surto é a única referência da sexualidade que eles têm do doente mental.

3.1.5. Prática sexual encarada como sendo apenas um ato sexual e heterossexual

A respeito da existência das práticas sexuais do doente mental na instituição psiquiátrica, a maioria dos entrevistados relaciona a prática sexual apenas como à prática heterossexual, negando outras possíveis expressões da sexualidade.

“[...] Não existe prática sexual do paciente nessa instituição não, mesmo por que é assim, eles ficam separados e aqueles mais conscientes, tem os finais de semana deles, são casados tem os finais de semana deles e o resto fica tudo dividido, separado.” (E2, PNM)

“Como eu disse antes, são separados, homens é de um lado e mulheres do outro, aí quando tem uma coisa ou outra assim, a gente já separa, já toma logo uma atitude, não acontece, não há prática sexual.” (E12, PNM)

Segundo Toniette (2006 apud Hellmann, 2006)6 como mencionamos na revisão

bibliográfica, a sexualidade condiz como um modo de bem-estar que inclui: um conjunto de valores, atitudes, papéis, práticas, características culturais e vínculo emocional, identidade sexual e de gênero (como a pessoa se identifica) logo a as práticas sexuais estão pautadas na subjetividade de cada indivíduo e não no modelo unicamente heterossexual. 3.1.6. O surto em forma de delírio como justificativo para a manifestação da sexualidade do doente mental

Verificamos que uma porcentagem significativa dos entrevistados associou o estado de

desvario do paciente como o único meio pelo qual ele expressa sua sexualidade.

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“[...] Quando a família se preocupa com a sexualidade do seu enfermo e se pergunta: ‘Será que meu filho tá trepando com outro? Será que meu filho tá querendo namorar? Será que meu filho tá virando gay?’ A preocupação é essa só, aí a gente diz: Não senhora, é porque ele tá em crise, só porque ele está em crise, mas vai passar [...]” (E20, PNS)

“Às vezes eles são muito picantes, às vezes eles falam muito, comentam muito, mas também muito pela confusão mental também, né?! Às vezes eu acho que eles falam muito, mas só quando eles estão muito confusos, depois que eles vão saindo do surto eles vão... Não falam tanto. Não acho que eles sejam promíscuos não. Acho que é só do surto mesmo.” (E13, PNM)

Ao analisar as entrevistas percebemos que os profissionais não enxergam o paciente

enquanto sujeito desejante quando fora do surto, negando assim à sexualidade desses indivíduos. Segundo Miranda e Furegato (2004) a negação da sexualidade do doente mental integra-se com a noção de desvio, por ser indicativo de estigma, visto que as deformidades físicas e os problemas relacionados ao caráter da pessoa dão sustentação a esse quadro.

3.1.7. A negação da sexualidade do doente mental

Quando indagamos sobre o que as pessoas pensam a respeito da sexualidade do doente mental, constatamos que a grande maioria percebe que a sociedade de um modo geral encara de forma preconceituosa a sexualidade do portador de doença mental, seja através da negação, pois acreditam que a patologia deste indivíduo o define como um ser “assexuado”, ou também através do abuso sexual, pois foi recorrente na fala deles também que muitas pessoas se aproveitam da condição de doente desse indivíduo, para cometer abusos sexuais.

Outro fator que identifica o preconceito das pessoas em relação à sexualidade do paciente é a repressão em relação a qualquer manifestação de desejo sexual por parte do doente, já que acreditam que essa revelação do anseio sexual seja “ilícita” ou descabida. Como pode ser conferido em alguns extratos de discurso:

“Olha as pessoas de fora, acha que eles não tem sexo, eu acho que elas pensam que eles são pessoas assexual. Por que muitas pessoas nem se interessam nem pelo doente mental em si, pela pessoa, imagine pela sexualidade deles [...]” (E20, PNS)

“Olhe... eu não sei por que tem pessoas que às vezes se aproveitam do doente mental, dele está passando por um sofrimento psíquico, às vezes até fazem sexo irresponsavelmente, engravidam as pacientes, a gente tem diversos casos aqui de mulheres que têm os filhos que não sabem nem quem é o pai, entendeu? Às vezes, eles agem com essa irresponsabilidade e se aproveita daquele sofrimento psíquico pra praticar sexo, até pra pessoas que fora da crise elas não teriam aquele tipo de comportamento, não se permitiriam, mas durante a crise elas ficam mais permissivas... aí as pessoas que tem... vamos dizer... que se sentem normais aproveitam desses momentos pra esse tipo de prática.” (E3, PNS)

A partir dessas falas, percebemos como afirma Miranda e Furegato (2004), já citado

anteriormente, que a sexualidade do doente mental provoca no profissional de saúde, um posicionamento de afastamento e até negação da mesma. Assim para os autores a sexualidade destes é vista como um estigma, pois é enxergada como desviante, como uma fraqueza ou desvantagem.

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4. Conclusões

Essa pesquisa de campo buscou compreender as percepções de profissionais que trabalham em instituição psiquiátrica acerca da sexualidade do doente mental. Verificamos que a manifestação da sexualidade do doente mental é vista de forma exacerbada, portanto, descontrolada, como o próprio doente. O discurso dos participantes é pautado no exagero, na falta de medida, e nas entrelinhas, a instituição, e os que fazem parte dela, buscam controlar o excesso para manter a ordem interna, para isto usam medicação e ainda permitem uma “bonificação” do final de semana livre da instituição.

A masturbação é associada à doença e a prática sexual controlada na instituição é a heterossexual. Enfim, as crenças dos profissionais acerca da sexualidade são pautadas na relação sexualidade – relação sexual.

A sexualidade é reduzida pelos profissionais apenas a um dos seus aspectos ou a uma de suas dimensões que é a prática sexual mais especificamente a prática heterossexual. A mesma é percebida exclusivamente nos momentos de crise e como algo patológico.

Por todos os resultados aqui apontados evidenciamos a negação e repressão da sexualidade do doente mental, e como comprovação dessa negação os próprios profissionais citam a intensa verbalização que o doente mental expressa, esta seria a única forma que lhes é permitida de exercer a sua sexualidade.

Acreditamos que as concepções que os profissionais carregam consigo a respeito da sexualidade dos doentes mentais influenciam diretamente na forma de ver e agir frente a esse sujeito. Para que se alcance a promoção da saúde mental desses indivíduos não se pode ignorar esse aspecto da sua subjetividade, do contrário será infrutífero o tratamento assistencial, pois o homem vai muito além da sua dimensão física e, portanto o tratamento deve transcendê-la. 5. Referências bibliográficas Amarante, P. (Coord.). (2003). Saúde Mental, políticas e instituições: programa de educação à distância. Rio de Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ, EAD. Araújo, J.C. (2002). Narcisismo e relação narcísica de objeto. Retirado em 08/12/2007, de World Wide Web: http://br.geocities.com/jcdaraujo/narcisismo.html. Ballone, G.J. (2006). O que é Doença Mental? Rio de Janeiro: Graal. Bardin, L. (1997). Análise de Conteúdo. Paris: Presses Universitaires de France. Engel, M.G. (1999). As fronteiras da ‘anormalidade’: psiquiatria e controle social. Retirado em 15/11/2007, de World Wide Web: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci. Foucault, M. (2001). Os anormais. Curso no Collège de France (1974–1975). São Paulo: Martins Fontes. Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. Em: Bauer, M.W. e Gaskell, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes. Gejer, D. (2006). O adolescente com deficiência mental e sua sexualidade. Retirado em 28/11/2007, de World Wide Web: http://www.entreamigos.com.br/textos/sexualid/oadole.htm. Gil, A.C. (1999). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas. Gil, A.C. (2002). Como Elaborar Projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas. Godoy, A.S. (1995, abril). Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas. São Paulo: 35, 57-63. Hellmann, G. (2006). Sexualidade, corporalidade e espiritualidade. Retirado em 07/11/2007, de World Wide Web: http://www.gehspace.com/sexualidade56a60.htm.

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Londres: Sage, 83, 72-86. (3) ) Entenda-se: primeiro código (E4) – número de identificação dos entrevistados; segundo

código (PNM – Profissional de Nível Médio, PNS – Profissional de Nível Superior) – nível de escolaridade do entrevistado.

(4) Freud, S. (1923). The psychopathology of everady life. London: Hogarth, 39, 115-121. (5) Akiskal, G., Tennen, H., Urrows, S. e Higgins, P. (2001). A critical perspective on

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Psychiatry, 28, 378-391. - P.F. Brito é Graduada no Curso de Formação e Licenciatura em Psicologia (Universidade Estadual da Paraíba, UEPB) e Concluinte da Especialização em Saúde Mental (URCA). Atua como Psicóloga Educacional (Colégio Objetivo), Psicóloga Social (Centro de Referência de Assistência Social, CRAS) e Psicóloga Clínica. Endereço para correspondência: Rua Nertan Macêdo, s/n, Grangeiro, Crato, CE 63100-970, Brasil. Telefone: +88-31-3521-6382. E-mail para correspondência: [email protected]. C.C. Oliveira é Enfermeira, Especialista em Enfermagem (Universidade Federal do Ceará, UFC), Especialista em Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde (UNAERP-SP), Mestra em Desenvolvimento Regional (URCA). Atua como Professora Adjunta (Departamento de Enfermagem - URCA) e Orientou este trabalho. E-mail para correspondência: [email protected].

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Cognição e valores: dois aspectos da educação

Cognition and value: two aspects of education

Rita de Cássia Ribeiro Voss

Grupo de Estudo Educação e Complexidade (EDUCOM), Universidade Braz Cubas (UBC), Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil; Núcleo de Estudos da Complexidade (COMPLEXUS),

Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo O artigo apresenta uma discussão teórica sobre cognição e valores ressaltando a relação simétrica, complementar e integrada dos aspectos estruturais e culturais da compreensão humana centrada no sujeito e em sua comunidade de vida. Do ponto de vista da antropologia do conhecimento, a preocupação é com a condição humana, isto é, com a simultaneidade dos aspectos bio-culturais presentes nos processos cognitivos que levam ao conhecimento. A proposição é que a educação assuma a recursividade dos aspectos cognitivos e valorativos na construção de estratégias de ensino-aprendizagem na escola. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 255-264. Palavras-chave: cognição; valores; educação. Abstract The article presents a theoretical discussion on cognition and values, point out the symmetrical, complementary and integrated relation of the structural and cultural aspects of the human comprehension focused on the subject and its community of life. From the point of view of anthropology of knowledge, the concern is the human condition, that is, the simultaneity of biological and cultural aspects in the cognitive processes that lead to knowledge. The proposal is that education assumes the recursivity of the aspects of cognition and values in the construction of strategies of learning and teaching at school. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 255-264. Keywords: cognition; values; education.

1. Introdução

A relação entre cognição e valores na literatura pedagógica envolve duas posições. De um lado, acredita-se que a cognição refere-se ao aparato cerebral, por realizar cômputos. De outro lado, importam os valores do indivíduo, suas dimensões subjetiva, cultural e social. São duas abordagens que se excluem e muitas vezes se transformam em trincheiras que impedem a compreensão abrangente do que seja cognição. Esta polarização reflete-se na organização dos conteúdos escolares. As disciplinas propedêuticas, consideradas valorativas, são separadas daquelas as quais chamamos de exatas, pois se acredita que estas necessitam de

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Ensaio

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uma formalização ausente naquelas. E, ainda, e o mais importante, a experiência do sujeito, o conhecimento adquirido, o universo de valores, são abstraídos do que se aprende na escola. Tal concepção não leva em conta que o conhecimento envolve aspectos biológicos e culturais indissociáveis.

Ao contrário da separação que coloca numa mesma grade curricular disciplinas não-comunicantes, o que constitui o humano é justamente a simultaneidade bio-cultural no ato de conhecer. Os processos biológicos que possibilitam o cômputo, a lógica e as formalizações, dizem respeito ao aspecto operacional. Para que os operadores cognitivos possam por o pensamento em movimento precisam acionar no sujeito estados que se referem à cultura e à sua experiência, que juntos compõem o universo de escolhas. As operações cerebrais, que objetivam a cognição, em última análise, reportam-se à vida do sujeito, à comunidade onde está inserido, a um tempo e a uma sociedade. A cognição, portanto, acontece na simultaneidade de operadores e acionadores cognitivos.

As reflexões aqui apresentadas emergem da pesquisa de doutorado realizada no Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no período de 2003–2006, que nutriram as questões sobre a formação docente e a constituição do sujeito possibilitando a construção de hipóteses que se inserem, atualmente, nas problemáticas discutidas no grupo de pesquisa Educação e Complexidade (EDUCOM) na Universidade Braz Cubas (UBC). O projeto de pesquisa do grupo trabalha a relação simétrica, complementar e integrada dos processos estruturais de aprendizagem e de criação de valores, centrada no sujeito e em sua comunidade de vida.

As pesquisas colocaram o desafio de explorar as implicações resultantes da aproximação de cognição e valores, principalmente ao inserir a experiência do sujeito. Por isso recorremos à composição do problema em termos de condição humana, na perspectiva da antropologia do conhecimento, integrando as características inatas e adquiridas do homem. Adotamos, então, a recursividade como estratégia explicativa das dimensões cognitivas abordadas. A interação destas dimensões conduz a pensar sobre o papel do erro e do ruído no desenvolvimento do homem e do conhecimento. Em síntese, o artigo visa demonstrar a indissociabilidade de cultura e cognição pela via do pensamento complexo. 2. Cognição e valores Nunca se estudou tanto a cognição. Nas últimas décadas, o desenvolvimento das ciências cognitivas contribuiu para os estudos das tecnologias mais simples usadas no cotidiano até as pesquisas mais complexas sobre a inteligência artificial. De fato, os estudos sobre a cognição humana, associados ao desenvolvimento da Lingüística, possibilitaram a criação das tecnologias de informação e de robotização. A cognição, nesse sentido, resume-se ao cômputo; o cérebro humano é considerado um calculador. Há uma perspectiva reducionista nesse pressuposto, pois não se leva em conta que o homem cria valores e necessidades - inclusive imaginárias -, julgando o que fazer com elas. Estes são aspectos essenciais a serem considerados nos estudos sobre a cognição humana. Pierre Lévy (1998) aborda a questão ao lembrar a dimensão valorativa que envolve a tecnologia:

“Não se trata, portanto, de saber o que as máquinas podem fazer ou não, mas sim de reconhecer o que, no homem, não é da ordem do fazer. Se perdêssemos a lembrança dessa dimensão do humano, está mais do que certo que ficaria efetivamente aniquilada, pois nossa espécie, histórica e cultural, decide em parte sobre o que se torna. Assim como os que não sabem mais que estão livres acabam mesmo escravos, talvez nos

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tornemos processadores de informação quando tivermos esquecido quem éramos.” (Lévy, 1998: 136)

Por isso, abordar a cognição como processo mental, cerebral, exclusivamente, não responde a questões vitais para a educação, que demandam processos valorativos. O acúmulo de informações, bem como a facilitação ao seu acesso, possibilita pensar o que é bom para o homem e para preservar a vida? De que forma o entendimento dos professores sobre cognição pode auxiliar os alunos a valorar, a avaliar a experiência vivida e, a compreender o próprio conhecimento humano? O primeiro aspecto da cognição diz respeito à evolução biológica. O homo sapiens-sapiens, apesar de sua visível desvantagem física em relação ao homo neandertalensis, mostrou uma grande superioridade para sobreviver em condições adversas. O desenvolvimento do neocórtex cerebral no sapiens possibilitou o refinamento das criações de acessórios para a facilitação da vida, e, consequentemente, à sobrevivência humana em ambientes hostis. Com esta vantagem, o homem espalhou-se sobre a Terra, estabelecendo relações singulares com o meio com vistas à adaptação e, em razão disso, desenvolveu diferentes costumes e visões de mundo, cuja diversidade constitui a humanidade como a conhecemos hoje. O outro aspecto da cognição, a cultura, como universo de valores, então, emerge simultaneamente ao aparato biológico que a possibilita.

Alguns autores esclarecem como cognição e valores estão associados na espécie humana. Um deles é Tsunessaburo Makiguti (2002), que já tratava do assunto no começo do século XX. Para ele, a cognição não é tão inusitada, ainda que numa escala mais primária da vida suas operações sejam elementares. As condições neurológicas do homem, que o educador entende por cognitivas, no sentido estrito, referem-se à capacidade de todo ser vivo de diferenciar-se do seu entorno, por meio de uma auto-referência, o que permite identificar o que precisa para manter a vida. Neste sentido, a cognição diz respeito à sobrevivência, condição básica para manter a vida de forma geral. O que diferencia o homem de outras espécies é a capacidade de conceituar, de construir outra realidade, descontextualizando algo para pensá-lo por analogia e de forma abstrata na mente. A isso ele chama de cognição propriamente humana.

“A consciência humana é decididamente mais complexa, apesar de haver correspondência ao que percebemos como instinto no mundo não-humano. Mas, se consideramos a cognição como transferência da realidade física exterior para a realidade conceitual interior por meio da linguagem, torna-se fenômeno exclusivamente humano.” (Makiguti, 2002: 85)

O autor aborda uma questão essencial para a construção do mundo humano. O aparato biológico, para produzir conhecimento, depende da linguagem e esta da relação com outros seres humanos, da aprendizagem, que para se desenvolver necessita da objetivação da consciência no jogo semântico das interações sociais. Trata-se de uma recursividade inescapável. É nesse caminho, na recursividade de sujeito/meio, que os valores se constituem num mundo de humanos, diferente das máquinas, diferente de outros animais. Cognição, valores e aprendizagem estão fortemente relacionados à contingência biocultural do homem e da vida comunitária, onde a linguagem adquire vida, possibilita criar significados e atribuir valores à realidade coletiva e à experiência individual.

Portanto, os valores são importantes para construir um mundo possível de ser habitado. Entendemos valores da mesma forma que Makiguti (2002) a concebeu, em três dimensões: material para atender às necessidades, ainda que não sejam para a mera

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sobrevivência; estética, para refinar e aprimorar os desejos, o pensamento, sentimento e diz respeito ao mundo subjetivo; ética, socialmente construída por meio do consenso lingüístico tácito ou explícito: as regras constituídas, costumes, os códigos morais e as leis. A isso, o educador chamou de sistema de criação de valores. O sujeito se insere nesse sistema tripartite do nascimento até a morte.

As instâncias do sistema de valores não são autônomas e nem apartadas do processo cognitivo porque o sujeito deles precisa para compor escolhas possíveis dentro do universo valorativo. Para avaliar, e avaliar bem, na interdependência dos valores do sistema makigutiano, é preciso apreender conceitualmente o objeto da avaliação. No entanto, a simples apreensão não torna humana uma operação cognitiva. O sujeito precisa enlaçar o objeto como parte da sua experiência. Ao enlaçá-lo, atribuindo-lhe um valor para a vida, ambas, a cognição, como condição do aparato neurocerebral, e a avaliação, como valoração, se constituem numa atividade humana. É por essa razão que, refletindo sobre a citação de Pierre Levy, referida anteriormente, talvez as máquinas jamais tomem o lugar do homem, a menos que elas, por algum processo ainda desconhecido, passem a avaliar. Para isso, seria preciso viver a experiência subjetiva e a realidade coletiva a um só tempo. E mais, precisaria apreender o tempo passado no presente, avaliando os resultados futuros, consciente da condição temporal. Nesse caso, se isso fosse possível, já não seriam inteligências artificiais, pois teriam que responder às mesmas indagações acerca do sentido da existência e sobre o destino humano.

Para Lévi-Strauss (1989), a cognição, como processo mental, cerebral, trabalha por analogia, classificação, seleção, correspondência, similaridades, diferenças. Essa forma de conhecer o mundo, ocorre em todos os seres humanos, em qualquer cultura, tempo e lugar. Mas, tal processo não acontece apenas de forma localizada, exclusivamente cerebral, como crêem as ciências cognitivistas (Varela et al. 2003), mas já no nível celular, em que todo o corpo é mobilizado para conhecer (Atlan, 1996). Soma-se a isto a subjetividade, que diz respeito à experiência do sujeito no mundo e também à sua inserção numa determinada cultura, num universo de valores.

Isto significa que é preciso agregar a cognição à experiência vivida pelo sujeito, embora a ciência clássica a tenha tomado como emaranhado de valores sem importância para os problemas que se empenha em responder, relegando-a ao que chamou de impressões do senso comum. Diante dos impasses da ciência em habitar o mundo, Varela (2003) conclui que a ciência nega o caráter efetivo da experiência humana e, ao fazer isso, transforma o estudo científico de nós mesmos, a cognição, num estudo carente de objeto. A ciência pode contribuir para a autocompreensão à medida que possa aliar experiência e compreensão. “A experiência e a compreensão científicas são como duas pernas sem as quais não podemos caminhar” (Varela et al., 2003: 31). 3. Inato e adquirido Um segundo problema sobre cognição e valores diz respeito às aptidões humanas inatas e adquiridas. Norbert Wiener (1993), ao comparar a complexidade da organização cerebral humana com a capacidade cerebral de outros animais, verifica que a codificação e transmissão de informações no homem, através da permuta de códigos que geram novas informações, são extraordinárias. Inserindo a aprendizagem na constituição do humano, o autor considera que essa capacidade inata é apenas provável e só pode ser desenvolvida plenamente no convívio com outros seres humanos. A sociedade tem um papel crucial para o desenvolvimento das possibilidades biológicas da espécie.

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Humberto Maturana e Francisco Varela (2001) falam também de tal potencialidade, ao discutir o caso de duas meninas indianas descobertas em 1922 vivendo com uma família de lobos, na Índia. Ao serem criadas por esses animais, adquiriram comportamentos da espécie; como se moverem de quatro e comerem carne crua. A escola lupina não só forjou comportamentos lupinos como também alterou a própria possibilidade de constituírem-se plenamente humanas. Após terem sido descobertas, as meninas aprenderam a andarem eretas. Uma delas, porém, não agüentou a nova forma de vida e morreu. A outra menina jamais seria completamente humana, recorrendo, de quando em quando, aos antigos hábitos adquiridos com a família-lobo.

É importante notar, com esse exemplo, que o bipedismo, os comportamentos e atitudes adquiridos são potenciais que se realizam ou não, na presença ou ausência da aprendizagem. Ser bípede é, ao mesmo tempo, natural à espécie e aprendido coletivamente. Para realizar o destino humano, simultaneamente natural e cultural, tais características tidas naturais na verdade são naturalizadas, uma vez que são aprendidas, isto é, adquiridas. Pode-se inferir, então, que a autoconsciência também é uma possibilidade que se realiza coletivamente? Não posso ter consciência de mim sem que haja a transmissão da experiência humana? Uma resposta possível para tais questões parece repousar nos mecanismos de projeção e identificação dos processos cognitivos, que se revelam ao mesmo tempo individuais e coletivos.

Por isso apontamos a importância da comunidade de vida na formação humana, onde as estruturas bio-culturais são incorporadas, sem que se pense, isto é, não há nisso, uma intencionalidade como na escola. Através dos códigos sociais constituídos pela aprendizagem e mediados pela linguagem aprendemos a ser humanos. Não precisamos saber como acontece o andar bípede para andarmos ou não precisamos saber nada sobre estrutura lingüística, para falarmos. Os valores acionam as operações cognitivas que ocorrem no nível bio-psicológico do homem. Um exemplo interessante é o que acontece no aprendizado de uma língua estrangeira. Uma criança aprende a língua mãe de maneira naturalizada. Desde muito cedo, aprende a falar a língua comunitariamente usada, na família e nas relações mais próximas, ou com os programas infantis de televisão. Nesse sentido, não é preciso nada além dos estímulos afetivos e das necessidades que compõem o universo infantil. Mesmo que um dos pais fale outra língua, o convívio e as necessidades de comunicação a tornam bilíngüe. Já o adulto ou adolescente para aprender outra língua, recorrerá a uma escola que de maneira intencional tenta por diversas estratégias, simular os ambientes culturais em que essa aprendizagem se dá de maneira naturalizada. Alda Araújo (2008) constata que as estratégias de ensino e aprendizagem que recorrem à simulação inserindo os valores do cotidiano possibilitam um ganho em termos cognitivos, pois consolidam o aprendizado da língua estrangeira. Reforçando esta constatação, Adriana Pacífico (2008) observa que os jogos eletrônicos, por comporem tanto os aspectos lúdico, referente ao do universo de valores como também os operacionais lógicos contribuem para a apreensão inconsciente da estrutura lingüística. Em ambos os casos a simulação é um meio para que haja identificação e projeção da experiência, importante para que se realize esta ¨naturalização¨ da língua estrangeira. A aprendizagem se vale simultaneamente dos operadores (dimensão biológica) e dos acionadores (dimensão cultural, valorativa) cognitivos fundados numa configuração neurológica e neuro-imaginal, que empurram a espécie para a convivência coletiva. Se, por um lado, o biológico leva à realização da espécie em contato com a sociedade, é só nela que o homem pode viver a aventura do conhecimento. É na codificação e decodificação, da infinidade de arranjos de signos do repertório intelectual, que reside a liberdade de avaliação que parece estar fundada na plasticidade e flexibilidade do cérebro humano, embora a elas

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não se limite, já que a novidade do homem emergiu de possibilidades da espécie de primeiro existir consciente de si; quase como milagre. 4. O papel do erro e do ruído

Também há algo importante há considerar no modelo pedagógico que defendemos; o papel do erro, do acaso, do ruído, já que estamos a falar de experiência e de valores. O etólogo Boris Cyrulnik (2000) pesquisou o papel organizador do delírio e, a partir dele, pôde entender a condição biológica do homem e a influência do universo de informações no que diz respeito à percepção subjetiva do mundo exterior, resultando numa simbiose que aciona modelos de cognição e avaliação da realidade. Para Cyrulnik, a constituição biológica e física do sujeito, o seu meio familiar e social, e a disposição da personalidade formam um repertório para traduzir e representar a realidade. Ao repertório já conhecido vão se juntando novos elementos, reorganizando-o numa nova ordem que enriquece a compreensão da realidade. Nesse sentido, desfaz-se a fronteira entre sujeito e mundo exterior, se é que se pode falar em fronteiras. Também se esvaecem as tentativas de enclausurar o homem em apenas uma de suas dimensões, sejam elas biológicas ou sociológicas. O autor afirma:

“As condições humanas e naturais estão presentes coordenando-se numa interação incessante em que cada dimensão modifica a outra. Essa interação necessita de modelos de avaliação da realidade. O modelo escolhido dá um sentido àquilo que se observou e acrescenta uma tonalidade lógica ou delirante ao mesmo fato.” (Cyrulnick, 2000: 49)

Essa percepção do mundo passa por uma seleção neurosensorial. Em tal seleção,

opera-se a interpretação das informações dentro de um repertório de desejos, conhecimentos e atitudes mentais, influenciados também pela cultura, pela personalidade e pela linguagem: “À dimensão inevitavelmente orgânica do espírito acrescenta-se outra dimensão supra-orgânica que não só permite à matéria cerebral fazer funcionar o psiquismo, mas também receber impressões do meio ambiente” (Cyrulnick, 2000: 49).

A atividade hipercomplexa do cérebro humano, responsável pelos referidos processos em que uma “simples observação torna-se um trabalho prodigioso de criação neuro-imaginária” (Cyrulnick, 2000: 66), mostra as possibilidades do espírito humano, sua imanência e transcendência. As instâncias bio-sócio-culturais partilham e coabitam uma mesma unidade complexa de construção do conhecimento. Ao entrar em contato com novas informações, sejam elas de caráter biológico, como as mutações genéticas, ou as doenças; ocasionadas por acontecimentos inesperados como a morte de alguém; ou ainda, por um arrebatamento amoroso, por exemplo; o cérebro opera no sentido de reorganização cognitiva capaz de dar não só coerência ao que se vê e se sente, como também um salto qualitativo em termos de compreensão valendo-se dos dados da experiência conhecida.

Conseqüentemente, o acontecimento, o desvio da ordem, o ruído, tem peso importante para a espécie humana. A constituição do cérebro humano, triúnico, reptílico, mamífero e racional, segundo Edgar Morin (2002), é composto por competências que se comunicam para tratar desde sentimentos mais primitivos até interpretações racionais refinadas dos fenômenos observados. Essa constituição cerebral desenvolvida no curso da evolução humana mostra uma aptidão para avançar para níveis cada vez mais complexos de elaboração cognitiva. Mas não é apenas isso. A comunicação entre as competências não estaria sugerindo que uma instância pode funcionar como um ruído para a outra? A instância emocional, em contato com a instância racional na compreensão do fenômeno não seria um fator de desorganização inicial para recompor a realidade numa nova ordem avaliativa da experiência? Daí é possível

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afirmar que a característica principal da espécie é o inacabamento (Morin, 2002). A hipótese aqui enunciada diz respeito à comunicação dessas instâncias capazes de gerar novas ordens a partir da desordem, sempre acionadas no sentido de avaliar a realidade para lhe conferir significados. Para Cyrulnik (2000), o homem é cem por cento natureza e cem por cento cultura. As duas dimensões interagem e são mutuamente influenciadas. A constituição do sujeito se condensa na contingência de um corpo poroso, capaz de circunstanciar de forma singular as trocas de informação com o meio. Este, associado às determinações biológicas, exerce influência sobre o indivíduo de forma positiva ou negativa. A argumentação do etólogo sobre a cognição e o papel da cultura no sistema makigutiano de criação de valores humanos sugerem que é possível transformar uma experiência negativa em fonte de aquisição de conhecimento, em formação do sujeito, dado o caráter dinâmico das transformações do universo intelectual que ocorrem em função de fatos novos, elementos modificadores do repertório constituído, como as dificuldades enfrentadas pelo sujeito ao longo da vida que, ao serem bem trabalhadas interiormente, converteram-se em vantagens compreensivas.

5. Tradição e cognição

Estas discussões nos auxiliam a compreender como a cognição e a experiência, mediadas pelos valores, se relacionam e podem contribuir para pensar em estratégias de ensino e aprendizagem na escola. O conhecimento de primeira mão, o da experiência, está carregado de valores, vivenciados no seio da comunidade mais imediata, a família, a vizinhança, com os amigos; nas experimentações, sejam elas de ordem afetiva, artística, ou para aprender operar uma máquina usando a estratégia de erros e acertos – como fazem os adolescentes ao aprender a manusear um computador -; na dinâmica da cultura, nas linguagens verbais e não-verbais. O conhecimento de segunda mão é adquirido na escola, onde se dá o ato intencional de ensinar e aprender algo. A educação ocidental guarda os princípios de ensino e aprendizagem de forma metodológica, sistemática e geral, transmitida formal e abstratamente, ainda que se valha do laboratório, pois este é um artifício que visa mostrar por analogia a leis que regem um fenômeno na natureza. A distinção é importante, já que necessitamos precisar estas duas características do conhecimento humano. O problema não está na distinção, mas na separação de fato, das formas de conhecer o mundo que acontecem amalgamadas, segundo uma estrutura biocultural humana universal. A separação é, então, arbitrária.

Paulo Freire (1970) observa que a educação considera a experiência vivida como um véu que encobre a verdade. Nesse sentido, esta concepção se distanciaria de uma compreensão mais integral do homem, quando se trata de formação humana, considerando o sujeito dentro de uma comunidade, cultural e historicamente determinado. Ampliando-se um pouco a compreensão do problema, o desenvolvimento do pensamento ocidental deu ao pensamento científico a única autoridade para validar a compreensão do mundo e da vida. Cabe a ciência, e somente ela, desvelar e fazer reluzir as descobertas e leis, sem maculá-las. O universo de valores, as relações sensíveis do sujeito com o mundo não são conhecimento propriamente dito já que dizem respeito à observação colada à realidade, avessa à abstração, atenta à pureza do pensamento regido por sistemas explicativos e seus procedimentos de abordagem dos fenômenos que deseja compreender. Seus resultados, por isso, acredita-se serem neutros, ainda que a tecnologia que dela deriva possibilitasse a construção de um mundo jamais sonhado pelos nossos antepassados em termos de facilitação da vida e, ao mesmo tempo, também possibilitasse a destruição do mundo e da espécie, pela guerra e pelo

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esgotamento dos recursos naturais. Tais resultados têm implicações éticas, já que estamos a falar de escolhas, de um posicionamento do sujeito no mundo.

É por isso que recorremos às comunidades tradicionais. Embora aprendamos a pensar nos moldes da ciência clássica, a tradição tem muito a dizer sobre a cognição em geral e a humana em particular. A compreensão do mundo em tais comunidades acontece, de um lado, pela observação e, de outro, por um tipo de conhecimento que emerge da intimidade do homem com o seu meio, integrado a um ecossistema.

As pesquisas sobre as estratégias cognitivas nas comunidades ligadas à tradição conduzem a uma reflexão nesse sentido (Almeida, 2000), se considerarmos como elas conhecem o mundo quando observam, por exemplo, como os animais interagem com o meio. Em função de princípios difusos e complexos, os saberes da tradição partem de uma observação minuciosa do comportamento dos animais, das plantas e dos fenômenos da natureza para construir um saber simbiótico capaz de dialogar com o mundo sensível da experiência. A cognição guarda, portanto, princípios elementares de organização em todos os seres vivos.

Compreender, uma característica humana, não está relacionado apenas à emergência da consciência, nem tão-somente à autoconsciência, mas ao autoconhecimento, o que permite proceder a uma separação do mundo, um entre mim e o mundo, intencional, como consciência de algo, ao apreender um fato. Ao se agir no mundo, atribui-se ao objeto apreendido um valor de falsidade ou verdade e/ou outro valor de ordem emocional, bom ou ruim. A maior ou menor realização humana depende da intimidade com que se interrelacionam os dois lados da compreensão, cognição e avaliação da experiência, inseridos numa cultura, num sujeito em constante e incessante processo de conhecimento e autoconhecimento.

Ainda em relação às pesquisas sobre cognição e tradição, Sérgio Moraes (2005) conta como duas populações tradicionais na Amazônia e outra próxima à Lagoa do Piató, interior do Rio Grande do Norte, manipulam o espaço em função de sua principal atividade, a pesca. Os saberes da pesca envolvem questões míticas, geográficas, biológicas, sociais e políticas. O exercício da pesca e as estratégias cognitivas para desenvolvê-la recorrem à observação e à experimentação - que Lévi-Strauss (1989) chamou de pensamento selvagem, no sentido de ser não domesticado -, em simbiose com a experiência imediata. Compreender a pesca nas comunidades estudadas por Moraes é também compreender sua política. As relações estratégicas das pessoas com o meio garantem a sobrevivência da comunidade, em harmonia com o ecossistema no qual está inserida. Os problemas políticos, da mesma forma, envolvem saberes sobre o meio, para que a atividade pesqueira e a comunidade possam sobreviver, mesmo diante da escassez.

É interessante notar que a política nessas localidades pode ser melhor entendida como organização e reorganização da vida, à medida que a comunidade é levada a encarar um problema e buscar possíveis soluções dentro de um sistema em que homem e mundo precisam ser considerados. Não pode haver uma tal assimetria que cause danos a um dos lados, no que diz respeito à natureza e à cultura. Essa busca de simetria é sempre delicada, precisa ser tratada com a sabedoria que vem da experiência local e, nesse sentido, do conhecimento contextualizado, cujo porta-voz é a pessoa mais velha, mais hábil para ler os sinais do meio.

Um dos aspectos a salientar nessas comunidades são as estratégias construídas em função do meio (natural e social) e não apenas em função dos resultados (os fins), que é a pesca. Por não isolar os termos, a lógica da tradição é complexa. Nenhum de seus componentes pode ser desligado do todo, colocando-o em risco. Nesse sistema, o elemento mítico parece contribuir como discurso valorativo, informando as condições éticas em que a prática deve ser estabelecida. Em contato com os saberes institucionalizados, essa matemática da tradição dá a conhecer uma lógica interativa e simbiótica com o mundo dos homens e o

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mundo da natureza. A propósito desses saberes que incorporam experiência e que se dirigem para uma pragmática, Vergani (2003) destaca, ao observar a cultura dos Tshokwe:

“Entre os Tshokwe, o recurso a estruturas geométricas era hábil e competentemente orientado para atividades visando diferentes objetivos pedagógicos. Assim, por exemplo, a construção no solo de vários tipos de formas labirínticas para desenvolver a consciência espacial e mental dos mais novos era, freqüentemente, inspirada pelos trajetos percorridos por pássaros aquáticos no interior do seu pantanoso habitat, considerados modelos de maestria a adquirir sobre o território (ou meio) ambiente. Outra fonte de inspiração era o traçado do cemitério da aldeia ou os elaborados rumos seguidos pelo caçador que devia seguir a presa e ao mesmo tempo dela se esconder. Estimulantes também os difíceis acessos aos lugares sagrados da floresta onde certos rituais eram celebrados ou aonde eram pronunciadas as sentenças que puniam aqueles que fossem culpados de atividades nocivas. A imaginação estética corria ainda sobre as frondosas copas das árvores, a graciosidade dos animais, as insígnias de realeza, os diferentes ciclos etários da vida ou a complementaridade soberana do homem e da mulher.” (Vergani, 2003: 87)

Os saberes da tradição dizem respeito à observação do entorno e ao modo pelo qual se constroem significações encarnadas, eco-lógicas que inserem o indivíduo no meio e na cultura aos quais pertence de forma simétrica. Essas significações não podem ser desprezadas. É necessário frisar que não se trata de defender uma volta à comunidade tradicional. Estamos atados ao conhecimento científico, ao longo da história do desenvolvimento humano. A ciência procura compreender a vida pela via do conhecimento objetivo, desenvolvendo e aprimorando os processos operatórios cognitivos para se extrair princípios capazes de explicar os seus mistérios, como verdade lógico-racional. É por causa desses processos que é possível à ciência orientar as escolhas a fim de avaliá-las racionalmente. Tais processos possibilitam ainda distinguir as várias instâncias dentro do sistema de valores em que a escolha deve ser feita. O problema está em separar o mundo, em validar apenas aquilo que o discurso hegemônico da ciência atribui como verdade. As pré-concepções que separam a vida do que se aprende na escola concebem teorias para tão-somente desenvolver os processos cognitivos. Neste sentido, o produto do intelecto da própria vida, como se fossem dissociáveis. Os estudos que associam a cognição aos valores do sujeito demonstram o que há em comum na comunidade tradicional e na escola ocidental. Os meios que usamos para ensinar e aprender são melhores utilizados à medida que realizam a integração de operadores e acionadores cognitivos na aprendizagem. No entanto, a tradição nos diz que os dois aspectos da cognição humana acontecem simultaneamente. O que fazemos na academia e na ciência é distinguir tais aspectos da cognição para melhor compreendê-lo. Mas isto não significa que há uma receita para elaborar estratégias de aprendizagem. A elaboração de estratégias depende do universo cultural da comunidade de aprendizagem. Ao professor cabe a tarefa de compreender os princípios para reger as estratégias. 6. Considerações finais As escolhas implicam em aderir a valores positivos ou negativos, dependendo dos imprintings da experiência individual e cultural, mediadas pela aprendizagem. Tudo depende da configuração das mediações entre o sujeito e o mundo. O conhecimento adquirido pelo indivíduo é experimentado de maneira única e singular, dentro das possibilidades da espécie e das inter-relações subjetivas que formam a sociedade e seu meio mais próxima, a comunidade

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de vida. É essa configuração que mostra os caminhos possíveis do desenvolvimento humano. Escolher uma via significa que tantas outras foram preteridas. É possível, então, construir estratégias de ensino-aprendizagem que levem à compreensão da importância da contingência do sujeito para o conhecimento, constituído pelo tripé homem-espécie-sociedade. Pode-se afirmar que educar, no sentido de formar um ser humano para a vida e para o mundo, é assumir a condição do homem e do conhecimento; que as escolhas são afetadas pelas instâncias bio-culturais da cognição humana.

7. Referências bibliográficas Almeida, M.C. (2000, outubro). Técnicas de Previsão Climática no Nordeste do Brasil: uma ciência neolítica no século XXI. 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e da Técnica. Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora. Universidade de Évora e Universidade de Aveiros – Portugal. Araújo. A. (2008, junho). Cinema e Cognição: conhecimento pertinente no ensino da língua inglesa. IV Simpósio do programa do Mestrado em Semiótica, Tecnologias de Informação e Educação. Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes – Brasil. Atlan, H. (1996). Entre o cristal e a fumaça. (Ribeiro, V. Trad). Rio de Janeiro: Zahar. Cyrulnik, B. (2000). Memória de macaco, palavras de homem. (Rabaça, A. M. Trad.) Lisboa: Editora Piaget. Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Lévi-Strauss, C. (1989). Pensamento Selvagem. (Pellegrini, T. Trad.) São Paulo: Editora Nacional Lévy, P. (1998). A Máquina: criação, cognição e cultura informática. Porto Alegre: Artmed. Makiguti, T. (2002). Educação para uma vida criativa. (Carpenter, E. Trad.) Rio de Janeiro: Editora Record. Maturana, H.R. e Varela, F.J. (2001). A árvore do conhecimento. (Mariotti H. e Diskim L. Trad.) São Paulo: Palas Athena. Moraes, S.C. (2005). Saberes da pesca. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. Morin, E. (1996). O Método 3: o conhecimento do conhecimento. (Bragança M. G. Trad.). Porto Alegre: Editora Sulina. Morin, E. (2002). Os sete saberes necessários à educação do futuro. (Silva, C.E.F. e Sawaya, J. Trad.), São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO. Varela, F.J.; Thompson, E. e Rosch, E. (2003). A mente incorporada: ciências cognitivas e a experiência humana. Tradução São Paulo: Editora Artmed. Pacífico, A. (2008, junho). O lúdico e o virtual no aprendizado da língua inglesa. IV Simpósio do programa do Mestrado em Semiótica, Tecnologias de Informação e Educação. Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes – Brasil. Vergani, T. (2003). A surpresa do mundo: ensaios sobre cognição, cultura e educação. Natal: Editora Flecha do Tempo. Wiener, N. (1993). Cibernética e sociedade. (Paes, J. P. Trad.). São Paulo: Editora Cultrix. - R.C.R. Voss é Graduada em Ciências Sociais (PUC-SP), Mestre em Ciências Sociais (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN), Doutora em Educação (UFRN), Pós-doutoranda (PUC-SP). Atua como Professora Titular no Mestrado em Semiótica, Tecnologias de Informação e Educação (UBC). Endereço para correspondência: Av. Frederico Straube, 600, casa 06, Mogi das Cruzes, SP 08790-310, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected].

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Processos cognitivos como elementos fundamentais para uma educação crítica

Cognitive processes as major elements for a critical education

Ruben de Oliveira Nascimento

Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas

Gerais, Brasil

Resumo Nesse ensaio examinamos as possibilidades do uso potencial de recursos cognitivos como memorização, compreensão e reflexão, no processo ensino-aprendizagem, vendo-os de maneira interligada a componentes próprios de construção de competências cognitivas como comparação, associação, classificação, interpretação, formulação de hipóteses, entre outros. Essa combinação, quando pedagogicamente promovida, pode provocar derivações cognitivas importantes nas formas de pensamento do aluno, facilitadas por estratégias de aprendizagem que exploram exercícios para trabalhar com essas derivações. Com base em teorias cognitivas de aprendizagem e em fundamentos da epistemologia genética, analisamos como processos cognitivos podem ser aproveitados na formação escolar, com a finalidade de educar para uma visão mais crítica de objetos e fatos, colaborando com uma percepção mais ampliada de conhecimento escolar e contexto social. Assinalamos que educação crítica, em termos cognitivos, não prescinde de classificação ou categorização de mundo, porque reflexão e pensamento crítico tomam como base justamente o que os indivíduos podem representar ou conhecer de um objeto ou mundo criticado. Com isso, concluímos que é fundamental o uso instrucional de recursos e competências cognitivas desde a educação básica, contribuindo para a promoção de uma educação mais reflexiva e crítica. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 265-282. Palavras-chave: competência cognitiva; educação crítica; teorias cognitivas de aprendizagem. Abstract This work verifies the possibilities of the potential use of cognitive resources such as memorization, comprehension, and reflection, in the teaching-learning process, as we see them in an interlinked way with components used for the construction of cognitive competences, such as comparison, association, sorting out, interpretation, and formulation of hypotheses, among others. This combination, when pedagogically promoted, can provoke cognitive derivations that are important for the student’s ways of thinking. They are facilitated by the use of learning strategies that explore exercises in order to work with those derivations. Based on learning cognitive theories and on the foundations of genetic epistemology, we analyze how cognitive processes can be used in school development, aiming at educating for a more critical view of objects and facts, contributing for a wider perception of school education and social context. We claim that a critical education, in cognitive terms, takes into account the classification or world categorization, once reflection and critical thought are based on what

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Ensaio

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individuals can represent or get to know of an object or criticized world. This way, we conclude that the institutional use of resources and cognitive competences are of major concern starting from basic education, in order to contribute to the promotion of a more reflexive and critical education. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 265-282. Keywords: cognitive competence; critical education; learning cognitive theories.

Introdução

Como a formação escolar pode contribuir com o desenvolvimento e uso de ferramentas intelectuais para compreensão e reflexão de objetos, situações e fenômenos sociais? Como pensar um ensino que viabilize uma visão crítica do conhecendo construído em sala de aula? Como promover uma educação que, a partir de uma visão crítica, forme sujeitos com autonomia de pensamento para discutir os temas da vida contemporânea para nela agir ativamente? Esses são questionamentos difíceis que abarcam variáveis históricas, ideológicas, políticas e sociais sobre a Educação, mas que precisam ser debatidos sob as mais variadas formas de contribuição para esse debate, considerando-se a complexidade dos dias atuais e a necessidade de se pensar a aprendizagem na vida contemporânea.

Para contribuir com essa discussão, abordaremos o uso de recursos cognitivos como aliados de uma educação crítica metodologicamente alicerçada no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem que favoreçam o emprego dinâmico de processos cognitivos em nível de estudos acadêmico-conceituais.

A História mostra como a utilização de recursos cognitivos – como ferramentas intelectuais – foi importante na história do homem e em sua relação com o contexto vivenciado; e como se revelaram em nível de operação ou ação inteligente sobre o ambiente e suas adversidades geográficas, climáticas e populacionais (Cook, 2005; Blainey, 2008)

Disso decorre que o nível de ciência até então alcançado pela humanidade é também resultado do uso potencial de ferramentas intelectuais próprias do homem, dos efeitos do mesmo em sua história como espécie e no processo civilizatório que o homem empreendeu. Ferramentas intelectuais que, no caso do homem primitivo, permitiam não apenas o uso de sua inteligência para resolver problemas na adversidade de seu ambiente de vida, mas também a transformar e sofisticar os instrumentos que foi inventando em sua interação com o meio (Cook, 2005; Fonseca, 2007).

De modo semelhante, na sociedade contemporânea, o homem tem utilizado suas ferramentas mentais, sua inteligência, para continuar resolvendo seus problemas de interação com o meio. Contudo, da relação com as forças da natureza que impeliam o homem a resolver problemas de sobrevivência e existência nesse tipo de ambiente, derivamos hoje para outras necessidades de sobrevivência, porém num ambiente diferente em que o nível de ciência e tecnologia alcançado pela inteligência humana forjou: viver numa sociedade em que o mental é, ele próprio, o ambiente a ser dominado. Isso porque se exige atualmente uma quantidade de conhecimento e uma capacidade de simbolização da realidade, sem precedentes. O homem atual tem que utilizar recursos cognitivos não apenas para viver em ambientes de aprendizagem cada vez mais complexos, mas também pensar a alteridade, as contradições e as mudanças de paradigmas no mundo social.

Da pedra lascada para o trabalho com o mundo de significados e símbolos corporificados pela linguagem científica e pelas formas de pensamento e conhecimento necessários para a vida cotidiana tecnológica e instável, tem-se um movimento importante para se pensar a Educação atual.

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Esse quadro tem cada vez mais solicitado formas eficientes de aprendizagem em função da quantidade de conhecimento, de informação e de funções intelectuais que a vida tem demandado das pessoas, atualmente.

Nesse quadro tem se colocado a questão da cognição como um elemento importante de debate sobre as necessidades de aprendizagem dos indivíduos no contexto tecnológico e socioeconômico atual.

Isso nos leva a perguntar: como estão sendo promovidas estratégias de aprendizagem escolar para o contexto atual? Esta questão é difícil, complexa, porém necessária, porque a Escola é uma instituição, como agência formadora, destinada historicamente ou envolvida culturalmente para consolidar a produção de conhecimento desejada pela sociedade, em cada época, inserindo sujeitos para uma ordem social vigente. Contudo, importa que essa inserção social, essa formação, se dê de maneira reflexiva e crítica, de modo a tornar o conhecimento escolar capaz de dar sentido ao mundo e de propiciar elementos significativos para a vida do aluno, de maneira que esse conhecimento seja fundamento para uma visão renovadora de realidade, e também da produção desse conhecimento.

Um conhecimento escolar construído na base da compreensão e da reflexão propicia uma formação crítica que possibilita ao aluno o uso consciente e menos doutrinado do conhecimento para agir de maneira transformadora sobre a realidade.

Assim, a Educação Crítica não é somente aquela que permite uma visão política e de cidadania ativa no contexto social, mas também aquela que promove uma visão significativa de conhecimento escolar (da linguagem científica) para seu uso criativo, imaginativo e transformador na e da realidade (e do próprio conhecimento escolar).

Para desenvolver um ensaio refletindo sobre o que acima colocamos, optamos por considerar a dimensão cognitiva da educação escolar para um conhecimento renovado de mundo e também renovador do próprio indivíduo. Isso porque, competência cognitiva é um fator muito exigido no contexto escolar e essa exigência deve se converter em fundamento para uma formação ou educação mais reflexiva e crítica, para que não ocorra mera adaptação de sujeitos para uma sociedade, mas formação para uma tomada consciente de questões do mundo contemporâneo, para a construção de um conhecimento transformador e de um aluno ativo em seu contexto de vida. Para tanto, tomaremos como base a premissa de que o desenvolvimento do pensamento reflexivo, crítico, deriva de processos cognitivos de memorização e compreensão como elementos básicos na construção de conhecimento escolar; e que essa derivação precisa ser mais estudada pelos educadores de modo a favorecer o desenvolvimento cognitivo na vida escolar e a formação crítica do aluno dos dias de hoje.

Nas teorias cognitivas de aprendizagem, categorizar ou organizar o mundo em conceitos é requisito para o desenvolvimento de raciocínios e abstrações mais complexas sobre objetos, situações e fenômenos (Pozo, 2002, 2005). É também condição para transferências bem sucedidas de aprendizagem e de construção significativa de realidade social (Moretto, 2003; Bransford et al., 2007).

A hipótese que fundamenta esse ensaio é que a Educação Crítica deve ter como base uma aprendizagem que desafia ou desequilibra as formas usuais de pensamento dos alunos, enfocando o uso potencial de recursos cognitivos por derivação de memorização para compreensão e para reflexão. Essa Educação Crítica deve ser vista como uma forte aliada da formação cidadã, da construção de um conhecimento refletido e não somente integrado as formas usuais e esperadas de pensamento e da inserção de um indivíduo ativo e crítico no mundo de questões científicas, tecnológicas e sociais que presenciamos hoje.

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Competência cognitiva

Coll e colaboradores (2003) comentam que a Escola lida muito com conceitos e princípios explicando fatos, e que o tratamento escolar dos fatos ajuda o aluno a entender a realidade como complexa, caótica, porém denominável e compreensível, para, assim, poder agir sobre ela e melhorá-la. Contudo, adotando a perspectiva da epistemológica genética, Fernando Becker (2001: 71) comenta que “conhecer é transformar o objeto e transformar a si mesmo (o processo educacional que não transforma está negando a si mesmo)”. Uma educação que não possibilita tanto a transformação, pelos esquemas de pensamento, dos objetos fonte de conhecimento quanto das próprias formas de pensamento do aluno sobre esses objetos ou sobre a realidade, incorre num processo ensino-aprendizagem de mera transmissão que consiste em:

“ [...] fazer repetir, recitar, aprender, ensinar o que já está pronto, em vez de fazer agir, operar, criar, construir a partir da realidade vivida por alunos e professores, isto é, pela sociedade – a próxima, e aos poucos, as distantes. A educação deve ser um processo de construção de conhecimento ao qual ocorrem, em condição de complementaridade, por um lado, alunos e professores, e por outro, os problemas sociais atuais e o conhecimento já construído.” (Becker, 2001: 73)

Se na Escola for promovida somente uma educação linear e eminentemente preditiva,

sem prestar atenção às formas de expressão do aluno face ao conhecimento e à compreensão da realidade, não serão produzidas situações de aprendizagem que favoreçam tanto o agir, o operar, o criar, quanto a compreensão e reflexão dos problemas sociais; e o questionamento do próprio conhecimento escolar produzido.

Assume destaque, portanto, o desenvolvimento de competências cognitivas escolares capazes de auxiliar os educandos a pensar objetos, situações e fenômenos sociais, assim como as formas científicas de descrição e explicação dos mesmos, em direção a estados cada vez mais complexos de abstração e construção de conhecimento, num viés crítico.

Considerando que conceitos (representações da realidade) estão na base de qualquer atitude de reflexão e pensamento autônomo sobre as questões do mundo do conhecimento escolar (formação acadêmico-conceitual) e da realidade social, é importante considerar que partimos do uso competente de nossos recursos cognitivos para pensar o mundo do conhecimento escolar e da ralidade de maneira renovada.

Para Ramos e Pagotti, 2008: 7):

“[...] competência cognitiva é um dos fatores ressaltados no mundo acadêmico, e implica memorizar, comparar, associar, classificar, interpretar, hipotetizar, julgar, enfim, compreender os fenômenos; o professor, na medida em que prepara os alunos para o mundo acadêmico, deveria estimular essa competência.”

Ramos e Pagotti (2008) mostram que é fundamental na educação o desenvolvimento

escolar apoiado nas características do pensamento operatório. Nesse sentido, de acordo com fundamentos da epistemologia genética:

“[...] a compreensão das contínuas transformações do mundo contemporâneo exige mobilização de estruturas lógicas em arranjos e rearranjos constantes. Assim, para viver – e atuar ativamente – em um mundo em rede, hipertextual, num contexto

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compartilhado, o pensamento operatório é fundamental. Apenas um nível mais elaborado de pensamento possibilita ao indivíduo a compreensão da intertextualidade da própria vida e o torna capaz de, considerando a alteridade, assumir a responsabilidade de tecer a sua rede/história.” (Ramos e Pagotti, 2008: 24)

Nesse sentido, é importante ver e pensar o mundo natural e social – e o conhecimento

escolar contemporâneo – percebendo sua alteridade e intertextualidade, significando-os a partir da confrontação das lógicas e dos discursos que vêm sustentando ou promovendo versões de realidade. Essa significação não prescinde de processos mentais que atuem para ordenar e classificar o mundo do conhecimento escolar e da percepção de realidade que ele contém, porque por eles objetos e fatos serão compreendidos e abstraídos. Se estudados de maneira reflexiva e crítica, as formas e expressões de relação sujeito/mundo poderão ser pensadas sem superficialidade ou doutrinamento intelectual limitador da inteligência, da imaginação e da criatividade.

Portanto, existe uma relação dinâmica entre recursos intelectuais para manipular conceitos e explicar fatos, e a noção operatória de competência cognitiva, cuja ativação por uma educação que concebe o sujeito ativo na construção de conhecimento, é primordial para uma educação reflexiva e crítica. Isso porque, segundo Pozo (2005), o conhecimento diz respeito à capacidade de manipular representações, e que o sistema cognitivo humano possui uma forma caracteristicamente humana de representar o mundo – sendo capaz também de representar as próprias representações – fornecendo aos outros e a si mesmo certa ordem aos eventos do ambiente ou realidade, por meio de descrições representacionais dessa realidade, podendo também ser (as formas de representação) questionadas e reformuladas se preciso for. Conceituar para compreender

Categorizar ou Conceituar são formas de representação da realidade. Nesse caso, conceitos são recursos importantes para proporcionar organização ao mundo. Os conceitos geram modelos mentais ou teorias sobre situações com que nos deparamos, tendo não apenas uma função de identificação e descrição, mas também de adaptação do indivíduo (Pozo, 2002, 2005). Contudo, Piaget adverte que:

“[...] o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito, porquanto estas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nas características preexistentes do objeto, uma vez que elas só são conhecidas graças à mediação necessária dessas estruturas, e que estas, ao enquadrá-las, enriquecem-nas (quando mais não seja para situá-las no conjunto dos possíveis).” (Piaget, 2002: 1)

Assim, para a Epistemologia Genética, o conhecimento diz respeito a uma interação ativa e significativa entre sujeito e objeto de modo que os esquemas de pensamento buscam se apropriar das características percebidas do objeto que, ao mesmo tempo, somente são conhecidas pelo que podem essas formas de pensamento representar do objeto. Sendo assim, construir conhecimento não é simplesmente copiar mentalmente um objeto, mas elaborar internamente as características do mesmo, pensando-o, descobrindo, conceituando-o, assimilando as formas de pensamento por meio de esquemas mentais que são também, por sua vez, passíveis de reformulação ou transformação por essa ação mesma de interação e de construção de conhecimento.

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“O conhecimento não é uma cópia da realidade. Para conhecer um objeto, para conhecer um acontecimento não é simplesmente olhar e fazer uma cópia mental, ou imagem, do mesmo. Para conhecer um objeto é necessário agir sobre ele. Conhecer é modificar, transformar o objeto, e compreender o processo dessa transformação e, consequentemente, compreender o modo como o objeto é construído.” (Becker, 2008: 72)

Na perspectiva da epistemológica genética, essa transformação do sujeito e do objeto

na ação de conhecer, tem elementos psicológicos importantes para o processo de conscientização do mundo.

“Que significa, porém, “conhecimento”? Para Piaget, a palavra não tem o significado que o senso comum lhe empresta. Para ele, o termo “conhecer” tem sentido claro: organizar, estruturar e explicar, porém, a partir do vivido (do experenciado). Aí está um dos pontos fundamentais da teoria piagetiana. Conhecer não é somente explicar; e não é somente viver: conhecer é algo que se dá a partir da vivência (ou seja, da ação sobre o objeto do conhecimento) para que este objeto seja imerso em um sistema de relações. No entender de Piaget, vivência não é sinônimo de conhecimento. Uma pessoa pode passar a vida nas montanhas e desconhecer o relevo da Terra, ignorando, pois, o conceito de “montanha”. (Ramozzi-Chiarottino, 1988: 3)

Ramozzi-Chiarottino (1988) assinala que, para Piaget, não há conhecimentos sem conceitos, mas que o processo de assimilação implica em relação de conceitos gerando significações de mundo para o sujeito. Nessa perspectiva “coisas e fatos adquirem significação para o ser humano quando inseridos em uma estrutura [...] assim, o conhecimento implica sistemas de significação” (Ramozzi-Chiarottino, 1988: 4). No âmbito escolar, o processo acima envolverá situações de aprendizagem que favoreçam assimilação, mas que, preferencialmente, leve a um conseqüente desdobramento de recursos cognitivos do estudante de modo a favorecer a melhoria constante do que Becker (2001: 42) chama de performance assimiladora do mundo.

“O sujeito age sobre o objeto, assimilando-o: essa ação assimiladora transforma o objeto. O objeto, ao ser assimilado, resiste aos instrumentos de assimilação de que o sujeito dispõe no momento. Por isso, o sujeito reage, refazendo esses instrumentos ou construindo novos instrumentos, mais poderosos, com os quais se torna capaz de assimilar, isto é, de transformar objetos cada vez mais complexos. Essas transformações dos instrumentos de assimilação constituem a ação acomodadora.” (Becker, 2001: 70-71)

Assim, o processo de acomodação tem importância crucial nas discussões que

levantamos nesse ensaio em busca de uma visão de Educação Crítica. Na acomodação, o sujeito volta-se para seus próprios esquemas de pensamento para modificá-lo conforme o nível de desequilíbrio cognitivo experimentado. Segundo Wadsworth (1997: 165), a “desequilibração ocorre quando uma experiência ou pensamento revela-se inconsistente com aquilo que os esquemas da criança podem apreender no momento”. Esse processo promove reestruturações contínuas dos esquemas cognitivos permitindo uma auto-regulação do sujeito marcada pela tendência inata de todo indivíduo de buscar o equilíbrio cognitivo, que é a matriz de contínuas reestruturações de esquemas (Piaget, 2002).

No sujeito que já opera os objetos num nível simbólico, os instrumentos de assimilação e acomodação estão na ordem da conceituação dos objetos, mas uma

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conceituação flexível e modificável. Por isso, é importante que a Educação atue sobre formas de assimilação do sujeito em interação com os objetos, mas que invista mais ainda na ação acomodadora do sujeito sobre os objetos (que o sujeito reveja, reformule ou transforme seus esquemas mentais) de sorte que não somente objetos de conhecimento sejam integrados às formas já consolidadas de pensamento do aluno, mas que também as formas de pensamento do indivíduo possam sofrer, nelas mesmas, transformações intelectuais importantes e capazes de constituir novos patamares cognitivos de compreensão da realidade e de apropriação dos objetos fonte de conhecimento.

Portanto, importa provocar ou estimular mudanças dinâmicas de pensamento do indivíduo sobre a realidade, de modo a alterar a estrutura cognitiva do indivíduo a partir de sua ação sobre os objetos. Nesse caso, situações de aprendizagem que exijam construção de hipóteses e abstração ganham importância no processo de aquisição e construção de conhecimento.

Potencializar níveis cognitivos de desempenho do aluno durante um processo ensino-aprendizagem com as premissas acima, parece-nos um fator fundamental para compreendermos os benefícios da competência cognitiva na formação escolar associada a uma educação para uma visão crítica da realidade (e do próprio conhecimento escolar construído). Nesse caso, devem ser promovidas estratégias de aprendizagem que favoreçam derivações cognitivas de memorização para compreensão, e destes para níveis de reflexão e análise crítica de fatos, tendo como centro as formas de pensamento do aluno como ferramentas mentais de ação do sujeito sobre o mundo.

Trataremos a seguir dessa derivação cognitiva para depois abordar possibilidades de uma educação crítica com base nessas derivações, frisando que vemos processos cognitivos como um importante fundamento para uma educação crítica e transformadora. Derivação cognitiva e sua importância no processo ensino-aprendizagem

Bigge (1977) aborda níveis fundamentais de recursos cognitivos no processo ensino/aprendizagem: memorização, compreensão e reflexão. Os objetivos de ensino, as metas de aprendizagem e o modelo de avaliação escolar deverão ter correlação com esses níveis de processos cognitivos, para uma formação escolar que explore todo o potencial desses recursos para a aquisição ou construção de conhecimento, e para uma formação crítica sobre a realidade e sobre esse conhecimento construído.

De acordo com Bigge (1977), o nível memorização, esteve por muito tempo associado ao comportamentalismo que o definiu como capacidade das faculdades mentais para reter conteúdos ou armazenar informações, alimentada por uma lógica educacional de que a modificação do comportamento do aluno em situações de aprendizagem fortalecida pela associação entre um estímulo e uma resposta adequada e devidamente observável ou medida objetivamente, eram os objetivos da instrução. Essa instrução não se importava muito com questões internas (subjetivas) do aprendiz. O conhecimento, desse modo, é visto como resultado de transmissão de forma acabada e pronta de conteúdo de um sujeito que detém o saber para um sujeito que não detém esse saber, como herança da sociedade para seus indivíduos. O tipo de avaliação mais comum que se formou a partir dessas premissas são perguntas objetivas (múltipla escolha, certo ou errado, preenchimento de lacunas, etc) e também dissertação com respostas objetivas que possam ser comparadas ao conhecimento previamente definido.

Esse tipo de educação com base numa transmissão de conhecimentos reforçados por situações específicas de aprendizagem, não condiz com as discussões de formação crítica que defenderemos nesse ensaio. Contudo, toca num importante fator: a memória. Esse recurso de

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certo modo difamado na educação é, ao contrário do que se pode imaginar, fundamental para a manipulação de conceitos, a dinamização da estrutura cognitiva frente a novas informações e, por conseguinte, estratégias significativas de aprendizagem.

De acordo com a Teoria da Aprendizagem Significativa (Moreira e Masini, 1982; Moreira, 2006), uma aprendizagem mecânica é uma “aprendizagem de novas informações com pouca ou nenhuma relação com conceitos existentes na estrutura cognitiva” (Moreira e Masini, 1982: 8), enquanto a aprendizagem significativa tem relação com a estrutura cognitiva de modo que informações novas podem ser assimiladas a conceitos preexistentes, de maneira dinâmica, tornando assim o conhecimento significativo para o aluno. Assim sendo, a memória tem importante papel ativador nesses processos. De acordo com a Teoria da Aprendizagem Signficativa, aprendizagens mecânicas também ocorrem na vida escolar, mas que a aprendizagem significativa deve ter primazia na Educação, porque “a compreensão genuína de um conceito ou proposição implica a posse de significados claros, precisos, diferenciados e transferíveis” (Moreira e Masini, 1982: 15).

Percebe-se, portanto, a importância que o domínio conceitual tem para a noção de compreensão, uma vez que parte-se de conceitos claros, diferenciáveis e transferíveis existentes na estrutura cognitiva para que, interagindo com novos conceitos ou informações, constitua-se nova organização cognitiva e novo patamar de conhecimento conceitual, promovendo compreensão. Desse processo decorre aprendizagem significativa, ou seja, novos assuntos encontram relação com conhecimentos preexistentes no sujeito e que, por isso, tem para ele importância, significado. O domínio de conceitos transferíveis é importante também na promoção de transferência de aprendizagem, ação tão necessária na formação escolar por compreensão.

A memória também é vista de maneira significativa na Epistemologia Genética, que defende uma estreita relação entre memória, aprendizagem e inteligência. Becker (2008: 66-67) comenta que para Piaget, “a inteligência não tem memória; ela é memória. Como a inteligência nasce da ação cujos resultados tendem cada vez mais a se conservar em estruturas, o significado encontra-se no cerne da memória; o significado determina ou, até, define a memória”. Assim, o uso potencial da memória entorno dos significados que ela contêm, e das conexões conceituais preexistentes que ela pode mobilizar na estrutura cognitiva diante de novo conceito ou informação a ser assimilada, é crucial para a promoção da compreensão, que é um recurso cognitivo diretamente relacionado com domínio conceitual e sua aplicação, sinalizando para um tipo primordial de derivação cognitiva: princípios gerais para explicar situações diversas. Essa derivação é uma das bases do ensino que explora o desenvolvimento do nível cognitivo compreensão.

Para Bigge (1977), a compreensão combina dois processos complementares que usam de maneira produtiva idéias gerais a fatos que as sustentem: perceber a relação entre particulares e generalizações; e ver o uso instrumental das coisas.

Esse autor oferece o seguinte exemplo para explicar compreensão:

“[...] suponhamos que um aluno tenha como passatempo a construção de barcos. Constrói modelos de barcos e os opera num lago local. Está empenhado num projeto e necessita saber que parte do barco submergirá quando estiver carregando quatro pessoas, cujo peso médio é de 70 quilos. Para este aluno, o princípio da flutuação e os fatos concretos subjacentes ao mesmo serão de vital importância.” (Bigge, 1977: 320-321)

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O processo ensino-aprendizagem capaz de explorar esse nível deve ser baseado na percepção de assuntos, princípios, relações, conceitos, generalizações, etc. Para Bigge (1977), o ensino ao nível de compreensão fornece aos alunos um conjunto de regras conceituais que auxiliam na resolução de problemas.

A avaliação voltada para esse nível cognitivo deverá verificar o grau de compreensão, reconhecimento e explicação que os alunos podem demonstrar considerando domínio de princípios científicos explicando certos objetos, situações ou fenômenos sociais. Esse nível de processo concebe a aprendizagem como capacidade para explicar fatos comparados a princípios gerais. O objetivo da avaliação nesse sentido será verificar se o aluno explica um objeto ou evento com clareza teórica e domínio de princípios gerais (Bigge, 1977).

Contudo, Bigge (1977) adverte que se o ensino para promover compreensão ficar restrito ao domínio de conceitos como um fim em si mesmo, correrá o risco de ser autoritário e pouco crítico colocando “o aluno como um agente passivo e o professor como um agente ativo. O professor explica, o aluno ouve; o professor estimula, o aluno responde” (Bigge, 1977: 323). Isso pode trazer alguns resultados de aprendizagem, mas não explora o potencial da compreensão naquilo que lhe é mais importante: a qualidade da experiência ativa do sujeito para desenvolver ao máximo seu potencial intelectual.

Essa participação ativa das formas de compreensão do aluno sobre determinado princípio ou generalização para explicar fatos, permite outro tipo de derivação cognitiva: resolução de problemas. Se o ensino por compreensão for bem sucedido, o aluno terá princípios gerais para utilizar nas mais diversas situações-problema. A diversificação de situações-problema provoca exigências cognitivas ao estudante que precisa, então, utilizar-se da compreensão, mas em termos de exame crítico de uma idéia ou tópico de conhecimento à luz de uma situação enigmática ou pouco convencional, de modo que, se preciso for, busque outras novas idéias ou tópicos para enfrentar uma situação-problema e encontrar soluções mais adequadas e mesmo inovadoras.

Esse esquema processual aproxima-se da noção de assimilação e de acomodação sustentado pela Epistemologia Genética, e que nos parece condição para uma elaboração mais complexa tanto das questões desafiadoras que as situações-problema apresentam quanto da própria forma de pensamento do aluno sobre as variáveis dessas situações-problema. Isso exige uma estrutura cognitiva flexível e passível de reformulação de seus próprios esquemas mentais, caso os objetos e fatos estudados solicitem essa reformulação. Um processo ensino-aprendizagem nesses termos pode promover a derivação acima mencionada e favorecer outro nível cognitivo: a reflexão.

O pensamento reflexivo é um nível cognitivo mais elaborado que a compreensão, mesmo que dela se sirva como fonte de princípios gerais utilizáveis em situações-problema, com o diferencial de que esses princípios poderão ser, também, alvo de análise e revisão se apresentaram-se como convencionais demais para resolver um problema não convencional.

Segundo Bigge (1977), um processo de ensino em nível de reflexão,

“[...] exige por parte do aluno uma participação mais ativa, uma atitude mais crítica em relação ao pensamento convencional, mais imaginação e criatividade [...] O ensino em nível de reflexão faz com que a atmosfera da classe seja mais viva e excitante, mais crítica e penetrante e mais aberta a idéias novas ou originais. Além disso, o tipo de investigação levada a cabo por uma classe atuando neste nível tende a ser mais rigoroso e gerar mais trabalho que uma classe atuando no nível de compreensão.”

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De acordo com Bigge (1977), o ensino ao nível da reflexão se dá com o levantamento e a solução de problemas significativos para os alunos:

“O que distingue do ensino e aprendizagem não-reflexivos é a presença de problemas genuínos que os alunos sentem necessidade de resolver. Ao estudar um determinado assunto, origina-se uma questão concreta para a qual os alunos não têm resposta, ou pelo menos não tem uma resposta adequada. Através do estudo, os alunos e o professor, trabalhando cooperativamente, desenvolvem o que para eles é uma solução nova ou mais adequada” (Bigge, 1977: 324)

Em termos piagetianos, importa desequilibrar a estrutura cognitiva do aluno

desafiando suas formas usuais de pensamento sobre determinado fato ou objeto. Nesse desequilíbrio cognitivo instrumentos mentais de acomodação serão mais exigidos, levando os indivíduos a buscarem novas formas conceituais ou esquemas para pensar os objetos e suas próprias ações sobre os objetos (Becker, 2001).

Os tipos de questões utilizadas em avaliações para o nível reflexão são: dissertações centradas em problemas reais ou hipotéticos. Professores e alunos são responsáveis pelo método de avaliação, porque os critérios de avaliação podem ser definidos em comum acordo. Além disso, avaliações baseadas em questões dissertativas centradas em problemas reais ou hipotéticos podem admitir mais de uma resposta certa, porque não existiria uma expectativa única, antecipada, de solução, mas a preocupação com o processo de reflexão sobre determinado problema, sendo a imaginação e a criatividade os recursos mais esperados (Bigge, 1977).

Em todos esses níveis ou recursos cognitivos, um fator importante é a presença de fatos ou problemas a serem examinados. Trazer para a sala de aula fatos ilustrativos para serem vistos pelos alunos como problemas reais, desafiadores, não convencionais, é um componente vital de um processo ensino-aprendizagem que busque desenvolver compreensão e reflexão.

Para isso, os fatos devem ser examinados a partir de princípios gerais, porém criticamente pensados, para evitar o risco de um processo educacional sem o potencial das derivações cognitivas que acima apontamos.

“Em conclusão, deveríamos nos lembrar que, independentemente do nível de aprendizagem adotado, os alunos necessitam de fatos para compreender qualquer coisa. Além disso, necessitam de fatos e compreensões a fim de aprender ao nível de reflexão. Entretanto, os professores não precisam temer que seus alunos aprendam um número insuficiente de dados se o ensino estiver se processando ao nível de compreensão e reflexão. Quando os alunos são ensinados e testados em nível de reflexão, adquirem muitos fatos, e também compreensão; da mesma maneira, quando ensinados e testados ao nível de compreensão, adquirem muita informação relacionada a fatos. Contudo, este processo não opera no sentido inverso: o ensino de fatos pouco contribui para desenvolver a compreensão; e o ensino ao nível da compreensão, sem reflexão, contribui muito pouco para o desenvolvimento de hábitos de reflexão do aluno.” (Bigge, 1977: 361)

Entendemos que na base de uma educação para compreensão e reflexão, estão os componentes mentais próprios da competência cognitiva que Ramos e Pagotti (2008) citam como: memorizar, comparar, associar, classificar, interpretar, hipotetizar, julgar. Esses componentes auxiliam enormemente no ato de compreensão, mas também continuam seus

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efeitos no ato de reflexão, uma vez que vemos o pensamento reflexivo – apesar dele não ser similar ao pensamento por compreensão como advoga Bigge (1977) – como um desdobramento dos resultados do domínio de conceitos. Essas questões são importantes, senão fundamentais, para uma educação crítica. Derivação cognitiva e possibilidades educacionais Vimos que o nível reflexivo vem como desdobramento de domínio conceitual claro, diferenciável e transferível como base para a compreensão de fatos e situações-problemas utilizando-se efetivamente princípios explicativos gerais, porém de maneira crítica com relação aos pensamentos convencionalmente utilizados em situações-problema mais desafiadores cognitivamente. A diferença é que no uso do potencial reflexivo, até mesmo os princípios gerais compreendidos pelo aluno, podem ser reformulados em função dos desafios não convencionais de problemas pouco usuais a serem resolvidos. Se a reflexão tem essa dimensão de revisão e criação, em suas formas de raciocínio sobre as variáveis de um problema ou fato a ser pensado, a atitude crítica decorrerá também desse atributo mental característico da atividade reflexiva. É importante, portanto, que no processo ensino-aprendizagem essa relação entre uso ativo de conceitos preexistentes na estrutura cognitiva, compreensão, reflexão e crítica, seja amparada por desafios cognitivos que solicitem manipulação das próprias representações de realidade e dos princípios gerais que explicam fatos. No entanto, um desafio cognitivo que não ignore o domínio de conceitos como início de todo processo. Nesse caso, é necessário considerar no processo-ensino aprendizagem que são das condições de clareza conceitual, da capacidade dos conceitos serem diferenciados e de ser possível a transferência desses conceitos diferenciados para outras situações, que a compreensão e a reflexão terão sua efetividade prática na vida escolar e na construção de conhecimento. Isso implica em criar ambientes escolares de aprendizagem favorecendo o debate, a educação dialógica, a produção de sentido sobre o conhecimento escolar, a transferência de aprendizagem, a imaginação e a criação de hipóteses variadas sobre o mundo e sobre o próprio conhecimento escolar. É preciso dar espaço para uma construção crítica de conhecimento escolar e de realidade social. Vasco Pedro Moretto comenta que:

“[...] a realidade construída socialmente e a realidade subjetiva têm um caráter dinâmico muito importante que devemos enfatizar. Como os conhecimentos são construídos, institucionalizados e legitimados socialmente para dar sentido às experiências vividas por indivíduos de certa sociedade, pode-se imaginar que novas experiências permitirão a construção de novos conhecimentos, os quais serão instituídos e legitimados pelas novas gerações. É, assim, a dinâmica do processo de produção da realidade social. Um indivíduo ou um grupo de indivíduos de uma certa sociedade podem não aceitar a realidade como foi construída, institucionalizada e legitimada. Podem, então, construir uma nova realidade e tentar institucionalizá-la e legitimá-la. É isso que acontece em todas as revoluções. De tempos em tempos aparecem nas sociedades os “revolucionários”, isto é, pessoas (ou grupos) inconformadas com o que julgam realidades construídas e impostas aos membros de uma sociedade e que beneficiam apenas a alguns privilegiados. Mudar essa realidade e construir outra sempre foi o grande objetivo de todos os revolucionários, tanto no campo da ciência como no campo social. Foi assim que, no século XVI, a astronomia deu um exemplo desse movimento

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de construção social de novas realidades, com a mudança da visão geocêntrica para visão heliocêntrica.” (Moretto, 2003: 20-21)

De nossa parte, dizemos que pequenas “revoluções” nas formas usuais de pensamento dos alunos em sala de aula no modo de abordar problemas ou fatos já é uma educação crítica e transformadora. Se contribuirmos com o próximo, já ajudamos a construir elos significativos e renovados daquele sujeito com o mundo. Essa ação tem seu valor educacional, porque é, para professor e aluno, um movimento crítico interativo dentro do processo ensino-aprendizagem e no cotidiano daquela sala de aula.

Competência cognitiva está no fundamento dessa educação reflexiva e, por derivação, também crítica, e nesse caso, ganham importância as estratégias de aprendizagem e uma concepção de aprendizagem condizente com a promoção do uso ativo e significativo da memória, da exploração da compreensão, do uso livre da reflexão e das possibilidades de renovação com a atividade crítica sobre o conhecimento escolar e as formas institucionalizadas de explicação da realidade social.

Bransford e colaboradores (2007) comentam que o processo ensino-aprendizagem deve ser centrado nas capacidades de entendimento, de compreensão e de transferência de aprendizagem, colocando o aprendiz como sujeito ativo no processo de ensino e os conhecimentos preexistentes no aluno como fomentador do processo de aprendizagem. Esses autores colocam que:

“[...] muitos dados comprovam que a aprendizagem melhora quando os professores dão atenção ao conhecimento e às crenças trazidas pelos alunos para a sala de aula, quando utilizam esse conhecimento como ponto de partida para a nova instrução e quando monitoram as mudanças de concepção dos alunos à medida que a instrução evolui.” (Bransford et al., 2007: 29)

Bransford e colaboradores (2007) frisam que a transferência de aprendizagem é um fator importante para uma aprendizagem criadora e imaginativa, afirmando que essa capacidade de transferir conhecimentos de uma situação para outra implica no nível ou grau de domínio do assunto original, explicando que “sem um nível adequado de aprendizagem inicial, não podemos esperar a transferência. Esse ponto parece evidente, mas é muitas vezes negligenciado” (Bransford et al., 2007: 80). Bransford e colaboradores (2007) assinalam que é importante entender também que “a capacidade de transferência depende do grau em que as pessoas aprendem com compreensão, em vez de meramente memorizar uma série de fatos ou seguir um conjunto fixo de procedimentos” (Bransford et al., 2007: 82). Em termos de processo de ensino, aprender com compreensão para gerar transferência de aprendizagem leva tempo, porque é um processo pedagogicamente denso que requer cuidados no tratamento dos assuntos e dos fatos (investigação) e para que sejam estabelecidas conexões produtivas entre informações e dados transferíveis de uma situação para outra. Entendemos que transferência de aprendizagem é um exercício fundamental para fortalecer níveis de compreensão e ampliar domínio conceitual, mas que desse nível seja promovida uma derivação para a reflexão, de modo a possibilitar análise ou exame do conhecimento que propiciou a transferência de aprendizagem, ao ponto de ser exercitada a atitude crítica. O exemplo que Bransford e colaboradores (2007) apresentam do emprego de “casos contrastantes” pode ser um auxílio pedagógico para a derivação acima solicitada.

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“O entendimento de quando, onde e por que usar o novo conhecimento pode ser ampliado por meio do emprego de “casos contrastantes”, um conceito derivado do campo da aprendizagem perceptiva. Bem organizados, os contrastes podem ajudar as pessoas a perceberem aspectos que antes haviam escapado à sua atenção e a aprenderem quais deles são relevantes ou irrelevantes para determinado conceito. Os benefícios desses casos contrastantes aplicam-se não apenas à aprendizagem perceptiva, mas também à aprendizagem conceitual.” (Bransford et al., 2007: 86)

A transferência de aprendizagem associada a casos contrastantes pode ser um poderoso recurso pedagógico para ampliar a visão de conhecimento utilizado para transferir aprendizagem e para derivar essa visão para reflexão e análise crítica. Nesse sentido, o que a Escola pode fazer é:

“[...] formar os futuros cidadãos para que sejam aprendizes mais flexíveis, eficazes e autônomos, dotando-lhes de estratégias de aprendizagem [...] e estilos motivacionais adequados [...] Enfim, fomentando nesses alunos o desenvolvimento de capacidades transferíveis que, além da aquisição de conhecimentos específicos concretos, mudem sua forma de confrontar-se com as tarefas e com os desafios que os esperam.” (Coll et al., 2003: 47)

Para tanto, é preciso um ambiente em sala de aula que favoreça uma aprendizagem dialógica. Flecha e Tortajada (2000) chamam atenção para o fato de “pessoas que se sentem limitadas em sua bagagem acadêmica tendem a gerar uma autopercepção negativa de partida que as mantêm em uma situação de infravalorização e de impossibilidade de agir, como sujeitos pensantes e atuantes, nos diversos âmbitos da dinâmica social” (Flecha e Tortajada, 2000: 31) e que para modificar essa situação esses autores recomendam uma formação teórica sólida do professor e uma clima de aprendizagem em sala de aula com base em diálogo igualitário (sem relação autoritária entre o professor e o que é necessário aprender), inteligência cultural (engloba inteligência acadêmica e prática e as demais capacidades de linguagem e ação dos seres humanos para a produção de acordos em diferentes âmbitos sociais), transformação (educação e aprendizagem dirigidos para a mudança, para a transformação, e não para a adaptação), dimensão instrumental (que não se contrapõe à dialógica, inclui a parte instrumental intensificada e aprofundada pela crítica), criação de sentido (reação contra lógicas utilitaristas de aprendizagem e realce de aprendizagem que faça sentido para a vida das pessoas), solidariedade (democratização do contexto social e luta contra a exclusão), igualdade de diferenças (reagir contra uma cultura da diferença que mais adapta e exclui do que transforma). É necessário, portanto, reconhecer que buscar qualidade no processo educacional abarcando o desenvolvimento potencial de recursos cognitivos do aluno, implica também análise crítica não só do conhecimento que está sendo construído nas escolas, mas também da própria escola e das manipulações sociais e doutrinárias do conhecimento legitimado e institucionalizado.

A formação escolar do indivíduo para a complexidade do contexto social atual – que não é somente da ordem do conhecimento técnico, mas também de relações humanas – implica no desenvolvimento de competências cognitivas com o fim de se alcançar pensamento crítico sobre as questões e demandas educacionais do mundo contemporâneo.

“As exigências de qualificação para o trabalho aumentaram sensivelmente assim como a necessidade de que as organizações e os trabalhadores mudem para atender às pressões

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competitivas do ambiente de trabalho. A participação consciente no processo democrático também se tornou cada vez mais complexa, à medida que o foco da atenção se deslocou do interesse local para o nacional e o global [...] Mais do que nunca, a magnitude do conhecimento impede que ele seja totalmente coberto pela educação; ajudar os estudantes a desenvolver as ferramentas intelectuais e as estratégias de aprendizagem necessárias para a aquisição de conhecimento, permitindo que possam pensar produtivamente sobre a história, a ciência e a tecnologia, os fenômenos sociais, a matemática e as artes, é uma concepção melhor dos objetivos da educação. O entendimento básico dos temas, inclusive sobre como estruturar e formular questões significativas acerca de diversos tópicos contribui para que o indivíduo tenha uma compreensão mais fundamental a respeito dos princípios de aprendizagem que podem ajudá-lo a se tornar um aprendiz vitalício e independente.” (Bransford et al., 2007: 21)

No entanto, Rodrigues (1998) comenta que, em sua totalidade, a informação e a

produção de conhecimento não são democraticamente distribuídas, socializados ou promovidas na sociedade. É preciso, portanto, construção, no ambiente escolar, de criticidade que permita visão e revisão do conhecimento institucionalizado e da percepção da realidade social, permitindo acesso democrático ao conhecimento e a cultura produzidas na sociedade. Educação crítica A versão de Educação Crítica que adotamos nesse ensaio tem como base a compreensão de que é preciso conhecer os objetos para criticá-los. Esses objetos podem ser tanto a realidade social como explicada, quanto o próprio conhecimento escolar utilizado para explicar o mundo.

Neidson Rodrigues (1998) comenta que:

“[...] é discurso bastante universal dizer que a escola precisa preparar o cidadão crítico. O cidadão crítico não é apenas aquele que é capaz de fazer a crítica da consciência. Ele tem que dominar, necessariamente, o conhecimento daquilo que vai criticar. O cidadão é alguém capaz de distinguir as coisas na sociedade – o verbo grego kritein, de onde vem a palavra CRÍTICA, significa julgar, distinguir, analisar, separar. Ao fazer a crítica, tenho de ser capaz de fazer distinção, julgamento, separação das coisas. Só posso fazer isso se dominar o conhecimento sobre essas coisas, sobre a realidade da qual vou fazer a crítica.” (Rodrigues, 1998: 69-70)

Fazer a crítica da consciência realizando a crítica dos objetos implica em

desenvolvimento de competências cognitivas na escola, porém de maneira ativa, criativa, imaginativa e renovada. Analisamos essa questão em termos da promoção intencional, planejada pedagogicamente, das derivações cognitivas que apontamos nesse trabalho, porém respeitando a capacidade de reflexão e crítica do aluno.

No entanto, Ramos e Pagotti (2008), mencionando pesquisa, atestam que as escolas não estão favorecendo a reflexão na formação do aluno. Ramos e Pagotti (2008: 12) comentam que “a capacidade de refletir parece não ser considerada em todos os níveis de ensino, fato extremamente preocupante, pois o sujeito, não sendo instigado a refletir logicamente, tem também limitada a sua capacidade de crítica e de autonomia”.

Como mencionamos, na perspectiva da Epistemologia Genética, construir conhecimento diz respeito a ação do sujeito sobre o objeto, e nessa ação abstrair e refletir as representações de mundo. Nesse sentido, sem o desenvolvimento de competências cognitivas

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que sirvam de base para o pensamento reflexivo, a construção de criticidade fica prejudicada. O que importa é, por abstração e reflexão, tomar consciência do significado da ação sobre o mundo. Como explica Becker (2001: 57), podem existir “pessoas que durante 20 anos vêem televisão diariamente e não são capazes, por isso, de traçar um perfil crítico deste ‘meio’”. A educação deve promover essa tomada de consciência de ação, de sua própria consciência sobre o mundo. Deve promover compreensão que permita reflexão e postura crítica, para que o conhecimento esteja a serviço da transformação tanto dos sujeitos quanto do mundo.

Isso justifica a promoção de uma educação escolar que viabilize competência cognitiva para o indivíduo agir sobre seu contexto e a complexidade que esse contato evoca, com situações de aprendizagem afinadas com uma concepção de sujeito ativo que permita abarcar esse objetivo de formação escolar e humana. Por isso, a Escola não deve promover uma educação para o desenvolvimento de competências cognitivas para fins de adaptação social meramente, mas também fazê-lo para desenvolver essas competências como suporte intelectual para que o aluno compreenda seu mundo e seu lugar nele, de modo que desenvolva saberes que o auxiliem a fazer parte ativa da história de seu contexto social.

Charlot (2006: 18) comenta que a escola tem um papel amplo e importante nos dias atuais, que é promover a aquisição de “saberes, desenvolver a imaginação, construir referências para entender o que é a vida, o que é o mundo e o que é a convivência com os outros”.

A nosso ver frisamos que, na complexidade tecnológica e existencial da sociedade atual (em suas formas de controle e difusão da informação) corre-se o risco de se requerer compreensão sem necessidade ou urgência por reflexão; mais domínio de conceitos científicos para fins instrumentais numa perspectiva tecnicista do que reflexiva; mais adaptação do que transformação. Saberes para a vida, para a convivência, são aspectos fenomenológicos que precisam ser combinados com competências cognitivas e com estratégias de aprendizagem que favoreçam a formação do sujeito autônomo diante das formas de conhecimento que lhe são exigidas na atualidade, mas, com uma atitude reflexiva e crítica inclusive sobre esse próprio conhecimento produzido.

Nesse mesmo campo de discussão, Moretto (2003) faz a seguinte crítica:

“[...] é preciso lembrar que o modelo planetário do átomo foi abandonado em função dos novos modelos propostos pela física moderna. No entanto, o sistema escolar ainda continua a apresentar aos estudantes esse modelo ultrapassado, como se fosse a realidade da estrutura da matéria. Aqueles que não aceitam esse modelo objetivado e legitimado pela sociedade ‘são reprovados’ por ela. Todo sujeito deve estudar e aprender o que lhes foi ensinado e da forma como foi. As realidades individuais devem coincidir com as realidades sociais, assim o exigem as estruturas sociais dominantes. A quem disser o contrário, chamamos de desajustado.” (Moretto, 2003: 23)

Assim sendo, os saberes para uma participação ativa e crítica na sociedade não devem

estar limitados ou fechados por esquemas de doutrinamento do sujeito, que autorizam um tipo de informação ou conhecimento e desautoriza ou suprime outros. Essa barreira, esse limite do saber, precisa ser rompido pelas práticas educativas na escola, para que uma educação democrática e cidadã seja realmente promovida.

“Atualmente, é impossível democratizar um saber fechado e esotérico por natureza. Mas, a partir daí, não seria possível conceber uma reforma do pensamento que permita enfrentar o extraordinário desafio que nos encerra na seguinte alternativa: ou sofrer o bombardeamento de incontáveis informações que chovem sobre nós, quotidianamente,

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pelos jornais, rádios, televisões; ou, então, entregarmo-nos a doutrinas que só retêm das informações o que as confirma ou o que lhes é inteligível, e refugam como erro ou ilusão tudo o que as desmente ou lhes é incompreensível. É um problema que se coloca não somente ao conhecimento do mundo no dia-a-dia, mas também ao conhecimento de tudo o que é humano e ao próprio conhecimento científico.” (Morin, 2007: 20)

Relacionando com os processos cognitivos que discutimos nesse trabalho, o desafio

para uma educação crítica é fazer com que fatos sociais ou científicos sejam passíveis de análise reflexiva e crítica por parte do aluno; que sejam fatos pensados por uma educação transformadora. Para tanto, é preciso buscar alternativas educacionais que promovam, como aponta Morin (2007), um interdisciplinar identidade significativa do sujeito com seu mundo, pelo conhecimento renovador e transformador. Nesse caso, “a reforma do ensino deve levar à reforma do pensamento, e a reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino” (Morin, 2007: 20). Essa é uma questão que perpassa tanto as formas de conhecimento no mundo contemporâneo quanto as formas de produção escolar desse conhecimento que, em última análise, leva à discussão da própria instituição escolar e seu papel formador. Considerações finais

Um dos problemas da educação contemporânea é desenvolver no aluno o pensamento reflexivo. Para tanto, a derivação da memorização para a compreensão e, por fim, para um estado mais elaborado de pensamento por reflexão, é uma crucial questão pedagógica a ser mais debatida. Isso requer refletir criticamente sobre o modo como o mundo vem sendo significado pela instituição escolar, pelos professores e pelos estudantes.

Nesse sentido, é preciso uma escola que promova, como diz Charlot (2006), referências para o entendimento do mundo, da vida. Mais do que capacidade para explicar fatos ou fenômenos a partir de princípios gerais ou conceitos fundamentais (compreensão), é preciso pensar problemas difíceis que desafiem as formas convencionais de compreensão da realidade, permitindo, pelo debate inquietante, não convencional e gerador de hipótese criadora, o pensamento reflexivo. Contudo, um pensamento reflexivo que forneça elementos para o estabelecimento da crítica e da visão renovada do modo de significar o mundo, a realidade social e o próprio conhecimento escolar.

Para tanto, um fator educacional importante é estabelecer discussão de problemas não como ilustração de uma teoria encaixada num livro texto, mas, partir de problemas relevantes para o aluno, e que o permita ver e analisar a realidade atual de maneira intertextualizada, complexa. Um processo educacional crítico que possibilite fazer com que o aluno progrida em suas competências cognitivas para além do doutrinamento do livro didático quando este não deixa margem para uma revisão do próprio saber que ele contém (ou quando o professor autoriza com uma prática docente acrítica que o livro didático venha a ter essa função no processo ensino-aprendizagem).

Como apontam Ramos e Pagotti (2008), é preciso uma escola que eduque agindo sobre as características do pensamento operatório, de modo que capacidade de interpretação de texto, de abstração, de qualidade de leitura e escrita e de domínio e uso eficiente de conceitos, sejam recursos cognitivos comumente desenvolvidos pela Educação Básica. Esse tipo de educação é a verdadeira base para a Educação Superior.

Entendemos que desde a Educação Infantil, como apontam Antunes (2006) e Kramer e colaboradores (2006), deve ser promovido desenvolvimento de recursos cognitivos associados com apropriação da cultura e da expressão da criança sobre seu mundo, constituindo bases intelectuais e de expressividade para um ensino fundamental e médio mais reflexivo e crítico.

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Nesse caso, é importante uma educação ativa concebida para sujeitos ativos na construção de conhecimentos e na apropriação de sua cultura. Recursos cognitivos como memorizar, comparar, associar, classificar, interpretar, hipotetizar, julgar, etc, combinados com os níveis cognitivos compreensão e reflexão (e suas derivações), permitem visualizar estratégias de aprendizagem que possibilitem essa educação ativa e crítica.

Sabemos que a dimensão cognitiva não atua sozinha na formação escolar, e muito menos na construção da criticidade. Interesse, valores, princípios morais, atitudes, etc, permeiam todo processo de construção de conhecimento. Como mostra a Epistemologia Genética, porque me interesso ativo minhas condições cognitivas para conhecer. Assim sendo, a dimensão afetiva também deve ser considerada como impulsionadora de uma vontade de conhecer e compreender melhor o mundo vivenciado.

Como base institucional desse processo, é preciso reconhecer que uma educação crítica começa numa escola crítica que assume, inicialmente, a si própria como objeto de reflexão para a mudança, e para se perceber como agência transformadora – e não simplesmente adaptadora – na sociedade atual. Uma escola dialógica em suas formas de ensinar e de discutir e pensar o mundo, de modo que o conhecimento produzido no contexto escolar favoreça o pensamento livre, criador, renovador, e não o contrário.

Para isso, é preciso também uma formação docente que inclua o domínio teórico de processos cognitivos (suas características e possibilidades) para o exercício da docência, uma instituição escolar que socialize democraticamente o conhecimento e um currículo aberto a temas transversais que integrem saberes diversos sobre problemas inquietantes do contexto atual.

Para sustentar a qualidade desse processo educacional, é necessário considerarmos com atenção com que conceito de mundo, sujeito, conhecimento, escola e sociedade a Educação atual tem promovido estratégias de aprendizagem; e com que doutrinação social o conhecimento tem sido produzido nas escolas.

O desenvolvimento de competências cognitivas (memorizar, comparar, associar, classificar, interpretar, hipotetizar, julgar) é um fator fundamental na construção de uma educação crítica, porque é necessário conhecer o objeto a ser criticado. Nesse processo educacional, é igualmente importante uma concepção de construção de conhecimento que inclua transformação tanto do objeto em estudo quanto das formas de se pensar esse objeto, o que exige uma concepção de aluno como sujeito ativo num mundo atual de alteridade e intertextualidade a ser desfiado em suas tramas. Referências bibliográficas Antunes, C. (2006). Educação infantil: necessidade imprescindível. Petrópolis, RJ: Vozes. Becker, F. (2001). Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artes Médicas. Becker, F. (2008). Aprendizagem: concepções contraditórias. Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas, UNESP/Marília, 1 (1), 53-73. Retirado em 02/09/2008, de world wide web: http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/ Scheme/Vol01Num01-Artigo02.pdf. Bigge, M.L. (1977). Teorias da aprendizagem para professores (Pontes Neto, J.A.S. e Rolfini, M.A., Trad.). São Paulo: EPU/EDUSP. Blainey, G. (2008). Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional. Bransford, J.D.; Brown. A.L.; e Cocking, R.R. (orgs). (2007). Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola (Szlak, C D., Trad.). São Paulo: Editora Senac.

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- R. O. Nascimento é Psicólogo (pontifícia universidade Católica – Minas Gerais) e Mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais). Atua como Professor Assistente no Instituto de Psicologia (UFU), com ênfase em Psicologia do Ensino. E-mail para correspondência: [email protected].

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Modelos organizadores, sujeito e educação: considerações a partir do pensamento complexo

Organizer models, subject and education: considerations about de complex thinking

Leonardo Lemos-de-Souza

Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),

Campus de Rondonópolis, Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil

Resumo O presente ensaio parte do pressuposto que a educação deve reconsiderar as concepções tradicionais de sujeito do conhecimento (exclusivamente universal) pelas quais tem pautado suas práticas. Nesse sentido, apresentamos articulações possíveis entre a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento e o Paradigma da Complexidade para explicitar uma concepção de sujeito do conhecimento que leve em conta singularidades e universalidades na sua construção. O conceito de modelo organizador do pensamento avança na investigação da cognição, enquanto campo da resolução de problemas e conflitos, quando pretende aproximar-se da complexidade do sujeito psicológico. Com essas considerações, busca-se abrir frentes de discussão sobre a superação de uma educação escolar que se baseia numa cognição reduzida e, do mesmo modo, de um sujeito fragmentado. Estes questionamentos apontam para a necessidade da educação escolar, no mundo contemporâneo, tomar para si o cotidiano e a diversidade como dimensões necessárias na construção do conhecimento. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 283-295. Palavras-chave: modelos organizadores; complexidade; educação.

Abstract The present essay assumes that education should reconsider its traditional concepts concerning the subject of knowledge (exclusively universal), through which it has guided its practices. In that sense, we hereby introduce possible articulations between the Theory of Organizing Models of Thought and the Paradigm of Complexity to explicate a concept of the subject of knowledge that considers singularities and universalities in its construction. The concept of organizing model of thought advances in the investigation of cognition, as a field of resolution of problems and conflicts, when it intends to approach the complexity of the psychological subject. With such considerations made, we seek to open discussion fronts about the overrun of a school education based on reduced cognition, and, similarly, of a fragmented subject. These questionings point out to the need of school education, in the contemporary world, to take over daily life and diversity as necessary dimensions in knowledge construction. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 283-295. Keywords: organizer models; complexity; education.

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Ensaio

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Introdução A educação escolar necessita rever seu papel na contemporaneidade. Sua finalidade

tradicional de ser um espaço exclusivo de informação não atende ao sujeito concreto que ela recebe, nem às demandas de transformação da realidade do cotidiano e da vida social.

Sabemos que o processo de escolarização não dá conta de transformar a realidade por si só (Saviani, 1995, 2003; Althusser, 2007; Gramsci, 2000). A nossa posição neste ensaio é de que ela, no entanto, pode cumprir uma parte relevante nessa transformação, desde que assuma uma finalidade que leve em consideração, ao mesmo tempo, as singularidades e universalidades acerca do sujeito do conhecimento.

Pretende-se neste ensaio tecer algumas considerações sobre contribuições da Psicologia e da Epistemologia da Complexidade à Educação. Parte-se das possíveis articulações entre a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento e o Paradigma da Complexidade, e suas implicações para se pensar a educação contemporânea.

Num primeiro momento apontamos novos paradigmas para se pensar o sujeito e a educação. Aqui, a epistemologia da complexidade proposta por Morin é nosso ponto de partida para pensar o sujeito e a educação na contemporaneidade.

A Teoria dos Modelos Organizadores é apresentada posteriormente como uma ferramenta teórico-metodológica de análise do funcionamento psicológico do sujeito que pensa/sente/age diante da realidade. Consideraremos que a idéia de modelo organizador traz subjacente uma idéia de sujeito (afetivo, cognitivo, biológico, social/cultural) que é complexo.

Por fim, pensar a educação a partir da complexidade exige mudanças na forma de se efetiva-la. De acordo com autores como Najmanovich (2001), Araújo (2003a, 2003b) e Arantes (2003), não há mais espaço somente para os princípios de disjunção, redução e abstração, veiculados pela ciência clássica, os quais fragmentam e isolam o conhecimento, transformando o espaço educativo num lugar exclusivamente de instrução e não, também, de informação. As idéias de transversalidade na educação e a de problematização da diversidade do/no cotidiano serão abordadas como proposições para a ampliação das relações entre Educação e Psicologia calcada na idéia de sujeito complexo. Sujeito psicológico, conhecimento e complexidade: dos determinismos à organização

“Ser sujeito é ser autônomo, sendo ao mesmo tempo dependente. É ser provisório, vacilante, inseguro, é ser quase tudo por si e quase nada pelo universo.” (Morin, 2001: 96)

As ciências, historicamente, têm se esforçado por construir referências para a

explicação do mundo físico e social. Morin é um autor que vem se debruçando em repensar o rumo das ciências, introduzindo um conceito que sempre esteve presente na produção do conhecimento, mas sempre fora rechaçado: a complexidade.

De acordo com Morin (2000, 2001), a ciência clássica opera com os conceitos de disjunção, redução e abstração para explicar o funcionamento do mundo físico e social. A disjunção refere-se às tentativas de separar, cindir as interações e relações possíveis entre eventos e fenômenos. O pensamento reducionista produz explicações a partir de uma só via, isto é, estudar um evento, fenômeno ou sistema parcialmente, explicando-o pela unificação do que é disperso. A via da abstração promove o expurgo da realidade concreta e somente valoriza conceitos, que são ferramentas parciais e imprecisas para fazer-se uma leitura do homem, do mundo em que vive, ou, ainda, das relações entre ambos.

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Com esses conceitos, a produção de conhecimento isola-se de toda desordem e dá espaço apenas à ordem. Para Morin (2001: 86), “o paradigma da simplicidade é um paradigma que põe ordem no universo e expulsa dele a desordem. A ordem reduz-se a uma lei, a um princípio”.

O paradigma da simplicidade, porém, não é mais suficiente para se conhecer o universo. Segundo Morin, os movimentos de mudança não estão apenas nos desenvolvimentos científicos. Os avanços da ciência (notadamente da Física) levam inevitavelmente para a direção e aceitação do trabalho com o complexo.

A vida concreta também oferece elementos, via produção literária – como o romance – para repensar o paradigma da simplicidade vigente. É assim que autores como Dickens, Balzac, Dostoieviski, citados por Morin, buscam exprimir, em suas obras, as singularidades e diversidades de sujeitos e do mundo, apresentando-nos a vida complexa.

Contudo, a palavra complexidade tem sido ligada a sentidos como dificuldade e impossibilidade de compreensão, o que evoca o vazio diante da amplitude de conexões no conhecimento. O propósito de Morin é trazer um outro sentido ao termo complexo:

“O complexo é o não-reduzível, o não-totalmente unificável, o não totalmente diversificável [...] O complexo é aquilo que é tecido simultaneamente, aí subentendidos ordem/desordem, um/múltiplo, todo/partes, objeto/meio ambiente, objeto/sujeito, claro/escuro... Tudo é complexo: a realidade física, a lógica, a vida, o ser humano, a sociedade, a biosfera, a era planetária [...]” (Morin, 2000: 133)

A complexidade é compreendida pela quantidade de interações possíveis num/entre

um conjunto de sistemas. Morin menciona a imagem de um circuito (tetrálogo) proposto por aquilo que ele chama de grande jogo. Como em todo jogo, existem as peças (elementos), as regras do jogo (imposições e princípios de ação e interação), o acaso e as distribuições dos encontros.

Há neste circuito tetralógico conceitos e relações não excludentes entre os seus componentes. Deste modo, é nas interações e encontros que a desordem está presente (como turbulência, agitação, desigualdade). Da mesma forma que a organização e ordem não podem ser concebidas sem as interações e sistemas, nenhum corpo ou objeto pode ser definido ou concebido fora do jogo das interações e reencontros. Este circuito ou grande jogo é entendido por Morin como um macroconceito - um recurso elaborado pelo autor para se pensar a complexidade do real.

O que ele denomina de macroconceito é algo além do conceito. Este delimita e encerra fronteiras, enquanto o primeiro define-se pela “constelação e solidariedade de conceitos” (Morin, 2001: 106), portanto não há fronteiras nítidas nessas relações. Um exemplo dado por ele é o da amizade e do amor. O que eles são? Há amizades amorosas, há amores amigáveis. Assim, as fronteiras são ínfimas, vagas.

Nos três princípios propostos para pensar a complexidade, Morin deixa clara a existência de certa porosidade entre os conceitos. O princípio Dialógico (conjunção) refere-se à simultaneidade de presença e ausência, complementaridade e antagonismo – o caso da ordem e da desordem. No princípio de Recursão organizacional ou auto-organização (implicação) os produtos e efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os produziu. O princípio Hologramático (distinção) traz a idéia de que a parte está no todo e o todo está nas partes. Num holograma uma pequena parte contém a quase-totalidade da imagem. Uma idéia válida tanto para o mundo físico quanto para o social.

Desse modo, a complexidade apresenta-se como um desafio, não uma solução. Desafio na elaboração de um método que a contemple, a partir de princípios dados como

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fontes para novas descobertas e visões sobre o mundo e a vida. Morin chega a falar de um a-método e, na introdução de sua obra O método I – a natureza da natureza (2003), coloca:

“É preciso começar pela extinção das falsas transparências. Não do claro e do distinto, mas do que é obscuro e do que é incerto; não mais do conhecimento assegurado, mas da crítica da certeza [...] a dúvida através da qual o sujeito se interroga sobre as condições de emergência e de existência de seu próprio pensamento constitui, a partir de agora, um pensamento potencialmente relativista, relacionista e autoconhecedor [...] Se no início não dispomos de um método, pelo menos podemos dispor do antimétodo, pelo qual ignorância, incerteza, confusão tornam-se virtudes.” (Morin, 2003: 29)

Tal desafio de articular num só pensamento o múltiplo e o uno, a ordem e a desordem

é um dos grandes desafios das ciências, principalmente quando elas buscam explicações sobre o funcionamento do sujeito.

Como podemos pensar então o sujeito pela via da complexidade? É preciso considerar inicialmente que pensar sobre o sujeito pela via da complexidade

é analisar o princípio de incerteza. Se o sujeito é referido a partir da ciência clássica, do simples, ele é um sujeito marcado pelos determinismos físicos, biológicos, sociológicos, culturais, psicológicos. Aqui a noção de indivíduo/sujeito1 ganha um contorno, pois ela reflete estas determinações.

No entanto, Morin (1996) refere-se ao sujeito como uma qualidade própria do ser vivo que não pode ser reduzida a nenhum determinismo (biológico, social etc.). Ele compreende “um entrelaçamento de múltiplos componentes [sistemas]” (1996: 52). Assim, sem reduzir o sujeito a um só aspecto, temos como componentes do sujeito, por exemplo, o sistema neurocerebral, que se articula com os comportamentos e o conhecimento, organizando o sujeito na sua singularidade e universalidade. A linguagem, ao mesmo tempo, como instrumento de objetivação e de singularização, torna o acesso à consciência de si e o ser consciente possível. Tais aspectos são produtos das interações e necessidades históricas do ser humano para viver no mundo, consigo mesmo e entre os outros.

Na Psicologia é comum a redução do sujeito a um único princípio ou aspecto. Ora ele é referendado na razão, ora nos afetos, ora no social e cultural, ora nas mudanças anatômicas e funcionais do sistema nervoso central.

Concordamos com Araújo (1999) que devem ser buscados novos modelos de entendimento do psiquismo humano e entendemos que o estudo do pensamento complexo nos oferece algumas ferramentas teóricas para pensar o sujeito psicológico. Este autor vem trabalhando num modelo que parte da idéia de complexidade para explicar o sujeito psicológico.

A idéia básica do autor é propor uma visualização do psiquismo humano multideterminado e construído num conjunto de interações entre diversos componentes da vida e da natureza humana. A composição desse psiquismo inclui a dimensão consciente e não-consciente do funcionamento psíquico. Na dimensão consciente, atuam os seguintes sistemas: cognitivo, afetivo, biológico e sociocultural. Eles interagem e dialogam entre si e, simultaneamente, com o universo de relações com o meio físico, interpessoal e sociocultural. Araújo ressalta que este modelo não pretende dar conta de tudo nem muito menos reduzir o sujeito a um conjunto de partes, mas consiste numa tentativa de aproximação da complexidade no funcionamento psíquico.

Araújo propõe olharmos para o sujeito psicológico em suas múltiplas relações com outras dimensões. No caso da afetividade (Araújo, 2003a), exemplificado pelo próprio autor, remete-se a um conjunto de reações neuroquímicas que são também induzidas por situações

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sociais definidas por uma cultura, cujos conteúdos podem desencadear determinadas emoções.

Para esclarecer o funcionamento psicológico, é possível recorrer à idéia de macroconceito. Ele se realiza a partir das interações e encontros viabilizados pela relação ordem/desordem (permanências, regularidades, agitações e turbulências). Pensamos que tal relação ordem/desordem está vinculada a todos os aspectos do mundo vivo e físico (físico, biológico, antropossocial); assim, a idéia de solidariedade entre conceitos é fundamental para poder se aceitar a complexidade.

Nessa perspectiva, uma idéia fundamental do pensamento complexo deve ser mencionada e discutida: a organização.

A vida, a sociedade, tudo o que nos cerca é organização. A idéia de organização é explorada por Morin no lugar da idéia de adaptação, pois a organização é o núcleo central da physis, que é o universo físico (comum à vida e ao homem – do átomo à estrela, da bactéria à sociedade humana) concebido como lugar próprio de criação e organização (Morin, 2003).

Não estamos sugerindo um conceito de organização como algo estável e estático como a estrutura (Morin, 2003: 132), mas sim um conceito de organização a partir da noção de unitas multiplex, ou unidade complexa organizada. Pensar o sujeito como uma unidade complexa organizada [ressaltamos aqui ainda o adjetivo ativa] é associar a idéia de unidade/diversidade, originalidade/não-originalidade, global/elementar2.

Assim, o sujeito não é reduzível às partes e nem ao todo. Nas palavras de Morin,

“A idéia de unidade complexa adquire densidade se pressentimos que não podemos reduzir nem o todo às partes, nem as partes ao todo, nem o um ao múltiplo, nem o múltiplo ao um, mas que precisamos tentar conceber em conjunto, de modo complementar e antagônico, as noções de todo e de partes, de um e de diversos.” (Morin, 2003: 135)

A noção de sujeito, então, articula incertezas e certezas, o único e o múltiplo. O sujeito

é homo sapiens/demens/ludens/faber (Morin, 2005). No pensamento racional do sujeito, a lógica formal está presente e ausente, assim como o pensamento mitológico, mágico e simbólico.

Esse sujeito produz e é produzido no jogo de interações e de encontros. Na educação esse sujeito não deve ser pensado somente pela via do racional, do empírico e do lógico, nem somente pela via do afeto, do sensível e do físico. Neste sentido, teorias/métodos que buscam articular o sujeito como organização (unitas multiplex) articulam-se com o projeto de Morin sobre a necessidade de uma epistemologia da complexidade. Modelos organizadores do pensamento: complexidade e funcionamento psicológico

“Poderemos suportar a angústia de inacabamento de nossas vidas e de incertezas do destino humano? Poderemos aceitar ser abandonados pelos deuses? Poderemos abandoná-los?” (Morin, 2005: 295)

O sujeito psicológico, compreendido pela via da complexidade, remete à idéia de um

sujeito como unidade complexa organizada – gerador/produtor/produzido pelas interações e encontros (acasos, turbulências, ações) num universo de relações.

A investigação do sujeito psicológico deve então abarcar a unidade e a multiplicidade das ações, dos sentimentos, dos pensamentos, das crenças, dos valores, enfim, das produções humanas que acontecem nas relações do sujeito consigo mesmo e com o mundo.

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A formulação da Teoria dos Modelos Organizadores considera a complexidade dos fenômenos existentes, como aqueles presentes no funcionamento psicológico. Ela abre-se para a investigação do funcionamento psicológico não só do ponto de vista da cognição, mas das dimensões afetivas e socioculturais.

Estamos cientes de que o processo de construção de conhecimentos pode valer-se da disjunção e hierarquização de elementos do fenômeno que se pretende conhecer. Contudo, não se deve ignorar a presença de outros elementos que compõem esse fenômeno, mas sim procurar integrar todos os componentes e variáveis para tentar conhecê-lo. Esta é a raiz do esforço proposto por Morin no sentido de aceitar a complexidade.

Isso não quer dizer que o conhecimento sobre o fenômeno (ou a “realidade”) será uma cópia exata do mesmo. Considerar a complexidade no processo de construção do conhecimento é tentar se aproximar dela, embora o conhecimento resultante seja sempre uma reconstrução e uma abstração da “realidade”, portanto uma interpretação.

As explicações científicas baseadas na complexidade consistem em uma das intenções da proposta da Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento. O funcionamento psicológico foi estudado quase que exclusivamente pela via da regularidade e da simplicidade, sendo considerado como verdade e como natural. Todavia, como sugere Moreno Marimón e colaboradores.:

“Em psicologia, o descobrimento de constantes é o que permite abordar o estudo da diversidade, que adquire um sentido precisamente graças à sua referência a tais constantes. Uma vez descrita a regularidade, o pensamento volta-se para a diversidade; o imutável deixa de ser o centro de nossos interesses e buscamos as explicações na mudança. A idéia de mudança penetra também a psicologia quando começa a observar o ser humano como um ser que evolui. Mas em toda mudança há algo que permanece, e a conjunção da permanência e da mudança aumenta a complexidade dos novos fenômenos que se vislumbram, surgindo a necessidade de modelos capazes de descrever e interpretar simultaneamente o que permanece e o que muda, isto é, capazes de dar conta da complexidade.” (Moreno Marimón et al., 1999: 16-17)

Na Psicologia, é comum o recurso às dicotomias, aos reducionismos e às explicações

deterministas baseadas em modelos tradicionais de mudança (modelo organicista) como a Psicanálise e a teoria de Jean Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo. As relações lineares e causais estabelecidas para explicar a mudança e os saltos qualitativos do desenvolvimento conferem uma importância ao passado do sujeito, que define sua história presente e futura. Lewis (1999), que faz a crítica a esses modelos, sugere também a necessidade de teorias que busquem a complexidade dos fenômenos envolvidos na mudança.

Moreno Marimón e colaboradores (1999) anunciam a necessidade da elaboração de uma teoria funcional que rompa com a linearidade e determinismo, abrangendo as variações no pensamento do sujeito e a mudança constituída na complexidade dos procedimentos que a mente humana utiliza para construir e se apropriar do conhecimento.

Essa complexidade da mente em interpretar o real busca a integração dos diversos aspectos que compõem essa realidade, especialmente a presença de recursos operatórios e da representação na construção do conhecimento.

A Teoria dos Modelos Organizadores permite a visualização do papel de estrutura e conteúdos no modo como o sujeito pensa a realidade, já que apenas os recursos operatórios não são suficientes para explicar o funcionamento psicológico na realidade concreta (como o moral, por exemplo). Ela procura investigar desde conhecimentos mais simples, como a

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representação da propriedade de um grupo de objetos de que o sujeito se apropria, até os que exigem maior complexidade − algumas teorias científicas.

Prosseguimos considerando a idéia de modelo organizador como articulador da regularidade e da diversidade.

Fundamentando-se nas proposições de Moreno Marimón e colaboradores (1999), um modelo organizador pode ser descrito a partir de algumas idéias básicas: a) são modelos de “realidade” e b) são construídos pelo sujeito no processo de apropriação do conhecimento.

Para Moreno Marimón e colaboradores (1999) são modelos de “realidade” porque são produto da representação da realidade de fato elaborada pelo sujeito. Todavia, é necessário ressaltar a diferença que as autoras fazem entre realidade objetiva e subjetiva. A primeira é aquela que serve de referência aos modelos organizadores. A segunda é o que o sujeito compreende da primeira3.

Afirmamos aqui uma posição sobre os modelos coerente com a proposta da idéia de complexidade. O conceito de realidade não se refere a uma Verdade nem a uma produção externa ao sujeito. Entendemos que, atualmente, a formulação da Teoria dos Modelos Organizadores não pode deixar de considerar o real como dado objetivo, no sentido de uma construção com referências no coletivo. O construtivismo, subjacente à Teoria, defende um realismo crítico, no sentido popperiano, e recusa um realismo objetivista (Castañon, 2005).

Desta maneira, o que se denomina “realidade” na elaboração de um modelo organizador não se remete a uma relação linear e dicotômica. Queremos dizer que um modelo organizador não é uma produção exclusiva do sujeito, mas da relação/interação desse sujeito com o contexto em que vive.

A “realidade” atravessa sujeito e contexto. É pessoal, individual e ao mesmo tempo social e coletiva; não é estática e nem imutável, mas sim dinâmica. Essa dinâmica de transformação se dá no jogo do universo de relações (por exemplo, no modelo proposto por Araújo, 1999). Entendemos que a realidade objetiva no modelo organizador é produzida e transformada pelo sujeito e que a realidade subjetiva é também transformada pela dinâmica do contexto. Um modelo organizador é então produzido na relação dialógica entre “realidade” objetiva e subjetiva.

Como construção do sujeito no processo de apropriação do conhecimento é preciso explicitar essa dinâmica da elaboração de modelos. O sujeito − ativo nessa produção − abstrai os elementos de uma situação concreta, atribui significado a eles e estabelece implicações na relação entre elementos e significados, elaborando um modelo organizador para explicar a situação enfrentada. Assim, pode-se definir um modelo organizador como

“O conjunto de representações que o sujeito realiza a partir de uma situação determinada, constituído pelos elementos que abstrai e retém como significativos entre todos os possíveis, aqueles que imagina ou infere como necessários, os significados e as implicações que lhes atribui, e as relações que estabelece entre todos eles. Os modelos organizadores do pensamento constituem aquilo que é tido por cada sujeito como a realidade, a partir da qual elabora pautas de conduta, explicações ou teorias.” (apud Arantes, 2000: 1424)

Os resultados das interpretações que o sujeito realiza dos fatos ou dos objetos

perceptíveis são os elementos de um modelo organizador. Esses elementos são produtos de uma atividade interpretativa realizada pelo próprio sujeito sobre a realidade, que tem sua origem: a) nas abstrações dos observáveis; b) nas inferências sobre a situação com a qual se depara ou, ainda, c) na invenção de outros elementos, em função da necessidade de compreensão da situação observada (Moreno Marimón et al., 1999).

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A abstração5 sempre vem seguida de interpretação. Geralmente julgamos que o processo de abstração de um elemento é simples, por realizarmos essa atividade cotidianamente sem nos determos no caminho percorrido para chegarmos à eleição de um elemento. Num primeiro momento, percebemos o objeto, ou uma situação, de maneira sincrética, isto é, indissociada do todo que o compõe. Fazemos então um processo de análise, decompondo, separando as suas propriedades. A constatação de que esse processo não é simples no adulto foi demonstrada pelas investigações empreendidas acerca dos procedimentos utilizados pelas crianças na resolução de problemas que lhes colocam (Moreno Marimón et al.,1999).

O contexto de experiência6 do sujeito é fundamental na realização do processo de retenção de elementos de uma situação observada. Não são todos os elementos possíveis a respeito da situação que são eleitos; somente aqueles que têm sentido ou aos quais são atribuídos significados em função da própria experiência do sujeito em outros momentos. Isto também não quer dizer que o sujeito desconheça os outros elementos da situação, mas somente que estes não são considerados como representativos dela. Os elementos que não existem na realidade (produto de inferências e de invenções) têm a mesma qualidade e relevância dos considerados “reais”, pois são parte da realidade do sujeito. Contudo, as possibilidades de interpretação não são infinitas, pois têm que estar em sintonia com a “realidade” objetiva. A dimensão do significado dos modelos organizadores tem um caráter afetivo-cognitivo explícito, já que só se atribui significado àquilo para o que se atribui um interesse ou valor.

O processo de abstração de um elemento traz consigo a sua significação, definindo a sua função dentro do modelo organizador (Moreno Marimón et al., 1999). Serve de base, então, para a explicação das situações enfrentadas. Observe-se, porém, que

“Os modelos organizadores não cumprem só a função de servir de base para a explicação de alguns fatos; servem também de ponto de partida para a ação, já que esta não tem como base a realidade, mas o que cada um acredita que é a realidade; dessa forma, nossas convicções guiam nossos atos mais que os fatos objetivos, o que equivale a dizer que construímos modelos da realidade.” (Moreno Marimón et al., 1999: 91)

Como modelos de uma realidade representada, os modelos organizadores servem de

explicação para ações. A “realidade” subjetiva é expressa pelos modelos organizadores, que são a base para as explicações e ações do sujeito diante dos fenômenos e dos problemas que enfrenta no cotidiano.

Tais situações podem se repetir ao longo da vida, mas o sujeito pode fazer variar os dados abstraídos e, conseqüentemente, os significados e as implicações atribuídas a eles. As implicações e/ou relações entre significados e elementos são conseqüências de um processo organizador. Elas remetem-se à função do modelo elaborado que tem potencial de explicação, ordenação e resolução da situação enfrentada pelo sujeito. Deste modo, as implicações são fonte de ações e retratam o modelo e sua complexidade, pois indicam a regularidade e a diversidade presentes no modelo de realidade elaborado pelo sujeito.

Assim, são duas diferentes perspectivas sobre as relações da Teoria dos Modelos Organizadores com o pensamento complexo. Na primeira, a formulação dessa teoria postula o esforço de ampliar a análise sobre o funcionamento psicológico no processo de construção do conhecimento pelo sujeito. Esforço, aqui, refere-se a abarcar a complexidade envolvida nesse processo. Na segunda, o modelo organizador é um macroconceito no sentido dado por Morin, que se configura a partir da solidariedade entre conceitos (elementos, significados e implicações/relações) e teorias para explicar a organização da atividade interpretativa do real.

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Quando se considera o sujeito psicológico e a complexidade que envolve as decisões morais, por exemplo, o aspecto funcional dos modelos organizadores permite uma análise mais próxima dessa complexidade, que envolve a afetividade, as relações e objetos/representações socioculturais no contexto. Desta forma, é o sujeito concreto, e não um sujeito abstrato e fragmentado, que é possível investigar a partir da Teoria dos Modelos Organizadores.

Tais modelos mudam diante das situações encontradas, rechaçando alguns e construindo outros. Essa transformação ocorre no sujeito durante as interações que estabelece, nas quais são desencadeados processos adaptativos/criativos/organizativos da atividade psíquica que buscam incorporar a realidade objetiva à do próprio sujeito. Vale lembrar que nesta perspectiva

“[...] as ações de um indivíduo são conduzidas, não por uma tentativa de adaptação à realidade objetiva, mas pelo que cada um acredita que esta é, ou seja, a sua realidade subjetiva, organizada pelos modelos que constrói a partir da realidade objetiva. Para cada um só é verdade aquilo em que acredita e só é possível aquilo que é capaz de imaginar.” (Moreno Marimón et al., 1999: 370)

Essa característica dos modelos pode ser exemplificada pelas diferentes explicações

sobre um mesmo fato ou objeto. Assim, a idéia de modelo organizador oferece a possibilidade de ao mesmo tempo observar a diversidade dos modelos de realidade e a regularidade entre os modelos de realidade.

Um modelo dá condições à construção de outros. O conhecimento anterior construído pelo sujeito, ocasionado pela sua experiência num universo de relações, pode enriquecer o modelo posterior e possibilita o surgimento de um novo que sustente a complexidade do objeto ou situação a ser explicada, mesmo que provisoriamente. Essa continuidade, na construção de um modelo, tem um papel importante na contigüidade entre as propriedades que se apresentam entre um modelo novo e um velho.

A cada novo modelo se tem uma ampliação do que é “real” para cada pessoa. A analogia entre modelos é uma forma econômica de o sujeito se apropriar da realidade; num primeiro momento ele tende a aplicar aqueles que já são conhecidos e que apresentam algumas similaridades. Na analogia existe o reconhecimento das formas de um modelo, as suas interações com outros e suas diferenças em relação a outros.

O caráter organizativo do modelo também se refere à construção de novidades, à produção de sentidos novos para a “realidade”. No momento inicial, o sujeito se vale de analogias, isto é, assimila o objeto ou a situação através do seu repertório de modelos anteriores, comparando e reconhecendo as semelhanças e as diferenças. Mas as analogias não dão conta de novos elementos que se apresentam na realidade. Um modelo velho pode não explicar os elementos novos, como acontece com as teorias científicas. Um novo elemento é considerado anomalia dentro de uma teoria explicativa e base de um novo modelo, que deverá ser construído para explicá-lo.

As mudanças de elementos levam às mudanças nas operações e na abstração sobre eles, o que permite tornar mais complexo o modelo organizador, quer dizer, considerando mais relações e propriedades de uma situação e dando a elas novos significados e implicações. O sujeito psicológico está imerso numa diversidade de variáveis (universo de relações) que o leva a construir modelos organizadores que integrem/excluam os aspectos envolvidos.

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O uno e o diverso na educação: o espaço escolar como campo de problematização de conhecimentos e do cotidiano

As dicotomias, reducionismos e abstrações presentes no processo de escolarização

revelam-se a partir das narrativas sobre o real e si mesmo no discurso de educadores e de educandos. Postman (2002), ao analisar o papel da educação no mundo contemporâneo, aponta que essas narrativas são construídas na cultura indicando, sua intenção de tornarem-se “Verdades”. O trabalho da escola é com a crítica dessas narrativas que são produzidas na/pela linguagem e que trazem encoberta a diversidade presente no cotidiano.

A idéia de narrativa, proposta por Postman, é um conjunto de saberes ou discursos produzidos pelos sujeitos sobre o real, e cumprem o papel de ponto de partida para a compreensão do mundo e de ação sobre ele.

“Definições, perguntas e metáforas: três dos elementos mais potentes com que a linguagem humana constrói uma cosmovisão. A recomendar, como faço aqui, que o estudo desses elementos tenha mais a alta prioridade na escola, estou indicando que a fabricação do mundo pela linguagem é uma narrativa de poder, durabilidade e inspiração. É o relato de como tornamos conhecido de nós mesmos, e como nos tornamos conhecidos do mundo.” (Postaman, 2002: 170)

É possível estabelecer uma aproximação da idéia de narrativa de Postman com o

conceito de modelo organizador. Tal como o modelo, as narrativas de Postman são explicações que o sujeito dá a fatos e situações reais ou imaginários. Atuam como crenças que orientam e organizam a vida das pessoas, demarcando lugares e posições tidos como “Verdades” para os sujeitos e a partir dos quais são pautas para a ação. Como um conjunto de sentidos sobre o mundo de experiências do sujeito, esses fatos e situações são construções cognitivas, afetivas e sociais sobre o real, portanto, não são fixos e imutáveis.

Nosso posicionamento é de que esses conhecimentos sejam objetos de problematização do processo educativo - em vez de somente informar, problematizar para formar. Problematização aqui é compreendido como um processo de reinvenção, de abertura a novas possibilidades. Kastrup (1999) na sua revisão crítica do trabalho dos estudos psicológicos sobre a cognição, de campo de resolução de problemas para o de invenção de problemas, nos oferece um conceito de invenção que implica na produção de novidades atravessada pelas experiências cognitivas, afetivas sociais e culturais. Deste modo, a cognição refere-se ao que não é pré-dado, mas ao que pode vir a ser. As representações não são baseadas apenas no objeto, como uma cópia do mesmo, mas sim nas possibilidades a partir do objeto.

Para termos como orientação do processo educativo o conhecimento conceituado como vimos nas linhas anteriores, aberto a possibilidades, é preciso construir um fazer educativo, como sugere Najmanovich (2001), com a idéia de virtualizar a educação. Virtual assume para essa autora o sentido de “mudar de foco”, portanto de produção e não de repetição.

A tarefa da educação escolar poderia ser definida como produzir um espaço de revisão dos sentidos produzidos e de invenção de novos sentidos a respeito do conhecimento da vida cotidiana. Nesse caso, a vida cotidiana é um conjunto de fatos ou fenômenos que acontecem e que são apreendidos e explicados pelos sujeitos a partir de diferentes referências e tipos de conhecimento (científicos, culturais, senso-comum etc). Os modelos organizadores tornam-se ferramentas de trabalho da educação, referem-se à epistemologia do aluno e do professor

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sobre a realidade subjetiva, bem como suas proximidades e distanciamentos com as referências coletivas (objetivas).

O conceito de transversalidade contido na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) também atenta para a necessidade de definir a escola como espaço de compreensão da realidade em sua complexidade, isto é, das relações entre o conhecimento organizado sistematicamente (clássicos) e o conhecimento do cotidiano (das questões da vida social e pessoal). Os Temas Transversais são conteúdos que atravessam o currículo formal clássico com conteúdos sobre a vida concreta dos indivíduos, da comunidade, da sociedade, da cultura. Com isso, atuando no plano da didática, a transversalidade acaba pressupondo a interdisciplinaridade, que atua no plano epistemológico. Neste sentido, tais conceitos (transversalidade e interdisciplinaridade) criticam a idéia de que o conhecimento é estável, compartimentalizado e linear, intencionando contemplar seus aspectos diferentes e contraditórios.

A presença da complexidade da vida, a partir do uso de dispositivos de problematização do cotidiano pela educação escolar, tais como assembléias, grupos de reflexão e de atividades de resolução de problemas, oficinas de socialização etc. (Araújo, 2002), situa o conhecimento do cotidiano como eixo vertebrador das atividades educativas. Com isso, abre-se espaço para a discussão da diversidade no espaço escolar e na sociedade. As crenças e os modelos de pensamento que se enraizaram nas práticas educativas e sociais na escola, caso não forem fonte de preocupação, limitam as possibilidades de pensar, sentir e agir para as crianças, adolescentes e educadores.

O processo de escolarização, tal como já fora descrito por Patto (1995), tem em seus meandros mecanismos de exclusão que perpetuam o preconceito e a discriminação das diferenças por classe social, gênero, raça/etnia, cultura e diferentes estilos de aprendizagem. Sentimentos de exclusão vivenciados por crianças, jovens e adultos, levando-as a construírem um auto-conceito negativo relativo à impotência. O negro e/ou pobre e/ou a mulher e/ou crianças que sofrem com a discriminação e com o preconceito no seu cotidiano, constroem representações de si que geram sofrimento e angústia.

Acreditamos que um espaço educativo como a escola pode ser transformador nesse sentido. Por ser um campo de experiências com as diversidades afetivas, cognitivas, morais, culturais e sociais dos alunos e professores é um espaço privilegiado para a construção da ética na relação com os outros e consigo mesmo. A diversidade aqui é entendida como parte da complexidade das características humanas e sociais e não deve ser entendida como deficiência ou algo a ser eliminado deixando à mostra o coletivo/normativo.

Diante destas considerações, a noção de complexidade proposta por Morin e articulada à idéia de modelo organizador, torna possível uma via de análise dos conhecimentos produzidos pelo sujeito. Os princípios de dialogicidade, auto-organização e hologramático, propostos pelo pensamento complexo e contidos, de certa forma, na idéia de modelo organizador, são ferramentas que podem ser disponibilizadas para esse esforço de mudança, não expurgando a complexidade inerente aos fenômenos (relações e conhecimentos).

O caráter dialógico do conhecimento possibilita pensar num sujeito da educação que não é somente racional, lógico e empírico, mas também afetivo, sensível, simbólico e físico - pensar o sujeito na sua concretude e não abstraído de sua realidade. As conseqüências desse caráter sobre o processo educativo exigem recursos diversos das atividades que vêm sendo desenvolvidas tradicionalmente nas escolas, que costumam privilegiar a informação e o conhecimento desconectado da realidade vivida e da reprodução na sala de aula. O conhecimento, desse outro modo, passa a ser um objeto de trabalho da escola, no qual o professor constrói - e desconstrói - narrativas e significações sobre a vida, articulando o universal e o singular no processo de educar. Do caráter hologramático do conhecimento

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emerge a alegoria da relação parte e todo – o todo está nas partes, assim como as partes estão no todo – remetendo-nos à necessidade de vislumbrar o conhecimento científico e do cotidiano trabalhados pela educação escolar como indissociáveis e que o sujeito é um todo/parte nessa produção.

Finalizaremos com as contribuições de Machado (2004), na qual a metáfora da rede na construção do conhecimento compreende que todos os sujeitos envolvidos no processo educativo são produtores e produzidos por um universo de relações. O que nos remete a dimensão ética necessária e presente nas ações/intenções de produzir conhecimento: estamos todos implicados.

Agradecimentos O autor agradece os comentários da Dra. Valéria Arantes do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP) sobre algumas idéias contidas neste ensaio. Referências bibliográficas Althusser, L. (2007). Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal. Arantes, V.A. (2003). Afetividade, cognição e moralidade na perspectiva dos modelos organizadores do pensamento. Em: Arantes, V.A. (org.) A afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, pp. 109-128. Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Revista Educação e Pesquisa, 26 (2), 137-156. Araújo, U.F. (2003a). A dimensão afetiva da psique humana e a educação em valores. Em: Arantes, V.A. (org.) A afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, pp. 153-169. Araújo, U.F. (2003b). Temas transversais e a estratégias de projetos. São Paulo: Moderna. Araújo, U.F. (2002). A construção de escolas democráticas. São Paulo: Moderna. Araújo, U.F. (1999). Conto de escola: a vergonha como um regulador moral. São Paulo: Moderna. Brasil (1997). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC. Castañon, G.A. (2005). Constutivismo e ciências humanas. Ciencias & Cognição, 5, 36-49. Gramsci, A. (2000). Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo – uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas: Papirus. Lewis, M. (1999). Alterando o destino. São Paulo: Moderna. Machado, N. (2004). Conhecimento como valor. São Paulo: Moderna. Moreno Marimón, M.; Sastre Vilarrasa, G.; Bovet, M. e Leal, A. (1999). Conhecimento e mudança – modelos organizadores na construção do conhecimento. São Paulo/Campinas: Moderna/Unicamp. Morin, E. (2005). O Método V – a humanidade da humanidade - a identidade humana. Porto Alegre: Editora Sulina. Morin, E. (2003). O Método I – a natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina. Morin, E. (2000). A epistemologia da complexidade. Em: Morin, E. e Moigne, J-L. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, pp 43-137. Morin, E. (2001). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget.

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Morin, E. (1996). A Noção de sujeito. Em: Schinitman, D. F. (org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, pp. 45-55. Najmanovich, D. (2001). O sujeito encarnado – questões para a pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A. Patto, M.H. (1995). A produção do fracasso escolar. São Paulo: TA Queiroz. Postman, N. (2002). O fim da educação. Rio de Janeiro: Graphia. Saviani, D. (1995). Escola e democracia. Rio de Janeiro: Autores Associados. Saviani, D. (2003). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Rio de Janeiro: Autores Associados. Notas (1) Para Morin falar do sujeito é também falar do indivíduo. Partindo do paradoxo lingüístico

de que só o sujeito pode dizer EU, todo o conhecimento de si e do mundo parte da aceitação de que o sujeito é a referência deste conhecimento. O que ele chama de egocentrismo não se confunde com egoísmo, mas como ponto de partida. Isto nos remete à não neutralidade do conhecimento, portanto, à sua dimensão ética.

(2) A idéia de organização é inseparável da idéia de sistema. Morin rompe com a Teoria Geral dos Sistemas, interrogando a idéia de sistema veiculada por estas teorias, que, segundo ele, reduz tudo à idéia de sistema. Para ele não se trata de utilizar o termo para classificar o universo em sistemas, partes, mas sim “compreender o ser, a existência, a vida, com a ajuda do sistema” (Morin, 2003: 190).

(3) Nesta relação entre conhecedor e conhecimento (sujeito e objeto) percebemos um vínculo com a idéia de Morin sobre o observador/conceituador (Morin, 2003: 186-187).

(4) Sastre, G. e colaboradores (1994) El derecho a ser y la autorrenuncia: sus modelos organizadores em la preadolescencia. Madrid: Educación y Sociedad.

(5) Abstração neste sentido não se confunde com aquela outra, objeto da crítica de Morin ao princípio de abstração integrante do paradigma da simplicidade. Abstração na teoria dos modelos organizadores é uma ação necessária à construção do conhecimento (sobre si e do mundo); um recurso da mente que é necessário para dar conta da realidade multifacetada e complexa.

(6) Contextos de experiência são os lugares em que é possível a produção de sentidos e que têm relação com a história pessoal, biológica, social e cultural do sujeito.

- L. Lemos-de-souza é Psicólogo, Doutor em Educação (UNICAMP), Mestre em Psicologia (UNESP, Campus de Assis), Líder do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea (UFMT), Membro Pesquisador do Grupo de Pesquisa Construtivismo e Educação (UNESP) e do Centro Interdisciplinar de Pesquisas e Estudos sobre Cidadania e Complexidade da (USP-Leste). Atualmente é Professor Adjunto (Instituto de Ciências Humanas e Sociais - UFMT, Campus Rondonópolis). E-mail para correspondência: [email protected].

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Reflexões sobre conceitos estruturantes em biossegurança: contribuições para o ensino de ciências

Reflections on structural concepts in biosafety: contributions to the teaching of science

Maria Eveline de Castro Pereiraa, Marco Antonio F. da Costa, b, Maria de Fátima

Barrozo da Costac e Claudia Jurberga, d

aInstituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; Brasil; bEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; cEscola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; dInstituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, Brasil

Resumo Este ensaio acadêmico busca contribuir para a identificação de conceitos estruturantes da biossegurança, e faz algumas reflexões sobre a importância desses conceitos no ensino da disciplina de biossegurança. O estudo aponta que é possível, através desses conceitos, facilitar o processo ensino-aprendizagem da biossegurança, mostrando aos alunos as conexões e imbricações dessa área do conhecimento, contribuindo, dessa forma, para a apreensão dos seus significados de maneira harmônica e articulada. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 296-303. Palavras-chave: conceitos estruturantes; ensino de ciências; biossegurança. Abstract This academic essay intends to contribute to identify the structural concepts of biosafety, and question about the importance of these concepts to teach biosafety discipline. The study suggests the possibility, through such concepts, to facilitate the teaching-learning process of biosafety, presenting the students, connections and overlaps in this area of knowledge, helping then to understand its meanings in a harmonic and articulated away. © Cien. Cogn. 2009; Vol. 14 (1): 296-303. Keywords: structural concepts; teaching science; biosafety.

1. Introdução

Entre as possíveis estratégias para o ensino de ciências tem-se, baseado no modelo construtivista, a identificação dos chamados “conceitos estruturantes” (Gagliardi, 1983, 1986, 1988). Garcia Cruz (1998: 325) os define como os conceitos “que vão transformar o sistema cognitivo dos alunos, de tal maneira, que permitem, de forma coerente, adquirir novos conhecimentos, por construção de novos significados, ou modificar os anteriores, por reconstrução de significados antigos”.

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 296-303 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 27/09/2008 | Revisado em 16/03/2009 | Aceito em 20/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

Ensaio

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El-Hani (2007) aponta que as idéias centrais são os conceitos que deveriam ficar consolidados no aluno ao fechar seus livros no último dia de um curso. Dessa forma, o saber sedimentado em sua estrutura cognitiva poderá favorecer o ensino e a aprendizagem, preparando o aluno para diferentes desafios acerca do conhecimento presente e futuro.

Mayr (1980) destaca que a ciência é um processo contínuo de solução de problemas na busca de um entendimento do mundo em que vivemos e, para isso, precisamos estabelecer o diálogo entre história, natureza da ciência e o conhecimento. Também chama atenção para o equívoco que acontece no processo educativo, quando a ênfase é o estudo das partes, esquecendo a relação destas com o todo (Lemos, 2008).

A necessidade de se utilizar a história das ciências e a epistemologia, quando debate sobre a apropriação do conhecimento científico pela sociedade, que em geral, não é capaz de perceber a relação existente entre a produção, controle e utilização desses conhecimentos , é um ponto salientado por Gagliardi (1988).

Ainda sobre esta temática, é importante abordar dois argumentos de Vázquez-Alonso e colaboradores (2008: 35). O primeiro relacionado à neutralidade da ciência e o segundo sobre a finalidade da alfabetização científica e tecnológica. Para esses autores:

“A ciência é uma empresa humana,talvez um tanto especial pelos objetivos de conhecimento que persegue e pela forma como o faz devido à condição humana de seus protagonistas, sujeitos às mudanças históricas e sociais [....] A sociedade mantém com a ciência e a tecnologia um contrato social, um tanto implícito, que estabelece a pauta dessas relações: a sociedade financia economicamente as necessidades da C&T e estas, em troca oferecem à sociedade benefícios que melhoram a qualidade de vida e contribuem ao seu progresso e desenvolvimento econômico e social [....] A finalidade da educação científica e tecnológica é possibilitar a participação dos cidadãos nas decisões tecnocientificas de interesse social.”

Estabelece-se dessa forma uma relação de dependência e integração entre a sociedade

e a ciência, que gera a tecnologia, que impacta a vida das pessoas, com implicações óbvias no planejamento do ensino, compreendido como elemento importante da alfabetização científica e tecnológica.

El Hani e colaboradores (2004) também enfatizam a necessidade de se adequar os currículos de ciências, em todos os níveis de ensino. Segundo esses autores, apesar das transformações sociais dos últimos setenta anos, com enormes avanços científicos e tecnológicos, que influenciaram as estruturas sociais, a cultura e a vida cotidiana, os currículos de ciência praticamente não mudaram, retratando a prática científica como se fosse separada da sociedade, da cultura e da vida cotidiana, e não possuísse uma dimensão filosófica.

Ao trazer esses cenários para o campo da biossegurança, que no Brasil possui duas vertentes: a legal, que trata das questões envolvendo a manipulação de DNA e pesquisas com células-tronco embrionárias, e que tem a Lei de Biossegurança, de no. 11.105, sancionada pelo governo brasileiro em 24 de março de 2005. E a praticada, desenvolvida, principalmente, nas instituições de saúde, e que envolve os riscos por agentes químicos, físicos, biológicos, ergonômicos e psicossociais, presentes nesses ambientes, que se encontra no contexto da segurança ocupacional (Costa, 2000). Diante desse cenário, podemos questionar: quais são os conceitos estruturantes da biossegurança?

Este ensaio acadêmico tem, portanto, como objetivo contribuir para a identificação de conceitos estruturantes da biossegurança e refletir sobre as suas imbricações sociais, éticas, econômicas e técnicas, à luz do referencial adotado.

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2. Entendendo a biossegurança e suas conexões

Biossegurança, etimologicamente, provém do radical grego bio, que significa vida e da palavra segurança, vida livre de perigo. Genericamente, pode ser considerada como ações que contribuem para a segurança das pessoas (Costa, 2005). A biossegurança está vinculada a diversos ciclos produtivos, não se restringindo apenas às áreas consideradas de saúde – biologia, biomedicina, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia, serviço social e terapia ocupacional – pela Resolução 287/98 do Conselho Nacional de Saúde (Costa e Costa, 2007).

O tema está associado também a vários seguimentos da economia, como as novas tecnologias químicas, radioativas e geneticamente engenheiradas (Porto e Freitas, 1997), áreas biotecnológicas (Marinho et al., 2000), agropecuárias (Barros e Silva, 2005).

A estrutura da biossegurança é composta, segundo Costa (2005), por componentes ocupacionais (infra-estrutura laboratorial), educacionais (política de valorização de recursos humanos e agregação de valores éticos, filosóficos e técnicos), sociais (ações voltadas para otimização e humanização dos processos de trabalho), informacionais (processo de comunicação que permeia todos os níveis hierárquicos), normativos (ações reguladoras internas e externas que estabelecem os parâmetros para o desenvolvimento das atividades), organizacionais (relacionado à cultura e clima organizacional) e tecnológicos.

A biossegurança é, ao mesmo tempo, produtora e produto, pois se trata de uma construção humana coletiva, levada a cabo por indivíduos condicionados por um conjunto de práticas sociais e culturais, próprias das comunidades as quais pertencem (Costa e Costa, 2007). Seus componentes são interconectados e interdependentes e se relacionam diretamente com o meio, ao qual estão vinculados. Essas conexões, segundo Costa (2000) podem ser observadas na figura 1, relacionada ao ambiente laboratorial, espaço onde a biossegurança se aplica de forma abrangente.

Figura 1 – Sistema Laboratorial (Fonte: Costa, 2000).

Conforme a figura 1, a estrutura básica do sistema laboratorial, um dos focos da

biossegurança, proposta por Costa (2000), é composta pelos seguintes elementos: indivíduos,

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equipamentos, reagentes e informações; o processo produtivo e seus produtos, como resultados, bens e serviços.

Essas relações mostram a influência de uma série de aspectos (a motivação, a qualificação, fatores sociais e ambientais, normas e padrões) que impactam sobre a qualidade dos produtos. Um laboratório de análises clínicas, por exemplo, para fazer um diagnóstico necessita de profissionais qualificados, equipamentos científicos e de proteção, reagentes e informação. Para a emissão do laudo, contendo os resultados das análises, são necessários procedimentos definidos pelas normas e padrões de qualidade. Fatores ambientais e sociais, bem como a motivação e qualificação de todos os envolvidos no sistema, garantem a confiabilidade do serviço prestado. Quando avaliamos esse sistema sob a ótica da biossegurança podemos perceber a sua condição de interconexão.

Costa (2005), em seu estudo sobre o ensino da biossegurança na Fundação Oswaldo Cruz, ressalta que o processo ensino-aprendizagem praticado em cursos de nível técnico da área de saúde, ocorre de forma fragmentada, sem uma visão integradora, ou seja, não constituindo uma rede de conceitos que estabelecem relações mútuas.

Por outro lado, Lemos (2008) ressalta a importância de definir esses conceitos em função principalmente das implicações no cotidiano profissional dos professores de ciências e biologia, tendo em vista a seleção do que deve ser ensinado para que, através do aprendizado, o indivíduo tenha então sua estrutura cognitiva, organizada, estável e consolidada com condições, portanto, de relacionar-se com o mundo de forma independente.

Complementando, El-Hani (2007), ao analisar o ensino de biologia, diz que é necessário propiciar aos estudantes uma visão unificada, interada, do fenômeno vital, dos padrões de organização de entidades e processos que caracterizam os sistemas vivos, o que também se aplica a biossegurança.

Nesse raciocínio, Gagliardi (1988) argumenta que um dos objetivos mais importantes da pedagogia das ciências é conseguir que o professor ajude o aluno a superar os obstáculos – lógicos, psicológicos e epistemológicos – da construção do conhecimento, estabelecendo estratégias e conteúdos que possibilitem a este um aprendizado efetivo.

Corroborando com essas idéias, Moreira (2006:17) enfatiza a importância do mapeamento da estrutura conceitual do conteúdo e da sua organização seqüencial de acordo com essa estrutura.

“Cabe ao professor identificar os conceitos e proposições mais relevantes da matéria de ensino, distinguir os mais gerais e abrangentes dos que estão em um nível intermediário de generalidade e inclusividade e estes dos menos inclusivos e específicos [....] Trata-se de se preocupar com a “qualidade” do conteúdo e não com a quantidade.”

Moreira (2002), analisando a Teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud, aponta a importância de se articular vários conceitos para a explicação de determinadas situações. Essa idéia é chamada de campo conceitual, que compreende as relações entre os conceitos envolvidos, as suas linguagens e operações de pensamento, que estão diretamente interconectados. 3. Conceitos estruturantes da biossegurança: uma tentativa de aproximação

Para Vázquez-Alonso e colaboradores (2008) é fundamental a adaptação do ensino de ciências para o contexto, levando em consideração a sua finalidade, sem que existam contradições entre os conceitos e os procedimentos.

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Vale lembrar que, mesmo não sendo uma ciência, a biossegurança está inserida no campo científico, já que é sustentada por conceitos da biologia, química, física, entre outras ciências. Nessa linha, Costa (2005) identificou até o ano de 2003, doze definições para a biossegurança, que abrangem a vertente legal (voltada para a manipulação de organismos geneticamente modificados, regulamentada pela Lei. 11.105/05) e a praticada, relacionada aos agentes tradicionais de riscos encontrados em laboratórios, ambientes da saúde, entre outros.

Em todas essas definições existe uma variável constante - o risco. O quadro 1apresenta algumas das definições de biossegurança, que exemplificam essa questão.

Definição Fonte È o conjunto de ações voltadas para a prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, visando à saúde do homem, dos animais, a preservação do meio ambiente e a qualidade dos resultados.

Teixeira e Valle, 19961

Segurança no manejo de produtos e técnicas biológicas. Brener, 19962. Conjunto de medidas técnicas, administrativas, educacionais, médicas e psicológicas, empregadas para prevenir acidentes em ambientes biotecnológicos.

Costa, 19963

Procedimentos adotados para evitar os riscos das atividades biológicas.

Fontes et al., 19984

O fundamento básico da biossegurança é assegurar o avanço dos processos tecnológicos e proteger a saúde humana, animal e o meio ambiente.

Unicamp, 20035

È a ciência voltada para o controle e a neutralização de riscos advindos das práticas de diferentes tecnologias em laboratórios ou no meio ambiente.

Monsanto, 20036

É uma doutrina de comportamento que visa o alcance de atitudes e condutas que diminuam os riscos do trabalhador de locais de saúde (hospitais, clínicas, hemocentros, etc.), de adquirir infecções ocupacionais.

Moreira, 19977

Quadro 1 – Definições de biossegurança (Fonte: Costa, 2005). Essa variável – risco, como observado no quadro 1, está inserida em vários contextos, que espelham a diversidade de campos de atuação da biossegurança. Carvalho (2004: 669), nessa linha cita:

“O conceito de risco é estruturante, também, do ideário da promoção à saúde contemporânea subsidiando, entre outras, estratégias como as Políticas Públicas Saudáveis e múltiplas ações que têm como objetivo contribuir para as escolhas de hábitos de vida saudáveis. A crescente atenção à forma física, aos exercícios e dietas constitui a manifestação mais óbvia desse ideário (foco no estilo de vida), acrescida por uma "nova consciência" sobre riscos resultantes da atividade humana (poluição, aquecimento global, biodiversidade, etc.).”

Sendo a biossegurança um produto cultural, seus conteúdos aparecem no cenário

educacional com características diferenciadas da produção científica, estando, portanto, atrelados a cultura escolar.

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Pesquisas realizadas por Costa e colaboradores (2006; 2007) e Pereira e colaboradores (2008) com alunos adolescentes de cursos técnicos e profissionais da área de saúde, que sustentam a aplicabilidade do uso da linguagem gráfica no ensino da biossegurança, e Carvalho (2008) com professores da rede pública de ensino médio do Estado do Rio de Janeiro, sobre o ensino da biossegurança nessas escolas, também mostram essa diversidade de contextos em que alguns conceitos são ensinados.

O processo de ensino da biossegurança, haja vista a nossa vivência nessa área, geralmente está circunscrita aos próprios docentes, ou seja, às suas experiências profissionais. O processo de ensinabilidade, nesse caso, pode ocorrer de forma que, intencionalmente, alguns conceitos contrários à cultura da instituição escolar ou do próprio professor, sejam descartados, ou melhor, não trabalhados.

Corroborando com essa idéia, Costa e Costa (2007) acreditam que a biossegurança deve ser ensinada em um contexto cidadão, incluindo não apenas o saber fazer, mas também o saber ser e o saber aprender. Para tanto, é primordial que o aluno ou o trabalhador não seja um mero reprodutor, mas sim um agente participativo-transformador no seu ambiente ocupacional. O processo educativo envolve uma ação de reflexão, e deve ultrapassar a idéia da simples normatização, e abranger, inclusive, aspectos relativos à ética, já que ela está implícita em praticamente todas as ações da biossegurança. 4. Considerações finais

O processo de ensino da biossegurança deve abordar todas as possíveis conexões dos seus conteúdos, isto é, passar pelas imbricações históricas, humanas, sociais, éticas, econômicas, políticas, ambientais e técnicas, que a perpassam, tendo como pano de fundo, exatamente as suas idéias centrais, ou os seus conceitos estruturantes.

Este ensaio apontou para um desses conceitos estruturantes – o risco, muito embora saibamos que outros devam ser incorporados, para que as conexões, anteriormente citadas, sejam atendidas, no sentido de dar respostas aos desafios da biossegurança, tanto em relação às suas imbricações legais, vinculada à moderna biotecnologia, quanto aos ambientes da saúde e os seus agentes de possíveis agravos à saúde humana e ambiental.

Outro ponto importante é que não devemos nos esquecer da provisoriedade dos conceitos científicos, decorrente da dinamicidade da própria ciência e, nesse sentido, os professores de biossegurança também devem estar preparados e atualizados, para que a compreensão sobre esta temática ocorra de forma contextualizada com o próprio desenvolvimento científico. 5. Referências bibliográficas Barros, J.B.L. e Silva, A.S. (2005). Biossegurança e qualidade de vida em atividades agropecuárias de produção e ensino. Cadernos Temáticos, 6, 38-43. Carvalho, P.R. (2008). O olhar docente sobre a biossegurança no ensino de ciências: um estudo em escolas da rede pública do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ. Carvalho, S.R. (2004). As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e a mudança social. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 9 (3), 669-678. Costa, M.A.F. (2005). Construção do Conhecimento em Saúde: estudo sobre o ensino de biossegurança em cursos de nível médio da área de saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ.

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Costa, M.A.F.(2000). Qualidade em Biossegurança. Rio de Janeiro: Qualitymark. Costa, M.A. e Costa, M.F.B. (2007). A Biossegurança na formação profissional em Saúde: ampliando o debate. Em: Pereira, I.B. e Ribeiro, C.G. (Ed.). Estudos de Politecnia e Saúde (pp. 253-272). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz. Costa, M.A.F.; Costa M.F.B.; Leite, S.Q.M. e Lima, M.C.A.B. (2007). A construção do conhecimento através de imagens: contribuições para o ensino de ciências. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 6 (1), 20-31. Costa, M.A.F.; Costa M.F.B.; Lima, M.C.A.B. e Leite, S.Q.M. (2006). O desenho como estratégia pedagógica no ensino de ciências: o caso da biossegurança. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 5 (1), 184-191. El-Hani, C.N. (2007). Um das coisas boas de estar no tempo é poder olhar para trás. Em: Borges, R.R. (Ed.). Filosofia e história da ciência no contexto da educação, vivência e teorias (pp. 168-194). Porto Alegre: PUC/RS. El-Hani, C.N.; Tavares, E.J.M. e Rocha, P.L.B. (2004). Concepções epistemológicas de estudantes de biologia e sua transformação por uma proposta explicita de ensino sobre história e filosofia das ciências. Investigações em Ensino de Ciências, 9 (3), 313-365. Gagliardi, J.R. (1988). Cómo utilizar la historia de las ciencias en la enseñanza del as ciencias. Enseñanza de las Ciencias, 6 (3), 291-296. Gagliardi, J.R. (1986). Los conceptos estruturales en el aprendizaje por investigación. Enseñanza de las ciencias, 4(1), 30-35. Gagliardi, J.R. (1983). Les concepts structurants em biologie. Actes dês Journées Internationales sur l`Education Scientifique, 7, 471-476. García Cruz, C.M. (1998). De los obstáculos epistemológicos a los conceptos estructurantes: una aproximación a la enseñanza-aprendizaje del a geología. Enseñanza de las Ciencias, 16 (2), 323-330. Lemos, E.S. (2008). El aprendizaje significativo y la formación inicial de profesores de ciencias e biología. Tese de Doutorado, Programa Internacional de Doutorado em Enseñanza de las Ciências, Univeridad de Burgos, Espanha. Marinho, C.; Minayo-Gomes, C. e Degrave, W. (2000). Qualificação e percepção de riscos de trabalhadores da área biotecnológica: setores público e privado. Caderno CRH, 32, 259-278. Mayr, E. (1980). O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: UnB. Moreira, M.A. (2006). A teoria da aprendizagem significativa e sua implementação em sala de aula. Brasília: UnB. Moreira, M.A. (2002). A Teoria dos Campos Conceituais de Vergnaud, o ensino de ciências e a pesquisa nesta área. Investigações em Ensino de Ciências, 7 (1), 7-29. Pereira, M.E.C.; Costa, M.A.F. e Carvalho, P.R. (2008). Ensino de Ciências: conceituação da biossegurança através da linguagem gráfica. Revista Eletrónica de Enseñanza de las Ciencias, 7 (3), 570-581. Porto, M.F.S. e Freitas, C.M. (1997). Análise de riscos tecnológicos ambientais: perspectivas para o campo da saúde do trabalhador. Cadernos Saúde Pública, 13 (Supl. 2), 59-72. Vázquez-Alanso, A.; Manassero-Mas, M.A.; Acevedo-Diaz, J.A. e Acevedo-Romero, P. (2008). Consensos sobre a natureza da ciência: a ciência e a tecnologia na sociedade. Química nova na escola, 27, 34-50. Notas (1) Teixeira, P. e Valle S.(1996). Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar. Rio de

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(2) Brener, Z. Prefácio. IN: Teixeira, P. e Valle S. (1996). Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar. Rio de Janeiro: Fiocruz.

(3) Costa, M.A.F (1996). Biossegurança: segurança química básica em biotecnologia e ambientes hospitalares. São Paulo: Santos.

(4) Fontes, E.; Varella, M.D. e Assad, A.L.D. (1998) Biosafety in Brazil and interface with others laws. http://www.bdt.org.br/bdt/oeaproj/biosseguranca, acessado em março de 1998.

(5) Unicamp (Universidade Estadual Campinas) (2003). Desenvolvimento sustentável. http://www.unicamp.br/bibdta/desensus.htm>acessado em fevereiro de 2003.

(6) Monsanto. Biotecnologia o futuro da biotecnologia no Brasil. http://www.monsanto. com.br/ > acessado em fevereiro de 2003.

(7) Moreira, A.F.(1997). Normas de bioseguridad del Ministerio de Salud Publica. Uruguay. - M.A.F. da Costa é Doutor em Ciências. Atua como Pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fiocruz). E-mail para correspondência: [email protected]. M.E.C. Pereira é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde (Fiocruz) e Membro da Comissão de Biossegurança do Instituto Oswaldo Cruz. E-mail para correspondência: [email protected]. M.F.B. da Costa é Doutora em Saúde Pública (Fiocruz) e Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Fiocruz). E-mail para correspondência: [email protected]. C. Juberg é Doutora em Educação, Gestão e Difusão em Biociências (UFRJ). Atua como Jornalista (Instituto Oswaldo Cruz) e coordenadora do Núcleo de Divulgação do Programa Interinstitucional de Ensino, Pesquisa e Extensão na Biologia do Câncer (UFRJ). E-mail para correspondência: [email protected].

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Problemas psicossociais. Análise de produção

Maria Helena Mourão Alves Oliveira

Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, São Paulo, Brasil Obra resenhada: Witter, C.; Buriti, M.A. e Witter, G.P. (Org.) (2007). Problemas Psicossociais. Análise de Produção. São Paulo: Guararema. 194pp. Palavras-chave: psicologia; metaciência; produção científica. Problemas Psicossociais. Análise da produção expressa a preocupação dos organizadores com a pesquisa de metaciência considerando sua importância para avaliação da Produção Científica, o que permite dimensionar não só o desenvolvimento da pesquisa e do conhecimento, como também o seu reflexo na formação do pesquisador e no uso social do conhecimento no contexto brasileiro.

O livro está apresentado pelos três autores que o organizaram, todos doutores e estudiosos do tema Produção Científica. Deve-se fazer destaque para a Dra Geraldina Porto Witter, por ser esta pesquisadora quem primeiro apresentou o tema para os então alunos da Pós Graduação, no mestrado em Psicologia Escolar da PUC- Campinas. Preocupada com a pesquisa, sempre fez de sua atuação em sala de aula um meio para testar e pesquisar novas tecnologias e procedimentos de ensino.

Witter e colaboradores (2007) enfatizam a importância da formação do aluno pesquisador que irá garantir a construção do profissional pesquisador e, neste percurso, incluem o papel do docente no que se refere à base científica do aprendizado.

Este foco orienta a organização do livro de 203 páginas e oito capítulos, relatando pesquisas que resultaram de trabalhos de Iniciação Científica, Conclusão de Curso ou de parcerias entre pesquisadores, e que têm como tema problemas de cunho social na área de conhecimento da Psicologia. Ao aglutinar estudos de produção científica, o livro permite ao leitor conhecer e comparar como são estudados os diferentes temas, identificar as lacunas e, assim, avaliar a possibilidade de aprofundamento de um ou mais aspectos estudados, desta forma orientando novas direções de pesquisa para a área.

Os capítulos têm, na introdução, a contextualização da pesquisa em relação à metaciência. De forma geral, em todos eles é apresentado o conceito de produção científica e sua relação com a pesquisa e com a construção do conhecimento. Neste sentido, reforçam a necessidade da divulgação dos resultados para que estes estejam disponíveis tanto ao pesquisador como ao consumidor de ciência, ambos inseridos em contexto sócio-cultural. Vale destacar a importância desta introdução que, ao apresentar ao leitor os pressupostos teóricos que orientam os trabalhos de metaciência, caracteriza diferencialmente este tipo de pesquisa, muitas vezes considerada como estudo bibliográfico.

No primeiro capítulo, ainda na Introdução, os autores localizam o tema Psicologia Forense/Jurídica e o descrevem como uma área em desenvolvimento, pois, do total de

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Resenha

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publicações relativas ao ano de 2006, existe predomínio de artigos em periódicos. Ao mesmo tempo, referem ser esta uma área emergente, com controvérsias e contradições, o que justifica um estudo de integração visando sua definição e delimitação.

O estudo tem como objetivo analisar os trabalhos quanto ao gênero dos orientandos e orientadores, cursos, título, tipologia e discurso do resumo. O material foi constituído pelas teses e dissertações da base CAPES até 2006. Os resultados indicaram a prevalência do sexo feminino entre orientandos e orientadores; das universidades públicas na produção de estudos com esta temática; e da área da Psicologia. Quanto às áreas de conhecimento, a Psicologia foi a que mais produziu trabalhos sobre a temática e, quanto à tipologia, a pesquisa descritiva foi a mais utilizada, o que evidencia um conhecimento ainda não desenvolvido.

Importante no discurso científico, o Resumo deve oferecer ao leitor informação sobre o trabalho. A maioria apresentou objetivos, material, resultados e conclusões. O discurso utilizado na redação do resumo permitiu verificar a não homogeneização do uso da flexão de tempo verbal e pessoa gramatical.

Os autores concluem ser esta uma área em desenvolvimento, carecendo, por parte dos autores, maior cuidado na redação, elaboração e discurso dos resumos, considerando ser este o material que vai alimentar bases de dados bibliográficos.

O segundo capítulo também apresenta trabalho sobre Psicologia Forense. Os autores apresentam a área com uma pequena história e a discussão conceitual de Psicologia Jurídica, Psicologia Forense e Psicologia Criminal. Definiram como objetivos analisar os artigos quanto à autoria (gênero e número), aos instrumentos utilizados, aos sujeitos, temas e tipologia, além da forma de análise dos dados.

Os artigos foram pesquisados na base de dados LILACS. Quanto à autoria, considerando o tipo (múltipla ou única) a análise de distribuição da amostra não mostrou diferença estatisticamente significante. Como relatam os autores, a pesquisa é um trabalho de equipe, de um grupo de pesquisadores, o que favorece uma análise mais aprofundada e diversificada dos resultados, sendo este o comportamento de uma área de conhecimento mais desenvolvida.

Importante na avaliação da qualidade da pesquisa, a metodologia deve estar claramente descrita, tanto na caracterização dos sujeitos, dos instrumentos e do plano para análise dos dados. Referem os autores à necessidade de maior cuidado por parte dos pesquisadores, tanto na metodologia quanto na redação científica, pois em muitos dos estudos não foi possível depreender, a partir do exposto, o instrumento utilizado. A distribuição dos instrumentos utilizados mostrou ser estatisticamente significante, confirmando maior ocorrência do uso de questionários e entrevistas. Isto evidencia menor sofisticação instrumental comparativamente a outras áreas da Psicologia e pode estar indicando carência de pesquisas sobre instrumentos. Reforçando esta afirmação, os resultados obtidos quanto à tipologia do estudo caracterizou o Levantamento como mais utilizado, sinalizando a mera descrição do fenômeno.

Na conclusão, os autores, além de um breve resumo dos resultados, formulam um parecer crítico sobre a área e orientam para pesquisas metodologicamente mais sofisticadas, destacando a necessidade de investimentos que possam contribuir para o desenvolvimento da área de Psicologia Forense.

O terceiro capítulo focaliza a produção científica, em teses e dissertações, sobre Psicologia do Trânsito. Na introdução do trabalho contextualizam a temática, sua definição e a atuação do profissional psicólogo na área. Neste trabalho os objetivos foram analisar a autoria, temática, tipologia, curso e universidade onde a dissertação/tese foi defendida. A base de dados da pesquisa foi o Banco de teses da CAPES.

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O quarto, quinto e sexto capítulos usaram a base de dados PsycINFO e analisaram a produção sobre Hospitalização, Depressão em adolescentes e Autismo.

A pesquisa com tema Hospitalização, diferente dos outros capítulos, na introdução apresenta dados sobre o termo Base de Dados, importante conteúdo informativo, nem sempre de conhecimento daqueles que se iniciam na pesquisa ou mesmo de pesquisadores mais experientes.

Na análise dos trabalhos, foi focalizada a autoria (gênero, tipo), a tipologia dos trabalhos, os temas e os periódicos nucleares. Quanto à autoria, os trabalhos com mais de um autor e o gênero masculino ofereceram maior contribuição. As duas ocorrências tiveram significância estatística.

Os periódicos constituíram a maioria da amostra, seguidos das teses/dissertações. Estes dados confirmam, junto com a alta freqüência de autoria múltipla, ser esta uma área de grande desenvolvimento científico. Diante do fato, foi realizada análise visando identificar os periódicos mais relevantes, ou seja, aqueles que mais publicam sobre determinado assunto; o resultado, apresentado em uma Tabela, foi organizado conforme o grau de importância dos periódicos. Destacam os autores que, diante da importância da temática, a produção de periódicos nacionais sobre o tema é ainda muito precária, indicando que o Brasil tem ainda muito a desenvolver cientificamente no assunto. Ao final, são apresentadas as conclusões, onde é reforçada a necessidade de maior produção nacional na área e maior presença feminina nas publicações.

O trabalho sobre Depressão em Adolescentes reúne dois subtemas importantes e atuais e teve como objetivo o estudo da autoria (gênero e tipo), veículo de divulgação, tipo de trabalho e temática. A ocorrência significante de autoria múltipla, de artigos de periódicos e de pesquisa com análise quantitativa é indicativa de área com bom desenvolvimento científico.

O grande foco temático foi Doença, tanto física quanto psicológica, seguido por Fatores Psicológicos e Tratamento. Existe necessidade de que os estudos focalizem a prevenção e o tratamento, visando garantir o bem estar do adolescente. As referências são atuais, com predomínio de artigos de periódicos, seguidos de livros ou capítulos de livros.

No penúltimo capítulo, são analisados conceitos relacionados à teoria Winnicottiana em periódicos nacionais da área. A apresentação dos resultados é iniciada com o panorama das publicações nos três suportes. Foi verificado que a maior produção ocorreu na revista Psicologia: Reflexão e Crítica, seguida de Psicologia: Teoria e Pesquisa. Especificamente em relação à abordagem pretendida, foi observada ausência de publicação. O trabalho em co-autoria foi o mais presente, embora muito próximo do observado em autoria múltipla, e o gênero feminino predominou nas publicações.

Os autores destacam a importância da teoria de Winnicott e a ausência de publicação de pesquisas focalizando esta temática, muito estudada em tese/dissertações. As referências são atuais, com predomínio de livros e trabalhos de dissertação e tese, o que pode ser justificado pela ausência de publicação da temática em periódicos da área.

O capítulo é encerrado com Considerações Finais, o que pode explicar a inclusão de aspectos teóricos e comentários comparativos, discurso este esperado em uma introdução.

O último capítulo apresenta trabalho sobre Depressão Pós-Parto. O objetivo foi estudar, nas Bases de Dados LILACS, as publicações disponíveis aos profissionais interessados no assunto. Os resultados descrevem uma produção bastante escassa, mais evidente nos anos 1999 e 2005, e a revista Femina como a que mais publicou sobre o problema foco do trabalho. Os autores justificam a falta de publicação originada na dificuldade de identificação do quadro que, nos casos menos graves, podem passar despercebidos pelos médicos.

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A presença de artigos de autoria múltipla pode sugerir avanço na área, porém a predominância de artigos teóricos e a baixa complexidade de análise dos artigos que relatam pesquisa na base estudada evidenciam baixo nível de desenvolvimento, requerendo maior produção de pesquisa. Vale ainda lembrar a necessidade de estudos em outras bases, visando configurar de forma mais adequada o que está exposto.

As referências são atuais, predominando os artigos de periódicos e livros. Na parte final do livro, estão relacionados a formação e vínculo institucional dos

autores. Um dos critérios utilizados na aferição dos cursos de pós-graduação, na constituição

de políticas de apoio à pesquisa é a produtividade do pesquisador e a qualidade da pesquisa realizada. Estes dois aspectos estão diretamente relacionados com o conhecimento que ele possui sobre o estágio de desenvolvimento da área o que irá orientá-lo na escolha do tema, na forma de tratamento dos dados e na conclusão.

Com base nesta premissa salienta-se a importância de um trabalho como o apresentado neste livro por reforçar o conhecimento daqueles já introduzidos neste tipo de pesquisa e por se constituir em um texto útil no sentido de fornecer um quadro dos vários aspectos envolvidos na pesquisa de metaciência.

- M.H.M.A. Oliveira é Mestre em Psicologia Escolar e Doutora em Psicologia (PUC-Campinas). Atua como Professora (PUC-Campinas). Endereço para correspondência: Rua Cotoxó, 637, apto. 42, Campinas, SP 05021-000. E-mail para correspondência: [email protected].

Ciências & Cognição 2009; Vol 14 (1): 304-307 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 31/01/2009 | Aceito em 17/03/2009 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 31 de março de 2009

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Entre o texto e sua pluralidade, o mediador

Flávia Brocchetto Ramos

Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de Caxias do Sul (PPGEd/UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

Obra resenhada: Paiva, A.; Martins, A.M.; Paulino, G. e Versiani, Z. (Org.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 2005.

Por que as leituras literárias propiciam discursos transitivos? Para ter mais dados sobre

essa questão, aconselho a leitura da sexta publicação conjunta do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), Leituras literárias: discursos transitivos. O CEALE é um centro de estudos da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais, registrado no CNPq e com pesquisas representativas sobre educação e linguagem. A obra objeto desta resenha é uma publicação organizada por Aparecida Paiva, Aracy Martins, Graça Paulino e Zélia Versiani, professoras e pesquisadoras do Centro, atuando em docência - graduação e pós-graduação – e em pesquisa. Foi publicada em 2005, pela editora Autêntica, de Belo Horizonte, a qual já editou outros estudos oriundos de pesquisas da FaE/UFMG. Essas publicações estão inseridas na linha editorial Literatura e Educação, sinalizando que a literatura é um texto com muitas singularidades e que sua leitura deve considerar tais aspectos. O texto, sem a figura do leitor, do ponto de vista da leitura, não existe, e a leitura é uma ação que acontece através da interação entre ambos. Texto e leitor dialogam e, nessa conversa, nessa intimidade, se contam, se revelam, se significam. Ler é, pois, um ato potencializador pelos desdobramentos que pode gerar ao leitor. Ainda na década de 60, Jauss (1994)destacava que a literatura passa a existir quando é lida, isto é, quando o horizonte do texto conversa com o horizonte do público. Uma obra guardada não é literatura. Passa a ser, quando é lida, ou seja, é entendida, é sentida. Há livros que deixam de ser significativos e, consequentemente, não são mais lidos. Essas questões permeiam os artigos que constituem a publicação do CEALE, assim como discussões que apontam a literatura como um discurso plural.

Os autores dos artigos afirmam, em especial, Magda Soares, que a leitura é uma ação transitiva. Lê-se o quê? O ler está relacionado a um determinado texto. Em se tratando de literatura - conto, romance, poesia – a ação de ler é diferente se o material for o conto ou o romance, mesmo que ambos pertençam ao gênero narrativo. Edgar A. Poe, por exemplo, nos ensina que a leitura do conto deve ocorrer numa sentada, não pode ser interrompida, para não comprometer o efeito inerente à natureza desse gênero literário. Agora, se estamos lendo um romance, interrompemos a leitura muitas, ou ao menos, algumas vezes. A dramaticidade no romance não é condensada, pelo contrário, a ação tende a se diluir no enredo. Ao ler a narrativa longa, seguimos a sequência apresentada, não pulamos páginas, não começamos pelo meio. No livro de poesia, podemos não respeitar a ordem de apresentação dos textos, a

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Resenha

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qual pode não ser rígida como a prosa. Mesmo dentro do gênero, há alterações no modo de produzir e, consequentemente, de ler. As discussões propostas em Leituras literárias: discursos transitivos têm um cunho pedagógico. A leitura literária, ou melhor, as leituras literárias - já que há peculiaridades na composição e na significação de cada um dos gêneros literários - são pensadas no contexto educacional. O livro é formado por nove capítulos que, na verdade, podem ser mais, pois a apresentação, “Leituras literárias: discursos transitivos”, escrita por Aracy Martins e Zélia Versiani, e a introdução, “Ler, verbo transitivo”, de Magda Soares, podem ser considerados dois capítulos, em virtude do viés reflexivo que contêm. Os capítulos têm enfoques particulares e complementares e estão organizados em três blocos: Literatura e Educação; Mediações em Espaços de Leitura; e Literatura, História, Memória, Formação de Leitores.

O primeiro bloco, Literatura e Educação, é constituído por dois artigos, “Poesia e indiferença”, de Haquira Osakabe e “Algumas especificidades da leitura literária”, de Graça Paulino. No texto de Osakabe, é destacado que, como a poesia produz no leitor uma percepção nova sobre a realidade, a leitura desse gênero é uma experiência renovada, deveria estar presente nas ações escolares. A autora conclui “nada mais fecundo que ela [a poesia] para embasar o exercício crítico e a perspectiva transformadora.” (p. 54).

Graça Paulino focaliza um tema que lhe é caro: a existência de uma especificidade para a leitura literária. Retoma as reflexões de Magda Soares sobre a leitura e sua transitividade, predominantemente de textos informativos, avaliada em pesquisas como as realizadas pelo PISA. Na sequência, apóia-se em contribuições da Teoria Literária para pensar a leitura da literatura e, para fomentar a discussão, busca subsídios de Wolfgang Iser. Problematiza a separação de habilidades cognitivas, afetivas, estéticas e sociais, presentes na leitura, pois todas estão presentes nesse ato. O ato de ler abrange e desenvolve “habilidades complexas e competências sociais de seus leitores” (p. 61). A segunda parte do livro, “Mediação em espaços de leitura”, segue os fundamentos destacados: ler é uma ação transitiva e dependente da natureza do texto e do repertório do leitor. Esse bloco é constituído por vozes brasileiras, portuguesas e francesas. As reflexões vindas de Portugal são de Maria de Lourdes Dionísio e de António Branco. Em “Literatura, leitura e escola. Uma hipótese de trabalho para a construção de um leitor cosmopolita”, Dionísio pensa a formação de um leitor cosmopolita e destaca que um projeto de formação desse leitor depende da visão social e histórica que se tem de homem. Defende um projeto de leitura que instrumentalize os sujeitos para interagir “eficaz e criticamente” com os “múltiplos eventos textuais e discursivos”. Para tanto, ressalta o caráter humanizador da literatura e assegura que um projeto de leitura deve priorizar o indivíduo e não a leitura ou o livro. O artigo de António Branco “Da 'leitura literária escolar' à 'leitura escolar de/da literatura': poder e participação” é aquele texto que todo professor de literatura deveria ler, para se pensar como docente dessa área do conhecimento. O pesquisador propõe a reflexão por meio da dicotomia: leitura literária x leitura de/da literatura; leitor profissional x leitor amador. Discorre sobre a leitura da literatura como um exercício de incertezas, ao afirmar que o saber produzido pela leitura da literatura é provisório. É da natureza da literatura a plurissignificação, mas muitas vezes esse traço peculiar é esquecido em prol de uma significação superior a outras tecidas por leitores amadores. Como contribuir para o letramento literário com tal postura? Do Brasil, ouvimos a voz de Aparecida Paiva e Francisca Maciel, que escrevem “Discursos da paixão: a leitura literária no processo de formação do professor das séries iniciais” e de Egon Rangel, com o artigo “Literatura e livro didático no ensino médio: caminhos e ciladas na formação do leitor”. O primeiro texto relaciona leitura, literatura e a atuação do professor dos anos iniciais, na perspectiva do letramento e, na sequência, descreve

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o projeto “Discursos da paixão”, realizado na UFMG, no curso de Pedagogia, que consiste, simplificando, em convidar leitores para conversar com acadêmicos desse curso sobre sua paixão de ler. O artigo discute, portanto, o processo de mediação docente, a partir de depoimentos de leitores de diversas áreas do conhecimento. Rangel, coordenador de processos de avaliação de livros didáticos do PNLD, insiste no estudo do manual didático. Neste artigo, discorre sobre alguns princípios e critérios empregados na avaliação da proposta pedagógica para o ensino de Literatura em livros didáticos de português e defende que o estudante tem o direito de experienciar a literatura com a liberdade que é intrínseca a esse texto.

Anne-Marie Chartier fala a partir do seu entorno, a França. No artigo “Que leitores queremos formar com a literatura infanto-juvenil?” alerta sobre peculiaridades da literatura infanto-juvenil que está sendo produzida e sobre as formas de mediação. Questiona, por exemplo, se as finalidades do gênero são as mesmas quando é utilizada no espaço privado da família ou no público da escola. Ressalta que essas leituras contribuem para a formação da personalidade, da inteligência, o caráter e não apenas para consumir impressos ou compradores de livros. Entre outros pontos levantados nesse texto, destacamos que a autora aponta que “a virtude dos livros é a de mudar, pela ficção, nosso olhar sobre a realidade.” (p. 144)

No último bloco do livro, Literatura, história, memória, formação de leitores, encontramos as professoras Regina Zilberman e Ivete Walty.

A pesquisadora gaúcha, em “Memória entre oralidade e escrita”, recupera o conceito de memória em vários autores e estabelece uma reflexão sobre o lugar da memória na oralidade e na escrita. A memória aparece como fundamental na narrativa e, a partir de Walter Benjamin, discute essa faculdade como condição do narrador e, por extensão, do leitor. A autora concebe a narrativa como “espaço em que a memória se manifesta” e acrescenta que a mudança do oral para o escrito é mais do que uma alteração do suporte, mas implica que a forma não seja mais alterada, ignorando, portanto, as subjetividades advindas da oralidade.

Walty analisa seu percurso de leitora a partir de um tipo especifico de livro: a antologia. A pesquisadora focaliza o caráter formativo das seleções. Em “‘É de menino que se torce o pepino’: antologia e formação do leitor”, a pesquisadora destaca a obra Coração infantil, de Vicente de Peixoto.

A sexta obra do CEALE, publicada pela Coleção Literatura e Educação, contribui para repensar o papel da leitura da literatura na formação do cidadão. Cada um dos capítulos ressalta um aspecto do tema. Sempre numa linguagem clara e acessível ao estudante de licenciatura, ao professor de séries iniciais, ao professor de Língua Portuguesa e de Literatura, em diferentes níveis, ao bibliotecário. Sabemos que, de um modo geral, há uma indefinição quanto à presença da Literatura na escola, quanto ao modo como ela se efetiva na vida das pessoas. Obras como as que o CEALE tem publicado e como Leituras literárias: discursos transitivos buscam de fato fazer o trânsito entre o livro literário, sua leitura e a significação do texto pelo leitor iniciante que ainda precisa do apoio do um leitor mais experiente que o introduza no universo simbólico da literatura. A obra contribui para que esses leitores mais experientes possam repensar velhas práticas de leitura e criar outras, de acordo com as inquietações do leitor jovem e a preocupação de humanizar a sociedade contemporânea.

Referência bibliográfica JAUSS, H.R. (1994). A história da literatura como provocação a teoria literária. São Paulo: Ática.

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- F.B. Ramos é Mestre e Doutor em Letras (Pontifícia universidade Católica – Rio Grande do Sul). Atua como Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Endereço para correspondência: Rua Antonio Xavier da Luz, 710, Caxias do Sul, RS 95070-040. E-mail para correspondência: [email protected].

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POLÍTICA EDITORIAL

Ciências & Cognição (Cien. Cogn.) é um periódico quadrimestral que publica artigos de caráter acadê-mico que tratem de questões da mente, do comportamento humano, da capacidade de produzir, assimilar e distri-buir conhecimento, bem como do funcionamento do cérebro em si. Privilegia-se a abordagem multidisciplinar dos temas. O periódico aceita colaborações em português, espanhol e inglês, reservando-se o direito de publicar ou não, após avaliação do material submetido espontaneamente.

O projeto cognitivista empenha esforços interdisciplinares com o fim de estabelecer uma compreensão acerca das relações mente-cérebro. Neste sentido, estabelece um rico diálogo entre diferentes campos acadêmi-cos na confecção de um mosaico teórico sobre o conhecer e o conhecimento, ou seja, como o ser humano pensa, se expressa, compreende, aprende e apreende o seu entorno. Originalmente, eram compreendidas por Ciências da Cognição ou Ciências Cognitivas: as Neurociências, a Psicologia, a Linguística, a Filosofia e a Inteligência Arti-ficial. Esta perspectiva se expandiu diante da natureza complexa do projeto cognitivista, passando a abraçar ou-tras áreas e sub-áreas, tais como a Educação (p.e. ensino-aprendizagem), Engenharia do Conhecimento, Ciências Sociais (p.e. sociologia, antropologia e história do conhecimento) Ciências da Saúde (p.e. Saúde Coletiva, Psi-quiatria), Ciências Sociais Aplicadas (p.e. gestão de informação, estética de massa e linguagens), dentre tantos outros (ver mapa de áreas, sub-áreas e especialidades relacionadas).

Alinhado com este projeto, o periódico Ciências & Cognição orienta sua política editorial para a divul-gação de trabalhos científicos de caráter multidisciplinar voltados para a compreensão dos fenômenos cognitivos em sua complexidade, ampliando o horizonte dos debates acadêmicos em torno do tema. O QUE PODE SER SUBMETIDO

O material submetido à Cien.Cogn. deve se enquadrar em uma das seguintes seções, a saber:

• Editorial: restrito ao Conselho Editorial. • Artigos Científicos (empírico, experimental ou teórico): material inédito oriundo de investigação científi-

ca. O material deve ser original (dados) e destinado exclusivamente para esta revista, não tendo sido publi-cado integralmente em nenhum outro veículo. Aconselha-se o máximo de 30 páginas.

• Revisões de Literatura (sistemática): A revisão sistemática (systematic overview; overview; qualitative review) é planejada para responder a uma pergunta específica, utiliza métodos explícitos e sistemáticos para identificar, selecionar e avaliar criticamente os estudos, e para coletar e analisar os dados destes estudos in-cluídos na revisão. Faz uso da estruturação para evitar tendenciosidade em suas partes. Aconselha-se o má-ximo de 30 páginas.

• Ensaio Acadêmico: é um texto acadêmico breve, de cunho didático, expondo idéias, críticas e reflexões científicas a respeito de certo tema. É menos formal e mais flexível que o artigo científico. Consiste também na defesa de um ponto de vista pessoal e subjetivo sobre um tema, sem que se paute exclusivamente em do-cumentos ou provas empíricas ou dedutivas de caráter científico.

• Resenhas Críticas: descrição, exame e o julgamento de obra recente (não mais que 3 anos). Elaborada de modo impessoal, deve conter posicionamentos de ordem técnica diante do objeto de análise, seguidos de um resumo do conteúdo e possivel demonstração de sua importância. Aconselha-se o máximo de 5 páginas.

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHO Prazos

Os manuscritos podem ser submetidos a qualquer tempo (fluxo contínuo). Entretanto, caso sejam en-caminhados até as datas abaixo podem vir a ser indicados para o fascículo com fechamento nos prazos indica-dos. A submissão deve ser exclusivamente online, através do endereço eletrônico http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/about/submissions#onlineSubmissions

- 31 de janeiro para o volume com fechamento em 31 de Março. - 31 de maio para o volume com fechamento em 31 de Julho. - 31 de setembro para o volume com fechamento em 30 de Novembro.

Os prazos para avaliação variam de 30 a 120 dias úteis, dependendo da natureza do material submeti-do, sua complexidade e cumprimento das exigências editorias. O prazo mínimo se refere aos materiais: correta-mente formatados, que sigam as normas editorias previstas (envio de autorização, etc.) e que sejam recomenda-dos pelos pareceristas sem qualquer restrição e como prioritários.

Cien. Cogn. 2009; Vol 14 (1) <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 © Ciências & Cognição Normas para Publicação: 312-318.

Normas para Publicação

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Requisitos para submissão

O texto original, rigorosamente sob a forma estabelecida abaixo, deve ser apresentado como arquivo gravado em *.doc; Office XP ou 2007. Devem ser seguidos os seguintes parâmetros:

• Configuração de página: margens superior 3, direita, esquerda e inferior 2,5; folha A4; • Formatação de parágrafos: alinhamento justificado; recuo/identação de 1,25cm no início de cada parágra-

fo; espaço entre linhas simples; sem espaço entre parágrafos. Itens que devem ser verificados antes da submissão Os autores devem verificar a conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As sub-missões que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores.

1. A contribuição é original e inédita, e não está sendo avaliada para publicação por outra revista; caso contrário, deve-se justificar em "Comentários ao Editor".

2. URLs para as referências de internet foram informadas quando necessário. 3. O texto está formatado conforme o critério adotado pelo revista (APA) em espaçamento simples; usa

uma fonte de 12-pontos; emprega itálico em vez de sublinhado (exceto em endereços URL); as figuras e tabelas estão inseridas no texto, não no final do documento, deverão também ser carregadas como do-cumento suplementar.

4. O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes para Autores, na seção Sobre a Revista do site.

5. A identificação de autoria do trabalho foi removida do arquivo e da opção Propriedades no Word, ga-rantindo desta forma o critério de sigilo da revista, caso submetido para avaliação por pares (ex.: arti-gos), conforme instruções disponíveis em Assegurando a Avaliação Cega por Pares .

6. Arquivos de imagens e sons devem ser anexados ao longo do processo de submissão como "Documen-tos Complementares".

7. Foi elaborado um arquivo, em separado, contendo nome de todos os autores, filiação institucional e breve currículo (máx. de três linhas) para os autores de correspondência, que será careregado como do-cumento suplementar.

Responsabilidade dos autores

Deve ser enviada obrigatoriamente, por correio postal, carta de encaminhamento dirigida aos Editores, assinada por todos os Autores do estudo ou pelo Autor responsável (modelo disponível no site www.cienciasecognicao.org), contendo:

• Termo de Autorização para o processo editorial de seu texto (Anexo 1); • Declaração de Garantia de que os procedimentos éticos referentes a um trabalho científico foram atendidos

e da responsabilidade do autor pelo conteúdo; • Declaração de inexistência de Conflito de Interesses; e • Concessão dos direitos autorais do texto à Ciências & Cognição. • Endereço completo de um dos Autores para correspondência (incluir CEP, fone, fax e e-mail).

O processo de avaliação do manuscrito será interrompido no caso de não recebimento da documentação assinada e enviada via correio postal, até regularização. A Carta deve ser remetida para:

Revista Ciências & Cognição - A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Sala G2-032, Bloco G, CCS, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Carlos Chagas Filho S/N - Cidade Universitária

Ilha do Fundão - Rio de Janeiro, RJ 21.941-902, Brasil.

Declaração de Direito Autoral O(s) autor(es) transfere(m) à revista Ciências & Cognição, com exclusividade e sem ônus, todos os di-

reitos de publicação, em qualquer meio, do artigo submetido. Declara(m) e garante(m) que:

• os procedimentos éticos referentes a um trabalho científico foram atendidos;

Cien. Cogn. 2009; Vol 14 (1) <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 © Ciências & Cognição Normas para Publicação: 312-318.

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• no caso de estudo com humanos, foi conduzido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e de suas emendas, com o consentimento informado aprovado por Comitê de Ética devidamente credenciado e com a Resolução 1595/2000, do CFM*;

• a responsabilidade pela informações e pelo conteúdo são do(s) autor(es).

Política de Privacidade

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros. Procedimentos Editoriais

O processo de avaliação só será iniciado se forem obedecidas todas as condições acima. Se o texto esti-ver de acordo com as normas aqui mencionadas, será registrado. A confirmação do recebimento e registro será enviada ao autor por e-mail. O texto será encaminhado ao Editor da área envolvida, sendo encaminhado a 2 (dois) Pareceristas membros do Comitê Científico da revista, ou para consultores ad hoc, em casos extraordiná-rios. Os Pareceristas são escolhidos pelos Editores, entre pesquisadores de reconhecida competência acadêmica.

A autoria do texto não é informada aos Pareceristas ou Consultores ad hoc, bem como a identidade des-tes não é informada aos Autores. Os Pareceristas tem o prazo de 5 (cinco) dias para informar se aceitam ou não a avaliação de um determinado texto (mencionando a razão do impedimento). Em caso de aceite, cada Pareceris-ta tem o prazo de 15 (quinze) dias para elaboração de sua avaliação, podendo ser ampliado segundo condições especiais. Caso o texto não esteja dentro da expertise dos Pareceristas, será encaminhado, nas mesmas condições a Consultores ad hoc de reconhecido saber, com renovação dos prazos. Os Pareceristas e/ou Consultores ad hoc, após análise do texto, poderão opinar pela: recomendação, recomendação com restrições e não recomendação. O Autor receberá cópia dos pareceres dos Pareceristas/Consultores.

Em caso de não recomendação, o Autor poderá submetê-lo novamente depois de cuidadosa revisão, considerando os pareceres recebidos. Salvo impedimento, o texto ressubmetido é encaminhado aos mesmos Pa-receristas/Consultores ad hoc.

Em caso de recomendação com restrições, o autor poderá apresentar em 30 (trinta) dias a versão refor-mulada do texto para reapreciação, acompanhada de carta do autor aos Editores, informando as modificações efetuadas e justificando as não realizadas. Esta carta e o texto reformulado são encaminhados aos Editores, jun-tamente com a versão original e pareceres dos Pareceristas/Consultores para análise. Os Editores podem rejeitar as alterações e sugerir modificações (quantas vezes forem necessárias) ou indicar o texto reformulado para pu-blicação. Em casos de maior complexidade, podem ressubmeter à apreciação dos pareceristas.

O texto aceito será encaminhado para elaboração da Prova (*.pdf) e enviado ao autor para que seja con-ferida e devolvida com possíveis correções (exceto no título ou no nome do(s) autor(es)), no prazo de 3 (três) dias. A não devolução, no prazo estipulado, implicará na concordância do autor.

A decisão final sobre a publicação de um texto cabe aos Editores, auxiliados pelos pareceres. O autor é comunicado sobre o resultado final da avalição, por e-mail, indicando o volume, número e data prevista para publicação.

Direitos Autorais

São da revista eletrônica Ciências & Cognição os direitos autorais de todos os artigos por ela publica-dos. A reprodução de qualquer artigo em outras publicações, por quaisquer meios, requer autorização por escrito dos Editores. Reproduções parciais de artigos (resumo, abstract, mais de 500 palavras de texto, tabelas, figuras e outras ilustrações, arquivos sonoros ou de vídeo) deverão ter permissão por escrito dos Editores. APRESENTAÇÃO DO TEXTO Partes do Texto Original e Roteiro para Apresentação do Texto Original:

Use itálico em palavras ou expressões a serem enfatizadas e para palavras estrangeiras. Use negrito a-

penas nos título e subtítulos. Não use palavras sublinhadas ao longo do texto, nem marcas d’água.

• Título na língua empregada no artigo (fonte Times New Roman, tamanho 16, negrito, centralizado). • Título em inglês (fonte Times New Roman, tamanho 12, itálico, centralizado). No caso de artigos submeti-

dos em lingua inglesa, deve ser apresentado ainda um título em português. Artigos submetido em espanhol devem conter títulos também em português e inglês.

• Resumo (em português, entre 1000 e 1500 caracteres (incluindo espaços), fonte Times New Roman, tama-nho 12, justificado, recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). O resumo deve apresentar brevemente

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os objetivos, método, resultados e discussão do estudo. Não precisa incluir informações sobre a literatura da área, nem referências bibliográficas. O objetivo deve ser claro, informando, caso for apropriado, qual o problema e as hipóteses do estudo. Para os relatos de pesquisa, o método deve oferecer informações breves sobre os participantes, instrumentos e procedimentos especiais utilizados. Apenas os resultados mais impor-tantes, que respondem aos objetivos da pesquisa devem ser mencionados no resumo, sem detalhamento. É vetado o uso de abreviaturas não convencionais ou sem prévia colocação por extenso do termo abreviado. Artigos submetidos em espanhol devem conter ainda um resumen.

• Palavras-chave (em português, fonte Times New Roman, tamanho 12, justificado e com recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). No mínimo 3 e no máximo 6, letras minúsculas, separadas com ponto e vír-gula.

• Abstract (resumo traduzido para o inglês, fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, justificado e com recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). Deve corresponder ao conteúdo explicitado no Re-sumo.

• Keywords (fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, justificado e com recuo de 1,25cm nas mar-gens direita e esquerda), palavras-chave traduzidas para o inglês, ou termos correspondentes.

• Corpo do Texto: Quando o texto for um relato de pesquisa deverá apresentar Introdução, Materiais e Mé-todo (quando for o caso, ou Metodologia), Resultados, Discussão e Referências Bibliográficas, numera-dos em arábico, assim como possíveis subtítulos. Os Subtítulos devem aparecer em negrito, alinhados à margem esquerda, precedidos e seguidos de uma linha em branco. Em Revisões, pode-se utilizar o recurso de um Índice (sem paginação) apresentando a lista dos tópicos e dos subtópicos. Tabelas devem ser elabo-radas separadamente, em documentos formato Word (*.doc), nomeados conforme estejam citados no texto. Indicar no texto o lugar onde serão incluídas.

• Figuras, Fotos e áudios. As figuras contendo fotos ou gráficos devem ser enviadas inseridas no texto e separadamente (documento suplementar), em arquivo anexo, no formato *.tiff (resolução de 300 dpi a 600 dpi). Indicar no texto, abaixo da figura, breve legenda para a mesma e fonte, quando não for produzida pelo autor. Salvar os arquivos com nomes correspondentes (Exemplo: figura1.tiff). Arquivos de áudio também devem ser enviados anexados, no formato *.mp3, já editados. Os arquivos serão incluídos exatamente onde indicados. Citar autoria, data e local de gravação. Não nos responsabilizamos pelo uso indevido das grava-ções por terceiros. Ao nomear imagens ou áudios não use letras maiúsculas, acentuação, espaços ou caracte-res especiais. Verificar legibilidade de linhas e dados em gráficos e/ou tabelas.

• Agradecimentos e créditos a instituições de financiamento deverão aparecer no final do texto e antes do item Referências Bibliográficas.

• Referências Bibliográficas O periódico Cienc. Cogn. segue as normas internacionais da APA, e não a ABNT . Detalhamos das normas da APA na seção Normas para citações (ver abaixo).

• Notas devem ser indicadas por algarismos arábicos, sobrescrito, no corpo do texto. Devem ser listadas após as Referências Bibliográficas, com o título Notas (não usar o recurso “Inserir Notas...” do Word).

• Anexos (quando houver) devem ser indicados no corpo do texto e apresentados no final, após as Referências Bibliográficas/Notas, identificados por letras maiúsculas (Anexo A, etc.) e por títulos adequados. Usar ane-xos somente quando for imprescindível.

• Autor para Correspondência. Deve incluir breve descrição sobre as atividades atuais do Autor: formação, vínculo atual, e-mail e homepage, caso haja. Se desejar, colocar endereço completo para correspondência.

Em arquivo separado, serão informados os dados dos autores (modelo - Anexo 2), o qual deverá ser car-

regado no site, como Documento Suplementadeverá constar: • Título na língua empregada no artigo (fonte Times New Roman, tamanho 16, negrito, centralizado). • Título em inglês (fonte Times New Roman, tamanho 12, itálico, centralizado). No caso de artigos submeti-

dos em lingua inglesa, deve ser apresentado ainda um título em português. Artigos submetido em espanhol devem conter títulos também em português e inglês.

• Nome dos Autores (fonte Times New Roman, tamanho 12, negrito, centralizado). O(s) autor(es) para cor-respondência deve(m) ser sinalizado(s) com um asterisco. Usar indicativo para instituições diferentes entre os autores.

• Afiliação institucional e o país (fonte Times New Roman 12, centralizado). Incluir nome da universidade, Institutos, Centros de Pesquisa, cidade, país.

• Breve currículo do autor de correspondência (máximo de 5 linhas), contendo sua titulação, víinculo atu-al, endereço para correspondência e e-mail.

Cien. Cogn. 2009; Vol 14 (1) <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 © Ciências & Cognição Normas para Publicação: 312-318.

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NORMAS PARA FAZER CITAÇÕES

Observe rigorosamente as normas de citação. Todos os estudos referidos devem ser acompanhados dos créditos aos autores e das datas de publicação.

Trabalho de única autoria: O nome do autor deve ser seguido da data de publicação, na primeira vez em que for citado, em cada parágrafo. Exemplos: (Santos, 2000) ou Santos (2000).

Trabalhos com dois autores: Citar no texto os dois sobrenomes dos autores (usando o separador e) sempre que o artigo for referido, acompanhado da data do estudo entre parênteses. A citação também poderá ser feita com os sobrenomes entre parêntesis separados por uma vírgula do ano de publicação. Exemplo: “Santos e Silva (1999) dizem...” ou ... na época (Santos e Silva, 1999).

Trabalhos com três ou mais autores: Quando a citação for inserida como parte do texto, citar apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido de "e colaboradores" e da data de publicação entre parênteses (exemplo: Santos e colaboradores (2000) dizem...). Na seção de Referências Bibliográficas, todavia, todos os nomes dos autores deverão ser relacionados. A citação, no corpo do texto, também poderá ser feita apenas entre parênteses, onde o sobrenome do primeiro autor deverá ser seguido pela expressão et al. – em itálico – seguido por uma vír-gula e o ano de publicação (Exemplo: Santos e colaboradores (2003) ou (Santos et al., 2003)).

Citação de obras antigas e reeditadas: autor (data de publicação original/data de publicação consulta-da). Evite citações secundárias, quando o original pode ser recuperado com facilidade. Quando necessário, in-formar no corpo do texto o nome do autor que faz a citação original e a data de publicação do estudo, e, em no-ta, a referência bibliográfica original. Somente a obra efetivamente consultada deve ser listada nas referências bibliográficas. Usar, nos casos de citação secundária, os termos apud, op. cit., id. ibidem etc.

Citação literal de texto: deve ser indicada colocando o trecho entre aspas e deve incluir a referência ao número da página da publicação da qual foi copiado (Santos, 2000: 16). Citações de mais de três linhas de-vem ser apresentadas em novo parágrafo, recuado de 0,5 cm da margem esquerda e direita.

Lista de Referências Bibliográficas. Deixar uma linha em branco entre cada referência bibliográfica. Apresentar as referências em ordem alfabética, pelo sobrenome dos autores, apenas com as inicias em maiúscu-lo. Referências a vários estudos do mesmo autor são apresentadas em ordem cronológica, do mais antigo ao mais recente. Quando coincidirem autores e datas, utilizar letra minúscula como diferenciador após a data: San-tos (2000a), Santos (2000b). Ao repetir nomes de autores não substituir por travessões ou traços. Não usar os comandos “sublinhado” ou “negrito” nesta seção. Os grifos, quando necessários, devemseguir os exemplos a-baixo. Exemplos de Citação na Lista de Referências: Artigo de Revista Científica Bloch, M. (1999). As transformações das técnicas como problema de psicologia coletiva. Signum, 1, 169-181. Artigo de Revista Científica Ordenada por Fascículo - Citar como no caso anterior, e acrescentando o número do fascículo, entre parênteses, sem sublinhar, imedia-tamente após o número do volume: Dunaway, D.K. (1991). The oral biography. Biography, 14 (3), 256-266. Artigo de Revista Científica no Prelo - No lugar da data, indicar que o artigo está no prelo. Não referir data, volume, fascículo ou páginas até que o artigo seja publicado. No texto, citar o artigo indicando, entre parênteses, que está no prelo. Texto Publicado em Revista de Divulgação Comercial - Havendo indicação do autor, iniciar a citação pelo sobrenome e inicial do nome, seguido do ano, dia e mês en-tre parênteses, nome do artigo, nome da revista em itálico, volume e páginas: Toledo, R.P. (2001, 23 de maio). O santo de Assis – Jacques Le Goff. Veja, 20, 160. - Quando o texto não indicar o autor, iniciar com o título, seguido do ano, dia e mês, nome da revista em itálico, volume e páginas. Como no exemplo a seguir: As armas do barão assinalado (1998, maio). Bravo!, 8, 58-63. Livro com Autoria Única Halbwachs, M. (1925). Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France. Livro Organizado por um Editor Neisser, U. (Ed.). (1982). Memory observed: remembering in natural contexts. San Francisco: Freeman.

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Capítulo de Livro Benjamin, B.S. (1967). Remembering. Em: Donal, F. G. (Ed.). Essays in philosophical psychology (pp. 171-194). London: Macmillan. Capítulo ou Artigo Traduzido para o Português de uma Série de Múltiplos Volumes Bausola, A. (1999). O Pragmatismo (Capovilla, A.P., Trad.). Em: Rovighi, S.V. (Ed.). História da Filosofia Contemporânea. Do século XIX à Neoescolástica (Vol. 8, pp. 459-471). São Paulo: Edições Loyola. (Original publicado em 1980). Livro Traduzido para o Português Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas (Muchail, S.T., Trad.). São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. (Original publicado em 1966). Texto Publicado em Enciclopédia Stroll, A. (1990). Epistemology. Em: The new encyclopedia Britannica (Vol.18, pp. 466-488). Chicago: Ency-clopedia Britannica. Trabalho Apresentado em Congresso, mas Não-publicado Massimi, M. (2000, outubro). Identidade, tempo e profecia na visão de Padre Antônio Vieira. Trabalho apresen-tado na XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Brasília, Brasil. Trabalho Apresentado em Congresso com Resumo Publicado em Anais Pantano, D.M. (1997). Epistemología, Historia y Psicología [Resumo]. Em: Sociedade Interamericana de Psico-logia (Org.), Resumos/Abstracts, XXVI Congresso Interamericano de Psicologia (p. 85). São Paulo: SIP. Trabalho Apresentado em Congresso e Publicado em Anais Campos, R.H.F. e Lourenço, E. (1998). Psicologia da criança e direitos humanos no pensamento do Instituto Jean-Jacques Rousseau – Genebra – 1912-1940. Em: Faculdade de Educação da UFMG (Org.), Anais, V Encon-tro de Pesquisa da FAE (pp. 154-166). Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG. Teses ou Dissertações Não-publicadas Xavier, C.R. (2001). Encontros e permutas entre dois pensadores: um estudo sobre as correspondências entre Wolfang Pauli e Carl Gustav Jung. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. Obra Antiga e Reeditada em Data Posterior Descartes, R. (1989). Les passions de l'âme. Em: Alquié, F. (Ed.), OEuvres philosophiques de Descartes. Tome III (pp. 939-1103). Paris: Bordas. (Original publicado em 1649). Autoria Institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.). Washington, DC: Autor. Comunicação Pessoal Carta, mensagem eletrônica, conversa telefônica ou pessoal podem ser citadas, mas apenas no texto, apresentan-do as iniciais e o sobrenome do emissor e a data completa. Não inclua nas referências. Web Site ou Homepage Para citar um Web Site ou Homepage na íntegra, incluir o endereço no texto. Não é necessário listá-lo nas Refe-rências. Artigos Consultados em Indexadores Eletrônicos Mello Neto, G. A. R. (2000). A psicologia social nos tempos de S. Freud. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Agosto 2000, 16(2), 145-152. Retirado em 28/06/2001, no World Wide Web: www.scielo.br/ptp . Resumos Consultados em Indexadores Eletrônicos Fornari, A. (1999). Las experiencias de pasividad como desafío a la razón [Resumo]. Cadernos de Psicologia, 9 (1). Retirado em 28/06/2000, de world wide web: http://psi.fafich.ufmg.br/cadernos/volume9.htm.

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Reprodução de Outras Publicações

Citações (com mais de 500 palavras), reprodução de uma ou mais figuras, tabelas ou outras ilustrações, bem como de arquivos sonoros, devem ter permissão escrita do detentor dos direitos autorais do trabalho original para a reprodução especificada em Ciências & Cognição. A permissão deve ser obtida pelos Autores do trabalho submetido. Os direitos obtidos secundariamente não serão repassados em nenhuma circunstância.

Desenhos e esquemas mesmo que modificados apenas serão admitidos com autorização. Entretanto, o Conselho Editorial coloca a disposição dos Autores, quando da diagramação da prova do artigo, de pessoal habi-litado a formular esquemas e montagens adequadas ao padrão estilístico da publicação. ANEXO 1 - Carta de Autorização – Modelo

CARTA DE AUTORIZAÇÂO

O(s) autor(es) abaixo assinado(s) transfere(m) à Revista Ciências & Cognição, com exclusividade e sem ônus, todos os direitos de publicação, em qualquer meio, do artigo ........................ Declara(m) e garante(m) que: - os procedimentos éticos referentes a um trabalho científico foram atendidos; - o artigo é inédito e não está sendo avaliado por outro periódico; - no caso de estudo com humanos, foi conduzido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e de suas emendas, com o consentimento informado aprovado por Comitê de Ética devidamente credenciado e com a Resolução 1595/2000, do CFM*; - a responsabilidade pela informações e pelo conteúdo são do(s) autor(es); - não existe Conflito de Interesses em relação ao material apresentado.” Nome completo (autor responsável) Endereço postal completo Endereço para correspondência a ser citado no artigo Telefone / fax, E-mail Assinatura de todos os autores * Resolução n. 1.595, do Conselho Federal de Medicina de 18-5- 2000, é obrigatório que os autores de “artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso em Medicina declarem os agen-tes financiadores que patrocinaram suas pesquisas. ANEXO 2 – Documento suplementar – Dados dos autores

Título

Título em inglês Autor

Instituição de vínculo, cidade, país.

A.B.C. Sobrenome é graduado em ... (UF...), Mestre em ..., Doutor em .... (UE...). Atua como Professor Adjun-to no Departamento de .... (UF??), Endereço para contato: . E-mails: .

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– L. G. L. Freire é Psi-cólogo esco-lar, mestran-do em Psico-logia da Edu-

– L.P. Rocha é Mo-nitor de Neu-rofisiologia, Programa de Neurobiolo-

- I.S. Pe-reira é gra-duando em Psicologia (UFC). E-mail para

– A. L. Rolnik é Monitor de Neurofisiolo-gia, Programa de Neurobio-

(4) Já para a inteligência artificial fraca o computador é uma ferra-menta útil

(3) John Se-arle define intencionali-dade como “a característica pela qual os

(2) Tradução minha. No original: “What is it like, for in-stance, to use

(1) Como se sabe, para demonstrar racionalmente a existência de todas as

- F. Régis é Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Atua como

- S. Jucá é Professor do CEFET-CE na Área da Indústria, graduado em

(26) Tradu-ção nossa: “em um sen-tido objetivo, real e físico, ao invés de

(32) Tradu-ção nossa: “Neste livro eu tentei um novo nível de descrição. Ele

(23) Tradu-ção nossa: “na percep-ção, a psique não adiciona elementos

(19) Tradu-ção nossa: “divide exis-tência em um unificado reino eterno

(17) Tradu-ção nossa: “não são fa-cilmente lo-calizáveis fisicamente,

(14) Tradu-ção nossa: “Uma banana é comestível para um chimpanzé

(13) Tradu-ção nossa: “para as a-ções serem apropriadas e efetivas elas

(11) Tradu-ção nossa: “informação para especifi-car as utilida-des do ambi-

(9) Tradução nossa: “… atividades perceptuais são atividades do percebe-

(10) Tradu-ção nossa: “… informa-ção sobre um mundo que circunda um

(7) Tradução nossa: “se uma superfí-cie terrestre normalmente horizontal …,

(6) Tradução nossa: “a al-tura do joelho de uma crian-ça não é a mesma altura

(5) Tradução nossa: “uma específica combinação das proprie-dades de suas

(3) Tradução nossa: “o que ele [ambien-te] ‘oferece’ ao animal, o que ele ‘pro-

(2) Tradução nossa: “per-cepção é vista como uma captação ati-va de infor-

(1) Tradução nossa: “as superfícies que separam as substâncias do meio no

- F. I. da S. Oliveira é Mestre em Filosofia (Fa-culdade de Filosofia e

- A.C.D. Miranda é Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Engenharia

- R.E. Eisenkrae-mer é Mes-tranda em Letras (UNISC), na

- N.K.Freitas é Psicóloga e doutora em Psicologia. Atua como

- P.L.M. Pederiva é Doutoranda (Faculdade de Educação, UnB). Atua

- A.M. Tokumoto é Pesquisadora Associada (UNESP). Endereço

- E.C. da Veiga é Dou-tora em Psi-cologia. Atua como Profes-sora do Curso

(4) A noção de jogo nos reporta à di-mensão lúdi-ca do fingi-mento – o faz

(3) O neolo-gismo enação corresponde à tradução do termo inglês enaction,

(2) Segundo Deleuze, o atual e o vir-tual se opõem e se comple-mentam, sen-

(1) Adotamos aqui o termo mimesis na acepção cor-rente, de imi-tação.

- M. I. Accioly é jornalista, consultora em comunicação corporativa e

- J. Mi-quel-Vergés trabalha no Departamento de Tradução e Linguística

- G.A. Castañon é graduado em Psicologia (UERJ) e em Filosofia

(4) “O dial o-gismo é, para Bakhtin, um termo usado para designar a negociação

(3) Hetero-glossia são os diferentes discursos voltados para uma mesma

(2) “A inter-textualidade é o processo de incorporação de um texto em outro,

(1) Bakhtin caracteriza a polifonia co-mo a “multi-plicidade de vozes e cons-

- Â.Á.C. Dias é Douto-ra (Universi-dade de Lon-dres). Atua como Profes-

(2) Embora a professora N. tenha de-monstrado aceitação na aplicação da

(1) Recorda-mos que esta proposta con-templava em muito as pro-postas dos

– E.D.C.W. Menegolo é Mestre em Educação (UFMT-

Divulga-ção Cien-

tífica

ção 2006; Vol 09: 1 6 2 - 1 6 8 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

ção 2006; Vol 09: 1 5 8 - 1 6 1 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio ção 2006; Vol 09: 1 5 0 - 1 5 7 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio ção 2006; Vol 09: 1 4 6 - 1 4 9 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio Ensaio ção 2006; Vol 09: 1 3 7 - 1 4 5 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

ção 2006; Vol 09: 1 3 1 - 1 3 6 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio ção 2006; Vol 09: 1 2 0 - 1 3 0 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão Revisão ção 2006; Vol 09: 1 1 1 - 1 1 9 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão ção 2006; Vol 09: 9 7 - 1 1 0 . <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

ção 2006; Vol 09: 9 1 - 9 6 . <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão Revisão ção 2006; Vol 09: 8 3 - 9 0 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Categoria B: 51% Categoria A: 49% Categoria D: 8% Categoria C: 8% Categoria B: 36% Categoria A: 48%

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ção 2006; Vol 09: 6 4 - 7 2 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

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