cintia schwantes

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  • Anais do XIV Seminrio Nacional Mulher e Literatura / V Seminrio Internacional Mulher e Literatura

    MUNDOS FICCIONAIS: CRTICA E PARDIA EM DIREITOS IGUAIS, RITUAIS IGUAIS.Cntia Schwantes

    Doutora - UnB Role Playing Games se estruturam em torno de sistemas de regras

    que determinam as possibilidades de ao de cada um dos jogadores no decurso de cada campanha. Os jogadores utilizam personagens aos quais atribuem caractersticas de raa, fora, armadura, habilidades mgicas e etc, e a cada uma se atribui um nmero de pontos. A cada ao, utilizam-se dados para determinar o sucesso ou o fracasso do personagem, assim introduzindo no jogo a variante da sorte, que modifica e modificada pelas caractersticas de cada personagem. Diferentes sistemas de RPG utilizam diferentes regras. Mas apenas regras no constituem um RPG. necessrio tambm um cenrio onde a ao possa se desenrolar. Esses cenrios so os mundos de RPG, criados em detalhes para abrigar aes condicionadas pelas regras. Diferentes sistemas tambm utilizam diferentes cenrios.

    Um dos subprodutos dos RPGs so os romances escritos utilizando como espao da narrativa um mundo de RPG, como a trilogia As Guerras da Lana (Drages da alvorada de primavera, Drages do crepsculo de outono e Drages da noite de inverno), e a trilogia Tormenta (O inimigo do mundo, O crnio e o corvo e O terceiro deus), que se passa no cenrio de Arton. Ambas utilizam o sistema D&D (Dungeons and Dragons). A funo de protagonista nesses romances exercida no por um nico protagonista, como geralmente acontece, mas por um grupo, de tamanho varivel, de personagens, denominado pare.

    Uma pare pode conter de quatro a seis personagens, que, no jogo, so impersonados pelos jogadores. Alm deles, h uma quantidade de personagens secundrios, jogados pelo mestre da campanha. O mestre atua como um narrador, apresentando situaes em que os personagens precisam tomar aes, e descrevendo o cenrio. Assim, nos romances, a funo do mestre desempenhada pelo narrador, e a dos personagens-jogadores, pelos personagens.

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    Os romances da serie Discworld, escritos pelo ingls Terry Pratchett, fizeram o caminho inverso; entre eles, Direitos iguais, rituais iguais1, que ser mais detidamente analisado aqui. Os romances se passam em um mundo de fantasia que no deve nada a qualquer mundo de campanha. O mundo chato, um plano equilibrado sobre quatro imensos elefantes que por sua vez repousam sobre o casco de uma enorme tartaruga, chamada Grande ATuin. H humanos, entre eles bruxas e magos, e anes. O bibliotecrio da Universidade Invisvel foi transformado em gorila por uma tempestade de mgica e no quis ser destransformado pois acredita que seus novos braos lhe permitem melhor realizar sua tarefa. Mas h tambm uma gama de diferenas em relao ao modelo original do RPG.

    Em primeiro lugar, o que chama a ateno do leitor que, embora no haja uma pare como nos romances de RPG, a funo de protagonista, em Direitos iguais, rituais iguais, partilhada por Vov Cera do Tempo e Eskarina. Podemos entende-las como mentora e aprendiz, e nesse caso teremos um romance de formao, mas essa interpretao encontra um percalo: nesse gnero literrio, mesmo quando a funo de protagonista partilhada, ela o por dois aprendizes. Mentores so personagens secundrios cuja funo possibilitar o aprendizado do protagonista, o aprendiz, ao redor de quem o enredo se desenvolve.

    Qualquer romance de RPG precisa de personagens capazes de agir dentro de sua especialidade sempre que necessrio (seu sucesso, bom lembrar, determinado pelo rolar dos dados). Assim, as personagens femininas so ativas em um mundo de fantasia que mimica, frequentemente, a Idade Mdia (caso das duas trilogias citadas). Elas podem ser clrigas, ou guerreiras, ou ladinas, e suas aes tero tanta chance quanto as de suas contrapartes masculinas, visto como ambos arriscaro a sorte nos dados. Dessa forma, as personagens femininas em romances de RPG so muito semelhantes a suas contrapartes masculinas, com espao e possibilidades de ao muito similares. Mesmo a questo dos relacionamentos amorosos, que costuma ser central para personagens femininas, aqui apenas parte

    1 O ttulo em ingls, Equal Rites, um trocadilho intraduzvel, uma vez que rites (ritos) homfono de rights, direitos.

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    de sua trajetria, e geralmente elas se envolvem com os personagens masculinos, que tambm investem nessas relaes. Em termos de estudos de gnero, esse tipo de narrativa coloca questes muito interessantes. Em um site dedicado obra de Pratchett, encontra-se a seguinte passagem:

    A central theme of this book (as well as of the other Discworld witch novels) is the contrast between on one side the (female) witches or wiccans, who are in touch with nature, herbs and headology, and on the other side the (male) wizards who are very ceremonial and use elaborate, mathematics-like tools and rituals.2

    Convencional como possa parecer essa diviso de tarefas, ela descrita com o intuito de ressaltar a singularidade da situao em que Eskarina se encontra: ela uma menina, e tambm maga. A Vov ensina a ela os segredos da profisso de bruxa ervas, encantamentos, emprstimos (entrar na conscincia de um animal) e, principalmente, cabeologia: a cincia de perceber o que o cliente procura e fornecer a ele, em primeiro lugar, a convico de que alcanar o que deseja. Esk, no entanto, anseia por mais, e ao perceber que ser impossvel circunscrever em um espao seguro o poder do cajado herdado pela menina, a mentora resolve leva-la para estudar na Universidade Invisvel. Aqui temos novamente um dos elementos do romance de formao: a viagem para uma grande cidade, com fins de aprimoramento educacional.

    No entanto, embora os elementos do romance de formao estejam presentes em Direitos iguais, rituais iguais, a obra na verdade parodia o gnero literrio. Os intertextos presentes em um romance apontam, como afirma Auerbach, para o tipo de recepo que o livro deve ter. Tomemos a dedicatria, nesse caso, como exemplo:

    2 http://www.lspace.org/books/apf/equal-rites.html. consultado em 11/08/2011. Um tema central desse livro (bem como outros romances sobre bruxas em Discworld) o contraste entre, de um lado, as (femininas) bruxas, que esto em contato com a natureza, ervas e cabeologia, e de outro (masculino) lado, os magos, que so muito cerimoniais e usam ferramentas e rituais elaborados, quase matemticos.

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    Obrigado a Neil Gailman, que nos emprestou o ultimo exemplar restante do Liber Paginarum Fulvarum 3

    Nesse caso, a dedicatria um epitexto, que traz elementos do mundo exterior para dentro da obra, mas sem se integrar a ela. Aqui, temos um epitexto que situa Direitos iguais, rituais iguais dentro de um mercado editorial, que fala do autor e suas relaes de parceria, e instaura um modo de ler. Vejamos as implicaes dele na leitura do romance:

    Neil Gaiman is the author of the acclaimed Sandman comics series, as well as Terrys co-author on Good Omens.Liber Paginarum Fulvarum is a dog-Latin title that translates to Book of Yellow Pages, i.e. not the Book of the Dead, but rather the Phonebook of the Dead. The book appears in Good Omens as well as in Sandman, where it is used in an attempt to summon Death Terry said (when questioned about it in a Good Omens context):Liber Paginarum Fulvarum is a kind of shared gag. Its in the dedication of Equal Rites, too ... 4

    Essa dedicatria coloca o romance em um nicho muito especifico do mercado livreiro: o das pessoas que leem quadrinhos. Sendo uma piada partilhada, ela indica tambm como o livro deve ser lido: sem muita seriedade. Aponta igualmente para uma camaradagem entre o autor do romance e um autor de historias em quadrinhos clssica, Sandman. Assim, 3 PRATCHETT, Terry. Direitos iguais, rituais iguais. So Paulo: Conrad, 2002, p. 7. Todas as citaes sero extradas dessa edio.4 http://www.lspace.org/books/apf/equal-rites.html. consultado em 11/08/2011. Neil Gaiman o autor da aclamada serie de quadrinhos Sandman, e tambm, co-autor, com Terry, de Good Omens (outro romance da serie Discwold N. da T). Liber Paginarum Fulvarum pretenso latim que significa Livro das paginas amarelas, i.e. no o Livro dos Mortos, mas sim a Lista Telefnica dos Mortos. O livro aparece em Good Omens e tambm em Sandman, onde usado em uma tentativa de convocar a Morte. ... Terry disse (quando questionado sobre Good Omens): Liber Paginarum Fulvarum um tipo de piada partilhada. Est na dedicatria de Direitos iguais, rituais iguais, tambm ... (Traduo minha)

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    embora no o devamos ler com excessivo siso, tampouco devemos ler sem profundidade. A dedicatria coloca Direitos iguais, rituais iguais como um texto que brinca com as certezas aceitas, mas que, nem por isso, deve ser ignorado ou recebido sem reflexo.

    Vov Cera do Tempo aparece em vrios dos romances da serie alguns personagens reaparecem ao longo dos livros, que podem, no obstante, ser lidos separadamente. No inicio de Direitos iguais, rituais iguais, ela est exercendo uma de suas mais reconhecidas funes, a de parteira, quando chega um mago moribundo que precisa entregar seu cajado (a fonte de sua magia) para seu sucessor, o oitavo filho de um oitavo filho. A esposa do ferreiro est em trabalho de parto e para l que o cajado guia o mago. Quando a Vov tenta alertar os homens, desconsiderada por ser uma bruxa (e portanto, tambm, uma mulher), e assim, o mago passa o cajado para o beb, que acontece ser uma menina. O mago morre, e a Vov decide ensinar Eskarina o seu oficio, uma vez que a diviso de tarefas bem estabelecida: assim como no h bruxos, tampouco h magas.

    No caminho para a Universidade Invisvel, Eskarina se apaixona por Simon, o aprendiz de mago que considerado por todos, inclusive os professores, um gnio. Eskarina falha em seu exame de admisso porque o edifcio, impregnado de magia, impede que o encantamento lanado por ela se realize. Mas falha tambm por que a magia existente na Universidade Invisvel no sabe dialogar com outro tipo de magia, aquela que ela no apenas aprendeu com a Vov, mas que seu talento individual, e seu legado do falecido mago. Eskarina jamais se separa do cajado que lhe foi dado, e ele uma fonte de magia que serve a ela, embora ela no entenda bem como. No entanto, a maior parte das coisas que a Vov ensina a ela parecem-lhe muito mais senso comum do que magia real.

    Eskarina no apenas cura Simon de sua gagueira, como tambm, com a ajuda da Vov, salva-o das Coisas, seres acinzentados que vivem em um universo paralelo e se alimentam de magia. Mas a funo da bruxa excede em muito a do tradicional mentor dos romances de formao. Boa parte da narrativa acompanha os movimentos dela, ainda que geralmente relacionados com sua pupila. Ela inicia a viajem com Esk rumo Ankh-

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    Morpork, onde fica a Universidade Invisvel; quando a menina se perde dela, implicitamente guiada pelo cajado, j que a Universidade no pode ser encontrada se no o quiser, consegue acha-la, mas no antes de Eskarina ter vivido algumas aventuras; quando sua pupila falha no exame de admisso, a Vov, que por larga experincia havia antecipado o fato, consegue faze-la entrar pela porta dos fundos, literalmente: Esk contratada como uma das empregadas da instituio.

    nessa qualidade que ela se encontra com Simon na biblioteca. Outra tempestade de magia permite a entrada das Coisas, que visam, claro, o mago mais poderoso. O cajado, que sempre havia protegido Esk, acerta Simon na cabea, e a menina, sem entender o acontecido, atira o cajado no rio. Simon fica desacordado; na tentativa de resgata-lo, a Vov resolve recorrer aos magos, e entra no Salo principal da Universidade Invisvel. O arqui-reitor, mago Cortangulo, na tentativa de expulsar a bruxa de um local de acesso proibido para mulheres, entra em duelo com ela. Duelos mgicos, normalmente envolvendo um mago e uma bruxa, so um recurso comum vide A espada era a lei e nesse caso, algumas das transformaes tem nice Freudian touches to the things they turn into5. Por exemplo, quando o mago transforma-se em uma cobra, Vov transforma-se em uma cesta de vime. Ao final, eles decidem juntar esforos, e ela encontra o cajado na companhia de Cortangulo. Esk, por sua vez, na tentativa de impedir que as Coisas entrem na mente de Simon, levada para o mesmo deserto gelado onde ele est, o local que elas habitam. As Coisas tentam convence-la a entregar uma miniatura de Discworld para elas implicitamente, permitindo que elas tomem conta do mundo. Nesse nterim, irrompe uma tempestade, e como o duelo deixara grandes estragos no prdio, todos se refugiam na biblioteca. para l que Vov e Cortangulo vo, e encontram Esk e Simon, desacordados. A mentora coloca o cajado nas mos da menina, mas isso no surte resultados. Ento ela infere que Esk precisaria ser maga para que a magia do cajado fosse efetiva. Aps breve resistncia, Esk feita maga em um ritual semelhante ao de todos os alunos e, aps derrotar as Coisas, desperta, despertando Simon tambm.

    5 http://www.lspace.org/books/apf/equal-rites.html. consultado em 11/08/2011. interessantes toques freudianos quanto as coisas nas quais se transformam.

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    O curioso que, como impossvel derrotar as Coisas usando magia, pois elas se alimentam, exatamente, da luz, Esk conclui que a maneira de vence-las escolhendo no usar magia. Isso ter implicaes na maneira como a magia passa a ser entendida, e praticada: Esk e Simon desenvolveram um tipo completamente novo de magia que ningum conseguia entender, mas que, mesmo assim, era considerado importante e, de certa forma, tranqilizador. 6

    Ao final, a Universidade Invisvel se abre para alunas meninas e Vov contratada como professora, como parte, tambm, da corte efetuada por Cortangulo, que a considera uma bela mulher quer dizer, deve ser, por baixo de todas aquelas roupas. Isso tambm configura um espao narrativo que excede em muito o que reservado para os mentores nos romances de formao.

    Como concluso, o romance aborda questes de gnero de uma forma bem humorada. Enquanto Esk e Simon uma nova gerao encontram com facilidade um ponto de harmonia, Vov resiste corte de seu pretendente pois ela sempre havia evitado cuidadosamente usar a porta da frente de sua casa que, na aldeia, s eram usadas por noivas e cadveres. Mas o final da narrativa nos d a entender que, como nova professora da Universidade Invisvel, ela ter que conviver muito com o arqui-reitor, ento, quem sabe? Papeis de gnero podem se transformar, mulheres podem performar tarefas consideradas masculinas, e a integrao entre homens e mulheres parece ser indicada como a melhor soluo:

    No entendo metade do que Simon diz lamentou Cortangulo. ... Entendo o que Esk fala, s no acredito Vov disse. A no ser aquela parte sobre os magos precisarem de corao. Ela tambm disse que as bruxas precisam de crebro rebateu Cortangulo. ...7

    6 PRATCHETT, Terry. Direitos iguais, rituais iguais. So Paulo: Conrad, 2002, p. 221.7 PRATCHETT, Terry. Direitos iguais, rituais iguais. So Paulo: Conrad, 2002, p. 219.

  • Anais do XIV Seminrio Nacional Mulher e Literatura / V Seminrio Internacional Mulher e Literatura

    Bibliografia

    AUERBACH, Erich. Introduo aos estudos literrios. 2ed. So Paulo, Cultrix, l972http://www.lspace.org/books/apf/equal-rites.html. consultado em 11/08/2011MAAS, Wilma Patrcia. O cnone mnimo: O Bildungsroman na histria da literatura. So Paulo: Ed. UNESP, 1999.PRATCHETT, Terry. Direitos iguais, rituais iguais. So Paulo: Conrad, 2002