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50 | MAR/ABR 2011 CONSUMIDOR MODERNO NOVAREJO nicho FOTOS Douglas Luccena ustavo Costa, 38 anos, estava cons- truindo uma carreira sólida no seg- mento de cartões de crédito. Era superintendente de operações da Bradesco Cartões em São Paulo, após passagem por Amex, e estava no caminho para conseguir boas promoções, status no mercado de trabalho e estabilidade financei- ra. Mesmo com tudo nos trilhos, porém, decidiu mudar o rumo e recomeçar do zero na longínqua e quente Belém do Pará, lugar que escolheu para abrir sua própria ad- ministradora de cartões de crédito, a Credmais, voltada exclusivamen- te para as classes C e D. Primeiro, quebrou a cabeça para encontrar uma forma de ga- rantir o cadastro de clientes oriun- dos do comércio informal, que não têm como comprovar renda. De- pois, teve de superar a dificuldade logística da cobrança, já que gran- de parte da população vive em pe- riferias sem endereço registrado ou em lugares cujo acesso é bastante restrito, como encostas de rios e ci- dades isoladas. Isso sem contar a adaptação das funcionalidades do cartão à real demanda da popula- ção, específica e pouco compreen- dida por quem não é de lá. Apesar das dificuldades, Gusta- vo e seus dois sócios já colhem os frutos dos quilômetros percorridos por estradas de terra e das andan- ças por comunidades ribeirinhas. A Credmais já está estabelecida em alguns Estados do Norte (Pará, To- cantins, Amapá, Amazonas e Acre) e Nordeste (Maranhão) e tem cerca de 80 mil clientes ativos, o que gera fa- turamento de R$ 30 milhões ao ano. A expectativa é ir bem mais lon- ge: oferecer os serviços em todas as 69 cidades com mais de 50 mil habi- tantes da região Norte, iniciar opera- ções em Estados do Nordeste (Piauí, Pernambuco e Alagoas) e prospectar negócios no Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), o que leva Gustavo a estimar um fatura- mento de R$ 200 milhões anuais em 2014. Nada mau para quem esteve perto de desistir do projeto nos pri- meiros meses, quando pensou que lidar com as classes baixas no norte do País era muito mais difícil do que gerir um dos maiores cartões de cré- dito do mundo. NOVAREJO Quando você percebeu que focar nas camadas mais popula- res era um bom negócio? GUSTAVO COSTA Já notava essa tendência de consumo, mas não tinha tanta informação sobre a re- gião. Em 2008, depois de consoli- dar o plano de negócios, fiz contato com um amigo de mercado que me disse “olha, tem uma pessoa em Belém que está se desfazendo de uma administradora já consolida- da, então você não precisa come- çar do zero”. Antes de fechar o ne- gócio, passei dois meses lá. Hoje, divido a administração com esse POR JULIO SIMÕES G DESBRAVADOR DAS CLASSES BAIXAS Um papo com Gustavo Costa, que comanda a Credmais na quente Belém do Pará O

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Reportagem publicada na revista NOVAREJO #16

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50 | Mar/abr 2011 CONSUMIDOR MODERNO NOVAREJO

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ustavo Costa, 38 anos, estava cons-truindo uma carreira sólida no seg-mento de cartões de crédito. Era superintendente de operações da Bradesco Cartões em São Paulo, após passagem por Amex, e estava no caminho para conseguir boas promoções, status no mercado de trabalho e estabilidade financei-ra. Mesmo com tudo nos trilhos, porém, decidiu mudar o rumo e recomeçar do zero na longínqua e quente Belém do Pará, lugar que escolheu para abrir sua própria ad-ministradora de cartões de crédito, a Credmais, voltada exclusivamen-te para as classes C e D.

Primeiro, quebrou a cabeça para encontrar uma forma de ga-rantir o cadastro de clientes oriun-dos do comércio informal, que não têm como comprovar renda. De-pois, teve de superar a dificuldade logística da cobrança, já que gran-de parte da população vive em pe-riferias sem endereço registrado ou

em lugares cujo acesso é bastante restrito, como encostas de rios e ci-dades isoladas. Isso sem contar a adaptação das funcionalidades do cartão à real demanda da popula-ção, específica e pouco compreen-dida por quem não é de lá.

Apesar das dificuldades, Gusta-vo e seus dois sócios já colhem os frutos dos quilômetros percorridos por estradas de terra e das andan-ças por comunidades ribeirinhas. A Credmais já está estabelecida em alguns Estados do Norte (Pará, To-cantins, Amapá, Amazonas e Acre) e Nordeste (Maranhão) e tem cerca de 80 mil clientes ativos, o que gera fa-turamento de R$ 30 milhões ao ano.

A expectativa é ir bem mais lon-ge: oferecer os serviços em todas as 69 cidades com mais de 50 mil habi-tantes da região Norte, iniciar opera-ções em Estados do Nordeste (Piauí, Pernambuco e Alagoas) e prospectar negócios no Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), o que

leva Gustavo a estimar um fatura-mento de R$ 200 milhões anuais em 2014. Nada mau para quem esteve perto de desistir do projeto nos pri-meiros meses, quando pensou que lidar com as classes baixas no norte do País era muito mais difícil do que gerir um dos maiores cartões de cré-dito do mundo.

Novarejo Quando você percebeu que focar nas camadas mais popula-res era um bom negócio?gustavo costa Já notava essa tendência de consumo, mas não tinha tanta informação sobre a re-gião. Em 2008, depois de consoli-dar o plano de negócios, fiz contato com um amigo de mercado que me disse “olha, tem uma pessoa em Belém que está se desfazendo de uma administradora já consolida-da, então você não precisa come-çar do zero”. Antes de fechar o ne-gócio, passei dois meses lá. Hoje, divido a administração com esse

Por Julio SiMõeS

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DesbravaDor Das cLasses baixas

Um papo com Gustavo Costa, que comanda a Credmais na quente

Belém do Paráo

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amigo, que toca a parte comercial e de relacionamento, e outro investi-dor de São Paulo.

NV Como funciona o cartão?gC Como é private label, o cartão está vinculado à marca do lojista, que usa o cartão tanto para fugir do carnê de crediário quanto para tentar fidelizar o cliente. Nós admi-nistramos em conjunto com as em-presas, mas todo o risco e inadim-plência ficam com a gente. Há um diferencial para o consumidor, inde-pendentemente de ser especifico de uma loja, ele também pode comprar em outras lojas credenciadas.

NV Qual é a maior dificuldade de ad-ministrar uma empresa voltada para as classes C e D?gC Essas classes vivem muito do aspiracional. É o sujeito que quer ter tudo, que quer ascender. Para lidar com essa camada, quanto menos complicado, melhor; as pessoas são muito diretas no relacionamento. Nosso contrato, por exemplo, tem duas páginas. Se eu entregar um contrato de cinco, ele não vai nem ler e ainda pode ficar desconfiado, achar que as letrinhas miúdas estão ali para enganá-lo. Nesse aspecto, os lojistas têm um papel fundamental porque são intermediários. O meu contrato é com o dono do estabele-cimento, mas o cartão é para o clien-te dele, então ele também ajuda na administração de maneira indireta, até para não perder o benefício.

NV Como ocorreu a adaptação ao consumidor do Pará?gC Um antigo gerente comercial nosso costumava dizer “quem é da região é quem tem a solução”. Ele disse isso porque, no começo das minhas andanças por lá, eu era muito desconfiado. Achava que boa parte do que os representantes co-merciais falavam – a questão das grandes distâncias, das dificuldades

“Baixa renda tem vocação

para consumir”

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para implementar o cartão – era des-culpa para não vender. Mas quando você pega a estrada, vê que é isso mesmo. Tem de experimentar aque-la realidade para chegar à melhor maneira de oferecer o produto. Por isso eu sempre lembro dessa frase.

NV Existe um estudo da WMcCann que aponta que pessoas da classe C costumam renegar locais que con-sideram muito chiques. Como você trabalha a marca e a abordagem junto aos clientes?gC Fazemos todo um trabalho de publicidade para mostrar para o cliente que ele pode. Talvez ele não possa tudo o que quer, mas ele já pode alguma coisa – e de uma ma-neira segura. Esse dado é muito real e a gente vê bastante por lá: as pessoas não costumam entrar em lojas sofisticadas ou bancos muito chiques. Esse, inclusive, é um dos méritos dos grandes magazines que se instalaram por aqui. No nosso caso, toda propaganda é feita com pessoas de lá, até para criar identi-dade. Não adianta colocar um loiro de olho azul que eu não vou vender nada. Mas não há uma fórmula, ain-da é muito na tentativa e erro.

NV Como se comportam os vare-jistas que adotaram o cartão dian-te desse crescimento das classes mais baixas?gC O foco do varejo é comprar e vender, e todos os varejistas lá são muito bons nisso. Só que o cresci-mento da renda e da presença em lojas está requerendo dos varejistas um maior conhecimento sobre con-ceder e analisar crédito, o que eles não têm. A realidade lá é diferente, há muita gente na economia infor-mal, existe a dificuldade de compro-vação de renda. Então o lojista vê uma administradora como a nossa como a salvação para o problema

de inadimplência – afinal de con-tas, cobrimos o prejuízo se o cliente não pagar. Por outro lado, já existem aqueles que usam o cartão como um instrumento de fidelização, para tra-zer o cliente para perto da loja.

NV Vemos muitas pesquisas, mas na prática como são o perfil e o com-portamento dos clientes do cartão Credmais? Há muita inadimplência?gCAs classes C e D são muito mais imediatistas. Nesse sentido, falta dar educação financeira, o que está nos nossos planos para o futuro. O Brasil vive uma fase próspera, mas passou por uma situação de inflação recente. Só que os jovens não vive-ram isso e tem um desejo enorme de consumir, mas não sabem como controlar. O cara vai em uma loja e quer um produto de R$ 1 mil, então divide em dez vezes de R$ 100, que cabe no orçamento. Só que ele faz isso várias vezes e, no final, dança. Ele deixa de pagar, sofre com os ju-ros e, em quatro meses, está lasca-do. Então eu acho que essa classe C, apesar de historicamente ser boa

pagadora, está mudando de perfil. Percebo também que muitas vezes há uma necessidade de ascender que suplanta o bom senso. O pen-samento é este: eu moro em uma palafita e não tenho banheiro, mas quero uma parabólica.

NV A oferta de crédito a camadas po-pulares é uma tendência que deve se manter nessa região?gC Existem números que indicam um grande crescimento demográfi-co no Norte, então haverá demanda. Até porque não criamos um negócio inovador, apenas adaptamos um já existente. Portanto nada impede que alguém que tenha um know-how no assunto vá lá e faça a mesma coisa. Acho até que há espaço para todo mundo. E vou além: na minha opi-nião, essa é a região mais promisso-ra do País, independentemente do setor em que se atue.

NV Qual sua expectativa com rela-ção ao crescimento das classes C, D e E que, juntas, movimentaram R$ 1,3 trilhão no ano passado?gC O fenômeno das classes mais baixas está longe de acabar. Talvez no Sul e Sudeste a coisa já esteja mais assentada, até porque o cresci-mento da população é menor e exis-te o hábito de poupar, de pensar no futuro. Mas a massa que está aqui em cima (Norte e Nordeste) ainda está consumindo.

Mas é preciso considerar a ma-croeconomia e os cortes feitos pelo governo federal, que obrigou empre-sas e bancos a repensar processos. Então este ano não será tão bom quanto o anterior, pois no Natal de 2010, por exemplo, o consumo na região Norte foi algo absurdo. Em todo caso, o que percebo é que essas pessoas têm vocação para consumir, por isso as classes mais baixas vão continuar nos surpreendendo.v

“Eu moro em uma palafita e não tenho

banheiro, mas quero uma parabólica”

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