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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 15/04/2012 ————————————————————————————————————————————— 1 Nº 12 Só existe um tipo de medicina, e é o tipo que cura - parte 1 (CARLOS BRAGHINI JR.) MEDICINA hay una sola, y es la que cura.” Esta frase é atribuída a um grande sanitarista e pediatra argentino, Florencio Escardó, que sofreu duras perseguições em seu país por discordar do discurso ortodoxo da medicina convencional. Durante muitos anos usei-a em minha assinatura de e-mail e, como ela nunca mais me saiu da cabeça, acabei por incluí-la em meu livro Ecologia Celular . Só existe um tipo de medicina, e é aquela que cura. Parece óbvio, não? Basta assistir aos inúmeros programas de televisão sobre saúde para se dar conta que a coisa não é tão simples. Peguemos a maior rede de TV: na sexta-feira, é possível assistir a um programa falando sobre o poder terapêutico das plantas e dos alimentos; no sábado, a notícia da noite é a nova vacina ou tratamento para lidar com uma doença grave e incurável; e fechamos o domingo ouvindo algum médico respeitável confirmar a reportagem engraçadinha mostrando que determinado tratamento não funciona, que não é científico, que as Sociedades Médicas não o reconhecem etc. Confuso, não? Muito. Se a frase que dá título a este artigo tem algum sentido para você, posso lhe dizer que você acabou de tomar partido e está no meio de uma discussão de classe, de uma luta de poder entre diversos segmentos de uma profissão. Sim, a medicina vive, desde seus primórdios, numa eterna disputa entre correntes de pensamento, uma tentando eliminar a outra. E por que não trabalham em conjunto? Pelo mesmo motivo que os povos se matam desde o início dos tempos: poder. Posso resumir o quadro atual num embate entre a medicina convencional ou ortodoxa (também chamada de medicina científica ou medicina baseada em evidências) e um grupo amorfo chamado de medicina alternativa ou complementar. Nesta briga pelo poder, quem perde são aqueles que deveriam ser os mais beneficiados: os pacientes. O título também expressa, de alguma maneira, minha maneira de pensar a respeito de como deveria ser a atuação médica. Sou médico clínico e não me especializei em nada. Fui professor de fisiologia humana nos primeiros anos pós- formado e acredito que esta base acabou por moldar minha forma de ver o paciente. Hoje, atuo mais próximo do que chamamos de medicina integrativa (ou medicina integral). Isto significa que eu não restrinjo minha atuação numa única forma ou ideologia: posso usar quiropraxia, osteopatia ou indicar cirurgia; posso prescrever homeopatia ou medicamentos alopáticos; posso indicar psicanálise ou sugerir dançar ou fazer mais amor. Quer dizer, posso ser médico. De novo parece óbvio, não? Mas acredite: o médico que pensa assim não pode almejar cargos importantes ou de direção numa instituição, e é melhor que guarde suas opiniões para si mesmo. A simples menção das palavras acima o afasta de seus pares e o coloca num limbo onde será submetido a escárnio e desdém. E é provável que o coloque sob suspeita, passível de punição pelos Conselhos Profissionais. Existem várias razões para isto acontecer, mas a medicina de hoje em dia está assentada sobre alguns paradigmas que devem ser rompidos para que ela volte a ter o status que tinha no passado e o médico recupere a autonomia de decidir o melhor para seus pacientes, algo hoje inexistente. Como disse uma vez José Antonio Campoy, diretor de uma das melhores revistas de saúde que já li, a espanhola Discovery DSALUD: ―O atual paradigma médico está morto, e o pior é que nem os médicos, nem os pacientes sabem disso!‖ Exagero? Vamos ver. A teoria da bala mágica Este termo (magic bullets) foi cunhado pelo ganhador do Nobel de Medicina de 1908, Paul Ehrlich, ao explicar seu conceito de que cada doença estaria atrelada a um alvo molecular, bastando assim encontrar as drogas que se ligassem a esses alvos. Ao serem administradas, atingiriam apenas o alvo da doença, deixando intactas as outras células do organismo. "A simples menção das palavras acima o afasta de seus pares e o coloca num limbo"

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Page 1: COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS Nº 12 PROFESSOR: … · revistas de saúde que já li, a espanhola Discovery DSALUD: ―O atual paradigma médico está morto, e o pior é que nem

COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 15/04/2012

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Nº 12

Só existe um tipo de medicina, e é o tipo que cura - parte 1 (CARLOS BRAGHINI JR.)

“MEDICINA hay una sola, y es la que cura.” Esta frase é atribuída a um grande sanitarista e pediatra argentino, Florencio Escardó, que sofreu duras perseguições em seu país por discordar do discurso ortodoxo da medicina convencional. Durante muitos anos usei-a em minha assinatura de e-mail e, como ela nunca mais me saiu da cabeça, acabei por incluí-la em meu livro Ecologia Celular. Só existe um tipo de medicina, e é aquela que cura. Parece óbvio, não? Basta assistir aos inúmeros programas de televisão sobre saúde para se dar conta que a coisa não é tão simples. Peguemos a maior rede de TV: na sexta-feira, é possível assistir a um programa falando sobre o poder terapêutico das plantas e dos alimentos; no sábado, a notícia da noite é a nova vacina ou tratamento para lidar com uma doença grave e incurável; e fechamos o domingo ouvindo algum médico respeitável confirmar a reportagem engraçadinha mostrando que determinado tratamento não funciona, que não é científico, que as Sociedades Médicas não o reconhecem etc.

Confuso, não? Muito. Se a frase que dá título a este artigo tem algum sentido para você, posso lhe dizer que você acabou de tomar partido e está no meio de uma discussão de classe, de uma luta de poder entre diversos segmentos de uma profissão. Sim, a medicina vive, desde seus primórdios, numa eterna disputa entre correntes de pensamento, uma tentando eliminar a outra. E por que não trabalham em conjunto? Pelo mesmo motivo que os povos se matam desde o início dos tempos: poder. Posso resumir o quadro atual num embate entre a medicina convencional ou ortodoxa (também chamada de medicina científica ou medicina baseada em evidências) e um grupo amorfo chamado de medicina alternativa ou complementar. Nesta briga pelo poder, quem perde são aqueles que deveriam ser os mais beneficiados: os pacientes. O título também expressa, de alguma maneira, minha maneira de pensar a respeito de como deveria ser a atuação médica. Sou médico clínico e não me especializei em nada. Fui professor de fisiologia humana nos primeiros anos pós-formado e acredito que esta base acabou por moldar minha forma de ver o paciente. Hoje, atuo mais próximo do que chamamos de medicina integrativa (ou medicina integral). Isto significa que eu não restrinjo minha atuação numa única forma ou ideologia: posso usar quiropraxia, osteopatia ou indicar cirurgia; posso prescrever homeopatia ou medicamentos alopáticos; posso indicar psicanálise ou sugerir dançar ou fazer mais amor. Quer dizer, posso ser médico. De novo parece óbvio, não? Mas acredite: o médico que pensa assim não pode almejar cargos importantes ou de direção numa instituição, e é melhor que guarde suas opiniões para si mesmo. A simples menção das palavras acima o afasta de seus pares e o coloca num limbo onde será submetido a escárnio e desdém. E é provável que o coloque sob suspeita, passível de punição pelos Conselhos Profissionais. Existem várias razões para isto acontecer, mas a medicina de hoje em dia está assentada sobre alguns paradigmas que devem ser rompidos para que ela volte a ter o status que tinha no passado e o médico recupere a autonomia de decidir o melhor para seus pacientes, algo hoje inexistente. Como disse uma vez José Antonio Campoy, diretor de uma das melhores revistas de saúde que já li, a espanhola Discovery DSALUD: ―O atual paradigma médico está morto, e o pior é que nem os médicos, nem os pacientes sabem disso!‖ Exagero? Vamos ver.

A teoria da bala mágica

Este termo (magic bullets) foi cunhado pelo ganhador do Nobel de Medicina de 1908, Paul Ehrlich, ao explicar seu conceito de que cada doença estaria atrelada a um alvo molecular, bastando assim encontrar as drogas que se ligassem a esses alvos. Ao serem administradas, atingiriam apenas o alvo da doença, deixando intactas as outras células do organismo.

"A simples menção das palavras acima o afasta de seus pares e o coloca num limbo"

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Foi em cima deste conceito que a medicina passou a depender cada vez mais da química, dando início à grande parceria entre esta indústria e a prática médica. Como expliquei no artigo sobre potencial zeta (http://www.ecologiacelular.com.br/content/potencial_zeta_agua_sangue_e_adoecimento), esta interdependência chegou ao campo das ideologias quando, no início do século passado, os governos europeus começaram a criar políticas proibindo as pesquisas e terapias que não fossem de base química.

Todos nós fomos criados segundo esta ideologia e, por isso, não achamos estranha a ideia propagada cotidianamente de que existe para cada doença, uma cura. A TV nos mostra isso a todo instante. Comeu demais? Há um remedinho para isso. Bebeu demais? É só abrir um envelope e misturar com água. Dor de cabeça? Há uma pílula para isto. Por isso achamos que precisamos de remédios para controlar a pressão, para baixar o colesterol, para controlar o diabete… Basta irmos ao médico e contarmos nosso problema para ele estabelecer um diagnóstico e definir o remédio correto. Pode parecer perfeitamente normal para você, mas aí está o resultado da ideologia que citei acima: que existem enfermidades que devem ser combatidas com drogas. E ainda acreditamos que esta droga atua somente naquilo com a qual ela se propõe a lidar.

Pode parecer lógico, mas é somente a interpretação química do conceito da bala mágica de Ehrlich. Uma outra forma se explicá-la seria assim: o caçador dá um tiro, a bala atravessa a floresta, desvia da árvore, passa por cima das rochas, desce em direção ao vale para finalmente atingir a caça lá embaixo. Estranho? Ué, então por que você acha mais fácil acreditar que tomando uma pílula que entra pela boca, cai no estômago, é absorvida no intestino, chega à corrente sanguínea, passa pelo fígado onde é metabolizada, segue até encontrar a área lesionada (e somente essa área), para finalmente entrar na célula afetada e fazer seu efeito? Mágico, não?

Não precisamos ser muito espertos para descobrirmos que a base farmacológica da medicina é sustentada por um conceito abstrato criado há mais de cem anos e o que a indústria farmacêutica tem feito desde então é tentar convencer os médicos e a população de que esta é a única teoria científica.

E dá-lhe departamento de marketing para lidar com os problemas desta teoria furada! Quer um exemplo? O próprio nome efeito colateral já é uma invenção mercadológica. A ciência chama de efeito secundário ou indesejado. Este efeito não tem nada de inesperado: é o efeito da droga mesmo. Achar que ela atua somente naquele local ou naquela célula é um raciocínio que não tem nada de científico. A droga não tem esta especificidade que tentam nos mostrar. É por isso que me diverti ao assistir no final do DVD What the Bleep!? Down the Rabbit Hole, traduzido aqui como Quem Somos Nós? Uma Nova Evolução (meu

amigo Gustavo Gitti tem uma síncope cada vez que alguém fala neste filme). O físico John Hagelin, criador da Teoria dos Campos Unificados, está numa mesa-redonda e profere esta frase emblemática:

“O problema das pessoas é achar que a comunidade científica é científica.”

A audiência cai na gargalhada diante da afirmação feita por um cientista. Eu chego a brincar em minhas palestras que ―todo cientista é um poeta‖. Na verdade, eu quero dizer que muito daquilo que muitos consideram ciência está baseado em teorias não comprovadas. É por isso que considerado um erro semântico tomar a medicina ortodoxa como medicina científica.

Sendo sincero, precisamos de uma boa dose de crença para acreditar na ciência. Não é piada. Recomendo o livro O Cérebro Emocional, do neurocientista Joseph Ledoux. Ele conta a história da neurociência desde os primórdios até os dias atuais. Você ficará impressionado ao descobrir que muitos dos conceitos sedimentados pela ciência são, na verdade, abstrações. Nenhum problema nisso, mas o que me chama a atenção é que vem alguém e baseia todo o seu pensamento num conceito. Nenhum problema nisso, mas seus defensores acabam por acreditar naquilo como verdade absoluta e perseguir os detratores da ―verdade‖.

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A falácia do racionalismo

Não estou aqui criticando o racionalismo científico, mas apenas desmistificando-o. A atuação médica ortodoxa se baseia e é defendida pelos seus seguidores numa imagem de cientificismo patrocinada pela indústria química e farmacêutica. Que, na prática, são subsidiárias da indústria petrolífera, já que a maioria de seus produtos é derivada do petróleo.

Pode até ser científica, mas está substancialmente atrasada. A atuação médica atual se baseia exclusivamente na física newtoniana, algo que data do século XVIII. Não, eu não estou excluindo a física newtoniana, mas estou cansado de ter de ouvir de meus colegas que eles não acreditam em outras coisas, como física quântica, por exemplo. Eu me divirto ao ouvir isto e respondo: ―então você não acredita em ressonância nuclear magnética, nem nos supercondutores que movimentam o trem-bala?‖

Outros mais espertos rebatem: ―mas a física quântica só funciona no campo das coisas infinitamente pequenas, não com corpos materiais mais densos‖. Se você é um desses, aconselho a ler o livro A Ciência e o Campo Akáshico, de Ervin Laszlo. Lá, você aprenderá que os princípios da física quântica se aplicam a todos os corpos, inclusive os celestes, incluindo planetas, sóis e galáxias. Quanto mais no seu corpinho. É, de novo, a crença… a crença na física newtoniana e no seu deus, a lesão tecidual, que faz o médico dizer para você: ―não sei por que você está sentindo dor, pois seus exames não mostram nada‖. Na medicina lesional, se não há lesão, não há doença. Em compensação, se há lesão, basta retirá-la ou tratá-la que você estará curado.

Essa dor no estômago pode ser curada. Basta retirar o estômago

Não há nada de racional na crença de que extirpando a lesão, o problema está resolvido. Não há nada de racional na crença de que se o estômago está inflamado, é só usar um remédio para diminuir a acidez durante o resto da vida. Não há nada de racional na crença de que basta retirar a vesícula cheia de cálculos para resolver seu problema. Na verdade, o que está agredindo a mucosa do estômago, o que está produzindo cálculos na vesícula? A atuação médica não se preocupa com essas questões: ―Eu já tirei sua vesícula. Sua cirurgia foi um sucesso. Acho que esta dor é psicológica. Você deve estar estressado. Eis aqui um remedinho para tratar sua ansiedade.‖

O corpo não adoece por partes

Não há qualquer lógica na crença de que o corpo adoece por partes. A tiroide está ruim? Extirpe-a. O fígado está baleado? Trate-o. E pronto! Você está curado. Volto a este tema mais uma vez: não é culpa de seu médico, mas do tipo de medicina ensinado nas universidades. Os profissionais são treinados para pensar e atuar desta maneira. Caso você assim não queira, será considerado um pária, um crítico da profissão, passível de punição pelos Conselhos Médicos.

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O Dr. Jayme Landmann escreveu um livro que li durante meu curso médico, chamado A Outra Face da Medicina – Um estudo das ideologias médicas. Escrito em 1984, ele já decretava: ―O estudante de medicina entra na faculdade um idealista e sai um cínico.‖ Forte, não? Também acho, mas você já foi atendido num pronto-socorro público? Já foi consultado por um médico em cinco minutos? Leia de novo a frase do parágrafo anterior.

House também já foi um idealista

Quer entender como esta ação é sutil? Recentemente houve um encontro sobre câncer nos EUA. Nem preciso estar lá para saber que estão sendo discutidas terapias com vacinas, novas drogas, novos métodos de detecção precoce… Mas eis o que o Landmann falava em seu livro:

―O enfoque científico das causas do câncer é distorcido por pressões políticas e econômicas. Fala-se muito em comportamento individual e câncer e, assim, apela-se para uma modificação de hábitos, no sentido de diminuir sua incidência. A sociedade atual oferece pouca oportunidade de escolha para que alguém possa decidir onde viver, onde trabalhar, que atmosfera respirar, que alimento comer, que anúncios ver e ouvir. Uma redução significativa de substâncias cancerígenas no trabalho, na atmosfera, nos alimentos só poderá vir de uma ação política organizada. O câncer pode ser prevenido. Os fatores políticos que bloqueiam essa prevenção, aliados de forças econômicas, devem ser denunciados, combatidos e propalados.

A comunidade médica ainda não se posicionou como deveria. As próprias escolas médicas deveriam mudar o enfoque tecnológico em relação ao câncer, abolindo a visão puramente científica para uma visão sociopolítica e econômica. A prevenção do câncer é uma matéria idêntica à inflação, ao desemprego e a outros grandes problemas nacionais. A arena de sua discussão não é a Academia de Medicina ou a sociedade médica. É o parlamento. É o comício!‖

Quantas vezes você ouviu um político com este discurso? Nenhuma, né? Mas político dando remédio de graça tem bastante, concorda? E você aí, não acreditando em ideologias…

O que é ato médico?

Em seu livro As Razões da Terapêutica, Eduardo Almeida considera todas as etapas do ato médico como sendo terapêuticas: o escutar, o examinar, a solicitação do exame complementar, o aconselhamento, a interdição, a dietética e a prescrição. Até mesmo a diagnose assume dimensões terapêuticas, principalmente nas sociedades altamente medicalizadas, onde a busca do ―saber o que tenho‖ costuma ser a primeira demanda do paciente. Na verdade, apenas o exercício mental (raciocínio clínico) do médico pode ser considerado como não terapêutico. Se antes o médico atuava engajado no resultado terapêutico, o modelo que se desenvolveu por influência da escola norte-americana desde a década de 1970 foi

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paulatinamente retirando do médico este poder. Pode parecer estranha esta afirmação, mas com uma leitura mais acurada o quadro começa a se delinear com mais clareza. Vou resumir o pensamento do Dr. Eduardo:

Nestas últimas décadas, a terapêutica foi assumida quase que exclusivamente pela indústria farmacêutica – produtora da pesquisa, do medicamento e da informação (marketing). O médico tornou-se um mero receptor de informações oriundas da indústria farmacêutica. Não houve nesse fato, ao contrário do que muitos pensam, usurpação de um direito do médico. Houve uma concordância e, mesmo, uma delegação: o médico delegou a produção do saber terapêutico à indústria farmacêutica.

O estudo do saber médico perde o foco no paciente, no enfermo, para se voltar ao modelo da produção de conhecimento sobre as doenças. Com isso, acabou por atribuir erroneamente um lugar secundário à terapêutica. Foi a ênfase no modelo newtoniano (mecânico-causal) que acabou por criar uma ciência das doenças e os médicos passaram a serem investigadores. O processo de intervenção com fins terapêuticos perdeu seu lugar, foi empurrado para a periferia do núcleo de preocupação da medicina. No plano do ato médico consumou-se o domínio da diagnose sobre a terapêutica, do diagnóstico sobre o tratamento.

A terapêutica médica atual ficou cada vez mais reduzida ao uso de medicamentos e à cirurgia, instâncias em que é possível a busca de cientificidade, segundo o modelo dominante. A pergunta que os médicos deveriam fazer é: a terapêutica é um campo onde se possa aplicar uma razão exclusiva? O ato médico sempre se equilibrou entre o conhecer (diagnóstico) e o agir (terapêutica). Na medicina ocidental contemporânea a balança de desequilibrou substancialmente, com o diagnóstico ou diagnose (ciências das doenças) sobrepujando a terapêutica. Desconhecer esse fenômeno produz uma separação perigosa; ou seja, quanto mais a medicina se aprofunda na busca do diagnóstico, mais difícil se torna encontrar correspondência direta no plano da terapêutica, já que os recursos terapêuticos se encontram em outro plano.

A terapêutica não é um campo dependente da diagnose, pois tem brilho e personalidade próprios. Grande parte da conduta médico-terapêutica não encontra amparo nas teorias médicas, e sim na cultura, na vida socioeconômica, na ideologia e na experiência do terapeuta. A terapêutica deve ter como principal parâmetro de avaliação o resultado, e não a coerência lógica de seus pressupostos; assim, não haveria incompatibilidade entre os vários sistemas terapêuticos. A prática terapêutica se sustenta, empiricamente, na própria terapêutica; não há, portanto, a necessidade de ser validada pela fisiopatologia. Não caberia, assim, à terapêutica o ônus principal de demonstrar os fundamentos e possíveis mecanismos envolvidos.

A terapêutica é um campo de afirmação do empirismo – ou, dito de outra forma, a manifestação de uma ciência empírica. O empirismo nos ofereceu não só a maioria dos medicamentos, mas também a possibilidade de considerar a interação do medicamento com a complexidade e a singularidade do organismo. Contrapõe-se, assim, à característica fundamental do medicamento segundo a lógica racionalista – a ação do medicamento definida pela estrutura química sem considerações sobre o organismo receptor. Os livros que descrevem os fracassos da medicina ao longo da história mostram a realidade do desenvolvimento médico. Apesar de até rirmos de determinadas práticas medievais, milhões de pessoas continuam morrendo ainda hoje por conta das intervenções médicas aprovadas pela ciência.

Se você não concorda com estas conclusões, não se preocupe. Desde Hipócrates, o pensamento médico se move entre essas duas tendências básicas: o racionalismo e o empirismo. A evolução médica produziu inúmeras rupturas e mudanças, mas não rompeu a essência desse processo.

Mas é impossível reconhecer o brilhantismo das observações do Eduardo Almeida. Para ele, ao contrário do que poderíamos pensar, a hegemonia da diagnose não surge com a medicina ocidental contemporânea, mas acompanha o pensamento racionalista na medicina. O problema atual apenas é mais sério, pois acentua, na prática, o descompasso entre diagnose e terapêutica. E se você acha que isto significa a vitória do discurso mecanicista, a simples observação de que mais de 90% dos medicamentos foram (e são) ―produtos do empirismo‖ mostra que o campo da terapêutica ainda não entregou os pontos. Tanto é verdade que descobrir o mecanismo ou a causa de muitas doenças (inclusive as mais simples) não implica na descoberta da terapêutica apropriada.

A medicina evoluiu tanto, mas não consegue dizer por que as pessoas têm soluços. Ou por que o nariz escorre quando colocamos os pés no chão.

"O que eu faço agora, Hipócrates?"

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Os protocolos

Não ache que somente os médicos ortodoxos são os atingidos por esta forma de pensar. Mesmo os ditos alternativos, mesmo aqueles que reconhecem que ―existem enfermos, não enfermidades‖, assim que veem seus pacientes, os catalogam como pessoas que sofrem desta ou daquela enfermidade. E, sem tirar a responsabilidade do paciente, quantas vezes você foi ao médico e perguntou: ―mas doutor, o que eu tenho?―

Ao catalogar cada paciente com uma doença, posso procurar em meus livros ou na memória a maneira de tratá-lo. Todo estudante e recém-formado possui seu livro de diagnósticos e esquemas terapêuticos que servem a todos os doentes. À medida que o tempo passa, mais ele abandona o livro e segue sua experiência, e por que não dizer, sua intuição (uma palavra que os médicos odeiam).

Sempre foi assim, desde que o mundo médico é mundo. Com o passar do tempo, os médicos foram se especializando em áreas específicas. De tal maneira que foi necessário reuni-los em Sociedades Médicas (Sociedade de Cardiologia, de Ginecologia e Obstetrícia etc.). Essas Sociedades passaram a ser os órgãos de discussão das especialidades, definindo padrões de conduta e estabelecendo os chamados Protocolos Terapêuticos. Isso parece bom, não? Protege o paciente, não?

Será? Uma análise simples poderia dizer que sim, mas observemos o perigo embutido neste pensamento. Se antes os protocolos serviam como base, o problema agora é mais amplo: eles se tornaram quase que obrigatórios. Não digo que são obrigatórios, pois sempre existem aqueles que se dão conta de seus inúmeros fracassos a despeito do tratamento ―correto‖ ou que ficam cansados de repetir tratamentos que não curam, apenas mascaram sintomas e cronificam as doenças. Mas estes, ao sair do manto protetor do ―protocolo‖, se tornam presas fáceis dos Conselhos Médicos: ―você não fez o que preconizava a sua Sociedade Médica.‖ Se sigo o preconizado e o paciente não melhora, ou mesmo vem a falecer, o discurso é: ―fiz o que devia; segui o protocolo.‖

Antes se seguia o protocolo apenas por preguiça ou falta de segurança. Agora, não segui-lo é avançar sobre um terreno muito perigoso.

A formação médica

A formação médica atual é voltada para a formação de um tipo específico de profissional: os que estão aptos a implantar tratamentos a base de protocolos. No livro Ecologia Celular, ilustrei assim este ponto:

―(…) Baseado na localização da disfunção celular há um sintoma ou um grupo de sintomas correlacionados; estes sinais mostram que algo está errado e que algo deve ser feito. A medicina as chama de doenças e suprimir os sintomas não significa erradicar a doença.Não há a menor racionalidade científica nesta abordagem. Imagine que repentinamente acenda a luz do óleo do seu carro e, em vez de parar para verificar o nível do óleo do motor, você pare num autoelétrico e peça ao mecânico para desligar a lâmpada; agora ela não vai mais incomodá-lo e seu motor pode ―fundir tranquilamente‖. Tentar suprimir os sintomas, esse grito de ajuda celular, é permitir que o processo se instale cada vez mais profundamente; é de uma ignorância atroz. É um assassinato legalizado pelo treinamento nas escolas médicas.

E por que esta situação não muda? Numa única palavra – e sem condescendência: dinheiro! Na década de 1980, um executivo da indústria farmacêutica deu uma bombástica entrevista ao jornal norte-americano Herald Tribune afirmando: ―O primeiro desastre é se você mata as pessoas. O segundo desastre é se as cura. As drogas de verdade são aquelas que você pode usar por longo e longo tempo‖.

O Dr. Francisco Humberto Azevedo diz: ―Se as escolas brasileiras de medicina não ensinam a seus alunos oxigenoterapia hiperbárica, acupuntura e homeopatia, reconhecidas como especialidades médicas há mais de uma década, como esperar que informem sobre outros métodos terapêuticos praticados em outros lugares do mundo? Quem quiser aprender algo diferente, terá que buscar no exterior e, na volta, correr o risco de ter seu registro cassado‖.

O Dr. Eduardo Almeida, em seu livro O Elo Perdido da Medicina, diz que o currículo das escolas médicas do mundo todo é elaborado de maneira a garantir que os alunos saiam de lá treinados para corrigir os sintomas. Seus hospitais e centros de pesquisa são financiados pelas grandes indústrias farmacêuticas que investem milhões de dólares para ter certeza de que os futuros médicos não aprendam homotoxicologia e bioquímica nutricional, as duas principais matérias para o tratamento da doença celular.

Imagine o risco para estas empresas se a medicina questionasse sua própria toxicidade, cirurgias desnecessárias, remoção desnecessária de órgãos, radiação e quimioterapia; se médicos perguntassem: ―Mas, professor, por que prescrevemos drogas que suprimem os sintomas e produzem múltiplos efeitos colaterais?‖ A profissão médica está assentada na supressão dos sintomas, mas sintomas não são doenças. São sinais de alerta que nos indicam que algo deve ser feito: mudança de hábito alimentar, de estilo de vida, desintoxicação, reposição de nutrientes, afastamento de ambientes e pessoas tóxicas. Pense nisso!‖

E os alunos? Não deveriam gritar e pedir mudanças em seu ensino? Sim, deveriam, mas acabam coniventes com este estado de coisa. Uma vez perguntei ao Eduardo Almeida, professor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói (RJ), sobre isso. E ele me respondeu: ―Carlos, tem aluno que se levanta no meio da aula e sai indignado com as coisas que eu falo; alguns, com raiva, chegam a bater a porta da sala.‖ O próprio Dr. Jayme Landmann explica o que considero as raízes deste fenômeno no livro que já citei. Para ele, a classe médica é dividida em três grupos principais: a do tipo A, a do tipo B

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e a do tipo C. Os médicos tipo A são os detentores das cátedras nas universidades, são os presidentes de sociedades médicas, são os diretores de hospitais e serviços renomados. Os médicos do tipo B são aqueles que querem subir de posto e se tornar A um dia. Na verdade, são os que alimentam os A de pacientes, de elogios, os que votam neles e fazem campanhas para sua permanência no cargo. Aqui a relação é simbiótica: um depende do outro. Os do tipo C são a maioria que não quer – e muitas vezes nem pode – almejar ser A ou B.

Há um grupo que cresce cada vez mais e que não foi abordado pelo Dr. Landmann. Identifico como sendo aqueles que se rebelam e resolvem mudar. São aqueles que não aceitam mais serem empregados de clínicas, que não querem mais depender de seu emprego público mal remunerado e com péssimas condições de trabalho. Ou simplesmente aqueles que não querem ser médicos convencionais por não acreditarem neste tipo de medicina, seja por crer em outras alternativas, seja por ter se decepcionado com o resultado de sua prática até então. São os que buscam alternativas de tratamento para seus pacientes. Com um mercado alternativo crescente, existem aqueles que buscam somente (se é que isso existe) ganhar algum dinheiro, mas este é um tema que não vou abordar aqui.

Imagine, então, o aluno de uma faculdade de medicina que está num curso que aufere tamanho poder sobre a vida das pessoas. Imagine que ele esteja estudando numa faculdade particular, pagando mensalmente valores entre R$ 2 mil e R$ 7 mil reais. O que este aluno quer ouvir na sala de aula? Que abobrinha e brócolis fazem bem à saúde ou sobre a mais moderna técnica para colocação de um cateter cardíaco ou qualquer outra coisa que o valha?

Inclua aí um jogo muito mais amplos de interesses. Da indústria de equipamentos médicos às revistas especializadas. Da indústria farmacêutica que gasta milhões de dólares para criar uma droga (e bilhões de marketing para divulgá-la) às revistas e telejornais que vendem a imagem de que a cura do câncer está próxima, que uma nova vacina para a AIDS está pronta para ser usada em seres humanos, que descobriram uma pílula para curar a (___________). (Preencha com a doença que preferir.)

A publicidade de medicamentos está cada vez mais criativa, não?

E não julgue este mundo sem entender todo o processo. Se você for o editor de um jornal ou revista semanal, qual é a notícia que você acha que vende mais? A do brócolis? E os anunciantes, então? Em qual revista eles irão colocar seus anúncios? Como você já pôde perceber, as peças deste jogo estão na posição necessária para manter tudo como está. Para você ter uma ideia, o Dr. Landmann foi processado eticamente pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro por causa da publicação do livro do qual falei antes. A acusação: denegrir a imagem da medicina. É claro que esta saga gerou outro livro: A Ética Médica sem Máscaras, mas não é o tema deste artigo.

Cassações, demissões, perseguições, desacreditações… O enredo deste samba dá um bom material para um livro de suspense, ação e espionagem. Ou, pelo menos, uma novela mexicana.

A manutenção do poder

Max Planck disse uma vez: ―Uma nova verdade científica triunfa não porque convença seus oponentes fazendo-os ver a luz, mas por eles eventualmente morrerem e uma nova geração crescer familiarizando-se com ela. Na mesma linha, Schopenhauer escreveu: Toda verdade passa por três fases: primeiramente é ridicularizada; depois, violentamente negada e, por fim, aceita como evidência.‖

Jayme Landmann morreu em 1992, assim como muitos dos que o processaram. Seus livros e ideias fazem parte da história da medicina, mas isto não quer dizer que podemos falar livremente destes temas na área médica. Chegará o dia em que o que escrevo aqui será tema de discussão nas universidades. Até lá… Até lá a engrenagem do sistema continua girando. Imaginemos um chefe de departamento ou de uma cátedra numa universidade. É ele que determina as linhas a seguir em seu setor: o que será investigado, o que será ensinado, o que será debatido… Os demais professores e pesquisadores encontram-se sob seu domínio. Que tipo de bibliografia, quais autores, que revistas indexadas são aceitas… tudo necessita de aprovação da chefia. Se algo está fora da ordem estabelecida, não existe… e pronto!

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Com isso, se garante que os médicos saiam aptos a operar sofisticados aparatos tecnológicos: ressonância nuclear magnética, tomografia axial computadorizada, analisadores farmacológicos e genéticos. Se observarmos o avanço da medicina nas últimas décadas, veremos que, na verdade, ela se beneficiou de métodos desenvolvidos por matemáticos, físicos, químicos, engenheiros, informáticos… Em suma, modernos aparelhos que fazem os médicos parecerem estar na vanguarda da ciência, mas na realidade não são nem eles que os operam. Sem esse aparato, a medicina não teria avançado tanto quanto está no imaginário popular.

O currículo médico está limitado à física newtoniana de causas e efeito. Quantos médicos ou estudantes de medicina conhecem o trabalho de alguns dos cientistas mais influentes do século XX: Karl Pribram, Heisemberg, Schrödinger, Laing, Bateson, David Böhm, Ken Wilber, Allan Watts, David Lorimer, Stanislav Grof, Linus Pauling, Francisco Varela, Henderson, Ervin Laszlo, F. David Peat, Richard Berger, Stanley Krippner, Rupert Sheldrake, Larry Dossey, David Lorimer, Michael Talbot, Peter Russell, Daniel Goleman, Claudio Naranjo, B. Grifiths, James Lovelock, Fritjof Capra?

A ditadura da medicina farmacológica impede que os médicos tenham acesso ao conceito de matriz extracelular desenvolvido por Alfred Pischinger, cujo livro escrito em 1975 permanece fora da bibliografia ensinada nas universidades brasileiras. Ignora a continuidade que James Oschman deu aos trabalhos de Albert Von Szent-Györgyi sobre energia e o sistema de informação subjacente ao sistema nervoso. Enfim, poderia escrever parágrafos e mais parágrafos falando de pesquisas de alta complexidade sendo feitas no mundo inteiro que mostram que basear o tratamento médico ao modelo newtoniano está totalmente superado.

Para avançar além do próprio umbigo, a medicina deveria estar discutindo esses novos conceitos para entender como aplicá-los à prática clínica. É difícil de se crer, mas o fato é que a chamada medicina científica está uns 50 anos defasada dos conhecimentos científicos de vanguarda. O mais comum é encontrar médicos que dizem que alguns conceitos não são ―científicos‖ ou que eles ―não acreditam nisso‖. Como se a medicina estivesse no campo da crença. E mais do que acreditar na sua ―verdade‖, esses médicos acabam lutando para manter o status quo. Como se ele fosse bom… Estou errado? Vejamos. Os médicos estão entre os profissionais de saúde que mais anos de estudo necessitam antes de entrar no mercado de trabalho. Logo depois de formados ainda têm de se submeter à exploração de hospitais e clínicas que os usam como mão de obra barata. Diz-se que são necessários dez anos de formado para se estabelecer em sua profissão. Num mundo onde temos presidentes de empresas antes dos 25 anos parece demasiado, não?

Analisemos o estado de saúde física e mental da classe médica: sofrem o dobro das patologias mentais do que o resto da população, são os que usam três vezes mais tóxicos, os que se suicidam três vezes mais… É uma das classes com mais alto grau de insatisfação profissional e de remuneração. Se sentem explorados tanto no sistema público quanto no privado. Mais da metade, se pudesse, abandonaria a profissão. A razão básica: esgotamento emocional por despersonalização (desumanização) que sofrem.

E o que fazem os órgãos médicos? Lutam por bandeiras práticas, como melhores salários, melhores condições de trabalho, tabelas de remuneração justas com os convênios… Bandeiras estas que nunca resolverão os problemas que citei acima. E ainda, num perfeito trabalho coordenado com a ideologia dominante, persegue aqueles profissionais que criticam este modelo. Vai entender… Como diria o poeta marginal: o buraco é mais embaixo.

Vislumbrando uma saída

O saber médico só retomará sua autoestima e autonomia quando passar a desmistificar o modelo do desenho racional do medicamento e, por consequência, a imagem de cientificismo patrocinada pela indústria farmacêutica e apropriada pela medicina. O desenho racional do medicamento seria um modelo idealizado em que teríamos um determinado medicamento previamente desenhado (ação e mecanismo de ação) para agir em determinada doença. Ou seja, descobre-se e conhece-se um medicamento para depois usá-lo em uma doença com mecanismo semelhante.

Isso quase nunca ocorreu na história da terapêutica química moderna. Os medicamentos têm sido descobertos ao acaso, nos processos de testagem em massa (screening) e na modificação de moléculas (cópias). Essas evidências corroboram a afirmação do famoso médico Na Inglaterra, depressão; na Alemanha, queda de pressão arterial

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empírico Celsus, contemporâneo de Galeno: ―O remédio não é uma descoberta que segue um fundamento, mas só após a sua descoberta é que se lhe busca o fundamento.‖

Enquanto este mito não for desconstruído, permanecerá a errônea noção de que a terapêutica médica se sustenta apenas no conhecimento biomédico e na farmacologia. Se fosse assim, como explicar o trabalho da Dra. Lynn Payer sobre a influência da cultura no estilo de pensamento médico? Ela analisou a prática médica em quatro países e descobriu que o diagnóstico e a terapia variam de lugar a lugar: em um, pode ser reconhecida oficialmente; em outro, ser considerado um procedimento condenável (malpractice). Se você pensou em países de terceiro mundo, se enganou: segundo ela, na França, os médicos diagnosticarão sintomas imprecisos como espasmofilia ou algo a ver com o fígado; na Alemanha, explicarão que é devido ao coração, queda de pressão arterial ou distonia vasovegetativa; na Inglaterra, receberá o diagnóstico de distúrbio emocional, como depressão; e nos EUA, é provável que o diagnóstico seja de virose ou de causa alérgica.

O saber médico só retomará sua autoestima e autonomia quando passar a desmistificar o modelo do desenho racional do medicamento e, por consequência, a imagem de cientificismo patrocinada pela indústria farmacêutica e apropriada pela medicina. O desenho racional do medicamento seria um modelo idealizado em que teríamos um determinado medicamento previamente desenhado (ação e mecanismo de ação) para agir em determinada doença. Ou seja, descobre-se e conhece-se um medicamento para depois usá-lo em uma doença com mecanismo semelhante. Isso quase nunca ocorreu na história da terapêutica química moderna. Os medicamentos têm sido descobertos ao acaso, nos processos de testagem em massa (screening) e na modificação de moléculas (cópias). Essas evidências corroboram a afirmação do famoso médico empírico Celsus, contemporâneo de Galeno: ―O remédio não é uma descoberta que segue um fundamento, mas só após a sua descoberta é que se lhe busca o fundamento.‖

Enquanto este mito não for desconstruído, permanecerá a errônea noção de que a terapêutica médica se sustenta apenas no conhecimento biomédico e na farmacologia. Se fosse assim, como explicar o trabalho da Dra. Lynn Payer sobre a influência da cultura no estilo de pensamento médico? Ela analisou a prática médica em quatro países e descobriu que o diagnóstico e a terapia variam de lugar a lugar: em um, pode ser reconhecida oficialmente; em outro, ser considerado um procedimento condenável (malpractice). Se você pensou em países de terceiro mundo, se enganou: segundo ela, na França, os médicos diagnosticarão sintomas imprecisos como espasmofilia ou algo a ver com o fígado; na Alemanha, explicarão que é devido ao coração, queda de pressão arterial ou distonia vasovegetativa; na Inglaterra, receberá o diagnóstico de distúrbio emocional, como depressão; e nos EUA, é provável que o diagnóstico seja de virose ou de causa alérgica.

Humm… Interessante, não? Quantas vezes você já foi ao médico aqui no Brasil e recebeu o diagnóstico de ―virose‖, ―alergia‖, ―dor de crescimento‖? Bem científico, não? Na França, se usam menos procedimentos invasivos nas UTIs do que nos Estados Unidos, mas os pacientes se recuperam da mesma maneira em ambos os países. O termo alemão Herzinsuffizienz, frequentemente traduzido como insuficiência cardíaca, na verdade não tem tradução na Inglaterra, França ou EUA, pois não é considerada uma doença. Coincidentemente ou não, os alemães usam seis vezes mais remédios para o coração do que os franceses ou ingleses.

Existem mais de 90.000 quiropraxistas no mundo todo e a profissão sequer é regulamentada no Brasil. Os norte-americanos atravessam a fronteira com o México para se tratarem de câncer com procedimentos que são proibidos em seu país. O ozônio é largamente utilizado na Alemanha, mas no Brasil é proibido pela ANVISA. Onde está a racionalidade científica?

Somente resgatando a autonomia terapêutica em relação às teorias médicas e aos modelos explicativos do adoecimento irá trazer à tona a individualidade. Só assim a medicina resgataria sua dimensão de arte capaz de lidar com a singularidade de cada enfermo. Não caia na tentação de acusar este artigo de ser contra o diagnóstico. O valor da diagnose não está sendo desconsiderado. Diferença é sutil, e existem diagnose e diagnose, mas como diz Eduardo Almeida: ―não é indispensável o diagnóstico da entidade nosológica (agente causador) para se estabelecer uma terapêutica.‖

Também não cabe negar os avanços proporcionados pela terapêutica química atual. Apenas está sendo feita uma crítica ao pensamento simplificador e aos interesses econômicos, que ―fecham os olhos‖ a uma série de evidências fundamentais que deveriam estar conduzindo a atuação médica para um plano mais eficiente e seguro. É por isso que quando vejo alguém proferindo um discurso sobre a ética ou que determinado atitude foi tomada pensando no bem da população, o primeiro pensamento que me vem à cabeça é: tem dinheiro e/ou poder envolvido na história. Simplificando: o discurso ético é o último recurso do canalha.

Nota do editor: o artigo original foi dividido em duas partes para que o leitor pudesse se aprofundar em cada trecho com mais afinco. Publicaremos em breve a segunda parte do artigo.

CARLOS BRAGHINI JR. é médico e colaborador do site Papo de Homem (http://papodehomem.com.br) e é o criador do site http://www.ecologiacelular.com.br/. Foi pesquisador em Fisiologia Humana e professor universitário. É membro da Texas State

Naturopathic Medical Association. Participa do Grupo de Estudos sobre Medicina Complementar e da Comissão Pró-Regulamentação da Quiropraxia no Brasil. É palestrante e escritor, e atua em seu consultório no Rio Grande do Sul. Site: ecologiacelular.com.br. Artigo publicado no site Papo de Homem (http://papodehomem.com.br) em Abril de 2012.

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Origem da religião na pré-história (LUIZ FELIPE PONDÉ)

MUITOS LEITORES me perguntaram o que aquela peça kafkiana cujo título era "Páscoa" queria dizer na coluna do dia 2/4/2012. O texto era simplesmente isto: a descrição de um ritual religioso muito próximo dos centenas de milhares que devem ter acontecido em nossa Pré-História.

Horror puro, mas é assim que deve ter começado toda a gama de comportamentos que hoje assumimos como cheios de significados espirituais. Entender a origem de algo "darwinianamente", nada tem a ver com a "cara" que esse algo possui hoje. Vejamos o que nos diz um especialista. O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), num artigo de 1989 cujo título é "The Creation Myths of Cooperstown", compara a origem mítica do beisebol (supostamente nascido em território americano e já "pronto") com a explicação evolucionaria do beisebol.

Gould está fazendo no texto uma metáfora do que seria uma explicação evolucionária de um esporte. Ele narra como o beisebol "evoluiu" a partir de comportamentos humanos casuais que na origem consistiam apenas em bater com prazer em frutas redondas ou em cabeças com pedaços de pau, e que a forma final aconteceu na Inglaterra e não nos EUA, muito tempo depois. A revolta dos americanos orgulhosos de sua mítica criação do beisebol, com a "tese monstruosa" do evolucionista Gould, foi óbvia.

Segundo ele, o que caracteriza a diferença entre conhecer a origem darwiniana de algo, por exemplo, a religião, e fazer mitos sobre ela, é saber que antes de tudo o sentido que a ela damos hoje em dia (religião = "o Bem"?) nada tem a ver com sua origem e que sua evolução deve ter ocorrido a partir de fragmentos desconexos de comportamentos, afetos e ideias, derivados dos subprodutos fisiológicos das mutações genéticas e físicas que sofremos em nossa pré-história. Cerca de 500 anos atrás praticávamos canibalismo cerebral ritualístico e colocávamos as cabeças íntegras em posições geométricas como numa espécie de santuário.

Achados semelhantes datados de cerca de 300 mil anos atrás, no Paleolítico - como o que descrevo ao final do texto da semana passada -, apontam para rituais semelhantes (ver "A Prehistory of Religion, Shamans, Sorcerers and Saints", de Brian Hayden, Smithonian Books, Washington, 2003). Praticávamos canibalismo ritualístico de cérebros humanos, e crianças sempre foram mais fáceis de serem capturadas -claro, de outros bandos. Tirávamos os cérebros com cuidado para depois colocarmos as cabeças em posições geométricas e com elas fazíamos algo como o que hoje chamamos de santuário.

Semana passada foi Páscoa. Este ano, ela coincidiu com a semana que começa o Pessach, Páscoa judaica. Quando Jesus jantava com seus apóstolos na Quinta-Feira Santa, Ele celebrava o Pessach. Para os judeus, essa data representa a saída da escravidão do Egito. Para os cristãos, a Páscoa também celebra a liberdade do povo de Israel, mas ressignificando-a como uma liberdade não só política, mas a liberdade da alma diante das várias escravidões da vida.

Os hebreus pintaram as portas com sangue de cordeiro, seguindo a ordem de Deus, para que o anjo da morte não matasse seus primogênitos como mataria os dos egípcios. Esta era a última das pragas que levaria os hebreus à liberdade. Primogênitos seriam mortos e muitos deles eram crianças inocentes, não? Cristãos comem o corpo e bebem o sangue de Cristo, um inocente. E "nós" o matamos ou você duvida de qual lado você estaria na história? Aqueles que pensam que nossos ancestrais monstruosos nada nos ensinam, se enganam.

O grau de parentesco entre a "páscoa" deles e a nossa não é tão distante assim. Celebramos a morte de crianças (egípcias antigas), bebemos sangue e comemos o corpo (simbolicamente) de um inocente, mas isso tudo pra nós representa vida, liberdade. Afinal, o que teria representado para nossos patriarcas o que eles faziam? Seriam as crianças que eles comiam as "crianças egípcias" deles? Ou seriam elas seus "cordeiros inocentes" por serem crianças? Enfim, duas certezas: a "Páscoa" melhorou muito nos últimos 300 mil anos e Darwin ainda é diabólico.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A Gente não quer só pagode (MALU FONTES)

QUANDO se trata de falar criticamente de qualquer produto cultural, hoje, no Brasil, todo cuidado é pouco. Este é o país do elogio, das relações de comadre e de aplaudir sempre o famoso do bairro, mesmo que a sua música seja um lixo auditivo, seu filme seja uma sequência filmada de clichês e sua obra escrita provoque vergonha alheia. Quando se vive em Salvador e o assunto da conversa é música, o todo cuidado deve ser multiplicado à enésima potência.

Na verdade, se você é baiano, tem nível superior, tem uma rendinha razoável para não precisar recorrer aos empréstimos financeiros da moça do balcão da propaganda da TV e não é muito chegado aos ritmos onipresentes do axé e do pagode, uma advertência: se em qualquer espaço público onde estiverem mais de duas pessoas lhe pedirem sua opinião sobre os ritmos baianos, não pense duas vezes: diga que não tem opinião, que gosta de tudo e saia da conversa como entrou, como um peixe ensaboado. Somente assim você poderá livrar-se da pecha de arrogante, intelectualóide e, principalmente, de ser uma pessoa com forte pensamento de classe.

VALÃO - Em Salvador, não há outra opção entre gostar de axé e pagode ou ficar calado. Todas as outras equivalem a atrair desaforos. Para piorar o desconforto, nos últimos anos emergiu e se fortaleceu uma certa associação entre correntes culturais que privilegiam o relativismo (cultural e de tudo) e os movimentos sociais afirmativos que, juntos, atiram toda e

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qualquer declaração crítica sobre algo considerado popular no valão comum do preconceito contra os mais pobres. O que há de errado, esteticamente feio ou desqualificador no axé e no pagode? Absolutamente nada. Cada um produz, consome e apega-se afetivamente à cultura que pode e sabe fazer. O que está por trás da maioria das críticas feitas à hegemonia desses ritmos nos meios de comunicação é o modo massivo como ambos são privilegiados em detrimento de outros ritmos musicais. Para além do Arrocha e do Arrocha Universitário, que fique claro.

O problema (nem tampouco a solução) da música baiana não é o axé, o pagode, o arrocha ou seus semelhantes, mas o fato de haver toda uma geração de baianos abandonada em termos de formação cultural a quem sequer foi dado o direito de fazer escolhas estéticas. O sistema educacional na terra de todos os santos não tem conseguido suprir sequer as necessidades mais elementares da escolarização formal. Imagine-se, então, proporcionar esclarecimento suficiente para que a população trafegue por diferentes ramos e correntes estéticas, musicais, artísticas e possa fazer suas escolhas culturais em leques mais amplos.

Há quem ache que o pagode é a mais linda das manifestações musicais do Século XXI de uma cidade que tenta há uma dúzia de anos e não consegue colocar um metrô nos trilhos. Mas será que, mesmo o gênero sendo tudo isso, dá para falar da dominação dele sem ser linchado por aqueles que consideram essa crítica um sinônimo de intolerância contra a cultura dos mais pobres? Não é. Só pede-se um pouquinho de chance para as pessoas aprenderem a gostar não apenas do que já gostam, mas também de outras formas de fazer música. A gente não quer só pagode...

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. [email protected]. Texto publicado originalmente em abril de 2012, na revista Plano B, n. 01. Salvador-BA

Somos todos diferentes (ROSELY SAYÃO)

O MUNDO contemporâneo é o mundo que celebra a diversidade. Construímos famílias com diferentes configurações, educamos filhos e alunos de todas as maneiras, temos escolas que praticam quase todos os métodos conhecidos (e outros nem tanto), a moda atende a todo o tipo de corpo e gosto etc. Mas a diversidade nos incomoda tanto que acabamos escolhendo o semelhante. Mesmo sem perceber, nós procuramos o semelhante, o conhecido, o mediano. Evitamos o que escapa à média. Queremos ser diferentes, mas como a maioria.

Os mais novos, que já nasceram no mundo da diversidade, sabem conviver melhor com ela. Mas são impregnados com nossos preconceitos e estereótipos. O fenômeno do bullying, que tem destaque enorme e por isso mesmo foi banalizado, é uma evidência da recusa da diferença. Intimidar aquele que escancara uma diferença é uma maneira de recusá-la, não é verdade? No dia 28 de março a Folha publicou o depoimento de uma mãe que tem um filho de 16 anos com necessidades especiais. Um filho diferente da maioria. O depoimento dela deveria tocar a todos nós. Ela nos conta sobre sua dificuldade em encontrar uma escola que aceite o seu filho como aluno.

Já conversei com várias mães que vivem a mesma situação. Seja porque o filho apresenta comportamentos que a escola não sabe como trabalhar, seja por ter um estilo de aprendizagem que exige um ensino diferente, essas mães são orientadas a procurar o que chamam de "escola especializada". Isso quer dizer que vamos juntar os diferentes para que eles não incomodem os que aparentemente -e só aparentemente- são iguais?

E ainda temos a coragem de afirmar que praticamos uma educação que é para todos e que nossas escolas educam para a cidadania? Em pleno século 21, estamos retrocedendo no que diz respeito à educação escolar. Voltamos a uma prática que existiu pelo menos até os anos 1960. Até aquela época, alunos diferentes eram, obrigatoriamente, encaminhados para as consideradas escolas especializadas.

Você pode ver uma bela narrativa a esse respeito no filme "Vermelho Como o Céu". Esse filme conta a vida de um garoto que ficou cego aos 10 anos e, por isso, foi encaminhado a uma escola que só atendia alunos com deficiências visuais. Munido de muita indignação e coragem, o garoto recusou a segregação e construiu uma trajetória nessa escola que a obrigou a ver o que o garoto, cego, conseguia enxergar. Quando olhamos para o diferente e só conseguimos localizar a diferença, acabamos por anular todo um potencial. De convivência, inclusive.

Esse filme foi baseado na história real de vida de uma pessoa que se tornou um renomado profissional de som do cinema italiano. Imaginem o que teria sido a vida dele se ele tivesse se conformado com a escola especializada... Precisamos ter a mesma indignação e a mesma coragem mostrada pelo protagonista do filme para que nossas crianças e nossos jovens que são diferentes, ou melhor, que mostram de imediato uma diferença, possam ter a mesma oportunidade que seus pares.

Eles precisam viver no mundo como ele é, viver nos mesmos espaços públicos que todos, inclusive o espaço escolar, e conviver com todo tipo de pessoa, não apenas com aqueles que também portam diferenças aparentes. Todos somos diferentes. Se não respeitarmos as diferenças, se não aprendermos a conviver com a diferença, isso recairá, uma hora ou outra, contra nós e contra nossos filhos.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de"Como Educar Meu Filho?" (Publifolha). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

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Ameaça sobre o legado de Jorge Amado (FABIO FELDMANN)

ÀS VÉSPERAS da Rio+20, o governo baiano propõe implantar no sul da Bahia um "projeto de desenvolvimento" com uma visão de progresso do século 20: a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), com o objetivo de exportar commodities e minério de ferro através da construção de dois portos em Ilhéus. O governo do Estado assume a responsabilidade pelo licenciamento ambiental dessa infraestrutura portuária perante o Ibama, ainda que um dos portos seja de uso privativo da Bamin (Bahia Mineração).

O minério de ferro basicamente será explorado por essa empresa em uma mina no município baiano de Caetité. Sua vida útil seria de quinze anos, e a sua implantação comprometeria 27 cavernas. Vale lembrar que, pela sua importância, as cavernas são consideradas bens da União pela Constituição. Ela são ainda protegidas pela Constituição da Bahia. Importa aqui chamar a atenção para a real vocação do sul da Bahia, ainda mais no ano de celebração dos 100 anos de Jorge Amado, o mais popular escritor brasileiro do século 20.

Todos sabem que seus livros são ambientados no sul da Bahia -o mais conhecido, "Gabriela, Cravo e Canela", acontece em Ilhéus. É importante lembrar também que a região é uma referência em turismo sustentável no Brasil. Isso se viabilizou graças aos investimentos públicos financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento nos últimos anos. A implantação do projeto coloca em risco toda essa economia geradora de postos de trabalho e renda para a população local.

Com relação ao projeto original de se implantar o terminal privativo na Ponta da Tulha, houve inegável avanço em se reconhecer que aquela localização comprometeria os frágeis atributos ecológicos lá existentes, especialmente os recifes de corais. A Bahia é um dos poucos litorais no Atlântico Sul com ocorrência de corais, algo que foi assinalado por Charles Darwin em seu livro "The Structure and Distribution of Coral Reefs" ("A Estrutura e a Distribuição dos Recifes de Corais"). A nova localização, Aritaguá, oferece graves riscos à região, com possibilidade de que as praias do litoral norte sofram sérios problemas de erosão. Isso, aliás, consta dos estudos ambientais, sem que uma resposta efetiva tenha sido dada.

Os navios de grande porte para o transporte de minérios podem provocar danos irreversíveis aos corais da região. Há ainda, obviamente, a incompatibilidade entre um destino turístico com características tão especiais com uma infraestrutura de exportação de minérios e com a eventual transformação daqueles municípios em um polo industrial. Todos são a favor de que se encontre uma solução para os problemas do sul da Bahia. É preciso criar postos de trabalho, melhorar o IDH da região e, enfim, gerar oportunidades para a população lá residente.

Por outro lado, implantar uma economia na região às custas do patrimônio ecológico e cultural significa privilegiar uma visão estreita, de curtíssimo prazo, que está na contramão de uma economia verde sintonizada com os limites ecológicos da região e do planeta. É a consagração do atraso em nome do progresso.

FABIO FELDMANN, 56, é ambientalista. Foi deputado federal por três mandatos e candidato a governador do Estado de São

Paulo pelo PV. Folha de São Paulo, Março de 2012.

Desenvolvimento e sustentabilidade na Bahia (RUI COSTA)

UMAS DAS NECESSIDADES mais significativas do Brasil hoje é a construção de modernos vetores logísticos para o escoamento da produção -seja de commodities, seja de produtos com valor adicionado pelo processo de industrialização. A logística é uma peça-chave para o desenvolvimento regional e para a integração de territórios, principalmente em Estados como a Bahia, cuja atividade econômica se concentra em poucos setores, em especial a indústria da transformação, que responde por cerca de 28% do PIB.

Em artigo publicado nesta Folha no último dia 28 ("Ameaça sobre o legado de Jorge Amado"), o ex-deputado federal Fábio Feldmann, hoje consultor, questiona os projetos da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) e do Porto Sul. Feldmann parte de uma premissa falsa: é impossível conciliar o "hub" logístico resultante da construção da ferrovia e do porto com o turismo sustentável. Na visão do governo da Bahia, os investimentos em infraestrutura do Estado geram oportunidades de emprego e renda, melhorando os indicadores sociais e ambientais. Em relação ao Porto Sul, alvo central do questionamento, Feldmann ignora o rigoroso detalhamento do diagnóstico ambiental, que resultou na construção de um modelo que mitiga os impactos da obra e estabelece uma série de compensações que tornarão o projeto uma referência para o país.

Tais estudos levaram inclusive o governo do Estado a alterar o sítio original do empreendimento, que o próprio Feldmann reconhece como "inegável avanço". Uma das prioridades do projeto é a preservação do bioma da Mata Atlântica, razão pela qual já compramos uma área de 1.700 hectares que formará uma espécie de cinturão "verde" em torno do porto. Criaremos um mosaico de ativos ambientais, compreendendo unidades de conservação nas localidades da Lagoa Encantada e na nascente do rio Almada, formando um corredor ecológico e preservando o turismo e a biodiversidade.

A relevância estratégica do empreendimento é ainda maior quando pensamos no impacto que ele terá sobre os indicadores sociais e econômicos locais. A região do litoral sul da Bahia ainda sente os efeitos negativos do declínio da lavoura cacaueira. A participação de Ilhéus e Itabuna na economia baiana caiu de 5,3%, em 1999, para 3,1%. Como em

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toda crise econômica, o maior ônus recai sobre os mais pobres, o que provocou um grande êxodo rural, que se assentou em um cinturão de ocupação irregular nos arredores das duas cidades.

O risco e o dano ambiental são questões inerentes a esses assentamentos, principalmente em Ilhéus, onde 34,5% dos domicílios não têm acesso à rede de esgoto. Estamos diante de uma situação em que instalar novos empreendimentos geradores de emprego e renda, com impactos ambientais calculados e controlados, é a melhor forma de cuidar do meio ambiente local. O mesmo vale para o turismo, pois não há como se pensar em turismo sustentável em uma paisagem em que grande parcela da população vive em condições de pobreza.

Como o Brasil deve defender em junho na Rio+20, a visão de desenvolvimento nas nações emergentes precisa colocar lado a lado a preservação dos recursos naturais e o combate à miséria, de modo que a população tenha alternativas de trabalho e moradia em condições dignas e sustentáveis.

RUI COSTA, 49, é economista, deputado federal licenciado (PT-BA) e secretário chefe da Casa Civil da Bahia. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A miopia do modelo segregador de ensino (RODRIGO HÜBNER MENDES)

RECENTEMENTE, visitei a escola estadual Clarisse Fecury, situada na periferia de Rio Branco (Acre). Ela atende a 611 estudantes, dos quais 27 têm algum tipo de deficiência. A natural interação entre crianças que, até pouco tempo, eram privadas do convívio social, é inspiradora. Alunos com limitações cognitivas e motoras participam da sala de aula comum e recebem atendimento especializado na própria escola, em horário complementar.

As aulas de Libras (Língua Brasileira de Sinais) são frequentadas por todos, não só por crianças surdas. Liderança comunitária, investimento contínuo em formação de educadores e reuniões diárias de planejamento são algumas das estratégias que explicam o êxito da escola na criação de condições genuínas de socialização e aprendizagem. De acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela ONU em 2006, os países devem assegurar um sistema de educação inclusiva em todos os níveis de ensino.

O Brasil, signatário, aprovou uma avançada legislação a respeito no governo Lula. A diretriz é que toda criança com deficiência, transtorno global de desenvolvimento ou altas habilidades (segmentos tradicionalmente encaminhados para escolas especiais) seja matriculada na rede regular de ensino e estude em classes comuns. O atendimento especializado continua a existir, porém, como um complemento realizado no contraturno do ensino regular.

Apesar de coerente com o pensamento contemporâneo sobre pedagogia e direitos humanos, temos observado uma série de grupos que resistem a esse modelo. Em resumo, argumentam que os educadores não estão preparados, as escolas têm infraestrutura adequada e as crianças com deficiência não conseguirão acompanhar o desenvolvimento dos outros alunos, podendo até atrapalhá-los. Defendem, portanto, a permanência dessas crianças na escola especial onde, duvidosamente, seriam melhor acolhidos e teriam maiores possibilidades de aprendizagem.

Para quem nunca teve a oportunidade de refletir sobre o assunto, tais argumentos podem soar razoáveis. No entanto, em primeiro lugar, não é de hoje que as pesquisas sobre o processo de aprendizagem indicam que toda criança aprende, sejam quais forem suas particularidades intelectuais, sensoriais e físicas. Esse processo é singular e significativamente estimulado pela interação com pessoas diferentes.

Em segundo lugar, não há dúvida de que a construção de uma rede de ensino inclusiva é extremamente desafiadora. Entre outras coisas, exige comprometimento e disposição para mudanças estruturais. Mas projetos como o do Acre transcendem a teoria e oferecem respostas objetivas ao cômodo discurso do despreparo. É bom lembrar que a exclusão das pessoas com deficiência do mercado de trabalho é, quase sempre, fruto de baixa escolaridade e da inexperiência de convívio da maioria da população com esse segmento.

Além de ser um direito, a educação inclusiva é uma resposta inteligente às demandas do mundo contemporâneo. Incentiva uma pedagogia não homogeneizadora e desenvolve competências interpessoais. A sala de aula deveria espelhar a diversidade humana, não escondê-la. Claro que isso gera novas tensões e conflitos, mas também estimula as habilidades morais para a convivência democrática. O resultado final, desfocado pela miopia de alguns, é uma educação melhor para todos.

RODRIGO HÜBNER MENDES, 40, mestre em administração pela FGV, é fundador do Instituto Rodrigo Mendes, que desenvolve programas de educação inclusiva. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Estupro de menores (CONTARDO CALLIGARIS)

COMO MUITOS, fiquei perplexo diante da recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que inocentou um homem acusado de estupro por ter se relacionado com três meninas de 12 anos que se prostituíam. Os fatos aconteceram antes de 2009, quando o Código Penal passou a considerar como estupro qualquer relação (mesmo aparentemente consensual) com menor de 14 anos, pois, de qualquer forma, o menor não seria capaz de consentir com discernimento.

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As leis não sendo retroativas, o STJ julgou no quadro legal de antes de 2009, e o homem foi inocentado porque, as meninas sendo prostitutas, a relação com elas não teria sido propriamente estupro. Inevitavelmente, o argumento ressuscita o preconceito segundo o qual a condição da vítima faria diferença na hora de decidir se houve crime contra ela ou não. É o ranço das turmas de bêbados frustrados do sábado à noite: com prostituta e travesti de beira de estrada vale tudo, pois, de qualquer forma, eles se dão para todos, não é?

Mas não é só isso: o cliente de uma prostituta de 12 anos é, no mínimo, cúmplice da violência de quem, direta ou indiretamente, levou a menina a se prostituir. Claro, a prostituição pode ser uma escolha livre, mas essa liberdade, em nossa cultura, só pode ser reconhecida a quem é maior de 18 anos -certamente não a meninas de 12. Essa observação, com a qual todos concordamos (imagino), introduz forçosamente uma pergunta: o que é, para nós, um menor? Como definimos esse ser "provisório", que precisa ser protegido, inclusive de seus próprios impulsos?

Digo logo: a pergunta e a tentativa de responder são interessantes, mas não mudam nada quanto ao fato de que sexo com uma menina de 12 anos, em nossa cultura, só pode ser estupro. Vamos lá. Se tentarmos definir o menor por seu desenvolvimento inacabado, encontraremos dificuldades insolúveis. Digamos que a criança não tem experiência, saber, estruturas cognitivas ou maturidade suficientes para escolher de maneira responsável. Concordo, mas o problema é que há coortes de adultos que poderiam ser considerados como crianças por falta de experiência, maturidade, saber etc.

Por exemplo, no recente "Incognito - As Vidas Secretas do Cérebro" (Rocco), David Eagleman mostra que muitos criminosos são impulsivos como pré-adolescentes e apresentam um desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal comparável ao das crianças. Se escolhermos esse critério para definir a imaturidade infantil, deveríamos soltar esses indivíduos, considerá-los como crianças (não como criminosos) e mandá-los de volta para a escola, para que se tornem adultos e responsáveis por seus atos. Problema, hein?

De fato, as definições da infância por falta de maturação etc. são incertas. Talvez seja mais fácil defini-la pelo caráter especial de nosso amor: crianças são as que protegemos para que conheçam uma felicidade que nos fugiu e para que continuem nossa breve vida. Por isso, aliás, preferimos manter as crianças longe das necessidades, dos perigos, das violências e também do sexo, que é, para nós, uma fonte frequente de frustração.

Há tempos (desde o trabalho seminal de Philippe Ariès, "História Social da Criança e da Família", LTC), os historiadores nos mostram que essa maneira de amar as crianças surgiu com a modernidade. Com o desencanto do mundo e a morte de Deus, a vida individual se tornou o único horizonte da existência moderna: as crianças nos consolariam, portanto, de nossa mortalidade, pois, por elas, duraremos um pouco mais. É bonito e faz sentido. Mas, às vezes, o amor moderno das crianças parece grande demais: por exemplo, fato provavelmente incompreensível por um indivíduo clássico, nós achamos a morte de uma criança infinitamente mais trágica do que a de um adulto. E o mesmo vale para o estupro.

Ora, um excesso de sentimentos ternos, amorosos e protetores é facilmente o sinal de uma formação reativa. Em outras palavras, talvez, para explicar os excessos de nosso amor pelas crianças, seja preciso supor que, de fato, nós as odiamos porque, justamente, 1) elas nunca estão à altura da expectativa de que compensem tudo o que não deu certo em nossa vida e 2) elas estarão aqui quando nós não estivermos mais. Em suma, não paramos de proteger as crianças delas mesmas e do mundo, mas as protegemos tanto que fica difícil não imaginar que queiramos sobretudo (ou também) protegê-las de nós mesmos.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Guerra Santa e Faniquitos Clericais (MALU FONTES)

TRATANDO-SE o Brasil de um Estado laico, ou seja, um país sem vinculações formais, legais, constitucionais com qualquer religião, torna-se difícil decidir, se forem usados os princípios da razoabilidade, claro, o que é mais surpreendente: se o fato de a Suprema Corte do país, o Supremo Tribunal Federal (STF) manter embolorando em suas estantes, durante oito longos anos, uma ação que garante a mulheres grávidas cujos fetos têm diagnóstico de anencefalia, malformação irreversível e incompatível com a vida fora do útero, o direito legal de antecipar o parto ou se surpreendente mesmo é ver o assunto tomado de assalto por turbas clericais que querem fazer suas crenças religiosas pessoais se sobreporem ao direito, às leis e à autonomia. O que os telejornais transmitiram durante a semana foi uma espécie de embate entre argumentos científicos e apelos típicos de uma guerra santa em favor dos fetos anencéfalos.

PORTEIRA PARA FEIOS - Numa militância que em nome da fé juntava numa baciada humana pessoas que iam de Heloísa Helena, a bispos com B maiúsculo e minúsculo, passando por fanáticos que encenaram procissões noturnas em frente ao Supremo carregando lanternas empapeladas medievais, não faltou nem mesmo gente com o quilate de celebridade. O posto dessa categoria foi assumido na turma das lanternas por Elba Ramalho, sim, aquela que já andou dizendo ter sido abduzida por seres interplanetários. Dessa vez o foi pelo fanatismo. Possessos com a perspectiva de o STF garantir às mulheres o direito de não carregar na barriga por nove meses um feto que não vai sobreviver, os auto-declarados defensores da vida não se intimidaram em recorrer a mentiras e golpes baixos. Mães de filhos com outros tipos de diagnósticos foram para a porta do Supremo expô-los jurando que eram anencéfalos sobreviventes, quando isso jamais pode ou poderia ser verdade. Altas autoridades da Igreja Católica não se

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intimidaram e apelaram ao senso comum com argumentos abaixo do rasteiro. Bispos da mais alta hierarquia da instituição juravam aos fiéis que autorizar a interrupção de gravidez em casos de anencefalia era abrir a porteira para a eugenia. Era só o começo para logo autorizarem o assassinato de deficientes, diferentes e até mesmo, pasmem, feios!!

BISPO DA PESCA - Não, nenhuma diversidade humana, muito menos a feiúra, que há milênios vive e sobrevive tranquila e em maioria no mundo, corre o risco apregoado pelos profetas insanos. Com o placar de 8 votos favoráveis à antecipação do parto e 2 contra, agora somente as grávidas que compartilham a tese de Elba, Heloísa e seus amigos bispos com B e b poderão continuar acalentando em seus ventres um feto que jamais terá possibilidade de sobrevivência fora do útero.

Entre as reações possessas à decisão do Supremo está a do bispo que caiu na rede do Ministério da Pesca sem saber pescar. Para ele, o que o STF fez foi usurpar as funções do Congresso, a quem cabe legislar, deliberar sobre o que pode e o que não pode, em termos de direito, o cidadão brasileiro. Ora, quem não quer legislar é o Congresso. Quem tem dúvidas que a maioria dos parlamentares brasileiros não quer nem de longe meter a mão em cumbucas polêmicas? O eleitorado é beato, conservador e hipócrita e tudo o que deputado ou senador não quer é perder voto. Se não, como vão se aproximar dos Midas corruptores como os Cachoeiras e que tais que lhes enchem os bolsos? Falar sobre anencefalia, contra ou a favor, significa perda de voto. E perder voto é ficar longe de oportunidades de enriquecimento fácil e rápido. Legislar para quê? Melhor discutir o valor das verbas indenizatórias e ficar esperando um Ministério.

CAETANO - Quanto aos beatos de lanterna no STF, refletir não dói: o Brasil registrou, nos últimos 30 anos, 1,1 milhão de assassinatos (e aqui nem entram os mais de 30 mil mortos, a cada ano, no trânsito, sem que ninguém esteja preso por isso). E cadê esse povo das lanternas rezando contra isso em frente ao Congresso, ao Ministério da Justiça, aos institutos médicos legais? Quanto paradoxo, se diante de fetos sem encéfalo são capazes de tanto clamor no Planalto Central, não? E viva Caetano: ―E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital? E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal?‖ Embora tenha votado a favor, o ministro Gilmar Mendes, performático que só, atacou o que chamou de cerceamento da expressão dos grupos religiosos, por parte de cientistas, médicos, acadêmicos, militantes feministas, advogados, etc. Disse que os defensores da ação tiveram faniquitos anti-clericais. Ora e os faniquitos clericais dos que acusam os apoiadores da causa de eugênicos, nazistas e assassinos?

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; [email protected]

Estado Futebolístico de Exceção (CHICO ALENCAR)

O MANIFESTO dos tenentes rebelados em São Paulo, em 1924, denunciava: "O Brasil está reduzido a verdadeiras satrapias, desconhecendo-se completamente o merecimento dos homens e estabelecendo-se como condição primordial, para o acesso às posições de evidência, o servilismo contumaz". Passados 88 anos, um anacrônico servilismo emoldura as iniciativas nas 12 cidades-sede da Copa de 2014 e nas alterações legais que o Congresso Nacional está votando para receber o megaevento.

Sobra subserviência, falta transparência: os compromissos do governo com a Fifa, assinados em 2007, seguem cercados de mistério. As informações sobre gastos e etapas das obras, nos portais oficiais, são contraditórias e incompletas. O processo de remoção de moradias, que pode afetar 170 mil pessoas, desrespeita o princípio do "chave por chave", que diz que ninguém pode ser despejado de sua casa sem receber outra, próxima e melhor. O projeto da Lei Geral da Copa -bem mais do que uma "lei do copo de cerveja" nas partidas- transforma o Brasil em protetorado de interesses mercantis.

Ele "expulsa de campo" a legislação nacional que regula concorrência, patentes, direitos do consumidor, transmissões esportivas, gastos orçamentários, publicidade, punição a delitos e até calendário escolar. A lei das licitações já fora "escanteada" pelo Regime Diferenciado de Contratações. Uma entidade privada internacional impõe legislação excepcional, garantindo isenções fiscais a mais de mil produtos! O projeto aprovado na Câmara assegura megaprivilégios à Fifa. O Inpi vira um "cartório particular", com regime especial para pedidos de registro de "marcas de alto renome" apresentadas pela entidade.

Libera-se uma associação suíça de direito privado do pagamento de custos e emolumentos exigidos a todos que requerem registro de marca no Brasil. Trata-se de uma renúncia fiscal longa e onerosa! O projeto afronta até um preceito defendido pelos liberais de todos os matizes: o da livre iniciativa. Isto é evidenciado ao se "assegurar à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso".

Prevê-se também que será objeto de sanções -como prisão de três meses a um ano- a "oferta de provas de comida ou bebida, distribuição de panfletos ou outros materiais promocionais (...), inclusive em automóveis, nos locais oficiais de competição, em suas principais vias de acesso ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles".

O "Estado Futebolístico de Exceção" cria suas "zonas de exclusão". A União fica também obrigada a disponibilizar, sem quaisquer custos para a Fifa, "a segurança, serviços de saúde, vigilância sanitária e alfândega e imigração". Além de

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disponibilizar gratuitamente todos esses serviços para um evento privado, o Brasil também se responsabiliza por quaisquer acidentes que venham a ocorrer.

A Fifa, que ganhou na África do Sul mais de R$ 7,2 bilhões só com radiodifusão e marketing, "marca sob pressão" as nossas autoridades. Em 2011, já faturou R$ 1,67 bilhão com vendas vinculadas à Copa de 2014. Medidas provisórias poderão ser editadas "na prorrogação" para garantir os resultados esperados. No lugar de caixinha de surpresas, o futebol se transforma em um instrumento para nutrir a caixa-registradora da Fifa e dos seus sócios.

CHICO ALENCAR, 62, historiador, é deputado federal pelo PSOL-RJ. Folha de São Paulo, Abril de 2012.