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COLETÂNEA POEMAS DE ABRIL Biblioteca Municipal de Lagos, 25 de Abril de 2020 AUTORES E POEMAS JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS As Portas que Abril Abriu; O Futuro; A Fábrica; Tourada SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 25 de abril; Revolução EUGÉNIO DE ANDRADE a Vasco Gonçalves MARIA TERESA HORTA Mulheres do meu país NATÁLIA CORREIA Já as primeiras cousas são chegadas / I; Queixa das almas jovens censuradas MANUEL ALEGRE Trova do vento que passa; Abril de Abril; Trova do mês de Abril; Salgueiro Maia ZECA AFONSO Grândola Vila Morena; A formiga no carreiro; Vejam bem; Canto moço; Traz outro amigo também JORGE DE SENA Cantiga de Abril MIGUEL TORGA Lamento (Diário XII); Liberdade (Diário XII) ANTÓNIO GEDEÃO Pedra Filosofal JOSÉ JORGE LETRIA O que aquela noite me quis dar SÉRGIO GODINHO Liberdade SIDÓNIO MURALHA Poema de abril

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COLETÂNEA POEMAS DE ABRIL Biblioteca Municipal de Lagos, 25 de Abril de 2020

AUTORES E POEMAS

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOSAs Portas que Abril Abriu; O Futuro; A Fábrica; Tourada

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN25 de abril; Revolução

EUGÉNIO DE ANDRADEa Vasco Gonçalves

MARIA TERESA HORTAMulheres do meu país

NATÁLIA CORREIAJá as primeiras cousas são chegadas / I; Queixa das almas jovens censuradas

MANUEL ALEGRETrova do vento que passa; Abril de Abril; Trova do mês de Abril; Salgueiro Maia

ZECA AFONSOGrândola Vila Morena; A formiga no carreiro; Vejam bem; Canto moço; Traz outro amigo também

JORGE DE SENACantiga de Abril

MIGUEL TORGALamento (Diário XII); Liberdade (Diário XII)

ANTÓNIO GEDEÃOPedra Filosofal

JOSÉ JORGE LETRIAO que aquela noite me quis dar

SÉRGIO GODINHOLiberdade

SIDÓNIO MURALHAPoema de abril

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As Portas que Abril Abriu

Era uma vez um paísonde entre o mar e a guerravivia o mais infelizdos povos à beira-terra.

Onde entre vinhas sobredosvales socalcos searasserras atalhos veredaslezírias e praias clarasum povo se debruçavacomo um vime de tristezasobre um rio onde miravaa sua própria pobreza.

Era uma vez um paísonde o pão era contadoonde quem tinha a raiztinha o fruto arrecadadoonde quem tinha o dinheirotinha o operário algemadoonde suava o ceifeiroque dormia com o gadoonde tossia o mineiroem Aljustrel ajustadoonde morria primeiroquem nascia desgraçado.

Era uma vez um paísde tal maneira exploradopelos consórcios fabrispelo mando acumuladopelas ideias nazispelo dinheiro estragadopelo dobrar da cervizpelo trabalho amarradoque até hoje já se dizque nos tempos do passadose chamava esse paísPortugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredosvales socalcos searasserras atalhos veredaslezírias e praias clarasvivia um povo tão pobreque partia para a guerrapara encher quem estava podre

de comer a sua terra.

Um povo que era levadopara Angola nos porõesum povo que era tratadocomo a arma dos patrõesum povo que era obrigadoa matar por suas mãossem saber que um bom soldadonunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porémque dentro de um povo escravoalguém que lhe queria bemum dia plantou um cravo.

Era a semente da esperançafeita de força e vontadeera ainda uma criançamas já era a liberdade.

Era já uma promessaera a força da razãodo coração à cabeçada cabeça ao coração.

Quem o fez era soldadohomem novo capitãomas também tinha a seu ladomuitos homens na prisão.

Esses que tinham lutadoa defender um irmãoesses que tinham passadoo horror da solidãoesses que tinham juradosobre uma côdea de pãover o povo libertadodo terror da opressão.

Não tinham armas é certomas tinham toda a razãoquando um homem morre pertotem de haver distanciaçãouma pistola guardadanas dobras da sua opçãouma bala disparadacontra a sua própria mãoe uma força perseguida

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que na escolha do mais fortefaz com que a força da vidaseja maior do que a morte.

Quem o fez era soldadohomem novo capitãomas também tinha a seu ladomuitos homens na prisão.

Posta a semente do cravocomeçou a floraçãodo capitão ao soldadodo soldado ao capitão.

Foi então que o povo armadopercebeu qual a razãoporque o povo despojadolhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhadoem sua própria grandezaera soldado forçadocontra a pátria portuguesa.

Era preso e exiladoe no seu próprio paísmuitas vezes estranguladopelos generais senis.

Capitão que não comandanão pode ficar caladoé o povo que lhe mandaser capitão revoltadoé o povo que lhe dizque não ceda e não hesite– pode nascer um paísdo ventre duma chaimite.

Porque a força bem empreguecontra a posição contrárianunca oprime nem persegue– é força revolucionária!Foi então que Abril abriuas portas da claridadee a nossa gente invadiua sua própria cidade.

Disse a primeira palavrana madrugada serena

um poeta que cantavao povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredosvales socalcos searasserras atalhos veredaslezírias e praias clarasdesceram homens sem medomarujos soldados «páras»que não queriam o degredodum povo que se separa.

E chegaram à cidadeonde os monstros se acoitavamera a hora da verdadepara as hienas que mandavama hora da claridadepara os sóis que despontavame a hora da vontadepara os homens que lutavam.

Em idas vindas esperasencontros esquinas e praçasnão se pouparam as ferasarrancaram-se as mordaçase o povo saiu à ruacom sete pedras na mãoe uma pedra de luano lugar do coração.

Dizia soldado amigomeu camarada e irmãoeste povo está contigonascemos do mesmo chãotrazemos a mesma chamatemos a mesma raçãodormimos na mesma camacomendo do mesmo pão.

Camarada e meu amigosoldadinho ou capitãoeste povo está contigoa malta dá-te razão.Foi esta força sem tirosde antes quebrar que torceresta ausência de suspirosesta fúria de vivereste mar de vozes livressempre a crescer a crescer

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que das espingardas fez livrospara aprendermos a lerque dos canhões fez enxadaspara lavrarmos a terrae das balas disparadasapenas o fim da guerra.

Foi esta força virilde antes quebrar que torcerque em vinte e cinco de Abril fez Portugal renascer.

E em Lisboa capitaldos novos mestres de Avizo povo de Portugaldeu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passadoàs vezes por mãos estranhaso poder que ali foi dadosaiu das nossas entranhas.

Saiu das vinhas sobredosvales socalcos searasserras atalhos veredaslezírias e praias clarasonde um povo se curvavacomo um vime de tristezasobre um rio onde miravaa sua própria pobreza.

E se esse poder um diao quiser roubar alguémnão fica na burguesiavolta à barriga da mãe.

Volta à barriga da terraque em boa hora o pariuagora ninguém mais cerraas portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxiasse escancararam de vezessas janelas vaziasque se encheram outra veze essas celas tão friastão cheias de sordidezque espreitavam como espiastodo o povo português.

Agora que já floriua esperança na nossa terraas portas que Abril abriununca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velholevantado como um punhoem Maio surgiu vermelhoo cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilounas ruas em procissãode novo se processoua própria revolução.

Mas eram olhos as balasabraços punhais e lançasenamoradas as alasdos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvidotantas vezes repetidodizia que o povo unidojamais seria vencido.

Contra tudo o que era velholevantado como um punhoem Maio surgiu vermelhoo cravo do mês de Junho.

E então operários mineirospescadores e ganhõesmarçanos e carpinteirosempregados dos balcõesmulheres a dias pedreirosreformados sem pensõesdactilógrafos carteirose outras muitas profissõessouberam que o seu dinheiroera presa dos patrões.

A seu lado também estavamjornalistas que escreviamactores que se desdobravamcientistas que aprendiampoetas que estrebuchavamcantores que não se vendiammas enquanto estes lutavamé certo que não sentiam

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a fome com que apertavamos cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternuraescrever constrói liberdadee não há coisa mais purado que dizer a verdade.

E uns e outros irmanadosna mesma luta de ideaisambos sectores exploradosficaram partes iguais.

Entanto não descansavamentre pragas e perjúriosagulhas que se espetavamsilêncios boatos murmúriosrisinhos que se calavampalácios contra tugúriosfortunas que levantavampromessas de maus augúriosos que em vida se enterravampor serem falsos e espúriosmaiorais da minoriaque diziam silenciosae que em silêncio faziaa coisa mais horrorosa:minar como um sinapismoe com ordenados régioso alvor do socialismoe o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembroque sucedeu a vindimaquando pisámos Setembroa verdade veio acima.

E foi um mosto tão forteque sabia tanto a Abrilque nem o medo da mortenos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de péjuntos soldados e povopara mostrarmos como éque se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!E a reacção não passou.

Quem já viveu a desgraçaodeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outonomais forte que a Primaveraque trouxe os homens sem donode que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineirospescadores e ganhõesoperários e carpinteirosempregados dos balcõesmulheres a dias pedreirosreformados sem pensõesdactilógrafos carteirose outras muitas profissõesque deu o poder cimeiroa quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todosnós repartimos o pãoé que acabaram os bodos— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendaspalácios e palacetesos generais com prebendascaciques e cacetetesos que montavam cavalospara caçarem veadosos que davam dois estalosna cara dos empregadosos que tinham bons amigosno consórcio dos sabõese coçavam os umbigoscomo quem coça os galõesos generais subalternosque aceitavam os patrõesos generais inimigosos generais garanhõesteciam teias de aranhae eram mais camaleõesque a lombriga que se amanhacom os próprios cagalhões.

Com generais desta apanhajá não há revoluções.

Por isso o onze de Março

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foi um baile de Tartufosuma alternância de terçosentre ricaços e bufos.

E tivemos de pagarcom o sangue de um soldadoo preço de já não estarPortugal suicidado.

Fugiram como cobardese para terras de Espanhaos que faziam alardesdos combates em campanha.

E aqui ficaram de pécapitães de pedra e calos homens que na Guinéaprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiramque um animal racionalopõe àqueles que o firamconsciência nacional.

Os tais homens que souberamfazer a revoluçãoporque na guerra entenderamo que era a libertação.

Os que viram claramentee com os cinco sentidosmorrer tanta tanta genteque todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de açotemperado com a tristezaque envolveram num abraçotoda a história portuguesa.

Essa história tão bonitae depois tão maltratadapor quem herdou a desditada história colonizada.

Dai ao povo o que é do povopois o mar não tem patrões.– Não havia estado novonos poemas de Camões!

Havia sim a lonjurae uma vela desfraldadapara levar a ternuraà distância imaginada.

Foi este lado da históriaque os capitães descobriramque ficará na memóriadas naus que de Abril partiramdas naves que transportaramo nosso abraço profundoaos povos que agora deramnovos países ao mundo.

Por saberem como éficaram de pedra e calcapitães que na Guinédescobriram Portugal.

E em sua pátria fizeramo que deviam fazer:ao seu povo devolveramo que o povo tinha a haver:Bancos seguros petróleosque ficarão a renderao invés dos monopóliospara o trabalho crescer.

Guindastes portos naviose outras coisas para erguerantenas centrais e fiosdum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frioé preciso é aquecerpensar que somos um rioque vai dar onde quiserpensar que somos um marque nunca mais tem fronteirase havemos de navegarde muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linhono Alentejo com pãono Ribatejo com vinhona Beira com requeijãoe trocando agora as voltasao vira da produçãono Alentejo bolotas

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no Algarve maçapãovindimas no Alto Dourotomates em Azeitãoazeite da cor do ouroque é verde ao pé do Fundãoe fica amarelo puronos campos do Baleizão.

Quando a terra for do povoo povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agráriaem sua própria expressão:a maneira mais primáriade que nós temos um quinhãoda semente proletáriada nossa revolução.

Quem a fez era soldadohomem novo capitãomas também tinha a seu ladomuitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriuainda pouco se disseum menino que sorriuuma porta que se abrisseum fruto que se expandiuum pão que se repartisseum capitão que seguiuo que a história lhe predissee entre vinhas sobredosvales socalcos searasserras atalhos veredaslezírias e praias clarasum povo que levantavasobre um rio de pobrezaa bandeira em que ondulavaa sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriuainda pouco se dissee só nos faltava agoraque este Abril não se cumprisse.

Só nos faltava que os cãesviessem ferrar o dentena carne dos capitãesque se arriscaram na frente.

Na frente de todos nóspovo soberano e totalque ao mesmo tempo é a voze o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistasagiotas do lazerlatifundiários machistasbalofos verbos de enchere outras coisas em istasque não cabe dizer aquique aos capitães progressistaso povo deu o poder!

E se esse poder um diao quiser roubar alguémnão fica na burguesiavolta à barriga da mãe!

Volta à barriga da terraque em boa hora o pariuagora ninguém mais cerraas portas que Abril abriu!

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, Lisboa, Julho-Agosto de 1975. [Lisboa, Ed. Comunicação, 1975]

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O Futuro

Isto vai meus amigos isto vaium passo atrás são sempre dois em frentee um povo verdadeiro não se trainão quer gente mais gente que outra gente.

Isto vai meus amigos isto vaio que é preciso é ter sempre presenteque o presente é um tempo que se vaie o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonançaque é verde como a cor que tem a esperançaquando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiançase fizermos de Maio a nossa lançaisto vai meus amigos isto vai.

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, in “O Sangue das Palavras”, 1979. [“Ary dos Santos: Vinte Anos de Poesia”, Círculo de Leitores, 1983]

A Fábrica

Da alavanca ao tear da roda ao tornoda linha de montagem ao cadinhodo aço incandescente a entrar no fornoà agulha a trabalhar devagarinho.

Da prensa que se fez para esmagarà tupia no corpo da madeirado formão que nasceu a golpearà força bruta duma britadeira.

Do ferro e do cimento até ao moldeque é quase um esgar de plástico serenodo maçarico humano que nos soldeà luz da luta e não do acetileno

nasce este canto imenso e universalsincopado enérgico fabrilsereia que soou em Portugalà hora de pegarmos por Abril.

Transformar a matéria é transformar

a própria sociedade que nós fomosser operário é apenas saber darmais um pouco de nós ao que nós somos.

Um braço é muito mas por si só não chegapor trás da nossa mão há uma razãoque faz de cada gesto sempre a entregade um pouco mais de força. De mais pão.

Estamos todos num único universoe não há uns abaixo outros acimapois se um poema é uma obra em versoum parafuso é uma obra-prima.

Operários das palavras ou do açoda terra do minério do cimentoem cada um de nós há um pedaçoda força que só tem o sofrimento.

Vamos cavá-la com a pá das mãosprovar que em cada um nós somos milé tempo de alegria meus irmãosé tempo de pegarmos por Abril.

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, in “Obra Poética”, Lisboa, Ed. Avante, 1994.

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Tourada

Não importa sol ou sombra camarotes ou barreiras toureamos ombro a ombro as feras.

Ninguém nos leva ao engano toureamos mano a mano só nos podem causar dano espera.

Entram guizos chocas e capotes e mantilhas pretas entram espadas chifres e derrotes e alguns poetas entram bravos cravos e dichotes porque tudo o mais são tretas.

Entram vacas depois dos forcados que não pegam nada. Soam brados e olés dos nabos que não pagam nada e só ficam os peões de brega cuja profissão não pega.

Com bandarilhas de esperança afugentamos a fera estamos na praça da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça e fazermos da tristeza graça.

Entram velhas doidas e turistas entram excursões entram benefícios e cronistas entram aldrabões entram marialvas e coristas entram galifões de crista.

Entram cavaleiros à garupa do seu heroísmo entra aquela música maluca

do passodoblismo entra a aficionada e a caduca mais o snobismo e cismo...

Entram empresários moralistas entram frustrações entram antiquários e fadistas e contradições e entra muito dólar muita gente que dá lucro as milhões. E diz o inteligente que acabaram as canções.

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, 1972. [In “As Palavras das Cantigas”, Lisboa, Ed. Avante, 1989]

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25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperavaO dia inicial inteiro e limpoOnde emergimos da noite e do silêncioE livres habitamos a substância do tempo

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, 25 de Abril de 1974. [In "O Nome das Coisas", Lisboa, Moraes Editores, 1977]

Revolução

Como casa limpaComo chão varridoComo porta aberta

Como puro inícioComo tempo novoSem mancha nem vício

Como a voz do marInterior de um povo

Como página em brancoOnde o poema emerge

Como arquitecturaDo homem que ergueSua habitação

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, 27 de Abril de 1974. [In "O Nome das Coisas", Lisboa, Moraes Editores, 1977]

a Vasco Gonçalves

Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.Quem conheça o sul e a sua transparênciatambém sabe que no verão pelas veredasda cal a crispação da sombra caminha devagar.De tanta palavra que disseste algumasse perdiam, outras duram ainda, são lumebreve arado ceia de pobre roupa remendada.Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixãoera morada e instrumento de alegria.Esse eras tu: inclinação da água. Na margem,vento areias mastros lábios, tudo ardia

EUGÉNIO DE ANDRADE,1974. In “12 Poemas para Vasco Gonçalves”. Porto, Colecção O Oiro do Dia, 1975. [In “O Comum da Terra”. Edições Asa, 1992]

Mulheres do meu país

Deu-nos Abrilo gesto e a palavra

fala de nóspor dentro da raiz

Mulheresquebrámos as grandes barricadasdizendo: igualdadea quem ouvir nos quis

E assim continuamosde mãos dadas

O povo somos:mulheres do meu país

MARIA TERESA HORTA, in “Mulheres de Abril”. Lisboa, Caminho, 1977

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Já as primeiras cousas são chegadas / I

Tanta foice isto é coice desconfio...Tanto de marx martelar já cansa.Adrede é labirinto não me fiono fio que o comício ao coro lança.

De tanto ruminar tanto Rossionuma canga aguilhando tanta esperança.Tanto poder ao povo com feitiode espezinhá-lo depois da governança.

Tanta denúncia. É a pedagogiada Revolução que o excremento aviae não chegámos ao último terceto.

Recém-nascida apenas deste em cabraÓ Liberdade! Não sei como isto acaba,não sei como acabar este soneto.

NATÁLIA CORREIA, in “Epístola aos Iamitas”. Lisboa, Dom Quixote, 1976

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivetee uma alma para ir à escolamais um letreiro que prometeraízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginárioque tem a forma de uma cidademais um relógio e um calendárioonde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequimpara dar corda à nossa ausência.Dão-nos um prémio de ser assimsem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéupara tirarmos o retratoDão-nos bilhetes para o céulevado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermoscom as cabeleiras das avóspara jamais nos parecermosconnosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a históriada nossa historia sem enredoe não nos soa na memóriaoutra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educadosque adormecemos no seu ombrosomos vazios despovoadosde personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelhoe um pacote de tabacodão-nos um pente e um espelhopra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeçae uma cabeça presa à cinturapara que o corpo não pareçaa forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferrocom embutidos de diamantepara organizar já o enterrodo nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornalum avião e um violinomas não nos dão o animalque espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelãocom carimbo no passaportepor isso a nossa dimensãonão é a vida, nem é a morte

NATÁLIA CORREIA, in “Dimensão Encontrada”. Lisboa, Ed. autor, 1957

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Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passanotícias do meu paíse o vento cala a desgraçao vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levamtanto sonho à flor das águase os rios não me sossegamlevam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoasai rios do meu paísminha pátria à flor das águaspara onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhaspede notícias e dizao trevo de quatro folhasque morro por meu país.

Pergunto à gente que passapor que vai de olhos no chão.Silêncio — é tudo o que temquem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramosdireitos e ao céu voltados.E a quem gosta de ter amosvi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nadaninguém diz nada de novo.Vi minha pátria pregadanos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margemdos rios que vão pró marcomo quem ama a viagemmas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir(minha pátria à flor das águas)vi minha pátria florir(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignoradae fale pátria em teu nome.

Eu vi-te crucificadanos braços negros da fome.

E o vento não me diz nadasó o silêncio persiste.Vi minha pátria paradaà beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novose notícias vou pedindonas mãos vazias do povovi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentrodos homens do meu país.Peço notícias ao ventoe o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeiadentro da própria desgraçahá sempre alguém que semeiacanções no vento que passa.

Mesmo na noite mais tristeem tempo de servidãohá sempre alguém que resistehá sempre alguém que diz não.

MANUEL ALEGRE, in “Praça da Canção”, 1965. [Coimbra, Atlântida, 1965]

Abril de Abril

Era um Abril de amigo Abril de trigoAbril de trevo e trégua e vinho e húmusAbril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigoainda só ardor e sem ardilAbril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massasera um Abril na rua Abril a rodosAbril de sol que nasce para todos.Abril de vinho e sonho em nossas taçasera um Abril de clava Abril em actoem mil novecentos e setenta e quatro.

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Era um Abril viril Abril tão bravoAbril de boca a abrir-se Abril palavraesse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravoAbril de mão na mão e sem fantasmasesse Abril em que Abril floriu nas armas.

MANUEL ALEGRE,in “País de Abril”. Lisboa, Dom Quixote, 2016.

Trova do mês de Abril

Foram dias foram anos a esperar por um só dia.Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doíacom seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o diana esperança de um só dia.

Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)por um só dia vivida.

Foi o tempo que passava como se nunca passasse.E uma flauta que cantava como se a noite rasgassetoda a vida e uma palavra: liberdade que viviana esperança de um só dia.

Musa minha vem dizer o que nunca então se disseesse morrer de viver por um dia em que se visseum só dia e então morrer. Musa minha que teciasum só dia dos teus dias.

Vem dizer o puro exemplo dos que nunca se cansarammusa minha onde contemplo os dias que se passaramsem nunca passar o tempo. Nesse tempo em que dariaa vida por um só dia.

Já muitas águas correram já muitos rios secarambatalhas que se perderam batalhas que se ganharam.Só os dias não morreram em que era tão curta a vidapor um só dia vivida.E as quatro estações rolaram com seus ritmos e seus ritos.Ventos do Norte levaram festas jogos brincos ditos.E as chamas não se apagaram. Que na ideia a lenha ardiatoda a vida por um dia.

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Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantavasa canção que se vestia com bandeiras nas palavras.Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vidapor um só dia vivida.

MANUEL ALEGRE, in “Atlântico”. Lisboa, Moraes, 1981.

Salgueiro Maia

Ficaste na pureza inicialdo gesto que liberta e se desprende.Havia em ti o símbolo e o sinalhavia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciadopara ti nem poder nem sua regra.Conquistador do sonho inconquistadohavia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vemdar outro rosto ao rosto da cidade.Diz-se o teu nome e sais de Santarémtrazendo a espada e a flor da liberdade.

MANUEL ALEGRE, in “País de Abril”. Lisboa, Dom Quixote, 2016.

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Grândola, Vila Morena

Grândola, vila morenaTerra da fraternidadeO povo é quem mais ordenaDentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidadeO povo é quem mais ordenaTerra da fraternidadeGrândola, vila morena

Em cada esquina um amigoEm cada rosto igualdadeGrândola, vila morenaTerra da fraternidade

Terra da fraternidadeGrândola, vila morenaEm cada rosto igualdadeO povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheiraQue já não sabia a idadeJurei ter por companheiraGrândola a tua vontade

JOSÉ AFONSO,in “Cantigas do Maio”, 1971

A formiga no carreiro

A formiga no carreiroVinha em sentido contrárioCaiu ao TejoAo pé dum septuagenárioLarpou trepou às tábuasQue flutuavam nas águasE de cima duma delasVirou-se pró formigueiroMudem de rumoJá lá vem outro carreiro A formiga no carreiroVinha em sentido diferenteCaiu à ruaNo meio de toda a genteBuliu abriu as gâmbias

Para trepar às varandasE de cima duma delasVirou-se pró formigueiroMudem de rumoJá lá vem outro carreiro A formiga no carreiroAndava à roda da vidaCaiu em cimaDuma espinhela caídaFurou furou à bravaNuma cova que ali estavaE de cima duma delasVirou-se pró formigueiroMudem de rumoJá lá vem outro carreiro

JOSÉ AFONSO,in “Venham mais cinco”, 1973

Vejam bem

Vejam bemque não há só gaivotas em terraquando um homem se põe a pensarquando um homem se põe a pensar

Quem lá vemdorme à noite ao relento na areiadorme à noite ao relento no mardorme à noite ao relento no mar

E se houveruma praça de gente madurae uma estátuae uma estátua de de febre a arder

Anda alguémpela noite de breu à procurae não há quem lhe queira valere não há quem lhe queira valer

Vejam bemdaquele homem a fraca figuradesbravando os caminhos do pãodesbravando os caminhos do pão

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E se houveruma praça de gente maduraninguém vaininguém vai levantá-lo do chão

JOSÉ AFONSO, in “ Cantares de Andarilho”, 1968

Canto Moço

Somos filhos da madrugadaPelas praias do mar nos vamosÀ procura de quem nos tragaVerde oliva de flor no ramoNavegamos de vaga em vagaNão soubemos de dor nem mágoaPelas praias do mar nos vamosÀ procura da manhã claraLá do cimo duma montanhaAcendemos uma fogueiraPara não se apagar a chamaQue dá vida na noite inteiraMensageira pomba chamadaCompanheira da madrugadaQuando a noite vier que venhaLá do cimo duma montanhaOnde o vento cortou amarrasLargaremos pela noite foraOnde há sempre uma boa estrelaNoite e dia ao romper da auroraVira a proa minha galeraQue a vitória já não esperaFresca brisa, moira encantadaVira a proa da minha barca.

ZECA AFONSO, in “Traz outro amigo também”, 1970

Traz outro amigo também

AmigoMaior que o pensamentoPor essa estrada amigo vemNão percas tempo que o ventoÉ meu amigo tambémEm terrasEm todas as fronteiras

Seja bem vindo quem vier por bemSe alguém houver que não queiraTrá-lo contigo também

AquelesAqueles que ficaram(Em toda a parte todo o mundo tem)Em sonhos me visitaramTraz outro amigo também

JOSÉ AFONSO, in “Traz outro amigo também”,1970

Cantiga de Abril

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal «Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade» J. de S.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinqüenta anosreinaram neste país,e conta de tantos danos,de tantos crimes e enganos,chegava até à raíz.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem vero dia do despertar!Tantos sem poder sabercom que letras escrever,com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitériotoda prisão ou censura.e o poder feito galdério,sem limite e sem cautério,todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

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Esses ricos sem vergonha,esses pobres sem futuro,essa emigração medonha,e a tristeza uma peçonhaenvenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-margastando as armas e a gente,esse morrer e matarsem sinal de se acabarpor política demente.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundoo nome de Portugal,essa amargura sem fundo,só miséria sem segundo,só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anosdurou esta eternidade,numa sombra de gusanose em negócios de ciganos,entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,sai o povo logo atrás:estala enfim, altiva e nua,com força que não recua,a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?É verde, verde e vermelha.

JORGE DE SENA, 1979. In “40 Anos de Servidão”. Lisboa Edições 70, 1990

Lamento

Pátria sem rumo, minha voz paradaDiante do futuro!Em que rosa-dos-ventos há um caminhoPortuguês?Um brumoso caminhoDe inédita aventura,Que o poeta, adivinho,Veja com nitidezDa gávea da loucura?

Ah, Camões, que não sou, afortunado!Também desiludido,Mas ainda lembrado da epopeia...Ah, meu povo traído,Mansa colmeiaA que ninguém colhe o mel!...Ah, meu pobre corcelImpaciente,AladoE condenadoA choutar nesta praia do Ocidente...

MIGUEL TORGA, in “Diário XII (17-5-1973/22-6-1977)”. Coimbra 1968

Liberdade

- Liberdade, que estais no céu...Rezava o padre-nosso que sabia,A pedir-te, humildemente,O pio de cada dia.Mas a tua bondade omnipotenteNem me ouvia.

- Liberdade, que estais na terra...E a minha voz cresciaDe emoção.Mas um silêncio triste sepultavaA fé que ressumavaDa oração.

Até que um dia, corajosamente,Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,Saborear, enfim,O pão da minha fome.

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- Liberdade, que estais em mim,Santificado seja o vosso nome.

MIGUEL TORGA, in “Diário XII (17-5-1973/22-6-1977)”. Coimbra 1968

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonhoé uma constante da vidatão concreta e definidacomo outra coisa qualquer,como esta pedra cinzentaem que me sento e descanso,como este ribeiro mansoem serenos sobressaltos,como estes pinheiros altosque em verde e oiro se agitam,como estas aves que gritamem bebedeiras de azul. eles não sabem que o sonhoé vinho, é espuma, é fermento,bichinho álacre e sedento,de focinho pontiagudo,que fossa através de tudonum perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonhoé tela, é cor, é pincel,base, fuste, capitel,arco em ogiva, vitral,pináculo de catedral,contraponto, sinfonia,máscara grega, magia,que é retorta de alquimista,mapa do mundo distante,rosa-dos-ventos, Infante,caravela quinhentista,que é cabo da Boa Esperança,ouro, canela, marfim,florete de espadachim,bastidor, passo de dança,Colombina e Arlequim,passarola voadora,pára-raios, locomotiva,barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,cisão do átomo, radar,ultra-som, televisão,desembarque em foguetãona superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham,que o sonho comanda a vida,que sempre que um homem sonhao mundo pula e avançacomo bola coloridaentre as mãos de uma criança. ANTÓNIO GEDEÃO, in “Movimento Perpétuo”. Coimbra, Atlântida, 1956

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O que aquela noite me quis dar

Eu não estava em casa nessa noite, filho,nem podia estar. Estava nas ruas com os soldadosque rumavam às rádios e aos quarteis, engalanadosde sombra e de júbilo, a ver o que aquela noiteia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.E tu, filho, tinhas a idade rumorejantedesse Abril embalado por uma canção do Zeca.Como posso eu explicar-te tudo aquiloque tu nasceste para aprender, para viver?Eu estava aquartelado no meu silênciode pétalas, sílabas e marés, no dédalode vozes embriagadas pelo vento,na coragem errante das pelejas da infânciae pouco ou nada sabia do mistério desse mêscapaz de transformar em assombro as nossas vidas.Sim, sou eu neste retrato antigo,a receber em festa os exilados, os que chegavamcom grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusãobordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.Sim, sou eu a escrever a primeira reportagemdo primeiro de muitos dias em que o tempodeixou de contar, em que os relógiosse tornaram corolas de paixão e risona lapela larga da alegria desta pátria. Eu não estava em casa nessa noite, filho,estava a afinar o coração pelo tomdas mais belas melodias que alguém pode aprenderpara dar a quem ama a paz de um sonosem tormento. JOSÉ JORGE LETRIA, in “Abril 30 Anos Trinta Poemas”, de José Fanha e José Jorge Letria. Lisboa, Campo das Letras, 2004

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Liberdade

Viemos com o peso do passado e da sementeesperar tantos anos torna tudo mais urgentee a sede de uma espera só se ataca na torrentee a sede de uma espera só se ataca na torrente

Vivemos tantos anos a falar pela caladasó se pode querer tudo quanto não se teve nadasó se quer a vida cheia quem teve vida paradasó se quer a vida cheia quem teve vida parada

Só há liberdade a sério quando houvera paz o pãohabitaçãosaúde educaçãosó há liberdade a sério quando houverliberdade de mudar e decidirquando pertencer ao povo o que o povo produzir.

SÉRGIO GODINHO,in “À Queima-roupa”, 1974

Poema de Abril

A farda dos homensvoltou a ser pele(porque a vocaçãode tudo o que é vivoé voltar às fontes).Foi este o prodígiodo povo ultrajado,do povo banidoque trouxe das trevaspedaços de sol.Foi este o prodígiode um dia de Abril,que fez das mordaçasbandeiras ao alto,arrancou as grades,libertou os pulsos,e mostrou aos presosque graças a elesa farda dos homensvoltou a ser pele.Ficou a herançade erros e buracosnas árduas ladeiras

a serem subidascom os pés descalços,mas no sofrimentoa farda dos homensvoltou a ser pelee das baionetasirromperam flores.Minha pátria lindade cabelos soltoscorrendo no vento,sinto um arrepiode areia e de marao ver-te feliz.Com as mãos vaziasvamos trabalhar,a farda dos homensvoltou a ser pele.

SIDÓNIO MURALHA,in “Poemas de Abril”. Lisboa, Prelo, 1974