collins, francis sellers - a linguagem de deus
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A LINGUAGEM DE DEUS
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Francis S. Collins
A LINGUAGEM
DEDEUSUmcientistaapresentaevidnciasdequeEleexisteTraduo:
GiorgioCappeli
Digitalizao:Argo (apelido de "Deus")
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A meus pais, que me ensinaram a adorar o aprendizado.
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SUM RIO
Introduo9
PRIMEIRAPARTEOcismaentreacinciaeaf17CAPTULO I: Doatesmocrena19
CAPTULO2:Aguerradasvisesdemundo41
SEGUNDAPARTEAsgrandesquestesdaexistnciahumana63
CAPTULO3:Asorigensdouniverso65CAPTULO4:AvidanaTerra:sobremicrbioseohomem91
CAPITULO5:Decifrandoomanualde instruesdeDeus:as
liesdogenomahumano115
TERCEIRAPARTEFnacincia, femDeus149CAPTULO6:Gnesis,GalileueDarwin151
CAPTULO7:Alternativa I: Atesmoeagnosticismo165
CAPTULO8:Alternativa2:Criacionismo177
CAPTULO9:Alternativa3:Designinteligente187
CAPTULO10: Alternativa4:BioLogos203
CAPTULO11: Osquebuscamaverdade217
Apndice
Aprticamoraldacinciaedamedicina:Biotica239
Agradecimentos277
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INTRODUO
NUMDIAQUENTEDEVEROdoprimeirosemestredo novomilnio,ahumanidade atravessou umaponte rumo a uma nova era detremenda importncia. Ao mundo
inteiro foi transmitido umpronunciamento, com destaque empraticamente todos os jornais maisimportantes, apregoando que oprimeiro rascunho do genomahumano, nosso manual de
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O genoma humano formado por todo o DNA de nossa es-
pcie; o cdigo de hereditariedade da vida. O texto
recm- revelado apresentava 3 bilhes de letras, escritonum cdigo estranho e enigmtico composto de quatro
letras. A complexi- dade das informaes contidas em cadaclula do corpo huma- no tamanha e to impressionante
que ler uma letra por se- gundo desse cdigo levaria 31anos, dia e noite, ininterrupta- mente. Se imprimssemos
essas letras num tamanho de fonte regular, em etiquetasnormais, e as unssemos, teramos como resultado uma torre
do tamanho aproximado de um prdio de53 andares. Pela primeira vez naquela manh de vero, aqueleenredo fabuloso, que continha todas as instrues para cons-
truir um ser humano, encontrava-se disponvel para o mundo.
Como lder do Projeto Genoma Humano
internacional, no qual me empenhei por mais de uma dcadaa fim de revelar a seqncia do DNA, fiquei ao lado do
presidente Bill Clinton, no Salo Leste da Casa Branca,
juntamente com Craig Venter, o lder de uma empresaconcorrente do setor privado. O primeiro- ministro Tony Blairestava conectado ao evento via satlite, e as comemoraesaconteciam em vrias partes do mundo.
Clinton iniciou o discurso comparando o mapa da seqnciado genoma humano ao que Meriwether Lewis desdobrou diante
do presidente Thomas Jefferson, naquele mesmo recinto, qua-se duzentos anos antes.
Sem dvida afirmou Clinton , trata-se do mapa maisimportante e mais extraordinrio j produzido pela humanidade.
No entanto, a parte de seu discurso que mais chamou a aten-o do pblico saltou da perspectiva cientfica para a espiritual.
Hoje disse ele , estamos aprendendo a
linguagem com a qual Deus criou a vida. Ficamos ainda mais
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Ser que eu, um cientista rigorosamente treinado,fiquei
desconcertado com uma referncia religiosa to espalhafatosa,feita pelo presidente dos Estados Unidos num momento como
aquele? Fiquei tentado a mostrar-me irritado ou a olhar enver-gonhado para o cho? No, nem um pouco. Na
verdade, eu trabalhara com o redator do discurso dopresidente naqueles dias de frenesi que precederam o evento,
e fui enftico em meu apoio incluso desse pargrafo.
Quando chegou o momento em que precisei acrescentar
algumas palavras de minha auto- ria, fiz coro com essesentimento:
um dia feliz para o mundo. Para mim no h pretenso
nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo ao perceber que apa-nhamos o primeiro traado de nosso manual de instrues, an-
teriormente conhecido apenas por Deus.
O que se passava l? Por que um presidente e um cientista,no comando do anncio de um marco da Biologia e da Medici-
na, se sentiram impelidos a evocar uma conexo comDeus? No existe um antagonismo entre as vises de mundo
cientficae espiritual? Ambas no deveriam, ao menos, evitar aparecer
lado a lado no Salo Leste? Quais os motivos para
evocar Deus nesses dois discursos? Poesia? Hipocrisia? Umatentati- va cnica de bajular as pessoas religiosas ou de
desarmar as que talvez criticassem o estudo do genoma
humano como se este reduzisse a humanidade a ummaquinrio? No. No para mim. Muito pelo contrrio. Para
mim, a experincia de mapear
a seqncia do genoma humano e descobrir o mais notvel de
todos os textos foi, ao mesmo tempo, uma realizao cientficaexcepcionalmente bela e um momento de venerao.
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pode ser uma opo completamente racional e que os princpios
da f so, na verdade, complementares aos da cincia.
Essa sntese potencial das vises de mundo cientfica e es-piritual, nos tempos modernos, tida por muitos como imposs-
vel, quase como a tentativa de obrigar os dois plos de um m
a permanecer juntos num mesmo ponto. Apesar dessa impres-
so, vrias pessoas nos Estados Unidos parecem interessadasem assimilar a validade de ambas as vises de mundo em seu
cotidiano. Pesquisas recentes confirmam que 93% dosnorte- americanos so adeptos de alguma forma de crena em
Deus; entretanto, a maioria deles tambm dirige carros, utilizaeletrici- dade e presta ateno na previso do tempo,aparentemente reconhecendo que a cincia que d respaldo a
tais fenmenos
, em geral, digna de crdito.
E o que dizer da crena espiritual entre cientistas? Na ver-dade, ela mais comum do que muitas pessoas imaginam. Em1916, pesquisadores perguntaram a bilogos, fsicos e
mate- mticos se acreditavam em um Deus que secomunica ativa- mente com a humanidade e ao qual possvel fazer uma ora- o, na esperana de receber uma
resposta. Cerca de 40% de- les responderam que sim. Em
1997, o mesmo estudo foi repe- tido literalmente e, parasurpresa dos pesquisadores, a porcen- tagem permanecia
muito prxima da anterior.
Quer dizer, ento, que a "batalha" entre a cincia e a religio
talvez no esteja to claramente separada quanto parece? Infe-lizmente, a prova de uma harmonia potencial , com freqn-
cia, ofuscada pelos pronunciamentos vociferados daqueles que
ocupam os plos do debate. No h como negar: bombas so jogadas de ambos os lados. Por exemplo, paradesacreditar, em sua essncia, as convices religiosas de
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ponto de vista: preciso ser ateu para acreditar na evoluo.
Eis uma de suas diversas afirmaes estarrecedoras: "A f a
grande enrolao, a grande desculpa para fugir da necessidadede pensar e avaliar as evidncias. A f acreditar, apesar de,
ou mesmo em virtude de, uma falta de evidncia. [...] A f, porser uma crena que no se baseia em evidncias, o principal
vcio de qualquer religio."1
Do outro lado do debate, determinados fundamentalistas re-
ligiosos atacam a cincia, condenando-a de perigosa eno confivel, e apontam uma interpretao ao p da letra dos
tex- tos sagrados como nica forma crvel para discernir averdade cientfica. Entre os participantes dessa comunidade
est o fina- do lder do movimento criacionista, Henry Morris,cujos comen-
Essamentirachamadaevoluopermeiaedominaopensamentomo-
dernoemtodososcampos.Sendoassim, portanto, inevitvelqueopen-
samento evolucionista seja, basicamente, o responsvel pelos desenvolvi-
mentospolticosmortalmentesinistrosepeloesfacelamentocatico,moral
esocialquevemsendocatalisadoemtodososlugares. [...]Seacinciae
aBbliaentramemdesacordo,bvioqueacinciainterpretaosdadosde
formaerrnea.2
A crescente cacofonia de vozes antagnicas faz com que v-rios observadores sinceros se sintam confusos e desanimados.
Pessoas de bom senso concluem ter a obrigao de
escolher entre dois extremos insossos, e nenhum delesoferece muito consolo. Decepcionadas pela estridncia deambas as perspec-
1DAWKINS, R. IS Science a Religion? The Humanist, v. 57, 1997, p. 26-29.
2MORRIS, H. R. The Long War Against God. New York: Master Books, 2000.
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cluses cientficas como o valor da religio organizada, prefe-
rindo se lanar as diversas formas de pensamento anticientfico
ou a alguma forma vazia de espiritualidade, ou seentregar a uma simples apatia. Outras decidem aceitar ao
mesmo tempo os valores da cincia e os do esprito,isolando, porm, essas pores de sua existncia espiritual e
material, a fim de evitar um desconforto causado porconflitos aparentes. Com base nessas premissas, o bilogo
Stephen Jay Gould acreditava que cincia e f deveriamocupar "ofcios separados, e no sobre- postos". Contudo,
esse tipo de posio tambm se mostra insa- tisfatrio, levandoa conflitos internos e destituindo as pessoas da oportunidadede adotar a cincia ou o esprito de um modo que as satisfaa
totalmente.
Eis aqui a pergunta central deste livro: nesta era moderna
de cosmologia, evoluo e genoma humano, ser queainda existe a possibilidade de uma harmonia satisfatria
entre as vises de mundo cientfica e espiritual? Eu
respondo com um sonoro sim! Em minha opinio, no hconflitos entre ser um cientista que age com severidade e
uma pessoa que cr num Deus que tem interesse pessoal emcada um de ns. O dom- nio da cincia est emexplorar a natureza. O domnio de Deus encontra-se nomundo espiritual, um campo que no possvel
esquadrinhar com os instrumentos e a linguagem da cincia;
deve ser examinado com o corao, com a mente e com a
alma e a mente deve encontrar uma forma de abar- carambos os campos.
Meu argumento que tais perspectivas podem coexistir em
qualquer indivduo, e de modo que enriquea e ilumine a expe-rincia humana. A cincia a nica forma confivel
para en- tender o mundo da natureza, e as
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to, incapaz de responder a questes como: "Por que o uni-
verso existe?"; "Qual o sentido da existncia
humana?"; "O que acontece aps a morte?". Uma dasnecessidades mais fortes da humanidade encontrar
respostas para as questes mais profundas, e temos deapanhar todo o poder de ambas as perspectivas, a
cientfica e a religiosa, para buscar a compreensotanto daquilo que vemos como do que no vemos.
Esta obra tem por objetivo explorar uma trilha rumo a umaintegrao sbria e intelectualmente honesta dos dois
pontos de vista.Considerar a gravidade de tais matrias pode ser perturba-
dor. Todos ns j chegamos a uma determinada viso de mun-
o, possamos ou no cham-la assim. Ela nos auxilia adar sentido ao mundo nossa volta, fornece-nos uma estrutura
ti- ca e conduz nossas decises sobre o futuro. Quem quer quese ponha a mexer nessa viso de mundo no deve faz-lo
super- ficialmente. Um livro que se prope desafiar algo
to funda- mental pode trazer mais desconforto do que alvio.o entanto, ns, seres humanos, aparentamos possuir um desejo
arraigado por descobrir a verdade, mesmo que tal vontade sejafacilmen- te abafada pelos detalhes da vida diria. Tais
distraes com- binam-se a um desejo de evitar que levemosm conta nossa mortalidade; assim, os dias, as semanas,
os meses ou at mesmo os anos passam, e no se d
nenhuma considerao sria s eternas dvidas sobre a
existncia humana. Este livro apenas um pequeno antdoto para tal desconforto, mas talvezfornea uma oportunidade para a auto-reflexo e para um de-
sejo de olhar com mais profundidade.
Antes de mais nada, preciso explicar como um cientista ge-ntico tornou-se algum que acredita em um Deus ilimitado pe-
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uma educao religiosa rgida, profundamente injetada pela fa-
mlia e pela cultura, algo que se tornou inevitvel mais tarde, na
vida. Isso, contudo, no condiz com minha verdadeira histria.
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PRIMEIRA PARTEOcismaentreacinciaeaf
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CAP TULO IDo atesmo crena
OS PRIMEIROS ANOS DEMINHA
vida no foram convencionais em vriosaspectos. No entanto, como filho de pes-
soas com opinies prprias, tive uma cri-ao moderna bastante convencional em
termos de f no era algo to impor-tante.
Cresci numa fazenda poeirenta no valedo rio Shenandoah, na Virgnia. L
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dades fsicas. Todavia, tudo isso foi mais do que compensado
por uma mistura estimulante de experincias e oportunidades,
em uma cultura extraordinria de idias criada pelos meus pais.Os dois se conheceram no curso de doutoramento em Yale,
em 1931, e levaram suas aptides para organizar grupos e seu
amor pela msica comunidade experimental de
Arthurdale, em West Virgnia. L, trabalharam comEleanor Roosevelt na tentativa de revigorar uma
comunidade de mineiros oprimidos nas profundezas daGrande Depresso.
Entretanto, outros conselheiros da administrao Roosevelttinham idias diferentes, e logo a fundao acabou. A runa dacomunidade Arthurdale, baseada na poltica de difamaes de
Washington, fez meus pais passarem o resto da vida
sob a suspeita do governo. Voltaram para a vidaacadmica na Fa- culdade Elon, em Burlington, na Carolina
do Norte. L, presen- teado com a bela e selvagem culturapopular rural do sul, meu pai tornou-se colecionador de
msicas folclricas, viajando pe- las colinas e vales econvencendo os desconfiados habitantes locais a cantar paraum gravador. As gravaes formaram uma fatia considervelna coleo da Biblioteca do Congresso de canesfolclricas dos Estados Unidos.
Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, esses empre-
endimentos musicais passaram para um plano secundrio, emvirtude de assuntos mais urgentes a respeito da defesa nacio-
nal. Meu pai, ento, foi trabalhar ajudando a construir bombar-deiros para o esforo de guerra. Por fim, tornou-se supervisorem uma fbrica de aeronaves em Long Island.
Ao terminar a guerra, meus pais concluram que avida es- tressante dos negcios no era para eles. Estavam frente de seu tempo e fizeram, j nos anos 1940, "coisas tpicas
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criar um estilo de vida simples sem o uso de mquinas agrcolas.
Ao descobrir, poucos meses mais tarde, que aquilo no iria ali-
mentar seus dois filhos adolescentes (e logo outro irmoe eu chegaramos), meu pai arrumou um emprego de
professor de teatro em um colgio local feminino. Convocouatores da cidade
e, com as estudantes do colgio e comerciantes da regio, des-cobriu que a produo de peas era bastante divertida.
Aten- dendo a reclamaes por causa do perodo extenso ecansativo em que no havia apresentaes durante o vero,
meu pai e mi- nha me fundaram um teatro de vero em umpequeno bosque de carvalhos acima da nossa casa de fazenda.
Mais de cinqen-
ta anos depois, o Oak Grove Theater [Teatro do Bosque de Car-valhos] mantm-se ininterrupta e deliciosamente na ativa.
Nessa mistura de beleza campestre, trabalho rduo de fazenda,
teatro de vero e msica, eu nasci e amadureci. Caula de quatroirmos, no experimentei tantas dificuldades que j no fossem
conhecidas de meus pais. Cresci com um sentimento de que pre-cisava ter responsabilidade por meu comportamento e minhas es-colhas, porque ningum iria aparecer para cuidar disso por mim.
Minha me foi minha professora. Minha e de meusirmos mais velhos. Aqueles primeiros anos deram-me um
presente i- nestimvel: o prazer do aprendizado. Apesar deminha me no ter uma agenda organizada de aulas nem
planejar lies de ca- sa, tinha uma percepo incrvel para
identificar tpicos que dei- xavam uma mente jovem intrigada,persistindo neles com grande intensidade at um ponto naturalde interrupo e, em seguida, mudava para algo novo e
igualmente empolgante. Aprender nunca era algo que voc
fazia por obrigao, e sim porque ado- rava. A f no era parteimportante de minha infncia. Eu tinha uma vaga conscincia
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por mim. Lembro-me, por exemplo, de ter feito um contrato com
Deus (aos 9 anos de idade, mais ou menos): se Ele evitasse a
chuva durante uma apresentao de teatro que envolvia tambmuma festa com msica em um sbado noite, coisa que me dei-
xava bastante entusiasmado, prometeria jamais fumar um cigar-ro. Lgico que a chuva no caiu e eu nunca adquiri o hbito. A-
nos antes, quando tinha 5 anos, meus pais decidiram que eu emeu terceiro irmo deveramos participar do coral de meninos da
igreja episcopal local. Fizeram questo de frisar que seria umamaneira genial de aprender msica, mas que a Teologia no de-
veria ser levada to a srio. Segui essas instrues, aprendendoa grande beleza da harmonia e do contraponto musical, deixan-do, porm, que os conceitos teolgicos pregados no plpito pas-
sassem por mim sem deixar nenhum resduo identificvel.
Quando eu tinha 10 anos, ns nos mudamos para a cidade afim de ficar com minha av doente, e passei a freqentar a esco-la pblica. Aos 14, tive meus olhos abertos para os mtodos ma-
ravilhosamente estimulantes e poderosos da cincia.
Inspirado por um professor de Qumica carismtico, que podiaescrever in- formaes na lousa com as duas mossimultaneamente, des- cobri a satisfao intensa do carter
organizado do universo. O fato de toda a matria serconstituda de tomos e molculas que obedeciam a
princpios matemticos mostrou-se uma reve- lao inesperada,e a capacidade de utilizar os instrumentos da cincia para
fazer novas descobertas sobre a natureza arreba- tou-me de
uma s vez, como algo do qual eu queria fazer parte. Com oentusiasmo de um recm-convertido, decidi que minha
meta na vida seria tornar-me um qumico. No importava que eusoubesse relativamente pouco sobre as outras cincias, parecia
que esse primeiro namorico de infncia ia mudar minha vida.Meus contatos com a Biologia, porm, me deixavam
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as bases da Biologia pareciam ter mais a ver com um aprendi-
zado automtico de fatos sem propsito do que com a elucida-
o de princpios. Na verdade, no estava nem um pouco inte-ressado em decorar as partes de um lagostim nem em tentar
descobrir a diferena entre um filo, uma classe e uma ordem. Acomplexidade avassaladora da vida levou-me a concluir que a
Biologia era quase igual filosofia existencialista: no tinha omenor sentido. Para minha mente, que se desenvolvia de for-
ma reducionista, no havia uma lgica prxima o bastante parachamar minha ateno. Quando me formei, aos 16
anos, in- gressei na Universidade da Virgnia, decidido aestudar Qumi- ca e seguir uma carreira cientfica. Como amaioria dos calou- ros, achei esse novo ambiente estimulante,
cheio de idias que ricocheteavam nas paredes das salasde aula e dos dormit- rios, tarde da noite. Algumas dessas
idias se voltavam, invaria- velmente, para a existncia de
Deus. No incio da minha adoles- cncia, tinha tidomomentos casuais de experincia, ansiando por algo fora
de mim, em geral associado beleza da natureza ou a umaexperincia musical particularmente profunda. Entre- tanto,
meu senso de espiritualidade encontrava-se muito poucodesenvolvido e era facilmente desafiado por um ou dois
ateus agressivos que sempre encontramos em quase todos osaloja- mentos de faculdade. Durante alguns meses em minhacarreira universitria, acabei por me convencer de que,
embora muitas fs religiosas tivessem inspirado tradies
Embora eu desconhecesse a palavra na poca, tornei-me umagnstico, termo concebido por T. H. Huxley, um cientista do s-
culo XIX, para indicar algum que simplesmente nosabe se Deus existe ou no. H agnsticos de todos os tipos;
alguns che-
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cias. Muitos, porm, acham simplesmente que esto em posio
cmoda, a qual lhes permite evitar pensar em argumentos consi-
derados desconfortveis para ambos os lados. Na verdade, mi-nha declarao "no sei" podia ser mais bem traduzida
como "no quero saber". Na posio de um jovem que cresciaem um mundo repleto de tentaes, era conveniente ignorar a
necessi- dade de prestar contas a qualquer autoridade espiritual.Eu exer- cia um tipo de pensamento e comportamento
denominado, pelo famoso acadmico e escritor C. S. Lewis,"cegueira voluntria".
Depois de formado, ingressei em um programa de doutoradoem Fsico-qumica da Universidade de Yale, buscando a
ele- gncia da Matemtica que, a princpio, havia me levado aesse ramo da cincia. Minha vida intelectual encontrava-
se imersa em mecnica quntica e equaesdiferenciais de segundo grau, e meus heris eram os
gigantes da Fsica Albert Eins- tein, Niels Bohr, Werner
Heisenberg e Paul Dirac. Aos poucos me convencia de que
tudo no universo podia ser explicado com base em equaes eprincpios da Fsica. Li a biografia de Albert Einstein e descobrique, apesar de sua slida posio sionista aps a Segunda
Guerra Mundial, ele no acreditava em lave, o Deus dos judeus. Isso apenas reforou minha concluso de que nenhumcientista pensante poderia cogitar seriamente a possibi- lidade
de Deus sem cometer um tipo de suicdio intelectual.
E assim, aos poucos, passei de agnstico para ateu. Sentia-
me bastante vontade desafiando as crenasespirituais de qualquer um que as mencionasse em minha
presena, e defi- nia esses pontos de vista comosentimentalismos e supersti- es fora de moda.
Dois anos nesse programa de doutorado, e meuplano de vida estruturado de forma to estreita comeou a se
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se conseguiria ganhar a vida seguindo aquele caminho.Apa-
rentemente, a maioria dos avanos significativos dateoria quntica havia acontecido cinqenta anos antes, e a
maior par- te da minha carreira talvez fosse passar naaplicao de simpli- ficaes e aproximaes sucessivas
descrevendo determina- das equaes elegantes, porminsolveis, s um tantinho mais fceis de trabalhar.
Falando de uma maneira mais prtica, eu tinha a impresso de
que seguiria um caminho inevitvel: a vida de um professor
universitrio, apresentando interminveis sries de palestrassobre termodinmica e mecnica da estats- tica para classes emais classes de alunos que ficariam entedi- ados ouaterrorizados com tais matrias.
Quase ao mesmo tempo, em um esforo para ampliar meus
horizontes, inscrevi-me em um curso de Bioqumica, por fim in-vestigando as cincias da vida que havia evitado com
tanto cuidado em pocas passadas. O curso era fabuloso. Os
princ- pios do DNA, do RNA e da protena, que nunca tinhamse mos- trado evidentes para mim, foram-me apresentadosem toda a sua glria digital de satisfao. A capacidade
de colocar em prtica rigorosos princpios intelectuais para
compreender a Bi- ologia, algo que eu imaginava impossvel,estava vindo a pbli- co com estardalhao mediante arevelao do cdigo gentico. Com o advento de novosmtodos de emendar fragmentos dife- rentes de DNA
vontade (DNA recombinante), a possibilidade de aplicar todoesse conhecimento em benefcio da humanida- de pareciabastante real. Eu estava estarrecido. A Biologia, afinal de contas,
tem uma elegncia matemtica. A vida faz sentido.Nessa poca, com apenas 22 anos, mas j casado
e com uma filha brilhante e curiosa, estava me tornando uma
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sionado por essas sbitas revelaes, questionei minhas esco-
lhas anteriores, at mesmo minha capacidade para a carreira de
cincias ou para o empreendimento de pesquisas independen-tes. Eu estava quase concluindo meu doutorado, e, ainda indeci-
so, fiz uma solicitao para ser admitido na faculdade de Medici-na. Com um discurso ensaiado cuidadosamente, tentei conven-
cer os membros do comit de admisses de que aquela revira-volta consistia na verdade em um caminho natural para o trei-
namento de um dos futuros mdicos da nao. Por dentro, euno tinha essa certeza toda. Afinal de contas, no era eu o sujei-
to que odiava Biologia porque exigia memorizao?Existia al- gum campo de estudo que precisava de mais
memorizaes do que a Medicina? Havia, porm, algo diferente
naquele momento: estvamos falando a respeito de sereshumanos, no do lagos- tim; havia princpios fundamentais sob
os detalhes; isso poderia, em ltima anlise, fazer a diferena navida de pessoas reais.
Fui aceito na Universidade da Carolina do Norte. Em poucas
semanas, j sabia que a faculdade de Medicina era o lugar certopara mim. Adorava o estmulo intelectual, os desafios ticos, oelemento humano e a incrvel complexidade de seu organismo.Em dezembro daquele primeiro ano descobri como
combinar meu novo amor pela Medicina com meu antigo amorpela Mate- mtica. Um pediatra severo e um tanto inacessvel,
que dava um total de seis horas de palestras sobre genticamdica para os alunos de primeiro ano de Medicina, mostrou-
me meu futuro. Le- vava s aulas pacientes com anemiafalciforme, galactosemia (uma intolerncia, geralmente fatal, aderivados do leite) e sn- drome de Down, todas doenas
causadas por pequenas falhas no genoma, algumas to sutisquanto uma nica letra errada.
Fiquei fascinado com a elegncia do cdigo do DNA huma-
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fazer algo que realmente ajudasse muitos dos afetados por a-
quelas doenas genticas parecesse bem distante,
imediata- mente me senti atrado por aquela disciplina. Apesarde naque-
le instante no haver nem sequer uma sombra de possibilidadede algo to grandioso quanto o Projeto Genoma Humano
ser concebido, a trilha que iniciei em 1973 apresentou, ao
acaso, o rumo direto para minha participao em um dosmaiores em- preendimentos histricos da humanidade.
Essa trilha tambm me levou, no terceiro ano da faculdade
de Medicina, a ter experincias intensas no atendimento a pa-cientes. Na qualidade de mdicos em treinamento, os estudan-tes de Medicina so arremessados para um dos tipos de rela-
cionamento mais ntimos que se pode imaginar, com indivduosque lhes so estranhos completos at o momento em que ado-
ecem. Tabus culturais, que normalmente impedem o intercm-
bio de informaes muito particulares, desmoronam de sbito, juntamente com o contato fsico sensvel entre um
mdico e seus pacientes. Tudo isso faz parte de um contratorespeitadoe duradouro entre o doente e quem ministrar sua cura. Achei
os relacionamentos que desenvolvi com pacientes enfermos emoribundos algo arrebatadores, e lutei para manter a distncia
profissional e a ausncia de envolvimentos emocionais
que muitos de meus professores defendiam.
O que deixou marcas profundas em mim, aps minhas con-
versas ao p da cama com aquelas pessoas de boa ndole daCarolina do Norte, foi o aspecto espiritual delas. Presenciei v-
rios casos de indivduos cuja f lhes supria com uma reafirma-o da crena slida, de paz definitiva, fosse neste mundo ou
no outro, apesar do sofrimento terrvel que lhes era infligido, oqual, na maioria das ocasies, no haviam feito nada para cau-
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tural, por que motivo aquelas pessoas no sacudiam seus pu-
nhos fechados para Deus, exigindo que seus amigos e paren-
tes parassem com toda aquela conversa sobre umpoder so- brenatural de amor e benevolncia?
Meu momento mais embaraoso surgiu quando uma senhoraidosa, sofrendo todos os dias por causa de uma angina grave e
incurvel, perguntou-me em que eu acreditava. Umapergunta justa; havamos discutido muitos outros assuntos
importantes sobre vida e morte, e ela partilhara comigo suascrenas crists, prprias e slidas. Senti que fiquei ruborizado ao
gaguejar as pa- lavras: "No sei bem ao certo". Sua bviasurpresa apresentou-se como um ntido alvio ao constrangimento
do qual eu vinha fugin- do durante quase todos os meus 26 anos
de vida: jamais conside- rei seriamente uma evidncia contra e afavor de uma crena.
Aquele instante me assombrou durante vrios dias. Ento euno me considerava um cientista? Um cientista tira suas conclu-
ses sem levar em conta os dados? Em toda a existncia huma-
na, no podia haver uma pergunta mais importante do que "Exis-te algum Deus?". E, apesar disso, l estava eu, munido de umacombinao de cegueira voluntria e algo que talvez s pudesse
ser descrito adequadamente como arrogncia: a fuga dequal- quer reflexo sria sobre Deus ser uma possibilidade real.
De re- pente, todos os meus argumentos pareciam fracosdemais, e eu tinha a sensao de que o cho sob meus ps
estava se abrindo.
Tal percepo foi uma experincia completamente assusta-dora. Afinal de contas, se eu no conseguia mais confiar na so-
lidez de minha posio atesta, como poderia assumir a
res- ponsabilidade pelas aes que preferia deixar sem umexame minucioso? Deveria prestar contas a outro que no euprprio?
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afirmaria minha posio de ateu. No entanto, determineique
examinaria os fatos, no importassem os resultados. Assim teveincio um estudo rpido e confuso sobre as principais religies do
mundo. Muito do que encontrei em edies simplificadas de reli-gies diferentes (achei a leitura dos verdadeiros textos sacros di-
fcil demais) deixou-me totalmente atnito, e vi poucos motivospara me lanar a uma ou outra das diversas possibilidades. No
acreditava que houvesse base racional para uma crena espiri-
tual subjacente a qualquer uma daquelas religies. Isso, contu-
do, logo mudou. Fui visitar um pastor metodista que morava namesma rua que eu, a fim de perguntar-lhe se a f tinha algumsentido lgico. Ele escutou com pacincia minhasdivagaes confusas (e talvez blasfemas); em seguida, apanhou
um livrinho em sua prateleira, sugerindo que eu o lesse.
O livro era Cristianismo Puroe Simples(publicado no Brasil pe-la Martins Fontes), de C. S. Lewis. Nos poucos dias que se segui-ram, conforme eu folheava as pginas, lutando para absorver a
amplitude e a profundidade dos argumentos intelectuais apresen-tados pelo lendrio acadmico de Oxford, percebi que todos os
meus argumentos contra a aceitao da f eram dignos de um ga-roto em idade escolar. Obviamente eu tinha de comear do zero
para considerar aquela que a mais importante de todas as ques-tes humanas. Lewis parecia conhecer todas as minhas objees,algumas antes mesmo de eu formul-las. Falou sobre
elas em uma ou duas pginas. Quando, mais tarde, descobri que
o prprio Lewis havia sido um ateu que se propusera reprovar af com ba- se em argumentaes lgicas, percebi como elepde conhecer to bem minha trilha. Ele tambm a tinha
percorrido.
O argumento que mais chamou minha ateno e que maisacalentou minhas idias sobre a cincia e o esprito at seus a-
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aspectos, a "Lei Moral" que Lewis descreveu fosse uma carac-
terstica universal da existncia humana, tive a impress
de que a examinava pela primeira vez.Para compreender a Lei Moral, vale considerar,
conforme Lewis o fez, que ela evocada de centenas de
maneiras, todos os dias, sem que aquele que a evoca se
detenha para mostrar as bases de seu argumento. Asdivergncias fazem parte da vida cotidiana. Algumas so
relativas ao mundo material, comoa esposa que critica o marido por no ter sido gentil ao conver-
sar com uma amiga ou uma criana que declara que"no justo" distribuir diferentes quantidades de sorvete
numa festa de aniversrio. Outras argumentaes soencaradas com uma importncia maior. Em assuntos
internacionais, por exemplo, alguns argumentam que os
Estados Unidos tm a obrigao moral de disseminar ademocracia pelo mundo, mesmo custa do poderio militar,
enquanto outros declaram que o uso agres- sivo e unilateral
de foras militares e econmicas to ruim quanto afalta de democracia em um pas.
Atualmente, na Medicina, debates furiosos permeiam a ques-to de aceitar ou no o empreendimento da pesquisa com clu-
las-tronco embrionrias. Alguns afirmam que essa pesquisa viola
a santidade da vida humana; outros supem que o potencial pa-ra aliviar o sofrimento humano constitui uma procurao
tica para prosseguir com tal trabalho (esse e vrios outros
dilemas da Biotica so levados em conta no Apndice destelivro).
Repare que, nesses exemplos, cada parte tenta recorrer a umpadro superior no-declarado. Esse padro a Lei Moral, quepode tambm ser chamada de "a lei do comportamento correto",
e sua existncia em cada uma dessas situaes parece inques-
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ga da esposa, em geral respondem com desculpas variadas so-
bre por que deveriam ser auxiliados a sair de uma dificuldade.
Praticamente nunca retrucam com algo como: "V para o infernovoc e esse seu conceito de comportamento correto".
O que temos aqui bastante peculiar: o conceito de certo eerrado aparenta ser universal entre todos os membros da es-
pcie humana (apesar de sua prtica poder resultar em conse-qncias brutalmente diferentes). Assim, isso parece
mais a abordagem de um fenmeno do que de uma lei, comoa lei da gravidade ou a da relatividade especial. Contudo,
trata-se de uma lei que, sejamos sinceros, infringida comuma freqncia impressionante.
At onde posso dizer da melhor maneira, essa lei parece apli-
car-se especialmente aos seres humanos. Embora outros animais
possam, s vezes, aparentar demonstraes de vislumbre de umsentido de moral, sem dvida estas no so amplamente difundi-
das e, em muitos exemplos, o comportamento de outras espciesparece contrastar dramaticamente com qualquer senso de justia
universal. Ao tentar enumerar as qualidades especiais do Homosapiens, os cientistas geralmente se referem conscincia de cer-to e errado, juntamente com o desenvolvimento da linguagem, aconscincia do "eu" e a capacidade de imaginar o futuro.
No entanto, ser essa noo de certo e errado uma qualida-
de essencial do ser humano ou apenas uma conseqncia de
tradies culturais? Alguns alegam que as culturas apresentamnormas de comportamento com tantas diferenas que qualquer
concluso sobre uma Lei Moral compartilhada no tem funda-mento. Lewis, estudioso de vrias culturas, chama isso de
uma mentira, uma mentira boa e retumbante. Se um homem for a
uma biblioteca e passar alguns dias com a Encydopedia of Religi-
on and Ethics [Enciclopdia de religio e tica], logo perceber a
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imensa unanimidade do fundamento prtico no ser humano. Desde
os Hinos Babilnicos a Pitgoras de Samos, desde as leis de Ma-
nu, o Livro dos Mortos, os Analectos de Confcio, os Esticos, osPlatonistas, desde os aborgines australianos e peles-
vermelhas dos Estados Unidos, esse homem na biblioteca far
um apanhado das mesmas denncias triunfantemente
montonas de opresso, assassinato, traio e falsidade; as
mesmas obrigaes de gentile- za aos idosos, aos jovens e aos
fracos, sobre a doao de esmo-
Em certas culturas incomuns, a lei assume adornos surpre-endentes vejam-se as bruxas que eram queimadas nos Es-
tados Unidos, no sculo XVII. Contudo, num exame mais apu-rado, percebe-se que essas aberraes aparentes surgem
de concluses sustentadas com muita nfase, mas mal
orienta- das, sobre quem ou o que o bem ou o mal. Sevoc tivesse convico de que uma bruxa fosse a encarnao
do mal sobre
a terra, um apstolo do demnio, no lhe pareceria justificvelesse tipo de ao drstica?
Permita-me interromper o raciocnio para salientar que a con-
cluso sobre a existncia da Lei Moral encontra-se em um confli-
to srio com a Filosofia ps-modema. Esta argumenta no haver
um certo e um errado absolutos, e que todas as decises ticasso relativas. Essa viso, que parece amplamente divulgada en-
tre os filsofos modernos, mas que empresta uma mstica mai-
oria de seus membros junto ao pblico em geral, encontra umasrie de situaes lgicas no estilo "se correr o bicho pega, se fi-car o bicho come". Se no h verdade absoluta, ser que o pr-
prio ps-modernismo real? De fato, se no existe nem
1LEWIS, C. S. The poison of subjetivism. In: Hooper, Walter (Ed.). C S. Lewis, Christian
Reflections. Grand Rapids: Eerdmans, 1967. p. 77.
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Alguns iro contestar, dizendo que a Lei Moral uma sim-
ples conseqncia das presses evolucionrias. Essa objeo
surge de um novo campo da Sociobiologia e tentafornecer explicaes para o comportamento altrusta com base
no valor positivo da seleo natural de Darwin. Sepudssemos apre- sentar tal argumento como sustentao
para a interpretao de diversas exigncias da Lei Moralcomo uma indicao para Deus, teramos um problema
potencial por isso, vale a pena examinar esse ponto de vistade forma mais detalhada.
Leve em conta um exemplo importante da fora que senti-mos, oriunda da Lei Moral o impulso altrusta, a
voz da conscincia nos chamando a ajudar os outros, mesmosem re- ceber nada em troca. Nem todas as exigncias da Lei
Moral se resumem ao altrusmo, claro; por exemplo, o sbitopeso na conscincia que algum sente aps uma
mnima distoro dos fatos na declarao de imposto de
renda no pode ser a- tribudo sensao de ter prejudicado
outro ser humano iden- tificvel.Primeiramente, vamos deixar claro sobre o que
estamos falando. No entendo o altrusmo como umcomportamento do tipo "uma mo lava a outra", ouseja, praticar a bondade esperando algum benefcio emtroca. O altrusmo mais inte- ressante: dar-se sem
egosmo aos outros, com sinceridade, sem nenhuma
inteno secundria. Quando vemos a de- monstrao
desse tipo de amor e generosidade, ficamos do- minadospor surpresa e respeito profundo. Oskar Schindlercolocou sua vida em grande risco para proteger mais
de mil judeus do extermnio nazista durante a Segunda
Guerra Mun- dial e, por fim, morreu pobre e todosns sentimos uma grande admirao por seus atos. Madre
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extrema aos enfermos e moribundos em Calcut sejaum
drstico contraponto ao estilo de vida materialista que dominanossa cultura.
Algumas vezes, o altrusmo pode ampliar-se at
para cir- cunstncias em que a pessoa beneficiada pareceria
um inimigo visceral. A freira beneditina irm Joan ChittisterEra uma vez uma idosa que costumava meditar s mar-
gens do Ganges. Certa manh, ao encerrar sua meditao,
ela avistou um escorpio flutuando indefeso na forte corren-teza. A medida que era arrastado para mais perto, prendeu-
se nas razes que se ramificavam para dentro do rio. O es-corpio lutava freneticamente para se libertar, mas cada vez
ficava mais emaranhado. Imediatamente a senhoraaproxi- mou-se do escorpio que se afogava e este, assim
que ela
o tocou, cravou-lhe seu ferro. A mulher afastou a
mo, mas, aps ter recobrado o equilbrio, tentou de novosalvar
a criatura. Todas as vezes que ela tentava, porm, o ferro
na cauda do animal a atingia com tamanha gravidade quesuas mos sangravam e seu rosto distorcia-se de dor. Umtranseunte que via a idosa lutando com o escorpio gritou
para ela:
Qual o seu problema, sua tola? Quer se matar tentan-
do salvar essa coisa feia?Olhando nos olhos do estranho, ela retrucou:
Sufi como conhecido o adepto do sufismo, forma de ascetismo e misticismo islmico, influenciada pelo hindusmo, pelo budismo e pelo cristianismo. (N. T.)2 In: FRANCK, R, ROZE, CONNOLLY, R. (Orgs.). WhatDoes It Mean ToBe Human?Reverence for life Reaffirmed by Responses from Around the World. New York: St.Martin's Griffin, 2000. p. 151.
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Talvez esse parea um exemplo drstico no h muitos
dentre ns que arriscariam a vida para salvar um escorpio. No
entanto, a maioria das pessoas, sem dvida, jexperimentou um chamado interno para ajudar um estranho em
ecessidade, mesmo sem nenhuma possvel vantagem pessoal.E, se de fa- to agiu guiada por esse impulso, teve como
conseqncia uma
sensao confortvel de "ter feito a coisa certa".
C. S. Lewis, em seu destacado livro Os QuatroAmores (Martins Fontes), explora ainda mais a natureza
desse amor generoso, que ele chama de "gape", palavraderivada do gre- go. O autor salienta que essa forma de amor
se distingue das outras trs (afeto, amizade e amorromntico), podendo ser mais bem compreendida como
vantagem recproca, e que po- demos v-la destacada em
outros animais alm de ns.Ogape,ouoaltrusmo,apresenta-secomoumimportantedesa-
fioaosevolucionistas. Trata-se, sinceramente, deumescndalopara
oraciocnioreducionista. Nopodeserresponsabilizadopelo impul-sodeseperpetuardosgenesegostasdo indivduo. Muitopelocon-
trrio:pode levarossereshumanosarealizarsacrifciosque traro
sofrimentopessoal, ferimentooumorte, semprovaalgumadebene-
fcio. E, contudo, se examinarmos com cuidado aquela voz interior
quesvezeschamamosdeconscincia,perceberemosqueamoti-
vaoparaaprticadessetipodeamorexistedentrode todosns,
apesardenossosesforosfreqentesparaignor-la.
Sociobilogos como E. O. Wilson tentaram explicar esse com-portamento com base em algum benefcio reprodutivo indireto pa-
ra o praticante da ao altrusta. Os argumentos, contudo, rapi-damente se tornam um problema. Uma suposio de que os re-
petidos comportamentos altrustas de um indivduo so reconhe-cidos como atributo positivo na seleo do companheiro. Tal hip-
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por exemplo, a prtica do infanticdio por um macacorecm-
dominante para limpar o caminho a sua futura ninhada. Um outroargumento o de que benefcios recprocos indiretos, oriundos do
altrusmo, proporcionaram vantagens ao praticante durante o pe-rodo da evoluo; no entanto, essa explicao no leva em conta
a motivao do ser humano para praticar pequenos atos de cons-cincia a respeito dos quais ningum mais sabe. Um terceiro ar-
gumento o de que o comportamento altrusta entre membros deum grupo beneficia o grupo todo. Como exemplos temos os formi-
gueiros, nos quais operrias estreis trabalham de maneira rduae incessante para criar um ambiente onde suas mes possam ge-rar mais filhos. Esse tipo de altrusmo das formigas, contudo,
prontamente explicado em termos evolucionrios pelo fato deos genes que incentivam as formigas operrias estreis serem
exa- tamente os mesmos que sero transmitidos pela me aosirmos
e irms que aquelas esto ajudando a criar. Os evolucionistas a-
gora concordam, quase unnimes, que essas conexes de DNAincomuns no se aplicam a populaes mais complexas,nas quais a seleo trabalha no indivduo, no na populao. O
com- portamento limitado da formiga operria, portanto, apresentauma diferena essencial com relao voz interior que faz com
que eu me sinta compelido a saltar no rio para tentar salvar umestranho que est se afogando, mesmo que eu no seja um bom
nadador e possa morrer na tentativa. Alm disso, para que o
argumento evo- lucionrio referente a benefcios grupais dealtrusmo se mantives- se, seria necessria, aparentemente, uma
reao oposta, ou seja,
a hostilidade a indivduos que no fizessem parte do grupo. O -
gape de Oskar Schindler e Madre Teresa distorce esse tipo de ra-ciocnio. Choca saber que a Lei Moral me pede que salve algum
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da evoluo, como, ento, podemos justificar suapresena?
Sehouveumpodercontroladorforadouniverso,estenopoderiaapre-
sentar-seanscomoumdos fatosque fazempartedouniversoassim
comooarquitetodeumacasano,defato, umadasparedes, ouaescada,
oualareiradessacasa. Anicamaneirapelaqualpodemosesperarqueele
semostredentrodens,comouma influnciaouumcomando tentando
fazercomquenoscomportemosdedeterminadomodo.Eissoqueencon-
tramosdentrodens. Semdvida, issonodeverialevantarsuspeitas?3
Ao deparar com esse argumento aos 26 anos, fiquei aturdi-do com sua lgica. Aqui, oculta em meu corao, to
familiar quanto qualquer coisa na experincia do dia-a-dia,mas agora surgindo na forma de um princpio esclarecedor,
essa Lei Moral brilhava com sua luz branca e forte nosrecnditos de meu ate- smo infantil, e exigia uma sria
considerao sobre sua ori- gem. Estaria Deus olhando de
novo para mim?
E, se fosse assim, que tipo de Deus seria? Seria um Deus
pela viso desta. que inventou a Fsica e a Matemtica,co- meou o universo em movimento h cerca de 14bilhes de anos e, em seguida, perambulou para longe, a fimde lidar com outros assuntos de maior importncia, comoEinstein pensava?
No, esse Deus, se eu pudesse perceb-lo em sua totalidade,
deveria ser um Deus do ponto de vista dos testas, um Deusque desejasse algum tipo de relacionamento com essas criatu-
3 LEWIS, C. S. Mere Christianity. Westwood: Barbour and Company, 1952. p. 21.
O desta considera a razo como nica via para garantir a existncia de Deus. (N. T)
O testa aquele que acredita na existncia de um nico Deus. (N. T.)
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deria ser o Deus de Abrao, mas sem dvida no seria o Deus
de Einstein.
Havia outra conseqncia desse crescente sentimento sobrea natureza de Deus se este, na verdade, era real. A julgar pelos
altssimos padres da Lei Moral, que eu tinha dereconhecer que infringia regularmente, esse era um Deus
sagrado e justo. Ele tinha de ser a personificao da bondade.Tinha de odiar o mal. E no havia motivo para suspeitar
que esse Deus fosse benevolente ou misericordioso. O
surgimento gradual de minha percepo da existncia
aceitvel de Deus trouxe sentimentos conflitantes: alvio dianteda amplitude e da profundidade da e- xistncia de tamanhamente e um desnimo profundo ao per- ceber minhas
imperfeies ao examin-las luz divina.
Havia comeado essa jornada de explorao intelectual por-
que queria confirmar minha posio como ateu. Isso se conver-teu em runas medida que a argumentao da Lei Moral (e
muitos outros assuntos) obrigou-me a admitir a
aceitao da hiptese de Deus. O agnosticismo, que pareciaum seguro pa- raso de segunda, agora me ameaava como a
grande descul- pa que em geral . A f em Deus parecia maisracional do que uma dvida.
Tambm ficara claro para mim que a cincia, apesar de seus
poderes inquestionveis para desvendar os mistrios do mundo
natural, no iria me levar mais adiante na resoluo da questode Deus. Se Deus existe, deve se encontrar fora do mundo natu-
ral e, portanto, os instrumentos cientficos no so as ferramen-tas certas para aprender sobre Ele. Em vez disso, como eu esta-
va comeando a entender por olhar dentro de meu corao, aprova da existncia de Deus teria de vir de outras direes, e a
deciso definitiva deveria se basear na f, no em provas. Ainda
perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu havia
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dade de uma viso de mundo espiritual, incluindo a existncia
de Deus.
Parecia impossvel tanto avanar quanto recuar. Anosde- pois, encontrei um soneto de Sheldon Vanauken quedescrevia com preciso o meu dilema. Suas linhas finais
Entre o provvel e o provado existem hiatos
Uma fenda. Com medo de saltar, permanecemos ridculos.
Ento vemos atrsde ns o cho afundar e, pior,Nosso ponto de vista esfacelar-se. O desespero desponta
Nossa nica esperana: saltar para o VerboQue abre o universo fechado.
Durante muito tempo fiquei parado, tremendo, beira desse
hiato. Por fim, no vendo escapatria, saltei.
Como possvel que um cientista tenha taisconvices? No seriam as vrias alegaes da religio
incompatveis com
a atitude de um cientista, sempre querendo ver os dados, devo-to do estudo da Qumica, da Fsica, da Biologia e da Medicina?Ao abrir a porta de minha mente a essas possibilidades espiri-
tuais, teria eu comeado uma guerra de vises de mundo que
me destruiria e, por fim, enfrentaria uma vitria com baixas em
4VANAUKEN, S. A Severe Mercy. New York: HarperCoIlins, 1980. p. 100.
Between the probable and proved there yawns/ A gap. Afraid to jump, we stand ab-surd,
Then see behind us sink the ground and, worse,/ Our very standpoint crumbling. Desperate
dawns/ Our only hope: to leap into the Word/ That opens up the shuttered universe.
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Como um cientista srio pode aceitar a possibilidade de mila-
gres?
Se voc tem uma crena, talvez as exposies do primeirocaptulo lhe tenham fornecido alguma confirmao, mas qua-
se certo que h ocasies em que sua f entra em conflito comoutros desafios, vindos de voc ou daqueles sua volta.
A dvida parte inevitvel da crena. Nas palavras de PaulTillich: "A dvida no se ope f; um elemento da f1". Se ocaso a favor da crena em Deus fosse totalmente hermtico, omundo estaria cheio de praticantes de uma nica f. Imagine,
porm, este mundo se a oportunidade de escolherlivremente uma crena tivesse sido removida em virtudeda certeza das evidncias. Que desinteressante seria, no?
Tanto para o ctico quanto para quem tem uma crena, asdvidas surgem de diversas fontes. Uma delas envolve confli-tos descobertos com base nas alegaes da crenareligiosa com observaes cientficas. Essasconsideraes, particular- mente destacadas agora no campo
da Biologia e da Gentica, sero retomadas nos prximoscaptulos. Outras consideraes so inerentes aos domniosfilosficos da experincia humana,e estes so o assunto deste captulo. Se voc no tem nenhumproblema relacionado a isso, sinta-se vontade para pular parao captulo 3.
Ao tratar de tais assuntos filosficos, falo principalmente como
leigo. No entanto, sou algum que j partilhou dessas batalhas.
Especialmente no primeiro ano aps ter aceitado a existncia deum Deus que se preocupava com os humanos, via-me acossadopor perguntas que vinham de muitas direes. Embora
essas questes parecessem muito novas e irrespondveis
quando sur- giram, sentia-me aliviado em saber que no
1TILLICH, R The Dynamics of Faith. New York: Harper & Row, 1957. p. 20.
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com maior eficcia ainda, por outros, atravs dos sculos. Era
de grande conforto para mim existirem tantas fontes maravilho-
sas, que me forneciam respostas para sobrepujar essesdile- mas. Neste captulo apresentarei algumas dessas fontes,
e a- crescentarei a elas meus pensamentos e experincias.Muitas das anlises mais acessveis vieram de escritos do
meu agora conhecido mentor de Oxford, C. S. Lewis.
Apesar de podermos levar em conta vrias anlises, desco-
bri quatro que eram especialmente irritantes naqueles dias def recm-nascida. Creio que elas estejam entre as mais impor-
tantes para algum que esteja considerando a decisode a-
A idia de Deus no apenas a satisfao de um desejo?Ser que Deus est mesmo por a? Ou a busca pela exis-
tncia de uma entidade sobrenatural, to difundida em todas as
culturas j estudadas, representa um anseio universal, embora
infundado, da humanidade por algo fora dela que d sentido a
uma vida sem sentido e a liberte do ferro da morte?Embora a busca pelo divino tenha, de algum modo,
sido posta de lado fora nos tempos modernos, por nossavida a- tribulada e com excesso de estmulo, ainda um dosconfron- tos humanos mais universais. C. S. Lewis descreve talfenme- no em sua vida, no maravilhoso livro Surpreendidopela Alegria,
e essa sensao de anseio intenso, despertada por algo to
simples como algumas linhas de um poema, que ele identificacomo "alegria". O autor descreve essa experincia como"um desejo no satisfeito que mais desejvel do que
qualquer ou-tra satisfao".2 Consigo me lembrar nitidamente de
2LEWIS, C. S. Surprised by Joy. New York: Harcourt Brace, 1955. p. 17.
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apanhou-me de surpresa e me fez ficar na dvida sobre a ori-
gem dessa emoo to intensa, e como eu poderia retomar es-
sa experincia.Recordo-me de ter sido transportado, aos 10 anos, pela ex-
perincia de olhar atravs de um telescpio que um astrnomo
amador colocara na parte mais elevada de nossa fazenda; sen-
ti a vastido do universo, vi as crateras da Lua e a magia deli-
cada da luz das Pliades. Lembro-me de uma vspera de Na-tal, quando eu tinha 15 anos, em que a melodia de uma canonatalina especialmente bela elevando-se suave e
verdadeira acima do tom mais conhecido trouxe-me asensao inespera-
da de admirao, somada a um anseio por algo que no con-
seguia definir. Muito depois, ento um estudantegraduado e ateu, surpreendi-me experimentando essa mesma
sensao de admirao e desejo, dessa vez somada a umsentimento muito profundo de pesar, durante a execuo do
segundo movimento da Terceira Sinfonia de Beethoven (a
Eroica). Quando o mundo lamentou a morte de atletasisraelenses assassinados por ter- roristas nas Olimpadas de
1972, a Filarmnica de Berlim exe- cutou os tonsimpressionantes de um lamento em D Menor no Estdio
Olmpico, misturando dignidade e tragdia, vida e mor- te. Poralguns instantes fui removido da minha viso materialis- ta de
mundo e levado a uma indescritvel dimenso espiritual, uma
experincia que considerei bastante assombrosa.
Mais recentemente, para um cientista ao qual svezes dado o privilgio de descobrir algo, existe um tipo
especial de alegria associado a esses lampejos de intuio.Tendo perce- bido um vislumbre de verdade cientfica,
experimentei, de uma s vez, uma sensao de satisfao e
desejo de compreender
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uma verdade ainda maior. Num momento assim, a cincia se
torna mais do que um processo de descoberta: ela transporta o
cientista a uma experincia que desafia uma explicao total-mente naturalista.
Ento, o que fazemos com essas experincias? E o que essa sensao de desejo por algo maior do que ns? apenas
isso e nada mais, alguma combinao de neurotransmissorespousando exatamente nos receptores corretos, acionando uma
descarga eltrica em uma parte mais profunda do crebro? Ouisso, como a Lei Moral descrita no captulo anterior, uma insi-
nuao do que est alm, uma indicao, colocadabem no fundo do esprito humano, de algo muito superior a
ns?
De acordo com a viso atesta, no podemos dar crdito a
esse tipo de desejo como se fosse indicao do sobrenatural, enossa interpretao de tais sensaes de admirao em uma
crena em Deus representa nada mais que umpensamento mgico, forjando uma resposta, pois queremos
que aquilo sejaa verdade. Esse ponto de vista particular alcanou seu pblicomais amplo nos escritos de Sigmund Freud; ele
A psicanlise individual de seres humanos nosensina,
com uma insistncia bastante especial, que o Deus de cada
um deles formado na semelhana de seu pai, que seu re-
lacionamento pessoal com Deus depende de suarelao com seu pai em carne e osso, e oscila e se
modifica com o passar do tempo com essa relao, e que,no fundo, Deus
3FREUD, S. Totem and Taboo. New York: W. W. Norton, 1962.
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que ele no concorda com o carter de Deus na maioria das re-
ligies do planeta. Em seu novo livro, alis muito distinto, Deus
em Questo (Ultimato), Armand Nicholi, professor deHarvard com formao em Psicanlise, compara o ponto
de vista de Freud ao de C. S. Lewis.4 Este alegou que essarealizao dedesejos provavelmente daria origem a um Deus diferenteda- quele descrito na Bblia. Se procuramos afagos
generosos e misericrdia, no encontramos nada disso nasEscrituras. Em vez disso, conforme comeamos a nos prender
existncia da Lei Moral, e nossa incapacidade bvia deviver segundo ela, descobrimos que temos srios problemas
e que nos achamos potencial e eternamente distantes do
autor dessa Lei. Alm disso, medida que uma crianacresce, no experimenta sen- timentos contraditrios com
relao a seus pais, inclusive o de- sejo de libertar-se? Entopor que a realizao de desejos con- duz a um desejo por
Deus, em oposio ao desejo de que no exista Deus
nenhum?Por fim, em termos lgicos e simples, o fato de algum per-
mitir a possibilidade de que Deus seja algo que oshumanos desejem elimina a possibilidade de Ele ser real? De
forma al- guma. O fato de eu ter desejado uma esposaadorvel no a torna um ente imaginrio. O fato de o
fazendeiro ansiar pela chuva no o faz questionar-se sobre arealidade de um posteri- or temporal.
Naverdade,podemossuprirnossamentecomessaargumenta-oderealizaodedesejos.Porquehaveriaumansiahumana,
Ascriaturasnonascemcomdesejos,amenosqueasatis-
4NICHOLI, A. The Question of God. New York: The Free Press, 200
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faodetaisdesejosexista. Umbebsentefome:bem,existe
aquilo que chamamos de alimento. Um patinho quer
nadar: bem, existe aquilo que chamamos de gua.Homens sentem desejo sexual: bem, existe aquilo que
chamamos de sexo. Se eu descubro em mim um desejo que
nenhuma experincia no mundo pode satisfazer, a
explicao mais provvel que fui
Se o anseio pelo sagrado um aspecto universal e enigm-tico da experincia humana, seria a realizao de desejos ape-
nas uma seta na direo de algo alm de ns? Por que temosum "vcuo em forma de Deus" em nosso corao e em nossa
mente se no servir para ser preenchido?
Em nosso mundo moderno e materialista, fcil perder de
vista a sensao de anseio. Em sua magnfica reunio de en-saios, Teaching a Stone to Talk[Ensinando uma pedra a falar],
Annie Dillard discorre sobre esse vazio crescente:
Agoranosomosmaisprimitivos. Agoraomundointeirono
parecesanto. [...] Ns, comopessoas, trocamosopantesmope-
lopan-atesmo. [...] difcildesfazernossodanoerecordarpara
nossapresena oquepedimosparaabandonar.difcil danifi-
carumbosqueemudarde idia.Lanamosumarbustoscha-
mas eno podemos queim-lo de novo. Somos fsforosquei-
mandoem vo debaixo de cadarvoreverde. Costumavam os
ventoschorareascolinassairgritandoemagradecimento?Ago-
raodiscursopereceuentreascoisasmortasda terra,eascoi-sasvivasdizemmuitopoucoamuitopoucos. [...] Eaindapode
serqueemqualquerlugaremquehajamovimentohajaumsom,
como quando uma baleia emerge e d um beijo
estalado nas
5Lewis, C. S. Mere Christianity. Westwood: Barbour and Company, 1952. p. 115.
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suavedeDeus, falandopormeiodoturbilho,avelhacanoe
avelha dana danatureza, oespetculo que trazemos daci-
dade. [...]O que estivemos fazendo em todos esses sculos
seno tentando chamar Deus de volta montanha, ou,
sem conse- guir, erguendo uma voz fraca de qualquer coisa
quenovenha dens?Quala diferenaentreumacatedral e
um laboratrio
E quanto a todo o mal perpetrado em nome da religio?
Um obstculo importante para muitos indivduos determina-dos a evidncia obrigatria, ao longo da histria, dos terrveisatos realizados em nome da religio. Isso se aplica a pratica-
mente todas as fs em algum ponto, at as que argumentam
ter a compaixo e a no-violncia entre seus princpioscen- trais. Diante de exemplos rudes de abuso de poder,
violncia e hipocrisia, como algum pode unir-se aos princpiosde uma f promovida por tamanhos disseminadores do mal?
Para esse dilema existem duas respostas. Em primeirolugar, saiba que muitas coisas maravilhosas tambm foram
realizadasem nomedareligio.AIgreja(eaquieuutilizootermode
forma genri- ca, para me referir s instituies organizadas que
promovemuma
femparticular,semconsiderara fqueestoudescrevendo)muitas
vezesdesempenhouumafunocrucialnoapoiojustiaebene-
volncia.Leve emconta,porexemplo, os lderes religiososquese
empenharamparalivraraspessoasdaopresso, comoMoiss, queliderouos israelitas, ouas forasdavitriadefinitivadeWilliamWil-
ber,queconvenceuoParlamento inglsaseoporprticaescra-
vagista,ouoreverendoMartinLutherKing, queliderouomovimento
pelosdireitoscivisnosEstadosUnidos, peloqualdeusuavida.
A segunda resposta, porm, nos traz de volta Lei Moral, ao
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fato de que todos ns, seres humanos, fracassamosalguma
vez. A Igreja se faz com pessoas arruinadas. A guapura e lmpida da verdade espiritual colocada em
recipientes enfer- rujados, e os posteriores fracassos da Igrejaao longo dos s- culos no devem ser projetados sobre a
f, como se a gua fosse o problema. No de estranharque aqueles que aces- sam a verdade e o apelo da f
espiritual geralmente acham im- possvel imaginar-se aceitando
uma religio por causa do com- portamento de determinada
igreja. Ao expressar hostilidade Igreja Catlica francesa,no alvorecer da Revoluo Francesa, Voltaire escreveu:"Algum se surpreende de que haja ateus nomundo, quando a Igreja se porta de modo to abominvel?".7
NodifcilidentificarexemplosemqueaIgrejaexecutouaes
opostasaosprincpiospelosquaissuafdeveria terdadorespaldo.
As Bem-aventuranas ditas porCristono SermodaMontanha fo-
ramignoradaspelaIgrejacrist, querealizouviolentasCruzadasna
IdadeMdiaepersistiucomumasriede inquisiesemseguida.O profeta Maom nunca usou a violncia para responder a
seus perseguidores, aopassoqueasjihads islmicas,desdeseus
primei- rosseguidorese incluindoosataquesviolentosdehojeem
dia,co- moode11desetembrode2001, criaramuma impresso
falsa de que a f islmica violenta em sua essncia. Mesmo os
seguidores de fssupostamenteno-violentas, comoohindusmoe
obudismo, svezesse empenhamemconfrontosviolentos, como
osqueatu- almenteocorrememSriLanka.E no apenas a violncia que mancha a verdade da f re-
ligiosa. Exemplos freqentes de hipocrisia crassa entre lderesreligiosos, tornadas ainda mais visveis pelo poder dos
meios de comunicao, fazem muitos cticos conclurem queno h verdade ou bondade objetivas a encontrar na religio.
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to, em vrias igrejas, de uma f secular espiritualmente morta,
que salta dos aspectos sacros da crena tradicional, apresen-
tando uma verso da vida espiritual relacionada a eventos e/outradies sociais, e no com a busca por Deus.
Causa, ento, estranheza que alguns crticos apontem a reli-gio como uma fora negativa na sociedade ou, nas palavras de
Karl Marx, "o pio das massas"? Mas sejamos cuidadosos nesseponto. As grandes experincias marxistas na Unio Sovitica e
na China de Mao, que visavam estabelecer sociedades explici-tamente baseadas no atesmo, comprovaram-se capazes
de cometer pelo menos a mesma quantidade de, ou at mais,mas- sacres de pessoas e abuso explcito de poder que
cometeu o pi- or dos regimes de pocas recentes. Na verdade,
ao negar a e- xistncia de qualquer autoridade superior, oatesmo tem o po- tencial recm-descoberto de libertar
totalmente os humanos de qualquer responsabilidade de nooprimir uns aos outros.
Assim, embora a longa histria da opresso e da hipocrisia
religiosas seja muitssimo grave, o pesquisador maissincero deve enxergar alm do comportamento de humanosfalhos, a fim de encontrar a verdade. Voc condenaria umcarvalho se sua madeira tivesse sido usada para fazer
aretes? Culparia o ar por permitir a transmisso.de mentirasatravs dele? Julgaria
A Flauta Mgica de Mozart com base em umaexecuo mal ensaiada por alunos da quinta srie? Se voc
junca viu um pr- do-sol verdadeiro no Pacfico, permitiria queum prospecto de turismo fosse usado como substituto?
Voc avaliaria o poder de um amor romntico com base
em um casamento de vizi- nhos que trocam insultos?
No. Uma avaliao completa da verdade da f depende deum exame na gua pura e cristalina, no nos recipientes enfer-
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Talvez haja no mundo quem nunca tenha passado por alguma
experincia dolorosa. No conheo ningum assim, e creio que
nenhum leitor deste livro alegaria pertencer a tal categoria. Essaexperincia humana universal tem feito que muitas pessoas ques-
tionem a existncia de um Deus de amor. Nas palavras de C. S.Lewis, em 0 Problema do Sofrimento (Editora Vida), a alegaoapresenta-se assim: "Se Deus fosse bom, desejaria fazersuas criaturas perfeitamente felizes, e se ele fosse onipotente,
seria ca- paz de fazer o que desejasse. No entanto, as criaturasno so fe-
lizes. Portanto, Deus no tem nem bondade nem poder".8Existem vrias respostas para esse dilema. Algumas
so mais fceis de aceitar do que outras. Primeiramente,reconhe- amos que uma grande parcela de nosso
sofrimento e do de nossos semelhantes origina-se do que
fazemos uns aos outros. Foi a humanidade, e no Deus, queinventou as facas, os arcos
e flechas, as armas, as bombas e todas as formas de instrumen-
tos para tortura utilizados ao longo das eras. No se pode culparDeus pela tragdia de ter filhos jovens mortos por um motorista
embriagado, de um homem inocente perecer no campo de bata-lha ou de uma moa ser atingida por uma bala perdida numa -rea de uma cidade moderna dominada pelo crime. Afinal de con-
tas, de algum modo recebemos o livre-arbtrio, a capacidade defazer o que temos vontade. Com freqncia usamos essa capa-
cidade para desobedecer Lei Moral. E, ao agirmos assim, no
podemos jogar em Deus a culpa pelas conseqncias.Deveria Deus, ento, restringir nosso livre-arbtrio a
fim de evitar esse tipo de comportamento ruim? Essa linha de
pensa- mento encontra depressa um dilema do qual no
8C. S. The problem of Pain. New York: MacMillan, 1962. p. 23.
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criaturae,aomesmotempo,retiradelaesselivre-arbtrio",no
consegue dizer nada a respeito de Deus: combinaesde pa-
lavrassemsentidonoadquiremsentidodeumahoraparaou-traporque colocamosantesdelasduasoutraspalavras, "Deus
pode".Abobagempermaneceumabobagem,mesmoquando
falamossobreDeus.9
Ainda podemos encontrar dificuldade para aceitarargumentos
racionaisquandoumaexperinciade terrvelsofrimentorecaisobre
umapessoa inocente. Conheciumaestudanteuniversitriaquees-
tava morando sozinha durante as frias de vero enquanto
fazia uma pesquisa mdica para se preparar para sua carreira na
Medici- na. Despertada na escurido da noite, descobriu que um
estranho invadiraseuapartamento. Pressionandoumafacacontraa
garganta dela, ele ignorou-lhe as splicas, colocou-lhe uma venda
nosolhos
eapossuiu fora. Esse homem adeixouarrasada, revivendo a
experinciainmerasvezesduranteanos. Jamais foiapanhado.
Essa jovem era minha filha. Nunca o mal me apareceu emsua forma to crua do que naquela noite, e eu nunca desejei
tanto a interveno divina de algum modo, a fim de deter essecrime hediondo. Por que ele no atingiu o criminoso
com um relmpago ou, pelo menos, com um sentimentosbito de dor na conscincia? Por que Deus no colocou um
campo de fora ao redor de minha filha para proteg-la?
Talvez em raras ocasies Deus opere milagres. No entanto,
na maioria das vezes, a existncia do livre-arbtrio e da ordemno universo fsico um fato do qual no se pode escapar. Em-
bora possamos desejar que graas milagrosas aconteam mais
9Ibid., p. 25.
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O que dizer sobre a ocorrncia de desastres naturais: terre-
motos, tsunamis, vulces, enchentes e fome? Em menor esca-
la, mas no menos comovente, que explicao dar para a ocor-rncia de enfermidades em vtimas inocentes, como o
cncer infantil? John Polkinghorne, pastor anglicano edestacado m- dico, refere-se a essa categoria de eventos
como "mal fsico", em contraposio ao "mal moral"cometido pela humanidade. Como isso se justifica?
A cincia revela que o universo, nosso planeta e mesmo a vi-da esto comprometidos com um processo evolucionrio. Entre
os resultados disso, podemos incluir a imprevisibilidade do clima,o deslocamento das placas tectnicas ou a grafia
incorreta de um gene cancergeno no processo normal dediviso celular. Se, no incio dos tempos, Deus optou por usar
tais foras para criar os seres humanos, a inevitabilidade
dessas outras conseqn- cias dolorosas tambm estavagarantida. Freqentes interven- es milagrosas seriam, no
mnimo, to caticas no plano fsico quanto se interferissem nos
atos humanos de livre-arbtrio.Para vrios pesquisadores atentos, essas explicaes racio-
nais fracassam por no fornecer uma justificativa para a dor da
existncia humana. Por que nossa vida mais um vale de lgri-mas que um jardim das delcias? Muito se tem escrito sobre es-
se aparente paradoxo, e a concluso no fcil: se Deus amo-roso e deseja o melhor para ns, talvez o plano Dele no seja o
mesmo que o nosso. Trata-se de um conceito difcil, em especial
se formos regularmente alimentados, em doseshomeopticas, com uma verso da benevolncia de Deus
que signifique, da parte Dele, nada mais do que um desejo desermos felizes para sempre. Mais uma vez, de acordo com
Lewis: "Na verdade, que- remos mais um av do que um pai noCu uma benevolncia senil, que, como dizem, 'gosta de ver
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possa dizer, com sinceridade, ao final de cada dia, que 'todos
passaram por bons momentos'".10
A julgar pela experincia humana, se devemosaceitar a bondade amorosa de Deus, Ele,
aparentemente, deseja mais de ns do que isso. No
essa, na verdade, nossa experin- cia? Quando vocaprendeu mais sobre si mesmo? Quando tu- do corria bem, ou
quando precisou enfrentar desafios, frustra- es esofrimento? "Deus nos sussurra em nossos prazeres,
fala em nossa conscincia, mas grita em nosso sofrimento."11
Da mesma forma que gostaramos de evitar tais experincias,ser que, sem elas, no seramos criaturas superficiais, auto-centradas e, ao final, no perderamos todo o senso de nobre-
za ou o empenho para aprimorar os outros?
Leve em conta o seguinte: se a deciso mais importante que
faremos nesta vida for sobre uma crena, e se o relacionamentomais importante que desenvolveremos aqui for com Deus, e se
nossa existncia como criaturas espirituais no se limitar ao que
poderemos fazer e observar durante nossa vida na terra, os so-frimentos humanos ganharo um contexto completamente novo.Talvez nunca cheguemos a entender completamente os motivosdas experincias dolorosas, mas podemos comear a aceitar a
idia de que tais motivos existam. No meu caso, posso ver, em-
bora de modo obscuro, que o estupro de minha filha foi um desa-fio para que eu tentasse aprender o real sentido do perdo em
uma circunstncia terrivelmente violenta. Sendo bem
honesto, ainda estou trabalhando nisso. Talvez essa tenhasido tambm uma oportunidade para que eu reconhecesse queno posso, na verdade, proteger minhas filhas de toda dor e
todo sofrimento; tenho de aprender a confi-las aos cuidados
10Ibid., p. 35.
11Ibid., p. 83.
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ta de uma reafirmao de que seus sofrimentos no foram em
vo. Na verdade, minha filha diria que tal experincia
propor- cionou-lhe a oportunidade e a motivao paraaconselhar e dar conforto a outras que passaram pelo mesmo
tipo de violao.
A noo de que Deus pode atuar em meio adversidade no
fcil, e pode encontrar uma ancoragem firme somente em umaviso de mundo que abarque uma perspectiva espiritual. O prin-
cpio do crescimento por meio do sofrimento , na verdade, qua-se universal nas grandes crenas mundiais. As Quatro Nobres
Verdades de Buda no sermo do Deer Park, por exemplo, co-meam com 'A vida sofrimento". Para o seguidor, essa percep-o pode, paradoxalmente, ser uma fonte de grande conforto.
A mulher com quem me preocupei quando era estudante de
Medicina, por exemplo, que desafiou meu atesmo comuma aceitao gentil de sua doena terminal, viu, no
captulo final de sua vida, uma experincia que a
aproximou de Deus, em vez de afast-la mais ainda. Em um
perodo histrico mais am- plo, Dietrich Bonhoeffer (telogoalemo que retornou dos Es- tados Unidos Alemanhadurante a Segunda Guerra Mundial a fim de fazer opossvel para manter viva a verdadeira Igreja, pois a
Igreja crist organizada na Alemanha havia optado por darapoio aos nazistas) foi preso graas a sua atuao em um
esquema para assassinar Hitler. Durante seus doisanos na priso, sofrendo muitas humilhaes e a perda de
sua liberda- de, Bonhoeffer nunca hesitou em sua f ouem seu louvor a Deus. Pouco antes de ser enforcado,
somente trs semanas antes da libertao da Alemanha,
escreveu o seguinte: "Tempo perdido aquele em que
12BONHOEFFER, D. Letters and Popers from Prison. New York: Touchstone, 1997. p. 47
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Como pode uma pessoa racional acreditar em milagres?Por fim, leve em conta uma objeo crena que tenha uma
influncia profunda, em especial, para um cientista.Como os milagres podem se harmonizar com uma viso de
mundo cien- tfica?
Na linguagem moderna, depreciamos o significado da pala-
vra "milagre". Falamos de "drogas milagrosas", "dieta milagro-sa" ou mesmo "ch milagroso". Isso, porm, no o sentido o-
riginalmente intencional da palavra. Mais precisamente, um mi-lagre um evento que parece inexplicvel pelas leis da nature-
za e, assim, sua origem considerada sobrenatural.Todas as religies incluem uma crena em determinados mi-
lagres. A travessia dos hebreus pelo mar Vermelho,guiados por Moiss, seguida do afogamento dos soldados
do fara uma histria de destaque, contada no livro do
xodo, sobre a providncia tomada por Deus para evitar aiminente destruio de seu povo. Da mesma forma, quando
Josu pediu que Deus prolongasse a luz do dia para ter xito
em uma batalha, conta- se que o Sol ficou parado de talmaneira que s poderia ser descrita como milagrosa.
Para o Isl, as escrituras do Coro foram iniciadas em umacaverna prxima de Meca, com as instrues a Maom forne-
cidas de modo sobrenatural pelo anjo Jibril. Aascenso de Maom claramente um evento milagroso, na
medida em que lhe dada a oportunidade de ver todasas caractersticas do cu e do inferno.
Os milagres desempenham um papel impressionantena cristandade em especial o mais destacado dos
milagres, o de Cristo levantando-se dos mortos.
Como podemos aceitar tais alegaes enquanto afirmamosser humanos modernos e racionais? Bom, claro que, se al-
gum parte do pressuposto de que eventos sobrenaturais so
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impossveis, no acredita em milagres. Mais uma vez,pode-
mos nos voltar a C. S. Lewis para que nos esclarea um pen-samento particular sobre esse tpico. Em seu livro Milagres(e-
Qualquer evento que possamos afirmar como milagr,
como ltimo recurso, algo apresentado a nossos sentidos, algo
visto, ouvido, tocado, cheirado ou saboreado. E nossos senti-
dos no so infalveis. Se parece ter ocorrido algo extraordin-
rio, sempre poderemos dizer que camos vtimas de
uma ilu- so. Se mantivermos uma filosofia que exclui o
sobrenatural,
o que sempre diremos. O que aprendemos com a experincia
depende do tipo de filosofia que trazemos para a experincia.
Correndo o risco de assustar aqueles que no se sentem
vontade com abordagens matemticas de problemasfilosfi- cos, considere a seguinte anlise: o reverendo
Thomas Bayes foi um telogo escocs pouco lembradopor suas considera- es teolgicas, porm bastante
respeitado por apresentar um teorema particular deprobabilidades. Seu teorema fornece uma frmula, pela qual se
pode calcular a probabilidade da observa- o de um evento
em especial, dadas algumas informaes i- niciais("antecedentes") e algumas informaes adicionais (a
"condicional"). O teorema de Bayes especialmente til quan-do confronta duas ou mais explicaes possveis para a ocor-
rncia de um evento.
Leve em conta o exemplo a seguir: voc foi aprisionado porum louco. Ele lhe d uma oportunidade de se libertar permi-
13LEWIS, C. S. Mirades: A Preliminary Study. New York: MacMillan, 1960. p. 3.
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baralhe e escolha novamente. Caso apanhe o s de espadas
em ambas as vezes, ser libertado.
Ctico sobre se vale a pena a tentativa, voc prossegue e, para sua estupefao, pega o s de espadas do baralho du-
as vezes. Suas correntes so soltas e voc retorna ao lar.
Com suas tendncias matemticas, voc calcula a
chance de essa boa sorte se repetir: 1/52 X 1/52 = 1/2 074.Um evento improvvel, mas aconteceu. Poucas semanas
depois, contudo, voc descobre que um funcionrio bondosoda empresa fabri- cante de cartas de baralho, sabendo da
aposta do louco, deu um jeito de que um em cada cembaralhos de cartas fosse composto de 52 ases de espadas.
Talvez ento no se tratasse apenas de uma mudana
na sorte. Quem sabe um ser humano inteligente e
simptico (o funcionrio), que voc no conhecia at o diade sua captura, interveio para aprimorar as chances de sua
libertao? A pro- babilidade de que o baralho do qual voc
apanhou as cartas vi- esse de um exemplar normal com
52 cartas diferentes era99/100; a probabilidade de ser um baralho especialcontendo apenas ases de espadas era de 1/100. Para essesdois poss- veis pontos iniciais, as probabilidades
"condicionais" de sacar dois ases de espadas de uma
seleo seriam 1/2 704 e 1, res- pectivamente. De acordocom o teorema de Bayes, agora possvel calcular as
probabilidades "posteriores" e concluir que haveria 96% de
chance de o baralho de cartas do qual voc sacou ascartas ser um dos "milagrosos".
A mesma anlise pode ser aplicada a eventos aparentemente
milagrosos da experincia cotidiana. Imagine que vocpresen- ciou uma cura espontnea de cncer em estgioavanado, que, como se sabe, fatal em quase todos os
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lagrosa de cncer. uma em mil? Uma em um milho? Ou zero?
Aqui, sem dvida, onde as pessoas sensatas vo discor-
dar, algumas com barulho. Para o comprometido com o materi-alismo no se permite a possibilidade de milagres (seu "ante-
cedente" ser zero) e, portanto, mesmo uma cura decncer extremamente incomum ser descartada como
evidncia do milagre. Em vez disso, ser dado crdito ao fatode que even- tos raros acontecem no mundo natural vez
por outra. Aquele que acredita na existncia de Deus,entretanto, pode, aps e- xaminar as evidncias, concluir que
esse tipo de cura no deve ter ocorrido por qualquer tipo deprocesso natural; e, tendo ad- mitido que a probabilidadeantecedente de um milagre, apesar de muito pequena, no
nula, ir executar seu prprio clculo bayesiano (muitoinformal) para concluir que h mais probabili- dade de ocorrer
um milagre do que de no ocorrer.
Tudo isso apenas para dizer que uma discusso sobre cura
milagrosa degenera rapidamente para uma argumentao
so- bre se algum quer ou no levar em conta quaisquerpossibili- dades de sobrenatural. Acredito que exista essapossibilidade; contudo, o "antecedente" deve, em geral,
ser muito pequeno. Ou seja, o pressuposto em qualquercaso deve ser a favor de uma explicao natural. Para odesta, que enxerga Deus como
o criador do universo que foi perambular em algum outro lugarpara desempenhar outras atividades, no h mais motivos para
considerar eventos naturais como milagres do que para o mate-rialista convicto. Para o testa, que acredita em um Deus aten-
cioso com a vida dos humanos, existe umaprobabilidade de colocar em prtica vrios nveis de
suposio de milagres, de- pendendo da percepo do
indivduo acerca da possibilidade de que Deus intervenha
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potencialmente milagrosos, a fim de que a integridade e a ra-
cionalidade da perspectiva religiosa sejam trazidas questo.
A nica coisa que mataria com mais rapidez a possibilidade demilagres do que um materialismo comprometido seria a alega-
o de uma condio de milagre para os eventos dirios paraos quais j existem explicaes naturais ao alcance. Qualquer
um que afirme que o desabrochar de uma flor um milagre es-
t se aproveitando de uma compreenso crescente da biologiadas plantas, que se encontra bem no caminho da elucidao de
todas as etapas entre a germinao das sementes e o
esa- brochar de uma rosa linda e perfumada, tudo dirigido peloma-
nual de instrues do DNA dessa planta.
De modo semelhante, uma pessoa que ganha na loteria, eanuncia tratar-se de um milagre porque rezou para obter esse
resultado, fora os limites de nossa credulidade. Afinal de con-tas, tendo em vista a ampla distribuio de, no mnimo, alguns
vestgios de f na sociedade moderna, provvel que
uma parcela significativa de indivduos que compraramum bilhete de loteria naquela semana tambm rezou de
maneira efmera para que pudesse ganhar o prmio. Nessecaso, a alegao de interveno milagrosa do verdadeiroganhador soa vazia.
Mais difceis de avaliar so as afirmaes de quem obteve a
cura milagrosa de algum problema de sade. Como mdico, jpresenciei circunstncias em que pessoas se
recuperaram de enfermidades que pareciam irreversveis.Contudo, reluto em a- tribuir tais eventos interveno
milagrosa, tendo em vista nos- sos conhecimentos incompletossobre doenas e como estas a- fetam o corpo humano. Com
muita freqncia, quando alegamos que curas milagrosas foram
examinadas com todo o cuidado por observadores imparciais,
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curas milagrosas genunas aconteceram em ocasies extrema-
mente raras. Meu "antecedente" baixo, mas no igual a zero.
Portanto, os milagres no se afirmam como um conflito in-concilivel para quem acredita na cincia como uma forma de
investigar o mundo natural e para quem enxerga queesse mundo regido por leis. Se, assim como eu, voc
admite que possa existir algo ou algum fora da natureza, no
acredita que haja motivo lgico para essa fora no poder, emraras ocasi- es, representar uma invaso. Entretanto,
para que o mundo evite cair gradualmente no caos, milagres
precisam ser bastan-
Deus no agita milagres na natureza de formaaleatria,
como se os jogasse com um saleiro. Milagres surgem em oca-
sies especiais: so encontrados nos grandes tumores da his-
tria no na histria poltica ou social, e sim naquela histria
espiritual que no pode ser totalmente conhecida
pelos ho- mens. Se sua vida no se assemelha a esses
Vemos aqui no somente um argumento sobre araridade
dos milagres, mas tambm um argumento de que estes devemter alguma finalidade em vez de representar os atos sobrenatu-rais de um mgico extravagante, simplesmente elaborados pa-
ra impressionar. Se Deus a personificao definitiva da onipo-
tncia e da bondade, sua funo no a de trapacear.
Milagres no devem ser interpretados como atosdivinos
contra as leis da natureza (pois essas leis so, em si mesmas,
14Ibid., p. 167.
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profundas do carter do relacionamento divino para a criao.
Para serem crveis, os milagres devem transmitir uma compre-
enso mais profunda do que poderia ter sido obtido sem eles.15
Apesar de tais argumentos, os cticos materialistas, que no
desejam dar fundamentos ao conceito de sobrenatural e negama evidncia da Lei Moral e do sentimento universal de
ansiar por um Deus, iro, sem dvida, argumentar que no ha me- nor necessidade de levar em conta os milagres. Peloponto de vista deles, as leis da natureza podem explicar tudo,
at mes- mo o extremamente improvvel.Pode, porm, esse ponto de vista ser totalmente
confirma- do? Existe pelo menos um evento
extremamente improvvel, sem igual e profundo na histriaque os cientistas de quase to- das as disciplinas
concordam, no compreendido e jamais ser, e para
o qual as leis da natureza fracassam completa-
15POLKINGHORNE, J. Science andTheotogy An Introduaion. Minneapolis: Fortress
Press, 1998. p. 93.
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SEGUNDA PARTEAs grandes questes da existncia humana
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CAPITULO 3Asorigensdouniverso
MAIS DE DUZENTOS ANOSATRAS,
um dos filsofos de maior influncia de to-
dos os tempos, Immanuel Kant, escreveu:
"Duas coisas me enchem de admirao eestarrecimento crescentes econstantes, quanto mais tempo e mais
sinceramente fico refletindo acerca delas:os cus estre- lados l fora e