colonialidade do poder

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Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina 1 Aníbal Quijano* A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. No texto abaixo, o propósito principal é o de colocar algumas das questões teoricamente necessárias sobre as implicações dessa colonialidade do poder com relação à história da América Latina 2 . I. A América e o novo padrão de poder mundial A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id- entidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na idéia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa idéia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, conseqüentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial 3 . Raça, uma categoria mental da modernidade A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América 4 . Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na

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Colonialidade do poder, eurocentrismo e Amrica Latina1

Anbal Quijano*

A globalizao em curso , em primeiro lugar, a culminao de um processo que comeou com a constituio da Amrica e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padro de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padro de poder a classificao social da populao mundial de acordo com a idia de raa, uma construo mental que expressa a experincia bsica da dominao colonial e que desde ento permeia as dimenses mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade especfica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e carter colonial, mas provou ser mais duradouro e estvel que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqentemente, num elemento de colonialidade no padro de poder hoje hegemnico. No texto abaixo, o propsito principal o de colocar algumas das questes teoricamente necessrias sobre as implicaes dessa colonialidade do poder com relao histria da Amrica Latina2.

I. A Amrica e o novo padro de poder mundialA Amrica constitui-se como o primeiro espao/tempo de um padro de poder de vocao mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. Dois processos histricos convergiram e se associaram na produo do referido espao/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padro de poder. Por um lado, a codificao das diferenas entre conquistadores e conquistados na idia de raa, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biolgica que situava a uns em situao natural de inferioridade em relao a outros. Essa idia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relaes de dominao que a conquista exigia. Nessas bases, conseqentemente, foi classificada a populao da Amrica, e mais tarde do mundo, nesse novo padro de poder. Por outro lado, a articulao de todas as formas histricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial3.

Raa, uma categoria mental da modernidadeA idia de raa, em seu sentido moderno, no tem histria conhecida antes da Amrica4. Talvez se tenha originado como referncia s diferenas fenotpicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa que desde muito cedo foi construda como referncia a supostas estruturas biolgicas diferenciais entre esses grupos.A formao de relaes sociais fundadas nessa idia, produziu na Amrica identidades sociais historicamente novas: ndios, negros e mestios, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e portugus, e mais tarde europeu, que at ento indicavam apenas procedncia geogrfica ou pas de origem, desde ento adquiriram tambm, em relao s novas identidades, uma conotao racial. E na medida em que as relaes sociais que se estavam configurando eram relaes de dominao, tais identidades foram associadas s hierarquias, lugares e papis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, conseqentemente, ao padro de dominao que se impunha. Em outras palavras, raa e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificao social bsica da populao.Com o tempo, os colonizadores codificaram como cor os traos fenotpicos dos colonizados e a assumiram como a caracterstica emblemtica da categoria racial. Essa codificao foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na rea britnico-americana. Os negros eram ali no apenas os explorados mais importantes, j que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raa colonizada mais importante, j que os ndios no formavam parte dessa sociedade colonial. Em conseqncia, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos5.Na Amrica, a idia de raa foi uma maneira de outorgar legitimidade s relaes de dominao impostas pela conquista. A posterior constituio da Europa como nova id-entidade depois da Amrica e a expanso do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram elaborao da perspectiva eurocntrica do conhecimento e com ela elaborao terica da idia de raa como naturalizao dessas relaes coloniais de dominao entre europeus e no-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as j antigas idias e prticas de relaes de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde ento demonstrou ser o mais eficaz e durvel instrumento de dominao social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gnero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situao natural de inferioridade, e conseqentemente tambm seus traos fenotpicos, bem como suas descobertas mentais e culturais6. Desse modo, raa converteu-se no primeiro critrio fundamental para a distribuio da populao mundial nos nveis, lugares e papis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo bsico de classificao social universal da populao mundial.