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“COMO SE FOSSE UM RAPAZ”: JUPIRA E OS DILEMAS DE GÊNERO NO SÉCULO XIX
MATHEUS DA CRUZ E ZICA – UFMG
INTRODUÇÃO
Este artigo se insere no esforço que o campo da História da Educação tem realizado
em estabelecer relações com as reflexões sobre gênero. Trabalharemos, neste artigo, com a
produção do escritor mineiro Bernardo Guimarães (1825-1884). Ele é mais conhecido
pelos livros O seminarista (1872), O Garimpeiro (1872) e A escrava Isaura (1875). No
entanto é, também, autor de uma vasta literatura que envolve pequenos contos, crônicas e
poesias que são geralmente pouco conhecidos dos leitores destes romances mais canônicos.
Nesta oportunidade queremos abordar mais especificamente uma de suas novelas publicada
numa coletânea pela Editora Garnier, em 1872, sob o título Histórias e Tradições da
Província de Minas Gerais. Intitulada Jupira, de mesmo nome da protagonista, a história
narra a trajetória desta filha de índia com branco em diferentes fases de seu
desenvolvimento. Esta sua condição de pertencente a duas culturas, já que ela reveza de
tempos em tempos entre os índios na floresta e entre os ditos ‘civilizados’ no arraial de
Campo Belo, a leva – e nos leva – a questionar vários papéis sociais cristalizados a ponto
de muitos os perceberem como naturais. É que ao voltar à vila, perto de seus quinze anos,
Jupira não deixa de praticar uma série de condutas que aprendeu no cotidiano da floresta
como aceitas para ambos os sexos, mas que na cultura cristã do povoado eram de
prerrogativa estritamente masculina. Ao longo do artigo utilizaremos outras narrativas do
autor a fim de fazermos dialogar as questões de gênero presentes na história de Jupira com
as demais. Procedendo assim, pretendemos contribuir para o debate sobre as relações de
gênero no século XIX, focalizando a perspectiva da educação não-escolarizada
característica do aprendizado de gênero.
Este trabalho é fruto de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação (GEPHE), alocado na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e conta com o apoio financeiro do CNPq e da CAPES.
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OS LIMITES DO RECOMENDÁVEL
Jupira viveu aproximadamente seus primeiros cinco anos na floresta com sua mãe,
Jurema. Dos cinco até os “nove para dez anos” viveu com seu pai branco, José Luís, no
arraial de Campo Belo. Desta idade até chegar aos quase quinze, ela esteve novamente com
a mãe e os demais indígenas de sua tribo até novamente voltar ao convívio com os cristãos
no arraial. A maior parte da narrativa irá tratar deste período de sua vida, pós-quinze anos.
A narrativa irá se deter com maiores detalhes, também, nos períodos em que Jupira esteve
entre os cristãos do povoado, deixando os períodos em que esteve na floresta com ares de
mistério.
Durante o período em que esteve no povoado, entre os seus cinco e dez anos
(aproximadamente), José Luis tentou educá-la à maneira da sociedade ocidental cristã que,
no período, se auto-intitulava com muito orgulho de civilizada:
...e foi com muita dificuldade, que seu pai no fim de sete anos conseguiu que ela adquirisse alguns costumes de civilização, andasse vestida, cosesse, lesse e escrevesse alguma coisa. Muitas vezes a iam agarrar pelos matos quase nua, trepada como macaco nas mais altas árvores, ou nadando nos profundos remansos do Rio Verde em risco de ser devorada por algum jaú ou sucuri. (Jupira, p.146)1
Podemos ver ainda, em outro trecho, o que envolvia este tipo de educação feminina
“civilizada”:
Jupira sem que ela soubesse, não andava sem uma sentinela à vista. Era um primo seu, um sobrinho de José Luís [pai de Jupira], por nome Carlos, e a quem todos chamavam Carlito, pouco mais velho do que ela, rapazinho vivo e esperto como um diabrete. Não tendo podido parar no seminário em razão de seu gênio trêfego, indócil e insubordinado, freqüentava como externo a escola de primeiras letras, onde se havia muito mal. Entretanto era excelente para servir de companheiro de brinquedos e ao mesmo tempo de sentinela a sua prima durante o dia, porque de noite dormia ela fechada debaixo de chave em companhia da velha caseira de José Luís. (Jupira, p.147)
Em ambas as citações é perceptível o tom de enclausuramento que encerra tal
projeto de educação feminina. Não podia subir em árvore nem nadar; seu corpo devia estar
constrangido pelas roupas; durante o dia ela devia ser vigiada e a noite, trancada. Esta
1 Preferimos utilizar esta forma de citar as obras para que não fique tão cansativa a repetição das datas destas obras. Para verificar a data da primeira edição e da utilizada por mim basta conferir no item FONTES, ao final do texto.
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forma de educação enclausurada do feminino também pode ser percebida em outras
histórias do autor mineiro, como demonstraremos mais adiante.
Chamando atenção para outro aspecto, presente no último excerto, nele podemos
ver também um pouco do que se esperava da educação masculina no período. É necessário
dizer que Jupira era tão ou mais indócil que seu primo, de acordo com a narrativa. No
entanto esta insubordinação toma caminhos diferentes de acordo com o gênero das duas
crianças. Carlitos além de não passar a ser vigiado, como foi feito com sua prima, passou
mesmo à condição de quem exerce a autoridade de vigiar e a liberdade de olhar para tudo o
que se passa.
Nesses casos, que seguem esta fórmula de um menino mais velho que acompanha
uma menina mais nova (que se repete em muitas histórias de Bernardo Guimarães2), muitas
vezes esta preocupação de vigiar vem atrelada à justificativa da proteção. Em A Garganta
do Inferno, Lina também era acompanhada por seu primo mais velho, Daniel. Numa manhã
Lina relata o sonho que teve à mãe. Sonhou que tinha entrado em uma caverna e que lá
havia encontrado muito ouro e também uma serpente que a queria engolir. A mãe então lhe
responde:
- Santa Maria Eterna!... que mal sonho, minha filha!... Reza à Nossa Senhora para que arrede esse mal agouro. Isso é tentação do diabo. Lembra-te de nossa mãe Eva; também procedeu de uma serpente. - Mas, mamãe, quanto ouro!... oh!... se eu pilho aquele ouro todo!... - Que havias de fazer?... não havia mais gente pobre neste mundo... - Disso estou eu certa; em poucos dias tu serias a única pobre. Mas a respeito da serpente de fogo?... - Ora!... essa o primo Daniel mataria com a espingarda. (A Garganta do Inferno, p.153)
Ressaltamos nesta citação a naturalidade com que a menina evoca a figura do primo
como alguém que está sempre pronto a protegê-la. Em contrapartida, era bem diferente o
que se esperava dela, segundo o narrador:
Conquanto tivesse toda a simplicidade e travessura de uma criança de nove anos, Lina era muito inteligente e hábil em toda a sorte de trabalhos próprios do seu sexo. Na agulha, no fuso, na roda ou no tear, nada tinha que invejar às mais mestras, e em todos os misteres da casa ajudava e supria perfeitamente a sua mãe. Enfim, era uma menina completa. (A Garganta do Inferno, p.150)
2 Está presente em A Voz do Pagé, Maurício, Rosaura, a enjeitada e O Seminarista.
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Esperava-se da menina, portanto, que ela continuasse o que foi/era sua mãe. Que
ficasse em casa, ao invés de andar em qualquer lugar com uma espingarda para vigiar ou
proteger alguém (função freqüentemente associada ao menino ou ao jovem do sexo
masculino). Tanto é que o “único motivo por que sua mãe às vezes ralhava com ela era que
por vezes gostava de passear sozinha entre os rochedos (...)” (A Garganta do Inferno,
p.150).
Mas além de lugares (Casa / Fora), de atividades (Caçar / Fiar) e de funções
diferentes (Proteger / Cuidar) são também destinados às crianças e aos jovens, ao longo de
seu crescimento, palavras e tratamentos diversificados de acordo com o gênero de cada um
deles, de acordo com as representações produzidas por Bernardo Guimarães. Exemplares
disso são as apresentações iniciais feitas a respeito das protagonistas da história O
Garimpeiro. Enquanto Lúcia é “formosa e interessante”, Elias é “um bonito cavaleiro, um
mocetão sacudido e muito bem parecido, um figurão” (O Garimpeiro, p.11). Além da
utilização do aumentativo para a designação do rapaz, há também qualidades diferentes em
questão. Segundo esta mesma lógica o narrador diz que naquelas paragens onde se passa o
romance “os homens são robustos, ativos e inteligentes e as moças são bem feitas, meigas e
formosas” (O Garimpeiro, p.10). Enquanto as mulheres devem ser bonitas e formosas para
serem vistas, os homens são representados por características que os põem nas melhores
condições de ver: com inteligência para perceber e robustez e atividade para seguir.
Um outro ponto de separação de gêneros pode ser evidenciado pelo pronome de
tratamento direcionado aos jovens rapazes. Assim, através do pronome “Sr.” os jovens do
sexo masculino muitas vezes são aproximados do mundo adulto. É assim que Lina iria
falar com um moço um pouco mais velho que ela, na primeira vez em que o via,
chamando-o de “senhor mancebo”3. Mais interessante ainda é ver que ele utilizaria como
pronome de tratamento, nesta conversa, o termo “menina”, quando se dirigia a ela (A
Garganta do Inferno, p.161). Da mesma maneira, em uma outra história, o narrador irá
descrever a moça Lúcia, em tom de elogio, aproximando-a da condição de menina:
Retirada na solidão da fazenda paterna, desde que saíra da escola, Lúcia crescera como o arbusto do deserto, desenvolvendo em plena liberdade todas as suas graças naturais, e
3 Esta forma de tratamento “Sr.” para se referir aos jovens do sexo masculino é recorrente em todas as histórias de Bernardo Guimarães.
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conservando ao lado dos encantos da puberdade toda a singeleza e inocência da infância. (‘O Garimpeiro’, p.13-14)
A juventude também marca diferenças no comportamento perante o público, de
acordo com cada gênero. Assim, se naqueles sertões descritos por Bernardo Guimarães,
homens e mulheres montavam a cavalo, os sentidos investidos neste ato e as apreciações
feitas a respeito dele variavam significativamente na medida em que fosse um rapaz ou
uma moça. Enquanto Lúcia, “jovem e gentil cavaleira, que cavalgava com suma graça um
lindo ginete branco”, e que ganhava comentários que ressaltavam a “graça e desembaraço
com que governava o cavalo e seu porte garboso e senhoril”; Os rapazes “montados em
lindos poldros ou em possantes mulas ajaezadas de prataria, as esporeavam pelas ruas,
procurando fazer admirar as excelentes qualidades de suas cavalgaduras, e o seu
desempenho e galhardia em dirigi-las” (O Garimpeiro, p.15-16). Saltam aos olhos do leitor
a vontade desses jovens de ostentar a agilidade e a habilidade para o controle. Controle este
exercido a custa de esporeadas, de violência. Foi seguindo esta lógica que, durante a
cavalhada, Elias “castigava rigorosamente” seu cavalo que o desobedecia, fato que o levou
a ter “ímpetos de matar ali mesmo o cavalo a lançadas” (O Garimpeiro, p.23).
O fato é que esses discursos e essas práticas culturais, saturados no cotidiano, vão
produzindo dicotomias que marcam profundamente a subjetividade, vão produzindo
sujeitos que se sentem compelidos a se distanciarem4. É após todo este processo de
socialização que os jovens, bombardeados por mensagens e práticas prescritivas, irão se
tornar adultos diferenciados pelo sexo. Segundo BOURDIEU (1995, p.156-157), o corpo
adulto é uma fabricação política e ética e, por este motivo, “a educação fundamental é
fundamentalmente política: ela tende a inculcar maneiras de portar o corpo (...) que estão
prenhes de uma ética, de uma política, de uma cosmologia”.
MULHERES ENTRE PRESCRIÇÕES E CONTESTAÇÕES: O que não tem
conserto, nem nunca terá...
4 Parece ocorrer o mesmo nos dias hoje dentro das escolas conforme podemos ver em inúmeras pesquisas atuais. Podemos citar, a título de exemplo: LOURO (1997).
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Embora não tenha sido o caso das descrições de personagens femininas de
Bernardo Guimarães, a pesquisa histórica empreendida por GOUVÊA (2004) demonstra
que as mulheres enfrentavam muitos empecilhos para o acesso à educação no século XIX:
A legislação revela-se extremamente minuciosa na conformação de parâmetros que normatizassem o acesso da população feminina à escola. Tais parâmetros mostravam-se diferenciados em relação à população masculina, essa privilegiada no projeto de escolarização da infância. (GOUVÊA, 2004, p.199) Fica claro que, ao longo de todo o período, não havia equivalência nas condições de acesso à escola, tendo em vista o gênero do aluno, sendo facultado ao menino de até 9 ou 12 anos o acesso às escolas femininas, o que não era estendido às meninas, impossibilitadas de freqüentar escolas masculinas. (GOUVÊA, 2004, p.201)
No entanto, aquele século viu também avanços neste quesito:
As sucessivas leis que buscavam regular a convivência entre os gêneros no interior dos espaços escolares demonstram como os textos legais progressivamente tinham em vista garantir o acesso à escola da população feminina. (GOUVÊA, 2004, p.201-202) Na análise da educação escolar na província mineira, chama atenção, no estudo dos mapas de freqüência da segunda metade do século, o significativo aumento das escolas femininas. (...) se em 1815 as meninas não são registradas nas poucas escolas existentes, em 1889 elas chegam a constituir 35% do total de matriculados. Tais dados apontam como a escolarização da população feminina vai adquirindo maior legitimidade no período, configurando-se como a forma escolar de educação da população é incorporada por maior contingente de famílias. (GOUVÊA, 2004, p.206-207)
Talvez os progressos verificados neste campo estejam em íntima conexão com as
lutas por emancipação que as mulheres empreenderam no período, das mais variadas
formas. O estudo sobre a imprensa feminina no XIX irá verificar que uma das principais
pautas de luta nestes jornais era pelo acesso à Educação, juntamente com a bandeira da
Profissão e, mais tarde, pelo Voto e pelo Divórcio (MUZART, 2003, p.2). No mundo todo
as mulheres estão escrevendo e lutando por melhores condições e no Brasil isto não seria
diferente (MUZART, 2003, p.4). Entretanto houve um apagamento da memória destas
mulheres escritoras do século XIX. MUZART (2003, p.3) conclui peremptoriamente que:
Na verdade, o esquecimento de escritoras no século XIX é um esquecimento político. Pois não só porque mulheres escritoras são esquecidas; são esquecidas, sobretudo as mais atuantes, as feministas, em uma palavra (...). Porém, no cômputo geral, todas ficaram esquecidas, militantes ou colaboracionistas, senhoras ou cortesãs.
Outro fato que podemos destacar a respeito das tensões nas relações de gênero que
o século XIX abriga se caracteriza pelo franco desencadeamento do fenômeno que ficou
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conhecido como “feminização do magistério”, quando as mulheres passam a assumir
cargos de professora que as permitiam circular nos espaços públicos com maior autonomia.
FARIA FILHO et al. (2005, p.63) concluem que:
...os dados estatísticos, a legislação e as políticas educacionais parecem indicar que entre os anos 60 e 80 do século XIX, em Minas Gerais, já estavam criadas as condições de possibilidade da feminização do magistério, o que nos faz indagar sobre a trama de relações que, neste período e nas décadas anteriores, produziram tais condições.
A última, das quatro partes do texto de FARIA FILHO et al. (2005), irá se deter nas
análises acerca do jornal “O Sexo Feminino” (1873-1874) que aqui nos interessa de perto.
Dirigido pela professora Francisca Senhorinha, na cidade de Campanha (região sul de
Minas Gerais), o periódico tinha como principal objetivo fazer com que as mulheres
pudessem circular no espaço público (FARIA FILHO et al., 2005, p.75). Dentre as
estratégias argumentativas para que fosse alcançado tal objetivo destaca-se a utilização de
argumentos “científicos” europeus e norte-americanos onde a idéia da mulher professora já
começava a ser mais aceita e até mesmo estimulada e defendida.
São também freqüentes no jornal as argumentações em torno da legitimidade das
mulheres poderem ensinar também às crianças do sexo masculino (FARIA FILHO et al.,
2005, p.75). Podemos pensar que ao bater nesta tecla, a redatora queria criar condições
para que as professoras se preparassem para o ensino de meninos com leituras que não se
restringissem ao que era recomendado para mulheres, mas que se aventurassem em campos
até então reservados apenas ao universo masculino.
Podemos destacar ainda outro ponto na argumentação de Francisca Senhorinha
muitíssimo importante ao nosso ver. É perceptível, em seu jornal, um tipo de comparação
bastante elucidativa entre a atividade docente masculina e feminina que também está
presente nos textos oficiais de 1879 e 1906 (FARIA FILHO et al., 2005, p.60). Para as
autoras e o autor:
...o magistério feminino foi construído com argumentações em torno, inclusive, de uma desqualificação masculina. Assim, uma questão recorrente é pensar em quais as implicações, para o gênero masculino, da feminização do magistério do ensino elementar. (FARIA FILHO et al., 2005, p.81)
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COMO SE FOSSE UM RAPAZ: Jupira e o questionamento dos papéis de gênero no
século XIX
Mulheres como Jupira e sua mãe, Jurema, exibiam uma independência
desconcertante para o branco cristão, Luis Soares. Como marido, ele fora abandonado
(p.145); como pai, desobedecido (p.147, 149 e 167), amedrontado e, por fim, calado:
- Meu pai, - disse-lhe afinal com um sorriso, que fez arrepiarem-se as carnes de José Luis, - ninguém será capaz de dar-me um marido contra a minha vontade; eu já sei como a gente se livra deles, quando nos querem levar à força! José Luís assombrado com aquela resposta recolheu-se ao silêncio, e desistiu do seu propósito. (Jupira, p.165)
Esta cena se dá quando Jupira já tem seus quinze anos e seu pai tentava arranjar-lhe
um “bom partido”. Jupira representa algo que escapa à ordem paterna, ou melhor, algo do
que a ordem paterna não tem o poder de acessar. Numa leitura psicanalítica, Jupira
representa o desejo que pôde ser pleno diante das brechas que tornam possível a burla à
ordem paterna – sendo a qualificação de “paterna” entendida como metáfora das regras e
tabus da civilização (Cf. FREUD, 1913 [1980]). E o narrador não deixará de relembrar e
reintroduzir no texto isto que teria sido uma “falha paterna”:
Apesar dos esforços de seu pai, Jupira nunca pudera perder de todo os hábitos de selvática liberdade em que fora criada. Saía sozinha de casa e vagava por campos e matas, caçando ou pescando, como se fosse um rapaz, e muitas vezes nos dias calmosos ia sozinha banhar-se nas águas do seu querido Rio Verde, no mesmo sítio em que na infância se exercitara a fender-lhe as ondas, em um remanso límpido e profundo sobre o qual se debruçavam árvores copadas, cobrindo-o de sombra e fresquidão deliciosa. Esses passeios, que seriam muito desinquietadores e dariam muito que falar em outra qualquer rapariga, em Jupira ninguém os estranhava. Ela gozava da reputação de ter em aversão os homens, principalmente aqueles que a amavam. Essa fama, baseada no seu gênio arisco e um tanto crespo, na história do cacique que havia matado, e no uso de uma pequena faca guarnecida de prata que sempre trazia no seio, serviam-lhe salvaguarda, e ninguém ousava atravessar-se em seu caminho quando saía a suas excursões, e se acaso algum rapaz a encontrava pelos rincões solitários ou pelas veredas escusas da mata, tirava-lhe respeitosamente o chapéu, e seguia seu caminho. (Jupira, p.168)
Assim sendo, porque Jupira fazia sempre o que queria, seus amantes viriam a se
sentir tão impotentes diante dela quanto seu pai se sentira outrora. Por isto vemos Carlito
bastante aborrecido pela situação de ameaça em que se encontrava:
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- Não faltava mais nada! Ia ele rosnando pelo caminho. - Eu ter medo daquela caboclinha, como se fosse minha mãe ou minha senhora moça!... nada! Quer tomar-me à sua conta!... está enganada; - nem tão bobo sou eu, que me deixe alinhavar como o cacique, que ela matou... não me mete cucas... porventura ela é minha mulher para me proibir que eu esteja com a coitadinha da Rosália! Ao menos ela não anda de faca e nem tem dentes de onça para morder a gente. (Jupira, p.181)
Este trecho nos revela as circunstâncias específicas em que as mulheres deviam ser
respeitadas na cultura época: ou na situação de esposa, ou na situação de mãe. Em qualquer
outra situação, de acordo com a fala da personagem masculina, uma mulher jamais poderia
exigir o respeito dele, homem. Estas situações citadas, nas quais as mulheres teriam
autoridade legitimada, apontam de fato para a instância do espaço privado. Daí a dimensão
de importância que toma a narrativa de Jupira em um contexto como este: Uma mulher
que, sem estar em nenhuma das duas situações, exige satisfações, exige que sua voz seja
ouvida e respeitada. Um outro aspecto que toma relevância na história de Jupira é a
liberdade com que circula no espaço público, uma das principais aspirações pelas quais
lutavam os movimentos feministas do período, conforme tentamos demonstrar acima.
Destaquemos uma última temática que parece também ter sido tangenciada pela
história de Jupira. Pesquisas recentes têm mostrado que os médicos do século XIX não
eram partidários apenas da restrição à sexualidade feminina, mas também da masculina
(Cf. ENGEL, 2008). Era importante se casar, sendo esta a principal prescrição dirigida a
eles no período. Mas isto não bastava. Além disso também tinham de ser fiéis. Para eles,
aceitar este tipo de compromisso significava se nivelar à mulher, ficando ambos
submetidos à mesma regra: a da fidelidade. Uma conjuntura sem privilégios para os
homens, portanto.
Esta constatação, dentre outras, levam a autora a concluir que:
Conforme parecem indicar todos os exemplos aqui considerados, objeto da atenção apurada dos médicos e psiquiatras do século XIX e princípios do XX, as atitudes e os comportamentos masculinos foram submetidos a normas bastante rígidas e cerceadoras. (ENGEL, 2008, p.184)
É claro que não é possível medir a extensão da influência que estes discursos
alcançavam no público masculino. Mas de toda forma, podemos ler neste tipo de
elaboração teórica produzida pela medicina da época, mais uma instância que se esforçava
por desestabilizar condutas masculinas que, até então, pareciam ser inquestionáveis.
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Acreditamos que, neste ponto, a história de Jupira também vem contribuir para o
questionamento deste privilégio masculino de traição legitimada. A protagonista fica
realmente em fúria ao saber que Carlito estava lhe sendo desleal na relação, conforme nos
esclarece o narrador:
Se em seus amores era livre como a brisa do deserto, consideração nenhuma a podia tolher nos violentos acessos de seu feroz ciúme. Como a onça esfaimada rodeia e espia o nédio e tenro veado, que descuidado vagueia por bosques e campinas, até lançar-lhe as garras, assim Jupira espiava com olhar cioso todos os passos de seu volúvel amante, acompanhava-o sem ser vista, conhecia-lhe o rato, e em seu instinto selvático quase que o farejava. (Jupira, p.180)
Ao final da história, ele pagará, de fato, com a vida pela traição a Jupira. Ao
arquitetar a morte de seu infiel amante, Jupira se afasta, assim, das tradicionais virtudes
associadas ao feminino no período tais como: “constância, paciência, resignação, bondade
e ternura” (Cf. FARIA FILHO et al., 2005, p.69). Talvez pela liberdade que o discurso
literário traz consigo, as atitudes de Jupira puderam adquirir conotações mais avançadas
que as trazidas pela luta política empreendida pelos jornais femininos do mesmo período.
Pelo menos é isto que constatamos, ao compararmos estas atitudes de Jupira à
argumentação de Francisca Senhorinha em seu jornal “O Sexo Feminino”, que jamais
deixou de aproximar as qualidades citadas acima – “para além de femininas, maternas”
(FARIA FILHO et al., 2005, p.75) – ao privilégio da Professora sobre o professor,
estratégia para que o feminino saísse do lar – mas saindo do lar marcada por um signo que
vem de lá.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Educação & Realidade. 20(2): 133-184. jul./dez. 1995. ENGEL, Magali Gouveia. Sexualidades interditadas: loucura e gênero masculino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, Supl., p.173-190, jun. 2008. FARIA FILHO, L. M et al. . A história da feminização do magistério no Brasil: balanço e perspectivas de pesquisa. In: PEIXOTO, A. M. C. & PASSO, M. [orgs.]. A escola e seus atores – educação e profissão docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p.53-89
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FREUD, S. Totem e tabu, vol. XIII, 1913. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. GOUVÊA, Maria Cristina Soares. Meninas na sala de aula: dilemas da escolarização feminina no século XIX. p.189-212. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de (Org.). A infância e sua educação – materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil). Belo Horizonte: Autêntica, 2004. LOURO, Guacira Lopes. A construção escolar das diferenças. p.57-87. In: Gênero, Sexualidade e Educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX. Revista Estudos Feministas. v.11, n.1, Florianópolis jan./jun. 2003.
FONTES5
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