conclusÃo - mauss sacrificio
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mauss e sacrifícioTRANSCRIPT
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MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp. 101-109 (trechos aleatórios)
O sacrifício pode cumprir conjuntamente uma grande variedade de funções.
Mas se o sacrifício é tão complexo, de onde lhe pode vir a unidade? É que, no fundo, sob a diversidade das formas que ele assume, há sempre um mesmo procedimento que pode ser empregado para finalidades as mais diferentes.
Esse procedimento consiste em estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída durante a cerimônia.
A vítima não chega necessariamente ao sacrifício com uma natureza religiosa acabada e definida: é o próprio sacrifício que lhe confere essa natureza. Assim, a vítima transmite um caráter sagrado do mundo religioso ao mundo profano ou vice-versa; ela é indiferente ao sentido da corrente que a atravessa.
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Se as forças religiosas são em si mesmas o princípio das forças vitais, são de uma tal natureza que seu contato é perigoso para o vulgo. Sobretudo quando atingem um certo grau de intensidade, não podem se concentrar num objeto profano sem destruí-lo. Portanto, por maior que seja a necessidade do profano, ele só pode abordá-las com a mais extrema prudência. Eis por que intermediários se introduzem entre elas e ele, sendo que o principal é a vítima.
Se o sacrificante se envolvesse completamente no rito, encontraria a morte e não a vida. A vítima o substitui. Somente ela penetra na esfera perigosa do sacrifício e ali sucumbe, estando ali para sucumbir. O sacrificante permanece protegido: os deuses tomam a vítima em vez de tomá-lo. Ela o redime. Não há sacrifício em que não intervenha alguma ideia de remissão.
Tudo o que está muito profundamente envolvido no domínio religioso é, por isso mesmo, retirado do domínio profano. Quanto mais um ser é impregnado de religiosidade, tanto mais lhe pesam interdições que o isolam.
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Por outro lado, tudo o que entra em contato muito íntimo com as coisas sagradas adquire sua natureza e se torna sagrado como elas.
Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá. E geralmente essa abnegação lhe é mesmo imposta como um dever, pois o sacrifício nem sempre é facultativo; os deuses o exigem. Deve-se a eles o culto, o serviço, como diz o ritual hebreu; deve-se a eles sua parte, como dizem os hindus.
Mas essa abnegação e essa submissão não suprimem um retorno egoísta. Se o sacrificante dá algo de si, ele não se dá: reserva-se prudentemente. Se ele dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O desprendimento mistura-se ao interesse. Eis por que ele foi frequentemente concebido sob a forma de um contrato.
No fundo, talvez não haja sacrifício que não tenha algo de contratual. As duas partes envolvidas trocam seus serviços e cada uma tem sua vantagem. Pois os deuses, eles também, têm necessidade dos profanos: se nada fosse reservado da colheita, o deus do
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trigo morreria; para que Dionísio possa renascer, é preciso que o bode de Dionísio seja sacrificado nas vindímas; é o soma que os homens dão de beber aos deuses que faz a força destes contra os demônios.
Para que o sagrado subsista, é preciso dar-lhe sua parte, e é com a parte dos profanos que se faz essa reserva. Essa ambiguidade é inerente à natureza do sacrifício. Com efeito, ela se deve à presença do intermediário, e sabemos que sem intermediário não há sacrifício. Por ser distinta do sacrificante e do deus, a vítima os separa ao mesmo tempo que os une; eles se aproximam sem se entregar inteiramente um ao outro.
Há, no entanto, um caso em que está ausente todo cálculo egoísta. Trata-se do sacrifício do deus, pois o deus que se sacrifica dá sem retorno. É que dessa vez todo intermediário desapareceu. O deus, que é ao mesmo tempo o sacrificante, coincide com a vítima e mesmo, às vezes, com o sacrificador.
Os poderes aos quais se dirige o fiel que sacrifica seus bens mais preciosos parecem nada ter de positivo. Quem não acredita, vê
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nesses ritos nada mais que vãs e custosas ilusões e se espanta de que a humanidade tenha se obstinado em dissipar suas forças em favor de deuses fantasmagóricos. Mas talvez haja aí realidades verídicas às quais se pode associar a instituição em sua integralidade. As noções religiosas, por serem objeto de crença, existem; existem objetivamente, como fatos sociais.
As coisas sagradas em relação às quais funciona o sacrifício são coisas sociais.
Essas expiações e essas purificações gerais, essas comunhões, essas sacralizações de grupos, essas criações de gênios das cidades conferem ou renovam periodicamente à coletividade, representada por seus deuses, esse caráter bom, forte, grave, terrível que é um dos traços essenciais de toda personalidade social.
Por outro lado, os indivíduos encontram nesse mesmo ato uma vantagem. Eles conferem a si mesmos e às coisas que mais lhes interessam a força social inteira. Revestem de uma autoridade social seus votos, seus juramentos, seus casamentos. Cercam, como se
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com um círculo de santidade que os protege, os campos que lavraram, as casas que construíram.
Ao mesmo tempo, encontram no sacrifício o meio de restabelecer os equilíbrios perturbados: pela expiação redimem-se da maldição social, consequência da falta, e se reincorporam à comunidade; pela doação de uma parte das coisas cujo uso a sociedade reservou, adquirem o direito de usufruí-las.
A norma social é então mantida sem perigo para os indivíduos e sem prejuízo para o grupo. Assim a função social do sacrifício é cumprida, tanto para os indivíduos quanto para a coletividade. E como a sociedade é feita não apenas de homens, mas também de coisas e acontecimentos, percebe-se como o sacrifício pode acompanhar e reproduzir ao mesmo tempo o ritmo da vida humana e o da natureza, como pôde tornar-se periódico em função dos fenômenos naturais, ocasional como as necessidades momentâneas dos homens, submetendo-se enfim a inúmeras funções.