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CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E PRODUÇÃO DO ECOTURISMO EM BONITO, MS Nature Conservation and the Production of Ecotourism in Bonito Heros Augusto Santos Lobo * RESUMO O presente artigo apresenta uma análise de algumas das questões ligadas à produção do ecoturismo no município de Bonito, estado do Mato Grosso do Sul e região. A discussão se desenvolve no panorama da conservação da natureza face às territorialidades propiciadas pelo ecoturismo, bem como do contexto político-econômico que canaliza o desenvolvimento do turismo na localidade. A base conceitual que norteou a discussão concentra-se, sobretudo, nas questões de conservação ambiental, definições de ecoturismo e sua divergência em relação às práticas e na territorialidade turística. Como conclusão, aponta-se que a conservação do ambiente na região de Bonito se dá por interesses predominantemente comerciais, e que o turismo ali produzido, apesar de ainda ser popularmente chamado de ecoturismo, pode perder cada vez mais as características essenciais que remetem a esse segmento do turismo. Para que isso não ocorra, a base do planejamento turístico local deve se voltar mais para o tripé ambiente-sociedade-cultura, e menos para o desenvolvimento econômico. Palavras-Chave: Conservação Ambiental; Territorialidade; Turismo. ABSTRACT This article presents an analysis of some of the issues linked to the production of ecotourism in Bonito county, State of Mato Grosso do Sul, and the region. The discussion develops a layout of nature conservation in the face of the territorialities propitiated by ecotourism, as well as of the political-economic context that canalizes the development of tourism in the locality. The conceptual base that guided the discussion is concentrated, over all, in the questions of environmental conservation, definitions of ecotourism and its divergence with relation to the practices and the tourist territoriality. As a conclusion, it is pointed that the conservation of the environment in the region of Bonito happens for predominantly commercial interests, and that the tourism produced there, although still popularly called ecotourism, can lose each time more the essential characteristics that are tied to this segment of tourism. So that this does not occur, the base of the local tourism planning must turn more towards the tripod environment-society-culture, and less towards economic development. * Bacharel em Turismo pela Universidade Anhembi Morumbi. Especialista em Gestão e Manejo Ambiental em Sistemas Florestais pela Universidade Federal de Lavras. Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor, pesquisador e atual coordenador do curso de Turismo com ênfase em ambientes naturais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Espeleologia – SBE. Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo – ANPTUR. [email protected]

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CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E PRODUÇÃO DO ECOTURISMO EM BONITO, MS

Nature Conservation and the Production of Ecotourism in Bonito

Heros Augusto Santos Lobo*

RESUMO

O presente artigo apresenta uma análise de algumas das questões ligadas à produção do ecoturismo no município de Bonito, estado do Mato Grosso do Sul e região. A discussão se desenvolve no panorama da conservação da natureza face às territorialidades propiciadas pelo ecoturismo, bem como do contexto político-econômico que canaliza o desenvolvimento do turismo na localidade. A base conceitual que norteou a discussão concentra-se, sobretudo, nas questões de conservação ambiental, definições de ecoturismo e sua divergência em relação às práticas e na territorialidade turística. Como conclusão, aponta-se que a conservação do ambiente na região de Bonito se dá por interesses predominantemente comerciais, e que o turismo ali produzido, apesar de ainda ser popularmente chamado de ecoturismo, pode perder cada vez mais as características essenciais que remetem a esse segmento do turismo. Para que isso não ocorra, a base do planejamento turístico local deve se voltar mais para o tripé ambiente-sociedade-cultura, e menos para o desenvolvimento econômico. Palavras-Chave: Conservação Ambiental; Territorialidade; Turismo. ABSTRACT This article presents an analysis of some of the issues linked to the production of ecotourism in Bonito county, State of Mato Grosso do Sul, and the region. The discussion develops a layout of nature conservation in the face of the territorialities propitiated by ecotourism, as well as of the political-economic context that canalizes the development of tourism in the locality. The conceptual base that guided the discussion is concentrated, over all, in the questions of environmental conservation, definitions of ecotourism and its divergence with relation to the practices and the tourist territoriality. As a conclusion, it is pointed that the conservation of the environment in the region of Bonito happens for predominantly commercial interests, and that the tourism produced there, although still popularly called ecotourism, can lose each time more the essential characteristics that are tied to this segment of tourism. So that this does not occur, the base of the local tourism planning must turn more towards the tripod environment-society-culture, and less towards economic development.�

���������������������������* Bacharel em Turismo pela Universidade Anhembi Morumbi. Especialista em Gestão e Manejo Ambiental em Sistemas Florestais pela Universidade Federal de Lavras. Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor, pesquisador e atual coordenador do curso de Turismo com ênfase em ambientes naturais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Espeleologia – SBE. Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo – ANPTUR. [email protected]

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Keywords: Environmental Conservation; Territoriality; Tourism. Introdução

O presente trabalho desenvolvido sob uma ótica dialético-materialista apresenta uma

visão da produção turística que busca analisar a atuação do mundo da mercadoria. Uma outra

vertente possível de análise, que incorpora a emoção e as motivações humanas como

componentes do processo turístico, embora muito marcante, não foi aqui considerada.

Este artigo pretende discutir, de forma breve e em linhas gerais, como se dá a relação

entre as territorialidades locais e a conservação da natureza face ao processo de transformação

territorial em função do ecoturismo, tomando como base para análise o caso de Bonito, MS.

Conservação da natureza e a crise ambiental: reflexos da modernidade

A conservação da natureza está entre as temáticas mais abordadas nos dias atuais, num

panorama de quase colapso do desenvolvimento nos moldes propostos, face à possibilidade de

esgotamento dos recursos naturais. Isto pode ser compreendido como um reflexo da

modernidade, em que o individualismo torna-se a base do desenvolvimento da sociedade, em

função do capital, do fetichismo e da mercadoria. Segundo Harvey (1993, p. 103), “a luta pela

manutenção da lucratividade apressa os capitalistas a explorarem todo tipo de novas

possibilidades. São abertas novas linhas de produto, o que significa a criação de novos

desejos e necessidades” [grifo nosso]. Julgo ser de suma importância destacar essa afirmação,

pois o mercado oculta esse princípio das pessoas. Por meio do marketing, busca apresentar o

entendimento de que as necessidades de consumo são identificadas, e não criadas. Em outras

palavras, são necessidades legítimas. Assim, pela ótica proposta, as viagens, o lazer e o

turismo, muitas vezes deixam de ser necessidade e direito, passando a ser obrigação.

Tal situação é analisada face ao contexto de uma possível crise ambiental. Para

Tommasino e Foladori (2001), essa crise possui grandes problemas, tais como as mudanças

climáticas e as alterações na biodiversidade. Os problemas relacionados ao ambiente são

decorrentes dos processos de territorialização adotados ao longo dos diversos ciclos de

ocupação humana em nosso planeta.

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Também o pensamento tradicional determinista, segundo o qual o homem e natureza

são separados, traz reflexos a este processo. Essa forma de pensar a natureza, conforme

destaca Bihr (1999), torna-a distante do ser humano, colocando-na como sendo apenas o lugar

onde se desenvolvem as suas territorialidades. Ou seja, leva em conta apenas as relações entre

homem e ambiente, deixando de lado as relações existentes entre a espécie humana como

parte da natureza. Bihr afirma também que as coisas naturais, que não necessitam de uma

apropriação por meio do trabalho, são indiferentes ao capitalismo, o qual não as integra em

seus cálculos e previsões, dado que não existe um custo implícito.

Assim, entendo que, embora seja chamada de crise, a questão ambiental é parte do

sistema capitalista, o que leva esta análise para além da dicotomia simplificada de problema e

resolução, de causa e conseqüência. Em outras palavras, quero dizer que, embora a questão

ambiental tenha atualmente ganhado maior enfoque e projeção nos debates e propostas, sabe-

se que isso é fomentado pelo aumento de consumo, bem como a venda de novas tecnologias e

produtos “verdes”. Dessa forma, a questão ambiental, da forma posta, não representa a quebra

de um paradigma desenvolvimentista, mas sim, reflexo da evolução desse paradigma.

Se esse é o contexto mundial do pensamento sobre a natureza face ao desenvolvimento

e a modernidade, no Brasil, o quadro não se faz diferente. Criado como colônia exploratória, o

território nacional vivenciou, e ainda vivencia, diversos ciclos de desenvolvimento

econômico. Em todos eles, o ambiente sempre foi entendido como recurso para uso, sem

nenhuma preocupação com sua manutenção ou com o futuro, ou mesmo sem o entendimento

da relação de necessidade recíproca entre ser humano e natureza.

Essa concepção da natureza parece ganhar uma nova perspectiva de análise a partir

daquela que foi um marco para o fortalecimento do movimento ambientalista brasileiro, a

Conferência do Rio em 1992. Realizado vinte anos após a Conferência de Estocolmo, o

evento do Rio de Janeiro tratou de diversos paradigmas ambientais mundiais, como a

poluição, o esgotamento dos recursos e a biodiversidade. A diretriz básica das discussões era

norteada pelo documento Nosso Futuro Comum, elaborado pelo PNUMA1, e que trazia o

conceito de desenvolvimento sustentável. À luz do desenvolvimento sustentável, estava

lançado um novo paradigma para a conservação da natureza.

Foi nessa época que o ecoturismo se apoderou do discurso do desenvolvimento

sustentável (Ou foi o contrário?). Os defensores do desenvolvimento sustentável levantaram a

���������������������������1 Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

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bandeira do ecoturismo como atividade que simbolizava e concretizava os seus preceitos.

Com isso, o termo ecoturismo, cunhado por Hector Ceballos-Lascurain em meados dos anos

oitenta, e que tinha por objetivo a contemplação e uso racional dos recursos naturais e

culturais conservados, teve uma tentativa de ampliação de seu conceito.

Este processo contribuiu para a criação de um pensamento no senso comum, de que o

ecoturismo, assim como outras atividades “eleitas” como menos predatórias, é derivado do

desenvolvimento sustentável. Essa linha de pensamento, na análise de Porto-Gonçalves

(2004-a, p. 18), não passa de uma armadilha “de noções fáceis que nos são oferecidas pelos

meios de comunicação como ‘qualidade de vida’ ou ‘desenvolvimento sustentável’, que, pela

sua superficialidade, preparam hoje, com toda certeza, a frustração de amanhã”.

Territorialidades em Bonito: da pecuária ao (eco)turismo

A origem histórica do município de Bonito remonta a fatos relacionados com a Guerra

do Paraguai. Após o término da guerra, o Capitão Luiz da Costa Leite Falcão, que é

considerado o desbravador da região, recebeu, por atos de bravura, 15 léguas de terra. Esse

território veio a se chamar Fazenda Rincão Bonito, e posteriormente, em 11 de junho de 1915,

foi desmembrado do Município de Miranda, criando-se o Distrito de Paz de Bonito. A região

foi elevada à categoria de município pela Lei Estadual n° 145, de 02 de outubro de 1948

(ABRÃO et al., 1998, p. 21-2).

A princípio, a atividade econômica que se destacou no município foi a agropecuária,

fomentada por meio de diversos projetos e incentivos governamentais, ganhando caráter mais

comercial à partir dos anos cinqüenta. Além da agropecuária, nessa época, a mineração

começava a ganhar importante papel econômico no contexto da região Centro-Oeste. Galindo

e Santos (1995) colocam essas duas atividades como fatores preponderantes para a

modernização – no sentido de inserção no capitalismo – e diversificação econômica na região.

Para a viabilização de ambas atividades, grandes áreas de vegetação nativa – cerrado e

florestas estacionais – foram suprimidas, seja pela substituição por pastagens, seja pelas

frentes de lavra para mineração de calcário. Tal forma de territorialização da região ensejou a

existência de grandes propriedades, com pouca empregabilidade e baixo grau de

desenvolvimento sócio-econômico.

A partir dos anos noventa, o turismo começou a ocupar papel fundamental na

economia local, sobretudo o ecoturismo. Com a divulgação massiva do município como

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destino turístico nos principais meios de comunicação nacional, viu-se um fenômeno de

crescimento turístico que, até então, só era vislumbrado em praias paradisíacas,

principalmente do litoral nordestino. Desde então, o turismo tem norteado o desenvolvimento

no município de Bonito e região. Assim, estava concretizada uma nova territorialidade local,

que, nas palavras de Porto-Gonçalves (2004-b, p. 09), representa o espaço ocupado

(territorializado ou, nos termos do turismo, turistificado) mais a identidade por ele

representada.

Pautado no discurso da conservação do ambiente e do desenvolvimento sustentável, o

turismo tem sido posto como a solução de muitos dos problemas locais. Assim, coloca-se na

atividade a responsabilidade de resolver as diversas falhas e barreiras ao desenvolvimento

que, o poder público, talvez o verdadeiro responsável por tais questões, não se presta a fazer.

A elite agrária, quando não está presente diretamente no poder, possui influências suficientes

a ponto de canalizar os interesses e as ações tomadas pela municipalidade. Em Bonito, essa

mesma elite agrária dominante tomou conta do desenvolvimento e gestão da atividade

turística, a ponto de se criar uma nova realidade local, a elite do turismo. Embora exista uma

organização do sistema turístico, pautada nas diretrizes apontadas primeiramente pelo

Programa Nacional de Municipalização do Turismo – PNMT e, mais recentemente, no

Programa de Regionalização do Turismo – PRT, a base da atividade turística em Bonito é

ditada pelos atrativos, que estão nas mãos de particulares.

Além de serem os detentores das áreas de maior interesse turístico, os proprietários de

atrativos, como são hoje chamados os fazendeiros e outros proprietários de terras, detêm

também grandes parcelas de áreas conservadas dentro de suas propriedades. Com a chegada

do turismo, as áreas das fazendas que eram consideradas inúteis sob a ótica mercantilista

ganharam importância vital para o desenvolvimento econômico. Por conta disso, da mesma

forma que as poucas áreas conservadas contribuíram para o surgimento do turismo em Bonito,

hoje, o turismo tornou-se um agente de conservação ambiental. Mas essa conservação não é

gratuita, desprendida de interesses. A ânsia de muitos proprietários rurais na região é nítida,

no sentido de encontrar em suas terras aquele que seria o novo roteiro turístico da moda em

Bonito. Fica óbvio então que essa preocupação com o ambiente não diz respeito ao

surgimento, nessas pessoas, de um senso de conscientização sobre a importância da natureza.

Tal conservação é propiciada, na verdade, pela transformação dessas áreas em produtos. A

natureza conservada passa a ser mercadoria.

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Essas áreas de uso turístico passaram a ser transformadas em Unidades de

Conservação, de forma a salvaguardar a sua manutenção futura e também como ferramenta de

marketing turístico. Com isso, percebo que, por tais motivos, o turismo assume em diversas

oportunidades e momentos, o papel de agente prioritário de desenvolvimento na região de

Bonito. Isso ocorre tanto no que diz respeito à economia quanto à conservação da natureza,

ainda que as motivações não sejam ligadas a uma postura de preocupação direta com o

ambiente.

Ecoturismo em Bonito: panorama e perspectivas

A partir de 1994, com a divulgação do município como destino ecoturístico nos

principais meios de comunicação nacional, Bonito tornou-se um dos pontos de partida para o

crescimento do ecoturismo no Brasil nos moldes como hoje conhecemos, bem como para a

criação de um novo cenário no contexto do turismo nacional. A atividade turística, que era

entendida e “planejada” apenas para atender aos fluxos massivos de visitação, passa a ser

concebida para pequenos grupos, de forma a minimizar os impactos negativos, sobretudo ao

meio ambiente.

No entanto, o fortalecimento do ecoturismo no cenário nacional ocorreu,

principalmente, a partir da criação das Diretrizes para a Política Nacional de Ecoturismo,

documento editado pela EMBRATUR2, em 1994. No referido documento, estabeleceu-se o

que se entende, no Brasil, oficialmente por ecoturismo:

Um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas (BRASIL, 1994, p. 04).

Isso fortaleceu o “pensar” e “planejar” do ecoturismo no setor público brasileiro. O

que se percebia dos planejadores ecoturísticos, era a clara necessidade de encontrar rincões

longínquos, onde existisse a possibilidade de contato direto do turista com uma natureza dita

intocável. Assim, o Brasil descobriu Bonito, e o mundo o descobriu também. Na verdade, a

���������������������������2 Instituto Brasileiro do Turismo, antiga Empresa Brasileira do Turismo. Santos Filho (2005) ressalta que a EMBRATUR foi criada no berço da ditadura militar, entre 1969-1967, objetivando divulgar no exterior as belezas naturais do Brasil, como forma de apagar a péssima imagem causada pelo governo militar.�

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política de planejamento turístico imposta aos bonitenses sempre inverteu essa ordem. O mais

correto, talvez, seria dizer que o mundo descobriu Bonito primeiro que o Brasil.

As belezas proporcionadas pelas paisagens cársticas com águas cristalinas, grutas e

matas preservadas, formavam o cenário ideal para que a nova territorialidade – do ecoturismo

– fosse estabelecida. Recursos naturais como os Rios Formoso, Baía Bonita, Sucuri e Olho

d’Água (esse último em Jardim, MS), bem como a Gruta do Lago Azul e o Abismo Anhumas,

se transformaram, em pouco tempo, em verdadeiros ícones do ecoturismo nacional. Desde

essa época, ter recursos naturais como esses nos domínios de suas terras significa para o

proprietário a possibilidade de fazer parte da nova elite local.

Com tais explicações, pretendo demonstrar que a atividade ecoturística em Bonito não

foi um processo legítimo, como talvez se pense. No âmbito local, o interesse maior era dos

fazendeiros, que vislumbravam no ecoturismo a nova fonte de riqueza. Nacionalmente, havia

um interesse político claro, determinado na ocasião pela EMBRATUR, no sentido de

reorganizar a atividade turística no país. O Brasil ainda sofria, à época, as duras

conseqüências da divulgação feita nos anos anteriores, no mais legítimo molde “praia, sol e

sexo”, que desenvolveu toda uma rede de turismo sexual, baseada principalmente na vinda de

operários europeus, que tinham no país um paraíso, no sentido hedonista da palavra. Então,

buscou-se um rearranjo na propaganda do turismo brasileiro, em que não mais somente

imagens de praias, mas também cachoeiras e outros atributos da paisagem eram oferecidos.

Uma outra característica foi o desaparecimento gradativo das mulheres usando biquínis nos

mesmos filmes e materiais. Estava criado o cenário e o discurso de que o Brasil era o país do

ecoturismo, embora ainda não houvesse indícios do desenvolvimento organizado dessa

atividade. Um outro ponto é que o modelo de ecoturismo escolhido para o Brasil, que tomou

Bonito como exemplo, pautou-se nos ideais de turismo sustentável.

O turismo sustentável é entendido pela Organização Mundial do Turismo como sendo

uma atividade que privilegia aspectos sociais, ecológicos e culturais, além dos econômicos,

tanto para as gerações presentes como futuras (OMT, 2003), sob uma ótica mercadológica.

Sem entrar no mérito da existência ou não de um turismo sustentável na prática, foi esse

pensamento que norteou o desenvolvimento dos produtos turísticos de Bonito e região. A

idéia era possibilitar que muitas pessoas pudessem ter benefícios com a atividade turística,

além de conservar a natureza e promover o fortalecimento das culturas locais. De fato,

conforme Loubet (2005), o turismo emprega atualmente aproximadamente 70% da população

economicamente ativa do município de Bonito. Se fôssemos analisar apenas de forma

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quantitativa, poderíamos concluir que o turismo trouxe grandes benefícios para a população

local. Porém, o que se pretende desvelar é que a maioria destes empregos são de caráter

sazonal e subempregos, ficando os cargos de maior importância para pessoas vindas de fora.

Bonito possui hoje grande concentração de bacharéis em turismo e biologia formados em

diversas localidades do país, muitos deles ocupando posições estratégicas na organização do

turismo local. Assim, as oligarquias formadas pela elite não são desfeitas, apenas mudando a

natureza comercial da atividade econômica dominante. Não pretendo aqui fazer juízo de valor

sobre o que é melhor: domínio da elite pecuária ou da elite do turismo, pois entendo que são

compostas, em Bonito, basicamente pelas mesmas pessoas, com poucas variações.

Quanto à natureza, dentro dessa perspectiva de sustentabilidade inserida no discurso

dos dirigentes turísticos locais, sua importância acaba sendo ampliada. Os proprietários rurais

que possuem atrativos turísticos em suas terras começam a ver que conservar a natureza é um

bom negócio em Bonito, pois, os dólares dos turistas estrangeiros têm o objetivo de comprar a

concepção de natureza intocada. Assim, em alguns lugares, a pressão antrópica sobre o

ambiente diminui. A pergunta que fica é: até quando?

As principais teorias de evolução dos destinos turísticos (BUTLER apud

RUSCHMANN, 2004; SWARBROOKE; HORNER, 2002) apontam o declínio dos fluxos de

visitação em torno de dez anos. Some-se a isso o conturbado cenário econômico nacional, que

não favorece o turismo, sobretudo o interno. Bonito atualmente apresenta sinais de vivenciar

as agruras desse fenômeno do mercado e da conjuntura econômica, sofrendo com a

diminuição no número de visitantes em diversos atrativos.

Então, novas alternativas de turismo começam a ser pensadas, como eventos e festas

populares, onde a natureza deixa de ser o centro. Muito embora os turistas que vão a Bonito

para tais festividades também façam uso de alguns atrativos3, questiono: até que ponto o

interesse de um público que não possui uma visão tão centrada no ecoturismo vai contribuir

para a conservação da natureza na Serra da Bodoquena?

���������������������������3 É interessante mencionar que os turistas que vão a Bonito e região, atraídos por festas como o carnaval e outras do gênero, têm feito maior uso de uma pequena parcela dos atrativos, sobretudo os balneários. Em muitos desses balneários, é comum ver os turistas com o som de seus carros ligado em altos volumes, onde o consumo de bebidas alcoólicas é o fator� preponderante da visitação. Assim, além da natureza ser apenas o palco para a diversão desprendida de qualquer compromisso com o ambiente, a poluição sonora e a atitude desrespeitosa acabam por marcar o comportamento desses turistas. Um outro fator a ser mencionado é que, muitas vezes, tais turistas trazem tudo de seus municípios, gastando pouco em Bonito, mas deixando lá o ônus gerado pelo aumento no uso dos sistemas de água, luz, esgoto, infra-estrutura, bem como seu comportamento predatório, marcado por costumes diferentes da vida cotidiana dos bonitenses.�

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Fica difícil, num primeiro momento, encontrar as respostas para tais questionamentos,

como também fazer previsões catastróficas sobre o turismo na região de Bonito. É certo que

iniciativas como a criação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena hão de contribuir para

que o poder público tenha maior participação no processo de divisão do fluxo turístico da

região, desconcentrando todo o poder das mãos dos grandes proprietários de terras, partindo

do pressuposto que o processo de gestão nessa Unidade de Conservação será legítimo e

desprendido de interesses ‘político-partidários’.

Todavia, há que se considerar que o turismo em áreas legalmente protegidas, como

Parques e afins, costuma atingir um outro público, com características de consumo bem

distintas dos turistas que Bonito e região estão habituados a receber. Então se levantam novas

dúvidas: será que esse novo público será igualmente aceito na região, levando-se em conta

que se trata de um público que exige menos estrutura de receptivo, logo, gera menos divisas

para a comunidade receptora? Ou será que uma nova territorialidade, gerada pela (re)

territorialização criada pelo Parque há de surgir em Bonito? Ou ainda, será que o Parque se

enquadrará ao sistema turístico local, elitizando o seu público visitante? Qualquer que seja a

resposta, espera-se que a natureza e a sociedade possam conviver de forma o mais harmônica

possível, buscando encontrar perspectivas de desenvolvimento para a região que mantenham a

conservação do ambiente como uma das prioridades sem, no entanto, esquecer das

necessidades da maioria dos munícipes da região, e não só de um grupo dominante.

Considerações finais

O que concluo nisso tudo é que as novas territorialidades proporcionadas pelo turismo

em Bonito são tão excludentes quanto as anteriores. Nessas novas territorialidades, a natureza

ocupa importante papel, sobretudo como produto, sendo apropriada comercialmente pelo

turismo, ali chamado de ecoturismo. Todavia, os preceitos básicos do ecoturismo estão

exatamente ligados a uma mudança de postura das pessoas em relação ao ambiente, à

sociedade e às culturas locais. Entendo o ecoturismo como uma atividade que se pauta na

geração de mínimos impactos ao ambiente, na inserção das comunidades locais no processo

turístico e no incentivo à diversidade e às manifestações culturais. No ecoturismo, o

entendimento que se dá à cultura está ligado à relação dos seres humanos entre si, e com o

ambiente onde vive. Trata-se de uma relação de respeito.

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Contudo, o que se vê em Bonito e região é a total mercantilização da natureza. As

possibilidades de interação direta com o meio são substituídas pela artificialização dos

roteiros. O turista não tem contato com a natureza, mas sim, com as passarelas, pontes e

equipamentos nela construídos. Ainda que tais estruturas sejam implantadas sob o pretexto de

minimizar os impactos ambientais, o que se evidencia é que, na verdade, servem para ampliar

a capacidade de visitação dos atrativos e para atrair turistas mais exigentes quanto à infra-

estrutura de visitação, de forma a maximizar os lucros. Além dessa quebra no que já pode ter

sido um ecoturismo na região, as manifestações culturais legítimas são hoje substituídas por

suvenires fabricados em larga escala, representando o ícone máximo da banalização da

comunidade local e do destino turístico. Na ânsia de superar o ciclo natural de sobrevivência

dos produtos turísticos mantendo altos ritmos de crescimento dos fluxos de visitação, o que se

vê hoje é a troca do ecoturismo por um outro tipo de atividade turística. Esse tipo de atividade

é o mesmo que existe em qualquer outro destino convencional, um turismo de massa, com

uma única diferença: sendo realizado em uma área de alta fragilidade ambiental, e que tem as

devidas condições ambientais para ser um importante pólo de ecoturismo no Brasil. É certo

que esforços estão sendo realizados com o intuito de manter a estrutura que foi montada ao

longo de mais de dez anos para receber os turistas na Serra da Bodoquena. Mas é fato que o

ecoturismo perde com isso seu espaço.

Ainda é possível fazer ecoturismo em Bonito. Mas até quando? Espera-se que com a

implantação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, essa perspectiva de uso responsável

dos recursos naturais possa de fato se concretizar e fundamentar na região. Espera-se que uma

área pública não assuma o mesmo compromisso mercadológico com o lucro, mas sim, vise

oportunizar às pessoas o acesso a uma paisagem conservada e com menos interferências, fato

este comum e próprio das atividades que se pretendem classificar como ecoturismo.

Referências bibliográficas

ABRÃO, A. M. C. et al. Plano de desenvolvimento turístico para o Município de Bonito – MS. Campo Grande: UCDB, 1998. BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1999.

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Page 12: CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E PRODUÇÃO DO … · ... apesar de ainda ser popularmente chamado de ecoturismo, pode perder cada vez mais as ... torna-a distante do ... o turismo tornou-se

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