consideraçoes sobre o mentiroso

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  • Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 24 p. 181-188 janeiro/junho 2011 181

    CoNSIDERAES SoBRE o MENTIRoSo E o TEATRo MENoR DE JEAN CoCTEAU

    Alexandre Mendona

    Editado em 1955, o volume intitulado Thtre de poche [Teatro de bolso] rene uma srie bastante heterognea de textos curtos de Jean Cocteau. Trata-se de textos escritos em momentos diferentes de seu per-curso artstico para atender a fins variados, e somente ento apresenta-dos em conjunto. A encontram-se, por exemplo: um argumento para um ballet realista (Parade) realizado em colaborao com Picasso e Erik Satie, apresentado em 1917 pela companhia de Serge de Diaghi-lew, com coreografia de lonide Massine; as rubricas para uma farsa muda e musical (le boef sur le toit ou The nothing doing bar), ence-nada em 1920 sob direo do prprio autor; uma pea curta (lcole des veuves) baseada em um conto de Petrnio, encenada em 1936; um mnlogo (le bel indiffrent) uma cano falada, segundo o autor escrito para Edith Piaf e representado pela primeira vez em 1940; a letra de outra cano falada (Anna la bonne), feita desta vez para Mariane Oswald, com msica tambm assinada por Cocteau; um poema (le fils de lair), composto e recitado pelo autor para uma gravao fonogrfica. Essa lista de exemplos, apesar de incompleta, j d noo do quanto esse conjunto, que inclui ao todo quatorze escri-tos, pode ser considerado heterogneo. No curto prefcio escrito por Cocteau para a coletnea, ele deixa claro que a ideia de reunir todos esses textos no teria partido dele que teria atendido aos insistentes pedidos de um editor.

    No obstante a heterogeneidade do conjunto, a publicao de Thtre de poche passa a fazer com que paire sobre todos esses textos um mesmo ttulo e, com isso, um conceito. A esse respeito, no referido pre-fcio, Cocteau adverte: por teatro de bolso no se deve entender teatro que o leitor carrega no seu bolso, mas teatro menor e, de certo modo, simples pretexto para se fazer uma estrela brilhar sob um de seus ngu-

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    los menos conhecidos1. Ao utilizar provocativamente o termo menor, fora de seu sentido depreciativo, o autor aponta para uma experincia singular de criao que no se deixa pautar pelos grandes e reconhecveis modelos artsticos uma experincia que no estabelece relao de su-bordinao para com cdigos enrijecidos. Trata-se de trabalhar a partir de elementos pouco percebidos, mas nem por isso menos constitutivos de certa dramaticidade talvez uma dramaticidade apenas possvel, a ser (re)inventada. A valorizao das sutis variaes no movimento, o exerc-cio do improviso a partir de rubricas por vezes simples e abertas, a explo-rao da musicalidade insistentemente presente na palavra dramtica ou da dramaticidade presente na msica e no gesto sem palavras so alguns dos elementos que esses escritos chamados por Cocteau de textos pre-textos procuram isolar, colocar em foco e desenvolver.

    Para tanto, uma das estratgias a postas em jogo parece ser a de investir em certo embaralhamento das convencionais fronteiras entre as artes: reconduzir o texto potico-dramtico ao que teria se tornado o campo prprio da msica ou da dana; conceber a dana como poesia, ou torn-la outra pela proximidade com uma nova e emergente to-nalidade musical; contribuir para a inveno dessa outra musicalidade aproximando a msica das experincias modernas no campo da dana e da poesia. Em outras palavras, trata-se de dissolver os modelos em vigor, faz-los vibrar, entrar em estado de variao pelo contato com a alteri-dade. Enfim, se todos esses textos pretextos em algum sentido podem ser considerados teatrais, no porque neles se identifica o modelo de teatro que era feito sob a regncia de reconhecidas convenes, mas porque eles iluminam e libertam elementos ofuscados e aprisionados pelo prprio modelo.

    O pequeno texto cuja traduo aqui apresentada, le menteur/O mentiroso, integra um conjunto de cinco escritos curtos que, com a edio de Thtre de poche, recebem um tratamento especial em relao aos outros ali publicados. Eles surgem em sequncia, destacados dos demais, constituindo ao final uma seo (a nica do livro) intitulada Chansons e monologues. No deixa de ser curioso que haja no mes-mo volume outras peas musicais, ou aqueles textos que Cocteau no prefcio chama de canes faladas, ou ainda pelo menos outro texto

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    que poderia ser considerado um monlogo (le bel indiffrent) e que, no entanto, nenhum desses escritos esteja includo entre os qualifi-cados como canes e monlogos. Tambm curioso que no interior dessa seo no se distingam as canes dos monlogos, que os textos sejam tratados assim, como canes e monlogos indiferenciadamen-te, sugerindo a idia de certa hibridez como se em todos esses casos a musicalidade sofresse a interferncia da palavra dramtica e vice-versa, levando criao de um amlgama canomonlogo. Uma nota de edi-o includa aps a pgina que traz o ttulo da seo contribui para se esclarecer a singularidade da natureza desses escritos: estas canes e monlogos escritos para Jean Marais foram ditas pelo rdio, com acom-panhamento musical de Jean Wiener (p. 128). Diferentemente dos demais escritos includos no livro, aqueles reunidos nessa seo parte no foram originalmente levados ao palco, mas apresentados em trans-misso radiofnica, atravs da voz de um mesmo ator acompanhado por um mesmo msico solista.

    Essa informao j nos d alguma ideia sobre o que h em comum nos procedimentos especficos pelos quais Cocteau trabalha suas expe-rincias com uma dramaticidade menor atravs desses textos. Graas aliana com um meio de comunicao tipicamente moderno como o rdio, Cocteau se despoja do excesso de elementos que compem a tradio cnica, isola assim um elemento dramtico a materialidade sonora , concentra-se na voz de um nico ator, faz com que sobre ela intervenha a sonoridade musical produzida por um nico instrumen-tista, investe no improviso de uma outra sonoridade dramtica, convida todos ator, msico, ouvinte a perceber e explorar sutis variaes no campo sonoro eclipsadas pela grandiloquncia da cena convencional e, por assim dizer, ilumina o que nem sempre percebido, valoriza-do, exercitado. dessa base material, j protegidos da impostao e da afetao facilmente teatral, que emergem ento os textos das canes e monlogos, pelos quais se desenham situaes cnicas to simples quanto peculiares. Tendo como eixo preferencial a fala em primeira pes-soa, neles se desenvolvem tematizaes concentradas que colocam em evidncia aspectos muitas vezes imperceptveis na polifonia estridente de um drama.

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    A peculiaridade de O mentiroso em relao aos outros textos que compem a seo Chansons et monologues parece consistir em cha-mar a ateno para um gesto bastante explorado na arte moderna e radi-calizado na arte contempornea: a afirmao do artifcio, a positivao do artifcio que se assume e se ostenta como artifcio, da mentira que se declara mentira. Atravs do desenvolvimento de uma voz que inicia sua fala confessando que mente, que mente inevitavelmente, mesmo que involuntariamente, ou contra a sua vontade, Cocteau leva adiante a progresso dramtica e passa ao questionamento radical da legitimidade do lugar da autoridade de onde se julga em nome da verdade, toma a via que lhe permite conferir valor positivo mentira, destitui a verdade de seu valor positivo convencional, e acaba por embaralhar as fronteiras entre verdade e mentira sugerindo a efetiva ultrapassagem da oposio entre tais categorias: Eu sou, antes, uma mentira. Uma mentira que diz sempre a verdade (p. 135). Essa voz que se dirige diretamente ao ou-vinte da emisso radiofnica, ou ao leitor do texto impresso, nos incita a pensar na teatralidade que se dissimula em nossas relaes sociais, a pensar no paradoxal poder revelador do artifcio na arte: a mentira aco-lhida, aceita, assumida e ostentada na arte revela a natureza enganosa de tudo o que promove o efeito de verdade em nossas atuaes cotidianas.

    Aqui ressoa intensamente algo do Hamlet de Shakespeare, mais es-pecificamente a cena em que, por um truque metalingustico, a mentira teatral apresentada como arma capaz de desmascarar toda a trama que se oculta por trs das supostas verdades representadas no convencio-nal plano da realidade tambm encenado. Talvez O mentiroso de Cocteau cumpra o papel de iluminar esse poder prprio do teatro j apresentado na celebrada passagem do Hamlet que catalisa todas as aes que ali se sucedem. Talvez se possa mesmo interpretar O mentiroso como uma reescritura, como um desenvolvimento minimalista de um dos principais elementos dramticos que estruturam essa cena aquela que, de todo o Hamlet, talvez seja a mais interessasse para um artista moderno como Cocteau. Mas se essa maneira de conceber o paradoxal poder da arte aproxima O mentiroso de um tema presente no Hamlet, o modo explcito e ostensivo pelo qual essa tematizao se desenvolve, valendo-se por vezes de tiradas e raciocnios que aproximam o texto

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    potico-dramtico do texto filosfico, o traz de volta contemporanei-dade e o sintoniza diretamente com a obra de Nietzsche o autor que talvez tenha levado mais longe o projeto de ultrapassar a oposio entre verdade e mentira e, consequentemente, entre arte e filosofia. Tambm se poderia pensar aqui no Confidence-man, de Melville, publicado em 1857. Ou, ainda, no emblemtico filme de Orson Welles, F for fake, que j em 1972 se apresenta como referncia obrigatria para quem pretende pensar questes relativas falsidade na arte, em especial no campo das artes visuais e audiovisuais campo em que Cocteau tam-bm se atreveu a realizar suas experincias de dissoluo das fronteiras entre a verdade e a mentira (no esse o eixo central de seu ltimo filme, Le testament dOrfe?) e em que, hoje, cada vez mais se explora a suspenso dos limites que separariam o documental do ficcional. A gigantesca lista que elencaria obras contemporneas afinadas com O mentiroso seria uma boa indicao do interesse que a divulgao do registro escrito desse texto ainda pode despertar. Como sugere Cocteau, ao final de seu prefcio para a edio de Thtre de poche, pode ser que jovens leitores a encontrem algo com o que possam iluminar algum aspecto dramtico de sua personalidade (p. 7).

    * * *

    o MENTIRoSo | Jean Cocteau (Traduo do francs: Alexandre Mendona)

    Eu queria dizer a verdade. Eu gosto da verdade. Mas ela no gosta de mim. Eis a verdade verdadeira: a verdade no gosta de mim. To logo eu a pronuncie, ela muda de aparncia e se volta contra mim. Eu fico com ar de quem mente e todo mundo me olha enviesado. E, no entanto, eu sou simples e no gosto da mentira. Eu juro. A mentira sempre traz problemas terrveis e a gente tropea nos prprios ps e cai e todo o mundo debocha de voc. Se me perguntam alguma coisa, quero responder o que penso. Quero responder a verdade. A verdade me d comiches. Mas a eu no sei o que acontece. Sou tomado de angstia, de pavor, de medo de ser ridculo, e eu minto. Eu minto. No tem jeito. tarde demais para voltar atrs. Uma vez que se coloca um p na men-

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    tira preciso ir at o fim. E isso no nada cmodo, eu garanto. to fcil dizer a verdade. um luxo de preguioso. A gente tem certeza de que no vai se enganar depois e que no vai mais se aborrecer. A gente se aborrece ali, na hora, rpido, e depois tudo se resolve. Enquanto co-migo...! O diabo se intromete. A mentira no uma via ascendente. So montanhas russas que nos arrastam e que nos tiram o flego, que fazem o corao parar e nos do n na garganta.

    Se eu gosto, digo que no gosto e se eu no gosto, digo que gosto. E vocs imaginam o que se segue. Mais vale puxar o gatilho e acabar de vez com tudo. No! No adianta eu me doutrinar, me colocar diante do espelho e repetir: voc no vai mais mentir. Voc no vai mais mentir. Voc no vai mais mentir. Eu minto. Eu minto. Eu minto. Eu minto nas pequenas e nas grandes coisas. E se me acontece de dizer a verdade, uma vez, por acaso, para minha surpresa, ela se volta, se enrosca, se en-colhe, faz caretas e vira mentira. Os mnimos detalhes se aliam contra mim e provam que eu menti. E... no que eu seja frouxo... c com meus botes, eu sempre encontro o que deveria responder e imagino os truques que eu deveria usar. s ali, na hora, que eu fico paralisado e silencio. Me chamam de mentiroso e eu no dou um pio. Eu poderia responder: vocs mentem. No encontro foras para isso. Eu me deixo injuriar e morro de raiva. E essa raiva, que se acumula, que se amontoa em mim, que me d dio.

    Eu no sou mau. Eu sou at bom. Mas basta que me chamem de mentiroso para que o dio me sufoque. E eles tm razo. Eu sei que eles tm razo, que mereo os insultos. Mas vejam s. Eu no queria men-tir e no posso suportar que no compreendam que eu minto contra a minha vontade e que o diabo me impele. Ah! Eu vou mudar. Eu j mudei. No vou mais mentir. Eu vou encontrar um sistema para no mentir mais, para no viver mais na terrvel desordem da mentira. Um quarto desarrumado, fios de arame farpado na noite escura, corredores e corredores de sonho diriam. Eu vou me curar. Eu vou sair dessa. E, de resto, dou a vocs a prova. Aqui, em pblico me acuso dos meus crimes e ostento o meu vcio. E no saiam pensando que eu gosto de ostentar meu vcio e que minha franqueza justamente o cmulo do vcio. No, no. Tenho vergonha. Detesto minhas mentiras e iria at o

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    fim do mundo para no ser obrigado a fazer minha confisso. E vocs dizem a verdade? Vocs so dignos de me ouvir? Na verdade eu me acu-so e no me perguntei se o tribunal estava altura de me julgar, de me condenar, de me absolver.

    Vocs devem mentir! Vocs todos devem mentir, mentir sem parar e gostar de mentir e acreditar que no mentem. Vocs devem mentir para si mesmos. isso! J eu no minto para mim mesmo. J eu tenho a franqueza de confessar a mim mesmo que minto, que sou um men-tiroso. Vocs, vocs so uns frouxos. Vocs me escutam e dizem para vocs mesmos: que sujeitinho! E se aproveitam da minha franqueza para dissimular suas mentiras. Peguei vocs! Senhoras e senhores, sabem porque eu contei que eu mentia, que eu gostava da mentira? Isso no era verdade. Isso era s para fazer vocs carem em uma armadilha e para me dar conta, para compreender. Eu no minto. Eu no minto nunca. Detesto a mentira e a mentira me detesta. S menti para dizer a vocs que mentia.

    E agora eu vejo os seus rostos que se decompem. Cada um de vo-cs gostaria de sair do seu lugar e teme ser interpelado por mim.

    Madame, a senhora disse a seu marido que ontem foi costureira. Cavalheiro, o senhor disse a sua esposa que foi jantar com os amigos. falso. Falso. Falso. Atrevam-se a me desmentir. Atrevam-se a me replicar dizendo que eu minto. Atrevam-se a me chamar de mentiroso. Nin-gum se manifesta? Perfeito. Eu sabia a que recorrer. fcil acusar os outros. Fcil coloc-los em m situao. Vocs me dizem que eu minto e vocs mentem. admirvel. Eu no minto nunca. Ouviram? Nunca. E se acontece de eu mentir para prestar um servio, para no causar so-frimento, para evitar um drama. Mentiras piedosas. Inevitavelmente, preciso mentir. Mentir um pouco... uma vez ou outra. O que? Disseram alguma coisa? Ah! Acredito... no... porque... eu acharia estranho que me censurassem esse tipo de mentira. Vindo de vocs seria uma piada. De vocs que mentem para mim que no minto nunca.

    Vejamos, outro dia mas no, vocs no acreditariam em mim. De resto, a mentira... a mentira... fantstico. Me digam... imaginar um mundo irreal e torn-lo crvel mentir! verdade que a verdade tem seu peso e que ela me deixa boquiaberto. A verdade. As duas se equiva-

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    lem. Talvez a mentira prevalea... ainda que eu nunca minta. Hein? Eu menti? Certo. Eu menti dizendo a vocs que mentia. Eu menti dizendo a vocs que mentia ou dizendo a vocs que no mentia? Um mentiroso! Eu? No fundo j no sei mais. Eu mesmo me confundo. Que tempos estranhos! Eu sou um mentiroso? Eu pergunto a vocs? Sou, antes, uma mentira. Uma mentira que diz sempre a verdade.

    Notas

    1 COCTEAU, Jean. Thtre de poche. Mnaco: ditions Du Rocher, 2003. p 7. As prximas refe-rncias ao volume ao longo deste artigo sero seguidas da indicao das pginas correspondentes.

    Resumo Apresenta-se aqui um comentrio e uma traduo do texto de Jean Cocteau le men-teur, integrante da seo Chansons et mo-nologues do volume Thtre de poche (1955).

    Palavras-chaveJean Cocteau; Thtre de poche; O mentiro-so; teatro menor.

    Recebido para publicao em30/03/2011

    AbstractWe present here afew comments anda transla-tion of the text by Jean Cocteau le Menteur, included in the section Chansons et mono-logues of the book Thtre de poche (1955).

    KeywordsJean Cocteau; Thtre de poche; The liar;mi-nor theater.

    Aceito em18/05/2011