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Considerações linguísticas para uma análise da historiografia
e dos discursos fundantes do Brasil
Juliana Cecci Silva1
1
A imagem de Europa “civilizada” – sinônimo de fonte de educação e cultura que,
aliás, foi incutida no Brasil desde a sua colonização – é um efeito de sentido que sempre
esteve intimamente relacionado à ideologia do dominador, ideologia que, legitimada através
da materialidade discursiva2, produz e reproduz historicamente a compreensão (seja ela
mítica, científica, política, filosófica etc.) de nascimento, desenvolvimento e fixação dos
vernáculos pela escrita e, simultaneamente, a reflexão sobre a origem e o devir destes
desconsiderando a heterogeneidade constitutiva de cada nação em que o dominador se
ancora3; silenciando outros sentidos possíveis e desconsiderando que a identidade de cada
uma delas é constituída pela indissociável e complexa articulação entre todas aquelas
dimensões que fazem dela o que ela é, que a singulariza, tais como, e principalmente, sua(s)
língua(s), suas etnias, sua economia, suas ciências, sua história, sua(s) religião(ões), suas
instituições governamentais, seu espaço geográfico, seus costumes, seus mitos fundadores
etc.
Nesse sentido, e até porque estamos afinados com o a definição dicionarizada – o
pré-construído – de “identidade” como “conjunto de características que distinguem uma
pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la”4, entendemos que a
identidade de um povo é composta pelo conjunto de suas dimensões e que, dentre elas,
certamente a da língua, com suas diferentes especificidades decorrentes dos diversos níveis
de relação de força5, está entre os elementos que melhor “espelham” essa identidade (para
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Tradução da Universidade de Brasília (UnB); [email protected] 2 “O discurso é a materialidade específica da ideologia e a língua é a materialidade específica do discurso”
(ORLANDI, 2010, p.17). 3 Nas palavras de Auroux (2014, p. 76), trata-se de colocar em prática uma exotransferência (que é tecnológica e
cultural ao mesmo tempo) e uma exogramática, em vez de uma endotransferência e uma endogramática. De
qualquer modo, todos esses processos compõe a gramatização. 4 IDENTIDADE. In: Dicionário eletrônico HOUAISS da Língua Portuguesa, nov. 2009. 5 Poderíamos, para citar um exemplo clássico das questões da Sociolinguística e da Linguística Histórica que
ilustram essas relações de força (cuja ideia central também pode ser encontrada na Análise do Discurso, mas
numa diferente perspectiva, a partir de diferentes noções) chamar a atenção para a construção do status social a
partir da cultura dominante (cuja língua é invariavelmente de superstrato) sobre as dominadas (cujas línguas são
2
usar de uma expressão leibniziana)6, ou então, como já havia dito o fenomenólogo
Benveniste, que o pensamento, até certo ponto, é dependente da língua e se modela à sua
estrutura:
De mais, a conversão do pensamento em discurso se assujeita à estrutura
formal do idioma considerado, isto é, à organização tipológica que, segundo
a língua, faz predominar tanto o gramatical quanto o lexical. No entanto,
falando grosseiramente, o fato de que se pode “dizer a mesma coisa” numa
como noutra categoria de idiomas é a prova, por sua vez, da independência
relativa do pensamento e ao mesmo tempo de sua modelagem estreita na
estrutura linguística. (BENVENISTE, 2006, p. 233)
2
Esse fenômeno de “falta” de uma perspectiva científica da linguagem, mesmo na Nova
Historiografia Brasileira7, talvez esteja ligado ao fato de ser ela tão natural em nossas vidas
(tão natural como respirar!), que, se não cuidamos, até nos esquecemos da importância de
invariavelmente de substrato) (LUCCHESI, 2009; PAGOTTO, no prelo) 6 Referimo-nos ao filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) que no texto Brevis designatio
meditationum de originibus gentium ductis potissimum ex indiciis linguarum de 1710 - cujo trabalho
acreditamos ser a expressão maior da suas investigações linguístico-históricas – começa a desenvolver a sua tese
já nas primeiras linhas, quando diz: “visto que as origens dos povos [mais] remotos estão para além da História,
as línguas, em seu lugar, são os monumentos dos [povos] antigos […] A partir de então, facilmente
compreendemos que muitos vocábulos peculiares assumiram sua forma graças a séculos de trabalho de vários
povos, sobretudo quando o rude [povo] bárbaro possuía mais ímpeto do que razão e, conforme as ocasiões se
davam, transformava o sentimento em som; e deve ter sido [um trabalho] variado, já que tinha a alma [como
fonte] e, além disso, os próprios órgãos da fala, dos quais o uso não fora igualmente fácil para todas as nações.
(2012, p. 125 e 127, grifo do autor, tradução nossa), tese pré-anunciada em sua obra Nouveaux Essais sur
l’entendement humain, par l’auteur du système de l’harmonie préétablie (obra anterior, mas publicada
postumamente em 1765) quando afirma serem as línguas o “espelho do espírito humano”: “[...] je croie
véritablement que les langues sont le meilleur miroir de l’esprit humain, et qu’une analyse exacte de la
signification des mots ferait mieux connaître que toute autre chose les opérations de l’entendement.”. (1990
[livro III, cap. VII, § 6). Mais tarde, essa tese leibniziana será muito cara a Humboldt e a outros comparativistas
(cf. MATTOSO CÂMARA JR., 1979). 7 A Nova Historiografia Brasileira descende de um movimento intelectual surgido na França, na década de 1920,
cujas inovações metodológicas e temáticas, que incluíam essencialmente uma abordagem interdisciplinar na
produção do conhecimento histórico mediada pela visão do próprio tempo do historiador, foram reunidas na
Annales (Annales d’Histoire Économique et Sociale), revista liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre (cf.
Burke [1991] para maiores detalhes sobre a Annales). Ainda sobre a Nova Historiografia, o historiador francês
Jacques Le Goff (2003 p. 15, grifo do autor) nos dá a seguinte síntese: “Na atual renovação da ciência histórica –
que se acelera ao menos na sua difusão (o incremento essencial veio com a revista Annales, fundada por Bloch e
Febvre em 1929) –, uma nova concepção do tempo histórico desempenha um papel importante. A história seria
feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez
do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais importante seria o nível mais profundo das realidades
que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estruturas) – trata-se dos
níveis das ‘longas durações’”.
3
questionar seu funcionamento. É por causa dessa naturalidade, da qual todo ser humano
(independente de gênero, credo, raça etc.) é portador, que se tem o efeito de evidência dos
sentidos, que fica tácito que os sentidos e a sua produção são evidentes, homogêneos, claros,
acordados entre todos os seus falantes...
Mas, os recentes estudos das ciências da linguagem, principalmente os que se
colocam sob perspectivas que se ancoram no pressuposto de que os sentidos são construídos
historicamente – como é o caso, por exemplo, dos estudos da Análise do Discurso
pêcheuxtiana, da Semântica da Enunciação e de certas correntes da Sociolinguística
Variacionista e da Linguística Histórica8 – já provaram que não há nada de homogêneo e claro
na linguagem, mas que, ao contrário, o que há é uma perene transformação das línguas, dos
sentidos e de nós mesmos, os sujeitos da linguagem; no qual, através do jogo naturalmente
contraditório da linguagem, da sua inerente tessitura polissêmica, simbólica e de relações de
poder com a alteridade, o sujeito discursivo faz significar, mas é igualmente significado,
construído pela linguagem, pelo discurso, sempre em relação com as condições externas.
Então, se a investigação e a compreensão das questões referentes ao domínio
linguístico de uma nação, de uma comunidade linguística, são claramente importantes para
uma maior abertura no espaço de compreensão da identidade de seu povo, não seria lacunosa
uma História nacional que não estabelecesse um diálogo epistemológico com os diversos
estudos que, sob diferentes perspectivas, vêm abordando questões importantes para se
compreender a essência histórica e perene da linguagem? Questões que dizem respeito, por
exemplo:
aos modos de dominação/submissão operados na e pela língua;
à interferência dessas relações de força na língua em variações diatópicas e
diastráticas e os status construídos aí simultaneamente;
à importância das circunstâncias de produção e de circulação da
gramatização (produção dos instrumentos linguísticos) na construção da
identidade nacional;
8 Cf., dentre outros, a noção de “sedentarização linguística” em História econômica e formação do português
do brasil: o papel da sedentarização linguística. (PAGOTTO, no prelo) e a noção de “transmissão linguística
irregular” em O português afro-brasileiro (LUCHESI, 2009, p. 41-73).
4
aos modos de interação com e na língua por pessoas reais (que executam
variadas funções na vida econômico-social da sociedade colonialista) para
além da ideologia mercantil senhor/escravo, própria da compreensão
tradicional e homogeneizante da história do período colonial.
3
Partindo do pressuposto da Análise do Discurso de que a partir de um efeito
ideológico de transparência nossa “nacionalidade”, assim como ocorreu com as
“nacionalidades” europeias, tem sua identidade historicamente significada e ressignificada à
medida que as línguas faladas em solo brasileiro vão tomando corpo na e pela gramatização9
– instrumentalização linguística dirigida por uma reflexão que, até há poucas décadas, era
definitiva e determinantemente tomada pela angústia e pelo desejo etnocêntrico de identificar
a língua brasileira com a língua portuguesa, como se essa fosse uma “língua perfeita” 10 –
propomo-nos a, no sentido de corroborar nossa hipótese de que a Nova Historiografia e as
Ciências da Linguagem têm muito a ganhar na construção de um diálogo epistemológico
entre si, chamar a atenção para certas imagens e reflexões impactantes do Terra à Vista.
Discurso do confronto: velho e novo mundo (2008) de Eni P. Orlandi; livro em que a
autora, a partir da perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, pretende
descrever e analisar discursivamente a história do contato entre os índios e os brancos no
Brasil desde o século XVI, ou melhor, analisar os discursos (os relatos) produzidos pelos
9 A esse importante movimento metalinguístico no qual a reflexão sobre os vernáculos, e suas respectivas
escritas, é seguida da fixação destes, Sylvain Auroux chama de “instrumentalização linguística”; para ele, apenas
uma historiografia, fundada nos preceitos da Filosofia e das Ciências Humanas e Sociais (a qual só despontou no
início do século XIX) têm condições de compreender os desenvolvimentos dessa perene “revolução tecnológica
da gramatização”. Auroux explica que “por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e
a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber
metalinguístico: a gramática e o dicionário" (2014, p. 65). 10 Para uma outra interessante perspectiva da história das investigações linguísticas na Europa, da problemática
da protolíngua, sobretudo da adâmica, e de outras questões a isso relativas, aconselhamos a leitura de A busca
da língua perfeita, onde Umberto Eco analisa a história dessas incipientes nações em busca de uma língua
perfeita chamando a nossa atenção para as reais motivações que orquestram tais investigações: “A Europa inicia-
se com o nascimento das suas linguagens vernáculas, e pela reação, às vezes alarmada, a sua irrupção inicia a
cultura crítica da Europa, que enfrenta o drama da fragmentação das línguas e começa a refletir em torno do
próprio destino de civilização multilíngue. Embora sofrendo com o impacto, procura encontrar um remédio: quer
refazendo o seu caminho para trás, em busca da língua falada por Adão, quer para frente, tentando construir uma
língua da razão que possua a perfeição perdida da língua de Adão. (ECO, 2002, p. 38)
5
europeus brancos (portugueses, franceses... ) e neles encontrar as vozes apagadas, sufocadas
e deslocadas do índio; e essa empreitada, nessa perspectiva de análise, só pode ser feita a
partir de um deslocamento teórico crucial: em síntese, poderíamos dizer que o modo como
operam historicamente os “instrumentos” (articulações, processos) de produção de sentidos
no discurso e, consequentemente, seus efeitos são levados em conta. O resultado é que
(arriscamos dizer), ainda que não se verifique a consonância entre a Historiografia e as
demais Ciências da Linguagem nessa empreitada (exceto a AD), a autora já fornece ganchos
seguros para proporcionar, em outros trabalhos como esse, que ressignificam a História do
Brasil, diálogos com as outras Ciências da Linguagem.
4
A fim de situar em que pé se encontra mais especificamente a Nova Historiografia
Regional Brasileira, cito abaixo um trecho de Textos para a historiografia de Sergipe,
trecho em que a historiadora Diana Maria de Faro Leal Diniz, coordenadora dessa obra, faz
um alerta aos historiadores regionalistas no que diz respeito à necessidade de se debruçar
sobre as heterogeneidades (sociais, linguísticas, geográficas etc.), as diferenças, as
articulações, os movimentos:
Mesmo quando as novas tendências dos estudos históricos apontam agora
para a necessidade de recuperar a diferença inscrita na sociedade e no
espaço, a polissemia da realidade, os historiadores das regiões pouco se dão
conta de que a cobrança lhe diz respeito. A História regional é
manifestamente a expressão da heterogeneidade sócio-espacial e, nesse
sentido, qualquer História, de qualquer espaço, o é, até mesmo quando e
onde seus historiadores neguem que o seja.
Não se trata de um retorno ao passado, às Histórias/crônicas. Se estas
padeciam da ótica estreita dos “localismos” ou provincianismos ou
estadualismo, sem conseguir apreender as articulações internas e externas
dos respectivos espaços sobre os quais versavam, foram substituídas por
Histórias analíticas, que diluíram os espaços regionais diferenciados na ótica
desmesuradamente larga dos espaços hegemônicos e os constituíram como
territórios reflexivos dos últimos.
Uma nova História regional não poderá ser unidimensional nem negadora da
alteridade, em que o positivismo a converteu. Há de ser uma representação
de um certo espaço na multiplicidade de suas relações e articulações
econômicas, políticas, sociais, culturais etc. como um produto em produção
que especifica e singulariza o movimento de uma história mais geral,
nacional e/ou internacional. Há de ser nem simples cronologia desencarnada
6
de explicação, nem mera análise desencarnada de fatos, mas uma explicação
de fatos descritos em sua temporalidade social. (2013, p. 15-16)
A reflexão de Diniz vem de encontro à nossa reflexão e contribui para o
fortalecimento de nossa hipótese de que a Nova Historiografia Brasileira tem muito a trocar
com a Análise do Discurso, a Semântica da Enunciação e certas correntes da Linguística
Histórica e da Sociolinguística Variacionista, em cujos procedimentos teórico-metodológicos
– normalmente desenvolvidos em projetos e programas interdisciplinares mobilizados por
pesquisadores e docentes em todo o Brasil, tais como o História das Ideias Linguísticas (HIL)
e o Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB), para só citar dois – recortam e
acolhem corpora para descrição e análise, desenvolvendo trabalhos, sob diferentes
perspectivas, no âmbito da historicidade da linguagem e da sua relação simbólica e política
com a sociedade em seus outros domínios (economia, ciência, religião, política, costumes
etc.).
Verificamos em algumas obras da Historiografia Brasileira, mais especificamente
nas do Estado de Sergipe, a necessidade de acrescer uma abordagem definitivamente
linguística nesses trabalhos historiográficos; é mister assomar à nova historiografia aportes
teórico-metodológicos já desenvolvidos pelas Ciências da Linguagem que deem conta da
importância do domínio linguístico para a questão da identidade. E, como dissemos acima,
acreditamos que, na linha da construção de saberes realizados por projetos como o HIL e
PHPB11, seria um grande ganho para a Historiografia, seja nacional, seja regional, e de
fundamental importância para a compreensão da identidade de seu povo, que fosse colocada
em prática a articulação entre as atuais investigações sobre a linguagem – sob diferentes
perspectivas com viés histórico, isso é, desde que se afinem, quanto ao escopo, no que se
11 No Estado de Sergipe, o Projeto para a História do Português Brasileiro de Sergipe (PHPB-SE) é desenvolvido
pelo Grupo de Estudos Filológicos do Estado de Sergipe (GEFES) da Universidade Federal de Sergipe (UFS),
ele “articula-se com o projeto temático de âmbito nacional PHPB [Projeto para a História do Português
Brasileiro] com o objetivo de explicar a origem, a história e os rumos da constituição das variedades do
português em Sergipe. Para tanto, desdobra-se em dois objetivos gerais: (a) constituir corpora diacrônicos
representativos do português sergipano dos séculos XVII ao XX, oriundos de arquivos históricos, e (b) explorar
esses corpora em pesquisas sobre aspectos da realidade sócio-histórica de Sergipe e sobre a descrição linguística
pancrônica dessa variedade do português, do nível fonológico ao semântico-discursivo.” (Fonte:
https://gefesblog.wordpress.com/phpbse/).
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refere à linguagem como espaço de contradição, como processo histórico e simbólico de
produção de sentidos – com os saberes já adquiridos pela Nova Historiografia Regional.
E como isso poderia ser feito? Abaixo, sugerimos uma metodologia:
Numa 1ª etapa da pesquisa, a leitura historiográfica do historiador seria
problematizada a partir dos referenciais teóricos e analíticos indicados acima, isso é, o corpus
em questão seria descrito e analisado recorrendo não só à AD e à Semântica da Enunciação,
mas também àquelas correntes da Sociolinguística Variacionista e da Linguística Histórica,
separada ou conjuntamente, entendendo que podemos fazê-lo desde que tal consubstanciação
teórica e prática desses referenciais não fira os preceitos básicos de cada um deles e desnorteie
o sentido da pesquisa.
A análise deve cobrir, principalmente, o modo como se configura, se articula, o
efeito de evidência dos sentidos; em outras palavras, como se dá a produção e reprodução de
sentidos e os mecanismos, dispositivos, processos (tais como os apagamentos, os
silenciamentos, os deslizes, as faltas, as figuras etc.) usados nos mais variados aspectos dos
discursos históricos (próprio da posição de historiador e das condições externas que o cerca),
como, por exemplo, em suas opções por determinadas citações, referências (relatos, livros
clássicos, artigos recentes etc.), períodos históricos, personagens históricos, domínios de saber
(economia, política, cultura, geografia etc.), línguas (indígenas, africanas, portuguesas etc.),
dentre outros, em detrimento de outros. Essa análise, com o auxílio daquelas correntes
“materialistas” da Linguística Histórica e da Sociolinguística Variacionista, possibilitará uma
melhor compreensão do percurso de leitura dos historiadores, uma vez que compreenderemos,
dentre outros, com quais formações discursivas dialogam e até que ponto conseguem se
libertar da reprodução da tradição etnocêntrica da História que homogeneíza as identidades.
Na 2ª etapa, acreditamos que, após o obter os resultados daquela análise, após
adquirir um conhecimento mais profundo no que se refere às brechas, às lacunas deixadas
pelos historiadores no sentido de incluir o linguístico como componente essencial, pois
simbólico e histórico, para se compreender a identidade nacional ou regional, e após avaliar o
modo como articulam significativamente seus saberes (deslizes de sentido, silenciamentos
etc.), estaríamos aptos a delimitar e a organizar tais resultados e as questões de linguagem
possíveis de serem abordadas.
8
A 3ª etapa se caracterizaria pelo aperfeiçoamento quantitativo e qualitativo do
levantamento bibliográfico e institucional que já previamente teria sido feito. Inicialmente,
além de pesquisas aleatórias na internet para manter o “arquivo” aberto a contribuições
(sobretudo de artigos “quentinhos”), “exploraríamos” as fontes primárias e secundárias de
algumas instituições para ampliar a bibliografia da pesquisa.
E na 4ª, e última etapa, tendo já uma compreensão mais aprofundada da obra em
questão, do corpus, e dos demais trabalhos que pesquisamos em nosso levantamento,
estaríamos aptos a, finalmente, encetar úteis diálogos epistemológicos entre o que se tem feito
na Historiografia (nacional e regional) e os saberes das citadas perspectivas das ciências da
linguagem.
5
Quanto ao supracitado Programa História das Ideias Linguísticas no Brasil (HIL),
seu pressuposto teórico-metodológico é composto originalmente pelo diálogo da Análise de
Discurso pêcheuxtiana (AD) com o interdisciplinar e multinacional projeto de Sylvain Auroux
e equipe de uma enciclopédia crítica da História das Teorias Linguísticas12; despontado nos
anos 80 no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), esse programa de pesquisa desenvolve, desde então, e com a participação
interdisciplinar de pesquisadores de universidades nacionais e internacionais, projetos que
reúnem uma produção de conhecimento voltada para “uma” compreensão “brasileira” da
história linguístico-social da língua portuguesa no Brasil, da língua brasileira; escopo atingido
sobretudo pela determinação de seus pesquisadores em analisar os processos de significação
dos instrumentos linguísticos produzidos no Brasil.
Com essas interlocuções interdisciplinares, a HIL propõe fornecer “uma” lente
(dentre incontáveis lentes que podem existir) que dê “visibilidade” para os elementos e
processos articuladores da produção de sentidos dos discursos, inclusive aqueles que, sem
12 Tal enciclopédia histórica e crítica das ciências da linguagem é um compêndio de três volumes e resultou do
programa de mesmo nome, cujos integrantes, liderados pelo filósofo e linguista francês Sylvain Auroux
(departamento Histoire des Théories Linguistiques da Sorbonne Université Paris Diderot), formam um grupo de
pesquisas interdisciplinar e multinacional.
9
serem notados pelos sujeitos, apagam, silenciam, deslizam os sentidos nos mais variados
níveis de força dentro da ideologia.
A partir de uma das noções mais caras à AD, a de que os discursos são produzidos
por sujeitos interpelados pela ideologia, o HIL, junto com as apropriações e adaptações
tomadas de certas noções/conceitos das pesquisas lideradas por Auroux, fornece as
ferramentas para acessar os mecanismos ideológicos que existem na prática discursiva,
expondo suas articulações de produção de sentidos ao “desvelar ao nosso olhar” o véu de
evidência de transparência. Esse posicionamento se deve à recusa da ideia agregada à noção
de documento pelas abordagens tradicionais de análise em que esse objeto é considerado
pronto, acabado. Assim, o objeto do HIL não é o documento, uma vez que, assim como a AD,
esse programa considera falsa qualquer ideia de neutralidade no seu processo de significação;
o HIL trabalha com o discurso, mesmo que essa materialidade, qualquer que seja ela
(fotografia, ilustração, canção, poema etc.), nunca tenha sido retida pela abordagem histórica
tradicional como um documento, um testemunho legítimo do(s) fato(s) em questão, pois a
noção de arquivo que a AD coloca à disposição para esse programa está sempre aberto às
possíveis discursividades, mesmo àquelas que foram sufocadas desde sua origem13. Sendo
assim, na perspectiva do HIL, há sempre novas possibilidades de compreensão dos sentidos e
dos elementos e processos articuladores de sua produção.
6
E nesse contexto, em que discutimos a importância de se produzir um diálogo entre a
Nova Historiografia e as Ciências da Linguagem, gostaríamos de ressaltar a importância do
Terra à Vista de Eni P. Orlandi, livro que, se por um lado, foi nutrido pelas pesquisas
interdisciplinares do HIL (que ao longo dos anos vêm se enriquecendo com contribuições de
13 Nas bordagens tradicionais, o arquivo é fechado e os “textos” (em suas mais diversas materialidades, como
paratextos, fotos, ilustrações etc.) são documentos que foram categorizados historicamente como verdadeiros e
acabados. Na abordagem da AD e, consequentemente, na do HIL, o arquivo é aberto e não existem “textos”
meramente; todo texto é potencialmente um discurso no qual o analista deve se debruçar para tentar
compreender historicamente o funcionamento dos seus elementos e processos articuladores, como: as filiações
de sentidos, as condições de produção, o lugar de enunciação, o interdiscurso (memória discursiva), a formação
discursiva etc., para, nesse movimento, reestabelecer novos sentidos da trama discursiva: “[...] Os textos foram
historicamente categorizados como ‘documentos’ aqui tomados como discurso: lugar de significação, de
confronto de sentidos, de estabelecimento de identidades, de argumentação.” (ORLANDI, 1990, p.18).
10
outras áreas afins), foi e continua sendo uma referência substancial não só para os trabalhos
desenvolvidos no programa, mas também para trabalhos das Ciências Humanas e Sociais que
dialogam, em sentido amplo, com o aspecto polissêmico, ideológico, político, polêmico,
histórico e heterogêneo da linguagem, e, em um sentido mais restrito, com o discurso
fundador da colonização como lugar de instauração de sentidos que constroem a identidade
linguístico-social do brasileiro.
Gostaríamos de sinestesicamente chamar a atenção do leitor para o conteúdo
principal do Terra à Vista, como o fez de certa forma Orlandi no início de seu texto. Vamos
apelar para a sinestesia de duas imagens/memórias que são bastante férteis para ilustrar não só
o tema do livro expresso metaforicamente pelo “─ Terra à Vista”, em seu título, mas também
a perspectiva do HIL. A primeira imagem/memória é provocada com a leitura de um trecho
do livro O Prazer do Texto do filósofo francês Roland Barthes:
Texto quer dizer 'tecido'; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se
conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos
agora, no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através
de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa textura – o
sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas
secreções construtivas da sua teia. (1987, p. 81-82, grifo nosso)
Quanto à segunda imagem/memória, essa está diretamente ligada ao enunciado
inaugural, ao discurso fundante do Brasil... imagem/memória que nos acompanha desde os
primeiros anos escolares:
“─ Terra à vista!”
E daí, fica a pergunta: ─ Que terra é essa? Até onde ela se estende? O que há nela?
Esse enunciado “─ Terra à vista!”, ainda mais com a colaboração sugestiva das fotos
ou ilustrações que acompanham o enunciado em nossa memória, faz-nos pensar no alcance
limitado da visão, não é mesmo? Esse enunciado (diga-se de passagem, um pré-construído),
ainda mais com o auxílio da imagem, faz-nos pensar em quanto confiamos em nossa visão;
parece que pela visão podemos nos apropriar da coisa vista ou de algo sobre ela, não é?
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Assim, e na esperança de termos conseguido direcionar a sua “visão” para “dilatar”
essa sua percepção, poderíamos dizer que a “visão” poderia ser uma metáfora para a noção de
“perspectiva”? E assim, “veja” você: “perspectiva”, seja no sentido corriqueiro, seja no
sentido original, seja no derivado, relaciona-se com as ideias envoltas em expressões como
“ponto de vista”, “ótica”, “vista ao longe, até onde os olhos alcançam”, “horizonte”,
“configuração externa”, “técnica de representação tridimensional que possibilita a ilusão de
espessura e profundidade das figuras”, “forma ou aparência sob a qual algo se apresenta”;
aliás, em latim medieval, perspectiva, ae é parte da Óptica.
Já está com a “vista dilatada”? Então, voltemos aos sentidos de “ver” em “─ Terra à
vista!”, para os quais Orlandi quer chamar a atenção:
[...] ‘Ver’ tem um sentido bem específico nesse contexto: o que é visto ganha
estatuto de existência. Ver, tornar visível, é forma de apropriação. O que o
olhar abarca é o que se torna ao alcance das mãos. O visível (o descoberto) é
o preâmbulo do legível: conhecido, relatado, codificado. (ORLANDI, 2008,
p. 17)
E, assim, fazendo desse pré-construído o enunciado inaugural, o discurso fundador
do Brasil, a perspectiva do olhar europeu silencia a nossa origem e nos estabelece como
sujeito cultural apagando os aspectos histórico-políticos.
Sob essa “perspectiva”, podemos dizer que é um grande problema original acreditar
que com a simples “visão” conseguimos abarcar o todo do objeto que está à nossa mira com
seus detalhes e movimentos; na verdade, a nossa “visão” sempre é condicionada a diversos
fatores (internos e externos); só conseguimos ver uma parte do objeto e, dependendo da
distância (da diferença!) que temos do objeto, sequer conseguimos ver que há complexidades,
movimentos.
A partir dessas sensações e reflexões, sugeridas primeiro a partir da imagem de
“texto” que temos em Barthes e depois pelos limites da noção de “visão/ perspectiva” (e, para
tanto, apoiando-me no enunciado fundante do Brasil seguido da orientação que a
análise/“visão” de Orlandi nos traz sobre tal discurso), acredito que o foco para a
compreensão do alcance da perspectiva do HIL e de seu objeto, o discurso, foi determinado.
Discurso que, quer como objeto do HIL, quer como da AD, é um lugar de contradição, assim
como refere Barthes ao falar da complexa tessitura textual... lugar onde o sentido é
12
considerado, a um só tempo, como produto (acabado, pronto) e como representação de um
processo contínuo e heterogêneo (heteróclito); pois, se como diz Orlandi, “o visível (o
descoberto) é o preâmbulo do legível: conhecido, relatado, codificado”, o invisível, isso é,
tudo aquilo que não está ao alcance dos olhos, também significa, também produz sentidos.
Seguindo nessa trilha, nessa corda-bamba que procura apreender o visível e o
invisível, o dito e o não-dito, o político (isso é, as lutas de força antagônicas que subjazem à
produção de sentidos), enfim, o funcionamento contraditório das práticas discursivas, o HIL é
o primeiro programa acadêmico que reúne trabalhos que empreendem reflexões relacionadas
à História da produção de conhecimento linguístico (metalinguístico) no Brasil.
7
Portanto, podemos dizer, à guisa de conclusão, que o livro Terra à Vista, além de
fornecer ganchos para esse diálogo entre a Nova Historiografia e as citadas Ciências da
Linguagem, oportuniza reflexões sobre a dimensão político-ideológica (que, como vimos,
necessariamente inclui a linguagem) subjacente à concepção de brasileiro pelos brasileiros,
abordando a questão da “sobrevivência” do índio face ao apagamento; apagamento que foi
instituído de diversas formas pelo discurso colonialista do século XVI e que foi perpetuado
pelos discursos imediatamente posteriores, os quais foram e são produzidos pela permanência
da ideologia eurocêntrica (ou logocêntrica, como diria Derrida [1996]), travestida de diversas
formas.
Referências Bibliográficas
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cultura política na construção do império brasileiro, Sergipe (1750 – 1831). São Paulo:
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