contextualização sócio-político-cultural de seis obras de ... · por motivo de ser difícil,...

97
Instituto Politécnico de Lisboa Escola Superior de Música de Lisboa Contextualização Sócio-Político-Cultural de Seis Obras de Rachmaninov, Scriabin e Prokofiev Ivan Kuznyetsov Mestrado em Música 15 de Outubro de 2012 Professor Orientador: Miguel Henriques

Upload: others

Post on 10-Oct-2019

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Instituto Politécnico de Lisboa

Escola Superior de Música de

Lisboa

Contextualização Sócio-Político-Cultural de Seis

Obras de Rachmaninov, Scriabin e Prokofiev

Ivan Kuznyetsov

Mestrado em Música

15 de Outubro de 2012

Professor Orientador: Miguel Henriques

Agradecimentos

Queria agradecer ao meu Orientador, Prof. Miguel Henriques, pelo seu apoio, paciência e

conselhos. E também à minha família que sempre me encorajou, inspirou e facilitou de todas

as maneiras possíveis a minha vida, para eu poder concentrar-me nesta tese.

2

Resumo

É feita uma contextualização sócio-político-cultural de determinadas obras

para piano de três compositores – Sergei Rachmaninov, Alexander Scriabin e

Sergei Prokofiev – que representam três aspectos distintos da música

pianística Russa no século XX. As suas obras são vistas sobre o fundo da

tradição musical russa, os eventos históricos marcantes bem como tendências

culturais gerais que de uma forma ou outra as influenciaram. São fornecidos

exemplos musicais comentados, que ilustram algumas dessas influências. É

referida a percepção da obra dos compositores em contextos diferentes. No

fim é feita uma generalização, traçando as principais diferenças e pontos em

comum entre os compositores.

Palavras-chave: Rachmaninov, Scriabin, Prokofiev, contexto socio-cultural

Abstract

A survey is made of the social, political and cultural context of given piano

works by three composers – Sergei Rachmaninov, Alexander Scriabin and

Sergei Prokofiev – representative of three different aspects in the XX century

Russian piano music. Their works are viewed over the background of Russian

musical tradition, significant historical events as well as general cultural

tendencies that in one way or another affected them. Commented musical

examples, that illustrate some of those tendencies, are supplied. The

perception of the works of the composers in different contexts is referred to.

In the end a generalization is made, in which it is shown the main differences

and similarities between the composers.

Key-words: Rachmaninov, Scriabin, Prokofiev, social, cultural, context

3

Índice

Resumo 3

Abstract 3

Lista de Figuras 5

I. Introdução 9

II. Contexto Histórico 11

Os Antecedentes: Século.XIX 11

A Transição dos Séculos: A Música

e a Arte no Período até a Revolução de 1917 14

III. Sergei Rachmaninov 18

Contextualização Biográfica dos Prelúdios e Etudes-Tableaux 18

Identificação de Traços Estilísticos específicos para Música Russa do Princípio do Séc. XX 23

Análise Crítica Das Influências Dos Factores Sócio-Político-Culturais

Na Obra Do Compositor Do Período Pré-Revolucionário 33

IV. Alexander Scriabin

Scriabin no Contexto Cultural da Idade de Prata 38

Percepções da Obra de Scriabin 47

Contextualização da Sonata nº5 50

V. Contexto Histórico 65

O Período Soviético 65

VI. Sergei Prokofiev 70

Prokofiev no contexto político do Realismo Socialista 70

Contextualização da Sonata nº 8 77

VII. Conclusão 93

Bibliografia 944

Lista de Figuras

Exemplo 1: Rachmaninov – Prelúdio nº5, op.23 cc. 1-3 24

Exemplo 2: Rachmaninov – Prelúdio nº10, op.32 cc. 1 24

Exemplo 3:Rachmaninov – Étude-tableau nº8, op. 33 c.1 24

Exemplo 4: Rachmaninov – Prelúdio nº5, op. 23 cc. 35-41 25

Exemplo 5: Rachmaninov – Prelúdio nº1, op. 32 cc. 1-2 25

Exemplo 6: Rachmaninov – Prelúdio nº1, op. 32 cc. 5-8 26

Exemplo 7: Rachmaninov – Prelúdio nº7, op. 23 cc. 17-25 26

Exemplo 8: Rachmaninov – Étude-tableau nº7, op. 39 cc.44-53 27

Exemplo 9: Rachmaninov – Étude-tableau nº4, op. 39 cc. 41-43 28

Exemplo 10: Rachmaninov – Étude-tableau nº7, op. 39 cc. 82-89 28

Exemplo 11: Rachmaninov – Étude-tableau nº5, op. 33 c. 5 29

Exemplo 12: Rachmaninov – Étude-tableau nº8, op. 33 c. 40 29

Exemplo 13: Rachmaninov – Étude-tableau nº4, op. 39 c.6 29

Exemplo 14: Rachmaninov – Étude-tableau nº6, op. 39 c. 9 29

Exemplo 15: Rachmaninov – Étude-tableau nº5, op. 33 cc. 11-13 30

Exemplo 16: Rachmaninov – Étude-tableau nº4, op. 39 cc. 1-6 30

Exemplo 17: Rachmaninov – Étude-tableau nº6, op. 39 cc. 53-58 30

Exemplo 18: Rachmaninov – Étude-tableau nº7, op. 39 cc. 89-94 31

Exemplo 19: Rachmaninov – Étude-tableau nº6, op. 33 cc. 24-30 31

Exemplo 20: Rachmaninov – Prelúdio nº1, op. 32 cc.21-23 32

Exemplo 21: Rachmaninov – Étude-tableau nº6, op. 33 cc. 12-13 32

5

Exemplo 22: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 1-3 52

Exemplo 23: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 9-12 53

Exemplo 24: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 13-20 53

Exemplo 25: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 34-46 54

Exemplo 26: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 47-51 54

Exemplo 27: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 96-97 55

Exemplo 28: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 98-99 55

Exemplo 29: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 114-115 55

Exemplo 30: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 120-123 56

Exemplo 31: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 140-152 57

Exemplo 32: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 157-165 57

Exemplo 33: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 166-171 58

Exemplo 34: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 185-196 58

Exemplo 35: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 239-242 58

Exemplo 36: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 247-254 59

Exemplo 37: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 263-266 59

Exemplo 38: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 271-273 60

Exemplo 39: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 281-284 60

Exemplo 40: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 289-293 60

Exemplo 41: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 305-308 61

Exemplo 42: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 313-315 61

Exemplo 43: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 329-334 61

6

Exemplo 44: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 401-410 62

Exemplo 45: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 417-420 62

Exemplo 46: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 433-438 63

Exemplo 47: Scriabin – Sonata nº5, op. 53 cc. 441-456 64

Exemplo 48: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc.1-9 80

Exemplo 49: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 22-25 81

Exemplo 50: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 61.63 81

Exemplo 60: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 84-89 82

Exemplo 61: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 90-91 82

Exemplo 62: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 141-144 82

Exemplo 63: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And c.169 83

Exemplo 64: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And c.173 83

Exemplo 65: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And c. 177 83

Exemplo 66: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 183-187 83

Exemplo 67: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 196-206 84

Exemplo 68: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 259.260 84

Exemplo 69: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 261-262 85

Exemplo 70: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 281-282 85

Exemplo 71: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 1º And cc. 293-297 85

Exemplo 72: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 2º And cc.1-8 86

Exemplo 73: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 2º And cc. 35-38 87

Exemplo 74: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 2º And cc. 66-67 87

7

Exemplo 75: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc.1-8 88

Exemplo 76: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc. 42-45 88

Exemplo 77: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc.107-124 89

Exemplo 78: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc. 194-198 89

Exemplo 79: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc.225-228 90

Exemplo 80: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc. 248-251 90

Exemplo 81: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc.289-296 90

Exemplo 82: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc.343-345 91

Exemplo 83: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc. 474-479 91

Exemplo 84: Prokofiev – Sonata nº8, op. 84, 3º And cc. 483-489 92

8

I. Introdução

O presente trabalho faz parte de um projecto artístico cuja outra componente é um recital

de piano. O programa do recital é o seguinte:

Sergei Rachmaninov (1873-1943): Prelúdios op. 23. Nos. 5 e 7; op. 32 nos. 1 e 10

Études-Tableaux op. 33 nos. 5, 6, 8; op. 39 nos. 4,6,7

Alexander Scriabin (1872-1915): Sonata nº5, op. 53

Sergei Prokofiev (1891-1953): Sonata nº 8, op. 84

O objectivo do trabalho consiste em relacionar as mencionadas obras com o seu respectivo

contexto sócio-político-cultural e tentar perceber a sua significância percepcionada aquando

da sua escrita. O interesse de traçar estas relações, quando existirem, tem a ver com a

importância musical dessas obras, o seu lugar na literatura pianística mundial, e também

com o impacto que os eventos contemporâneos das obras tiveram no curso da história tanto

na Rússia como no mundo. Além disso, os três compositores representam três tipos de

personalidade e três caminhos estéticos completamente diferentes que têm lugar no séc.

XX, cada um deixando a sua influência na música posterior. Os factores que contribuíram

para essas diferenças estavam de uma ou de outra maneira presentes no ambiente que os

rodeava.

Por motivo de ser difícil, por vezes, encontrar ligações directas entre obras isoladas e o seu

contexto, estas obras serão enquadradas nas tendências mais gerais da obra do compositor.

Devido ao facto de abordar três compositores diferentes, torna-se inconveniente apresentar

uma única secção de Revisão Bibliográfica, pelo que esta é incorporada na contextualização.

Pelo mesmo motivo e de acordo com a particularidade de cada compositor as secções são

organizadas de maneiras ligeiramente diferentes.

Em geral, a informação biográfica é usada selectivamente quando tem relevância para a

contextualização das obras.

9

Este trabalho não pretende ser exaustivo nem aprofundado na sua exploração do tema,

dada a complexidade deste. Pretende sim relacionar algumas das diferentes perspectivas

existentes, contribuindo para um quadro novo e mais abrangente do contexto da obra dos

referidos compositores.

Dada a natureza do proposto objectivo, é usada a análise de documentos existentes. Para

evitar a parcialidade na escolha dos documentos analisados, são usadas três tipos de fontes:

os documentos autobiográficos dos compositores, livros e artigos de musicólogos russos

(maioritariamente soviéticos), e livros e artigos de musicólogos ocidentais entre os quais

revisionistas da história musical russa. A maioria das fontes primárias, relativas aos

compositores são citadas em fontes secundárias. Além dessas, são usadas fontes não

relacionadas com música para a contextualização geral.

Na musicologia ocidental há uma recente tendência que procura afastar-se do paradigma da

historiografia musical baseada na análise estilística e formal da obra musical. Consciente das

limitações desta abordagem quando aplicada a outras tradições, esta nova tendência avança

uma análise da obra em todos os seus contextos. Aplicada em parte pela escola revisionista

da música russa, essa abordagem parece a mais adequada para o presente trabalho.

São traçadas influências culturais, sociais e políticas, bem como aspectos estilísticos que

ilustrem alguma delas, sendo estes exemplificados com excertos musicais.

10

II. Contexto Histórico

Os Antecedentes: Século XIX

Antes de abordar as obras e as suas respectivas épocas, é importante perceber os

antecedentes históricos da música erudita na Rússia.

Dada a sua posição geográfica entre Europa e Asia, a Rússia esteve desde sempre no

cruzamento de influências, permanecendo simultaneamente à margem das grandes

civilizações. Essa natureza dual e por vezes contraditória constitui uma característica peculiar

da cultura russa. O processo de ocidentalização do país, iniciado por Pedro o Grande no séc.

XVIII, começou desde a sua implementação a deparar-se com resistência nalguns segmentos

da população. O século XIX viu uma série de acontecimentos de magnitude nacional – a

vitória sobre o exército napoleónico em 1812, a supressão violenta da revolta Dezembrista

em 1825 – que obrigaram os russos a reavaliar a importância e o significado histórico do seu

país, a natureza da sua identidade nacional e o rumo do seu desenvolvimento futuro.

Entre 1826 e 1831 Petr Chaadaev escreveu as suas Cartas Filosóficas que eram altamente

críticas da posição histórica da Rússia no mundo. Considerava o país socialmente retrógrado

e intelectualmente isolado, e apelava a uma reconstrução da sua identidade baseada na

asserção do indivíduo e na troca livre de ideias, à semelhança da cultura Ocidental. Com

base nas suas ideias surge na inteligentsia russa o debate público entre duas facções: os

eslavófilos e os ocidentalistas. Ambos tinham a sua própria agenda para a utopia social, e

queriam reformas sociais urgentes. Embora não houvesse uma linha distinta entre os dois

campos havendo toda uma gradação de posições ideológicas e políticas pelo meio, podemos

referir as ideias fundamentais geralmente associadas a cada um deles.

Os eslavófilos queriam cortar todas as influências estrangeiras e regressar às tradições

idealizadas do passado. Isto não significa necessariamente que os sucessos do

desenvolvimento ocidental não eram valorizados; contudo não eram considerados aplicáveis

à realidade russa. Frisavam os seguintes conceitos tradicionais como sendo essenciais para

identidade nacional: sobornost – uma espécie de colectivismo solidário que pressupõe a

supressão do individualismo para o bem comum, o misticismo religioso por oposição ao

11

racionalismo Ocidental, a importância central da Igreja Ortodoxa e do Czar autocrata

(embora houvesse outras posições quanto ao tipo de governo) e a missão messiânica da

Rússia no papel da salvadora espiritual da humanidade.

Os ocidentalistas queriam que a Rússia moldasse o seu desenvolvimento segundo o modelo

da Europa Ocidental. Promoviam o progresso tecnológico e a industrialização, uma

sociedade à base de leis, o individualismo e o racionalismo.

É importante salientar que durante este período, a esmagadora maioria da população russa

era rural e vivia organizada em comunidades de camponeses que trabalhavam para os

senhorios. Os camponeses, especialmente aqueles que estavam na servidão, viviam em

condições miseráveis e eram severamente oprimidos pelo sistema social desde o estado até

os senhorios, o que alimentava o descontentamento geral. O povo comum era um tema

central no debate entre os eslavófilos e os ocidentalistas: os primeiros viam nele a essência

da identidade nacional, narodnost (povo), à qual se devia regressar; os segundos

condenavam a sua exploração injusta e viam a sua emancipação como um passo

fundamental para a liberalização da sociedade.

A problemática da identidade nacional contribui para um verdadeiro renascimento nas artes.

A necessidade da nação em definir-se culturalmente como uma entidade válida e auto-

suficiente em relação ao Ocidente, cria, em pouco tempo, toda uma tradição nas artes, com

características únicas e que, em retrospectiva, constituiu um contributo de peso para a

cultura mundial.

É neste contexto que se forma o primeiro movimento artístico intrinsecamente nacional – o

Realismo Russo – que terá um impacto duradouro na concepção e crítica da arte na Rússia.

Segundo esta estética o valor da arte depende sobretudo da sua relação com a realidade

social (incluindo os seus aspectos negativos – crítica social), e da sua capacidade utilitária –

de contribuir para a educação moral/espiritual/ intelectual da sociedade e para a construção

da identidade nacional.

Na literatura este movimento representa a Idade de Ouro, com gigantes tais como Turgenev,

Dostoevsky, Tolstoi e Chehov entre outros. O estilo realista consistia numa descrição

detalhada, mas não hiperbolizada, de personagens e do seu meio, de modo a enquadrá-los

12

numa realidade palpável, com todas as suas contingências e limitações, com a qual os

leitores pudessem identificar facilmente. Tal não impedia escritores como Tolstoi e

Dostoievski de projectar os seus ideais filosóficos e religiosos para as suas obras. Antes pelo

contrário: dava-lhes uma encarnação prática credível. A par da realidade social, a

personalidade humana também era alvo de exploração literária. Nesse aspecto, o Realismo

era um conceito abrangente que incluía uma variedade de abordagens.

Na música aparece a escola nacionalista, cujo fundador é considerado M. Glinka. A sua

importância consiste em ter conseguido, pela primeira vez, criar um idioma musical que

tinha um carácter próprio que de certo modo incorporava elementos do povo, mas ao

mesmo tempo uma complexidade e sofisticação que podiam competir com a produção

musical europeia.

Esta estilização da realidade popular é um elemento, entre outros, que constitui a

peculiaridade e originalidade do realismo russo, e que traçará a sua presença ao longo de

toda a sua história até ao período soviético inclusive.

É a escola nacionalista dos Cinco, em S. Petersburgo, que juntamente com o seu principal

advogado e propagandista Vladimir Stasov, estabelece a cultivação de um estilo nacional

com referências ao canto e temas populares como um padrão para a música russa. Este

paradigma será depois reciclado na musicologia ocidental, criando uma visão distorcida e

limitadora da música russa. A verdade é que a definição do que constituía “boa” música

russa, até mesmo para os nacionalistas, não era uma questão linear e fixa, e abrangia vários

factores, um dos principais sendo a própria qualidade da escrita. Stasov, por exemplo, falava

na capacidade programática da música (Orlova, 1979, p. 277), referindo-se à sua

correspondência com o conteúdo – um conceito que na prática é flexível quanto à sua

interpretação.

Com Tchaikovsky e outros depois dele o conceito da música russa foi tornado mais

abrangente. Tchaikovsky trouxe consigo o domínio da música instrumental, a sinfonia, bem

como a exploração dos elementos trágico, psicológico e lírico que passaram a ser

características definidoras do estilo russo.

13

A Transição dos Séculos:

A Música e a Arte no Período até A Revolução de 1917

Os Prelúdios e os Études-tableaux de Rachmaninov tal como a Sonata nº5 de Scriabin foram

escritos no período imediatamente anterior à revolução de 1917. Os primeiros anos do séc.

XX viram as obras de várias gerações de compositores. Além das obras orquestrais de

Scriabin e Rachmaninov, temos as últimas obras dos nacionalistas Rimsky-Korsakov e

Balakirev, as sinfonias de Taneev e Glazunov conhecidos pela sua orientação mais

cosmopolita e pelo seu domínio formal e contrapontístico, mais tarde as grandes suites

orquestrais de Prokofiev e Stravinsky. Em particular, as óperas deste período de Rimsky-

Korsakov – “Kaschei” (1902) e “Galo Dourado”(1907) – continham uma crítica implícita da

monarquia e eram percepcionadas como tal.

Orlova (1979, p. 302) divide este período estilisticamente em três partes:

1) Antes da revolução de 1905-1907, quando tudo o que há de melhor e de mais

progressivo na arte reflecte a atmosfera cada vez mais intensa do movimento

revolucionário;

2) Depois da supressão da revolução, quando na arte começam a transparecer

sentimentos de alarme, confusão, desilusão. O pensamento estético da decadence

baseado numa filosofia idealista tem o seu ponto alto nesta altura.

3) Novo renascer de forças, a partir de 1913-1914, com ânimos rebeldes e enérgicos de

Prokofiev e Stravinsky. Aparecem novas formas de retrato e crítica social na música.

Socialmente, este foi um período de transição conturbado. Na passagem dos sécs. XIX-XX,

cresce o descontentamento geral com a vigente ordem económica e social. A abolição oficial

da servidão em 1861 não alterou o status quo na prática: os camponeses que foram

libertados continuavam presos às suas terras até pagarem a dívida, e eram abusivamente

explorados pelos patrões. Isto fez com que a população se revoltasse em várias ocasiões um

pouco por todo o país, sendo violentamente reprimida.

14

A ira social e os apelos às reformas foram escalando, intensificadas pela fome de 1891 e pela

recusa do czar Nicolau II de implementar novas liberalizações políticas. Um acontecimento

histórico que marcou a véspera da revolução foi a derrota humilhante do exército russo

frente ao Japão, em 1904, que minou a sua reputação como a força que suportava o regime

czarista. Por esta altura a maior parte da população estava profundamente antagonizada ao

poder autocrático e via a única saída na queda deste, o que esteve na origem da revolução

de 1905-1907.

Após a emancipação dos servos, o conflito entre eslavófilos e ocidentalistas na intelligentsia

russa deixou de existir como tal. No seu lugar apareceram outros movimentos, conhecidos

colectivamente como Populistas, que também promoviam o conceito de sobornost e

regresso ao modo de vida comunal da Rússia rural. Influenciados pelas ideias socialistas e

anarquistas eles viam na comuna uma estrutura social pronta para a sua aplicação. Os

grupos mais radicais não hesitavam em por as ideias em prática, promovendo actos

terroristas e incitando a população rural a revoltar-se. Em 1881, membros da organização

Narodnaia Volia assassinaram o czar Alexandre II. Em resposta , Alexandre III aplicou

medidas repressivas sobre a população, levando à extinção da organização. Por esta altura

os partidos políticos de oposição inspirados em Populistas começam a ganhar proeminência.

Entre os partidos mais radicais – aqueles que acreditavam numa revolução mais ou menos

violenta – estavam os partidos de camponeses surgem os de trabalhadores. Estes dois,

juntamente com os liberais formarão a principal força política antigovernamental durante as

revoluções de 1905 e 1917.

Orlova (p. 299) descreve da seguinte maneira o ambiente social na altura:

“O desenvolvimento do capital do mercado e das finanças coexiste com

uma gestão de terras muito retrógrada. A capitalização da actividade agrária

é lenta e cria problemas económicos para o país. Além disso há uma

crescente dependência do capital estrangeiro. Todos estes factores

contribuem para agudizar as contradições sociais e ideológicas, o que se

reflecte na cultura e na arte.”

A autora faz questão de diferenciar duas correntes distintas de inconformismo social. Dum

lado estava a luta do proletariado pelo socialismo; doutro – a burguesia e a aristocracia com

15

as suas inclinações liberais e democráticas. A maioria dos artistas fazia parte do 2º grupo e,

como tal, estava isolada da realidade da vida dos trabalhadores. Com isto, Orlova justifica a

ausência de uma relação directa entre os ânimos revolucionários na sociedade e a produção

artística do período.

A nível das tendências gerais na arte, sobretudo na literatura e pintura , esta época

enquadra-se na chamada Idade de Prata que a abrange o período entre sensivelmente 1890

e 1917. É um período caracterizado por muita experimentação artística e tentativas de

integração de conceitos contrastantes. Marca-se por uma estética de oposição consciente ao

Realismo artístico – o Simbolismo. Posições tais como o positivismo e o racionalismo

científico são vistas como pondo em causa todo o sistema de valores tradicionais, o que leva

a uma procura do ideal, místico, irracional (Wetzel, 2009). O individualismo do artista é

levado ao extremo, na tentativa de separar-se da sociedade e da realidade objectiva e fugir

para um mundo idealizado. Esta fase é chamada Decadence (embora este termo seja

também pejorativamente associado a todo o Simbolismo) e tem influências da filosofia de

Schopenhauer e Nietzsche.

Surge um novo interesse pelo passado: as ideias tradicionais tais como sobornost e o

messianismo ganham nova vida nos escritos do filósofo e poeta Vladimir Soloviev. A sua

ideia da divinização do homem também tem uma grande expansão. A arte começa a ser

vista como tendo uma missão transformadora. Viacheslav Ivanov, também filósofo e poeta,

propõe um tipo de teatro interactivo em que as várias artes se fundem num evento quase

ritualístico. Em geral, esta tendência para a síntese manifesta-se a vários níveis durante o

Simbolismo.

Como resultado da popularidade das ideias simbolistas, cria-se uma nova escola de crítica

artística, que promove o valor estético independente da arte (em contraste com a estética

realista que valorizava a dimensão social e utilitária da arte). Contudo, contrastando com o

fundo dos acontecimentos sociais revolucionários que estavam a envolver cada vez maior

parte da população, o carácter demasiado distante e isolado da realidade do simbolismo fez

com que este desse lugar aos estilos modernistas das primeiras décadas do séc. XX.

16

Vários musicólogos soviéticos utilizam expressões do tipo “tensão pré- tempestade” (Orlova,

Danilevich) para descrever o sentimento generalizado de aproximação de mudanças

cataclísmicas que, independentemente da sua natureza, iriam transformar por completo a

existência das pessoas.

Os ânimos apocalípticos estão reflectidos na literatura simbolista da altura. Blok no seu

poema “Vingança” fala das “mudanças nunca antes vistas”, exigidas pelo sangue da terra

(Danilevich, p. 263). Andrei Beliy, influenciado pelas ideias filósofico-místicas de Vladimir

Soloviov, escreve numa carta pública: “Já começou, soaram os chamamentos dos trompetes,

o fim do mundo está perto, bate à porta. Estás a espera?”(ibid., p. 264). Havia quem visse no

futuro que se aproximava uma “libertação, exaltação da grande vontade”, como foi o caso

de Briusov que via a revolução pendente como uma renovação social, dando origem a uma

nova “tribo misteriosa” (ibid., p. 265). Do lado oposto estava Vyacheslav Ivanov (poeta que,

se não teve uma influência em Scriabin, que era seu conhecido, certamente partilhou muitas

das ideias deste) que, também optimista, via uma renovação mística, com revelações

divinas, que iria trazer uma “sociedade comunal [sobornoe]” e transformar espiritualmente a

humanidade inteira – o conceito de teurgia.

Contudo, segundo Danilevich, a maioria da intelligentsia simbolista desta época conturbada

não conseguia encontrar razões para qualquer tipo de utopia, ou esperança sequer, caindo

num pessimismo e fatalismo profundos. “Ó morte! Só te vejo a ti”, - exclamava F. Sologub.

Balmont nos versos de “Pântano”, “Espíritos da Praga” reproduzia imagens de um mundo

(pós-)apocalíptico em que “sapos pretos…andam num coro ameaçador” e “à porta das

pessoas batem a morte, a aniquilação, o medo” (ibid. p. 266).

Embora esta época seja normalmente associada ao Simbolismo, a verdade é que o Realismo

teve nela uma continuação directa desde século XIX, influenciando depois, em grande

medida, a estética soviética. Esta tendência é representada sobretudo por Maxim Gorki, e de

certa maneira Chekhov. Nas suas peças teatrais tardias (“Três Irmãs”, “Jardim das

Cerejeiras”) Chekhov, sendo um crítico social astuto, capta a ânsia do tempo, cristalizando-a

em elementos simbólicos subtis nos ambientes e nas falas dos personagens. Em contraste

com o misticismo dos simbolistas, a sua visão das mudanças para vir era sobretudo social.

17

III. Sergei Rachmaninov

Contextualização Biográfica dos Prelúdios e Etudes-Tableaux

Os Prelúdios op. 23 foram compostos entre 1901 (o Prelúdio nº 5 em Sol menor) e 1903 (os

restantes 9). Em 1900, Rachmaninov tinha completado com sucesso a terapia com o

neurologista e psiquiatra reconhecido Nikolai Dahl visando remediar a crise criativa do

compositor. No verão do mesmo ano Rachmaninov, juntamente com o seu amigo Fiodor

Chaliapin (o famoso baixo operático), tinha assistido a muitas peças de Anton Chekhov,

durante uma viagem a Yalta, no mar Negro (Bertensson&Leyda, 2001, p.83). Um conto de

Chekhov, “No Caminho” (Na Puti), já tinha servido de inspiração para o poema sinfónico “O

Rochedo” em 1893. Após uma viagem, pouco feliz, pela Europa, Rachmaninov regressou à

Rússia com um novo ressurgir de criatividade que, começando com o 2º concerto para

piano, gerou uma série de peças entre as quais o Prelúdio em Sol menor.

No espaço de quase dois anos entre a sua composição e a dos restantes prelúdios do opus,

Rachmaninov terá casado e feito uma viagem de lua de mel pela Europa, tendo regressado à

casa de campo da família em Ivanovka no Verão de 1902. Em Outubro, o casal mudou-se

para Moscovo, onde entre Outubro e Fevereiro foram compostos mais 3 prelúdios do opus

(Bertensson&Leyda, 2001, p.100). Os restantes seriam compostos no Verão de 1903, em

Ivanovka.

Embora haja quem defenda que os Prelúdios op.23 foram escritos por Rachmaninov por

questões financeiras (Glover, 2003, p. 16), não deixa de ser um facto largamente aceite que

estes representam o melhor do seu contributo para a música de piano solo (Leonard, 1968,

p.238). Os prelúdios exploram uma variedade de imagens e caracteres musicais,

representados de uma forma tematicamente concisa. De facto, os prelúdios foram

comparados a poemas sinfónicos (tone poems) em miniatura (Norris, 1993, p.84). Imagens

da natureza russa são evocadas nalguns prelúdios. A sua importância deriva também das

novas e diversificadas formas do tratamento da textura e dos engenhos pianísticos usados

pelo compositor (Harrison, 2006).

18

Os Prelúdios op. 32 foram escritos em 1910, no ano a seguir ao 3º Concerto para piano. Na

véspera de 1909, Rachmaninov escreveu ao amigo Slonov: “Eu envelheci terrivelmente.

Estou muito cansado e terrivelmente assustado que em breve vou para o Diabo”

(Bertensson&Leyda, 2001, p. 155).

Entretanto os Koussevitski’s, tomaram o lugar de Beliaev como os principais mecenas da

nova música russa, fundando uma editora musical. Rachmaninov, sendo já uma figura

respeitada no meio musical russo e amigo de Serge Koussevitski, foi convidado a tomar lugar

no quadro de conselheiros para escolher compositores e obras a serem publicadas. A

natureza deste cargo permitiu a Rachmaninov conhecer uma grande parte da produção

musical russa mais recente, embora devido ao seu gosto conservador acabasse por rejeitar

muitas das obras – entre elas as do jovem Prokofiev (Bertensson&Leyda, 2001, p.196).

Após a nomeação, Rachmaninov parte para uma tournée de concertos na América, com

concertos também no regresso à Rússia.

No verão de 1910, Rachmaninov regressa à propriedade familiar em Ivanovka, onde escreve

a sua grande obra religiosa “Liturgia de São João Crisóstomo” e os Prelúdios op.32.

Rachmaninov parece inicialmente ter tido dificuldades na escrita dos prelúdios. Escreve ao

seu amigo Nikita Morozov a 31 de Julho:

“Acabei a Liturgia[…] Já há muito tempo (desde o tempo de Monna Vanna)

que não tinha composto algo com tanto prazer. E é isto. Além disto, tudo

são desejos e boas intenções. Pior que tudo vai o negócio das pequenas

peças para piano. Não gosto de fazer isto e é sempre difícil para mim. Nem

beleza, nem prazer.”(citado em Bertensson&Leyda, 2001, p.168)

Não obstante, passado pouco menos de um mês, o compositor mais do que superou o

bloqueio criativo visto que o opus inteiro foi escrito num período de 19 dias.

O crítico Yuri Engel escreveu:

19

“Os Prelúdios de Rachmaninov (…) tendem, de uma forma geral, para um tratamento sólido

e muitas vezes polifónico, uma estrutura ampla, ou para contrastes claros entre secções

musicalmente independentes…” (citado em Bertensson&Leyda, 2001, p. 175)

Engel elogia ainda o desenvolvimento natural da “ideia musical” no Prelúdio-marcha em sol

menor, ao mesmo tempo que critica o op.32 nº 10 em Si menor pela razão oposta – o

motivo inicial, para ele, não justifica o seu expansivo desenvolvimento.

Este último prelúdio (subtitulado O Regresso em referência à sua inspiração no quadro

homónimo do artista suíço Arnold Bochlin) foi posteriormente considerado por alguns

(Norris, 1993, p. 84) como possivelmente o melhor dos 24 pela sua coesão estrutural,

baseada no dito motivo inicial, bem como pela sua intensidade emocional.

Há os que considerem haver uma unidade estilística entre o op. 23 e o 32, apesar do

intervalo de 7 anos (Glover, 2003, p. 16). Contudo, neste último, há uma experimentação

com harmonias novas e dissonâncias, maior ênfase nas figuras rítmicas, e uma menor

dependência do lirismo melódico, que começa a dar lugar a construções texturais

elaboradas – traços que indicam o caminho para a linguagem dos Études-tableaux op.33.

Os Études-tableaux op. 33 foram escritos no verão do ano seguinte, também em Ivanovka,

depois do ano de tournées pela Europa e Rússia. Como o próprio título indica, as peças

implicam associações extra-musicais visuais. É quase certo que Rachmaninov tinha imagens

concretas em mente quando os compôs, visto que, quando em 1930 Ottorino Respighi quis

orquestrar 5 dos estudos, o compositor revelou as respectivas imagens por detrás dos

mesmos.

Relativamente a dois dos estudos que dizem respeito a este projecto artístico, disse o

seguinte: “O segundo Estudo em Lá menor [Op. 39, nº6] foi inspirado no conto do

Capuchinho Vermelho e o Lobo.” Elaborou ainda sobre o “programa” do Estudo nº7, op. 39:

“Este estudo é uma marcha fúnebre …O tema inicial é uma marcha; o outro

tema representa o canto do coro. A partir da parte do movimento das

semicolcheias em Do menor e depois em Mi bemol menor, uma chuva fina

é sugerida, incessante e desesperada. Este movimento desenvolve-se

20

culminando em Dó menor – o soar dos sinos da igreja. O Final regressa ao

tema inicial, uma marcha” (citado em Bertensson&Leyda, 2001, p. 263)

Os Estudos receberam atitudes mistas, com um crítico da London Times a implicar que a

técnica e a facilidade de composição de Rachmaninov impedem-no de produzir algo de

verdadeiramente genial que fique para a posterioridade (Bertensson&Leyda, 2001, p. 173).

É de referir que a ordem inicial dos estudos foi diferente da publicada hoje em dia.

Inicialmente, Rachmaninov escreveu 9 estudos do op. 33, dos quais apenas 6 foram

publicados em 1914. Dos restantes 3 estudos, um foi retirado, revisto e incorporado no

op.39 como o nº 6 em Lá menor; os outros dois foram publicados postumamente em 1948

(Norris, 1993, p. 84). O Estudo hoje conhecido como o nº5 em Ré menor do op.33 é um

destes estudos póstumos.

Entretanto, em 1914 a Rússia envolve-se na 1ª Guerra Mundial. A falta de suporte logístico

e de uma estratégia bem definida – resultado da incompetência, intriga e corrupção nas

instâncias mais altas – fez com que após alguns sucessos iniciais, o exército russo fosse

forçado a recuar dos territórios conquistados com elevado número de baixas e prisioneiros.

Para agravar a situação, a economia doméstica estava a sofrer com a militarização da

indústria e as infra-estruturas deficientes ou danificadas pela guerra causavam falhas no

transporte de alimentos. Protestos e greves de trabalhadores irrompiam por todo o lado. Os

bolcheviques, engenhosamente, conseguem jogar com o antagonismo social, transformando

a “guerra imperialista numa guerra civil” (Orlova, 1979, p. 317)

Durante a guerra, Rachmaninov torna-se ainda mais anti-social e deprimido. O medo da

morte assombrava-o. (Bertensson&Leyda, 2001, p.198). A maioria dos Estudos op. 39 foram

compostos no outono de 1916, após o regresso das férias no Cáucaso, onde esteve num

sanatório e tratar da saúde, e antes de começar a sua temporada de concertos em Moscovo.

Estes estudos marcam uma nova fase na escrita de Rachmaninov. Há por um lado uma

procura de elementos novos e desconhecidos, e por outro – uma supressão consciente de

certos traços característicos da sua linguagem. Sendo escritos um ano depois da morte de

Scriabin, há quem encontre influências do seu estilo na escrita mais dissonante e cromática

21

do op. 39 (Walker, 1984, p. 80). Tudo isto não podia deixar de ser reconhecido pelos críticos.

A Russkaya Muzikalnaya Gazeta escrevia:

“Nos Études op. 39, Rachmaninov aparece numa nova luz. O lírico terno começa a empregar

um modo de expressão mais severo, concentrado e profundo.[…]Certas mudanças

significantes tiveram lugar neste interessante talento criativo…” (citado em

Bertensson&Leyda, 2001, p. 201)

De facto, dos prelúdios para os estudos, nota-se a tendência para uma maior cristalização da

ideia musical, isto é, para criar um carácter musical muito distinto e completo usando o

mínimo de recursos. O compositor escreve sobre os estudos: “(eles) apresentaram muito

mais problemas que uma sinfonia ou um concerto… afinal, dizer aquilo que se tem para

dizer, e fazê-lo de uma forma breve, lúcida, e sem circunlocução continua a ser o problema

mais difícil que um artista criativo enfrenta”(citado em Glover, 2003, p. 35).

O estado emocional de Rachmaninov nesta altura transparece no opus, através do seu

carácter sombrio e do uso do motivo Dies Irae em nada menos que 8 dos estudos. Engel

escreve: “Um novo sentimento paira suspenso sobre todo o opus... em lado algum

encontramos alegria, calma, facilidade.” (Bertensson&Leyda, 2001, p.202)

Em Fevereiro de 1917 começaram os protestos – contra o governo, contra a guerra.

Rachmaninov deu uma série de concertos de caridade em várias cidades. Em Setembro, a

família regressa ao Moscovo onde Rachmaninov se ocupa da revisão do 1º Concerto,

impossibilitado de exercer qualquer actividade musical. Escreve:

“Estava tão absorvido no meu trabalho que não notei o que se passava à

minha volta. Consequentemente, a vida durante a revolta anárquica, que

transformava a existência do não-proletário num inferno na terra, foi

relativamente fácil para mim. Passava o dia sentado a escrever ou ao piano,

sem me preocupar com o barulho das metralhadoras e disparos das

espingardas” (citado em Leonard, 1968, pp. 243-4)

Rachmaninov apercebia-se da gravidade da situação, como ilustram a suas palavras

proféticas: “Assim que percebi melhor os homens que controlavam o destino do nosso povo

e do país inteiro, vi com uma clareza terrível que aqui estava o início do fim – um fim cheio

22

de horrores cuja ocorrência era apenas uma questão de tempo” (citado em MacDonald,

2001) Imediatamente o compositor começa a procurar maneiras de sair do país. Uma

oportunidade apresenta-se na forma de uma digressão de concertos em Estocolmo.

Rachmaninov aproveita e parte juntamente com a família para nunca mais voltar.

Identificação de Traços Estilísticos específicos para Música Russa do Princípio

do Séc. XX

Orlova (1979, pp. 308-9), sumarizando as características da música russa em geral, no

período inicial do séc. XX, refere as seguintes:

1.Mudança na forma de organização do tematismo musical – microtematismo.

2.Maior complexidade do pensamento modal e consequentemente uma mudança cardinal

na construção intervalar na verticalidade harmónica.

3.Maior importância do ritmo e do timbre na criação da imagem/carácter musical;

4.Reforço do papel da polifonia.

1.Micro-tematismo é um termo aparentemente exclusivo à musicologia soviética e refere-se

aos casos em que pequenas células iniciais – que podem ser sub-motivos ou até intervalos

(Ruchievskaya, citada em Skaftymova, 1973, p. 116) – servem de base para todo o posterior

desenvolvimento musical. Norris, por exemplo, fala da “técnica de construção de uma peça a

partir de minúsculos fragmentos melódicos ou rítmicos” de Rachmaninov (1993, p. 84)

Skatymova identifica o micro-tematismo como um dos principais tipos de tematismo em

Rachmaninov, o outro sendo tematismo expansivo “do tipo onda”.

Os melhor exemplos do micro-tematismo nos Prelúdios serão sem dúvida o nº5 op.23 em

Sol menor e o nº 10 op.32 em Si menor.

23

O Prelúdio em Sol menor, combina ainda os dois tipos de tematismo que são explorados nas

secções marcadamente contrastantes. Motivo rítmico inicial forma a base temática das

secções exteriores, conferindo-lhes também o seu carácter marcial:

Prelúdio nº5, op.23 cc. 1-3

O prelúdio nº10 op.32 é talvez o que melhor ilustra o conceito de micro-tematismo, pois o

motivo ritmo-melódico inicial forma sua unidade estrutural.

Prelúdio nº10, op.32 c.1

Étude-tableau nº8 op.33 é notavelmente estático harmonicamente, sendo o seu

desenvolvimento basicamente um jogo de manipulação de texturas sobre algum dos 3

elementos presentes no motivo rítmico inicial.

Étude-tableau nº8, op.33 c.1

24

O elemento lírico-vocal também é de grande relevo em Rachmaninov. O próprio compositor

dizia que a melodia era “a base principal de toda a música” (Skaftymova, 1973, p.103). Visto

dentro do contexto do realismo musical russo, esta afirmação ilustra a importância dada à

música como um meio de comunicação das vivências humanas, sendo a melodia o elemento

que mais se assemelha ao discurso humano.

A secção central do prelúdio n5 op.23

Prelúdio nº5, op. 23 cc. 35-41

No prelúdio nº1 op.32, duas ideias contrastantes – uma mais activa e rítmica outra mais

lírica – formam a base temática da peça. É um exemplo típico do tematismo do “tipo onda”,

com a sua subida gradual e quebra depois da culminação.

Prelúdio nº1, op. 32 cc. 1-2

25

Prelúdio nº1, op.32 cc. 5-8

Outro tipo do tematismo “tipo onda” é aquele que só tem a segunda parte – a da descida

Ex. 7

Prelúdio nº7, op.23 cc. 17-25

26

Étude-tableau nº7, op. 39 cc. 44-53 (mão esquerda)

Entre os elementos que estão na origem do melos de Rachmaninov, Skaftymova fala da

canção popular rural e urbana, da romança russa e do canto solene da igreja. Contudo estes

elementos estão normalmente presentes de uma forma indirecta, mais como uma

sonoridade característica. Será talvez esta ausência de material explicitamente popular que

levou alguns a classificar Rachmaninov como um ecléctico, académico e cosmopolita com

influências ocidentais cuja música possui pouco ou nenhum carácter russo – narodnost

(Leonard, 1968).

27

2.Um caso que ilustra a construção harmónica modal pode ser uma inserção brusca de

harmonias tonalmente distantes, baseada na lógica modal do movimento horizontal das

vozes, como nos seguintes dois exemplos.

Étude-tableau nº4, op. 39 cc. 41-43

Étude-tableau nº7, op. 39 cc. 82-89

28

3.O elemento rítmico constitui um recurso importante da dramaturgia de Rachmaninov.

Característicos do compositor são os ritmos impulsionadores, que impõem uma direcção à

música, e que se traduzem normalmente por uma figuração de semicolcheias a “intrometer-

se” no meio de, ou “quebrar” um grupo de colcheias.

Étude-tableau nº5, op. 33 c. 5

Étude-tableau nº8, op. 33 c. 40

Étude.tableau nº4, op. 39 c. 6

Étude-tableau nº6, op. 39 c. 9

29

Outro traço rítmico de Rachmaninov são as métricas irregulares. Frases e motivos que

“atravessam” a barra de compasso, evocando a flexibilidade e espontaneidade do canto

popular ou solene.

Étude-tableau nº5, op. 33 cc. 11-13

Étude-tableau nº4, op. 39 cc. 1-6

Étude-tableau nº 6, op. 39 cc. 53-58

30

Étude-tableau nº7, op. 39 cc. 89-94

A peça que melhor ilustra a exploração dos efeitos texturais e tímbricos será talvez o Etude-

tableau nº6 op.33, que usa a totalidade do registo do instrumento.

Étude-tableau nº6, op. 33 cc. 24-30

31

4.A polifonia é um elemento omnipresente na música de Rachmaninov. Aparece tanto nos

movimentos das vozes das suas construções acórdicas como na sobreposição de várias

melodias, podendo ainda ter um papel quase textural, quando uma ou mais vozes criam

uma camada de movimento agitado como um “fundo” para as linhas melódicas das outras

vozes.

Prelúdio nº1, op. 32 cc. 21-23

Étude-tableau nº6, op. 33 cc. 12-13

32

Análise Crítica Das Influências Dos Factores Sócio-Político Culturais Na Obra

Do Compositor Do Período Pré-Revolucionário

Embora Rachmaninov, como representante da intelligentsia aristocrática, sempre se tenha

oposto ao novo regime, sendo após a sua emigração condenado pelo estado soviético como

um anti-revolucionário, a sua obra foi gradualmente ganhando reconhecimento. Em parte

tal se deveu ao esforço dos musicólogos soviéticos (entre os quais Boris Asafiev, o

musicólogo oficial do estado durante Estaline, e outros a seguir dele, principalmente Orlova),

em reabilitar os grandes compositores do passado. Para conseguir isso tinha-se de alguma

forma “justificar” a música desses compositores dentro do paradigma do realismo socialista.

Isto implicava, entre outras coisas, que a sua música tinha de estar de acordo, de alguma

maneira, com a ideologia revolucionária. Daí os frequentes exemplos de obras que reflectem

os “ânimos” e as “tendências” das massas, especialmente no que respeita ao período

precedente à revolução de 1917. Obviamente, este facto só por si não invalida a

possibilidade de os compositores de alguma forma (mesmo inconscientemente) sentirem e

incorporarem elementos do zeitgeist nas suas obras, se bem este tipo de relações e a sua

extensão devem ser vistas com algum cepticismo.

Rachmaninov provem de uma família de descendência aristocrática, proprietários de terra, e

sempre circulou primariamente nas esferas do mundo da intelligentsia russa. Estudou,

primeiro no conservatório de S. Petersburgo e depois no de Moscovo, que acabou com

distinção, integrando-se gradualmente no milieu artístico de Moscovo, como compositor,

pianista e condutor. Por isso será seguro afirmar que Rachmaninov durante a sua vida e

actividade musical em Moscovo teve pouco ou nenhum contacto com a vida dos

trabalhadores ou camponeses, o que é confirmado pela ausência de referências a tal nas

suas cartas e afirmações registadas.

Aqui é preciso referir que a localidade onde a família Rachmaninov tinha a sua casa e em que

Sergei nasceu e passou o início da sua infância – Oneg – era predominantemente uma zona

rural. Além disso é provável que os Rachmaninov, como a maioria das famílias com

propriedade, tivessem servos camponeses. É portanto plausível que Rachmaninov tivesse

33

absorvido elementos das canções populares, estando rodeado por este ambiente durante a

sua infância, elementos esses que depois incorporaria intuitivamente no seu estilo musical.

Isto não contraria o facto de o Rachmaninov-artista ser sobretudo um produto da

intelligentsia russa do período da transição dos séculos.

Vejamos então de que modo a música de Rachmaninov foi influenciada pelas ideias do meio

artístico e literário, que por sua vez estavam a captar os sinais de mudanças na sociedade.

Orlova, salvaguardando que a “maioria dos artistas da época talvez não tinha a consciência

concreta das tendências sociais mais recentes, sentindo-as de forma mais intuitiva” (p. 300),

fala, no caso de Rachmaninov, de “uma notável intensificação do papel da esfera lírica nas

suas diversas formas, o que constitui um traço característico daquela época” e que “no fim

do séc. XIX-início do séc. XX, Rachmaninov compôs um número de obras que reflectiam o

ambiente emocional dos anos pré-revolucionários”, entre as quais alguns dos prelúdios (p.

312-3). Entre os elementos expressivos principais da sua obra destaca a “sensação de

despertar primaveril”1 (referência à cantata “Primavera” 1902) e a necessidade de transmitir

os seus sentimentos.

Vejamos se o próprio compositor reconhecia essa reflexão nas suas obras. Nas suas cartas,

Rachmaninov fala de assuntos tais como problemas e dificuldades pessoais, a composição e

as tournées pelo estrangeiro que o compositor fazia quase todos os anos. Nelas não se

demarca qualquer posição política e as referências à revolução são breves e superficiais. Está

claro que era praticamente inevitável Rachmaninov dar de caras com situações que

estivessem directamente relacionadas com a dura realidade social. Serov, V. I. (citado em

Leonard p. 233, 1957) descreve o tipo de situação que podia irromper durante um concerto

no teatro: “Era suficiente alguém durante a performance gritar ´Abaixo a monarquia!` para

transformar o teatro inteiro num campo de batalha onde chapéus, sobretudos, guarda-

chuvas, e galochas voavam pelo ar….” Os artistas e trabalhadores do teatro estavam

activamente empenhados na luta pela reforma social, participando em greves e outras

formas de protesto (ibid). Rachmaninov, contudo, fazia os possíveis para se distanciar de

1 O “despertar primaveril” aqui associa-se obviamente às expectativas gerais de um mundo novo e melhor,

que a revolução iria trazer.34

tudo isto. Por outras palavras, ele vivia sobretudo no seu próprio mundo interior que era o

mundo da música – “Sou 85% músico e apenas 15% pessoa” dizia ele.

Parece que a concepção artística geral do compositor já estava formada por esta altura

(princípio do séc. XX): A imagem de uma Rússia idealizada (mas não ideal), talvez uma

memória guardada das impressões vividas na infância, está na base de inspiração de toda a

sua música. As raízes desta estética e visão do mundo estão mais ligadas à cultura russa da

2ª metade do séc. XIX. O realismo psicológico (Chekhov, Dostoievsky, Tolstoi) que, na sua

procura do inexprimível carácter russo, explorava as nuances e imperfeições da condição

humana ao mesmo tempo que transmitia uma aura grandiosa e quase espiritual à terra

russa, está sempre presente na estética rachmaninoviana. Esta não tem, contudo, o

elemento épico-mitológico do romantismo nacionalista nem as utopias místicas do

simbolismo. É um romantismo realista, por assim dizer, que valoriza o domínio do emocional

e do subjectivo sem se dar aos extremos. Neste aspecto, será talvez Chekhov o escritor mais

próximo de Rachmaninov. Chekhov conseguia criar aquilo que Wimsatt chama de realismo

poético (Borny, 2006, p.86), em que situações e eventos aparentemente simples e triviais

adquiriam um segundo significado mais profundo e elevado.

Como tal, o estilo de escrita de Rachmaninov está baseado nesta estética: evitando, por um

lado, influências populares directas, a sua música, contém sempre referências à paisagem

russa. Por outro lado a sua capacidade de evocar uma variedade de caracteres e estados

psicológicos muito específicos, que reflectem, nas palavras de Rachmaninov “a soma total

das experiências do compositor”2, acaba por ser também ela “inevitavelmente influenciada”3

2 “Music, I have always felt, should be the expression of a composer’s complex personality. A composer’s musicshould express the country of his birth, his love affairs, his religion, the books that have influenced him, thepictures that he loves. It should be the sum total of a composer’s experiences" (Bertensson&Leyda, 2001, pp.368-9)

3 “I am a Russian composer, and the land of my birth has inevitably influenced my temperament andoutlook. My music is the product of my temperament, and so it is Russian Music. I never consciouslyattempt to write Russian music; or any other kind of music, for that matter. I have been strongly influencedby Tchaikovsky and Rimsky-Korsakov, but I have never consciously imitated anybody. I try to make mymusic speak simply and directly that which is in my heart at the time I am composing. If there is love there,or bitterness, or sadness, or religion, these moods become part of my music, and it becomes eitherbeautiful or bitter or sad or religious. For music is as much a part of my living as breathing and eating. Icompose music because I must give expression to my feeling, just as I talk because I must give utterance tomy thoughts” (Ewen, 1961, p. 314)

35

pelo seu país de nascimento. A título de exemplo ilustrativo servem excertos da resposta de

Rachmaninov a Yasser (em 1935) sobre as influências da canção popular e do canto litúrgico

na escrita do tema do 3º Concerto para piano: “Assim, não procurei atribuir nem um

carácter de canção popular nem um carácter litúrgico a este tema… escreveu-se facilmente e

simplesmente… Ao mesmo tempo tenho consciência de que este tema, involuntariamente,

adquiriu um carácter folclorístico ou ritual” (Bertensson&Leyda, 2001, p. 312)

Constatamos então que tanto ideologicamente (imagem da velha Rússia pastoral) como

esteticamente (romantismo realista) Rachmaninov estava virado para o passado. O próprio

percurso estilístico da sua obra revela uma evolução orgânica, sugerindo que o compositor

sempre se guiou pelo mesmo paradigma. As suas buscas criativas não consistiam da procura

de uma nova linguagem per se, mas sim de exprimir de uma forma mais genuína possível as

ideias que lhe iam surgindo intuitivamente, ideias essas que por norma tinham origem extra-

musical: “Eu tento fazer com que a minha música comunique simplesmente e directamente

aquilo que está na minha alma no momento em que estou a compor” (Ewen, 1961)

Sendo assim, a sua influência por ou interacção com novas tendências artísticas era limitada

a elementos que não contrariassem os seus próprios princípios estéticos. Por exemplo,

sendo alheio ao subjectivismo místico ou apocalipsismo dos simbolistas, havia certos

elementos do simbolismo que lhe eram próximos, o que explica o uso de textos de poetas

simbolistas tais como Balmont, Sologub, Merezhkovsky, e da sua amiga Marietta Shaginyan,

para as suas canções. Um desses elementos é o pessimismo existencial que no caso de

Rachmaninov foi aliado a um medo irracional da morte. “É impossível viver sabendo que se

tem que morrer no fim. Como é que se pode suportar o pensamento de morrer?” – tinha

dito à Marieta Shaginyan em 1916. Será talvez esse elemento sombrio que o atrai nos

quadros do pintor simbolista Arnold Bochlin, que alegadamente inspiraram muitos dos

prelúdios e Etudes-Tableaux.

Na música, este medo tem a sua manifestação concreta no uso obsessivo do motivo Dies

Irae, de uma maneira geral, no seu carácter trágico ou melancólico. Contudo, aqui também,

Rachmaninov não se deixa cair em extremos. O seu pessimismo não é subjectivo e mórbido

(Walker,1984, p. 65) mas sim objectivo e contido, tendo sempre em conta a necessidade de

comunicar com ouvinte. Asafiev fala na “forte mas disciplinada emoção” (citado em Davie,

36

2009, p. 8) que permeia toda a sua música. E de facto, ao longo da sua obra nota-se uma

progressiva tendência para a concisão das suas ideias musicais. Daqui provém o seu uso cada

vez maior dos microtemas que contêm a essência do carácter da obra.

Até que ponto este pessimismo em Rachmaninov reflecte um sentimento generalizado da

altura, ou é influenciado pelo Simbolismo permanece uma questão em aberto. Pelo menos

em parte, tal pode ser explicado pelos eventos traumáticos na vida do compositor: as

mortes das suas irmãs – Sofia numa epidemia de difteria em 1882 (que também deixou a

saúde de Sergei permanentemente fragilizada), e Elena com apenas 17 anos, em 1885.

Em resumo, Rachmaninov inseriu-se numa secção da intelligentsia artística que continuava o

paradigma conceptual da 2ª metade do séc. XIX dentro do séc. XX e como tal partilhava

certos elementos estilísticos, referidos acima por Orlova. Apesar de não criar uma nova

linguagem, Rachmaninov expandiu e enriqueceu a linguagem existente, criando o seu estilo

pessoal muito próprio, e influenciando compositores novos, tais como Prokofiev, Feinberg, e

até Schostakovich (Harrison, 2006, pp.169-170). Quanto à relação da sua música com o

ambiente emocional geral da altura, em particular referente aos acontecimentos sociais,

esta parece ser no mínimo ténue, dado o seu desinteresse político, e a sua motivação

principalmente interior e existencial para a composição.

37

IV. Alexander Scriabin

Scriabin no Contexto Cultural da Idade de Prata

As ideias de Scriabin, por mais rebuscadas que pareçam, não lhe são de modo algum

exclusivas. Este tipo de ideias era bastante comum na intelligentsia da transição dos séculos.

Como sagazmente nota Asafiev:

“O meio de intelligentsia que rodeava Scriabin cultivava da mesma maneira

a ideologia do individualismo místico refinado, cujas origens estavam na

exaltação erótica, característica daquela época. A sensação de vida

(zhizneoschuschenie) extremamente aguda, a sensibilidade desenvolvida

até o limite da dor, exigia das pessoas mais sensíveis uma excitação e

irritação constantes. É nesta atmosfera que a arte ultra-refinada de

Scriabin… recebeu os impulsos para o crescimento”(Asafiev, 1968, p.55).

A tendência de se fazer rodear de meios sofisticados foi talvez resultado da necessidade de

compensar as suas próprias lacunas culturais, como sugere Wetzel (2009, p.101).

As suas buscas espirituais começam com a doença da mão.

“… Aos 20 anos: a doença progredida da mão. O acontecimento mais significante na minha

vida. O destino envia-mo. Trata-se de um obstáculo intransponível, nas palavras dos

médicos. O primeiro fracasso sério na vida. A primeira reflexão séria: o início da análise.

Dúvidas sobre a impossibilidade de recuperar, mas a disposição é a mais sombria. A primeira

reflexão sobre o valor da vida, sobre a religião, sobre deus… Raiva para com o destino e

deus. A composição da 1ª sonata com a marcha fúnebre”.(Bowers, 1996p. 168, )

O evento traumático na sua vida planta a semente de rebeldia no jovem hipersensível, que

fará com que eventualmente rejeite a religião tradicional, incluindo o Cristianismo e Deus;

ao mesmo tempo que a sua capacidade de ultrapassar este trauma conferir-lhe-á um

optimismo hiperbolizado relativo às suas próprias forças, colocando-se, em última instância,

a si mesmo no papel de deus.

“Seja quem fores, tu que escarneceste-te de mim, aprisionaste-me,

alegraste para depois desiludir, deste para depois tirar outra vez, acariciaste

para depois atormentar, Eu abandono-te e nada peço em troca…Vou

38

proclamar a toda a gente que eu triunfei sobre ti, sobre mim próprio…

Agradeço-te por todos os medos que as tuas provas e tribulações

suscitaram. Fizeste-me conhecer a minha força infinita, o meu poder

ilimitado, a minha invencibilidade” (Bowers, 1996, p. 187-188)

A sua concepção filosófica sofreu uma evolução ao longo dos anos.

O príncipe Sergei Trubetskoi, filósofo e professor na Universidade de Moscovo, foi uma

influência no compositor enquanto um representante erudito da intelligentsia. Conheceram-

se em 1898 (Belza, p.85) A posição filosófica de Trubetskoi caracterizava-se por um equilíbrio

entre idealismo e racionalismo, que se baseava na tríade “experiência, razão, fé”. Foi ele que

introduziu Scriabin para a Sociedade Psicológica de Moscovo. Enquanto membro, Scriabin

podia participar nas reuniões tomando conhecimento das correntes filosóficas mais

recentes.

Tal como os simbolistas, Scriabin foi influenciado por ideias de Nietzsche, Schopenhauer,

assim como os idealistas alemães desde Kant a Hegel, passando por Schelling e Fichte. As

posições filosóficas de Scriabin eram caracterizadas por uma interpretação bastante

idiossincrática e criativa das ideias originais dos filósofos, o que era uma prática

relativamente comum nos círculos intelectuais russos, devida em parte à forma da sua

disseminação. É que nem sempre o acesso aos trabalhos originais dos filósofos ocidentais

era possível, e a familiarização com as suas ideias era feita através de traduções ou

comentários escritos e orais (Taruskin, 2000, p. 321). Tanto uns como os outros podiam ou

não transmitir o sentido original fielmente.

Havia uma tendência nos pensadores e artistas simbolistas para usar selectivamente partes

das ideias que encaixavam com as suas próprias posições. Por exemplo o que lhes apelava

em Nietzsche era a ideia da destruição da ordem limitadora preexistente e a construção de

uma nova realidade com os seus próprios valores. Nesse contexto, era lhe também atribuída

a noção da música como um elemento dionisíaco (Damaré, 2008, p.10), sendo como tal um

exemplo de criatividade pura e não constrangida pela razão ou moralidade. O seu

ubermensch era transformado em homem-deus e levado a contextos idealistas e

metafísicos. De Schopenhauer tomavam o conceito da Vontade como a única ligação com o

mundo transcendente do ser-em-si, transferindo essa importância para sua própria vontade

39

criativa individual e elevando o estatuto do artista para uma posição privilegiada de

comunicador com o transcendente. Hegel foi o filósofo de uma influência seminal na Rússia,

não só no contexto do Simbolismo como em praticamente todos os ramos do pensamento,

incluindo as teorias socialistas e, mais tarde, o marxismo-leninismo. As noções que

ressoavam especialmente com os simbolistas eram a teleologia do progresso histórico como

uma manifestação do Espírito no mundo4 (que apelava aos seus sentimentos escatológicos e

messiânicos) e a dialéctica como síntese de contrariedades que dão origem a algo superior.

Tanto Schopenhauer como Hegel davam uma importância especial à música:

”A Música também… é inteiramente independente do mundo fenomenal,

ignora este na sua totalidade, podia até um certo ponto existir não havendo

um mundo de todo, o que não pode ser dito acerca das outras artes. Música

é tão directamente uma objectificação e cópia de toda a vontade quanto o

próprio mundo”( Schopenhauer citado em Damaré, 2008, p.5)

“A missão principal da música consiste portanto, não em reproduzir objectos

reais, mas em fazer ressoar o eu mais intimo, a sua mais profunda

subjectividade, a sua alma ideal.”(Hegel, p.182)

Uma outra influência nos simbolistas e em Scriabin foi Novalis, poeta-filósofo romântico, que

se destaca dos seus contemporâneos mais académicos pela sua veia mística e mágica, bem

como pela sua visão da filosofia não apenas como um sistema de pensamento crítico com

uma “racionalidade restritamente orientada”, mas como uma abordagem complexa à

realidade que incluisse a arte, a ciência e a religião. (Stanford Encyclopedia of Philosophy). O

seu conceito de Ekstase como uma “interpenetração” do mundo interior de uma pessoa com

o mundo exterior, através do qual o sujeito “sai para fora” dos limites do seu ego pessoal5,

tem semelhanças com o conceito do próprio compositor.

Fichte negou as “coisas-em-si” aos objectos exteriores, colocando assim o sujeito no centro

da realidade. As suas posições foram desde o início alvo de controvérsia. Por um lado há a

posição ontológica segundo a qual ele nega qualquer realidade ao mundo exterior, que o Eu

4 Scriabin escrevia: “A história do universo é a evolução de Deus, o anseio por Extase” (Bowers, p.104,l3).

5 Em Figure: What Is German Romanticism (noch einmal), or The Limits of Scholarship40

cria o Não Eu. Por outro, há a posição epistemológica segundo a qual o Eu, pela própria

virtude da sua autoconsciência delimita-se, e postula ou estabelece [Setzen] – no sentido de

“reconhece ou assume” (Everett, 1884, Cap.5) – a sua identidade como sendo limitada pelo

Não Eu, mantendo assim o mundo exterior intacto. De qualquer maneira, a influência de

Fichte nota-se em Scriabin, que o deve ter interpretado na primeira versão, quando diz que

o mundo consiste de estados da sua consciência ou que

“O mundo não é senão uma antítese criada pela minha consciência. O ´não Eu´ que é

livremente oposto pelo ´Eu´ é necessário apenas para que o Eu dentro do Eu pudesse criar

(Bakst, 1966, p.262.)

Só que o próprio Fichte, ao contrário do compositor, sempre reconheceu a existência de

outros sujeitos: “… tudo aqui, que tem existência para mim, emana-se puramente e

somente de mim próprio; Vejo em todo o lado apenas a mim… Mas neste meu mundo eu

admito, também, as acções de outros seres, separados e independentes de mim, tanto

quanto eu deles… eles têm conhecimento [das influências que procedem deles] da mesma

maneira que eu tenho das minhas próprias.”(Vocação do homem, Parte 3)

Schelling foi um passo além de Fichte, expandindo a sua filosofia de sujeito consciente para

incluir também a natureza inconsciente. Para Schelling ambos são manifestações do

Absoluto, e a arte tem um lugar especial nessa inter-relação. É por isso que alguns chamam a

sua filosofia do período médio de “Idealismo Estético”. Segundo ele a arte tem a capacidade

de integrar o sujeito e o objecto, o infinito e o finito. Nela a “liberdade” do espírito e a

“necessidade” da natureza objectiva, que no próprio artista são representadas pela

criatividade consciente e a inconsciente, são reconciliadas. Assim a arte, apesar de inspirar-

se na natureza, vai mais longe ao entrar no domínio do ideal, sendo aquilo que mais se

aproxima do Absoluto. Neste sentido, o artista “recria” no contexto finito o gesto criativo

infinito de Deus na natureza.

Na Rússia, a filosofia idealista tinha tendência para ser interpolada com a filosofia religiosa,

passando por todo o tipo de correntes esotéricas e ocultistas, em voga durante a Idade de

Prata. No meio destas últimas havia várias elementos, todos eles interligados, que traçavam

a sua presença na obra dos pensadores e artistas. Um deles era o elemento da magia, no

41

sentido mais amplo – a capacidade (ilimitada) do homem de transformar ou controlar o

mundo. Esta podia assumir uma variedade de formas e feitios, indo da meditação e

especulação a rituais de magia negra, satanismo, erotismo, etc. Outro elemento era o

mitológico. Os heróis e deuses da mitologia pagã (especialmente a helénica) eram

associados a conceitos e símbolos metafísicos ou poéticos, a forças cósmicas ou humanas.

Ao mesmo tempo era reavivada a memória dos cultos de mistério da antiguidade, tais como

o Órfico e o Dionisíaco, juntamente com a visão desse passado como um tempo de glória

perdido. Um outro aspecto era o reconhecimento da existência das realidades espirituais.

Estas podiam, teoricamente, ser acedidas individualmente ou mesmo universalmente –

enquanto uma irmandade espiritual universal – seja através de estados alterados da mente,

êxtases, ou através de actos mágicos criativos – teurgia. Podiam ter as suas características

peculiares, os seus habitantes, e eram tidas como sendo mais perfeitas, mais reais (realiora)

até, do que o nosso plano material.

Os sistemas esotéricos eram recebidos sobre o fundo histórico da Cristandade Ortodoxa,

que constituia uma componente central da identidade cultural russa, e eram misturados

com as suas doutrinas. Devido a esta sua natureza sincrética, alguns críticos ocidentais

preferem chamar este tipo de filosofia – mitosofia, ou mesmo doutrina, pois mesmo que

muitos dos conceitos utilizados sejam emprestados à filosofia ocidental, existe uma

diferença no tipo de exposição. Em geral há uma menor tendência para argumentação,

racionalização exaustiva e tentativa de derivar novos conceitos dos conceitos anteriores.

Muitas vezes os conceitos e teorias são simplesmente postulados, tendo frequentemente

por base uma revelação mística.

Essa tendência nota-se na obra de Vladimir Soloviov, que fundou uma escola de pensamento

que teve um impacto em todo o posterior desenvolvimento da filosofia russa, sendo

também uma fonte de inspiração para muitos artistas simbolistas. No seu caso, há uma

tentativa consciente de evitar o racionalismo e a abstracção dos sistemas de pensamento

ocidentais, como torna-se evidente pelos seus trabalhos “Crise da Filosofia Ocidental” e

“Crítica dos Princípios Abstractos”. Em contraposição ele propôs uma teoria de

“conhecimento integral” [sobornoe] que unificasse o racionalismo e o misticismo a que

chamou teosofia. Na sua procura de todo-unificação [vseiedinstvo] ele também queria

42

ecumenizar a Igreja Ortodoxa com a Católica, bem como revitalizar a primeira, integrando-a

na existência mundana. Aqui entra o seu Bogotchelovetchestvo, um conceito complexo que

implica por um lado a humanidade de Deus e por outro a divinização da humanidade, um

tema central na sua obra. O Reino de Deus só poderia chegar com a participação social e

cultural da humanidade, que reconciliaria a multitude e culminaria com a união de Sofia (a

alma do mundo e da humanidade) com Deus (Epstein, 1995). Isto só aconteceria depois da

chegada do homem-Deus individual (Gaut, 1995). A ideia do homem-Deus messias em

particular, encontra-se frequentemente nos escritos de Scriabin.

Outra tentativa de reinterpretação da Cristandade foi feita pelo Ivanov que fazia uma ligação

entre as características orgiásticas e violentas do culto Dionisíaco, que representavam a

aceitação do sofrimento terrestre e da morte, e a figura de Cristo que representava o triunfo

sobre a morte (Rosenthal, 2002, p.39).

O Simbolismo não possuía uma definição estética una, sendo caracterizado não só por várias

fases diferentes como pelas abordagens díspares dos seus representantes. A organização

Mir Iskusstva (Mundo da Arte), fundada em 1898 e dissolvida em 1904, e que contava entre

os seus membros indivíduos como Sergei Diaghilev e Alexandre Benois, foi instrumental na

divulgação e promoção de valores simbolistas. Esteticamente, a organização foi em parte

uma reacção contra o realismo naturalista e social na pintura dos Peredvizhnik´s, que

considerava desprovida de originalidade e inspiração, roçando o mau gosto. Guiava-se pelos

princípios de individualismo, ausência de dogmas rígidos, abertura de espírito, e liberdade

artística completa. Diaghilev no seu livro “Questão Difícil” defendia que a arte devia ser “um

objectivo em si”, ser “útil apenas por si”. (Wetzel, 2009, p. 81)

Em marcado contraste com a perspectiva de “l´art pour l´art” do Mundo da Arte estava o

poeta e filósofo Vyacheslav Ivanov, uma figura de relevo não só dentro do próprio

movimento Simbolista, como pela sua relação ou mesmo influência na concepção filosófico-

artística de Scriabin. Já em 1905, no seu ensaio “Crise do Individualismo” Ivanov defende a

arte como um fenómeno colectivo (sobornoe), que mais tarde levará à sua teoria de

Realismo Místico ou Simbolismo Realista em que o artista revela a realidade absoluta cuja

visão mística “une as consciências separadas numa união” (Wachtel, 2000, p. 27). Ivanov

usa a expressão a realibus ad realiora (do real para o mais real). Nesse sentido, o Simbolismo

43

para Ivanov, ao invés de ser uma reacção contra o Realismo, era uma generalização deste

para totalidade da realidade humana, incluindo a dimensão espiritual. Tal como no

Realismo, a arte também tinha uma função utilitária, jamais podendo ser, por essa mesma

razão, uma arte isolacionista e individualista. A diferença é que essa função tinha um fim

teúrgico, de precipitar o contacto com a realidade transcendente através de uma mudança

de percepção global.

Ainda no Romantismo era reconhecida a capacidade da arte para afectar o homem. Com

tempo surge a necessidade de explorar esse impacto, tentar maximizá-lo. Os artistas,

especialmente no teatro, começam a teorizar (Ivanov) ou experimentar (Meyerhold) novas

maneiras de relacionar o espectador com a acção, ou mesmo remover a barreira entre os

dois. Neste contexto Richard Wagner apresenta-se como pioneiro e figura incontornável

pela sua influência. A sua ideia de fusão das artes e inclusão do sujeito/espectador na obra

de arte, foi acolhida e amplamente elaborada pelos simbolistas, dando origem à arte

teúrgica, ou seja arte transformadora da realidade. A arte teúrgica, aliás, tentava atingir não

só a síntese das artes como de todas as esferas da vida, de relacionar a criatividade com a

própria existência, como disse N. Berdiaev na sua “Crise da Arte” (1918) . Para isto, muitos

simbolistas olhavam para os cultos antigos como um ideal perdido, em que a arte era um

meio para um fim místico ou religioso directo. Scriabin foi talvez quem levou essa noção

mais longe. Para ele a arte, como algo directamente relacionado com a criatividade, a força

geradora do universo, tinha a capacidade de desmaterializar o mundo e de unifica-lo com a

sua essência divina.

Danilevich observa com razão, que apesar dos pontos em comum entre Scriabin e os

simbolistas, havia também divergências importantes: a rejeição pelo compositor de qualquer

forma de religião tradicional e dos símbolos associados a esta, e a sua versão de idealismo

subjectivo extremo.

A evolução das ideias filosóficas de Scriabin, como evidenciadas pelos seus apontamentos de

1904-5, mostram uma tendência crescente para auto-exaltação e solipsismo, com tentativas

de fundamentar os seus postulados em argumentos lógicos e racionais. Nesses

apontamentos o compositor traça “planos, esquemas, processos mentais todo-inclusivos”,

que por vezes interliga com “sons ou ritmos, criando efeitos duplos musicais e literários”.

44

O seu solipsismo nesse período é evidente pelas afirmações: “Eu sou deus” “Eu sou nada” Eu

sou tudo”, “Caos”,”Fogo”, “Vida” etc. Para ele a identidade do sujeito e do objecto é óbvia,

logo cada experiência passa a ser um acto de criação. O mundo é resultado do seu desejo. E

ele é o único sujeito consciente.

Em 1906 as posições de Scriabin mudam algo, possivelmente como resultado dos seus

debates com Plekhanov. Ele passa a admitir a existência de Deus, bem como a dos outros

sujeitos com as suas próprias esferas de consciência. O universo já não é a sua criação

consciente mas sim inconsciente. Continua a proclamar-se homem-deus, com capacidade de

“alterar o sistema de relações entre estados à sua vontade” (Bowers, 1996, p. 105, l.3).

Essencial para a sua cosmogonia é a noção do acto criativo, que por sua vez está

intimamente ligada com a sua arte. A criatividade acaba por ser equivalente ao próprio

fabrico da realidade: “O material do qual o mundo é feito é pensamento criativo, imaginação

criativa”, “ O princípio criativo é a vontade de viver.”6 (citado em Bowers, 1996, p.101-2, l.3)

Em contraste com a ideia tradicional de um absoluto transcendente, impessoal e imutável

que emana passivamente a existência, Scriabin afirma o espírito activo e vibrante, que cria e

transforma conscientemente a realidade por brincadeira e prazer. Em vez de fundir-se com o

universo ou absoluto, Scriabin afirma o seu ego divino.

O aspecto sensual é predominante na sua teoria. Para Scriabin todo o processo criativo é

movido pela busca de sensações novas como ilustra o seguinte esquema:

“1)Experiência de algo, como um ponto de partida.

2)Dissatisfação com a experiência, sede de novas experiências e desejo de

atingir o objectivo. Esta é a essência da criatividade

3)Atingir o ideal. Nova experiência”(citado em Bowers, 1996, p.102, l.3)

6 Já Schelling dizia: “Mas o que é a perfeição de uma coisa? Nada senão a vida criativa que está nela, a sua força

para existir.” ( A Arte Exprime o Universal)

45

Consequentemente, a sua estadia no plano físico tinha o objectivo de o enriquecer com

experiências até ele reunir-se com a sua própria natureza divina.

O desejo sexual para ele era uma manifestação da necessidade criadora divina e vice-versa,

a união do espírito com a sua criação em êxtase era um acto sexual cósmico.

Todo este erotismo e procura insaciável de sensações na sua ligação com a criatividade, e a

asserção do seu ego divino em contraposição a Deus, fazem Sabaneev encontrar influências

do Satanismo em Scriabin. (Wetzel, 2009, p. 140).

A sua (de Scriabin) visão da música como “a mais forte e eficaz magia” (Sabaneev, 1925, p.

112) faz lembrar os cultos pagãos da antiguidade. Mas ele usava a música não só pela sua

capacidade de impacto como também pela sua capacidade de transmitir mensagens. “A

maioria dos meus poemas [musicais] têm um conteúdo psicológico específico” escreve a

Findeizen (Bowers, 1996, p.70 l.3). O facto de não falar em “evocar” uma sensação ou

“sugerir” uma ideia, mas sublinhar a especificidade da correspondência entre música e

conteúdo, ilustra claramente que embora ideologicamente Scriabin fosse um caso isolado na

música russa, musicalmente ele foi dos representantes mais puros da tradição realista. A

falta de coerência interna das suas concepções filosóficas contrasta com a disciplina e

mesmo racionalidade com que abordava a composição (Danilevich), procurando sempre a

maneira mais directa e eficaz de transmitir as primeiras.

46

Percepções da Obra de Scriabin

O seu lugar na música russa era debatido. Yuri Engel dizia sobre o Poema de Êxtase: “A sua

música não contem nem um vestígio do chamado “estilo Russo”… Quando se ouve uma

[sinfonia de Scriabin] tanto se pode suspeitar que leva um rótulo “Produzido em Alemanha”

como “Produzido na Rússia” (Ballard, 2010, p. 22). Já Vladimir Stasov, eslavófilo convicto que

dirigiu ataques ao “cosmopolita” Tchaikovsky e aos “decadentes” do Mundo da Arte, não

poupou elogios ao Poema Divino, acrescentando que o compositor tinha muitos

admiradores entre os “Russos” (Bowers, 1996, p. 45, l.3)7.

O impacto de Scriabin na música posterior é outro ponto sobre o qual não existe consenso.

Taruskin encontra influências de Scriabin nas obras iniciais de Stravinsky. Entres os

compositores do avant-garde soviético inicial que incorporaram directamente elementos da

linguagem de Scriabin, Ford (2011, p.56) refere Nikolai Roslavetz, Josef Schillinger e Artur

Lourie. O pianista e compositor Samuil Feinberg, o advogado da música scriabinista na era

soviética, também mostra influências desta nas suas sonatas. Beliaev, admitindo que não

houve uma “escola” scriabinista, encontra a sua influência em muitos dos compositores

novos, incluindo as obras iniciais de Stravinsky e Prokofiev (Wetzel, 2009, p. 235).

A percepção da música de Scriabin foi diferente em alturas e contextos diferentes. Durante a

sua vida, quando a mentalidade simbolista ainda estava palpável na vida social, as suas obras

eram vistas à luz das suas ideias filosóficas. Os primeiros biógrafos do compositor, Leonid

Sabaneev e Boris de Schloezer, que o conheciam pessoalmente, também viam estas como

sendo organicamente interligadas com a sua música, comentando extensivamente sobre a

sua natureza e importância.

O legado de Scriabin na Rússia Soviética foi estabelecido pela declaração, pelo Comissário

da Cultura Anatoli Lunacharski, da sua música como a precursora espiritual da revolução.

Para Lunacharsky, a música de Scriabin reflecte a época volátil em que viveu (Wetzel, 2009,

p. 216), e é revolucionária pelo seu olhar para um futuro luminoso e pelo seu desejo de

transformar a velha realidade. Tal afirmação não é completamente infundada, dada a

7 Aqui é preciso salvaguardar que Stasov estava relacionado com Scriabin através do seu amigo comum, o

mecenas Mitrofan Beliaev.47

admissão pelo próprio compositor da sua simpatia com os ideais da revolução.8 O seu

estatuto foi quase inabalável durante o Realismo Socialista, de maneira que durante a

Zhdanovschina, quando músicas de compositores socialistas eram reprimidas, Scriabin já era

um clássico inabalável da herança cultural soviética (Wetzel, 2009, vi).

Na apreciação da sua música, os musicólogos soviéticos, embora referindo em maior ou

menor detalhe a sua filosofia e ligação ao movimento simbolista, e as tendências associadas

a este, tendiam a minimizar a sua relevância ou encaravam-na como um factor lamentável

apesar do qual a sua música consegue possuir um valor próprio9. Quando positivas, as

referências às suas concepções filosóficas eram selectivas na medida em que eram

politicamente correctas e moldáveis aos padrões do Realismo Socialista (como referido na

secção sobre Rachmaninov). Assim, o acento era colocado no aspecto humanista (Belza,

1982, p.89) – “afirmação das forças do Homem”, da sua criatividade, a transformação

colectiva do mundo10. Belza cita Dante como uma influência não só em Scriabin como

também nos poetas simbolistas e refere em particular a sua noção do Amor como a força

transformadora do mundo. Por outro lado os aspectos idealista e místico eram

menosprezados (Belza, 1982, p. 89).

A abordagem ocidental foi de certa maneira semelhante, sendo a separação da filosofia da

música o elemento comum. A visão do compositor como um excêntrico perturbado, cujos

programas musicais eram sinal de demência, e cuja música tem interesse sobretudo pela sua

antecipação das novas formas de organização tonal que viriam a dominar o séc. XX, é uma

perspectiva que até há relativamente pouco tempo era corrente11.

8 A acreditar no testemunho de Rosalia Plekhanova, mulher do famoso ideólogo revolucionário Georgi

Plekhanov (Bowers, 1996, p. 96, l.3)

9 Lapshin citado em Bowers, 1996, p.92; Danilevitch em A. N.Scriabin: Colecção de Artigos

10 Uma excepção aqui seria Asafiev, que nos seus escritos iniciais foi ele próprio influenciado pela filosofia

idealista (Viljanen, 2005, p.6)

11 Por exemplo James Baker, na sua análise de Scriabin como um proto-atonalista (Ballard, 2010, p.7).48

Tal como as suas ideias, a sua música também tendia a ter um tratamento selectivo, com as

obras iniciais e as do período médio a serem elogiadas, e as do período tardio a terem um

tratamento mais frio (Leonard, 1968, p. 224).

Mais recentemente, contudo, houve uma reavaliação e um maior interesse pelo lado

extramusical da sua música e pela sua influência nesta. A biografia de Bowers (1996) tem o

cuidado de traçar em paralelo a evolução das ideias do compositor através de citações dos

seus próprios escritos. Barany-Schlauch (1985) e Wetzel (2009) dedicam as suas dissertações

especialmente às influências filosóficas em Scriabin e à percepção da sua música. Ballard

(2010) tem talvez o estudo mais abrangente sobre a evolução das atitudes relativamente à

sua música tanto no ocidente como na Rússia.

Um exemplo proeminente dessa mudança de atitude é o histórico revisionista Richard

Taruskin. Como muitos antes dele faz a sua tentativa de decifrar o código harmónico do

compositor. Ao mesmo tempo, consegue traçar um paralelo directo entre a filosofia e a

música.

Taruskin (2000) define a resolução da dominante na tónica como uma função básica com a

qual o ego se identifica, aquela que intuitivamente espera ouvir. Para transcender o mundo

do ego e consequentemente entrar no do espírito, Scriabin utiliza agregados de notas

baseadas em trítonos, que pela sua natureza simétrica lhes conferem um elevado grau de

invariância harmónica. Isto é, maximizam as possibilidades de recombinação dos sons que

mantenham a mesma estrutura interválica, permitindo assim uma prolongação indefinida da

mesma sonoridade e criando com isso uma ambiguidade funcional. Assim à dissonância (que

em Scriabin é no fundo uma elaboração sobre a dominante) que o “ego” “deseja” ouvir

resolvida, é continuamente negada essa resolução, levando à extinção do ego12.

12 Podia-se acrescentar: “… ou alimentando o seu desejo infinito”.49

Contextualização da Sonata nº 5

A Sonata nº5 insere-se no fim do período médio da sua obra. É uma altura em que as

concepções filosóficas do compositor amadurecem, e ele começa a incorporá-las na música,

provocando uma mudança no seu estilo de escrita. O estilo romântico, com influências de

Chopin e da Nova Escola Russa (Bakst, p.261), começa a dar lugar a uma nova linguagem

altamente inovadora e pessoal. Sabaneev (1923, p.2) sublinha a natureza “abrupta” e

“profunda” dessa quebra.

Em 1902, Scriabin demite-se do seu cargo de professor no Conservatório de Moscovo.

Bowers sugere que o trabalho lhe tirava disponibilidade necessária para compor. Com a

demissão, apresenta-se-lhe uma oportunidade para se dedicar seriamente à composição e

às suas ideias, dando origem a um dos seus períodos mais produtivos, nos quais escreve 2

sinfonias (Poema Divino e Poema de Êxtase), duas sonatas (4ª e 5ª) e uma série de pequenas

peças para piano (Barany-Schlauch, 1985).

Scriabin decide sair do país em 1904, possivelmente por razões financeiras relacionadas com

a morte do seu mecenas Mitrofan Beliaev. Em 6 anos ele muda de residência várias vezes,

seja por motivos financeiros, profissionais ou pessoais. O seu percurso leva-o a Genebra,

Paris, Bogliasco, novamente Genebra, Amsterdão, Nova Iorque, novamente Paris, Lausanne

e finalmente Bruxelas. Durante esse tempo entra numa relação duradoura com Tatiana

Schloezer, separando-se da mulher Vera e da família, mas vivendo sempre uma existência

dupla e incómoda (a sua mulher não lhe concedia o divórcio).

Um evento relevante para o desenvolvimento das suas teorias filosóficas foi o Congresso

Filosófico Internacional de Genebra em 1904, no qual o compositor participou como

membro (Danilevitch).

Na Europa, o círculo social de Scriabin incluía indivíduos que estavam ligados à Sociedade

Teosófica, formada em 1875 por Helena Blavatskaya13 (Bowers, p.52,l.3). A doutrina

13 Aparentemente o seu primeiro contacto com Teosofia foi através de um livro oferecido

por uma conhecida sua em Paris, 1905 (Bowers, p.51l3).50

teosófica sincretiza filosofia e ciência com sistemas místicos e ocultos ocidentais e orientais.

O resultante pastiche tinha muitas semelhanças com o sistema do próprio compositor pela

sua selecção e recombinação muito peculiar de conceitos preexistentes, e certamente

apelava-lhe como uma espécie de validação das suas próprias convicções. As ideias

teosóficas em geral tinham popularidade e influência na intelligentsia simbolista, sobretudo

nos poetas e escritores como Andrei Bely, Konstantin Balmont e Vyacheslav Ivanov.

Em 1906 acontece uma tragédia pessoal na vida de Scriabin: morre a sua filha mais velha.

Esse evento serve de reaproximação temporária com a sua mulher Vera (Bowers, 1996).

Durante a sua estadia em Bogliasco, Scriabin contrai amizade com um dos ideólogos da

Revolução Comunista – Georgi Plekhanov. Nas suas conversas, Plekhanov sendo um

materialista e positivista, confrontou o compositor com as incongruências lógicas no seu

raciocínio, fazendo este considerar com mais cuidado as suas posições. Embora o choque de

ideologias tornasse inevitável os debates acesos, a sua amizade não sofreu com isso, antes

pelo contrário, sendo continuada mesmo depois de Bogliasco. Plekhanov também introduziu

o compositor aos trabalhos marxistas.

Em 1907, em Paris, Scriabin colabora com Sergei Diaghilev nas suas “Saisons Russes”. Antes

do verão Scriabin acaba a sua 4ª sinfonia, o Poema de Êxtase, um projecto começado ainda

em 1904 ou 1905. Em Julho eles vão para Beatenberg, uma estância na Suiça. Scriabin dá os

últimos retoques e correcções tanto na orquestração como no próprio corpo do Poema de

Êxtase e envia-o para publicação. Ao acabar o verão Scriabin escolhe Lausanne, perto de

Paris, como o seu destino. A 5ª Sonata é escrita lá entre 8 e 14 de Dezembro de 1907

(Bowers, p.176, l.3) e publicada pelo próprio compositor em 1908.

A 5ª Sonata está relacionada com o “Poema de Extase” sendo escrita pouco tempo depois,

“como uma faísca da mesma fornalha criativa” (Leonard, 1968, p. 216), e contem no início

um excerto do texto desta:

“Eu invoco-vos à vida, ó forças misteriosas! Submergidas nas profundezas obscuras do

espírito criativo, embriões tímidos da vida, à vós trago a audácia”

51

Segundo Bowers (p.182, l.3), Scriabin ficou possuído pela sonata, de uma maneira que não

tinha acontecido com mais nenhuma peça: “Ele via-a como ´uma imagem´, um ´corpo

sonoro´ tridimensional com cores de um outro plano”.

Estilisticamente e formalmente a 5ª Sonata constitui um ponto de viragem. Todas as sonatas

seguintes passam a consistir de um único andamento. Leonard (1968, p.222) fala nas

notáveis “complicações rítmicas, que juntamente com as harmonias radicais, conferiam à

sonata uma ultra-modernidade chocante em 1907”. Taruskin, no contexto da sonata diz:

“Tirando o sentido de resolução, de um alívio de tensão, estamos de caras com uma

sensação de elevação repentina – ou na linguagem de simbolistas teúrgicos russos, de um

poriv, um surto transportador…Ascensões rápidas e a predilecção por registos agudos são

conspícuos na sua música a partir do período em que se começou a interessar por ambientes

sublimes e revelação oculta. Elas assumiam o papel de função cadencial a partir do

momento em que Scriabin dispensou as resoluções tonais convencionais” (p. 346)

A sonata começa com uma introdução que consiste de 3 secções. A primeira secção

(Impetuoso. Con stravaganza) começa no registo grave, com trilos e tremolos de 4ª

aumentada (mão direita e mão esquerda respectivamente) em Sotto voce, una corda.

Crescendos repentinos de 5 notas irrompem no meio das vibrações indistintas, como que as

primeiras forças criativas a quererem sair das profundezas do caos não-manifesto.

cc.1-3

52

Após várias tentativas sucedem em libertar-se daquilo que os prende, lançando-se

vertiginosamente em surtos ascendentes de 2 e 5 notas.

cc.9-12

Entramos num outro plano. O tema languido, com a sua métrica irregular e motivos

indecisos, representa os primeiros gestos tímidos das forças criativas, o seu desejo (voglia)

de se manifestarem. O fundo de acordes de dominante alterada com fundamental omitida,

que não se resolvem mas sim “refractam-se” continuamente sobre o intervalo de trítono,

contribuem para o ambiente misterioso e suspenso.

cc.13-20

53

Segue-se uma secção modulante de transição marcada accarezzevole (acariciando) em que o

1º motivo das forças tímidas é mimado e encorajado. Esta secção efectua a transformação

gradual do tema languido, preparando-o para o que vem a seguir.

cc.34-46

Entramos então na exposição, com o primeiro tema, Presto con allegreza, uma

transformação do 1º motivo do tema languido, a evocar a brincadeira caprichosa do espírito

criativo com o seu ritmo sincopado, insistência em determinados motivos, saltos repentinos

para o registo agudo e mudanças dinâmicas bruscas. A sensação de leveza e levitação é

transmitida pelo gesto de intervalo ascendente na descida da frase, como que amparando-a,

e pelos referidos saltos. A presença das fundamentais e a ausência do trítono na mão

esquerda alteram completamente o ambiente, conferindo-lhe uma maior convicção e

direcção harmónica.

cc. 47-51

54

Após culminar a sua brincadeira no ponto mais alto e triunfante, o espírito desce, dando

lugar ao 2º tema imperioso. Bowers (p.181, l.3) descreve o motivo das 6as descendentes

como uma invocação que ordena as forças misteriosas.

cc. 96-97

A invocação é respondida logo por um “resmungar” sussurrado (sottovoce misterioso

affanatto) de acordes dissonantes de dominante alterada.

cc. 98-99

Este processo é repetido 3 vezes, sendo a resposta de cada vez menos resistente e mais

conducente à invocação, até finalmente fundir-se com esta num novo motivo ascendente

quasi trombe,

cc. 114-115

55

que é rapidamente diluído por ondas de arpejos sobre o acorde de dominante suspensa

sobre o baixo da “tónica”, levando ao 3º tema.

Este tema, com a indicação accarezzevole, é uma metamorfose do tema languido da

introdução (melodia) e do motivo sottovoce do 2º tema da exposição (vozes do meio e

melodia). A presença da relação de trítono entre os acordes de dominante volta a criar um

clima de suspensão temporal e de desejo não saciado, enquanto os ornamentos e

cromatismos elaborados nas vozes do meio trazem uma nova “fragrância” (como diz o

compositor no texto que acompanha o Poema de Êxtase) e sensualidade. Um aspecto que

Sabaneev (1923, p.147) nota na organização textural de Scriabin é a sua capacidade de

preservar elegância e transparência mesmo nas harmonias mais densas e complexas.

cc. 120-123

Segue-se uma secção de transição que começa com um motivo Allegro Fantastico, e depois

com Presto tumultuoso esaltato, que utilizam transformações dos temas e motivos expostos

antes. É como se o espírito criativo, ganhando “audácia”, mas ao mesmo tempo duvidando,

entrasse numa precipitação frenética, ora entusiasmando-se e afirmando o seu poder, ora

retraindo-se.

56

cc. 140-152

O estado de exaltação é bruscamente interrompido, atirando o espírito para o abismo e

recomeçando todo o processo de novo.

cc. 157.165

57

Começa o desenvolvimento com a secção languido a repetir-se, agora um tom acima.

cc. 166-171

Segue-se a transmutação. Elementos dos vários temas são combinados uns com outros.

cc. 185-196

Aqui ocorre a 1ª transformação substancial do tema languido, cuja segunda parte,

impulsionada por elementos do 1º e 2º temas, atinge uma intensidade e energia nunca

antes vistas, embora esteja ainda num processo instável de luta interior.

cc. 239-242

58

Tal como no início aparecem os “surtos” ascendentes leggerissimo volando (embora aqui

estejam mais integrados e não constituam uma grande disrupção no carácter) que

introduzem a secção Presto giocoso, onde a melodia do tema languido aparece (quase) sem

alterações ainda um tom acima, só que agora sobre um acompanhamento de tercinas de

colcheias que lhe confere maior movimentação.

cc. 247-254

Uma variação sobre a parte final do tema languido

cc. 263-266

59

passa suavemente para o tema 3

cc. 271-273

que vai ser transformado, passando por sucessivas interacções com motivo Allegro

Fantastico da exposição.

cc. 281-284

Este ganha ímpeto (Allegro con una ebbrezza fantástica), transforma-se no motivo quasi

trombe e depois sottovoce do 2º tema do qual ele próprio provém, e funde-se por fim com

o tema 3 numa secção de culminação extática, com texturas densas de acordes e oitavas

cromáticas, acordes repetidos e uso de registos cada vez mais agudos.

cc. 289-293

60

cc. 305-308

cc. 313-315

A reexposição (desta vez sem a introdução) começa logo noutro tom.

cc. 329-334

61

A coda começa sem aviso assim que acaba de soar o 3º tema. A secção Allegro con una

ebbrezza fantástica do desenvolvimento é repetida, crescendo em intensidade e agitação

cc. 401-410

até chegar ao ff con luminosita,

cc. 417-420

uma combinação de elementos do 1º tema e motivo quasi trombe do 2º. Um pulsar

irradiante do espírito criativo que tem a sua culminação na transfiguração do tema tímido

inicial numa afirmação estatica do seu poder – o ponto auge de toda a peça.

62

A textura espalhada por todo o registo e os acordes repetidos freneticamente nas duas mãos

evocam toda a multiplicidade da existência a fervilhar dentro do espírito que a engloba em

êxtase.

cc. 433-438

63

A sonata acaba com a modificação da secção de transição da exposição (Presto tumultuoso

esaltato), agora apenas Presto e sem os elementos de retracção e do choque brusco. Após

atingir o ponto mais alto há uma descida que serve de impulso para os surtos frenéticos

ascendentes. O espírito, saciado de êxtase e agora completamente seguro dos seus poderes,

parte para uma nova aventura recomeçando todo o processo do início.

cc. 441-456

64

V. Contexto Histórico

O Período Sovíetico

Após tomarem a capital em 1917, os Bolcheviques liderados por Lenine, transferiram

formalmente o poder para os Sovietes (concelhos) de camponeses e trabalhadores,

iniciando o processo de apreensão e redistribuição de toda a propriedade privada e estatal.

A ideia de luta de classes contínua era promovida activamente pelos bolcheviques o que

levou à perseguição sistemática da intelligentsia como classe (Sitsky, 1994). Desde logo foi

criada uma polícia secreta com o objectivo de eliminar a oposição política e todos aqueles

que eram considerados inimigos da revolução. Baseando-se em ideias marxistas, Lenine

criou também um organismo estatal que supervisionava toda a actividade cultural – o

Narcompros (Comissariado do Povo para a Elucidação (Educação), presidido por Anatoly

Lunacharsky – com a intenção de utilizar a arte na causa revolucionária.

À revolução de Outubro de 1917 seguiu-se uma guerra civil durante a qual o Exército

Vermelho gradualmente conquistou o controlo completo de todo o território nacional,

eliminando a oposição armada organizada que consistia principalmente dos rebeldes

camponeses, Exército Branco e das regiões separatistas. A guerra civil culminou com a

grande fome de 1921 e a fundação da União Soviética em 1922.

Apesar da existência de Narcompros, o estado não se intrometia nos assuntos de natureza

puramente artística, desde que se estivesse dentro do quadro ideológico. Isto permitiu com

que houvesse uma certa experimentação nas artes durante este período. Surge o

movimento semi-independente Proletcult (Organização do Proletariado para a Educação

Cultural) cujo objectivo era criar uma arte completamente nova, livre de quaisquer

referências à velha cultura burguesa, mas que ao mesmo tempo reflectisse a realidade do

proletariado e pudesse ser facilmente entendida por este. É o segundo aspecto que

representava a principal divergência ideológica entre a Narcompros e a Proletcult. Enquanto

o primeiro acreditava que a nova cultura devia aproveitar os melhores aspectos da cultura

passada, a segunda queria cortar quaisquer ligações a esta. Apesar das diferenças

ideológicas havia uma circulação de quadros entre várias organizações, com compositores65

tais como Nikolai Roslavetz, Leonid Sabaneev (biógrafo de Scriabin), Reinhold Gliere e

Vsevolod Meyerhold a exercerem funções em várias organizações. Este último está

associado às inovações mais radicais que tiveram lugar no teatro, sendo uma espécie de

enfant terrible da arte soviética.

Contudo, devido às posições algo radicais da Proletcult, à sua crítica da burocracia comunista

e às suas tentativas de ganhar mais autonomia, o movimento acabou por ser anexado à

Narcompros por ordem de Lenine, em 1920 (Viljanen, 2005, p.23).

No início da 2ª década do séc. XX o país estava de rastos. Os elevados estragos causados pela

guerra civil aliados à política rígida do chamado Comunismo de Guerra tinham levado a uma

crise económica e à fome de 1921 (Leonard, 1968, p. 287). Para remediar a situação, Lenine

reverteu temporariamente o rumo comunista da política oficial, inaugurando a era NEP

(Nova Política Económica), 1921-1928. A NEP trouxe incentivos à pequena produção e

propriedade privada bem como à entrada de capital estrangeiro, conseguindo reconstruir a

economia ao seu nível pré-guerra

Juntamente com o relaxamento do controlo económico, este período trouxe uma maior

tolerância e abertura nas artes. Após a extinção da Proletcult, surgem vários grupos

artísticos independentes. Entre eles a ASM (Associação da Música Contemporânea) e a

RAPM (Associação Russa de Músicos Proletários), ambas criadas em 1923. A ASM promovia

a experimentação vanguardista e a troca de ideias com o ocidente, organizando visitas e

concertos de compositores e obras estrangeiros. A RAPM (formada por membros mais

radicais da extinta Proletcult), era a sua rival e maior crítica, manifestando-se contra aquilo

que considerava a degradação da arte burguesa ocidental e favorecendo a música para as

massas (Viljanen, 2005). Para o fim da década 1920, a RAPM suplantou a ASM em termos de

relevo na cultura Soviética, sendo as duas organizações eventualmente extintas em 1932.

Entretanto, em 1924 Lenine morre deixando um vácuo no poder. Estaline consegue derrotar

os seus principais opositores políticos – Zinoviev, Kamenev e Trotsky – e toma a liderança do

Partido Comunista em 1928.

No final dos anos 20, após estabelecer-se firmemente no poder, Estaline quis implementar a

sua própria política de reconstrução intensiva do país. Em contraste com a relativa

66

liberalização económica da NEP o novo plano de Estaline tinha por objectivo submeter toda

a economia a um controlo centralizado do Estado. Para atingir esse objectivo, Estaline

implementou medidas draconianas que constituíam os chamados Planos de Cinco Anos. O

1º PCA, iniciado em 1928, visava a industrialização rápida da economia, com destaque para

as indústrias pesadas e a colectivização da agricultura. Com esta última, Estaline pretendia

atingir uma classe de camponeses mais ricos – kulaques – que culpava por sabotarem a

economia e o progresso para o socialismo (Curtis, 1996). Começaram as purgas e

deportações em massa de camponeses, que tiveram um efeito nefasto na produção agrícola,

causando a grande fome de 1932-33. A mulher de Estaline suicidou-se em 1932,

alegadamente após ter tido conhecimento das vastas mortalidades da fome na Ucrânia.

A campanha de propaganda iniciada, ainda durante a NEP, para criar uma cultura proletária

comunista bem como promover a vida sob o regime soviético, foi reforçada devido ao

grande descontentamento e impopularidade das medidas. Neste âmbito, grupos proletários

tais como a RAPM tinham um papel politicamente importante e, a partir do fim da década

20, especialmente com a implementação dos PCA, ganharam maior proeminência, passando

a ter controlo sobre os assuntos culturais e o ensino da música em particular (Leonard, 1968,

pp.288-9). Paralelamente à propaganda, a eliminação de quaisquer elementos

desfavoráveis, fossem ideias ou pessoas, também começou a intensificar-se com a chegada

de Estaline ao poder.

Em 1932 todos os grupos artísticos independentes foram extintos, formando-se as uniões. A

partir de agora Estaline e o seu politburo terão progressivamente maior controlo sobre as

artes que culminará com a infame Zhdanovschina. Isto enquadra-se no processo geral de

colectivização e centralização de todas as esferas da sociedade no poder estatal, que atinge

o seu auge com o Grande Terror dos anos 30.

Sentindo-se ameaçado pelos enclaves de descontentamento espalhados um bocado por

toda a hierarquia comunista, ou querendo uma subjugação completa da mesma para a

realização eficaz das suas políticas de industrialização, Estaline cria um clima generalizado de

conspiração (Curtis, 1996). Redes subversivas de espionagem fascistas ou trotskistas

supostamente permeavam toda a sociedade. O assassinato de Zinoviev em 1934 serve de

pretexto para desencadear aquilo que seria uma das mais brutais purgas políticas da

67

história. A polícia secreta, agora chamada NKVD, efectua execuções, detenções e

deportações em massa. Todos os elos da burocracia partidária e exército são repetidamente

purgados dos supostos traidores. Entre 1936 e 1938, o pior período, têm lugar os infames

tribunais encenados, com os inimigos políticos de Estaline a admitirem todo o tipo de

acusações inventadas e serem sentenciados à morte ou prisão (Sheehan).

Mas o aparelho estatal não foi a única vítima. Na procura das redes de espionagem, pessoas

de todas as classes eram torturadas até admitirem conspirações ou a implicarem outras

pessoas, e executadas sumariamente. Isto criou um medo e uma fragmentação na sociedade

em que as intrigas e as denúncias passaram a ser uma norma. O meio académico foi dos

mais afectados, visto que a delação passou a ser um modo de subida profissional (Sheehan).

Apesar das terríveis perdas, no final da década 30 e após 3 PCA, a Rússia tinha-se convertido

num país industrializado. Entretanto, a Alemanha Nazi emerge em 1933 como uma séria

ameaça militar. Entre 1934 e 1937, Estaline tenta formar alianças com o Ocidente,

integrando a URSS na Liga das Nações, para precaver um possível ataque Nazi. Contudo,

dada a relutância do Ocidente em opor-se a Hitler, Estaline reverte a sua política e entra em

negociações com a Alemanha que acabarão com o Pacto de Não-Agressão Nazi-Soviético (ou

Pacto Ribbentrop-Molotov). Sentindo-se salvaguardada no flanco oriental, a Alemanha

invade a Polónia a 1 de Setembro de 1939, iniciando a 2ª Guerra Mundial (Curtis, 1996).

Em 1941, Hitler invadiu a Rússia. Quase de imediato os compositores juntaram o seu talento

à causa da guerra escrevendo todo o tipo de música patriótica, desde canções e marchas

que podiam ser cantadas na frente, a sinfonias e oratórias (Leonard, 1968, p.292). A guerra

também trouxe consigo uma folga nas rédeas do partido sobre as artes. O estado tinha

prioridades mais urgentes, e os compositores tais como Schostakovich, Prokofiev e

Miaskovsky aproveitaram a oportunidade para sair fora das normas impostas, produzindo

algumas das obras mais importantes desse período (Leonard, 1968, p. 292).

Em 1934, na 1ª Convenção da União Literária Soviética, Maksim Gorki propôs a doutrina do

Realismo Socialista, que passou então a ser a ideologia oficial do Estado no que respeitava às

artes. O realismo socialista baseia-se nas ideias marxistas-leninistas de materialismo

dialéctico, luta de classes e causas socioeconómicas para todos os fenómenos relacionados

68

com a arte e a cultura. Assim, a arte não podia possuir um “conteúdo estético puro”

separado da realidade política e económica na qual se insere. Isto seria formalismo: fruto do

artista que, pela sua situação económico-social, está isento da necessidade de trabalhar e

produzir bens, podendo permitir-se enveredar por especulações abstractas ou dar

importância a “peculiaridades pessoais nos factores estruturais e composicionais” –

individualismo (Bakst, 1966, p.276). Essa seria uma falsa arte, classificada como reaccionária,

que se baseia e favorece as contradições sociais entre as classes. A verdadeira arte, por

oposição, só podia ter lugar numa sociedade sem classes e devia reflectir essa realidade;

tinha, portanto, de ter um carácter colectivo e acessível. Além disso, tinha de educar

moralmente o trabalhador, o que quer dizer que tinha de ser construtiva e optimista,

perspectivando o futuro ideal do comunismo e glorificando os aspectos positivos da sua

existência presente.

Para resolver o problema de como representar a realidade e a ideologia comunistana

música, foi introduzido o conceito de intonação. Inspirado no discurso humano, o termo

sugere a maneira como as pequenas inflexões no tom e dinâmica do discurso falado

transmitem diferentes estados psicológicos e temperamentos. Em termos muito gerais, uma

intonação constitui qualquer gesto ou elemento musical ao qual é associado um significado

ou função expressiva. Assim, o conteúdo ideológico da música de uma época é representado

pela soma das intonações musicais dessa época. A música socialista devia, por um lado,

conter “vivas as intonações musicais da realidade soviética,” e por outro, possuir “novos

tipos de desenvolvimento temático baseados sobretudo no princípio da luta… [entre] o novo

mundo socialista e o velho mundo capitalista” (Bakst, 1966, p.292).

E se os princípios teóricos do realismo socialista eram simples e claros, a sua aplicação na

prática foi tudo menos isso. Mas para isso existia o partido para “guiar” os artistas com as

suas directivas.

Um sinal claro disso foi o ataque, em 1936, do Pravda à ópera “Lady Macbeth” de

Schostakovich, que, ainda havia dois anos, tinha sido um sucesso fenomenal. O artigo,

intitulado “Balbúrdia em vez de Música” acusava o compositor de “formalismo”,

“mesquinhez burguesa” e “Meyerholdismo” no seu pior, e trazia ainda uma ameaça pouco

disfarçada, caso o compositor não se emendasse. E de facto, quem não o fizesse, arriscava-

69

se a seguir o destino de Vsevolod Meyerhold, que foi preso em 1939, brutalmente torturado

e fuzilado, enquanto a sua mulher foi mortalmente esfaqueada.

O problema é que as próprias directivas do Estado frequentemente eram pouco específicas,

incoerentes ou mesmo contraditórias: por exemplo, a exigência da presença de

“nacionalismo [narodnost – N.A.] partidário, evitando o nacionalismo burguês” (Viljanen,

2005, p.29). O próprio Prokofiev queixava-se: “Se ao menos eles explicassem o que era que

queriam de mim, eu possuía técnica suficiente para poder fornecê-lo” (Wilson)

VI. Sergei Prokofiev

Prokofiev no contexto político do Realismo Socialista

Prokofiev, podendo não o parecer, é uma figura que levanta controvérsia na musicologia

recente, precisamente dada a sua relação com o regime estalinista. A natureza dessa relação

é alvo de um debate aceso, assim como as razões que o levaram a voltar à URSS.

Dos muitos artistas e intelectuais que emigraram durante o período da instabilidade,

Prokofiev foi dos poucos que optaram por regressar à União Soviética. E fê-lo numa altura

paradoxal: em 1936, poucos meses após o ataque governamental a Schostakovich e no

período auge das repressões estalinistas. Várias razões são propostas, entre as quais o

carreirismo egocêntrico, a nostalgia pela pátria, a ilusão sobre a verdadeira situação no país,

ou a genuína ingenuidade do compositor. Estudos mais recentes (Morrison, 2009) revelam

70

novas informações que permitem traçar um quadro mais complexo da situação em que o

compositor se encontrava.

Nesta problemática, a questão política aparentemente não pode ser descartada para alguns

(Taruskin, 2010, p.13), visto que o compositor escreveu música abertamente laudatória para

o Estado e para o próprio ditador num período em que pessoas eram mortas ou presas, o

que levanta sérias objecções morais que ultimamente põem o seu legado sob dúvida.

Os vários lados do debate apresentam diferentes visões do compositor. Por um lado há os

que consideram que o compositor promovia a doutrina socialista, seja porque partilhava as

suas convicções (versão oficial soviética, Nestiev, 1946) ou porque era um oportunista

ambicioso que se conformava ao Estado para obter privilégios, até ele próprio cair em

desfavor durante a Zhdanovschina (Taruskin, 2010). Por outro, estão os que defendem o

compositor, sugerindo que ele foi essencialmente coagido a conformar-se (Seroff, 1969) ou

que era mesmo um dissidente secreto (Macdonald). Tendo em conta a realidade soviética,

tal cenário parece plausível. O problema consiste na identificação de possíveis segundos

significados e causas para as acções do compositor, o que, perante ausência de evidência

directa, pode ser perigoso.

Há ainda outros que preferem evitar a controvérsia política (Robinson, 1998) ou optam por

uma posição intermédia (Morrison, 2008), sugerindo que Prokofiev tentou conciliar o seu

genuíno interesse em contribuir para a sociedade com as exigências do Estado,

aproveitando-se no processo das eventuais oportunidades para o seu benefício.

Prokofiev, enquanto pessoa, incorporava bem os atributos da época moderna: era dinâmico,

pragmático, optimista – uma pessoa de acção. Avesso à sentimentalidade, tinha uma

tendência para a ironia e o sarcasmo. A sua disciplina e capacidade de trabalho eram

notadas por aqueles que o conheciam. Ao contrário dos outros dois compositores, Prokofiev

tinha uma profunda consciência social. Para ele o artista tinha que ser antes de mais um

cidadão. A sua arte, ao invés de ser restringida pelos “limites estreitos das emoções

subjectivas”, tinha o grande propósito de “servir o Homem”, ajudá-lo a ter uma vida melhor

e dar-lhe esperança para o futuro (pp. 135-6). Das memórias de Mira Mendelson ficamos a

saber que Prokofiev era um ávido leitor, com um gosto literário que ia de Pushkin a Gorky,

71

passando por todos os grandes clássicos russos do séc. XIX, e ainda os clássicos da literatura

mundial tais como Shakespeare, Goethe e Romain Rolland. O traço que por detrás desta

diversidade apelava ao interesse do compositor era que as obras fossem “fiéis à realidade,

profundas na sua ideia e intrinsecamente humanas, obras de imagética vivida e humor

subtil, que sublinhavam a beleza espiritual e vigor do homem, a sua busca da verdade e da

bondade” (1956, p.181)

Para perceber melhor o tipo de relação que havia entre Prokofiev e o governo Soviético e de

que maneira o compositor estava a ser afectado pela situação social, é preciso ir à origem

dessa relação.

Ao contrário de Rachmaninov, que com a chegada da revolução viu a morte de tudo o que

ele amava no seu país, e sentiu a impossibilidade de continuar a viver nele (Scriabin já tinha

morrido por esta altura), Prokofiev estava entusiasmado com as mudanças: “Tanto eu, como

os círculos nos quais me inseria, saudavam-na com alegria. Estive nas ruas de Petrogrado,

mesmo no meio da revolução, volta e meia escondendo-me atrás das proeminências nas

paredes, quando o tiroteio se tornava intenso…” (Savkina, 1981, p.61) Embora não seja

inteiramente claro quais foram as motivações de Prokofiev para emigrar poucos meses após

à revolução (políticas, profissionais ou ambas?), o que se sabe é que partiu com

consentimento amigo de Anatoly Lunacharsky, Secretário da Narcompros, o órgão oficial da

cultura.

Durante o seu tempo no estrangeiro (Estados Unidos e França), Prokofiev mantinha contacto

com os seus amigos no meio artístico russo, tais como Meyerhold e Miaskovsky, que por sua

vez mantinham o compositor a par dos acontecimentos na sua pátria. Uma parte dele

sempre lamentou ter “fugido da história” e de não fazer parte dos grandes eventos que

estavam a desenrolar-se.

Com o auge da era NEP em 1925, o partido, por iniciativa de Lunacharsky, decidiu

estabelecer contactos culturais com o ocidente e em particular com os grandes artistas

russos no estrangeiro. Entre os contactados estava Prokofiev, que expressou interesse em

regressar e foi informado de que seria autorizado a fazê-lo, com “total liberdade de viajar

para dentro e fora de RSFSR” (Morrison, 2009, p. 7). A proposta era tentadora: Prokofiev

72

podia finalmente visitar a sua pátria e ter a sua música tocada lá, mantendo ao mesmo

tempo os seus compromissos no Ocidente. Começa então uma série de viagens para a União

Soviética, em1927, 192914, e 1932. A partir de 1932 as viagens passam a ser mais frequentes.

O compositor toca e dirige as suas obras, escreve música teatral e cinematográfica em

colaboração com artistas soviéticos, entre os quais Meyerhold, com quem já tem uma

parceria de longa data. A recepção do público comovia-o:“O público aqui recebia-me de uma

maneira absolutamente maravilhosa – como em mais nenhum lugar. Aqui encontrei-me em

condições excepcionais” (Stretiakova, 1987, p.44). Estava fascinado com os novos

desenvolvimentos: “Os sucessos gigantes no domínio da construção e cultura na URSS

causaram em mim uma impressão arrebatadora” (ibid., p.45)

No contexto criativo, Prokofiev sentia necessidade de se reaproximar da sua terra natal. Em

1933, tinha dito: “O ar das terras estrangeiras não contribui para a minha inspiração porque

sou Russo, e nada me é mais prejudicial do que viver no exílio, permanecer num clima

espiritual que é alheio à minha nação… Tenho que regressar” (Taruskin, 2010, p. 239). Além

da crise criativa, alguns especulam que a outra razão por detrás do seu desejo de voltar era a

diminuição do sucesso da sua música na Europa, possivelmente como resultado da

popularidade de Stravinsky (Taruskin, 2010, p.229).

Apesar de ter tomado a decisão em 1933, Prokofiev “vacilou” durante alguns anos

(Morrison, p.30). Há indícios de que tinha noção do lado negro do regime já em 1927,

através de cartas a informarem-no da prisãodo seu primo e da sua prima (Morrison, p.11).

Esse conhecimento era certamente um factor que contribuía para a sua relutância em

estabelecer-se definitivamente na Rússia.

Vendo o interesse do compositor pela actividade musical na URSS e a frequência das suas

visitas, o governo soviético, através da pessoa de Levon Atovmyan e mais tarde Vladimir

Potyomkin, inicia um longo esforço para persuadi-lo a ficar definitivamente. Entre os

14 Nesse ano a sua música foi alvo ataques do grupo proletário RAPM, o que em parte explica o intervalo de

3 anos. Contudo com a sua dissolução em 1932, Prokofiev sentiu-se mais à vontade para voltar a visitar

URSS. 73

argumentos usados figura uma residência privada, segurança financeira e sobretudo um

mercado garantido para as suas obras.

Mantendo sempre uma residência dupla (com dois passaportes) entre Paris e a URSS, uma

parte substancial do rendimento de Prokofiev passou a provir da União Soviética, o que

constituiu motivo para o governo soviético lhe colocar um ultimato, em 1935 (Morrison,

2009, pp. 29-31). Teria de se mudar permanentemente ou perderia o direito de entrar no

país. Prokofiev decide regressar à União Soviética, calculando que no pior cenário podia

sempre abandonar o país (Morrison, 2009 p.41).

Depois de 1936, Prokofiev faz apenas mais duas viagens para o estrangeiro, na qualidade de

embaixador da cultura soviética, sendo a última em 1938. A partir dessa altura, a sua

possibilidade de sair do país é anulada pelo NKVD (Morrison, 2009, p. 86).

A situação familiar de Prokofiev foi afectada pela sua decisão de se estabelecer

permanentemente na Rússia. A sua mulher, Lina Codina, acompanhava-o nalgumas das suas

viagens. Contudo, a mudança definitiva não parecia fazer parte dos seus planos. Era difícil

para ela habituar-se à nova vida na União Soviética, principalmente depois de ter

conhecimento das repressões que estavam a ter lugar à sua volta. Ela queria regressar a

Paris, e isso acabava por ser o principal ponto de conflito entre os cônjuges (Morrison, 2009,

pp. 69-70). Inicialmente, Prokofiev ignorava as queixas da mulher, sempre concentrado na

sua música e seguro de que não havia motivo para preocupações. No entanto, com o tempo

a relação piorou. Ele passou a distanciar-se da mulher e da família. Em 1938, conheceu uma

jovem admiradora e poeta aspirante Mira Mendelson e passou a viver com ela em 1941,

deixando os dois filhos a cargo da mulher, Lina. Em 1947, ela foi acusada de ser uma espiã

estrangeira passando os anos entre 1948 e 1956 nos campos da Sibéria.

Ao que parece, no início Prokofiev sentia-se seguro como membro da elite artística soviética.

O ataque do Pravda a Schostakovich em 1936, não só não o desencorajou da sua decisão de

regressar à URSS, como parece ter-lhe dado a ideia de que passaria ele a ocupar o lugar de

principal compositor soviético. Apesar de ser confrontado com a crítica desde o início,

Prokofiev mantinha um optimismo e talvez mesmo uma esperança de que iria ter um

tratamento preferencial. Decerto considerações de carácter financeiro tinham aqui lugar.

74

Contudo havia outros aspectos. A sua mudança para a União Soviética coincidiu com uma

mudança no seu estilo musical com vista a uma maior simplicidade. Muitos atribuem o estilo

mais simples e melodioso do período soviético de Prokofiev à sua conformação aos

princípios do Estado, mas há razões para crer que tal constituísse uma mudança consciente

no estilo do compositor que teve lugar ainda antes da sua partida para a Rússia (Morrison,

2009, p.14).

Apesar das acusações de tentar agradar ao Estado, é possível que o compositor acreditasse,

pelo menos inicialmente, nas ideias comunistas e tivesse um desejo genuíno de contribuir

para a sociedade com a sua música. O problema é que muitas vezes a sua música não era

exactamente a que o Realismo Socialista exigia. A necessidade constante de estar a fazer

alterações e revisões à sua música para corresponder a essas exigências, em detrimento da

sua criatividade15, e pior, a proibição de ver algumas das suas obras, fruto de anos de

trabalho, serem tocadas, fizeram com que Prokofiev gradualmente compreendesse a sua

verdadeira posição no mundo soviético. A acusação de “formalismo” pelo chefe do Concelho

Supremo Zhdanov, em 1948, foi o golpe final, ditando a última fase da vida do compositor,

com a sua saúde em declínio e crescente interferência de terceiros na sua composição

(Morrison, 2009, p. 341).

Até esse momento, Prokofiev conseguiu continuar a compor sempre com a mesma energia,

ignorando a realidade política sinistra que o rodeava. Aparentemente a sua fé religiosa teve

um papel importante nessa atitude:“A Ciência Cristã vê o mal como não tendo realidade,

pois o mal é uma entidade temporária… A aceitação do bem e a rejeição do mal, por uma

pessoa, é sintomática da maturação da sua individualidade” (Morrison, 2009, p.4).

É discutível até que ponto Prokofiev tinha noção da verdadeira dimensão da realidade

político-social. As pessoas evitavam falar sobre isso e, durante muito tempo até o Ocidente

ignorava os acontecimentos dentro da Cortina de Ferro. Os motivos por detrás da sua

inacção relativamente à prisão do seu amigo Meyerhold e mais tarde da sua (ex) mulher Lina

apenas podem ser especulados, à espera de novas informações provindas dos materiais

presentemente arquivados.

15 Mira Mendelson, nas suas reminiscências, atribui a “constante revisão e aperfeiçoamento das suas obras”

ao seu “alto padrão” de exigência artística (p.175)75

Em todo o caso, a sua oposição (a julgar pelos seus escritos) era sobretudo contra os

burocratas e compositores da União dos Compositores, que na sua opinião vulgarizavam a

música e a percepção das pessoas. Prokofiev faz várias declarações públicas na imprensa

soviéticanos anos 30 nas quais adverte contra os “perigos de provincializar” a música (p.99).

Manifesta-se também contra o estilo “pseudo-nacional” que, segundo ele, pecava por mau

gosto (Rosiner, 1978, p.145). Apela a uma “nova simplicidade” na melodia e na harmonia,

que não caísse na trivialidade (Prokofiev, p. 100). Uma espécie de compromisso: uma música

“séria-ligeira” que devia por um lado ser “grandiosa, ou seja, aquela em que a concepção e a

realização técnica correspondessem ao âmbito da época,” mas que ao mesmo tempo fosse

“endereçada a milhões de pessoas que tinham pouco ou nenhum contacto com música”

(Prokofiev, p.99).

No seu diário de 1937 (ibid, p.106) o compositor expunha a opinião de que compadecer-se

com as massas esconde em si um elemento de insinceridade, e que estas compreendem

muito mais do que alguns compositores pensam. Acreditava que as massas tinham a

capacidade de desenvolver os seus gostos musicais e que a tarefa dos compositores era

ajudar isso a acontecer.

Mas o tempo provará que tal ousadia foi uma jogada mal pensada. As palavras de Prokofiev

serão usadas contra si.

Tikhon Khrennikov era um indivíduo que tentava subir na consideração do Partido a todo

custo. Para além de escrever de acordo com os ditames deste, dedicava-se igualmente à

difamação de outros compositores. E Khrennikov aproveitou a oportunidade para ser dos

primeiros a acusar Prokofiev: “Quando nós … estávamos a tentar ser verdadeiros

compositores soviéticos, verdadeiros filhos da época, Prokofiev declarou que a música

Soviética era provinciana, e que o único compositor Soviético contemporâneo digno era

Schostakovich” (Seroff, 1969, p. 187). Os materiais comprometedores sobre o passado de

Prokofiev, compilados por Khrennikov serão em 1948 usados por Zhdanov para acusá-lo de

“formalismo” e “tendências anti-democráticas” (Leonard, 1968, p. 293). Muitas das suas

obras, entre as quais a 8ª sonata, serão proibidas (Morrison, 2009, p.314). O próprio

compositor terá de passar pela humilhação formal de escrever uma carta a admitir os seus

erros.

76

Contextualização da Sonata nº8

A 22 de Junho de 1941 as forças alemãs tinham invadido a União Soviética, violando assim o

Pacto da Não-Agressão. Prokofiev encontrava-se numa dacha em Kratovo, perto de

Moscovo, com a sua companheira Mira Mendelson.

Passado pouco tempo começaram os bombardeamentos aéreos de Moscovo que eram

visíveis a partir da sua casa, transformando a paisagem nocturna num cenário de guerra.

Como o compositor descreve vividamente no seu artigo “O Artista e a Guerra”( p.125): “As

luzes, os rastos verdes das balas dos caças, e os rockets amarelos lançados pelos alemães

combinavam para produzir um espectáculo de uma beleza sombria.”

Daqui em diante, Prokofiev mudará de residência várias vezes para cidades cada vez mais

afastadas de Moscovo. Em Agosto, Prokofiev, juntamente com um grupo de artistas, é

evacuado para Nalchik, uma pequena vila no Cáucaso. As primeiras 6 cenas da “Guerra e

Paz” são escritas aqui.

No outono os compositores mudam-se para Tbilisi, na Geórgia. Aqui é completada a 1ª

versão da “Guerra e Paz” e a 7ª sonata para piano.

Em 1942 Prokofiev vai para Alma-Ata, Cazaquistão, onde escreve música para vários filmes,

incluindo “Ivan o Terrível”de Sergei Eisenstein. Aqui trabalha também sobre a 8ª sonata.

No verão de 1943 o compositor muda-se para Perm, nos Urais, a convite do Teatro Kirov.

Enquanto viajava escreve a suite sinfónica “Semyon Kotko”, baseada na música da ópera

homónima sobre a invasão alemã da Ucrânia em 1918, e a “Balada para o Rapaz

Desconhecido”.

No outono do mesmo ano Prokofiev regressa a Moscovo, entretanto “libertado da perigosa

proximidade da frente” (Nestiev, 1946, p. 167).

Em 1944, Prokofiev ganha reconhecimento junto do governo, sendo distinguido com vários

prémios (Nestiev, p.168). O verão desse ano foi passado na Casa dos Compositores em

Ivanovo, um campo de férias. Nessa altura estavam lá compositores como R. M. Glière, D. D.

Shostakovich, D. B. Kabalevsky, entre outros. Entre as obras completadas lá estavam a 8ª

77

Sonata e a 5ª Sinfonia. Segundo Morrison, os esboços dos contornos gerais de toda a Sonata

juntamente com alguns esboços da 6ª Sonata foram feitos ainda no outono de 1939,

enquanto Mira Mendelson (p. 168) afirma que todas as 3 sonatas “de guerra” foram

começadas nesse ano. A mesma sugere ainda que a escrita das sonatas foi influenciada pela

leitura do livro de Romain Rolland sobre Beethoven que Prokofiev estava a ler no Verão de

1939 (p.188).

O tempo de guerra significou uma menor pressão do Estado e consequentemente uma

maior liberdade criativa. E Prokofiev aproveitou a oportunidade: no meio de obras de

carácter patriótico e propagandista, encontramos obras mais experimentais e ousadas, entre

as quais as três Sonatas de Guerra, que Morrison (2009) classifica como sendo as obras mais

radicais do período tardio de Prokofiev. Robinson (citado em Sicsic, 1993, p.10) sugere que

fosse a necessidade de testar a sua originalidade enquanto compositor que o levou a

revisitar o género da sonata após um intervalo de 15 anos (pela primeira vez desde o seu

regresso à URSS).

Será que se tratava também de uma espécie de afronta ao Estado? Afinal a música

puramente instrumental não era propriamente encorajada por este (Slonimsky, citado em

Sicsic, 1993, p. 21). Há quem diga que as 3 sonatas na realidade não representam a 2ª

Guerra Mundial de todo, mas sim uma crítica ao regime terrorista de Estaline. Gavrilov é um

dos que subscrevem essa posição. Contudo ele vê o período da guerra em geral como uma

espécie de janela durante a qual todas as pessoas podiam manifestar o seu

descontentamento.

Se as sonatas foram escritas como uma crítica, é irónico o facto de serem reconhecidas com

o prémio de Estaline (2ª classe para 7ª Sonata e 1ª classe para a 8ª) e de serem em geral

bem recebidas pelo público, apesar da sua linguagem por vezes abstracta. A ironia é dupla,

visto que de todas as suas obras, estas sonatas claramente não foram escritas a pensar na

sua aprovação pelas autoridades.

A ausência, neste caso, da influência das autoridades (Sicsic, 1993, p.7) permite assumir que

o compositor se baseou em critérios e concepções pessoais na escrita das peças.

78

Se por um lado, Nestiev (1946, pp.183-4) vê a concepção teatral, com as suas descrições

realistas das personagens e ambientes, reflectida nos temas das sonatas, Morrison (2009,

p.164), por outro, vê-as como uma abstracção que reflecte as crenças espirituais do

compositor. Este último sugere que Prokofiev dava mais importância às próprias ideias

musicais do que ao contexto em que eram usadas, atribuindo ao momento da sua

concepção um significado divino (ibid, p.4-5). Com isto ele não quer dizer que as sonatas

fossem desprovidas de conteúdo, apenas que não eram programáticas no sentido Realista

Socialista.

A oitava sonata marca o ponto de partida das outras duas (6ª e 7ª), pelo seu carácter lírico

contemplativo. Tanto Kabalevsky (1954, p.205) como Neuhaus (1954, pp.229-230), notam

uma progressão para o lirismo e a intelectualização das obras tardias que contrastam com os

“excessos” e o “sarcasmo” da sua música anterior. Gavrilov vê a 8ª sonata como uma obra

em que o compositor dá expressão aos seus pensamentos pessoais, sugerindo que a dura

realidade o obrigou a abandonar a sua atitude irónica habitual e “olhar para a vida numa

perspectiva mais trágica”.

Richter (citado em Sicsic, 1993, p. 24), considerou a 8ª sonata “a mais rica de todas as

sonatas de Prokofiev”, contendo “uma complexa vida interior com contraposições

profundas”. No que toca à interpretação do seu significado, a sonata é ambivalente pois

evita emoções simples e directas, invocando sentidos duplos. Nos momentos mais

tranquilos, existe sempre um fundo de tensão ou ironia. Os momentos de júbilo pedem

sempre a pergunta se são de facto genuínos ou se contêm uma semente de pessimismo ou

desconsolo que impedem a sua celebração completa. Podemos especular que essa

ambiguidade constitui um reflexo da necessidade de conciliar a vontade criativa do

compositor com as limitações impostas sobre ele, tornando impossível tanto a expressão

aberta das suas ideias como a complacência cega e impessoal.

Mas a complexidade da sonata também se manifesta no domínio puramente musical. Nela

encontramos “o estilo transparente dos clássicos, massas sonoras monolíticas típicas da

música do séc. XX, sonoridades do Romantismo, e ambientes e texturas quasi

impressionistas” que no seu conjunto lhe conferem uma “dimensão sinfónica” (Sicsic, 1993,

p.74).

79

O tema inicial transmite desde logo o carácter contemplativo da obra. Esse ambiente é

criado com o uso do registo grave e ritmo regular da melodia principal que parece não ter

fim. A melodia simples e doce contrasta com o contraponto dissonante das vozes interiores,

criando uma tensão interior. Nestiev (1946, p.170) vê aqui um “equilíbrio luminoso e

sabedoria tranquila”. Esta parte poderá ser uma meditação, um fazer sentido após uma

catástrofe.

cc.1-9

80

O talento lírico do compositor manifesta-se na capacidade de evocar as intonações russas

características das canções urbanas ou populares, como neste exemplo (tema 3 do 1º Grupo

Temático) – uma capacidade (voluntariamente ou não) desenvolvida durante o seu período

soviético.

cc. 22-25

Apesar de momentos de leve agitação, toda a exposição do 1º andamento está imersa num

carácter contemplativo e misterioso. Este segundo grupo temático (cc. 61-83) parece entrar

num estado de intemporalidade. Pedais no baixo que duram vários compassos dão um

fundo para aquilo que podem ser aparições fantasmagóricas ou recordações do desespero

no registo agudo.

cc.61-63

81

Esta secção termina num feixe luminoso no registo agudo que gradualmente desvanece:

cc.84-89

A secção do desenvolvimento (cc.90-205) apresenta um carácter completamente

contrastante. Subtitulada inquieto, ela evoca o caos da destruição, que começa com uma

agitação no registo grave.

cc.90-91

Fragmentos dos temas da secção inicial são inseridos no meio da agitação adquirindo um

outro significado. O movimento das semicolcheias cresce em intensidade, dando lugar a uma

secção de brutalidade mecânica e implacável

cc.141-144

82

Que culmina com massas sonoras que evocam bombas

c.169 c.173 c.177

e destruição catastrófica.

cc.183-187

83

A culminação violenta gradualmente acalma, mantendo ainda uma perturbação interior, e

passa tranquilamente para o Andante Dolce inicial. Gavrilov vê aqui a imagem de um colosso

(Rússia) a tentar levantar-se mas a não conseguir, acabando por sucumbir.

cc.196-206

Um aparente regresso ao equilíbrio inicial, que no entanto já não é o mesmo após o choque

vivido durante a secção anterior. Certos momentos de agitação passageira são omitidos

desta vez. Volta o ambiente intemporal e contemplativo do 2º Grupo Temático,

cc.259-260

84

que, sem nenhum aviso, é interrompido pela coda (cc.261-297).

cc.261-262

Começa novamente o redemoinho caótico, que desta vez apaga quaisquer referências aos

temas da realidade anterior, adquirindo uma vida própria.

Atinge a sua culminação na afirmação definitiva do material das semicolcheias no registo

agudo.

cc.281-282

O final do andamento, após toda a agitação, é ambíguo e imprevisível. Tentando

aparentemente acalmar, há uma tentativa desastrada de saltar ou escapar, que acaba numa

espécie de encrave. Quando já parece não haver maneira de sair deste limbo disforme, no

último momento aparece a luz.

cc.293-297

85

O 2º andamento, em forma de rondo modificado, representa uma espécie de “bolha” de

realidade, completamente desenraizado do contexto tanto do 1º como do 3º andamentos. A

indicação sognando sugere isso mesmo, embora possa ser interpretada de diferentes

maneiras. Será que o compositor é transportado para um mundo imaginário e imaterial, ou

sonha em trazer de volta o tempo em que vivia feliz e despreocupado? O facto de ser uma

dança ligeira sugere uma paródia ou até auto-paródia com elementos de absurdo, ou

simplesmente brincadeira? A linguagem dissonante neste andamento confere um carácter

cómico ou irónico, em contraste com o conflito interior do 1º andamento.

cc.1-8

O carácter geral do andamento é contemplativo, contrastando partes mais cómicas com

mais sérias, ou alternativamente, mais irónicas com mais sinceras.

86

Contudo aqui a contemplação é verdadeiramente tranquila, sem sobretons sombrios como

no 1º andamento.

cc.35-38

cc.66-67 (a junção dos dois temas anteriores)

87

O 3º andamento (forma rondo) é o mais enérgico e direccionado. Se o 1º for visto como uma

ruminação sobre as perdas causadas pela destruição, o 3º representa uma afirmação de um

mundo novo e melhor. Gavrilov, porém, vê aqui a mesma destruição implacável do 1º

andamento.

cc.1-8

Característicos de Prokofiev são os contornos angulares da suas melodias que neste caso

comunicam num carácter brilhante e afirmativo.

cc.42-45

88

A secção central marca contraste com o movimento inicial, apresentando-se como uma

insistência mecânica, implacável e estática ao mesmo tempo. Nesta secção Prokofiev exibe a

sua capacidade de desenvolvimento através da manipulação motívica

cc.107-124

e o efeito de crescendo através da acumulação de camadas, que atinge o seu ponto alto

aqui:

cc.194-198

89

Após a culminação segue-se um ostinato baseado no motivo

cc.225-228

que começa novamente a acumular camadas e atinge mais um pico.

cc.248-251

Sobre o fundo do ostinato implacável é recordado o tema do 2º GT, estático e

contemplativo,

cc.289-296

90

Pouco a pouco o ambiente transforma-se até chegar à secção de andantino irresoluto, um

lirismo incorpóreo e delicado.

cc.343-345

Assim termina a secção central, dando lugar à reexposição.

O “moto perpetuo” das tercinas de colcheias atinge o seu clímax na coda, com um varrer dos

acordes quebrados à distância de trítono entre si, e a repetição diabólica das notas no

registo agudo criando uma sensação de transbordar total,

cc.474-479

91

que é abruptamente terminado com uma chamada à realidade terrestre. A ambiguidade

entre maior e menor permanece até ao último acorde.

cc.483-489

92

VII. Conclusão

Depois de abordar as obras de cada compositor em separado, tentaremos agora traçar

conclusões gerais.

O que os une? A resposta mais imediata seria o facto de serem, discutivelmente, os três

compositores que deram o contributo mais importante para a música pianística russa do

séc. XX.

As suas vidas e carreiras intersectaram-se no período pré-revolucionário. Eles partilharam o

mesmo meio musical e influenciaram-se uns aos outros. Foram afectados pelos eventos , e a

maneira como reagiram reflectiu-se na sua música.

De uma forma mais geral eles representam respostas diferentes ao desafio criado pela crise

de valores que acompanhou a transição conturbada entre duas épocas. Rachmaninov,

sentindo-se profundamente ligado à Rússia da sua infância e juventude, resistia às novas

correntes, vendo-as como uma distorção antinatural dos valores que lhe eram caros. A sua

música, apesar de não ser propriamente inovadora, foi um desenvolvimento muito original e

particular da linguagem tradicional. Prokofiev, pelo contrário, apanhou a onda dos novos

tempos, com a sua energia mecânica, racionalidade e progresso. Já Scriabin foi um

fenómeno único: mergulhando completamente no seu próprio mundo ideal, criou uma

linguagem sem paralelo, que reflectia esse mundo.

Apesar de todas as referidas diferenças, há um traço fundamental que une os três

compositores, e nesse sentido torna-os portadores da mesma tradição. É a sua visão da

música como uma linguagem que é no fundo uma representação de algo maior, um meio e

não um fim. Assim, Rachmaninov, com a sua música transmite vivências, conflitos interiores,

o trágico na vida, e a nostalgia pelas coisas perdidas; Scriabin encara a sua música quase

como uma fórmula mágica que consegue provocar alterações na consciência do ouvinte e

que representa as suas próprias concepções abstractas; Prokofiev vê-a como promovendo o

humanismo e o progresso na sociedade.

93

Bibliografia

Livros

Asafiev, B. (1968). Música Instrumental Russa. Em Pavchinski, S., Zuckerman, V. (Eds.), A. N. Scriabin: Colecção de Artigos (pp.55-60). Moskva: Sovetskiy Kompositor

Bakst, J. (1966). A History of Russian-Soviet Music.NY: Dodd, Mead&Company

Ballard, L. (2011). Defining Moments: Vicissitudes in Alexander Scriabin’s 20th Century Reception.

Belza, I. (1982). Alexander Nikolaevich Scriabin. Moskva: Muzyka~

Bertensson, S., Leyda, J. (2001).Sergei Rachmaninoff: A Lifetime in Music (re-issue).Bloomington, IN: Indiana University Press.

Borney, G. (2006). Interpreting Chekhov. ANU E Press

Bowers, F. (1996).Scriabin, A Biography(2nd,revised edition). Mineola, NY: Dover Publications, Inc.

Damare, B. (2008). Music and Literature in Silver Age Russia: Mikhail Kuzmin and Alexander Scriabin. University of Michigan

Danilevich, L. (n.d.). Da Terceira Sinfonia para o “Prometeu”.Em Pavchinski, S., Zuckerman, V.(Eds.), A. N. Scriabin: Colecção de Artigos (pp.262-319). Moskva: Sovetskiy Kompositor

Ewen, D. (1961). The new book of modern composers. NY: Alfred A. Knopf

Ford, A. (2011). Illegal Harmonies: Music in the Modern Age. BlackInc.

Glover, A. (2003). An Annotated Catalogue of the Major Piano Works of Sergei Rachmaninoff. Florida State University

Harrison, M. (2006). Rachmaninoff: Life, Works, Recordings. Continuum International Publishing Group

Hegel, G. (n.d.) Estética: Pintura e Música. Guimaraes editores

Kabalevsky, D. (1954). A Vivid Personality. Em Shlifstein, S. (Ed.) (n.d.). Sergei Prokofiev: Autobiography, Articles, Reminiscences (pp.201-221). Moscow: Foreign Languages Publishing House

Leonard, R. A. (1968). A History of Russian Music (1st paperbound edition). Funk &Wagnalis, A Division of Reader`s Digest Books, Inc.

94

Mendelson, M. (1956). Work Was His Life. Em Shlifstein, S. (Ed.) (n.d.). Sergei Prokofiev: Autobiography, Articles, Reminiscences (pp.164-192).Moscow: Foreign Languages Publishing House

Morrison, S. (2009). The people´s artist: Prokofiev´s soviet years. Oxford: Oxford University Press

Nestiev, I. (1946). Sergei Prokofiev: His Musical Life. NY: Alfred A. Knopf

Neuhaus, H. (1954).Prokofiev, Composer and Pianist. Em Shlifstein, S. (Ed.) (n.d.). Sergei Prokofiev: Autobiography, Articles, Reminiscences (pp.228-237). Moscow: Foreign Languages Publishing House

Norris, G. (1994). Rachmaninoff (1st American edition). New York, NY: Schirmer Books, An Imprint of Macmillan Publishing Company.

Orlova, E. (1979). Lições sobre história da Música Russa (2ª edição). Moskva: Muzyka

Prokofiev, S. Em Shlifstein, S. (Ed.) (n.d.). Sergei Prokofiev: Autobiography, Articles, Reminiscences (pp.93-137).Moscow: Foreign Languages Publishing House

Robinson, H. (1998). Selected Letters of Sergei Prokofiev.Boston: Northeastern UniversityPress

Rosenthal, B. (2002). New Myth, New World: From Nietzsche To Stalinism. PennsylvaniaState University

Sabaneev, L. (1923). Scriabin. Moskva, Petrograd: Editora Estatal

Sabaneev, L. (1925). Recordações de Scriabin. Moskva:Muzgiz

Seroff, V. (1969).Sergei Prokofiev – a Soviet Tragedy. London:Leslie Frewin

Sicsic, H-P.(1993). Strucural, Dramatic and stylistic relationships in Prokofiev’s sonatas no. 7 and no.8. Rice University

Sitsky, L. (1994). Music of the Repressed Russian Avant-Garde, 1900-1929. Praeger

Skaftymova, L. (1973). Sobre a Melodia de Rachmaninov. Em Orlova, E., Ruchievskaya, E. (Eds.). Páginas da História da Música Russa (pp.103-122). Leningrad: Muzyka

Stretiakova, L. (1987). Música Soviética. Moskva: Prosveschenie

Taruskin, R. (2000). Defining Russia Musically (3rd edition). Princeton, NJ: Princeton University Press

Taruskin, R. (2010). On Russian Music. University of California Press

Viljanen, E. (2005). Boris Asaf’ev and the Soviet musicology. Helsinki

Wachtel, M. (Ed.) (2000). Selected Essays Viacheslav Ivanov. Northwestern University Press

95

Walker, R. (1984). Rachmaninoff (re-issue). Sydney: Omnibus Press, a division of Book Sales Limited.

Wetzel, D. L. (2009). Alexander Scriabin in Russian musicology and its background in Russian intellectual history. California:Faculty ofthe Graduate School, University of Southern California.

Internet

Andrey Gavrilov’s discussion with Russian musical forum members. http://www.good-music-guide.com/community/index.php?topic=2054.0 (14/10/2012)

Berdiaev, N. (1918). A Crise na Arte. http://www.berdyaev.com/berdiaev/berd_lib/1918_14.html (14/10/2012)

Epstein, M. (1995). The Basic Ideas of Four Russian Thinkers: Brief Outlines. http://www.emory.edu/INTELNET/four_thinkers.html

Everett, C. C. (1984). Fichte’s Science of Knowledge. http://en.wikisource.org/wiki/Fichte’s_Science_of_Knowledge/Chapter_V (14/10/2012)

Fichte, J. (1800). The Vocation of Man. http://www.generation- online.org/p/fpfichte2.htm (14/10/2012)

Figure: What Is German Romanticism (noch einmal), or The Limits of Scholarship. http://www.sunypress.edu/pdf/60370.pdf (14/10/2012)

Gaut, G. (1995). Christian Politics: Vladimir Solovyov’s Social Gospel Theology. http://www.valley.net/~transnat/gautfp.html (14/10/2012)

Georg Friedrich Philipp von Hardenberg [Novalis]. http://plato.stanford.edu/entries/novalis/ (14/10/2012)

MacDonald, G. (2001). Rachmaninoff in Winnipeg: The Band of the Princess Patricia’s Regiment Meets a Russian Master. Manitoba History. 40. http://www.mhs.mb.ca/info/about.shtml (19/06/2012)

MacDonald, I. (n.d.). Prokofiev prisioner of the state. http://www.siue.edu/~aho/ musov/proko/prokofiev3.html (19/06/2012)

96

Muddle instead of music (1936). http://www.arnoldschalks.nl/tlte1sub1.html (12/10/2012) Transformation and Terror. Em Curtis, G. E. (Ed.) Russia: A Country Study. (1996) http://countrystudies.us/russia/10.htm (14/10/2012)

Schelling, F. W. (n.d.) Art Expresses the Universal. http://philosophy.lander.edu/introIartbook.html/x4735.htm (14/10/2012)

Sheehan, H. (n.d.) Ideas and Purges: Soviet Intellectual Life in the 1930s. http://webpages.dcu.ie/~sheehan/soviet2.htm (14/10/2012)

97