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Noite de Natal Sophia de Mello Breyner Andresen Publicada em: http://www.escolovar.org

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Page 1: Conto sophia noite.natal_total

Noite de Natal

Sophia de Mello Breyner Andresen

Publicada em: http://www.escolovar.org

Page 2: Conto sophia noite.natal_total

O amigo

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Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um

jardim à volta.

No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito

antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do

cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus

fazia muitas casas pequenas encostadas ao tronco escuro.

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Depois imaginava os anõezinhos que, se

existissem, poderiam morar naquelas casas.

E fazia uma casa maior e mais

complicada para o rei dos anões.

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Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos.

E , às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.

E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.

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Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.

Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono.

O coração de Joana deu um pulo na garganta.

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-Ah! – disse ela.

E pensou:

“Parece um amigo. É exactamente igual a

um amigo.”

E do alto do muro chamou-o:

- Bom dia!

O garoto voltou a cabeça, sorriu e

respondeu:

-Bom dia!

Ficaram os dois um momento calados.

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Depois Joana perguntou:

- Como é que te chamas?

- Manuel – respondeu o garoto.

-Eu chamo-me Joana.

E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio.

Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta.

Até que o garoto disse:

- O teu jardim é muito bonito.

- É, vem ver.

Joana desceu do muro e foi abrir o portão.

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E foram os dois pelo jardim

fora. O rapazinho olhava uma por

uma cada coisa. Joana mostrou-lhe

o tanque e os peixes vermelhos.

Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras

e a horta.

E chamou os cães para ele os

conhecer. E mostrou-lhe todas as

árvores e as relvas e as flores.

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- É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente.

- Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu brinco.

E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.

A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e

de frescura.

Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava

voltas no ar. Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram

os dois a construir a casa do rei dos anões. Brincaram assim

durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma fábrica.

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- Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora.

- Onde é que tu moras?

- Além nos pinhais.

- É lá a tua casa?

- É, mas não é bem uma casa.

- Então?

- O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.

- Mas à noite onde é que dormes?

- O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.

- E onde é que brincas?

- Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.

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- Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.

E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.

Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra

redonda do cedro.

E foi assim que Joana encontrou um amigo.

Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as

suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

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A festa

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Passaram muitos dias, passaram muitas

semanas até que chegou o Natal. E no dia de

Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os

seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada

às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo, ouviu vozes

na sala grande ; eram as pessoas crescidas que

estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham

fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à

casa de jantar ver se já lá estavam os copos .

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Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande

armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse

armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente

e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos . Era

como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos.

Estavam lá fecha das muitas coisas, coisas que não eram precisas

para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco

encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro.

Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de

prata que era uma campainha. E também um grande ovo de

Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.

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Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.

No dia de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário.

As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.

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Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.

Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.

E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.

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Joana ficou algum tempo com a cabeça

levantada. Não pensava em nada.

Olhava a imensa felicidade da noite no

alto escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.

Depois voltou para casa e fechou a porta .

- Ainda falta um bocadinho, menina –

disse a criada.

Então Joana foi à cozinha ver a

cozinheira. Gertrudes, que era uma pessoa

extraordinária porque mexia nas coisas quentes

sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem

se cortar e mandava em tudo, e sabia tudo.

Joana achava-a a pessoa mais importante que

ela conhecia.

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As luzes eléctricas estavam apagadas.

Só ardiam as velas do pinheiro.

Joana tinha nove anos e já tinha visto nove ve -

zes a árvore do Natal. Mas era sempre como se

fosse a primeira vez.

Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que

pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho

de uma estrela se tivesse aproximado da Terra.Era

o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes

e os seus ramos se carregavam de extraordiná -

rios frutos em memória da alegria que, numa noite

muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.

E no presépio as figuras de barro, o Menino, a

Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam con-

tinuar uma doce conversa que jamais tinha sido in-

terrompida. Era uma conversa que se via e não se

ouvia.

A Joana olhava, olhava, olhava.

Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

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A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Na -

tal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito

recheado, já estava toda doirada.

- Gertrudes, ouve uma coisa – disse Joana.

A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.

- O que é? – perguntou ela.

- Que presentes é que achas que eu vou ter?

- Não sei – disse Gertrudes -, não posso adivinhar.

Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso conti-

nuou a fazer perguntas.

- E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?

- Qual amigo? – disse a cozinheira

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- O Manuel.

- O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.

- Não vai ter presentes nenhuns!?

- Não – disse a Gertrudes abanando a cabeça.

- Mas porquê, Gertrudes?

-Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.

- Isso não pode ser, Gertrudes.

Mas é assim mesmo – disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era “assim mesmo”.

Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.

De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:

Já chegaram os primos.

Então Joana foi ter com os primos.

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Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.

Tinha começado a festa do Natal. Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro.

Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doira -

das. E as pessoas riam e diziam umas às outras: “Bom Natal”. Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana

pensava:

- Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.

E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.

O jantar de Natal era igual ao de todos os anos.

Primeiro veio na canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.

No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.

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Um dos Primos puxou-a por um braço.

- Joana, ali estão os teus presentes.

Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a

bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.

À sua volta todos riam e conversavam.

Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido,

falando ao mesmo tempo.

E Joana pensava:

- Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.

E a festa continuava.

As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a

conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.

Até que alguém disse:

- São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas

de as crianças se irem deitar.

Então as pessoas começaram a sair.

O pai e a mãe de Joana também saíram.

- Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram eles.

E a porta fechou-se.

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Daí a um instante saíram as criadas.

A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido

todos para a Missa do Galo, menos a velha

Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as

panelas.

E Joana foi à cozinha. Era a altura boa

para falar com a Gertrudes.

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- Bom Natal, Gertrudes – disse Joana.

- Bom Natal – respondeu a Gertrudes.

Joana calou-se um momento. Depois perguntou:

- Gertrudes, aquilo que disseste antes de jantar é verdade?

- O que é que eu disse?

- Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.

- Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.

- Mas então o Natal dele como foi ?

- Foi como nos outros dias.

- E como é nos outros dias?

- Uma sopa e um bocado de pão.

- Gertrudes, isso é verdade?

- Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.

- Boa noite – disse Joana.

E saiu da cozinha.

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Subiu as escadas e foi para o seu quarto. Os seus pre -

sentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os

um por um. E pensava:

- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros.

São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o

que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.

E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes,

Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se

a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem

uma casa, mas um curral de animais.

“Que frio lá deve estar!”, pensava ela.

“ Que escuro lá deve estar!”, pensava ela.

“ Que triste lá deve estar!”, pensava.

E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma

luz onde Manuel dormia em cima de palhas, aquecido só

pelo bafo de uma vaca e de um burro.

- Amanhã vou dar-lhe os meus presentes – disse ela.

Depois suspirou e pensou:

“Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de

Natal.”

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Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros esprei-

tou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria

na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura:

era o pinhal.

Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as

doze pancadas da meia-noite.

“Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá

agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de

Natal.”

Foi ao armário tirou o casaco e vestiu-o. Depois pegou na

bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a

boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de

bonecas.

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um

por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a

arrumar as panelas e não a ouviu. Na sala de jantar havia uma

porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a

ficar só fechada no trinco.

Depois Atravessou o jardim. O Alex e a Chibita ladraram.

- Sou eu, sou eu – disse Joana.

E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.

Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

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Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As

árvores pareciam enormes e os seus ramos e folhas enchiam o céu de desenhos

iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àque-

la hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas,

dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam

pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a

olhavam e a ouviam como pessoas.

“Tenho medo”, pensou ela.

Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.

Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois

muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem mu -

ros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda

e toda brilhante.

O silêncio era tão forte que parecia cantar . Muito ao longe via-se a massa

escura dos pinhais.

“Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas.

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Ali no descampado sopravam um curto vento de neve que lhe cortavam a cara

como uma faca.

“Tenho frio”, pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até

que ficou enorme.

Joana parou um instante no meio dos campos.

«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.

E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.

Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua

frente não havia rasto.

«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.

E levantou a cabeça.

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Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.

“Esta estrela parece um amigo”, pensou ela.

E começou a seguir a estrela.

Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma

roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com

grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam

murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de som-

bras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de

todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.

“Será um lobo?”, pensou.

Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir

entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.

“Será um ladrão?”, pensou.

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Mas o vulto parou na sua frente e ela viu

que era um rei.

Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos

seus ombros caía um longo manto azul todo

bordado de diamantes.

- Boa noite – disse Joana.

- Boa noite – disse o rei - . Como te chamas?

- Eu, Joana – disse ela.

- Eu chamo-me Melchior – disse o rei.

E perguntou:

- Onde vais sozinha a esta hora da noite?

- Vou com a estrela – disse ela.

- Também eu – disse o rei - ,também eu vou com a estrela.

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E juntos seguiram através do pinhal.

E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.

Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto

vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.

Boa noite – disse ela -, chamo-me Joana e vou com a estrela.

- Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.

E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de

passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis dos pinheiros escuros.

Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde

Bordado de pérolas. A sua cara era preta.

- Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.

- Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.

E juntos seguiram os quatro através da noite.

No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entrevas

árvores e os grandes mantos bordados dos reis do Oriente brilhavam entre as sombras

verdes, roxas e azuis.

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Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma

claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.

E continuou a caminhar.

Até que chegaram ao lugar onde a estrela

tinha parado e Joana viu um casebre sem porta.

Pois o casebre estava cheio de claridade, porque

o brilho dos anjos o iluminava .

E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava

deitado nas palhas entre a vaca e o burro e

dormia sorrindo.

Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os

anjos .O seu corpo não tinha nenhum peso e era

feito de luz sem nenhuma sombra.

E com as mãos postas os anjos rezavam

ajoelhados no ar.

Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel

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E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados

no ar.

Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel

-Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio.

Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus

presentes.

FIM