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Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e na Extensão – Região Sul
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CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR
ÀS PESQUISAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL
Valquiria F. Bezerra Barbosa Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Pernambuco, Campus Pesqueira
Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]
Sandra Noemi Cucurullo de Caponi Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]
Marta Inez Machado Verdi
Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]
Maria do Socorro Ferreira dos Santos Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Alagoas, Campus Marechal Deodoro
Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]
Eixo temático: Conhecimento Interdisciplinar
Resumo
O movimento de reforma psiquiátrica brasileiro permitiu a re-significação social da loucura e
apresentou-nos o desafio de rever os paradigmas que até então deram base as práticas assistenciais e a
produção de conhecimento no campo da Saúde Mental. A reforma psiquiátrica é um processo social
complexo que pode ser estudado sob múltiplas dimensões, desde a teórico-conceitual, até a sociocultural,
técnico-assistencial e jurídico-política, sendo sempre preciso ter em vista que “poucos campos do
conhecimento e atuação na saúde são tão vigorosamente complexos, plurais, intersetoriais e com tanta
transversalidade de saberes”, como o campo da Saúde Mental (AMARANTE, 2007, p. 15). A Saúde Mental
é componente fundamental da integralidade do cuidado, inserindo-se no campo da saúde, embora o
transcenda, estabelecendo interfaces recíprocas com os campos dos direitos humanos, assistência social,
educação, justiça, trabalho e economia solidária, habitação, cultura, lazer e esportes, entre outros. Ante ao
exposto, a escolha do eixo temático 2 sustenta-se no fato de que a abordagem interdisciplinar, embora seja
bastante adequada as características constitutivas do campo da Saúde Mental, tem sido pouco contemplada
nos projetos de pesquisa deste campo no Brasil. As concepções que sustentavam o modelo hegemônico da
Psiquiatria Clássica não ofereciam condições para debates pautados na interdisciplinaridade; foram os
movimentos de reforma psiquiátrica que deram origem a um novo arcabouço de ideias, permitindo novas
reflexões, abordagens e questionamentos (BRAITENBACH, 2006). Ante ao exposto, o objetivo deste
trabalho é problematizar a importância da perspectiva interdisciplinar na elaboração de projetos de pesquisa
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no campo da Saúde Mental. Tomaremos como referencial teórico os escritos de Pierre Bourdieu sobre o
conceito de ‘campo científico’. Para o autor, todo campo científico “é um campo de forças e de lutas para
conservar ou transformar este campo de lutas”. Partimos das problematizações propostas pelo autor para
situar a Saúde Mental como um campo social que opera mediante relações de força, na busca pela obtenção
de um capital social. Nesta perspectiva, o que comanda os pontos de vista, as intervenções científicas, os
temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos interessamos? Qual a estrutura das relações objetivas entre
os diferentes agentes deste campo, que posição ocupam nessa estrutura e o que determina ou orienta as
tomadas de decisão? (BOURDIEU, 2003, 2004, p. 23). Lançamo-nos ao desafio de contribuir para a
construção de modelos teóricos críticos sobre as pesquisas em Saúde Mental, que dêem sustentação as
propostas reformistas, superando-se o privilégio da técnica e da prática, que, embora tenham sua
importância na estruturação do campo, devem estar articuladas a dimensão teórico-conceitual, a fim de que
sejam descontextualizadas historicamente, e destituídas de significado e autonomia. A interdisciplinaridade
mostra-se como condição para a construção coletiva de conhecimento, superando a simples integração,
embora não prescindindo dela, pressupondo uma mudança de postura frente ao objeto de estudo, exigindo o
enfrentamento das convergências e das diversidades e a capacidade de se reportar ao referencial das outras
disciplinas. Consideramos pois que uma das principais contribuições do presente estudo seja reafirmar a
interdisciplinaridade como uma perspectiva estratégica para a estruturação de pesquisas no campo da Saúde
Mental.
1. Introdução
O movimento de reforma psiquiátrica brasileiro, iniciado em 1979, ao mesmo tempo em que permitiu
a re-significação da loucura, apresentou-nos o desafio de rever os paradigmas que até então deram base as
práticas assistenciais e a produção de conhecimento no campo da Psiquiatria e da Saúde Mental. Nesse
sentido, cada campo científico das ciências da saúde e sociais precisou investir esforços na produção de
novas formas de enfrentar as questões relativas ao sofrimento psíquico1 de modo a incorporar as concepções
introduzidas pela política de Saúde Mental. Não obstante, Costa-Rosa (2000) remete-nos a refletir que, ao
mesmo tempo em que se configurou a possibilidade de estabelecer um paradigma radicalmente novo,
sobretudo por inspiração direta de experiências oriundas dos modelos de reformas americano, inglês e
1 A terminologia “sofrimento psíquico” tem sido adotada no campo da Saúde Mental e Atenção Psicossocial, pois a ideia de sofrimento nos remete a pensar em um sujeito social que sofre a partir de uma experiência vivida, distanciando-se da carga semântica de significação que acompanha a terminologia “portador de doença mental” ou “transtorno mental”, o que denota que o indivíduo carrega um fardo, é uma pessoa transtornada ou ainda, possessa (AMARANTE, 2007).
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francês, assim como do modelo italiano2, é também verdade que por muitas vezes houve transposições
mecânicas que não transcenderam a essência do modelo asilar, mesmo que sob novas fisionomias.
Em um contexto de disputas e tensões, a reforma psiquiátrica configurou-se como um processo social
complexo que pode ser estudado sob múltiplas dimensões, desde a teórico-conceitual, até a sociocultural,
técnico-assistencial e jurídico-política, sendo sempre preciso ter em vista que “poucos campos do
conhecimento e atuação na saúde são tão vigorosamente complexos, plurais, intersetoriais e com tanta
transversalidade de saberes”, como o campo da Saúde Mental (AMARANTE, 2007, p.15).
Embora esta compreensão não seja recente, é preciso sempre resgatá-la e revalidá-la fazendo da
crítica uma via de possibilidade para que esta perspectiva possa adentrar não apenas o campo teórico-
conceitual, mas cima de tudo traduzir-se nas práticas institucionais do campo da Saúde Mental.
A IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, realizada em 2010, reafirmou que o
campo da Saúde Mental é intrinsecamente multidimensional, interdisciplinar e intersetorial, caracterizando-
se como componente fundamental da integralidade do Cuidado à saúde, inserindo-se no campo da saúde,
embora ao mesmo tempo o transcenda, estabelecendo interfaces recíprocas com os campos dos direitos
humanos, assistência social, educação, justiça, trabalho e economia solidária, habitação, cultura, lazer e
esportes, entre outros (BRASIL, 2010).
Ante ao exposto, a escolha do eixo temático 2- Conhecimento Interdisciplinar, justifica-se pelo fato
de que precisamos continuar a nos debruçar sobre as questões que envolvem a produção de conhecimentos
no campo da Saúde Mental, de forma a problematizar o delineamento de pesquisas neste campo, tendo em
vista suas características específicas, assim como suas potencialidades e desafios.
São diversas as abordagens na literatura, sobre o fato de que os saberes e práticas do campo da Saúde
Mental no Brasil encontram-se, ainda na contemporaneidade, permeados por elementos do paradigma
hegemônico da Psiquiatria clássica, marcadamente pela concepção biologicista e fragmentária do processo
saúde-doença mental, indicando a necessidade de um aprofundamento do processo de ruptura
epistemológica tanto no campo teórico, como no campo das práticas de saúde (a exemplo de
MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2012 e MARTINS; AMARANTE, 2008)
Embora a abordagem interdisciplinar seja bastante adequada as características constitutivas do
campo da Saúde Mental, tem sido ainda pouco contemplada nos projetos de pesquisa deste campo no Brasil.
As concepções que sustentavam o modelo hegemônico da Psiquiatria Clássica não ofereciam condições para
2 Tratam-se de experiências de reformas psiquiátricas que aconteceram em vários países, sendo as supracitadas as que foram mais marcantes por sua inovação e impacto, alcançando maior grau de reconhecimento mundial (AMARANTE, 2007).
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debates pautados na interdisciplinaridade, de forma que foram os movimentos de reforma psiquiátrica que
deram origem a um novo arcabouço de ideias, permitindo novas reflexões, abordagens e questionamentos.
Foi a partir destes cenários político-sociais, muitos deles ainda bastante recentes, que vem ocorrendo
o processo de ruptura com a concepção biologicista e fragmentária do processo saúde-doença mental,
defendida pela Psiquiatria e a busca pela compreensão deste processo enquanto um continuum, a partir de
categorias explicativas sociológicas.
Pode-se então dizer que, a instituição do movimento de reforma psiquiátrica, no ano de 1979, foi o
momento inaugural da Saúde Mental, enquanto campo conceitual das ciências sociais, humanas e da saúde
no Brasil (COSTA-ROSA, 2000; STROILI, 2002). Portanto, tendo em vista que estamos diante de um
campo em estruturação, é compreensível que ainda haja dificuldades por parte dos pesquisadores brasileiros
em eleger a interdisciplinaridade como referencial epistemológico para suas pesquisas (BRAITENBACH,
2006).
Ante ao exposto, o objetivo deste trabalho é problematizar a importância da perspectiva
interdisciplinar na elaboração de projetos de pesquisa no campo da Saúde Mental, proporcionando um
referencial teórico que contribua para situar as possibilidades e potencialidades desta perspectiva para a
delimitação de objetos de pesquisa neste campo científico3.
Para que possamos atingir este objetivo, iniciaremos o presente artigo apresentando o referencial
teórico de Pierre Bourdieu sobre campos científicos, a partir do qual analisaremos o campo de disputas pelo
capital científico e social que se estabeleceu no campo da Psiquiatria Preventiva moderna. Prosseguiremos
apresentando nossa posição teórica em relação a interdisciplinaridade, considerando que estamos diante de
uma terminologia polissêmica, sobre a qual há uma heterogeneidade de abordagens. Passaremos então a
problematizar sobre a superioridade da abordagem interdisciplinar para o desenvolvimento de projetos de
pesquisa no campo da Saúde Mental, estabelecendo aproximações e distanciamentos em relação aos debates
de outros autores sobre esta proposição.
2. Contribuições do conceito de ‘campo’ de Pierre Bourdieu para a compreensão do campo
científico da Saúde Mental.
Nosso ponto de partida é a proposição de que o conceito de ‘campo científico’ enunciado por Pierre
Bourdieu (2003, 2004), de que todo campo científico “é um campo de forças e de lutas para conservar ou
3 As reflexões teóricas apresentadas neste artigo foram elaboradas pelas autoras durante as disciplinas obrigatórias e optativas do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, modalidade DINTER.
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transformar este campo de lutas”, seja determinante na compreensão de como a interdisciplinaridade pode
contribuir para a composição de objetos de estudo no campo da Saúde Mental. Neste sentido, Bourdieu nos
propõe que possamos refletir sobre o que comanda os pontos de vista? O que comanda as intervenções
científicas, os lugares de publicação, os temas escolhidos, os objetos de interesses? Qual a estrutura das
relações objetivas entre os diferentes agentes deste campo, considerando que a relação objetiva entre estes
agentes determina o que podem ou não fazer? Ou ainda, que posição ocupam nessa estrutura e o que
determina ou orienta as tomadas de decisão? (BOURDIEU, 2004, p.23).
Embora o autor se refira a campo de forma abrangente como “campo literário, artístico, jurídico ou
científico” (BOURDIEU, 2004, p. 20), faremos menção durante nosso texto sobre o campo científico, a que
Bourdieu denomina também de disciplinas, dada a natureza de nosso estudo, a saber, as contribuições da
abordagem interdisciplinar para a elaboração de projetos de pesquisa no campo científico da Saúde Mental.
Bourdieu define como campo científico, “o universo no qual estão inseridos os agentes e as
instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência”. Este universo, assim
como qualquer outro campo social, “obedece a leis sociais mais ou menos específicas”(BOURDIEU, 2004,
p. 20). Dentre as questões a propósito dos campos, o autor menciona sobre o grau de autonomia que
usufruem, o que estará relacionado a natureza das pressões externas que sofre, de que forma estas pressões
são exercidas e quais as formas de resistência acionadas para se liberar das imposições externas em
detrimento de suas determinações internas.
Para Luz (2009), a noção de ‘campo’, permite a compreensão da coexistência de saberes e práticas
diversos num determinado campo disciplinar, que distribui hierarquicamente os discursos e atores/agentes
que os emitem, num conjunto semi-estruturado em processo, em que a disputa, muitas vezes conflituosa,
pela hegemonia do poder simbólico sempre se faz presente.
Ao lançar mão da noção de campo para estudar o campo científico da Saúde Mental, Stroili (2002)
defende que, em sendo a Saúde Mental um campo social, como tantos outros, opera mediante relações de
força, disputas, interesses, bens e estratégias de conservação, exclusão ou de subversão, na busca pela
obtenção de um capital social, que em se tratando deste campo específico, trata-se do reconhecimento da
autoridade e da competência científica, compreendida como
a capacidade técnica e o poder de falar e agir, legitimamente outorgado a um agente ou a um grupo de agentes, para definir as normas de sua produção, os critérios de avaliação de seus produtos e a legitimidade para reinterpretar as determinações externas, a partir de seus próprios princípios de funcionamento (BOURDIEU, 1976, p.126).
Nesta perspectiva, ao desenvolver projetos de pesquisa no campo da Saúde Mental, o pesquisador
deverá refletir sobre a pertinência da escolha de uma dada abordagem teórico-metodológica no sentido de
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situá-la no campo de disputas pelo capital científico e social no interior do campo da Psiquiatria e da Saúde
Mental. Deverá ter em conta a influência dos pressupostos da Psiquiatria Ampliada sobre as abordagens neo-
kraepelinianas contemporâneas, assim como reconhecer as abordagens que se contrapõem ao estatuto da
Psiquiatria como uma Medicina da medicalização dos sofrimentos cotidianos.
Para aprofundar este debate precisamos relembrar que a história da Psiquiatria esteve sempre
fortemente vinculada a história da Medicina. Embora as práticas, modos de observação e diagnóstico
adotados pela Psiquiatria fossem irredutíveis aos da Medicina, foi através de sua relação com a Medicina
que a Psiquiatria, contraditoriamente, encontrou sua legitimidade e prestígio. A análise comparativa de
Foucault sobre os estudos médicos, anatômicos e neurológicos e os estudos psiquiátricos, desvendou a
existência de uma distinção entre o corpo anatomopatológico, o corpo neurológico, e, em contraposição, a
ausência de corpo que caracteriza a Psiquiatria. A Psiquiatria seria, portanto, uma Medicina em que o corpo
está ausente (CAPONI, 2012).
Os diagnósticos psiquiátricos buscavam sustentação em três elementos: os interrogatórios, a hipnose
e as drogas e por esta razão Foucault (2006) fala de um diagnóstico absoluto da Psiquiatria em oposição ao
diagnóstico diferencial da Medicina clínica, de um ‘corpo ampliado’ como base para a constituição do saber-
poder da Psiquiatria em relação à loucura.
Nesta mesma direção, Caponi (2012), ressalta que a Psiquiatria se transformou em uma estratégia
biopolítica que percorre o espaço social e que o seu campo de ação refere-se fundamentalmente às
populações. A autora aprofunda seus estudos sobre a influência do conceito de degeneração em relação a
esta nova “Psiquiatria Ampliada”, instaurada a partir do século XIX, marcadamente por influência de Morel
(1857). Para ela a nova variedade classificatória de doenças e anomalias, permitiu a proliferação de um
conjunto de doenças relacionadas a comportamentos e à instituição de uma Medicina do não patológico.
Permitiu ainda que nos séculos seguintes a Psiquiatria investisse numa crescente medicalização de
comportamentos cotidianos (CAPONI, 2012).
Caponi (2012) evidenciou também que o conceito de degeneração sofreu variações em sua
abordagem por diferentes expoentes da teoria degeneracionista, dando destaque a Cabanis, Morel e Magnan,
de forma que este conceito se perpetuou, embora transvertido por denominações modernas, como uma
premissa da Psiquiatria kraepeliniana e neo-kraepeliniana. Os degeneracionistas defendiam que a
hereditariedade (herança mórbida) era o veículo de transmissão progressiva de toda forma de degeneração
adquirida.
A autora ressalta ainda que, quando os degeneracionistas limitaram o campo das doenças mentais a
unicidade das causas orgânicas, em função de obter o mesmo status científico conferido a Medicina clínica
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pelos estudos de localização anatomopatológicos, em consequência, restringiram a compreensão do
sofrimento psíquico dos pacientes, desprezando seus relatos e a escuta terapêutica. Em outras palavras, tudo
aquilo que não fosse biológico, tais como, os sofrimentos individuais, os vínculos afetivos, as histórias de
vida repletas de conquistas e fracassos, o trabalho, entre outros, foi explicitamente excluído dos recursos
discursivos dos degeneracionistas, representados por suas classificações nosológicas, e considerado sem
utilidade para a elaboração do diagnóstico (CAPONI, 2012).
Dentre as certezas da Psiquiatria moderna, legitimadas pela teoria da degeneração, podemos
enumerar algumas características que ainda hoje persistem, tais como:
o caráter hereditário das patologias mentais, a impossibilidade de cura ou reversibilidade da loucura, a origem biológica, a localização cerebral dos transtornos psiquiátricos e a introdução do discurso sobre a prevenção e o Risco no âmbito da saúde mental (CAPONI, 2012, p. 175).
Embora as intervenções preventivas direcionadas ao tecido social, com o objetivo de antecipar e
prevenir os desvios de comportamento e patologias cerebrais fossem apregoadas pela Psiquiatria Preventiva
de Gerald Caplan (também denominada Psiquiatria neo-kraepeliniana), esta abordagem não contribuiu
decisivamente para que houvesse avanços em termos de novas terapêuticas substitutivas ao hospital
psiquiátrico, pois, como não se acreditava na cura das doenças mentais, o isolamento terapêutico continuou
tendo sua legitimidade.
Para uma melhor compreensão da vinculação da Psiquiatria neo-kraepeliniana à Teoria da
Degeneração é preciso analisar com parcimônia o legado de Caplan. Este eminente psiquiatra norte
americano defendia que todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas desde que fossem detectadas
precocemente e que toda pessoa sob a suspeição de ter ou poder desenvolver um distúrbio mental deveria ser
encaminhada a revelia de sua vontade ao psiquiatra. Foram centrais na abordagem de Caplan a noção de
prevenção, o conceito de crise, relacionado às noções de adaptação e desadaptação social e o conceito de
desvio, como um comportamento desadaptado à norma socialmente estabelecida, ambos oriundos das
ciências sociais.
Os escritos de Caplan revelam sua íntima ligação ao eminente psiquiatra alemão fundador da
Psiquiatria Preventiva moderna, Emil Kraepelin, que manteve avivados os preceitos da teoria da
degeneração, como um eixo articulador de sua teoria sobre as doenças mentais. Kraepelin vinculou as
enfermidades psíquicas a fenômenos sociais amplos e diversos; em sua eminente obra “Sobre a questão da
degeneração” (1908), defendeu o efeito nocivo que a vida urbana moderna produz na Saúde Mental dos
moradores das grandes cidades industriais (CAPONI, 2012).
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À primeira vista, a obra de Caplan pode deixar a impressão de que estamos tratando de um
modelo de prevenção em Saúde Mental que considera não apenas o indivíduo portador da enfermidade, mas
também todos os aspectos socioculturais ou a unidade biopsicossocial na produção da doença mental.
Entretanto, uma análise crítica desenvolvida por Lara (2006) revelou que o indivíduo continua sendo para
Caplan o locus da produção da saúde ou da doença, do sucesso ou do fracasso pessoal e social. O ideário de
Caplan localizava o sucesso ou fracasso social numa classe específica, causadora e propagadora de
distúrbios mentais e sociais, a quem Caplan designa como uma classe “desfavorecida”, num claro discurso
de raízes degeneracionistas:
Se a pessoa nasceu num grupo favorecido em uma sociedade estável, seus papéis sociais e as mudanças esperadas destes ao longo de sua vida irão proporcionar-lhe oportunidades adequadas para um saudável desenvolvimento da personalidade. Se, por outro lado, a pessoa pertence a um grupo desfavorecido ou sociedade instável, poderá encontrar seu progresso bloqueado e ser privada de desafios e oportunidade. Isso terá um efeito negativo em sua saúde mental (CAPLAN, 1980, p. 47 apud LARA, 2006).
A Psiquiatria Preventiva desenvolveu-se na década de 60 como uma proposta de atenção
comunitária e foi a geradora do conceito de desinstitucionalização, compreendida, ainda de forma bastante
limitada, como um conjunto de medidas de desospitalização, implicando na redução do ingresso de
pacientes em hospitais psiquiátricos, promoção de altas hospitalares e redução do tempo médio de
internação (AMARANTE, 2007). As intervenções da Psiquiatria Preventiva baseavam-se no trabalho
comunitário, através do qual as equipes de saúde exerciam o papel de consultores, assessores ou peritos,
fornecendo normas e padrões de valor ético e moral sustentados pelo conhecimento científico, como
também a utilização da técnica do screening4 que objetivava a identificação precoce de casos suspeitos de
enfermidade em um grupo social (AMARANTE, 1995).
As propostas inspiradas no preventivismo caplaniano contribuíram para a estruturação de vários
modelos assistenciais e propostas de desinstitucionalização em diversos países, no entanto, contrariando as
pretensões de seus fundadores, produziram um efeito totalmente iatrogênico: ao mesmo tempo em que se
combateu a lógica do hospitalismo (que cria uma dependência do paciente a instituição, acelerando a perda
de elos comunitários, familiares, sociais e culturais, conduzindo a cronificação) pela ampliação de rede
substitutiva e da oferta de uma variedade de opções de serviços extra-hospitalares5, houve um aumento
relevante da demanda ambulatorial e extra-hospitalar, pela aplicação dos screening e outros mecanismos de
4 Segundo Lancetti (1989 apud AMARANTE, 1995) o termo screening pode significar proteção contra ou seleção; a tradução brasileira de Caplan optou pela expressão programa de triagem, enquanto a espanhola preferiu programa de procura de suspeitos. 5 tais como centros de Saúde Mental, Hospitais Dia/Noite, Oficinas, Lares abrigados, leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais, dentre outros.
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captação, fazendo ingressar novos contingentes de pacientes. Sendo assim, não havia espaço para a
transferência dos egressos das internações psiquiátricas para serviços intermediários, resultando na
permanência dos internos, e, em muitos contextos, no aumento do número de internações, uma vez que o
modelo asilar foi retroalimentado pelo circuito preventivista (AMARANTE, 1995).
Ante ao exposto, o preventivismo representou um novo projeto de medicalização da ordem social,
expandindo os preceitos médico-psiquiátricos para o campo das normas e princípios sociais; uma
atualização e uma metamorfose do dispositivo de controle e disciplinamento social, estabelecendo um
continuum entre a política de confinamento dos loucos e a moderna ‘promoção’ da Saúde Mental
(AMARANTE, 1995). Outro legado da Psiquiatria Preventiva foi a introdução do discurso da prevenção aos
Riscos no campo da Psiquiatria e da Saúde Mental.
Certamente esta estrutura de saber poder contribuiu para que, entre os séculos XIX e XX,
paralelamente ao desenvolvimento das instituições no modelo capitalista de produção, entre as quais, na área
de saúde, o hospital tem lugar central, fosse consolidado o modelo asilar como modelo hegemônico na
Psiquiatria. Este modelo caracterizou-se pela ênfase na consideração das determinações orgânicas das
doenças mentais; pela desconsideração da existência de um sujeito, o que resulta que este sujeito não fosse
considerado como participante do tratamento - eminentemente medicamentoso e dirigido ao organismo
doente. No modelo asilar, o indivíduo doente e seu sofrimento foram dissociados de seu contexto social e
cultural, permanecendo como o centro do problema que a loucura representa. Disto resultou que seu
isolamento “terapêutico” nos hospitais psiquiátricos, continuasse justificado socialmente (COSTA-ROSA,
2000).
“É interessante constatar que o modelo clássico da Psiquiatria foi tão amplamente difundido, que
influencia a prática psiquiátrica até nossos dias”, [...] o que talvez nos confirme “que sua validação social
está muito mais nos efeitos de exclusão que opera, do que na possibilidade de atualizar-se como um modelo
pretensamente explicativo no campo da experimentação e tratamento das enfermidades mentais”
(AMARANTE, 1995).
O modelo da Psiquiatria Preventiva americana, anteriormente apresentado, surgiu no contexto das
reformas psiquiátricas que se desenvolveram, marcadamente após a segunda guerra mundial, em diferentes
contextos sociais, e permanece ainda hegemônico em muitos países.
No entanto, devemos ressaltar que a heterogeneidade que marcou os movimentos de reforma
psiquiátrica fez surgir outros modelos clínicos e epistemológicos que se contrapõem a crescente
medicalização dos sofrimentos, problemas e conflitos sociais. A Antipsiquiatria Inglesa questionou
fortemente o marco teórico-conceitual da Psiquiatria que se fundamentou equivocadamente no modelo de
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conhecimentos das ciências naturais, mais especificamente na classificação botânica de Lineu, donde
derivam-se as nosologias psiquiátricas (CAPONI, 2009). A Psiquiatria Democrática Italiana (PDI),
comprometeu-se com a integralidade do Cuidado no campo da Saúde Mental de cada território, com a
constituição de uma rede de atenção que ofereça e produza Cuidado, além de novas formas de sociabilidade
e de subjetividade para aqueles que necessitam de assistência psiquiátrica. Estes são exemplos incontestes de
experiências reformistas, contra-hegemônicas, que produziram não apenas fissuras, mas profundas rupturas
epistemológicas e políticas em relação à Psiquiatria clássica.
Sendo assim, considerando-se a inversão paradigmática proporcionada por estes movimentos,
tornou-se necessário trabalhar na perspectiva do paradigma da atenção psicossocial, possibilitando a
desconstrução de práticas fundamentadas na objetividade da doença mental e a (re)construção de práticas
voltadas a subjetividade da pessoa em sofrimento psíquico (BARROS; OLIVEIRA; SILVA, 2007). Este
paradigma se constituiu a partir do processo de negação do modelo asilar/manicomial, partindo-se da
necessidade de se propor uma forma diferenciada de se lidar com a loucura e uma abordagem mais ampla
sobre o cuidado em saúde. Nesta nova proposta, diferentes conhecimentos se entrecruzam para constituir
novas possibilidades de ação técnica, vinculadas a construção de valores e sentidos do cuidar e do existir, o
que implica necessariamente no questionamento das conformações tradicionais do saber e do poder,
envolvendo múltiplos atores e setores sociais (TAVARES, 2005).
Tomando como referência Franco Rotelli, sucessor de Basaglia e uma forte expressão do ideário da
PDI, Amarante (2007, p.63) sugere que possamos pensar o campo da Saúde Mental e da Atenção
Psicossocial como um processo social complexo que enseje novos elementos e novas situações, sempre
dinâmicas. Novos atores sociais, com novos, e quase sempre conflitantes, “interesses, ideologias, visões de
mundo, concepções teóricas, religiosas, éticas, étnicas, de pertencimento de classe social”, produzindo
“pulsações, paradoxos, contradições, consensos e tensões”. Esta perspectiva é favorável ao conceito de
campo científico apresentado por Bourdieu, e mais, apresenta-nos a exigência de repensar nossos
referenciais teórico-metodológicos ao desenvolvermos investigações científicas neste campo plural e
complexo.
Não podemos olvidar que o campo da Saúde Mental encontra-se sob fortes tensões e contradições
tanto no contexto global, quanto no local, o que pode ser confirmado pelo crescente número de estudos que
apontam as dificuldades que as equipes multidisciplinares dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tem
encontrado em desenvolver uma atuação coerente aos pressupostos do modo de atenção psicossocial, sendo
o CAPS o dispositivo estratégico e prioritário da rede de atenção em Saúde Mental no Brasil
(MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2012; MARTINS; AMARANTE, 2008; TAVARES, 2003).
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Se focarmos nosso olhar no campo da Saúde Mental mediante as lentes representadas pelos estudos
de Braitenbach (2006) e Stroili (2002), dentre outros autores que tem desenvolvido estudos que nos
permitem uma melhor compreensão deste campo científico e social complexo, poderemos perceber
caminhos que apenas esperam por serem desvendados, uma vez que estamos diante de um campo em
processo de autonomização. Sendo assim há espaço para novas ideias, novas epistemologias, para a
formulação de conceitos. Reside nisso a grande vantagem de se ter um campo assimétrico onde as disputas
teóricas podem também representar a possibilidade do novo. No entanto, em se tratando de um campo em
construção, precisamos conscientemente nos distanciar de uma perspectiva de não-lugar epistemológico ou
de neutralidade científica.
3. Contribuições da Interdisciplinaridade para a Construção de Projetos de Pesquisa em
Saúde Mental
Braitenbach (2006) apresenta-nos, em seu estudo de mestrado, uma retrospectiva das correntes
teóricas sobre a interdisciplinaridade que se desenvolveram em nível mundial e nacional, desde a década de
60, indicando que a concepção de interdisciplinaridade hegemônica nos debates sobre o tema, representa
uma crítica veemente aos campos especializados, centrada no projeto de um saber uno e global. Dentre os
autores que representam esta vertente, a autora menciona Georges Gusdorf, Ivani Fazenda e Hilton Japiassú.
Para Japiassú (1976 apud TAVARES, 2005) a interdisciplinaridade possibilita a superação das
fronteiras disciplinares, estabelecendo-se novas fronteiras através do que as disciplinas científicas tenham
em comum, no entanto, em níveis de integração mais profundos, seja pela unificação ou síntese dos
conhecimentos científicos ou pelo estabelecimento de uma linguagem interdisciplinar consensualmente
construída.
Essa linha de abordagem da interdisciplinaridade, também conhecida como filosofia do sujeito,
pressupõe que a partir das atitudes dos indivíduos, origine-se a possibilidade de movimentos e
transformações, colocando em segundo plano uma contextualização histórica sobre a sociedade. Nesta
acepção residem as maiores críticas a esta corrente teórica, uma vez que seus críticos consideram ingênuo o
pensamento de que os indivíduos, movidos pela vontade, possam dar conta da amplitude das questões que
envolvem a produção de conhecimentos, na maior parte das vezes lacunares (BRAITENBACH, 2006).
Numa outra perspectiva, a autora descreve uma linha de abordagem sobre a interdisciplinaridade, que
tem fundamentos diversos em relação a concepção anteriormente mencionada. Entre os autores que
representam esta segunda abordagem teórica (Ari Paulo Jantsch, Lucídio Bianchetti, Norberto J. Etges),
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destacamos Gaston Bachelard, que considera as especialidades como tradução de axiomas singulares,
inerentes a cada campo. Os autores desta vertente de pensamento concordam que as abordagens sobre
interdisciplinaridade devam ser vinculadas ao contexto histórico, levando em conta as condições históricas
particulares de produção em uma sociedade. Consideram também que a crítica à fragmentação do
conhecimento e à especialização, comete equívocos ao perceber ambas como um mal em si, como uma
patologia (BRAITENBACH, 2006).
Pedro Demo (1997 apud BRAITENBACH, 2006) apresenta-nos um ponto de vista intermediário
em relação ao debate interdisciplinar, opondo-se tanto a uma especialização extrema como ao generalismo.
Para o autor as especialidades são necessárias em função de um conhecimento aprofundado e analiticamente
capaz, mas defende a composição de grupos com especialistas diversificados que se proponham a dialogar,
não necessariamente a partir de pontos coincidentes, mas também quanto a suas divergências.
Para analisar as implicações da interdisciplinaridade na constituição do campo da Saúde Mental,
Braitenbach (2006) declara sua opção pela ideia da interdisciplinaridade contextualizada num momento
histórico próprio, tendo como alicerce a concepção de especificidade de cada área do saber (com seus
respectivos campos axiomáticos) que, nos diálogos estabelecidos, encontram um disparador de questões para
dentro de cada campo, possibilitando o desencadear de um movimento sobre si mesmo, (re)formulador,
(des)construtor. Neste entendimento, a interdisciplinaridade surge como motor de constantes (re)elaborações
teóricas e práticas.
Concordamos com esta afirmativa e com a posição teórica de Braitenbach (2006) e Stroili (2002) de
que a interdisciplinaridade deva superar a integração, embora não prescinda dela, pressupondo uma
mudança de postura frente ao objeto de estudo de uma área, exigindo o enfrentamento das convergências e
das diversidades, assim como a capacidade de se reportar ao referencial das outras disciplinas. As áreas
envolvidas devem ser estimuladas à reelaboração de seus conhecimentos, bem como a busca de novos
conhecimentos e novas alternativas, o que coloca a interdisciplinaridade como condição para a construção
coletiva de conhecimento.
Essa noção se mostra como possibilidade extremamente rica para a discussão da reforma psiquiátrica
brasileira no contexto atual, uma vez que o campo da Saúde Mental é chamado a inovar-se,
ampliando seu foco de abordagem e buscando romper com as delimitações dos saberes tradicionais na área, buscando uma nova recomposição de conhecimentos sustentado sobre um conjunto de rupturas e novas premissas, e que portanto não seja apenas uma nova somatória ou rearranjo simples dos antigos saberes parcializados. Na minha opinião, não tenho dúvidas de que neste novo paradigma teremos de necessariamente recolocar a questão da interdisciplinaridade, ou mais radicalmente, da transdiciplinaridade (VASCONCELOS, 1997, p. 23 apud STROILI, 2002).
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Partimos desta perspectiva interdisciplinar para lançarmos nosso olhar ao desafio sublinhado por
Stroili (2002) de contribuir para a construção de modelos teóricos críticos que deem sustentação as
propostas reformistas na Saúde Mental, superando-se o privilégio da técnica e da prática, que, embora
tenham sua importância na estruturação do campo, devem estar articuladas a dimensão teórico-conceitual, a
fim de que não corram o risco de serem descontextualizadas historicamente e destituídas de significado e
autonomia.
O modo de atenção psicossocial6 apresentou-nos a interdisciplinaridade como uma exigência, ao
propor como uma de suas premissas centrais a horizontalidade das relações de saberes e poderes
(TAVARES, 2005), dentre os atores que exercem a agência7 no interior dos subcampos do conhecimento
que compõem o campo da Saúde Mental. Esta perspectiva se contrapõe ao modo como hegemonicamente os
processos de trabalho se estruturaram no campo da Psiquiatria, de forma que o saber médico deixa de ser
estruturante para o trabalho dos demais membros da equipe de saúde, assumindo sua importância na medida
em que é capaz de se colocar em diálogo com os demais campos disciplinares.
Para Vasconcellos (2010, p.10) “se, por um lado, a atuação dos psiquiatras deve estar sempre aberta
ao diálogo com os demais profissionais, por outro, reconhecer as diferenças de poder e status entre as
disciplinas é o primeiro passo para manejar as assimetrias de modo a favorecer o cuidado ao usuário [dos
serviços de Saúde Mental]”.
No entanto, buscamos respaldo em Costa-Rosa (2000), para problematizar que, o fato do modo
psicossocial propor, dentre outras coisas, um organograma horizontal quanto a organização institucional, de
forma que seja superada a lógica presente no modo asilar, onde o fluxo dos poderes decisório e de
coordenação se dava verticalmente, não significa que se menospreze a importância específica que cada área
disciplinar deve continuar tendo para a consolidação do campo da Saúde Mental, enfatizando-se inclusive a
necessidade de pesquisas nos respectivos campos.
6 A designação “modo” ao nos referirmos a Atenção Psicossocial, deve-se a nossa compreensão de que o campo da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial é constituído num amplo e complexo processo social, não devendo ser reduzido a um modelo ou sistema, o que implicaria em desconsiderar seu caráter eminentemente dinâmico e interdisciplinar (AMARANTE, 2007). 7Embora a palavra “agência” remeta ao ator autônomo, individualista, ocidental evocado pela teoria da prática, Sheri Ortner (2007) considera que os agentes sociais estão sempre envolvidos na multiplicidade das relações sociais, jamais podendo agir fora dela; a autora defende que todos os agentes sociais tem “agência”, embora chame a atenção para o Cuidado que se deve ter em pensar que os seres humanos possam triunfar em relação a seu contexto social apenas por meio da força de vontade. Citando Jean e J.L. Comaroff (1991;1997) alerta-nos de que, se focalizarmos excessivamente as intencionalidades dos atores, poderemos perder de vista as forças sociais e culturais de grande escala que estão em jogo, assim como as relações complexas e altamente imprevisíveis entre intenções e resultados. A teoria dos “Jogos Sérios” por ela enunciada tem como propósito compreender as forças, formações e transformações mais amplas da vida social em que opera o jogo de atores vistos como “agentes”. Em resumo, “agência” refere-se a intencionalidade que leva os agentes a perseguir projetos culturalmente definidos, e com o poder, uma vez que a ação se dá em contextos de relações de desigualdade, de assimetria de forças sociais.
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É, portanto, na construção do projeto terapêutico individual que se deve fazer a síntese e articulação
das competências genéricas, ou seja, aquelas que qualquer profissional enquanto agente no processo de
Cuidado no campo da saúde possuirá, e as específicas, aquelas pertencentes ao seu núcleo profissional
(MERHY; AMARAL, 2007; BARROS, 2010).
É importante mencionar que, embora uma das premissas do modo de atenção psicossocial seja a
intervenção terapêutica em equipe multiprofissional, isso não garante por si só que as relações entre os
agentes seja interdisciplinar. Há o risco de fragmentação do trabalho, o que enseja a necessidade de uma
integração verdadeiramente interdisciplinar (VASCONCELLOS, 2010).
A interdisciplinaridade apresenta-se de fato como possibilidade de superação da superespecialização
e do hipertecnicismo nas práticas de Cuidado, e como resposta à diversidade, à complexidade e à dinâmica
do mundo atual, para o qual a Psiquiatria clássica tem apenas propostas simplificadoras e reducionistas
(CAPONI, 2012; TAVARES, 2005).
Embora possamos considerar que o campo da Saúde Mental possui suas especificidades e desafios
particulares, não podemos deixar de inseri-lo no contexto mais amplo do campo da Saúde no Brasil. A rede
de serviços do Sistema Único de Saúde vem enfrentando dificuldades relativas ao processo de transformação
das práticas de saúde, diante da contradição existente entre o paradigma biologicista, centrado na doença, na
atenção individual e na utilização de tecnologias, ainda dominante em alguns contextos, e o paradigma da
construção social da saúde, fortalecido através das ações de promoção da saúde, nos atos e na autonomia
crescente dos sujeitos sociais.
Ante ao exposto, os projetos de pesquisa em Saúde Mental deverão romper com os modelos
cartesianos de investigação, que reduzam as relações de causa e efeito ao plano biológico e privilegiem o
modelo clínico clássico, centrado no binômio diagnóstico-terapêutica da doença mental (TAVARES, 2005).
Deverão ser empreendidos investimentos em desenhos de pesquisa pautados numa concepção ampliada de
saúde, que busquem elucidar, mediante os contributos das ciências sociais e humanas, dentre outras, as
implicações da multifatorialidade nas complexas redes de interfaces do sofrimento psíquico humano,
enquanto fenômeno social e cultural. Reside aí um grande desafio: o de ampliar as lentes, representadas
pelas ferramentas analíticas, sobre o continuum saúde-doença mental, não se admitindo o mascaramento
reducionista de um fenômeno social complexo em função de interesses corporativos.
Embora estejamos assumindo uma posição em defesa da perspectiva interdisciplinar nas abordagens
científicas no campo da Saúde Mental, não podemos desconsiderar que “uma nova forma de se construir
saberes sempre envolverá luta pela hegemonia de grupos de interesses, sendo esta uma força contrária a que
motiva o trabalho em equipe interdisciplinar” (TAVARES, 2005).
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No sentido de contribuir para o enfrentamento dos fatores que limitam os avanços na produção de
conhecimentos, saberes e práticas interdisciplinares no campo da Saúde Mental, diversos autores tem
procurado esclarecer esta questão através de suas pesquisas. Tavares (2005) considerou como obstáculos à
construção da interdisciplinaridade no campo da Saúde Mental: a forte tradição positivista e biocêntrica no
tratamento dos problemas relacionados à doença mental; a dificuldade em compartilhar os espaços de poder
que a disciplinarização representa; a falta de investimento das instituições de ensino na construção de
propostas curriculares interdisciplinares; as dificuldades inerentes à construção coletiva da experiência
interdisciplinar, tais como a operacionalização de conceitos, métodos e práticas entre as disciplinas.
Vasconcellos (2010) apresenta-nos como fatores que restringem o exercício da interdisciplinaridade
no campo da Saúde Mental: o confronto entre especificidade e flexibilização na realização do trabalho; a
existência de concepções sobre integralidade imprecisas e divergentes entre os profissionais de saúde; o alto
grau de diferenciação entre as atividades desenvolvidas pelas diferentes categorias profissionais; a
transposição automática, para o campo de trabalho compartilhado, das teorias e práticas de cada área de
saber/profissional e a estrutura das instituições de ensino, nas quais em geral não há comunicação entre os
saberes disciplinares, refletindo na formação profissional.
O autor considera de extrema relevância os estudos sobre estes fatores uma vez que “a integração
interdisciplinar influencia sobremodo o exercício das práticas assistenciais, de forma que conhecer suas
possibilidades e obstáculos é um passo importante” [...] para que soluções efetivas possam ser delineadas.
Ressalta ainda que as dificuldades do exercício da interdisciplinaridade no campo da Saúde Mental devem-
se a dificuldade de se estabelecer um “solo epistemológico comum entre as disciplinas”, diante das
diferenças “conceituais, metodológicas, práticas e terminológicas” (VASCONCELLOS, 2010, p.5-13).
Embora a interdisciplinaridade seja uma “exigência inata do espírito humano, não é, todavia, uma
facilidade inata” (COIMBRA, 2000), pois o próprio processo da cognição humana se dá por etapas
representando uma limitação natural humana à interdisciplinaridade.
Para transpor estes limites podemos lançar mão de concepções curriculares e metodológicas comuns
que equalizem as diferenças entre as áreas do conhecimento. No entanto, esta preocupação com o saber
deverá estender-se ao ser e ao fazer, de forma que as dificuldades epistemológicas para a concretização da
interdisciplinaridade sejam diminuídas ou compensadas pela vivência prática que as transformações do
mundo atual nos impõe.
Para o exercício da interdisciplinaridade, será necessário um determinado perfil interdisciplinar, que
envolverá atitudes que representem a destituição do jargão acadêmico e a construção de um novo modo de
ser-fazer-ciência, destituindo-se das prerrogativas do poder hegemônico que marcaram a história e o papel
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das ciências na sociedade. É de uma outra prática dos cientistas e dos técnicos que carecemos, na qual sejam
repensadas as complexas relações da sociedade com a ciência, a filosofia e a técnica.
Nesta direção, Bourdieu (2008) propõe-nos a reflexividade como um meio particularmente eficaz de
reforçar as hipóteses de buscar a verdade, ao reforçar as censuras mútuas e ao fornecer os princípios de uma
crítica técnica, que controla de forma mais atenta os fatores susceptíveis de alterar o sentido da investigação,
num terreno onde os obstáculos epistemológicos são sociais e complexos. Neste ponto, o autor estabelece
críticas ao uso inconsistente de taxonomias, classificações e procedimentos rotinizados.
A reflexividade não deve constituir apenas o discurso do pesquisador, mas se converter numa
disposição constitutiva dos seus hábitos científicos, um êthos que exista e atue a priori, a fim de que
possamos tomar como premissa que o trabalho científico é mais constitutivo do que descritivo ou
comprovativo, o que, para Bourdieu (2008) é um modo de questionar a pretensão das ciências sociais, e
ampliamos aqui o enfoque para as ciências da saúde, à cientificidade; uma cientificidade que, em
consequência, as esvazie da complexidade e subjetividade de seus sujeitos e objetos.
Bourdieu acrescenta que esta tarefa, embora parta do âmbito individual, é uma tarefa eminentemente
coletiva. “A reflexividade só ganha toda a sua eficácia quando se encarna em coletivos que a incorporaram,
ao ponto de a exercer como um reflexo” (BOURDIEU, 2008, p. 155). Um ponto de partida desejável seria
romper com a ilusão de um ponto de vista absoluto.
4. Considerações finais O debate sobre a interdisciplinaridade é rico em contribuições às ciências da saúde, campo científico
que, desde o século XIX, tem sido marcado pelo objetivismo e racionalismo, priorizando-se as abordagens
quantitativas em detrimento das qualitativas, sobretudo por influência do positivismo.
Quanto a Saúde Mental, a interdisciplinaridade apresenta amplo potencial para o enfrentamento das
questões subjacentes as relações simbólicas entre os agentes no interior deste campo científico plural e
complexo, assim como, apresenta amplas possibilidades de contribuir para a consolidação do modo de
atenção psicossocial.
A interdisciplinaridade é uma vocação necessária para a ciência, pois a complexidade das questões
contemporâneas a serem estudadas impõe uma maior amplitude de horizonte (extensão) e mais profundo
entendimento (compreensão). Assim, o verdadeiro papel da interdisciplinaridade seria proporcionar a
ciência a internalização de outras formas de conhecimento e processá-las, reduzindo a dispersão da análise
mediante a construção da síntese, minimizando as antinomias entre os saberes em benefício de uma
convergência sempre maior.
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