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Instituto de Relações Internacionais
CONTROLE DOS MEIOS DE VIOLÊNCIA: A POLÍTICA EXTERNA
BRASILEIRA E O TRATADO SOBRE MUNIÇÕES DE CACHO
Aluno: Pedro Paulo dos S. da Silva
Orientadora: Monica Herz
Introdução
Essa pesquisa buscou investigar como o Brasil vem colocando-se nos mecanismos que
promovem o desarmamento e a não proliferação de armas. Foi realizada uma análise da posição
brasileira em relação a uma das mais importantes discussões sobre armamentos das últimas
décadas: o Tratado sobre Munições em Cacho (ou a Convention on Cluster Munitions, CCM).
Essa ainda é uma pesquisa em andamento, consequentemente, deve-se considerar que há uma
limitação no escopo e na literatura para esse relatório.
Nessa perspectiva, esse relatório divide-se em seis seções, a saber: sendo a primeira essa
introdução, aonde apresentei a pergunta básica que guiou essa pesquisa – como o Brasil se
comporta no cenário internacional em relação aos temas do desarmamento e da proliferação de
armas? –, o recorte que foi adotado nesse relatório – o foco sobre a questão das munições de
cacho; a segunda seção em que irei delinear o objetivo central desse relatório, de forma breve;
a terceira seção em que explicitarei a metodologia adotada na pesquisa apresentada; a quarta
seção na qual farei uma revisão da Política Externa Brasileira (PEB), de maneira bem concisa
e focada nas temáticas mais pertinentes à pesquisa; a quinta seção quando discutirei as Cluster
Munitions, o Tratado sobre Munições de Cacho e a posição brasileira; e, por fim, a sexta e
última seção aonde apresentarei algumas conclusões dessa pesquisa e alguns próximos passos.
Objetivo
Observando o histórico brasileiro de aderência as normas e instituições internacionais,
além da busca desse por uma governança global calcada no multilateralismo, pode-se notar o
discurso oficial do Brasil como um país que visa promover um sistema internacional menos
conflituoso e hierárquico, organizado por esse arcabouço jurídico-institucional. Por esse
ângulo, um dos temas centrais da PEB, seguindo o objetivo sugerido anteriormente, é a
incorporação do país em tratados de desarmamento e não proliferação de armas – convencionais
ou não –, sinalizando um compromisso do Brasil com um sistema internacional mais pacífico,
aonde há um controle maior dos meios de violência – no caso, as armas.
Entretanto, a não concordância do Brasil com o Tratado sobre Munições em Cacho
cristaliza uma tensão no discurso oficial que a Política Externa vem construindo para o Brasil,
dado que a não adesão ao acordo não condiz com a autoimagem que o país tenta passar, por
motivos que posteriormente serão colocados. Dessa forma, esse trabalho tem como objetivo
central analisar o discurso da Política Externa Brasileira, focando-se em questões de cunho
humanitário. Afim de explicitar a contradição entre o discurso oficial que tenta, através da
Política Externa, consolidar uma identidade hegemônica de país pacífico para o Brasil, com a
posição do país na CCM. Por conseguinte, demonstrando a razão por essa identidade não ser
sustentável.
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Metodologia
O presente projeto foi construído, primeiramente, a partir da análise dos elementos que,
historicamente, constituem a Política Externa Brasileira, quais sejam: a inserção do país em
tratados, mecanismos e instituições internacionais que promovem o desarmamento e não
proliferação de armas, proteção dos direitos humanos e meio ambiente, entre outros temas,
principalmente no pós-guerra fria [1]. Nessa perspectiva, inicialmente, busquei revisar a
literatura sobre a PEB como um todo, porém, dando um enfoque particular em livros, discursos
e artigos científicos sobre Política Externa, adotada pelo Brasil, em relação a temas de caráter
humanitário. Esse recorte foi feito com o intuito de observar a tradição da PEB em questões
humanitárias, dado que essas questões dialogam diretamente com o foco desta pesquisa. Além
disso, como a pesquisa foca-se nos mecanismos de controle de armas e desarmamento, foram
observados, particularmente, os tratados referentes aos temas de desarmamento e tratados de
não proliferação ratificados pelo Brasil [2], de modo a evidenciar a relação destes com a
tradição citada anteriormente. Outro recorte feito, foi a escolha de concentrar-me na literatura
da PEB após o término da Guerra Fria, dado que esse foi o período aonde o Brasil começou a
aderir nos regimes internacionais de desarmamento e não proliferação, que anteriormente
haviam sido rechaçados pela Política Externa do país [3] por motivos que fogem da discussão
dessa pesquisa.
Num segundo momento, a partir da revisão de literatura sobre a tradição da Política
Externa Brasileira será utilizado o método da análise de discurso, buscando identificar qual o
discurso oficial transmitido pela PEB. O mote desse método é elucidar a relação entre a Política
Externa e a identidade estatal – que é vista aqui como construída por atos de performatividade1,
como a Política Externa de um país e a articulação discursiva da mesma – além de evidenciar a
autoimagem que o Brasil tem de si mesmo e que tenta promover através de sua Política Externa
[4].
Nessa perspectiva, como sugere Lene Hansen [7], policy-making e identidade estariam
intrinsicamente interligados pela prática discursiva que é a Política Externa de um país. Assim,
a identidade seria mobilizada como a razão pela qual certas políticas seriam utilizadas, mas ao
mesmo tempo ela seria produzida e reproduzida por esses mesmo discursos políticos – a
identidade seria, ao mesmo tempo, constitutiva e produto da articulação dos discursos da
Política Externa. Deve-se ressaltar que, para os propósitos desse relatório, atos como a
ratificação de tratados sobre desarmamento e não-proliferação e o posicionamento em
processos de negociação em instâncias multilaterais que discutem o controle de armas, também
constituem parte do discurso da Política Externa. Portanto, a entrada do Brasil em tais
mecanismos é vista como um elemento importante no discurso brasileiro de promoção de um
sistema internacional que respeita o direito humanitário, a soberania e o multilateralismo. Em
síntese, é importante salientar que o método de análise de discurso não tem como mote
estabelecer relações causais – como A causando B – e sim entender como as identidades são
construídas e ao mesmo tempo constitutivas da Política Externa [7].
Num terceiro momento, a autoimagem que a Política Externa Brasileira visa construir
para o país, será contraposta com a posição brasileira sobre o Tratado sobre Munições em Cacho
[8], afim de explanar as contradições internas no discurso da PEB e como isso gera tensões para
a identidade brasileira de país promovedor e defensor do pacifismo no sistema internacional.
Ainda de forma resumida, isso aconteceria porque as munições de cacho são vistas como
inumanas e focadas, primordialmente, na obliteração de seres humanos [9], além da
1 Na perspectiva de Judith Butler [5], performatividade seria a repetição de atos, gestos e símbolos, no âmbito
cultural, que reforçariam a construção do “masculino” e do “feminino”, tais como nós os vemos atualmente.
Transportando isso para o Estado, performatividade seria a repetição de certas políticas públicas, como a Política
Externa [6], pelas quais o Estado produz e reproduz sua identidade.
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impossibilidade de aprimoramento desses armamentos [10], o que leva a ideia de que o uso de
tais armas é inadmissível, especialmente para um país que se colocado como aliado da proteção
internacional de direitos humanos e do direito humanitário internacional e que se compromete
com um mundo mais pacífico.
Política Externa Brasileira
Está seção possui três objetivos, a saber: o primeiro mote é apresentar, brevemente, a
tradição que guia a Política Externa Brasileira, particularmente em temas de caráter
humanitário; será feita uma síntese do posicionamento do Brasil em relação aos mecanismos
de desarmamento e não-proliferação de armas, relacionando-o à tradição anteriormente
discutida; esses dois movimentos tem o intuito iluminar os elementos que constituem o discurso
da Política Externa Brasileira, objetivando, num terceiro momento, revelar qual seria a
autoimagem que o Brasil tenta transpassar através de sua Política Externa.
a) Política Externa Brasileira: Uma breve leitura geral
Como sugere Maria Regina Soares de Lima [11], o Brasil possui um histórico de colocar-
se no sistema internacional como um país que tem clara preferência pela negociação e pela
diplomacia, não pelo enfrentamento. Segundo a autora, diferentemente da formação de outros
Estados da América do Sul, no contexto do século XIX, o desenho do espaço nacional e da
demarcação territorial do Brasil, deu-se por meio da negociação e mediação internacional ao
invés da guerra – o que denotaria uma busca não por relações conflituosas com seus vizinhos,
mas uma atuação política pautada por uma política de “boa vizinhança”.
Além disso, a autora destaca um elemento importante na constituição da PEB, a visão que
as elites governantes2 possuem do Brasil. Segundo ela, tais atores acreditam que o Brasil seria
um país destinado a ter um papel importante no cenário internacional, dado suas dimensões
continentais, riquezas naturais e da “liderança natural entre os vizinhos” [11]. Essa interpretação
do Brasil como um país que deve ter relevância internacional é importante para essa pesquisa,
porque “A aspiração pelo reconhecimento internacional foi perseguida por via de uma política
deliberada de presença nos fóruns multilaterais” [11]. Em outras palavras, uma das razões pelas
quais o Brasil insere-se na ordem hegemônica do pós-guerra fria, aonde a inserção nas
instituições e normas internacionais torna-se um caminho seguido por muitos atores, seria essa
“vontade nacional” como coloca Maria Regina Soares de Lima, promovida pelas elites
governantes.
Porém, é apenas nos anos 1990 que o país passa a se inserir nos regimes internacionais e
a articular o discurso de pacifismo com maior intensidade, no âmbito externo [3, 13, 14], de
modo a adquirir confiança internacional [12], dado a importância de aderir aos principais
regimes internacionais e promover a defesa dos direitos individuais no contexto da hegemonia
Neoliberal [13, 14], o que distanciava o Brasil da imagem de país de violador de direitos
humanos que vigorou no período autoritário.
Apesar da ascensão da esquerda brasileira, no início dos anos 2000, o Brasil continuou a
atuar de forma multilateral, promovendo o desenvolvimento socioeconômico, a paz sustentável,
buscando manter-se inserido nos principais organismos internacionais de relevância [14]. Em
outras palavras, a política de inserção advinda do governo Fernando Collor de Mello, reforçada
com as administrações Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, foi mantida, em larga
medida, pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva [13, 14].
2 Segundo Monica Herz [1], “elite governante” é um termo que se refere “aqueles em controle dos processos
estratégicos de tomada de decisão na sociedade. Essa elite governante muda constantemente e inclui atores que
possuem acesso aos recursos econômicos, militares, políticos, e culturais, que permitem um impacto significativo
no modo que dada sociedade é governada. ” (Tradução minha)
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Nesse contexto uma temática de grande relevância para a diplomacia brasileira é da
proteção internacional dos direitos humanos. Sendo assim, o ex-chanceler Celso Amorim [15]
afirma que o Brasil vem renovando seu compromisso internacional com os direitos humanos.
Isso porque o país assinou e ratificou os principais instrumentos internacionais sobre o assunto,
além de reconhecer a autoridade da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e
estender a abertura permanente para os relatores dos procedimentos especiais de todos órgãos
que compõem o Sistema da Organizações das Nações Unidas (ONU). Em uma palestra
ministrada por Celso Amorim [16], o ex-chanceler afirma que desde sua participação na
Segunda Conferência de Haia, em 1907, a diplomacia brasileira caracteriza-se pela adesão aos
princípios da negociação e da formação mais ampla de consensos, ou seja, a PEB historicamente
possui um caráter multilateral; além de buscar discutir os mecanismos para a solução pacífica
dos conflitos internacionais e para preservação da paz como, por exemplo, quais seriam as
normas aplicáveis durante uma guerra e o direito marítimo; a defesa da igualdade entre os
Estados, advogando pela representação das potências menores. É importante salientar que o ex-
chanceler reproduz um discurso específico sobre a PEB, colocando-a como sempre
promovedora e defensora dos direitos humanos em toda sua amplitude. Também é significativo
ressaltar que a proteção dos direitos humanos, como parte fundamental das relações
internacionais do Brasil, é algo colocado pela própria constituição de 1988, no art. 4º (inciso
III), o que explicitaria o compromisso brasileiro com o regime multilateral de direitos humanos
[17].
Para além dos direitos humanos, também deve-se evidenciar a atuação do Brasil no que
tange aos tratados de cunho humanitário [46], aqui nota-se um posicionamento semelhante do
país vis-à-vis os tratados sobre direitos humanos. Isso porque segundo o banco de dados do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Brasil é signatário da maioria dos tratados ligados
ao Direito Internacional Humanitário [46]. Nessa perspectiva, destacam-se a inserção brasileira
nas Convenções de Haia, como dito anteriormente; nas Convenções de Genebra; na Convenção
que proíbe a produção, uso e comercialização de Armas Biológicas; na Convenção sobre Certas
Armas Convencionais, sendo inclusive parte do protocolo V sobre resquícios de explosivos de
guerra (Explosive Remnants of War, ERW); e, também dialogando diretamente com a temática
deste relatório, o Brasil é signatário Convenção proibindo o uso de minas terrestre antipessoal
[46], assim como outros tratados nesse assunto.
Nessa perspectiva, um tema de grande valor, para um país que buscaria um sistema
internacional que confere importância para a temática dos direitos humanos e direito
humanitário, é a proteção dos civis em cenários de conflito armado. Assim, numa fala do país
proferida no Debate Aberto do Conselho de Segurança da ONU sobre a Proteção de Civis em
Conflitos Armados, o então chanceler Antônio de Aguiar Patriota [18] afirma que inúmeros
civis continuam a sofrer violências – sejam elas ferimentos, desalojamento ou mesmo a morte.
E que seria de responsabilidade político-moral do Brasil e da comunidade internacional
“enfrentar essa situação e oferecer aos civis, sob o risco real ou potencial, melhores
perspectivas”. Diz Antônio Patriota,
“Primeiro, há a necessidade de uma maior consciência sobre a importância de lidar
com a prevenção de conflitos por meios pacíficos, inclusive por meio da promoção do desenvolvimento social e econômico, da intensificação de esforços para a plena
implementação do desarmamento e compromissos de não-proliferação (...). Em
segundo lugar, nas situações em que irrompam conflitos, há a urgência de se colocar
mais ênfase na diplomacia e no diálogo como as principais ferramentas para enfrenta-
los. “ [18]
Todavia, para além dos direitos humanos, o Brasil tem tido uma atuação em diversas
outras questões relacionadas a um sistema internacional mais pacífico e horizontal, quais sejam:
a reforma do ONU, como colocam Celso Amorim [19] e Monica Herz [20]; a proteção do meio
ambiente e reformas nos principais órgãos financeiros e monetários, como apontam Monica
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Hirst, Marina Regina Soares de Lima e Letícia Pinheiro [21]; além da crescente participação
do país nas operações de paz da ONU, tendo atuado comandante da Missão das Nações Unidas
para a estabilização do Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês) [22], e de uma possível
participação do país na operação de paz na República Centro-Africana após o fim da missão no
Haiti [23].
b) Política Externa Brasileira: Controle dos meios de violência
Também se observa esse posicionamento em relação a Política Externa, no tange as
questões de Segurança e Defesa, como o terrorismo, crime transnacional, e os regimes de
desarmamento e não-proliferação de armas [24]. Segundo o bando de dados do United Nations
Office for Disarmament Affairs (UNODA)3 [25], o Brasil é signatário de praticamente todos os
acordos que visam o desarmamento e a não-proliferação, em nível global e regional, no âmbito
da ONU – como demonstrado pela Tabela 1. Esse dado pode ser facilmente relacionado com a
tradição da diplomacia brasileira, que seria uma diplomacia que busca um mundo mais justo e
pacífico. Dessa forma, os acordos que objetivam o controle dos meios de violência estariam
dentro do histórico da Política Externa Brasileira.
Tabela 1: Tratados sobre desarmamento e não-proliferação aos quais o Brasil é signatário. Fonte: UNODA [25].
Tratado Data de ratificação ou acessão do tratado
ou Convenção por parte do Brasil
Partial Test Ban Treaty 15 de Dezembro de 1964
Treaty of Tlatelolco 29 de Janeiro de 1968
Outer Space Treaty 5 de Março de 1969
1925 Geneva Protocol 28 de Agosto de 1970
Biological Weapons Convention 27 de Abril de 1973
Antartic Treaty 16 de Maio de 1975
Convention on Environmental
Modification Techniques (ENMOD)
12 de Outubro de 1984
Sed-Bed Treaty 4 de Agosto de 1988
Convention on Certain Conventional
Weapons
3 de Outubro de 1995
Chemical Weapons Convention 13 de Março de 1996
Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty
24 de Julho de 1998
Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear
Weapons (NPT)
18 de Setembro de1998
Anti-Personnel Mine Ban Convention 30 de Abril de 1999
Inter-American Convention on Firearms 28 de Setembro de 1999
Inter-American Convention on
Transparency
14 de Dezembro de 2006
International Convention for the
Suppression of Acts of Nuclear Terrorism
25 de Setembro de 2009
3 Órgão do Sistema ONU que, desde 1978, publica o status dos acordos multilaterais sobre desarmamento e
regulação de armas, apresentando dados sobre os signatários dos tratados e o texto dos próprios acordos.
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Todavia, existem alguns pontos de tensão, isso porque o Brasil não é signatária da
Convenção sobre Munições Cacho – objeto de estudo deste relatório –, do Tratado sobre
Comércio de Armas – que foi assinado, porém, ainda não foi ratificado – e também não assinou
o protocolo adicional do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que aumenta
o poder da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em fiscalizar as instalações
nucleares dos signatários do tratado. O TNP é visto como o tratado sobre controle de armas
com o maior número de Estados signatários, sendo o principal pilar do regime de não-
proliferação nuclear junto ao Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT, na
sigla em inglês) [12], sendo assim, um dos maiores símbolos dos regimes de controle de armas.
Também deve-se colocar que, como afirma Celso Lafer [26], o Brasil torna-se signatário do
TNP no fim dos anos 1990, durante o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso,
momento em que, como dito anteriormente, o país passa a aderir a estruturas ocidentais de
poder. Além disto, esse movimento está em consonância também com o artigo 4 da Constituição
Federal.
Também é importante colocar que o Brasil, assim como o Egito, vem argumentando que
a falta de progresso significante dos países detentores de armas nucleares em eliminar seus
respectivos arsenais, torna instável o regime de não-proliferação [27]. Nesse sentido, o país
advoga por um maior comprometimento no que tange o controle de armamentos, além de
colocar a importância de um engajamento igualitário entre aqueles que possuem armas
nucleares (haves) e aqueles que não tem pose de tais equipamentos (have nots).
Outro ponto de tensão – agora fora do âmbito da ONU – que deve ser considerado é a não
adesão do Brasil ao Código Internacional contra a Proliferação de Mísseis Balísticos (ou o
Hague Code of Conduct against Ballistic Missile Proliferation) [28], que não é um tratado
internacional per se, porém, que possui efeitos políticos, como a descrição anual dos programas
de mísseis balísticos de cada país, a notificação antecipada de ensaios com tais dispositivos,
entre outras questões relevantes [29].
Em síntese, pode-se afirmar que a forma como o Brasil vem agindo nos mecanismos que
visam o desarmamento e a não-proliferação, é parte de uma tradição maior da diplomacia
brasileira, que estaria sendo guiada por princípios e valores colocados anteriormente, estando
assim, em consonância com o histórico da Política Externa Brasileira.
c) Política Externa Brasileira: Discurso e Identidade
• Discurso
Para os propósitos deste relatório, faz-se necessário uma concisa nota do que eu estou
considerando como discurso aqui. Nesse trabalho, discurso é adotado como um “sistema de
significação”, ou seja, o discurso seriam estruturas de significado que constroem a realidade
social; aqui o significado das coisas é concebido através de sign systems4, que normalmente são
a linguagem, mas não apenas [30].
Em outras palavras, o discurso seria, como afirma Roxanne Lynn Doty [31],
“(…) a system of statements in which each individual statement makes sense,
produces interpretive possibilities by making it virtually impossible to think outside
of it. A discourse provides discursive spaces, i.e., concepts, categories, metaphors,
models, and analogies by which meanings are created. “ [31]
Além disso, o discurso produz e reproduz “coisas” definidas por ele, nas palavras de
Jennifer Milliken,
“The point here is that beyond giving a language for speaking about (analyzing,
classifying) phenomena, discourses make intelligible some ways of being in, and
4 Literalmente “sistemas de signo” ou “sistemas de símbolos”.
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acting towards, the world, and of operationalizing a particular ‘regime of truth’ while
excluding other possible modes of identity and action. More specifically, discourses
define subjects authorized to speak and to act (e.g. foreign policy officials, defense
intellectuals, development experts) (…). Discourses also define knowledgeable
practices by these subjects towards the objects which the discourse defines, rending
logical and proper interventions of different kinds, disciplining techniques and
practices, and other modes of implementing a discursively constructed analysis. In the
process, people may be destroyed as well as disciplined, and social space comes to be
organized and controlled, i.e. places and groups are produced as those objects.
Finally, of significance for the legitimacy of international practices is that discourses produce as subjects publics (audiences) for authorized actors, and their common sense
of the existence and qualities of different phenomena and of how public officials
should act for them and in their name (…).” [30]
Em síntese, os discursos agem definindo e conferindo permissões, ao mesmo tempo que
excluem e silenciam. Podem, por exemplo, conjurar uma determinada autoimagem para um
Estado, reforçando um dado senso comum sobre o que seria tal país, e simultaneamente
desqualificar visões críticas ou opostos a essa identidade hegemônica. Outro ponto é que as
estruturas de significados advindas dos discursos dominantes estão conectadas com a
implementação de práticas, e está tornam tais estruturas legítimas.
Além disso, é relevante salientar que um discurso por si só não confere um “regime de
verdade”, e sim a constante articulação de diversos discursos dominantes criam aquilo que seria
“verdadeiro”, como o que é a identidade brasileira [30]. Como coloca Doty, “A discursive
practice is not traceable to a fixed and stable center, e.g., individual consciousness or a social
collective. Discursive practices constitute subjects and modes of subjectivy are dispersed,
scattered throughout various locales. “[31]
Nessa perspectiva, a noção de intertextualidade, ou seja, a ideia que textos sempre fazem
referência a outros textos, tornar-se de grande importância, isso porque o poder que emana dos
discursos não seria centralizado, e sim pulverizado; além disso, esse poder presente nas práticas
discursivas, é produtivo no sentido de dar significado aos sujeitos e aos mundos [31],
construindo realidades. Dessa maneira, uma análise focada nas práticas discursivas, questiona
“como” determinada realidade veio a ser construída e “como” permite diversas práticas [31].
Por fim, como reforça Doty, “An analysis of discourses can reveal the necessary but not
sufficient conditions of various practices.” [31]
• Identidade
Dado o intento deste relatório, uma discussão aprofundada sobre as diferentes concepções
de identidade fugiria o escopo desse trabalho. Entretanto, uma breve caracterização do que eu
estou considerando identidade também é necessária, objetivando o último movimento previsto
nessa seção.
Dessa forma, David Campbell [4], evocando Judith Butler [5], sugere que
“(...)we can understand the state as having ‘no ontological status apart from the
various acts which constitute its reality’; that its status as the sovereign presence in world politics is produced by ‘a discourse of primary and stable identity’; and the
identity of any particular state should be understood as ‘tenuously constituted in
time… through a stylized repetition of acts,’ and achieved, ‘not [through] a founding
act, but rather a regulated process of repetition.” [4]
Em outros termos, o Estado não possui uma essência fundamental, na verdade, aquilo que
é entendido por “identidade” aqui, nada mais é do que a repetição constante e regulada de certos
atos e pela articulação de certos discursos, o que constitui a performatividade [5] – como
colocado anteriormente nesse relatório. A performatividade serviria ao propósito de assegurar
um conteúdo e delimitar a identidade de um Estado, através da imposição de uma norma; assim,
o Estado encoraja e legitima certos posicionamentos e orientações, ao mesmo que se opõe e
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deslegitima outras, tal processo não é nem determinístico, nem totalmente hegemônico [4] –
um ponto importante em que eu pretendo retomar mais à frente.
Em resumo,
“(…) states are never finished as entities; the tension between the demands of identity
and the practices that constitute it can never be fully resolved, because the
performative nature of identity can never be fully revealed. This paradox inherent to
their being renders states in permanent need of reproduction: with no ontological status, apart from the many and varied practices that constitute their reality, states are
(and have to be) always in a process of becoming. For a state to end its practices of
representation would be to expose its lack of prediscursive foundations; stasis would
be death.” [4]
Portanto, conclui-se que os estados nacionais não possuem uma identidade pré-discursiva
e estável, logo, o Estado precisa articular discursos, através de sua Política Externa, com essa
finalidade. E tal mobilização e articulação de discursos são ininterruptas, dado que sua
finalização exporia o não-fundacionalismo do Estado, significando o fim do mesmo.
Por outro lado, algo importante para os objetivos desse relatório, é colocar que a Política
Externa é central para esse processo de regulação e normalização da identidade do Estado. Isso
porque a identidade estatal é contida e reproduzida através da Política Externa de um país, ao
mesmo tempo que a Política Externa é guiada por essa mesma identidade. Nesse ponto de vista,
“identity is discursive and political”, e isso significa dizer que “representations of identity place
foreign policy issues within a particular interpretative optic, one with consequences for which
foreign policy can be formulated as an adequate response.” [7]. Por esse ângulo, enxergar a
identidade como construída pelo discurso é afirmar duas coisas, a saber: que não existe
identidade fora do discurso, ou seja é impossível utilizar identidade como uma variável para
mensurar fatores extra-discursivo; por outro lado, isso significa dizer que os discursos da
Política Externa consolidam a identidade do país, simultaneamente sendo parte constitutiva da
identidade.
• Política Externa Brasileira: Uma análise de seu discurso
Como sugere Lene Hansen [7], a Política Externa de um país está intimamente ligada a
representações da identidade do mesmo, ao mesmo tempo, é através da formulação da Política
Externa que as identidades são produzidas e reproduzidas, noutras palavras, a Política Externa
sempre articula um Self5, ao mesmo que o (re)produz. Devo enfatizar que aqui a Política
Externa é vista como uma prática discursiva, nos termos definidos anteriormente, que
operacionaliza um “regime de verdade” particular [30] sobre o que seria o Brasil.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a tradição diplomática da Política Externa
Brasileira[16], promove uma autoimagem do Brasil como um país que historicamente vem
defendendo um sistema internacional pautado por visão mais pacifista do sistema internacional,
calcada em valores e princípios, a saber: o diálogo e negociação, ao invés do conflito [11]; a
defesa dos direitos humanos [15]; o uso da força apenas em contextos sancionados pela ONU
[22,23], entre outras questões. Em outras palavras, esse seria o discurso dominante sobre como
a diplomacia brasileira atua no âmbito internacional; tal discurso articula uma certa
representação da identidade brasileira, como um país pacifista, e essa representação guiaria a
Política Externa Brasileira [7].
Entretanto, simultaneamente, essa identidade histórica do Brasil é rearticulada e
(re)produzida por novas questões, como os regimes de não-proliferação e desarmamento aos
quais o Brasil adentrou nos anos 1990. Assim, a assinatura de tratados internacionais sobre o
desarmamento e não-proliferação de armas, assim como a atuação e posicionamento do Brasil
5 Por “Self” eu quero dizer uma essência, um fundamento.
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nos fóruns de discussão de tais temáticas, são articulações discursivas da Política Externa
Brasileira.
Dessa maneira, as ações de Política Externa do Brasil estariam, como afirma Hansen [7],
(re)produzindo o Self do Brasil como um país pacífico, com verdadeiro engajamento na
proteção dos direitos humanos e noutras questões de cunho humanitário, ao mesmo tempo em
que faz parte dela. Essa autoimagem pacifista, confere ao Brasil certa legitimidade política, no
cenário internacional, o que poderia ajudar o país a se inserir no clube das grandes potências
[1] e a realizar o desejo histórico das elites governantes de ver o país tendo relevância
internacional [11].
Nessa conjuntura, o posicionamento brasileiro no que tange o controle dos meios de
violência, ou seja, o fato do Brasil ter ratificado a maioria dos tratados internacionais sobre
desarmamento e não-proliferação – e tendo assinado, mas não ratificado, o Tratado sobre
Comércio de Armas – são vistos como atos de performatividade [4]. Isso porque, objetivando
estabilizar um Self para o país, a diplomacia brasileira constantemente precisa posicionar-se de
acordo com o discurso promovido pela mesma. Como coloca Hansen,
“(…) foreign policy decision-makers are situated within a larger political and public
sphere, and that their representations as consequence draw upon and are formed by
the representations articulated by a larger number of individuals, institutions, and
media outlets” [7].
Dessa forma, o posicionamento dos operadores da Política Externa do Brasil, estaria
condicionado por um discurso dominante, constantemente (re)articulado por diversos outros
atores e discursos. Em síntese, por meio do método da análise de discurso, observar-se que a
identidade brasileira, produzida e reproduzida pelas articulações discursivas da Política
Externa, seria a de que o Brasil é um país alinhado a um certo pacifismo, não sendo, portanto,
um estado beligerante, e sim diplomático. Desse modo, a diplomacia nacional, seguindo essa
identidade, comporta-se sempre de acordo com essa autoimagem, ao mesmo tempo em que a
reforça.
Entretanto, como bem coloca David Campbell [4], o processo de construção de identidade
através do discurso, não é determinístico e nem hegemônico. Em outros termos, a identidade
estatal nunca é finalizada e, ao mesmo tempo, ela não é aceita em sua completude; a identidade
é sempre questionada por diversos outros discursos contra hegemônicos que criticam essa
autoimagem ou por ações direitas daqueles que estariam sentindo-se excluídos pela identidade
hegemônica de um país. Sendo assim, esse ponto elucidado por Campbell, confere uma abertura
para criticar o discurso dominante da Política Externa Brasileira. Consequentemente, seria
possível desestabilizar a (já) instável identidade autoproclamada pelo Estado, com o intuito de
desmascarar, o que esse discurso dominante esconde. Dado que essa pesquisa buscou analisar
o discurso do Brasil nos mecanismos de desarmamento e não-proliferação, a tensões observadas
e colocadas anteriormente, podem ser uma forma de promover uma crítica ao discurso
dominante
Tratado sobre Munições de Cacho
Essa seção objetiva, inicialmente, discutir o Tratado sobre Munições em Cacho.
Posteriormente, explicitando o posicionamento do Brasil em relação ao tratado e as motivações
para o parecer do país sobre o mesmo, com o propósito de demonstrar a razão por essa posição
ser uma contradição interna ao discurso dominante discutido anteriormente.
No dia 23 de fevereiro de 2017, 46 países declararam, em Oslo – capital da Noruega –, o
compromisso em finalizar um tratado internacional até o fim do ano de 2008, que tinha como
alvo as munições em cacho (Cluster Munitions); tal tratado visava um banimento completo de
tais equipamentos, ou seja, a proibição do uso, produção, estocagem e transferência de tais
munições [10]. Ao mesmo tempo, tal Declaração também previa o estabelecimento de uma rede
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de cooperação e assistência, que ofereceria os cuidados necessários para a reabilitação das
vítimas de tais armamentos e suas comunidades, além promover a limpeza de áreas
contaminadas pelos resquícios das bombas e educação sobre os riscos da mesma; por fim,
eliminando os estoques dessas armas [10].
Com a meta de elucidar a importância e necessidade do acordo buscado na Declaração de
Oslo, tornar-se indispensável explicar antes duas questões: o que são as munições em cacho e,
em segundo lugar, a razão por elas causarem problemas humanitários que levam a uma grande
mobilização internacional. Apesar não haver uma definição universal aceita do que seriam as
munições em cacho [10], diversos autores [9, 10, 32, 33, 38, 39] colocam que estas seriam algo
como um contêiner que contém centenas de explosivos, do tamanho de uma bola de tênis
(conhecidos como submunições), como ilustrado na figura 1 [32]. Tal dispositivo ao ser ativado,
espalha essas submunições por uma área do tamanho de dois a quatro campos de futebol [9, 10,
32, 33, 38, 39], dizimando-a e tudo presente nela – incluindo construções, veículos, armamentos
e seres humanos –, como mostra a figura 2 [34].
Essas submunições seriam a parte perigosa em tais munições, dado que eles explodem a
partir do impacto com algo sólido ou após um intervalo de tempo, causando destruição pela
explosão ou por sua fragmentação [9, 10]. É possível que esses explosivos sejam “entregues” a
partir de um avião ou que sejam lançados a partir do solo, por meio de foguetes, cartuchos de
artilharia ou de morteiros [10]. Como afirma Michael Krepon [9], essas armas são conhecidas
como area weapons, ou seja, essas submunições são amplamente dispersadas por um enorme
território, podendo permanecer funcionais após serem ativadas em diversos locais de uma
grande região, como: ruas, áreas rurais e prédios bombardeados [10].
Em relação as questões humanitárias, as munições em cacho são problemáticas em dois
momentos. No momento do uso, as munições em cacho, dado sua natureza de serem area
weapons [9], não são precisas e não são eficientes no que tange evitar concentrações de civis,
na região alvo – além disso, em muitos momentos essas munições foram deliberadamente
utilizadas contra civis [10]. Por outro lado, muitas vezes as submunições falham e não detonam
quando deveriam, tornando-se algo como minas terrestres, colocando civis e militares em
perigo, mesmo após o conflito – assim, tais munições não respeitariam o princípio da
discriminação entre civis em combatentes, em um nível temporal [33].
Apesar dos efeitos de tais armamentos, na época da Declaração de Oslo, as únicas
conversas sobre esse tema estavam sendo travadas no âmbito da Inhumane Weapons
Convention (ou Convenção das Nações Unidas sobre Certas Armas Convencionais – CCW, na
sigla do inglês), entretanto, pouco progresso havia sido feito até o momento em relação as
munições de cacho e seus resquícios [10].
Figura 1: Ilustração de uma bomba em cacho. Fonte: Al Jazeera America.
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Figura 2: O funcionamento das bombas em cacho. Fonte: Federation of American Scientists
Entretanto, quando Israel lançou uma ofensiva que perdurou por 34 dias, no ano de 2006,
contra o grupo terrorista Hezbollah, no sul do Líbano, algo entorno de 4 milhões de
submunições explosivas foram lançadas contra diversos locais como vilas e fazendas. Dentre
as submunições utilizadas, algo entorno de 1 milhão destas falharam e foram deixadas no solo,
tornando-se perigosas especialmente para crianças que enxergam as submunições como bolas
de brinquedo [10].
John Borrie [10] coloca que nessa operação 60% das munições em cacho operadas por
Israel atingiram áreas populosas. Muitas das submunições utilizadas por Israel tinham 30 anos
de fabricação, não sendo muitos confiáveis, e mesmo os modelos mais novos e sofisticados,
que possuem um mecanismo de autodestruição, não funcionaram como deveriam – fazendo
com que mesmos os modelos mais atuais sejam livres de problemas. O autor aponta que durante
o primeiro mês após o cessar fogo, haviam em média 3 e ou 4 vítimas civis por dia, em
decorrência das submunições israelenses no solo. Além disso, a contaminação de mais de 90
cidades e vilas, fizeram com que o retorno para casa de refugiados fugidos do conflito, seja
impossível.
Esse cenário simbolizou uma grave crise humanitária durante, mas principalmente após
o conflito que se sucedeu no Líbano. E é nessa conjuntura que as bombas em cacho entraram
com mais intensidade na Convenção sobre Certas Armas Convencionais, a partir de um esforço
de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Estados. Essa movimentação também era
embasada pelas quatro principais leis humanitárias internacionais relevantes para o uso de
munições em cacho, dado que o uso dessas levanta questionamentos em relacão a cada uma das
leis [10]. Porém, apesar disso as discussões na CCW, tornaram-se bastante divididas e
acaloradas na temática dessas munições, porque um grupo de estados argumentava que as regras
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existentes já eram o suficiente e que nenhuma nova lei internacional era necessária para regular
as munições em cacho; outro grupo argumentava que era preciso uma nova legislação para
regular essas armas [10].
Em vista dos problemas de caráter humanitário das munições em cacho e da necessidade
de uma nova legislação internacional que regule com mais intensidade essas armas, a Noruega
aproveitou-se da vontade política em muitos países para convocar um encontro, que culminou
com a Declaração de Oslo. Tal declaração, foi impactante e acabou culminando no Tratado
sobre Munições em Cacho, que foi assinado por 108 países e ratificado por 102 – tendo entrando
em vigor em 1º de agosto de 2010 [36].
Os estados que fazem parte do Tratado sobre Munições Cacho comprometeram-se aos
pontos expostos na Declaração de Oslo, assim os países membros
“(…)recognised the grave consequences caused by the use of cluster munitions and
committed themselves to conclude (..) a legally binding instrument that would prohibit
the use, production, transfer and stockpiling of cluster munitions that cause
unacceptable harm to civilians, and would establish a framework for cooperation and
assistance that ensures adequate provision of care and rehabilitation for victims,
clearance of contaminated areas, risk reduction education and destruction of
stockpiles, (…).” [36]
Um ponto importante para as discussões feitas neste relatório, é que o Tratado sobre
Munições em Cacho, pode ser visto como no âmbito dos tratados de controle de armas
humanitário, como colocam Neil Cooper e David Mutiner [37]. Isso porque o tratado visaria a
não-proliferação e o desarmamento, em referência as munições em cacho, por propósitos
puramente condizentes com o direito humanitário internacional, como pode ser observado no
texto do tratado [36].
Todavia, apesar de inúmeros países terem assinado e ratificado a Convenção, o Brasil –
assim como Irã, Iraque, Coréia do Norte, Paquistão, entre outros países – não assinou tal tratado
[38, 39]. Dentro os motivos assinalados pelo governo brasileiro estão diversas questões, quais
sejam: geopolítica, no caso, a necessidade do Brasil de possuir material bélico que confere ao
país certo status; defesa nacional, dado que a Amazônia é uma área pouca habitada e de mata,
por isso essas munições poderiam ser usadas com efetividade para proteger a região; questões
legalistas, baseando-se no argumento que o tratado foi firmado fora do âmbito da ONU, que
seria o fórum legítimo para discutir tais questões; e, por fim, a própria organização do sistema
internacional, porque o tratado teria um caráter discriminatório, punindo com mais força países
em desenvolvimento que só teriam acesso a bombas de baixa tecnologia – com as munições em
cacho [38, 39].
Como demonstra o depoimento do General Gerson Menandro Garcia Freitas,
representante do Ministério da Defesa na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
da Câmara dos Deputados, que em audiência pública audiência pública sobre munições em
cacho afirma que importância de questões humanitárias já seriam “parte do DNA das
instituições” – no caso, das Forças Armadas [40] – seguindo o discurso hegemônico do Brasil,
como elucidado anteriormente. Ademais, nesse mesmo depoimento, o General invoca a
importância e hegemonia da Convenção sobre Certas Armas Convencionais e coloca que o
“Processo de Oslo, (...) foi feito em paralelo” a ela, deslegitimando-o e reforçando a posição de
que é desnecessário a assinatura de uma nova legislação. O General deixa claro também que as
munições de cacho são fundamentais para a doutrina de defesa nacional brasileira, dado que
“dispormos dessa tecnologia, certamente, vai desencorajar, desestimular possíveis adversários
a nos enfrentar” [40]. Além disso, tais armamentos seriam de grande potencial comercial, sendo
exportados pela AVIBRAS, fabricante do sistema de lançamento ASTRO II [40], algo que
impulsionaria a indústria bélica nacional – considerando que existem diversas empresas
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parceiras da AVIBRAS. Em síntese, além de continuar empregando as munições em cacho e
rechaçando o tratado, o Brasil também produz e exporta tais armamentos [41].
Conclusão
Para além de uma possível discussão sobre se os argumentos do governo brasileiro para
não aderir ao tratado firmado após a Declaração de Oslo são válidos ou não, esse relatório
conclui que a não adesão do país simboliza que o Brasil não é um país comprometido com a
proteção internacional dos direitos humanos e com o direito humanitário internacional em sua
amplitude. Nessa perspectiva, o discurso dominante da Política Externa Brasileira que coloca
que o Brasil é compromissado com a paz mundial é tensionado e, em alguma medida,
desconstruído. Isso porque não aderir a um tratado que visa evitar todos os problemas
humanitários, citados no decorrer desde relatório, não condiz com a autoimagem de país
pacifista que o discurso da PEB tenta construir para o Brasil, fazendo com que a identidade
brasileira seja insustentável quanto posta em contraponto com a posição do país sobre as
munições em cacho.
Antônio Patriota afirma que “A proteção de civis desarmados em situações de conflito é
um desafio de ordem moral e diplomática. Inocentes mortos, feridos ou desabrigados não
podem ser tratados como meros “efeitos colaterais”. ” [42]. O posicionamento dessa pesquisa
está em concordância com a colocação do ex-chanceler, aqui a posição é que a proteção de civis
é imperativa para todos que prezam por um sistema internacional mais pacífico [18]. Porém,
como apontado, a diplomacia brasileira não necessariamente segue o mesmo alinhamento [38,
39], e um dado importante para esse argumento, é que no ano passado, 97% das mortes advindas
de ataques com bombas de cacho, foram de civis [34] – inclusive algumas exportadas pelo o
Brasil para países em contextos de guerra [41].
Um segundo ponto, é que essa contradição interna do discurso dominante promovido pela
PEB, advém da ideia de que o Estado está em constante estado de tornar-se, logo, o a identidade
não é determinística e nem hegemônica [4] – e como dito anteriormente, isso é uma abertura
para desconstruir o discurso dominante, oferecendo discursos contra hegemônicos. Após a
conclusão preliminar dessa pesquisa – exposta neste relatório – de que o discurso dominante da
PEB, especificamente nos mecanismos de desarmamento e não-proliferação, não se sustenta,
um possível próximo passo pode ser identificar o que está sendo silenciado e excluído nessa
narrativa oficial.
Como dito na introdução deste relatório, essa pesquisa possui algumas limitações e ainda
está andamento, portanto, ela ainda precisa de uma revisão de literatura mais extensa, por
exemplo, de modo a analisar o discurso da PEB mais a fundo – particularmente no que tange
os regimes de controle de armas. Entretanto, as questões que podem vir a investigadas é o
comércio de armas e como o Brasil coloca-se nele, como isso relaciona-se com o discurso
dominante da PEB, além de outras questões de segurança e defesa, como a compra de novos
aviões caça para a Força Aérea Brasileira (FAB) [43] e a construção do submarino nuclear
brasileiro [44]. Além de como a sociedade civil brasileira pode atuar para que o país tenha uma
Política Externa mais democrática e alinhada com a proteção do direito internacional dos
direitos humanos e direito internacional humanitário [45].
Por fim, busquei nessa pesquisa, uma análise mais crítica do discurso oficial da política
externa brasileira, visando a desconstrução do mesmo e também tentando criar precedentes para
trabalhos posteriores que sigam a mesma linha, o que é de suma importância para uma academia
afinada com uma posição ético-política com um mundo verdadeiramente mais pacífico.
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