conversas sobre a formação do ator -- jacques lassalle e jean-loup riviere
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Nas set e conve rsa s que compem este livro, .Iean-Loup Rlvl re
Jacques Lassalle, eles prprios pedagogos, perguntam-se sohl' 11 11111111
e as formas dessa etapa de aprendizado e formao, que '1111(1111,1111Ilul
em potencial para ser um artista que, espera-se, seja mais COlllllhllll.
Em Conversas sobre a Formao do Ator, que a editora
Pcrspccttvu
publica na coleo Estudos, no h nem prescries, ncm l'ccl'III1H.HIIII\I
a exposio de uma ideia do teatro e de reflexes sobre os mclCl JlIIIII
atingi-Ia, A maior parte dos grandes encenadores do scul u XXviu
na esco la o complemen to necessrio para o exerccio dc SIIIIIII'h'.
A prtica e o ensino do teatro, aps o surgimento da CnCCIIII\' 111111I111\1111
esto int imamente l igados. De que maneira o ensino pode, IICNHI''IIHII,
gar an ti r e susc it ar uma l iberdade c riado ra , possivelmente, 11CIIIIIHI11
centr al e fundament al que pe rmeia os dilogos deste livru,
A estas conversas segue-se uma pea escrita por Jacques I ,IINSIIIIII111111
os alunos de seu ltimo ano no Conserv ,
-'o D_'o .....
11
1,
1 11
de 1960, os alunos de um curso de inte
morte de Bernardo, um de seus colega
no contingente estacionado na Arglia.
em abril
d;
2001, tendo sido adaptada
por Jean-Philippe Puymartin.
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Tombo 4
255 00
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1 O
Estud os
Dirgida por . Gulnsburg
Equipe de realizao - Traduo: Nathali Safranov Rabczuk; Reviso da traduo:
Na nc i F er nandes; E di o d e Texto: Mar ei o Hon ori o d e Go doy; Reviso: Ionathan
Busato; Sobrecapa: Sergio Ko n: P rod uo: Ricardo W Neves, Sergio Kon e Raquel
Fernandes Abranches. .... . . ,
Jacques Lassalle e
Jean-Loup Riviere
CONVERSAS SOBRE A
FORMAO DO ATOR
SEGUIDO DE APRES DEPOIS ,
PEA DE JACQUES LASSALLE
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T tu lo do original francs
Co nve rsations su r I a jo rmation de /act eur
Actes SUd/CNSAD,2004
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP,Brasil)
Lassalle, [acques, 1936- .
Conversas sobre a formao do ator: seguido de Aprs
(Depois ), pea de [acques Lassalle / [acques Lassalle e Jean
Loup
Rviere; [traduo Nathalia
Safranov Rabc zuk e
Nanci
Fernandes]. - So Paulo: Perspectiva, 2010. - (Es tu do s; 278 /
dirigida por J. Guinsburg)
Ttulo original: Conversations sur Ia formation de Ia cteur.
ISBN978-85-273-0886-1
1. Arte dramtica 2. Atores 3. Tea tro 4. Teatro - Esttica
I
Ri-
vere, [ean-Loup, 1948-. 11. Guinsburg, J. m. Ttulo. IV. Srie.
10-02374
CDD-792
ndice s p ara catlo go s istemtico:
1. Ar te dramtica: Teatro 792
Direitos reservados em ln gu a portuguesa
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025
01401-000 So Paulo SP Brasil
Telefax: (011) 3885-8388
www.editoraperspectiva.com.br
2010
u r o
IARTE
ONVERSAS
PRIMEIRA CONVERSA 3
Encenar ainda ensinar. Fazer teatro com aquilo que
recusado pelo teatro. O domnio da lngua ...
EGUNDA CONVERSA
19
fim pedaggico? escola, o mestre zen e o mercado.
Artes do espetculo e
p er fo rm in g a rt s
TERCEIRA CONVERSA
35
Ensinamento direto e indireto. O ator racional e o ator
instintivo. A descontinuidade do progresso ...
QUARTA CONVERSA 49
o
gesto exato.
observao, o realismo, a iniciao.
O corpo devorador ...
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QUINT ONVERS 61
Saber reinterpretar. O instante de cisivo: O artista, a criana,
a escola ...
SEXT ONVERS
81
A matidez. O ator adesist, o distanciado ou o complexo.
A relao com o espectador ...
STIM ONVERS
93
Depois da escola. A revolta dos intermitentes do
entretenimento. Ser ator: quem decide sobre isso? ...
PARTE II
EPOIS de Iacques Lassalle
PREF IO
111
Primeira Jornada
Sexta-feira, 22 de abril de 1960:
NOT I
1. Andrmaca 115
2. A Prova 119
3. A Place Royale 125
4. A Aula Enfurecida 128
5. A Chegada do Soldado 133
S eg un da Jornada
Segunda-feira, 2 de maio de 1960:
F ZENDO SERO
1. Uma Noite para Francisco 135
2. O Espetculo 137
3. A Apario de Sara 139
4. O Filme de Bernardo 139
Terce ira Jornada
Quinta-feira, 12 de maio de 1960:
EN ONTROS
1. O Projeto das Trs Irms 143
2. A Iniciativa de Suzana 150
3. Sara e Francisco 155
Qua rt a J or n ada
Quarta-feira, 8 de junho de 1960:
O GR NDE DI
1. Os Bastidores do Concurso 159
2. A Volta dos Candidatos 160
3. Questes do Futuro 163
4. A Deciso de Sara 166
NOT 175
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Jacques Lassalle e [ean-Loup Rivire os interlocutores destas con-
versas tm como principal campo de trabalho respectivamente o
palco e a escri ta teatral
O primeiro encenador foi professor de interpretao no Con-
servatr io Nacional Super ior de Arte Dramtica CNSAD de 1981
a 1983 e de 1994 a 2001
O segundo professor na Escola Normal Superior - Letras e
Cincias Humanas dir ige um ateli de dramaturgia no CNSAD des-
de 2002
Ccile Falcon normalista e assistente de Jacques Lassalle par-
ticipou destas entrevistas gravando-as e transcrevendo-as As mes-
mas foram revisadas em seguida pelos dois intervenientes que lhe
agradecem com entusiasmo
rte
ONVERS S
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Primeira Conversa
8 de maio de 3
A TRADIO TEATRAL DICO E DECLAMAO
ENCENAR
AINDA ENSINAR FAZER TEATRO COM AQUILO
QUE
RECUSADO PELO TEATRO O QUE EST NA ORIGEM
DO ATO DE ENSINAR O MESTRE PATERNAL E O MESTRE
FRATERNAL O OUTRO DO TEATRO APRENDER A
DESDOBRAR O AMOR
LNGUA ATUAR
REESCREVER
APRENDER A DESAPRENDER A TRAVESSIA DO PALCO
AN-LOUP RIV:RE A escola supe a transmisso e a trans-
misso supe um conjunto de saberes e tcnicas que uma tra-
dio reuniu H saberes e tcnicas relativos arte do jogo
teatral mas no Ocidente no h que se falar propriamente
em tradio
ACQUES LASSALLE Houve
IUV:RE Sim h muito tempo e um dos nicos exemplos que
pudemos conhecer foi quando Strehler montou O
Arlequim
de Goldoni Era ao mesmo tempo uma encenao da tradi-
o - sua reconstituio - e uma obra que marcava seu desa-
pareeimento
IASSALLE A aposta era em uma encenao contempornea da
obra introduzir aquele Arlequim que nos vinha do famoso
Sacchi um Arlequim do sculo XVIII Quem ainda desempe-
nha o papel do Piccolo Ferrucio Soleri tem 73 anos Ele no
tinha nem trinta anos quando sucedeu seu mestre Marcello
Moretti que havia ele mesmo recriado o papel no espetcu-
lo de Strehler Ao final da representao quando Soleri retira
sua mscara descobre-se a face de um homem idoso Isto faz
lembrar o filme de Max Ophuls O
Prazer
Um danarino mas-
carado cai e sob a mscara descobre-se um homem muito
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'O NV EIISA S SO IIIU l A 1'()(IM \( ,:I \O I O A '1 '() ll
velho. A tradio um pouco assim. N
rn
mento em que
se redes cobre o seu esplendor que se percebe que ela est a
ponto de morrer.
RIVIERE Ou j est morta .. . No existe tradio no sentido de
que aquilo que um mestre ensinaria a seu aluno um conjun-
to de saberes e tcnicas .codificados e, sobretudo, partilhados.
L SS LLE Conheci uma tradio muito forte quando eu era
um jovem aluno no conservatrio. Era a tradio da dico.
As obras de Georges Le Roy, mestre cujo ensinamento era se-
guido por Henri Rollan, eram extremamente precisas. Essas
obras no deixavam nada ao acaso na categoria de oralidade
dos textos. Alis, elas existem para sempre. So obras que ain-
da tm muito bom uso. Formavam o corpo doutrinal da tradi-
o do ator francs. Porm, influenciavam apenas a gesto do
texto, com uma grande ateno ao estilo do autor e ao gnero
da obra tragdia, comdia, drama ... ) .O ator francs, .erncer-
ta perspectiva, estava sem corpo, sem parceiro, sem espao,
mas era um grande declamador.
RIVIERE No se ensinava ento o jogo teatral, mas a declama-
o, e tratava-se antes da reproduo de um bom costume ...
L SS LLE No interior da declamao, cada papel era modela-
do. Mas a modelagem era fei ta unicamente na organizao do
dizer . Eis como se diz Fgaro Eis como se diz Pedra E, com
efeito, chegava-se a um resultado unicamente atravs de m-
todos declamatrios. Esta tradio era muito forte quando in-
gressei no conservatrio. Alis, grandes tradies ainda so
ensinadas. O n , o kabuki, a pera chinesa sempre fascinam
muito os ocidentais. Stanislvski, Meierhold, Brecht propem
mtodos de atuao que continuam sendo referncia no mun-
do todo. E muitos dos pedagogos tm a inteno de se conside-
rar apenas pedagogos de transmisso. Eles aceitam apenas uma
margem muito reduzida de reapropriao ou reatualizao.
lovllm
Na sua posio de pedagogo, o exerccio da arte e a
Ir \IlA IT I isso podem ser vistos como distintos?
I. IIJI.
N a verdade, mais ou menos conscientemente, parto
II ti < I i s prvias. Primeiramente, jamais pude ler por
111' 10 1111\ livro
d utrina teatral; isso foge ao meu contro-
I
10 111
I
I
U
folh
ar com interesse esta ou aquela pgi-
11 \
d
,'I I
I vii M
i irh old , Iouvet, Le Roy ou Dullin. Por
PIUMIIRA C lN V I',RSA
mim 11 1 51110 , Llv um grande prazer com Lessing, Diderot,
Artaud, Br cht, mas esses so escritores que me fascinam. De
modo geral, contudo, fao pouco uso dos manuais de forma-
o do ator. Eles me aborrecem. Em segundo lugar, ensinar j
encenar; encenar ainda ensinar. No dissocio os dois atos:
a encenao e a formao do ator. Nenhuma tcnica de ator
preexiste na singularidade de um texto, de sua leitura e de seu
futuro cnico. A terceira condio prvia que fao teatro so-
mente com aquilo que, aos olhos dos outros, poderia ser re-
cusado pelo teatro: o comum, o banal, o imediatismo da vida;
ou aquilo que no teatro, como o romance, o filme, a mem-
ria pictrica.
Posso parecer estar assumindo uma atitude cmoda de
um autodidata que trabalharia com a recusa das tradies tea-
trais. Na realidade, no verdade. Recebi no conservatrio
uma formao tradicional na qual meus mestres desejavam
ser somente transmissores de modelos, de usos, de tcnicas.
Essa formao que recusei, que achava esteril izante ou mui-
to confortvel, eu a usei depois como ferramenta. E quando
trabalho a partir de um texto, convido os atores a redescobrir
primeiramente o fraseado, o ri tmo, a respirao, omovimen-
to. Como me sacrifiquei muito durante minha formao tea-
tral no estudo das grandes doutrinas estticas, esta recusa que
fao do livro, e do referente, apenas relativa.
RIVIERE
Seu segundo ponto qualifica o encenador como um
professor de teatro. Partimos da questo da tradio e chega-
mos ao ponto de dar-lhe um sentido um pouco mais geral: ser
que isto preexiste em mim em e determina? E o senhor diz que
isso que preexiste e determina o ato do ensinamento no um
corpo de doutrina, de saberes constitudos, como se costuma
dizer: corpos constitudos , no qualquer coisa, o texto.
LSS LLE
O texto, ou mais exatamente a minha reatividade ao
texto.
RIVIER Quem pode ento ser professor de teatro? O ator est
em situao mais adequada para ser professor?
LSS LLE
Ele pode s-lo, mas na maior parte do tempo o est
sob o ponto de vista da transmisso. Na verdade, quais so os
atores que esto suficientemente amadurecidos frente a uma
tradio para assumi-Ia, desconcert-Ia e reforrnul-Ia de
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6 CONVERSAS SOBRE A FORMAO 00 ATOR
outra maneira? Muito poucos. Mas isto no impede que um
trabalho de transmisso artesanal, modesto, inteiramente re-
ferencial, tenha de ser aceito integralmente. No conservatrio,
havia no incio atores reivindicando igual tradio para todos.
Eles transmitiam a tradio da arte do ator e do sistema de
usos segundo o qual a.categoria teatral comportava uma d-
zia de grandes figurasarquetpicas s quais sempre serecorria.
Muito antes de se encenar Sganarelle ou Figaro, encenava-se
um criado de comdia, antes de encenar Climene, encenava-
-se uma cocote ... A partir do trabalho que se construa a
personagem. O julgamento apoiava-se na capacidade de con-
formao com o modelo proposto. Qualquer tentativa de rea-
propriao pessoal gerava espanto, entrava em desacordo.
Substituir sem preparao um ator no causava problema.
Diziam-nos: No seu trabalho, voc tem que conhecer de cor
ao menos uma dzia de personagens : O pressuposto era que a
encenao somente deveria posicionar-se em um cenrio ge-
nrico com fundo de tecido de linho pintado. O ator era uma
espcie de arteso a seu modo, que polia seu personagem no
segredo de seu
gueuloir
e se prestava aventura coletiva da
representao assim que a cortina levantava. Cada qual tirava
partido desse abandono e esse sistema no causava escnda-
lo. Hoje em dia isso ainda ocorre, aqui e ali, no sentido de que
certas reprises de personagens acontecem dessa maneira.
RIVI R No fundo, o encenador seria um mestre paternal, e o
ator um mestre fraternal. O mestre indica, enigmtico, even-
tualmente silencioso. O irmo explica, aconselha, ensina. O
pai incita. O irmo reconforta.
L SS LL
O irmo pode tambm ser spero, e o pai benevolen-
te ... Creio que h espao para as duas pedagogias: a da trans-
misso e a da descoberta. Na primeira, se est no espao da
certeza; l, considera-se como suspeito aquilo que sesabe, faz-
-se uso circunstancial da baliza provisria. Eu no me apoio
naquilo que sei. Parto do desejo que tenho de ir descoberta
daquilo que eu no sei, ou, mais exatamente, daquilo que sei
s
saber que o sei:
I IIlIO
francs
cuja origem remonta a Flaubert e serefere ao s eu espao pri-
vl ld o
de
ru o
pessoal (N. da T.).
IIUMHIH CONVIlHS
tlV R Pod - dizer a seu aluno: Voc veio aprender algu-
ma coisa de mim e eu te digo que no sei nada ? Pode-se dizer
ascoisas com tal brutalidade?
L SS LL O pintor Rouault dizia: O melhor mestre aquele
que for menos professor : Eu diria mais: aquele que convida
a partilhar com ele um pouco mais que a dvida: a ignorncia.
H algum tempo, passei ao largo dessa dvida radical, dessa
animosidade ante um saber de teatro, sua vaidade, suas fal-
sas aparncias, sua arrogncia. Todo texto um enigma; toda
encenao uma pesquisa, toda direo de ator uma aceitao
partilhada do desconhecido. Cheguei a recrutar atrizes de ci-
nema belas, conhecidas, admiradas, e foi necessrio que nos
separssemos porque, inaptas para a experimentao teatral ,
elas s conseguiam subsistir sua imagem. Somente um gran-
de ator capaz de renunciar a si mesmo, de renegar a imagem
que os outros tm dele. Mas renunciar aparncia da cena
para atender ao ser do personagem exige um grande conheci-
mento, uma grande experincia de teatro.
Ante os alunos no procedo de outra forma, porm come-
o prevenindo-os: Para vocs aprenderem progressivamen-
te a aceitar que deve desaparecer o ator que existe em vocs,
mesmo assim vou convid-los primeiro a tornarem-se verda-
deiros atores, depositrios de uma verdadeira tcnica, de um
verdadeiro saber no tocante histria do teatro, suas formas,
reformas, evoluo, revoluo. E em seguida eu os convidarei
a tudo esquecer : Nos primeiros tempos, eu ainda estava sob a
influncia de Rosselini, Zavattini, do primeiro Fellini, do Toni
de Renoir, em suma, do chamado neorrealismo ital iano. Em
Vitry-sur-Seine, ento, trouxe para trabalhar caminhoneiros,
professores de educao fsica, contabilistas, para interpreta-
rem personagens de Marivaux, Goldoni ou Shakespeare. Ha-
via momentos impressionantes, momentos de exploso entre
o ser daquelas pessoas e a fico das peas, porm o mais fre-
quente era um dfici t terrvel de projeo, de ri tmo, contras-
tes e tenso sustentada. Foi nesse momento que o jovem ator
que eu era, que tinha recusado ao mesmo tempo a formao
que tinha recebido e aquela que tinha imaginado incorporar,
redescobriu, pelo lado negativo, a necessidade de uma arte do
ator.
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NVI,RSAS SOIJIUl A lOllMAO 1)0 ATOR
outra maneira? Muito poucos. Mas isto no impede que um
trabalho de transmisso artesanal, modesto, inteiramente re-
ferencial, tenha de ser aceito integralmente. No conservatrio,
havia no incio atores reivindicando igual tradio para todos.
Eles transmitiam a tradio da arte do ator e do sistema de
usos segundo o qual l categoria teatral comportava uma d-
zia de grandes figuras arquetpicas s quais sempre se recorria.
Muito antes de se encenar Sganarelle ou Figaro, encenava-se
um criado de comdia, antes de encenar Climene, encenava-
-se uma cocote ... A partir do trabalho que se construa a
personagem. O julgamento apoiava-se na capacidade de con-
formao com o modelo proposto. Qualquer tentat iva de rea-
propriao pessoal gerava espanto, entrava em desacordo.
Substituir sem preparao um ator no causava problema.
Diziam-nos: No seu trabalho, voc tem que conhecer de cor
aomenos uma dzia depersonagens . O pressuposto era que a
encenao somente deveria posicionar-se em um cenrio ge-
nrico com fundo de tecido de linho pintado. O ator era uma
espcie de arteso a seu modo, que polia seu personagem no
segredo de seu
gueuloir
e se prestava aventura coletiva da
representao assim que a cortina levantava. Cada qual tirava
partido desse abandono e esse sistema no causava escnda-
lo. Hoje em dia isso ainda ocorre, aqui e ali, no sentido de que
certas reprises de personagens acontecem dessa maneira.
RIVIERE No fundo, o encenador seria um mestre paternal, e o
ator um mestre fraternal. O mestre indica, enigmtico, even-
tualmente si lencioso. O irmo explica, aconselha, ensina. O
pai incita. O irmo reconforta.
LASSALLE
O irmo pode tambm ser spero, e o pai benevolen-
te ... Creio que h espao para as duas pedagogias: a da trans-
misso e a da descoberta. Na primeira, se est no espao da
irtcz l, considera-se como suspeito aquilo que se sabe, faz-
lI H O ci rcunstancial da baliza provisria. Eu no me apoio
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0 que sei. Parto do desejo que tenho de ir descoberta
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ItlVIERE Pode-se dizer a seu aluno: Voc veio aprender algu-
ma coisa de mim e eu te digo que no sei nada ? Pode-se dizer
as coisas com tal brutalidade?
i\SSALLE O pintor Rouault dizia: O melhor mestre aquele
que for menos professor : Eu diria mais: aquele que convida
a partilhar com ele um pouco mais que a dvida: a ignorncia.
H algum tempo, passei ao largo dessa dvida radical, dessa
animosidade ante um saber de teatro, sua vaidade, suas fal-
sas aparncias, sua arrogncia. Todo texto um enigma; toda
encenao uma pesquisa, toda direo de ator uma aceitao
parti lhada do desconhecido. Cheguei a recrutar atrizes de ci-
nema, belas, conhecidas, admiradas, e foi necessrio que nos
separssemos porque, inaptas para a experimentao teatral,
elas s conseguiam subsist ir sua imagem. Somente um gran-
de ator capaz de renunciar a simesmo, de renegar a imagem
que os outros tm dele. Mas renunciar aparncia da cena
para atender ao ser do personagem exige um grande conheci-
mento, uma grande experincia de teatro.
Ante os alunos no procedo de outra forma, porm come-
o prevenindo-os: Para vocs aprenderem progressivamen-
te a aceitar que deve desaparecer o ator que existe em vocs,
mesmo assim vou convid-los primeiro a tornarem-se verda-
deiros atores, depositrios de uma verdadeira tcnica, de um
verdadeiro saber no tocante histria do teatro, suas formas,
reformas, evoluo, revoluo. E em seguida eu os convidarei
a tudo esquecer . Nos primeiros tempos, eu ainda estava sob a
influncia de Rosselini, Zavattini, do primeiro Fellini, do
Toni
de Renoir, em suma, do chamado neorrealismo italiano. Em
Vitry-sur-Seine, ento, trouxe para trabalhar caminhoneiros,
professores de educao fsica, contabilistas, para interpreta-
rem personagens de Marivaux, Goldoni ou Shakespeare. Ha-
via momentos impressionantes, momentos de exploso entre
o ser daquelas pessoas e a fico das peas, porm o mais fre-
quente era um dficit terrvel de projeo, de ri tmo, contras-
tes e tenso sustentada. Foi nesse momento que o jovem ator
que eu era, que tinha recusado ao mesmo tempo a formao
que tinha recebido e aquela que tinha imaginado incorporar,
redescobriu, pelo lado negativo, a necessidade de uma arte do
ator.
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"'NVERSAS OIJI(E A PI{MA :O 1)0 ATOR
Hoje em dia, toda vez que me deparo com as situaes em
que ocorre essa contradio entre o conquistado e o renunciado,
percebo que sou muito injusto na avaliao que fao de certos
atores. Sua virtuosidade, sua maestria provoca em mim uma
-
tima forada mas, ao mesmo tempo, eu no saberia desafi-los,
j que em ltima anlise eles s me falavam de teatro. Os nicos
alunos e,depois deles; os nicos atores que me ficaram na me-
mria, decididamente, aolongo detodo seu percurso de solido,
de incerteza - terrvel a existncia do ator, to dependente da
aprovao dos outros, da ideia que os outros tm de voc -, so
os atores que me falam de outra coisa para alm do teatro, mas
que me falam sobreteatro. Esses so os nicos que eu adoraria
ajudar a fazer nascer. Pode ocorrer de elesaprenderem o que no
sabem. Eles me fazem aprender aquilo que no sei mais. Eles
me lembram o fulgor da hesitao , como dizia Matisse.
Eles aceitam que tudo se passa no calor da noite, de surpresa,
por choque, como manifestao de ternura ou, se necess-
rio, por desacordo. por isso que ainda nos dias atuais, assim
que vejo uma escola de teatro surgir com um programa, diretri-
zes, empenho nos resultados e, na fachada, uma frase bem ela-
borada, fujo. Mesmo com a conscincia de ter, eu tambm, algo
a transmitir, isso no muda o meu percurso.
RIVIERE A propsito de seu terceiro ponto, parece-me que o
senhor aponta aquilo que, da mesma maneira em que pode
ameaar o teatro, tambm o consti tui. O que faz a especifici-
dade desta arte que ela est integralmente habitada, eu diria
at que consti tuda por outra arte que no ela prpria - o
que no o caso da msica ou da pintura. Um msico pode
ignorar a pintura, a literatura ete., mesmo sendo msico for-
mado, um pintor pode ignorar a msica ou a literatura etc.
Um artista de teatro, no. Outra arte que no o teatro infor-
ma a arte do teatro. A maior parte do tempo quem a informa
a literatura, mas pode ser a msica ou a pintura ... V-se isso
muito bem quando se examina a obra dos grandes pioneiros
da encenao: Craig e a gravura, Appia e a msica, Copeau e
a literatura ete. De que maneira, num gesto de ensinamento,
pode-se investigar esse outro do teatro que faz o teatro?
L SS LLE verdade que as outras artes para alm do teatro
no cessam de informar o teatro. Contudo, em ltima anlise,
PI{IMHII\A CONVIIISA
ser que o teatro faz outra coisa a no ser ele mesmo? A iden-
tidade ltima do teatro no seria desembocar em alguma coisa
na qual seria ele, o prprio teatro, o objetivo, mas principal-
mente transcender as contribuies recebidas? Seria preciso
separar este ncleo duro. Sonha-se com um teatro desobri-
gado de todos os teatros antes dele, porm, ao mesmo tempo,
isso impossvel. Sonha-se com um jovem ator que no teria
nenhuma conta a ajustar com seus antecessores, e ao mesmo
tempo, para favorecer a vinda desse ator, preciso pedir-lhe
emprestada a voz de todos os que o precederam. Trata-se da
questo de uma memria que no seria nem nostlgica e pas-
sadista nem vingativa e polmica, mas aberta e xperincia do
passado. Quanto mais se avana na sua histria e na sua prti-
ca, mais se sabe que no se pode negar essa dialtica.
RIVIERE Na medida em que o elemento que preexiste ao ensi-
namento e no qual ele se funda o texto a ser trabalhado com
os alunos, j lhe ocorreu pensar que h textos que so, nessa
situao especfica, maus textos ? Textos que no so adapta-
dos juventude ou imaturidade artstica dos alunos? Textos
que viriam cedo demais? Todo texto de teatro que o senhor
tem vontade de trabalhar com os atores se constitui num bom
objeto de trabalho para alunos em formao?
LSS LLE Ser que existem textos mais especialmente indica-
dos aos ciclos de iniciao, de aperfeioamento, de suficincia?
No estou certo disso. A progressividade na arte no eviden-
te. Talvez seja melhor comear logo pelo estudo de Rembrandt
do que pelos esboos em papel quadriculado do mtodo BC
Minha nica certeza que preciso partir da literatura dos
textos.
- os
ao p da letra. Esquecer aquilo que dcadas de
comentrios literrios, cnicos, ideolgicos) acumularam a
seu respeito. Eles embaralham ou modificam a orientao de
nossas primeiras leituras. preciso ter l ido diversas vezes um
texto ao nvel das palavras, sem prejulgar nem ter prvia in-
teno, para comear a descobrir sua verdadeira eficcia. E
percebe-se rapidamente que o prazer do leitor, hoje, ser o
livre uso, amanh, do ator comeando com a polissemia da
escrita, a proliferao e a ambivalncia de suas significaes,
suas contradies aparentes, seus sentidos incompletos, seus
jogos de eco entre as sonoridades, os intervalos, os silncios.
-
7/24/2019 Conversas Sobre a Formao Do Ator -- Jacques Lassalle e Jean-Loup Riviere
11/95
10
CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
Para tanto, sempre convido os jovens atores a retornar ino-
cncia, proibio de uma primeira vez. Eles adoram que se
lhes d segurana. Esperam de voc um saber estrutural. E no
caso de uma disciplina de ensinamento em que se distingue a
aquisio dos saberes , oaluno estaria no direito de exigir isso
de seu professor. Mas falo aqui de um aluno-ator, de um artis-
ta em transformao, e isso uma coisa totalmente diferente.
RIVIERE Concretamente, para o senhor, quais so os textos de
teatro que tm essa riqueza polissmica?
L SS LLE
So os textos em que sealternam as figuras percept-
veis, como a metfora, a elipse, a l totes, o paradoxo, a rei tera-
o o efeito repentino de ruptura. Falou-se muito dos efeitos
do subtexto , da subconversao , mas trata -se ainda do tex-
to escri to ou no. O que mais me ocupa o entre as palavras ,
os efeitos de passagem, do deslize de um pensamento, um sen-
t imento de uma vontade hesitante a outra. Um grande texto
est contido tambm nos seus espaos em branco. Escrever
transfigurar esses espaos em branco. Atuar habitar esses
espaos em branco. Recordo-me de uma citao de Sarraute:
O que escapa nas palavras aquilo que as palavras devem di-
zer . Os grandes textos dos quais falo so esses, os que fazem
do vazio de ideias o seu lugar no inefvel, no inominado, no
inominvel, os que no pretendem tratar a fundo tudo aquilo
que pode ser dito. A polissemia no teatro em primeiro lugar
o lacnico, a abertura do falado.
RIVIERE Quando o senhor fala dos textos que tratam a fundo
aquilo que dito, o primeiro nome que me vem ao pensamen-
to Genet, o teatro de Genet.
L SS LLE
Sim, seu teatro, e no as suas narraes ou sua cor-
respondncia.
RIVIERE Efetivamente, mas aquilo a que quero me referir no
diz respeito de modo algum qualidade prpria, qualidade
esttica do texto, antes de mais nada a sua complexidade.
Certos textos de teatro conformam-se ao carter efmero e
nico da representao, e poder-se-ia dizer que sucumbem na
unicidade de sua manifestao teatral. E acho que um ele-
mento muito importante no aprendizado,
pois
v a medir o
grau de complexidade de um texto.
Iss o
m u ltu
dln
il d d
ri-
nir,
po is no s
qu ais
850
os I n ntos nh]
I
I,
ou ob]
1Iv\ -
PRlMEIRA CONVERSA
veis, que poderiam medir esse grau. Para retomar o exemplo
de Genet, parece-me que uma encenao de O alcopode
ser melhor que outra, mais justa, mais brilhante, porm, com
exceo de uma deficincia catastrfica na interpretao, toda
pea vai estar sempre l, de forma que at uma interpretao
medocre de O Misantropo pode desdobrar-se em novos as-
pectos, inesperados, ainda despercebidos. E, ainda uma vez
mais, isso no quer dizer que O alco seja uma pea pior ou
menos interessante que O
Misantropo
H uma expresso de
Pitoff de que gosto muito: ele diz que encenar desdobrar .
Quero simplesmente dizer que h peas que so mais dobra-
das que outras. Seria preciso talvez manter essa expresso de
dobradura , pois ela permitiria evitar qualquer julgamento de
valor. E uma das misses do ensino seria, antes de mais nada,
observar a dobradura de uma pea, depois aprender a des-
dobrar ... Cito um encenador, e sem dvida no por.acaso:
creio que a arte da encenao tem estimulado consideravelmen-
te a fora dos textos dramticos. Sem dvida h peas que ti-
veram que aguardar a arte moderna da encenao para que
e manifestassem todas as suas potencialidades. Por exemplo,
acho que as peas de Racine so muito pouco dobradas e
que um espectador do sculo XVII sem dvida, no assistiu a
uma Fedra ou a uma Berenice menos rica que um espectador
do sculo
xx,
enquanto que Goldoni, por exemplo, parece-me
er um autor que s apareceu em toda sua riqueza na era da
ncenao. Goldoni bastante dobrado : e preciso a arte da
ncenao moderna para tornar aparente a sua complexida-
de. O Goldoni que conhecemos talvez mais interessante que
aquele encenado no sculo XVIII e nosso Racine, no ... Eu
me arrisco um pouco, e estou certo que me diro que Racine
muito mais dobrado do que se cr, e Goldoni muito me-
nos ... Mas estou convencido de que h alguma coisa de
preci-
s
de explicvel e, talvez - uma investigao mais avanada o
straria -, alguma coisa que pertence prpria natureza do
xto dramtico. E, para voltar sua objeo, o que digo sobre
n
t ,
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111
nt
vlido para suas peas.
LLE
Lc [ 1 1 1 1 I 1 I I II C
quilibrista), por exemplo, para
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dobrado. uas peas o
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-
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12/95
NVEn AS I3IUl A P HMAAO 1> AIOI\
Bagne
(Colnia Penal), mas na sua verso de roteiro e no da
pea para o teatro, alis inacabada.
RIVIERE O senhor chegou a trabalhar com os alunos algum
texto que no t inha vontade de encenar?
LASSALLE Certamente, poi h demandas de alunos que me
perturbam e que, em um primeiro momento, estou apenas
curioso de acatar. Penso, por exemplo, naqueles que preferem
empenhar-se na
ntgona
de Anouilh do que naquela de S-
focles. preciso, ento, comear por um exercc io de lei tura
comparada, compreender aquilo que seduz aqui e ainda o que
repugna ali. A questo da traduo, da intimidao pela his-
tr ia grega e seus mitos , do hbil aux lio da atual izao para
nossos dias. Quando retomei ao conservatrio em 1994, en-
contre i u l la classe cujo professor anterior tinha paixo por
Claudel. Os alunos ainda estavam sob o golpe de uma verda-
deira transferncia. Isso acontece algumas vezes, e no ocorre
sem risco. O que me interessa em Claudel o realismo, abus-
ca mstica, sim, mas num mundo singularmente ancorado em
fins do sculo
XIX
Personagens humanos, bastante humanos,
por vezes derivativos. Em suma, o cu e o inferno de um co-
lonial ismo tomado pela graa. Ora, fui convidado para uma
celebrao relativa exclusivamente linguagem desse teatro.
Desconfio do encanto literrio, do lirismo desbragado, das
celebraes musicadas e conflitos. Chega-se beleza, fora
potica de uma obra questionando-a, desarticulando-a se for
preciso, fa lando-a em todo caso, ao invs de reci t-Ia de for-
ma montona. Mas naquela ocasio, aprendi a inda assim a co-
nhecer melhor, a apreciar melhor Claudel.
Raramente tenho atividades encomendadas no teatro. Pre-
fi ro parti r do desejo, do apelo de ta l ou ta is obras . svezes me
engano. A obra se revela menos substanciosa que a expecta-
t iva que se t inha dela. Falo da minha expectat iva . Mas tem-se
o direito de conter esses alunos? No penso mais nisso. No
comeo, eu chegava a considerar com condescendncia cer-
tos autores. Durante os anos de 1960, brechtianos, e os anos
de 1970, Artaud-Mao, a moda era o antema, os sarcasmos e
as excluses. Ser que sempre consegui manter-me em guar-
da? Na minha juventude era o contrrio: eu tomava EOeuf O
vo), l P li i n ar au, e Timtim de Billetdoux, como
IIUMIIlI\/\ CONVJII\SA 3
obras apitals. Ilav -las se Jhido con ervatrio conferia-
-me um st atus de original e' moderno. Retrospectivamente,
btive o reconhecimento dos meus professores , que manti-
v ram vivas as minhas paixes, mesmo aquelas que deviam
r velar-se ilusrias. que se faz necessrio encontrar seu lu-
ar no gosto de seus alunos e fazer obra de pedagogia a par ti r
mesmo de seu desejo, por inflexo, desenvolvimento, compara-
o
anexaes sucessivas. Longa caminhada que no deve ja-
mais ser forada. Revelao doce, longe de qualquer esprito de
doutrina e de intimidao dogmtica.
IIIV[ERE Voltemos "fetichizao" do literrio, que nos reme-
te ao primeiro momento de nossa conversa. Houve uma po-
a em que a nica coisa ensinada era dico e declamao:
prender a atuar era aprender a dizer. Depois, a partir do
omeo do sculo XX com a encenao moderna, o apren-
dizado da interpretao torna-se muito mais completo, e se
desenvolve especialmente o trabalho corporal. Ora, estamos
num momento em que essa tradio desapareceu e em que
a declamao retoma sob outra forma. Eu ouvi um dia um
jovem encenador dizer: "Vou montar tal pea de Racine 'a
par tir da l ngua" '. O que isto quer dizer? Esta fet ichizao do
literrio surge como um amor histrico da lngua, e poder-se-
-ia compreend-Ia no sentido que Lacan lhe d: o histrico
busca um mestre sobre quem reinar. Ora, no se reina sobre
a lngua, ela quem dirige. Encontra-se outro sinal nesta ex-
presso que se tornou corrente: "apoderar-se de um texto",
um ator "apodera-se" de um texto. Poder-se-ia preferir 'que
fosse o inverso ... H vrios anos, quando eu era produtor na
France-Culture, tinha acompanhado Alain Cuny em seu de-
sejo de gravar uma leitura integral de Fedra. Ele fazia todos
os papis. A interpretao era magnfica e a dico do verso
admirvel. Ao final da gravao, perguntei -lhe como e onde
ele havia aprendido. Jamais, e em lugar algum ... Ele t inha ra-
zo. Se o gosto e a vontade o levam atravs da lngua, ento
voc sabe ler. De modo que, se aprendemos a falar sem que
ningum nos ensine - a escrita se ensina, no a palavra, bas-
ta viver em sociedade -, igualmente dever-se-ia aprender a
dizer sem um professor, e aprender unicamente com a vida,
na companhia dos textos. Todo mundo como santo Agos-
-
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C NVIRSAS SOJ\1t1A I RMA O 1)0 AJOlt
tinha, que aprendeu a falar unicamente com sua intelign-
cia ...
2
Se os elementos tcnicos lhe fazem falta, alguns dias,
alguns conselhos e alguns princpios gerais sero suficien-
tes para voc assimil-Ias. Ora, na maior parte das escolas
de atores, t rabalham-se horas e meses na dico. Talvez seja
algo que se poderia suprimir ...
L SS LLE Se ler j escrever, representar reescrever. es-
crever novamente o texto, embora ele j esteja fixado na p-
gina. O texto permanece uma invarivel, mas cada uma de
suas passagens, no palco, modula sua percepo sem mudar
a letra. O pedagogo, assim como a seguir o encenador - mas
eu disse o quanto me era difc il distingui-Ias absolutamente -,
ajuda o ator a penetrar os segredos de uma escrita, a reconhe-
cer o processo e os modos de fabricao. No h nesse dom-
nio uma teoria prvia. Cada ator suscita uma aproximao e
uma tcnica par ticular de interpretao. Alguns explicam que
se Racine traiu Moliere era porque ele tinha adquirido a con-
vico de que a esttica do natural pregada em O mproviso
de Ve r sa i ll e s
no convinha a
es ses
textos. Ele no dava conta o
suficiente no que dizia respeito sua musicalidade. Sem d-
vida, do seu ponto de vista de poeta ele tinha razo. Talvez a
escrita raciniana, ass im como outras, antes e depois dela, cla-
mavam pela intruso do cantado no falado. como o ovo e a
galinha. Quem comea, a msica ou o sentido? De minha par-
te, primeiro do sentido que nasceria a msica, mas a questo
continua, e ela se contenta com respostas mais conjunturais
do que tericas. Inversamente, possvel que um texto meti-
culosamente detalhado, analisado, perca um pouco de sua in-
teligibilidade. Por vezes, a pressa faz sentido, a lentido nivela
e obscurece. Vilar no gostava de Racine e amava apaixona-
damente Corneille. Mas ele adorava Casares, e deu-lhe o pa-
pel de Fedra. Ambos desviaram-se do caminho. Cuny (Teseu)
chegou, e, como o senhor disse, era luminoso. Todos os mes-
tres da pronncia raciniana estavam equivocados. Um grande
texto est sempre novo. Ele se reescreve na exploso que pro-
duz cada vez que sua originalidade tem interseco com uma
2 Eu
aprendi totalmente sozinho, com a inteligncia que Tu me deste, meu
D us S on fisses livro IVIII 13, Paris: Gallimard, p. 790 (Biblioteca da
1 > 1 ln d c
IIOMIiIIt/\ CONVEI(SA
P a, um lu
l
Int rpr tes, um pblico. O efmero da repre-
S
ntao
J O
a arr ta isso no texto. Ele no perde nada por ser
TI canicamente reproduzido de livro em livro. A captao do
utro, to comovente, to leg tima quanto possa parecer, pro-
pe quase sempre uma memria superficial, lisa, incompleta,
parcial, em uma palavra ilusria. Eu reproduzo, logo suprimo:
No restar nem ao menos um texto que faajus qualidade
de clssico, caso sua capacidade de reagir ao tempo da Histria
no for menor do que aquela que lhe escapa.
IUVIERE Eu gostaria de retomar sua ideia de desconfiana,
quanto ao saber, e da tarefa do mestre, que seria a de inspir-
- 1 Um aluno ainda tem pouco conhecimento. Como colocar
em dvida algo que ainda no est l, que no existe? Se se
incomodado pelo saber, pode-se descart-Ia. Sese perturba-
do pela ignorncia, preciso l ivrar-se dela tambm. A igno-
rncia tem um volume. Uma lacuna apodera-se do lugar. No
s implesmente algo que no est l.
I SS LLE Antes da ignorncia, h o falso saber..Quando chego a
uma escola superior, o jovem ator o menos inocente, o me-
nos virginal que se possa imaginar. Ele j est, s vezes, intei-
ramente programado, deformado. A ignorncia, no seu caso,
seria antes da ordem de reconquista. Minha preocupao, por
analogia a muitos jovens atores , ajud-Ios a desaprender. A
questo do saber no viria seno depois. Mas de todo modo,
no se far apelo ao saber, ou no o constituiremos, a fim de
melhor exced-Io, ultrapass-Ia.
RIVIERE
De um lado, antes coloca-se a preeminncia do ato de
ser ator , que no depende de nenhum aprendizado. Por outro
lado, ao redor deste ato de estar-l que se vai trabalhar. Isso
uma contradio, sem ser uma incompatibilidade? Penso num
exemplo: para Copeau, a instaurao da escola e da pedagogia
uma tentativa essencial, e o mesmo Copeau quem, em um
belo texto de teatro, admira a maneira pela qual um tcnico de
seu teatro atravessa o palco. Ele v em seu gesto no teatral o
ponto culminante do teatro e lamenta nunca ter visto um ator
atravessar? palco com essa naturalidade e essa fora.
L SS LLE E que o ator muito frequentemente se protege do
seu estar-l por meio de sua tcnica de ator, de sua mscara . J
me ocorreu tambm experimentar o que Copeau tinha sentido
15
-
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1 6
'ONVEI('ASS IJItEi\1' ItMA :AOJ)OA'I' It
na presena de um maquinista andando no palco. Eu m s-
mo assisti, no Opra, no momento de uma mudana mal
sincronizada de cenrio, travessia repentina, alm do mais
imprevisvel, de um maquinista levando uma escada de uma
armao de cenrio a outra, ignorando que ele fazia isso na
frente do pblico; o efeito era irresistvel. O irromper de um
efeito semelhante da relidade entrava em coliso com a fico
e a fragilidade da conveno cnica. Ela reinstalava por con-
sequncia a ordem do real cotidiano. H atores para os quais
essa coexistncia minimamente imprevista, com um maqui-
nista ou um bombeiro de servio, de passagem sobre o pal-
co, vista e com o c hecimento do pblico, no faz perder
sua credibilidade. H outros que por muito tempo no se re-
compem. Os primeiros preservam uma qualidade de verda-
de na sua existncia cnica, de sorte que nada aparentemente
a poderia alterar. Isto poderia ser aquela qualidade, no cine-
ma, de um ator filmado na rua, em meio aos pedestres. A
c-
mera capta essa verdade, nessa ocasio, em seu imediatismo;
evidentemente que em outra ocasio ela tambm denunciaria
a sua ausncia. Mas no teatro, essa qualidade de presena no
mundo, essa evidncia prvia do estar-l, para alm de todos
os artifcios do espetculo, no dada imediatamente. Ao me-
nos jamais completamente. preciso um longo aprendizado
de fico cnica para recolocar e preservar, infin a verdade.
RIVIERE
Isto me faz pensar no que diz Iakobson a respeito da
linguagem infantil do recm-nascido, que pode emitir todos
os sons que o aparelho fnico permite ...
LASSALLE Todos os fonemas possveis, de todas as lnguas?
RIVIERE Absolutamente. E em seguida, por ser capaz de falar,
ele deve perder um certo nmero de suas competncias fo-
nticas. preciso que o ator perca uma habilidade natural de
modo natural, para tornar-se natural. ..
LASSALLE
Atravessar o palco, por exemplo, um dentre todos
os primeiros exerccios que os jovens atores praticam.
que
revela frequentemente a falsa confiana, "o artificial" que
(\ I
sorm no seu deslocamento no palco do teatro. Em sth r
1 / 1 1 // \
film de Desplechin, um velho professor prope isso
tluu n E I v nisso o comeo e o pice, todo o univer-
\
tio uor
Progressivamente, a jovem Esther vai ultra-
IIIUM IIA CONVI \SA 7
J ssar opu' t x r { elementar, aps seu pnico ante a
l n ia d qualquer forma imposta, de qualquer subterf-
gio, num esboo de interpretao qualquer. Pouco a pouco,
sob nossos olhos, ela aprende a "sujeitar-se", a contentar-se em
er o que ela . Cena admirvel, para se projetar com urgn-
cia, por exemplo, para os candidatos do concurso de ingresso
no conservatrio.
-
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egunda Conversa
de junho de 3
111MPEDAGGICO. FIM INSTITUCIONAL E FIM ARTSTICO.
MULTIPLICAO DASESCOLAS. NENHUMA ESCOLA FORMOU
JAMAISUM ATOR. A ESCOLA, O MESTRE ZEN E O MERCADO.
ENSINO, INTIL? A FINALIDADE DO ENSINO DO TEATRO
TEATRO? ARTES DO ESPETCULO E
PERFORMING RTS
li RCELA DE SONHO.
I NLOUP
RIVIERE Um artista nunca para de aprender, mas
a escola de teatro implica um tempo determinado de
iprendzado. Existe algum indcio que prove que o objetivo
ro
atingido, que o trabalho propriamente pedaggico esteja
terminado
O fim do ensino representa o trmino da durao
ensino? Isto j levou o senhor a pensar: "Sim, aquele l est
r nto para sair da escola"
: UES LASSALLE
Existem duas acepes da palavra "fim": o
rn como finalidade, o fim como trmino, parada, interrup-
sem volta. No que concerne
segunda acepo, eu dir ia
se a escola deve ter um fim, a formao jamais deveria,
num sentido amplo, interromper-se. Mas para continuar na
lia pergunta, a partir de que momento um aluno est pron-
to
para representar? E o que
u r
dizer estar pronto para re-
r sentar? Quando ns o percebemos? Ou seja, se voc sabe
vimentar-se em cena, traduzir sentimentos, escutar o par-
'ir ,responder-lhe de forma inteligvel? Se voc compreen-
qu uma situao dramtica e se sabe conduzi-Ia a bom
I rrno]
alunos que ingressam no conservatrio com o cor-
I () travado, s
m
nt mo, uma voz que quase no se ouve,
um
l tl l
o pr I1itada ("m tralhadora', diz-se no jargo
-
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16/95
20
;O N VE I lSA SS O III \1 A IO RM A < ,;AU L JO A TO R
dos cursos), gestos e movimentos com desconcertante falta
de jeito. Certos examinadores acabam tendo, contudo, o
ds -
cernimento de aproveitar alguns desses alunos, pressentindo
uma clareza, uma presena singular sob a imperfeita e confu-
sa mistura. E frequentemente tais alunos, desconcertados com
a confiana que lhes foi conferida, transformam-se em alguns
meses, e no final de seus trs anos de escolaridade, revelam-
-se verdadeiros atores, prontos para part icipar de verdadei-
ras aventuras artsticas. H outros cuja bagagem tcnica seduz
nos primeiros dias e que no progridem minimamente du-
rante toda sua escolaridade: no esto nem mais, nem menos
prontos a atuar, seja quando ingressaram na escola, seja quan-
do se formam. Eles engrossaro as filas dos atores funcionais,
descartveis. Poder acontecer, muitas vezes, que abram uma
escola ou uma agncia. Outros no veem a hora em que a es-
cola ir acabar: desperdiam seu tempo em revoltas inteis ou
em dedicao estril. Tm necessidade de confrontar-se com
o pblico, com a exaltao compartilhada no trabalho e nas
representaes. Para outros, ao contrrio, a escola acaba cedo
demais ... Tambm nesse caso, no h leis.
Porm, deve-se voltar primeira acepo: a finalidade da
escola. Consiste em preparar para o teatro? Para todos os tea-
tros? Para um s teatro? Ela abrange todo o espectro do espe-
tculo de entretenimento e das prticas audiovisuais?
um
libi para uma poltica de emprego? Ou a simples prove-
dora de ofertas submetidas a um mercado cada vez mais em
transformao, cnico e mercantil? Ou a escola seria apenas,
ao final de contas, o caminho tortuoso do teatro para uma
pedagogia de vida, para uma propedutica do mundo e de si
prprio no mundo? No tomar partido por esta ou aquela res-
posta correr o risco de aumentar a confuso geral.
H algum tempo, no entanto, as coisas pareciam claras: um
ensino pblico organizado, de certa maneira, em trs nveis:
primeiro os conservatrios municipais, em seguida as classes
preparatrias do ENSATT (Escola Nacional Superior de Artes e
Tcnicas do Teatro), curso Dullin em Chaillot, Iacques Lecocq,
Balachova, enfim, o ensino superior, aquele do Conservatrio
Nacional de Paris, ao qual Gignoux iria obter de Malraux, no
incio dos anos de 1960, que tambm fosse anexado Escola do
1 1 11 \ /N /IA (, IN V II iS A
2
lcn tro
Nacional de ESlmsburgo
(TNS).
Paris preparava atores
pllm
a Comdie
Pranalsc
e para os palcos privados parisienses.
I\strusburgo e seu ensino multidisciplinar alimentavam o cir-
(1 1 11 0 da descentralizao dramtica. Quanto ao ensino priva-
\ 1 \ preparava um pouco para tudo, para o conservatrio, para
d nema e para a televiso, com um nmero, no final de contas,
II'Hlritode estabelecimentos: Simon, Escande-Dussane, Girard,
I ,cgllirFuret, Florent, Primony, Mathieu ...
As coisas evoluram muito. Primeiramente, aps 1968, o
\ nnservatrio abandonou os seus exames de concluso. E em
\ unsequncia, tanto no ensino pblico como no privado, todo
mundo quis ter a sua escola: os Centros, os Palcos Nacionais,
I. companhias dramticas, as coletividades emergentes ... O
Ispecto poltico ernbaralhou-se. Cada um quis ter seu con-
crv at ri o regional, sua nova Escola Nacional Superior, suas
tua ster classes
seus estgios de formao. As escolas privadas
omearam a proliferar. Atualmente, somente na cidade de Pa-
ris encontram-se cerca de setecentos cursos privados. Muitos
ores decepcionados s conseguem uma atividade no ensino.
Pura dar uma aparncia de legitimidade a essa multido de
pcdagogos, uma associao de defesa da escola privada tentou
definir alguns cri trios de avaliao para esses estabelecimen-
tos. Por seu lado, as tutelas pblics estudam h algum tem-
po a possibilidade de criar e impor um diploma de professor
de arte dramtica. Atualmente, chegou-se assim a uma dzia
de escolas pblicas, que se autoproclamam Escolas Nacionais
Superiores; a uma dzia de conservatrios ditos regionais ;
um nmero ainda muito mais importante de conservatrios
municipais e escolas ligadas s companhias profissionais, com
residncia ou no nos teatros fixos. Seria necessrio acrescen-
lar, aqui, os estudantes dos institutos de estudos teatrais na
universidade, criados nos anos de 1970 para fins os mais di-
versos, mas que, a seu modo, tambm lanam no mercado um,
grande nmero de estudantes mais preocupados em atuar no
teatro do que dedicar-se ao ensino ou pesquisa. Enfim, re-
pito, preciso contar tambm com os setecentos cursos priva-
dos na regio parisiense.
O que todas essas escolas tm em comum? Uma escolari-
dade estrutura da, na maioria dos casos, em trs anos, a eli-
-
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22
NVI\It. A s t )IIIU( A FORMAO DO ATOR
SEGUNDA CONVERSA
abertamente ao passado como base de resistncia. Suporta a
sociedade atual cada vez com maior dificuldade e trabalha com
a perspectiva de uma sociedade melhor. Como no apoi-Io?
Dois perigos maiores o ameaam: o pensamento negativo e o
discurso encantatrio com relao s perspectivas e possibili-
dades de venda do seu produto. Continua-se a falar em trupe
no momento em que no existe mais uma escola que consti-
tua um repositrio para o teatro contemporneo no qual ela se
insere, no momento em que no h mais continuidade entre
a formao e o espao profissional , na medida em que ela s
pode ser garantida a uma nfima minoria de alunos formados;
reivindica-se o pensamento crtico, a primazia da indepen-
dncia e d a liberdade intelectual enquanto secorteja, frequen-
temente, o campo dos dogmas, dos engajamentos unvocos.
Aspira-se existncia de um mestre, desejar-se-ia um guru
para a vida, porm no seousa muito reconhec-lo. Como po-
deria o mestre escapar das perspectivas igualmente ilusrias
de semelhante alternativa?
Frente aos alunos, cuja maioria a cada ano est sendo
mais fragil izada pelo discurso miditico, e diante do sonho
de ter acesso ao star sy stem (considere-se a audincia de ta r
Ac'), da necessidade material de' achar o mais rpido poss-
vel o seu lugar no mundo da imagem (por que no sacrificar
um trabalho sobre Alceste em favor de uma part icipao em
Navarrot ,
como assegurar a responsabilidade do artista na
cidade, a construo de si mesmo em cada papel, a aula esco-
lar como escola de vida tanto quanto o teatro? Tais questes
esto na base do meu trabalho tanto no Instituto de Estudos
Teatrais de Paris
I I
como na Escola do Teatro Nacional de
Estrasburgo e no Conservatrio de Paris. No meu magistrio,
elas ainda esto muito presentes. Como conformar-se em pro-
porcionar um ensino que pode ser visto apenas como ruptura
com o mercado e sua demanda? Como falar de disciplina de
vida e de longa caminhada a algum que espera de voc antes
de mais nada um emprego?
23
minao das
I iS l u s
de aprovados de fim de ano, a deliberao
afirmada, alto c Corte, de formar profissionais - cada escola
justificando, definitivamente, a sua excelncia pelo nmero de
candidatos que ingressam nas mesmas. Poderamos nos con-
tentar com semelhante situao; poderamos ver nisso o re-
sultado de meio sculo de descentralizao teatral em todo o
territrio; poderamos ligar isso tudo chegada de uma civi-
lizao do entretenimento, a um crescimento exponencial dos
espetculos e das mltiplas formas que pode assumir o entre-
tenimento cultural. Certamente, tais razes no so negligen-
civeis; preciso reconhecer isso. Porm, quem seria capaz
de afirmar, de boa f, quando se pensa que apenas uma ins-
tituio, o Jovem Teatro Nacional
(ITN),
garante, a partir dos
anos de 1970 e somente durante trs anos, custe o que custar,
um emprego unicamente aos alunos sados do conservatrio
de Paris e da Escola Nacional Superior de Estrasburgo, quem
poderia garantir que a cada ano existir lugar na Frana para
os cerca de milhares de novos atores profissionais? Ningum,
e muito menos os interessados. Aedio o nico setor que
responde a uma baixa da demanda quando ocorre o cresci-
mento da oferta assegura
[rme
Lindon, fundador das edi-
es Minuit. Mas ele esqueceu-se do ensino teatral.
Em consequncia, cada um se comporta, mais ou me-
nos, como avestruz e trabalha na elaborao e promoo de
seus programas, f ingindo ignorar o futuro. Depois de ns,
o dilvio:' Dois tipos de ensino afirmam -se cada vez menos
compatveis. O primeiro afirma submeter seus programas
demanda do mercado, tanto do audiovisual e da indstria de
entretenimento quanto do espetculo dito ao vivo. Neste l-
timo caso, a oferta massivamente consensual, conjuntural,
ecltica, submissa s flutuaes da economia e das curvas de
audincia. Ocupa amplamente o espao privado e ganha o es-
pao pblico.
outro ensino tem por princpio rejei tar qualquer pers-
pectiva de eficcia instantnea. Recusa-se a aderir ideologia
liberal do tudo vlido desde que tudo acabe por ser vendi-
do': um ensino que quer priorizar, em primeiro lugar, o va-
lor das obras, a nobreza dos modelos, as lies do passado, a
exigncia e a pesquisa artsticas. um ensino que I lri
1 Sitlo da In lCI'Ill'1 .'111/1 '1 li'1 /I/111I1 )/8: cww wstaracaderny .tfl.fr> N , da T.,
2 S rie pu llc lull'H 111111111111,II'v IHO OCI'III ICCS U, crlada em 1989 por Picrre Grim -
hlnl C '1 '110
I\lpll,l, )
1"'I II II IIt4I'1 l1 NnVI II'I'() 11m pollc tu l lncorr uptlvcl c l lllW .
U II1Il 111;111 '111111 111,1111111111 _11\11i111' IIIIN I'IIII O I'd l'111 t' I1IH IIO I'lt Illtll ' N, d l1 I:),
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
RIVIERE Compreendo o que o senhor est descrevendo. Po-
rm, artisticamente, h algum sinal do desaparecimento do
ensino?
LASSALLE No, o paradoxo que, em face da proliferao de-
sordenada de seus contedos e mtodos, jamais a necessidade
de uma pedagogia do ator foi to forte. Mas qual? No apenas
uma pedagogia tcnica, instrumental, tendo como primeiro
objetivo a formao de intrpretes, mas sim uma pedagogia
da curiosidade, da abertura aos saberes e s tradies, que se
destine igualmente, de forma plena, aos temas e s pessoas. O
teatro pode no ser o nico objetivo do ensino de teatro. Pode
preparar para muitas outras atividades da vida.
V dizer isso a um aluno que acabou de entrar numa Esco-
la Nacional Superior. Ele passou por trs rodadas de seleo,
foi examinado por uma banca de examinadores imponentes,
heterogneos, frequentemente insensveis. Foi escolhido entre
diversas centenas de outros candidatos. Como pode voc co-
locar em questo o seu futuro como ator? Marcel Bozonnet,
o precedente diretor do conservatrio, t inha uma frmula in-
teressante no que diz respeito aos novos ingressantes: Se vo-
cs chegaram at aqui, porque j so atores . Pode ou no ser
verdade. verdade porque, no aqui e agora do concurso, eles
eram os melhores, pareciam os mais aptos a beneficiar-se de
um ensino superior. Nesse aspecto, fala-se muito em injusti-
a, em incompetncia das bancas examinadoras. Invoca-se o
arbtrio dos concursos que frequentemente sacrificam os me-
lhores. Na realidade, sempre fico impressionado, em meio s
inumerveis bancas examinadoras das quais part icipei, pela
quase unanimidade no que tange aos melhores, de uma parte,
e com relao aos menos convincentes, de outra parte. Quan-
do acontece o debate, se ocorre alguma dvida, eles incidem
sobre os candidatos medianos, bem como, igualmente, so-
bre. os no classificados, mas o fato de ingressar no conser-
vatrio ou na Comdie Franaise no desautoriza um ator. E
a frmula de Bozonnet continua sendo ambgua, pois parece
comprometer-se com o futuro, mas o fato que somente rati-
fica a verdade de um momento. Ela acaba se reduzindo
pas-
sagem por uma grande escola, e, especialmente no caso
d
nse rv atrio de Paris ou de E stras burgo consti tul -se 1ll1JIl
SEGUNDA CONVERSA
chance real: frequentemente acompanhada por uma bolsa
de estudos, a promessa de encontros produtivos com alguns
mestres, com prticas multidisciplinares e sabiamente integra-
das, com convivncias determinantes para o futuro. Chega mes-
mo a se transformar numa transio quase garantida prtica
profissional, por intermdio indireto do Jovem Teatro Nacional.
No entanto, no garante absolutamente o esplendor e a pereni-
dade daquilo que chamamos de uma carreira.
Na verdade, uma escola, por mais prestigiosa, por mais
exigente que seja, jamais formou um ator, no mais que um
pintor ou msico. Mas, dia aps dia, ter permitido um apren-
dizado de si mesmo, dos outros e do mundo; ter fomentado
o gosto e a familiaridade com os textos, a humildade e o ri-
gor das verdadeiras disciplinas de trabalho. Essa bagagem vale
no apenas para o exerccio do teatro. Tambm ilumina o per-
curso de uma vida.
Curiosamente, os oramentos, frequentemente em baixa
no domnio da criao, da pesquisa e do funcionamento dos
teatros, tornam -se passveis de aumento quando se trata de
ajudar na formao, na deteco de redes de empregos . Jus-
tificam tambm os investimentos considerveis? No, quando
o caso de manter os hbitos ds beneficiados, de perspecti-
vas ilusrias, de um alinhamento mecanicista com as necessi-
dades do mercado e as tolices do show iz ou, pior ainda, com
a iluso de estimular os polticos securitrios pela multiplica-
o das atividades teatrais nas reas desfavorecidas e pobres.
Sim, trata-se de uma pedagogia de arte e vida, que reconcilia
o passado e o futuro, o singular e o mltiplo, o diferente e o
semelhante, o efmero e o durvel, a desgraa e tambm, no
obstante, a felicidade de estar no mundo. No nos perodos
de prudncia, transformaes, de inquietudes generalizadas
que o artista encontra menos possibilidades para se exprimir.
VIlm Recordo-me do incio desse movimento. forma atra-
vs da qual a escolaridade acaba pode contribuir para definir
() que o ensino pode significar para um ator. Ora, atualmente
h exames nem provas de concluso.
LL No conservatrio no h mais exames desde os anos
te 197 0 Mais eX1111ll11el1te,partir dos anos de 1980 pois Jacques
Ito sncr o nlrto dl n to r
trabalhou de tal forma que coexisti-
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
ram, isso durante dez anos, dois conservatrios no mesmo lo-
cal:um conservatrio dito moderno : sem concursos e abertos
s conquistas da representao, e outro feito maneira de an-
tigamente, que preservava, alm das provas de concluso, re-
servadas, salvo derrogao, somente aos terceiro-anistas , os
exames trimestrais de avaliao, a perenidade dos professores,
quase todos scios honorrios da Comdie Franaise, e a prio-
ridade das tradies declarnatrias. Rapidamente, como setor-
nou mais fcil entrar no antigo conservatrio do que no novo,
os alunos admitidos no primeiro geralmente aproveitavam a
transferncia sistemtica para o segundo.
RIVIERE Em todo caso, o exame era somente classificatrio.
No dizia se uma competncia tinha sido ou no adquirida.
Na universidade, formava-se ou no um doutor. Em um con-
servatrio, todos se tornam atores. Aprende-se alguma coisa
que simplesmente no verificvel.
LASSALLE
A questo mais interessante a ser colocada talvez seja
a das reformas ps-1968 no domnio da formao do ator e,
eventualmente, suas consequncias: romperam-se os mode-
los socioculturais ultrapassados e os pilares de uma sociedade
conservadora e injusta, ou comeava a surgir, o que sever que
vai acontecer, a prpria dif iculdade de avaliar, hierarquizar de
maneira absoluta qualquer forma de expresso artstica?
RIVIERE Tambm secoloca a questo do modelo atravs do qual a
escola funciona. At o momento, esse modelo funda-se numa
ideia que pode ser formulada desta maneira simplista: para
aprender teatro preciso fazer teatro. O aluno tenta, eviden-
temente, adquirir algumas tcnicas correlatas, como canto,
esgrima, valsa, e aproveita o mximo possvel a presena de
atores ou encenadores. Poder-se-ia imaginar outro modelo,
que no estaria ligado ao fazer , mas justamente necessi-
dade de retardar o fazer teatro . como na histria do mes-
tre zen, que faz seu aluno pianista trabalhar na mesma pgina
durante um tempo muito longo, e quando o aluno quer virar
a pgina, o mestre o impede. Quando, aps muitos anos, ele
lhe permite virar a pgina, ela est em branco. Retardar o fa-
zer seria, do mesmo modo, um verdadeiro aprendizado. H
algo convencional no tipo de funcionamento das escolas, pois
todas, segundo suas prprias modalidades, funcionam (.0111 o
SEGUNDA CONVERSA
mtodo formar-se no local de trabalho: com a ideia de que
for ando-se algum a exercitar uma coisa possvel torn-Ia
hbil . Algumas escolas poderiam ter outro tipo de formao,
cujo espr ito estaria l igado prtica da colocao em dvida,
que voc lembrou h pouco, e que tambm uma forma de
r etardar o fazer :
IASSALLE
Trata-se de retardar o fazer at o momento em que
se seria digno de enfrentar a pgina em branco ... Aos nossos
olhos de ocidentais, talvez isso seja exagerado. Por muito adiar
o prazo, acaba-se esquecendo dele. Ns o substitumos. Esta
poderia tambm ser a proposta do exerccio.
No isso que ameaa a maior parte de nossas escolas.
Elas estariam sendo, mais do que tudo, assediadas pela impa-
cincia dos resultados. Elas se gabam do nmero e da pres-
teza de compromissos de seus alunos. A lista de seus alunos
que se transformaram em estrelas, ou pelo menos conheci-
dos, a seus olhos o seu melhor carto de visi tas. Ela d-lhes
crdito para o seu caminho rumo ao emprego. No momento
da apresentao de seus alunos, elas buscam atrair a presen-
a de profissionais, de responsveis pela elaborao de c sting
Os agentes fazem a lei. Eles so tambm quase to numero-
sos quanto os atores aprendizes. No conservatrio, assim que
os exames de ingresso acontecem, cada aluno tem seu agente,
isso quando j no o tenha no momento de se apresentar. Nos
anos de 1960, alguns alunos do meu curso sonhavam priori-
tariamente em seduzi-Ias e convenc-Ios, Fiz um escndalo
opondo-me presena de agentes durante as apresentaes
dos exerccios. Agora isto no ser mais possvel.
A escola arranja empregos, mas a escola tambm mui-
to menos um espao de formao e preparao e muito mais
uma mquina de produzir espetculos. conhecida a frase
de Vitez: A escola o mais belo teatro do mundo . Essa fra-
se exprimia o belo sonho de associao escola-teatro-mundo
de um pedagogo. A escola permite muito, a partir de agora,
os excessos: a escolha sistemtica do fragmento em prejuzo
da totalidade, da hiptese ldica em prejuzo da composio
coerente e global, do esboo em prejuzo do quadro, da vida
como representao ininterrupta, indiferente s obrigaes
do
cotkllmu:
t S resistncias da histria. Porm, a frase de
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
Vitez induz, antes de mais nada, querendo ou no, ao fato de
que a escola o nico lugar onde sepoderia fazer o verdadeiro
teatro, que alis deveria ser o nico a ser feito, ou ento, dar-
-se-ia o caso de este ser to acadmico, to previsvel , que no
valeria mais a pena faz-lo.
RIVIBRE A escola como teatro do futuro .. .
LASSALLE Sim, do futuro, mas de um futuro sem futuro, pura
utopia, para fora da cidade e de qualquer compromisso exte-
rior que no fosse com ele mesmo, que conduziria s intermi-
nveis colagens de propostas cnicas : E aquela escola de que
falamos acaba favorecendo a emergncia de figuras igualmente
ambguas, tais como as do pedagogo mascarado de profeta, de
guru. Inicio meus alunos na minha prpria religio. Impeo
meus alunos de fazerem outras prticas que no aquelas que pre-
conizo e torno-os por toda a vida meus discpulos. Probo-os
de trabalhar com outros, de enriquecer-se com outras prticas
e outras perspectivas: O teatro, meu Deus, no est jamais a
salvo das seitas e totalitarismos.
RIvIImE
Uma escola que privilegiasse o fazer teatro teria seu
fim nela mesma?
LASSALLE Poder-se-ia dizer tambm que durante certo tempo
o aluno no teria outro acesso ao teatro a no ser aquele pro-
posto pela escola, sendo que em seguida ele poderia, ator ou
no, encontrar seu lugar na cidade. Vasil iev, em sua escola de
Moscou, pratica uma escolaridade de sete anos. Os alunos so
iniciados nas artes marciais, nos cantos gregorianos ortodo-
xos. S selhes permite um acesso homeoptico a alguns frag-
mentos de textos, frequentemente religiosos. Os alunos no
fazem nada alm disso. A escola torna-se sua prpria finalida-
de, uma espcie de monastrio, um teatro ideal, um retiro so-
litrio. No entanto, para onde se vai, o que nos tornamos aps
t-Ia deixado?
RIVIERE o ultrapassado. H alguma coisa dessa natureza em
Copeau. A escola torna-se uma resposta s imperfeies do
teatro real.
LASSALLE A escola frequentemente agarra-se infncia, deseja-
ria preserv-Ia para sempre. Afasta a chegada das responsabi-
lidades, da idade adulta, ou ento a anuncia na form a exalt ada
um pOLlCO ridcula de Trof irnov, o velh o estuda nte mlllH que
SEGUNDA CONVERSA
trintenrio de O
Jardim das Cerejeiras
de Tchkhov. uma
postura defensvel? Acontece-me de dirigir estgios, aquilo
que se denomina atualmente master classes na Frana e no
estrangeiro. Tenho necessidade disso como de um soro da ju-
ventude como uma ocasio privilegiada para uma reciclagem,
para um retorno s origens. Mas esta no seria uma justifica-
t iva suficiente. No teatro, mais que em todas as outras formas
de expresso artst ica, o outro a condio da prpria busca,
o parceiro da sua prpria realizao. melhor no abusar dis-
so O que recebi, o que recebo, tenho que restituir. A partir
da, com a idade, ocorre um sentimento crescente de ter que
transmitir, ter que reciclar . No obstante, depois de apenas al-
guns dias de trocas, o que teremos part ilhado? A abordagem
comum de uma obra, de sonhos, inquietudes, surpresas, tal-
vez at as revelaes do papel a representar ou do pensamen-
to.
muito para um pedagogo. Porm, quanto ao aluno, onde,
quando, junto a quem ele poder fazer uso disso?
Seria excesso de escrpulos? Desencantamento? Aposta-
mos preferencialmente no otimismo. Hoje em dia, o jovem
ator tem um leque de possibilidades, de experincias, de apli-
caes muito mais importantes do que aquelas existentes
quando comecei no teatro. H tantas escolas, tantas propostas,
na Frana, no estrangeiro, que seria o cmulo se no chegs-
semos, de tentativa em tentativa, a produzir uma identidade,
um saber, um domnio de curiosidades e de atitudes particu-
lares. preciso, ainda, avanar com os olhos abertos, no se
deixando ficar ao sabor do mercado, dos messias, dos Pigma-
lees de toda ordem. O ator depende do querer dos outros,
mas s sobrevive pelas prprias escolhas.
{VIBRE Sim, isso ainda outra modalidade de retardar o fa-
zer: Algumas vezes o senhor tem tido um sentimento de inu-
tilidade do ensinamento? O senhor j pensou que um aluno
poderia estar empregado imediatamente, que no precisaria
passar pela escola?
Ii\SSALLE Quando acontece de um aluno ter sido admitido por
equvoco, quando sua margem de progresso revela-se infini-
tamente
mais limitada do
que aquela que as bancas exami-
nad oras
tinham
IlIHI,ulo,
Oll ainda quando sua expectativa
nau corr cs pondr
1 1 11 11 1 d sc J) 1p cnh o; a L I quando, enfim, ele
29
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
abandona ou falta escola na primeira ocasio, em troca de
uma srie televisiva ou de uma aventura incerta no teatro, nes-
ses casos pode-se experimentar um sentimento de inutil ida-
de, com a dvida e a tristeza que a acompanham. Mas isso
no dura muito, pois tudo isso remedivel. Tambm na es-
cola, mesmo que a partir de agora no sejam os professores a
escolher os alunos, e mesmo que, de preferncia, ocorra o in-
verso, a relao pedaggica s funciona verdadeiramente no
momento em que evolui na direo de uma aceitao recpro-
ca ou, ao contrrio, com o estabelecimento de uma atrao
confli tuosa, mas que finalmente se revele fortif icada e produ-
tiva. Por outro lado, a mudana de classe, ou mesmo uma as-
sumida sada da escola, so alternativas possveis.
No entanto, diante de um aluno realmente talentoso, real-
mente motivado e efetivamente pronto a representar, no se
experimenta nunca o sentimento de inuti lidade. Pelo contr-
r io. Desde o terceiro ano, frequentemente at no segundo ano,
esse aluno pode perfeitamente representar durante a noite,
junto com voc ou em outro grupo, e continuar sendo um
elemento motor da classe durante toda a escolaridade. Isso
da responsabilidade dele, e se ele consegue alcanar a discipli-
na, esse fato consti tui uma prova suplementar de sua qualida-
de. A relao pedaggica pode continuar naturalmente, sem
interrupo no ato pblico da representao, e enriquecer-se
igualmente.
Na verdade, nada, nem mesmo o desaparecimento do mes-
tre, pode acabar com uma verdadeira relao pedaggica. O
trmino da escola no deveria significar o seu trmino. Por essa
razo, no preciso que seexagere na melancolia das despedi-,
das. Um mestre e seu aluno jamais se afastam verdadeiramen-
te, mesmo se as disperses da vida no mais lhes permitirem
reencontrar-se. Aquilo que foi semeado, germinar.
Existem pedagogias que reivindicam exclusivamente os
seus resultados favorveis, ainda que estes estejam em con-
tradio com o ensino recebido:
aqui, comigo, que tal ou
tais comearam': ouve-se proclamar aqui e ali . De minha par-
te, sinto-me depositrio tanto de meus malogros, como de
meus sucessos. No estou menos orgulhoso em relao aos
meus alun os qu e
perm anec eram
an ni mos do que em
rc lnco
SEGUNDA CONVERSA 31
queles que, como se diz, f izeram carreira. Isto no significa
que um pedagogo-encenador no deva estimular seus alu-
nos - sem nenhum espri to de exclusividade, alis - , cada vez
que o possa. Mas no momento em que no o puder, no deve
culpar-se exageradamente. Em primeiro lugar, por aquilo
tudo que revelou aos seus alunos do teatro, da vida e deles
mesmos, que ele deve ser julgado. No se deve inverter a prio-
ridade.
RIVIERE O mercado no um teste Contudo, para retomar
questo da finalidade do ensino, isso que o senhor sugere
que o ensino no pode ter uma limitao, uma vez que no co-
rao desse aprendizado encontra-se a capacidade de se colo-
car o teatro em dvida. No se acaba nunca com essa dvida,
e portanto com o aprendizado. Isto desconcertou os alunos
do conservatrio quando Fomenko anunciou-lhes que poucos
dentre eles haveriam de se tornar atores. Eles pensavam que
o simples fato de conseguirem passar no concurso j era uma
garantia disso.
L SS LLE Piotr Fomenko, bem sua maneira russa, distin-
to, spero, mostrou-se muito consequente. Ele partiu de sua
prpria experincia, invertendo-a. Foi somente quando ele
sentiu, em sua aula no Gitis (Academia Russa de Artes) em
Moscou, que estava diante de uma turma com aprovao ex-
cepcional, que decidiu, no final dos anos de 1970, trabalhar
como encenador apenas com os alunos dessa turma. conven-
ceu o Estado a
equip- o
com uma pequena sala. A escola con-
tinuou fora de suas instalaes, fora da escolaridade, s que a
partir de ento perante o pblico.
ItIVIERE
Ela tornou-se teatro .. . A crislida e a borboleta ...
I SS LLE Numa tradio e num contexto poltico muito par-
ticulares, Fomenko guiou o seu trabalho como pedagogo-
-encenador ao seu termo. Mesmo muito ligado aos meus alu-
nos, ainda no' realizei o mesmo sonho. Acredito muito na
mistura de geraes e de percursos, na unidade artstica como
conquista ltima e jamais adquirida, de preferncia a dados
prvios. Mas minha relao com a histria e com o poder po-
lit ico
to pouco alinhada quanto possa ter sido, no deixou
os mesmos rastros, no engendrou as mesmas prticas de so-
br cvi vnc i
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
Para vol tar frmula de Vitez, a escola no , desde ento,
completamente um teatro. Ela no se volta para o futuro. Se
puder escolher abrir suas portas para mostrar alguns de seus
exerccios, que no o seja , nesse caso, muito tarde na escola-
ridade de seus alunos, bem como no sentido de que seus p-
blicos sejam realmente reativos e parceiros, isto , nem muito
especializados agentes, jornalistas, empregadores potenciais),
nem muito incondicionais parentes, amigos, simpatizantes,
aposentados etc.).
nrvrana O senhor selembra da distino estabelecida por Gro-
tvski no seu discurso inaugural no College de France. Ele
lembrou a maneira de se designar o teatro nos pases anglo-
-saxes, que
performing arts
e na Frana, que artes do es-
petculo. De um lado, o teatro avaliado em funo daqui-
lo que feito, de outro, -o em funo daquilo que visto.
Grotvski colocava-se ao lado das
performing arts
e, no nosso
caso, tenho tendncia naturalmente para o lado das artes do
espetculo. Pergunto-me, portanto, se no se pode conside-
rar a escola como o momento das
performing arts
O trmino
da escola corresponderia, assim, passagem para as artes do
espetculo . Is to implicar ia uma gesto muito controlada da
presena do pblico. Com trinta espectadores est-se nas
per-
forming arts
O pblico tolerado como testemunha somente
pelo fato de se tratar de teatro.
L SS LLE Tambm como amplificador, como caixa de resso-
nncia .. . A questo de uma pedagogia afastada do circuito
usual de produo um sonho que deveria habitar qualquer
escola, e no apenas as escolas de teatro. A questo dialti-
ca: como real izar esse sonho e, ao mesmo tempo, preservar a
necessidade de um teatro inscrito no corao da histria,
no
corao da cidade? A escola exige uma ret irada, uma recusa
provisria do mundo ao redor, caso tambm queira ser uma
propedutica da realidade tanto quanto o teatro. Hoje em dia
pode-se dizer, com o sorriso das belas serenidades conquis-
tadas, que o equvoco das escolas
generalizado e que ele
agravado por objetivos eleitoreiros, mercantis e miditicos. Os
infelizes alunos atores ficam fascinados por ofertas de propos-
tas e promessas. No conseguem mais fazer a ligao entre os
disc ur sos que lh es so di tos as pr ti cas que Ih es so prop ostas
SI,CUNJA CONVEISA
e o mundo no qual se situam. Toda pedagogia necessita, con-
tudo, de equilbrio nas respiraes, uma ateno para o tempo
com que a faz, ao tempo que dura e no somente ao tempo em
que se d. Toda vez que eu podia, em Vitry, em Estrasburgo,
no Conservatrio de Paris, eu levava meus alunos para lon-
ge da cidade, para o interior, na esperana de encontrar no-
vas Thleme, longe das rotinas de resul tado Ren Char) .
A escola no tem por objetivo fazer com que se ganhe a vida.
Ela no uma agncia de empregos. Atualmente , quando pa-
recem s contar as curvas de crescimento e os diagramas de
audincia, mais urgente do que nunca manter os alunos fora
por um breve perodo. Tudo exprime a arrogncia e a impa-
cincia do mercado. uma razo a mais para que a escola
assuma o seu tempo e mande aos especuladores de todos os
gneros um gesto obsceno de desprezo, como o fez h algum
tempo Maurice Piala t em Cannes, no momento em que os fes-
tivaleiros, no incio, pareciam saudar unanimemente o o ol
de Sat
que tinha acabado de ser adaptado de Bernanos.
Rcfcrnca li Abadia de Thlme em Franois Rabelais,
Gargantua e Panta-
, . ,/ ( / , lllv,ro, captulo lLII N. da T.).
33
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Terceira Conversa
de junho de 2 3
LUGAR DO SABER ENSINAMENTO DIRETO E INDIRETO
O ATOR RACIONAL E O ATOR INSTINTIVO
A DESCONTINUIDADE DO PROGRESSO ESCOLA
TEATRO
O SUJEITO FRAGMENTADO DO ATOR CAMINHOS
DE TRAVESSIA UMA ESCOLA QUE SE AFASTA DA NORMA
O OLHAR DO OUTRO
JEAN-LOUP RIVIERE
Falamos muito da dvida, do todavia.
Poderamos falar agora do complemento, do acrscimo ...
daquilo que se acumula, que se capitaliza. Um aluno que sai
da escola de teatro est mais rico d o que quando ingressou
nela? Mais rico do qu? Geralmente, ensinar , em grande
parte, transmitir um saber. E um aluno que sai de uma esco-
la tem mais saber ou mais habilidade do que quando entrou.
Mas seria este o caso de um aluno-ator? Um ator que sai de
uma escola atua melhor do que quando entrou, porm se trata
de um aperfeioamento, no de uma aquisio : Pergunto-me
qual e qual deveria ser a parte do saber no ensino da arte do
ator. Parece-me que ela importante, pois em todas as esco-
las de teatro h departamentos de histria, dramaturgia etc.
Formar-se-iam, pelo menos, bons atores caso no houvessem ,
cursos centrados na, ou justificados pela, transmisso de-um
saber positivo, na aquisio de conhecimentos? No Conser-
vatrio Nacional de Paris h uma distino entre os cursos
de interpretao e os chamados cursos tcnicos, que vo da
dana, da expresso ou da dico histria e dramaturgia.
Essa distino aparece algumas vezes como separao entre
uma atividade nobre e essencial , o aprendizado da atuao em
-
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CONVERSAS SOBRE A FORMAO DO ATOR
cena, e complementos triviais, secundrios, e nesse caso, para
ser mais preciso, facultat ivos, mesmo que, felizmente, no o
sejam. E d-se o caso de os professores dos cursos ditos tc-
nicos acharem que fazem a interpretao': Eles tm e no
tm razo. No tm razo, porque a parte mais importante do
trabalho a atuao em cena, e tambm tm razo porque a
tcnica e os conhecimentos so as circunstncias de uma in-
terpretao' e logo da interpretao em si mesma.
A part ir de sua experincia como professor de interpreta-
o, o senhor poderia dizer que o ensino acrescenta alguma
coisa? Falemos tambm do ensino indireto': H conhecimen-
tos ou exerccios que podem no ter nenhuma relao aparen-
te com aquilo que se pretende e que tm um efeito secundrio,
indireto. Quando um pedagogo aborda um tema que aparen-
temente no tem qualquer relao com a cena trabalhada pelo
aluno, ou manda executar um exerccio que parece fora de
propsito, esse aparente desvio permite, na realidade, um tra-
balho indireto. Minha pergunta, nesse caso, dupla: o senhor
tem a sensao de que um conhecimento esteja sendo trans-
mitido num dado momento da relao pedaggica com um
ator? E o senhor acha que o conhecimento indireto possa ter
uma funo? Dou-lhe algo que lhe servir sem que voc o
saiba, ou do qual voc s reapropriar ...
JACQUES LASSALLE Creio que sempre ocorre a transmisso de
saber, mas que raramente ela direta. Quando nos relaciona-
mos com osatores, preciso que a transmisso de saber se faa
indiretamente, entre parnteses e como que inadvertidamente.
A partir do instante em que se determina o momento do saber
CAgora, eu vou iniciar vocs), a partir do momento em que
se est lidando com o saber constitudo, formulado, em de-
corrncia disso o aluno cochila, ou algumas vezes se rebela
numa ostentao de desinteresse. Os atores supem que todo
saber j est formatado, pr-digerido, pr-estabelecdo. Acon-
tece a mesma coisa com relao ao texto. Seja o caso de essa
relao ser brusca, desenvolta: Isto quer dizer mais ou menos
isso, vamos interpretar mais ou menos isto': Nesse caso o alu-
no impacienta-se. Seja quando o texto se mostra, num pri-
meiro momento, filolgico, gramatical, analtico.
O aluno
se aborr ec e Mais ta rde no entanto quando o tex to
rOI' (IXIIIIII
TERCEIRA CONVERSA 37
nado, primeiramente de maneira rpida, o aluno ter a ten-
dncia a torn-lo um fetiche. Ele far do texto a totalidade do
teatro, sombriamente dobrado em si mesmo na forma de uma
literatura suspeita, sem meandros nem sinuosidades.
A leitura da cena, com todos sentados ao redor da mesa, j
configura uma interpretao em potencial. J o corpo dispo-
nvel, espera. Assim que o jovem ator percebe a proximidade
do palco, a questo do saber s ser admitida se for dissimu-
lada. No acho que os atores que se assumem como seres pu-
ramente inst int ivos, que no se levam em considerao, que
pretendem apenas ser operacionais no seu trabalho cnico, te-
nham o desejo de aprender qualquer coisa que seja na medi-
da em que isso implique uma relao fsica, concreta com a
atuao. Isto diz respeito at aos alunos instrudos e abertos,
fora do palco, com relao reflexo e curiosidade intelec-
tual. Quando voc convida um especialista renomado para fa-
lar em classe sobre tal ou tais autores, de tal ou tais momentos
histricos, frequentemente um fracasso. Ao contrrio, es-
ses mesmos alunos podem ficar imensamente fascinados por
qualquer um que venha ensinar-lhes a mscara neutra ou o
salto em rotao completa sobre o corpo. A transmisso do sa-
ber, afora o tcnico ou o corporal, fa