coordenação: profa. dra. ana magnólia mendes
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Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho - PST
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CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO
EM PSICODINÂMICA DO TRABALHO
Turma II
(2009/2010)
Coordenação: Profa. Dra. Ana Magnólia Mendes
TRABALHO FINAL DE CURSO
Apresentado por: Angelita de Carvalho Lindoso Marques
Orientado por: Lêda Gonçalves de Freitas
Assinatura de aprovação da Profa. Orientadora:
BRASÍLIA, 2010
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VIVÊNCIA DE PRAZER E SOFRIMENTO DOS OFICIAIS DE
JUSTIÇA NUMA INSTITUIÇÃO PÚBLICA DO DISTRITO
FEDERAL
Apresentado por: Angelita de Carvalho Lindoso Marques
Orientado por: Lêda Gonçalves de Freitas
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Resumo
Este artigo consta de uma pesquisa, de caráter exploratório, com o objetivo de descrever
e interpretar o contexto de trabalho dos Oficiais de Justiça de uma instituição pública do
Distrito Federal, suas vivências de prazer e sofrimento e estratégias de mediação, à luz
da psicodinâmica do trabalho. Para tanto, participaram de quatro sessões coletivas 19
trabalhadores desta categoria. Pôde-se constatar que, apesar de exercerem um trabalho
bem remunerado, objeto de desejo de quem pretende entrar para o serviço público, os
Oficiais de Justiça demonstram sofrimento por não terem autonomia para usarem sua
criatividade nas situações que fogem ao prescrito no dia a dia do seu trabalho, por se
sentirem pressionados, sobrecarregados, expostos ao perigo no exercício do seu trabalho
e por não serem reconhecidos como trabalhadores que se superam cada dia. Sentem que
muitas vezes são forçados pelas circunstâncias a agirem injustamente contra pessoas
necessitadas e frágeis, quando na verdade crêem que deveriam estar a serviço da justiça
sem distinção alguma. Porém, ao levarem as más notícias procuram orientar legalmente
as pessoas porventura prejudicadas por estas más notícias sobre como anular os seus
efeitos. Naturalmente sentem prazer em serem bem remunerados, mas também querem
se realizar por se sentirem úteis e justos com as pessoas com quem trabalham e ter o
reconhecimento pelo trabalho que realizam. As estratégias utilizadas para lidar com as
dificuldades do contexto de trabalho são acentuadamente individuais, demonstrando,
porém, certa dose de virilidade quando tentam passar uma imagem de quem já não teme
as situações inseguras e que são capazes sim, de conseguirem dar conta da sobrecarga
de trabalho e não adoecerem ante a ameaça de serem mudados de função ou
aposentados por incapacidade produtiva, com grande perda financeira. Outros estudos
devem ser realizados a fim de ampliar o conhecimento sobre a categoria e os resultados
encontrados.
Palavras-chave: Oficiais de Justiça. Prazer. Sofrimento. Saúde. Estratégias de
mediação. Psicodinâmica do trabalho.
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INTRODUÇÃO
O sofrimento é característica inerente ao trabalho. Hannah Arendt, citado por
Dejours (2008), afirma que não existe organização do trabalho sem sofrimento, mas
organizações do trabalho mais favoráveis à negociação da superação desse sofrimento.
Mendes (2007) reconhece o sofrimento como parte da condição humana e como tal é
mobilizador de investimentos no sentido de transformar a realidade. As razões para este
sofrimento são muitas. Uma delas está na compreensão que Dejours (2008) nos traz de
que o trabalho representa um confronto com o real que resiste ao conhecimento de si, do
saber fazer e é justamente deste confronto que nasce o sofrimento. Nem sempre um
modo de operar assimilado e elaborado funciona adequadamente. O trabalho traz
sempre surpresas, inesperados, incidentes, anomalias, que põem em cheque as previsões
e predições. Trabalhar, diz Dejours, é fazer a experiência do real, que implica uma
experiência afetiva penosa que é a experiência do fracasso. (in Mendes, Lima & Facas
(orgs. 2007).
Outra razão está nos relacionamentos que são estabelecidos no ambiente de
trabalho, por que trabalhar é conviver com o outro e este convívio é pleno de tensões.
No entanto, apesar de a organização do trabalho ser fonte de sofrimento e
prazer ao trabalhador, há mais estudos sobre as diferentes formas de organização, de
gestão de pessoas, de como mobilizar todos os recursos do trabalhador para alcançar a
excelência na produção de bens de consumo ou serviços do que sobre o prazer e o
sofrimento do trabalhador. Os Oficiais de Justiça estão entre as categorias que
enfrentam mais dificuldades para a realização do seu trabalho no âmbito de uma
instituição judiciária no Distrito Federal. Os problemas vão desde questões relacionadas
com a sobrecarga de trabalho, a dificuldades de comunicação, distanciamento entre
quem toma as decisões e quem as executa devido ao forte traço hierárquico que
caracteriza a organização do trabalho, a insegurança, a solidão, o sentimento de
desvalorização destes profissionais aliados à falta de reconhecimento pelo trabalho
realizado. Tudo isso contribui para os processos de adoecimentos, com casos de
depressão, pânico, insônia, gastrite, que resulta em freqüentes licenças para tratamento
de saúde.
Desejando contribuir para a ressignificação do sofrimento deste grupo,
decidimos desenvolver este projeto de pesquisa, atendendo a uma demanda antiga do
mesmo, que deseja encontrar alternativas ao adoecimento que vem afetando suas vidas.
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Esperando, ao analisar as dinâmicas que resultam em prazer e sofrimento neste grupo,
contribuir para a criação do espaço de fala, escuta e reflexão crítica sobre a situação de
trabalho a que estão submetidos; conhecer melhor a organização do trabalho onde está
inserida esta categoria profissional, bem como as estratégias de mediação do sofrimento
desenvolvidas de forma coletiva ou individual.
A primeira parte do trabalho será dedicada a uma breve revisão dos conceitos
da psicodinâmica do trabalho que darão sustentação teórica a esta pesquisa. Em seguida
será abordada a metodologia que guiará o estudo, continuando com a apresentação da
organização do trabalho dos Oficiais de Justiça, vivências de prazer e sofrimento e
estratégias defensivas coletivas e individuais a partir da fala destes profissionais nas
sessões coletivas. Finalmente analisaremos os resultados à luz dos conceitos da
Psicodinâmica do Trabalho.
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REFERENCIAL TEÓRICO
A relação entre prazer e sofrimento no trabalho
Nos estudos realizados por Dejours, na França e também por pesquisadores na
área da psicodinâmica do trabalho há cerca de duas décadas no Brasil, a conclusão a que
se tem chegado quanto ao sofrimento é de que ele é inerente ao trabalho. Dejours,
citado por Mendes (2007, p. 31), diz que “o trabalho não causa o sofrimento, é o próprio
sofrimento que produz o trabalho”. O sofrimento não é patológico, mas um sintoma da
dor e pode resultar dele a mobilização que se articula à emancipação e a reapropriação
de si, do coletivo e da condição de poder do trabalhador. Ele surge da experiência de
fracasso diante do real. Para Dejours, in Lancman & Szenelwar (2008, p. 352), “o
trabalho implica sempre um confronto com o real, real que se deixa conhecer por sua
resistência a se submeter aos conhecimentos e às diferentes formas de saber fazer.”
Mendes (2007), em estudos realizados sobre obras do mesmo autor ressalta o
sofrimento ético, que consiste no trabalhador fazer aquilo com o qual não concorda para
se manter no emprego ou não perder vantagens, decorrente da flexibilização do capital
com a conseqüente desestruturação das formas de trabalho e precarização dos empregos,
gerando medo, insegurança, angústia, individualismo e isolamento. Estes ingredientes
contribuem para a cultura do silêncio, a acomodação. Nesta mesma trilha acontecem a
banalização das injustiças e do mal, que envolvem a dimensão do outro, também
geradora de sofrimento. Ninguém trabalha sozinho. As relações intersubjetivas,
conquanto essenciais para a constituição do sujeito, são fonte de tensão e muito
sofrimento.
A psicodinâmica do trabalho vem fazer um contraponto a essa realidade na
medida em que volta o seu olhar para o mundo do trabalho, envolvendo não apenas a
organização do trabalho, (Mendes, 2007), mas também para o trabalhador como ser que
sofre e se realiza pelo trabalho e suas relações intersubjetivas. Porque o mundo do
trabalho é um espaço de convívio, marcado por contradições. Assim, se de um lado a
organização privilegia o esforço produtivo em qualidade e quantidade, do outro lado a
psicodinâmica do trabalho vê a possibilidade de unir estes aspectos à realização pessoal
do trabalhador pelo seu fazer profissional, pela mobilização da inteligência prática, pois
é justamente aí que, de acordo com Dejours in Lancman & Szenelwar 2008, que a saúde
e o prazer podem ser conquistados. Embora essa conquista tenha um caráter provisório
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porque ela resulta de uma busca permanente, porém é ela que dá sentido ao trabalho. E
esse sentido é essencial para quem trabalha pela realização que ele propicia ao
trabalhador. Esta é uma questão que diz respeito à história de vida pessoal, mas
também está relacionada ao olhar e reconhecimento do outro e da organização. O
trabalho é central na vida, na formação da identidade do trabalhador, perpassando todos
os espaços de sua existência e da sociedade, abrangendo a questão social, econômica,
política e da saúde. Dejours, in Mendes, Lima & Facas, 2007, fala de duas formas de
realização do eu e construção da identidade, que são: a realização pelo amor erótico,
portanto no campo íntimo e a realização pelo trabalho, no campo social. Como nem
todos se realizam pelo amor, resta ainda a possibilidade de se realizarem e construírem
sua identidade pelo trabalho e conquistarem saúde e alegria através dele. Vem daí a
grande relevância do trabalho para a vida e para a saúde de todo trabalhador.
A organização do trabalho
A organização do trabalho é a instância responsável pela definição, divisão e
distribuição das tarefas entre os trabalhadores. Cabem a ela também a concepção das
prescrições e o exercício do controle, da ordem, da direção e da hierarquia. As recentes
transformações na organização do trabalho, entre elas a avaliação e a qualidade total,
segundo Dejours (in Mendes, Lima & Facas, 2007, p. 22), são responsáveis pelo
agravamento da psicopatologia do trabalho. Ele é enfático ao afirmar que:
“a avaliação quantitativa e objetiva do trabalho é de fato, apenas pretexto para
o arbitrário, porque é fácil demonstrar que o essencial do trabalho não é
passível de avaliação objetiva e quantitativa. (...) Resulta daí um sentimento
confuso de injustiça que tem também sua participação no surgimento das
descompensações, principalmente na forma de síndromes depressivas e de
síndromes de perseguição”.
Avaliações são formas de pressão que podem vir associados a sistemas
perversos de gratificações, ameaças de desemprego ou de perdas de vantagens, o que a
torna ainda mais nefasta para a saúde do trabalhador. Além de contribuir para a
sobrecarga de trabalho, seus efeitos para os relacionamentos entre os trabalhadores são
devastadores, pois acirra a competição e individualismo, gerando desconfiança,
ocasionando condutas desleais entre companheiros de trabalho. Tudo isto cria um clima
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desfavorável a solidariedade e cooperação, resultando no isolamento, que abre caminho
para as patologias da solidão.
A qualidade total é tão prejudicial às relações intersubjetivas no mundo do
trabalho e consequentemente à saúde do trabalhador quanto a avaliação. Com base nas
abordagens psicológica, ergonômica e sociológica, Dejours (Mendes, Lima & Facas)
afirma que a qualidade total é impossível. Pelo contrário, entre o prescrito e o real
existe uma distância irredutível. No entanto a qualidade total continua sendo imposta
como obrigação e não como objetivo ao trabalhador. Este fato obriga os trabalhadores a
fraudar os controles e auditorias para demonstrar um desempenho satisfatório que
garanta a conquista da certificação ISSO 9000 ou 13000. Dejours descreve, nesta
mesma obra (p. 23), a situação dos trabalhadores que são forçados a mentir e participar
de práticas que moralmente reprovam:
“(...) vivem em permanente conflito com sua ética profissional e pessoal.
Resulta daí um sofrimento psíquico que se define nas síndromes de
desorientação, de confusão, de perda da confiança em si e de perda da
confiança nos outros, nas crises de identidade e nas depressões que podem
levar ao suicídio”.
Entusiasmo e Motivação
Trabalhando num contexto em que predominam as pressões, a busca de
resultados a qualquer preço, a competição, o isolamento, a falta de confiança, e a
desvalorização da ética, é natural que se perca, aos poucos, o entusiasmo, o que é
lamentável, pois é justamente o entusiasmo que motiva a cooperação e faz com que um
coletivo de trabalho se mantenha unido. O entusiasmo é definido por Dejours (op. Cit.
pag. 23), “como suplemento da alma que engrandece o sentido do trabalho, conferindo-
lhe um valor de ordem simbólica, que aumenta a tolerância ao sofrimento e outorga um
prazer específico que não se compara a nenhum outro.” O entusiasmo corresponde ao
que Freud definia como trabalho de cultura. Na tradição religiosa é ele que confere esse
suplemento de alma herdado do seu encantamento por Deus.
Entusiasmo e cooperação se alimentam e se reforçam; da mesma maneira o
reconhecimento desperta e sustenta o entusiasmo. O reconhecimento é estruturante da
identidade do trabalhador na medida em que reflete o olhar de aprovação do outro sobre
o seu fazer. Esse outro tanto pode ser o companheiro de trabalho, relação horizontal,
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quanto pode ser o superior hierárquico, o que caracteriza uma relação vertical. O
reconhecimento pode ser expresso em forma de retribuição material ou simbólica do
trabalho, como também abrange vários tipos de julgamento: julgamento de utilidade,
que tem a ver com o aspecto econômico, social ou técnica; julgamento de beleza,
referindo-se à sua conformação às regras do trabalho, à qualidade artística, à
originalidade ou estilo. O julgamento de utilidade envolve a linha hierárquica, porém o
julgamento de beleza só pode ser formulado pelos colegas de trabalho, portanto, seus
pares. Tanto a retribuição simbólica quanto o julgamento de beleza são considerados
por Dejours mais significativos para a estruturação da identidade dos trabalhadores.
Estratégias de Defesa
Diante do sofrimento o indivíduo pode ter duas saídas. Uma delas é a
mobilização da inteligência criativa dando um significado ao seu fazer e conquistando
prazer e saúde, embora não definitivamente, porque, na compreensão Dejouriana
(2008), prazer e saúde estão sempre por ser conquistados. São ganhos com relação ao
sofrimento. A segunda é a construção de defesas para tornar o sofrimento suportável.
Sobre as defesas, Dejours in Lancman & Szenelwar (2008), esclarece que elas
abrandam o sofrimento, mas não oferecem condição de superação. Elas se diversificam
em função das diferentes situações de trabalho e revelam astúcia, engenhosidade e
inventividade do trabalhador (Mendes, 2007). Isto deixa claro que não há passividade
por parte do trabalhador, uma vez que até as defesas são formas de reagir. Além disso,
quando ele apela para as defesas é porque falharam as tentativas de mediação do
sofrimento. As defesas são coletivas quando produzidas e sustentadas pelo grupo, mas
podem ser também individuais.
Mendes (2007) destaca três grupos de defesas que englobam várias outras da
mesma categoria. São elas: defesa de proteção, de adaptação e exploração. As defesas
de proteção decorrem da precarização do trabalho e se manifestam como formas de
pensar e agir compensatórios. O trabalhador evita o adoecimento alienando-se das
causas do sofrimento, porém a organização do trabalho se mantém inalterada. As
defesas de adaptação e exploração se fundam na negação do sofrimento e na submissão
ao desejo da produção. A organização age sobre o pensar, o sentir e o agir do
trabalhador, sutilmente, de forma a conseguir excelência na produção ao preço do
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sofrimento do trabalhador. Assim, o trabalhador é explorado nas suas defesas, à medida
que elas são postas a serviço da produção.
Vários são os desdobramentos destas defesas. Entre elas, pode-se mencionar:
cinismo, virilidade, dissimulação, hiperatividade, desesperança de ser reconhecido,
desprezo e danos aos subordinados.
A conclusão a que chega Mendes é que tanto o sofrimento quanto as defesas se
prestam a preservar a saúde do trabalhador. No entanto as defesas podem levar à
alienação se transformadas em ideologias defensivas e se excessivamente utilizadas, em
patologias sociais.
Marcadamente coletiva, a ideologia defensiva é usada para ocultar uma grave
ansiedade em determinado grupo. Ela consegue a adesão de todo grupo, excluindo os
dissidentes o que inviabiliza os mecanismos de defesa individuais na medida em que os
substitui.
O reconhecimento, a cooperação entre os colegas, o espaço de fala e escuta
sobre as experiências de trabalho, a mobilização da inteligência criativa são mediações
essenciais para o desencadeamento do processo de reapropriação, graças aos quais as
pressões do trabalho não são simplesmente suportadas passivamente, mas passam a ser
objeto de uma estratégia pela qual o trabalho se transforma em fonte de realização e
prazer. Este é um processo de subversão de riscos do trabalho, que, segundo Dejours
(1999) envolve a dinâmica coletiva e é construtor de saúde.
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METODOLOGIA
Este estudo é respaldado pelo referencial teórico da psicodinâmica do trabalho.
A coleta de dados foi processada através de quatro sessões coletivas realizadas com 19
Oficiais de Justiça de um órgão público do Distrito Federal. Para ressignificar as
experiências de sofrimento em prazer e saúde são necessárias intervenções no sentido
oposto às defesas, que tenham como requisitos cooperação entre os trabalhadores,
solidariedade, confiança e um espaço público de fala e equidade no julgamento do
outro, conforme Mendes (2007).
Para a psicodinâmica do trabalho a escuta é o principal instrumento de trabalho
para desvendar o que traz o trabalhador. Não existe diagnóstico por antecipação. É pela
escuta que os significados são expressos com toda sua subjetividade e intersubjetividade
e que se torna possível a apreensão da prática do trabalho, como se dá a mobilização da
inteligência, a construção das defesas. Não havendo espaço para a escuta o resultado da
pesquisa é posto em dúvida, fato que compromete também o seu resultado final.
Naturalmente, é necessário que se crie também um vínculo de confiança porque tanto a
fala como a escuta envolvem riscos. (Dejours 2008).
Etapas da pesquisa:
Demanda – o Coordenador dos Oficiais de Justiça de uma cidade satélite
procurou o Núcleo Psicossocial institucional (NPI), para pedir ajuda para o grupo por
ele coordenado que no momento estava passando novamente por um evento crítico –
uma Oficiala sofreu um assalto em serviço - que trouxe à tona questões de segurança
dos trabalhadores daquele setor, reabrindo antigas feridas, talvez ainda não cicatrizadas.
Realização do primeiro encontro e pré-pesquisa - como a demanda partiu
do coordenador, agendamos a primeira reunião para 19 de agosto. A esta reunião
compareceram 19 Oficiais de Justiça. Era preciso ouvir do grupo se ele concordava em
trabalhar a questão de forma coletiva. Já falamos também do interesse em realizar um
trabalho de pesquisa com o referencial da psicodinâmica do trabalho, explicando do que
se tratava. O grupo achou louvável a disponibilidade do NPI em trabalhar com eles.
Concordou em participar da pesquisa. Acreditávamos que a pesquisa aconteceria no
futuro quando tivéssemos mais clareza sobre todas as ferramentas, e na realidade ela já
estava começando ali.
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Participantes - 19 Oficiais de Justiça voluntários de um Fórum de uma
cidade satélite de Brasília.
Encontros seguintes – continuamos realizando encontros mensais, em
espaço do próprio ambiente de trabalho. Na segunda e terceira reuniões, com 13 e 17
participantes, respectivamente, falou-se das experiências de trabalho no contexto da
organização do trabalho, quando procurávamos entender estas relações. No quarto
encontro, com 19 participantes, conversamos sobre como o grupo fazia para realizar o
seu trabalho diante das dificuldades colocadas por eles, para que pudéssemos perceber
as defesas desenvolvidas para se protegerem. Não foi definido um tempo para concluir.
Como trabalhamos na instituição e faz parte do nosso trabalho o atendimento em grupo,
ficou em aberto a questão da duração da pesquisa, porque mesmo preparando um
relatório para apresentar à UNB, podemos continuar com os encontros com o grupo, até
que a situação tenha ficado clara para o grupo e se chegue a um consenso quanto aos
encaminhamentos a serem adotados.
Coleta e análise dos dados obtidos nas sessões coletivas – a coleta foi
feita por três pesquisadores da instituição, sendo duas psicólogas e uma assistente
social. Os conteúdos das reuniões foram anotados e após cada encontro fez-se um
relatório com base nas anotações e na ressonância simbólica das pesquisadoras. Na
reunião seguinte era dada a restituição do conteúdo da reunião anterior, sobre o qual o
grupo pode se manifestar.
Análise clínica dos conteúdos das reuniões – o conteúdo das reuniões
será interpretado à luz dos fundamentos teóricos da psicodinâmica do trabalho que se
relacionam com a psicologia, a sociologia do trabalho, a psicanálise e a ergonomia da
atividade. Segundo Mendes (2007, p.65),
“é um modo de colocar o trabalho em análise, é um processo de
revelação e tradução dos seus aspectos visíveis e invisíveis, que expressam uma
dinâmica particular a cada contexto e que permite o acesso aos processos de
subjetivação, às vivências de prazer- sofrimento, às mediações e ao processo de
saúde-adoecimento”
Relatório: será lido no grupo o relatório da pesquisa antes da sua
apresentação à UNB, para validação dos resultados e mesmo assim o grupo pode
continuar se reunindo para os encaminhamentos necessários.
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Socialização dos resultados e Plano de Ação – como estamos trabalhando
com outro grupo de Oficiais em outro Fórum da mesma instituição, pretendemos
comparar os resultados dos dois grupos, apresentá-los a seguir ao coletivo de pesquisa
constituído pela equipe do NPI, para pensaremos com o coletivo de trabalho e os
Grupos de Oficiais de Justiça sobre possíveis encaminhamentos na instituição com
vistas a melhorias para a categoria.
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RESULTADOS
Organização do trabalho
A organização do trabalho é responsável pela definição, divisão e distribuição
das tarefas entre os trabalhadores. Cabem a ela também a concepção das prescrições e o
exercício do controle, da ordem e da direção e da hierarquia.
O Oficial de Justiça é considerado “o braço do Juiz.” É ele quem dá efetividade
às determinações expedidas pelo Juiz, conforme as prescrições a seguir:
Atribuições dos Oficiais de Justiça-Avaliadores:
Exercer as funções definidas pelas leis processuais e por este provimento,
além de cumprir as determinações do Corregedor, dos direitos dos fóruns, dos juízes e
das comissões disciplinares;
Cumprir pessoalmente o mandado, identificando-se pelo nome e função e
exibindo a carteira de identidade funcional;
Cumprir pessoalmente os alvarás de soltura;
Avaliar bens, salvo quando exigidos conhecimentos técnicos especializados;
Realizar leilões públicos, coletivos ou individuais, e praças, exceto quando
houver indicação de leiloeiro pelo credor em leilão público individual, admitido pelo
juiz do feito;
Lavrar certidões circunstanciadas, fazendo constar, de forma clara e
objetiva, os fatos relevantes da diligência, a data e a hora, o nome, o número do
documento de identidade e endereço dos informantes, declarantes ou vizinhos, além do
próprio nome e a respectiva matrícula;
Assinar o termo de carga de mandados, bem como conferir e recusar, nessa
oportunidade, aqueles com insuficiência de documentos, sob pena de assumir o encargo
de providenciá-los junto à vara. Caso lhe seja distribuído indevidamente mandado de
outro setor, terá o prazo máximo de quarenta e oito horas para devolvê-lo sem
cumprimento, a contar da data em que o recebeu: transcorrido esse prazo, deverá
cumpri-lo integralmente;
Comparecer à sala a ele destinada, às terças e quintas feiras, ali
permanecendo entre treze e quinze horas, para atender partes e advogados;
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É vedada a confecção de certidões manuscritas.
A função de Oficial de Justiça é bastante almejada por quem deseja entrar na
carreira jurídica, pela remuneração – maior do que a dos analistas judiciários – também
pela possibilidade do servidor fazer seu horário de trabalho em função da demanda. Mas
o que parece ser vantagem, diante de uma demanda muito alta de trabalho – chegam a
receber entre 180 a 200 mandados - acaba sendo desvantagem, pois os Oficiais se
tornam escravos do tempo, trabalhado inclusive nos fins de semana e feriados, em
horários especiais antes das seis da manhã e após 20, 21 horas, dependendo da hora em
que for possível encontrar sua clientela em casa, conforme falam nas reuniões:
“O fato de não termos horário definido de trabalho passa esta visão de que
trabalhamos pouco. Quem tem horário definido, ao encerrar o expediente vai para casa.
Nós, ao contrário, não temos direito aos fins de semana, não temos horário para deitar
nem para levantar. O trabalho está sempre em primeiro lugar. Vem antes mesmo da
família. Enfrentamos estresse emocional, falta de reconhecimento e não temos apoio
institucional.”
“O Oficial está vinculado ao mandado. Só relaxa quando o cumpre.”
A organização é caracterizada por relações de poder hierarquicamente
demarcadas. As relações entre Juízes e Oficiais de Justiça que antes fluíam
naturalmente, hoje são atravessadas por diretores e secretários de fóruns e sofrem de um
distanciamento quase intransponível, segundo Nelson Marraccine, Oficial de Justiça
aposentado, que descreve suas memórias no livro O Oficial de Justiça e seu incomum
dia-a-dia (1998). E isto cria, naturalmente, sérios problemas de comunicação.
Os juízes que encaminham as ordens a serem cumpridas não estão acessíveis
aos Oficiais. Todo relacionamento entre eles é permeado pela formalidade: petições,
certidões, processos administrativos, etc. Se alguma destas comunicações exige
resposta, elas raramente vêm. O silêncio é o indicativo de que seu trabalho está bem.
Mas, se não estiver bem, com certeza será devolvido para ser refeito ou o Oficial será
alvo de um processo administrativo por erros mais graves. Porém, tudo de forma
impessoal, tudo em nome da lei.
O trabalho é solitário:
“Por trabalharmos fora não fazemos muitas amizades, não convivemos uns
com os outros. Quando fazemos uma festinha o comparecimento é mínimo. Além de
trabalharmos sob pressão, somos solitários. Tive um aborto de gêmeos no oitavo mês.
Fiquei hospitalizada e não recebi nem um telefonema. E já trabalho aqui há 11 anos.”
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O Oficial não conta com suporte material e humano para a realização do
trabalho com segurança:
“O tribunal tem motoristas e seguranças a serviço dos juízes, mas não a serviço
dos Oficiais de Justiça, sendo que somos os braços dos Juízes para executar suas ordens.
Há um aparato de segurança para proteger presos perigosos. Por que não para o servidor
no exercício de seu trabalho?”
“O Oficial é quem dirige, inclusive nos casos de conduções coercitivas –
quando precisam buscar pessoas em casa para participar de audiências. Algumas vezes
essas pessoas são criminosas, sofrem de perturbações mentais, são irritadas, nervosas,
indo ao Fórum contra a sua vontade e causam situações vexatórias, onde tudo pode
acontecer. O Oficial tem que, ao mesmo tempo, prestar atenção no trânsito e controlar a
situação dentro do carro. E ainda tem que se preocupar com o carro, porque é
responsável por qualquer dano que lhe aconteça.“
“Quando sei que estou escalado para um plantão fico tenso, não consigo me
desligar. Já fui recebido à bala. Um colega foi mordido de cachorro.”
A organização do trabalho não valoriza os Oficiais de Justiça e nem expressa
reconhecimento pelo seu trabalho, conforme registro de reuniões:
“Eu já ouvi, no Tribunal do Júri, um Corregedor dizer que o Oficial de Justiça
é a escória da justiça. E eu estou há trinta e um anos suportando isto.”
“A fé pública do Oficial de Justiça é sempre colocada em dúvida. Somos
considerados incompetentes. Me sinto ofendido por sermos considerados os vagabundos
do tribunal.”
Ainda sobre reconhecimento, referem às agressões sofridas no trabalho que a
instituição não qualifica como tal, segundo o artigo 302 do código penal, em que a
agressão sofrida por um agente público no exercício do seu trabalho é considerada uma
agressão ao Estado.
“Quando a instituição altera um boletim de ocorrência colocando o Oficial
como vítima, nos sentimos traídos em nossa dignidade. Como trabalhadores somos
ameaçados, feridos e até mortos no cumprimento do trabalho que nos foi confiado e não
somos reconhecidos nesta condição.”
A organização é, às vezes, contraditória, e emite mandados em desacordo com
a lei. É o que testemunha a fala de um participante do grupo:
“O Oficial de Justiça sofre um desgaste duplo: pelo fato de ser usado como
instrumento de injustiça e por testemunhar o sofrimento das partes.”
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“Uma colega, ainda em estágio probatório, recebeu um mandado para trazer
uma testemunha às 5 horas da manhã, porque depois desta hora não seria mais
encontrada em casa. A testemunha seria mantida na carceragem até a hora da audiência,
sendo ela apenas uma testemunha. Além disso, os policiais que a acompanharam nesta
ação estavam encapuzados, estressados, de arma em punho. Os moradores ficaram
bastante assustados, não queriam abrir a porta àquela hora da manhã, o que é natural e
os policiais ameaçavam arrombar a porta. Foi muito constrangedor.”
“Horário especial é exceção à regra e só é ordenado depois que o Oficial faz
três tentativas de localização. Apesar disto, alguns mandados já são emitidos com
indicação de horário especial, antes mesmo que se tenha feito qualquer tentativa de
executá-lo.”
Verificação de Prazer e Sofrimento no trabalho
O que causa prazer no trabalho do Oficial de Justiça é a possibilidade de
assumir a identidade da sua profissão por eles reconhecida: a de levar a justiça a todos,
de servi-la com respeito, principalmente aos mais humildes.
“Somos o braço da justiça.”
“Muitas vezes orientamos as pessoas sobre os seus direitos e ainda lhe damos o
dinheiro para as passagens para correr atrás do que lhe é devido.”
Ficam felizes em ter o reconhecimento da experiência e do conhecimento
adquiridos no trabalho e autonomia para utilizá-los em prol de uma prática mais
adequada á situação que se apresentar no momento, naturalmente dentro do referencial
maior, que é o cumprimento da lei.
Desejam ter condições de trabalho, de segurança para realizarem o que
acreditam e só o que acreditam. Esperam ser valorizados neste fazer, reconhecidos e
respeitados como cidadãos e como trabalhadores em sua dignidade, pela organização do
trabalho, pelos colegas e pela comunidade, a serviço de quem desejam estar. No
momento, a única compensação que têm é o salário que recebem, que o grupo avalia
como um bom salário. Mas gostariam que aliado ao bom salário houvesse a
possibilidade de realizar um trabalho útil e justo à sociedade, além de terem o
reconhecimento da organização.
O que conseguimos perceber como alegria está principalmente no espaço dos
sonhos e das esperanças. De real, além do salário, só o sofrimento mesmo. A
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realização da tarefa, tal como está prescrita é fonte de alívio. Mas a tensão continua
porque outros mandados já esperam cumprimento, com sua carga natural de apreensão,
pois nunca se sabe o que os aguarda.
Já as razões que provocam sofrimento são várias e estão quase todas ligadas às
novas formas de gestão do trabalho e suas consequências para o mundo do trabalho.
Elas abrangem questões de segurança:
“Quando comecei minha carreira aqui, há muito tempo atrás, o Oficial de
Justiça tinha suporte de segurança, carro e motorista para realizar o seu trabalho. Com o
passar do tempo tiraram o segurança, depois o motorista e hoje só temos o carro para os
plantões. Isto, num tempo em que a população e a violência eram bem menores do que
agora.”
Abrangem relações hierárquicas, que tornam quase impossíveis a participação
nos processos decisórios. Sentem medo de, ao usarem sua criatividade e autonomia
diante das situações de trabalho, incorrer em algum procedimento não aceito pelos
superiores e serem punidos com um Processo Administrativo. Como não têm acesso aos
Juízes não podem se explicar, expor suas idéias, justificar o porquê de suas ações.
Sofrem por estarem sujeitos a orientações diferentes dos cartórios para o
mesmo trabalho. Isto suscita confusão na hora de fazerem as certificações. Precisam
consultar sempre as normas aceitas por determinado cartório para não incorrer em erro
em cada situação específica. O que é aceito por um cartório pode não ser por outro.
Eles sofrem pela sobrecarga e pressões no trabalho:
“Sou funcionária antiga do tribunal. Já trabalhei antes como técnica. [...] o
trabalho de Oficial é diferente: é muito cobrado, muito estressado, recebe-se muita
pressão e é muito solitário.”
A solidão tem um peso considerável para o sofrimento deste grupo e é
recorrente em suas falas:
“Por lidarmos diariamente com o perigo evitamos comentar as situações de
trabalho com nossos familiares para não preocupá-los. Como nossa convivência com os
colegas é mínima, ficamos com nossas dores só para nós.”
Sofrem por se sentirem desvalorizados e até discriminados como “os
vagabundos do tribunal:”
“Eu já ouvi, no Tribunal do Júri, um Corregedor dizer que o Oficial de Justiça
é a escória da justiça. E eu estou há trinta e um anos suportando isto.”
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Sofrem por terem que cumprir mandados em desacordo com a lei, e isto contra
as pessoas mais humildes, mais indefesas, mais frágeis:
“O Oficial de Justiça sofre um desgaste duplo: pelo fato de ser usado como
instrumento de injustiça e por testemunhar o sofrimento das partes.”
Estratégias defensivas coletivas ou individuais
A psicodinâmica do trabalho (Mendes, 2007, Dejours, 2008) estuda as
estratégias defensivas, indicando que elas tanto podem ser coletivas como individuais.
A elas cabe a função de proteger os trabalhadores contra o sofrimento ou pelo menos de
abrandá-lo, sem, no entanto levar a uma solução. Com relação ao grupo em estudo
podemos observá-las se manifestando em vários aspectos, nas diferentes situações.
Como este grupo trabalha muito só, as estratégias defensivas são marcadamente
individuais. Só uma perpassa quase todo o coletivo: é a virilidade, defesa que se
caracteriza pela exaltação da coragem, negação do perigo e da vulnerabilidade. Esta
defesa é percebida no fato de em geral recusarem ajuda da polícia para os casos
considerados de maior potencial para violência. Apesar de todas as razões para
justificarem a recusa, percebe-se também a importância que a coragem para enfrentar as
situações de perigo tem para este grupo. As falas do grupo sobre os processos de
adoecimentos dos colegas denunciam esta defesa. Há um incômodo em admitir que se
possa adoecer em função do trabalho. Nos primeiros encontros falaram desta questão e
até brincaram um pouco com ela:
“De tanto trabalhar sozinhos acabamos perdendo a visão do outro, em
perceber seu sofrimento. Ficamos aborrecidos quando um colega entra de licença, pois
só conseguimos pensar na repercussão desta licença em termos de aumento de trabalho
que pode significar também adoecimento para quem continua trabalhando.”
“Quando estou para entrar num novo setor faço uma pesquisa para saber
quantas colegas em idade reprodutiva existem ali (risos). As colegas deveriam pedir
permissão ao grupo para engravidar; licenças maternidade são longas demais.”
Este comportamento foi vivenciado pelo grupo recentemente, quando uma
colega começou a demonstrar sintomas de adoecimento. O grupo reagiu com indignação
porque ela não falou logo que não estava bem, que não daria conta do trabalho e foi
acumulando mandados que eles tiveram que assumir depois. O comportamento dela foi
sintomático, não se permitindo assumir seu adoecimento. O tempo todo ela dizia que
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daria conta das suas tarefas, que o grupo não precisava se preocupar. Ao lado disto, há
um discurso que persiste entre eles, que é a necessidade de um perfil para ser Oficial de
Justiça, um perfil que se aproxima do perfil do policial, portanto, com uma coragem
inerente à personalidade do Oficial. Quem tem este perfil se sai bem. Uma pessoa
corajosa pode ser mais eficaz se estiver em permanente estado de alerta, e tiver uma boa
organização. É o que podemos inferir das falas a seguir:
“Quando estou trabalhando estou sempre atenta a tudo o que acontece ao meu
redor, desconfiando de tudo, fazendo um reconhecimento da área, tentando detectar
qualquer sinal de perigo.“
“Procuro me organizar antes de sair para o trabalho para não ter que me
preocupar com estes detalhes depois que estiver na rua e concentrar a atenção no
ambiente. Organizo os mandados por categoria: mandados mais complexos, mais
simples, mandados de penhora, de remoção, etc. Anoto os endereços por ordem de
prioridade para não perder tempo, de forma a tê-los à frente dos olhos sem precisar
buscá-los no processo. Leio todas as informações que puder ter sobre as partes, para, na
medida do possível evitar surpresas. Apesar de todos os cuidados, sei que o perigo é
parte da profissão.”
O final da última frase reflete a racionalização que predomina na organização
do trabalho: “são os ossos do ofício.” “Quem escolheu esta profissão tem que agüentar.”
Apesar das queixas quanto à insegurança no trabalho, à falta de apoio por parte
da organização na realização do trabalho, ninguém quer ser considerado um peso para a
equipe ou inadequado para a tarefa que está realizando. É desta maneira que dominam
ou pelo menos tentam dominar o medo e realizar o trabalho. É o que diz a ambigüidade
desta fala:
“Sinto que estou ficando sem medo das situações, mas continuo apavorada por
dentro.”
As demais estratégias defensivas desenvolvidas pelo grupo são de caráter
individual. Uns simplesmente assumem que correm riscos mesmo: “Agente não marca
a fisionomia das pessoas, mas elas te marcam. Como estamos indo sempre nos mesmos
lugares, estamos sempre correndo riscos.”
Alguns adotam estratégias de compensação, como veremos:
“Depois de um dia de trabalho, chego em casa, me deito, fico quietinha, para
me refazer.”
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“Procuro me desligar do trabalho quando chego em casa. Cuido da minha
filha, vejo TV, fecho a pasta de trabalho.”
É evidente a falta de esperança e a busca de forças sobrenaturais: “Me coloco
nas mãos de Deus. Não tenho proteção do Estado nem de nada, só de Deus.”
Discussão dos resultados
Nos encontros realizados com este grupo de trabalhadores observamos indícios
de sofrimento no trabalho provocados pelos novos modelos de gestão da organização do
trabalho fundamentados no princípio da eficácia como um fim em si mesmo, o que
resulta na imposição dos meios mais rentáveis de produção dos serviços com menores
custos para a empresa/instituição. No caso específico a redução de custos pode ser
observada através da retirada do segurança e do motorista como apoio na realização do
trabalho do Oficial de Justiça, fato que o deixa bastante vulnerável às situações de
violência com as quais se depara com muita freqüência. A falta de motorista nos
plantões do Tribunal do Júri obriga-os a dirigem o carro, mesmo em caso de conduções
coercitivas, quando conduzem testemunhas, algumas delas autoras de delitos ou com
distúrbios de comportamento, sendo conduzidas, às vezes contra sua vontade, causando
transtornos no percurso, podendo provocar acidentes no trânsito por dividir a atenção e
provocar um aumento de tensão em quem está dirigindo nestas circunstâncias. A
precarização das condições de trabalho trás conseqüências nocivas para a saúde do
trabalhador (Ferreira, 2008, Mendes 2007). Esta racionalidade vai se instalando de
maneira que aos poucos a segurança do trabalhador vai sendo substituída por uma
eficácia às avessas: a economia de pessoal e equipamentos resulta em despesas com
saúde, licenças prolongadas, absenteísmo, aposentadorias precoces, dentre outros
prejuízos, e o que é mais caro, a própria vida do trabalhador, é colocada a prêmio.
Dentro deste mesmo princípio de eficácia observa-se uma redução do número
de Oficiais na medida em que a contratação destes trabalhadores não acompanha o
crescimento da população, principalmente nas cidades satélites mais populosas, gerando
acúmulo de trabalho, trabalho sob pressão, fragmentação da equipe para poder atender a
demanda. O trabalho pode começar antes das seis horas da manhã e se estender até oito
ou nove horas da noite, invadir os fins de semana e feriados e a tensão que dele resulta
os acompanha permanentemente. Para estes trabalhadores, sua tarefa invade,
literalmente, todos os espaços da sua vida, como afirma Dejours (2010, p. 44), “[...] se é
22
sabido onde começa o trabalho – não se é capaz de delimitar, por critérios
generalizáveis, a maneira como o trabalho convoca a personalidade muito além do
tempo e local de trabalho (a inseparabilidade entre o trabalho e o fora do trabalho). O
número insuficiente de profissionais com relação a extensão da área a ser coberta e o
volume de trabalho transforma este trabalhador num solitário quando se observa mais
do que nunca a necessidade deste trabalho ser mais coletivo, para se apoiarem
mutuamente nas horas de perigo e tensão.
Sozinhos no trabalho, em casa não é diferente, pois evitam falar de suas
experiências laborais para que seus familiares não fiquem sobressaltados cada vez que
saírem para exercê-las. Esta solidão afeta a construção da identidade do indivíduo, que
passa necessariamente pelo olhar do outro no processo de reconhecimento, como
preconiza Dejours (1999). Sozinhos eles se privam dos processos de cooperação,
solidariedade, de apoio no enfrentamento do medo, da possibilidade de escutar e ser
ouvido que resultam em vivências de prazer e fazem muito bem à saúde.
Mendes e Araújo (2007) abordam três dimensões importantes presentes nas
novas formas de organização do trabalho, a saber: as exigências, as ameaças e a
desestabilização. As exigências estão relacionadas ao trabalho, que são muitas vezes
invisíveis, mas são contraditórias na definição de objetivos, regras e modos de controle.
As ameaças remetem ao medo de errar, da punição e aos riscos que o trabalho oferece e
provoca insegurança e medo. A desestabilização do coletivo implica relações sócio-
profissionais individualizadas, perda de confiança entre os pares, competição, falta de
respeito, de solidariedade e ética, deteriorando as relações de trabalho. E conclui
dizendo que estas três dimensões da organização de trabalho articulam-se a três bases de
sustentação do sofrimento: o medo, a insegurança e a angústia. Percebemos estas
dimensões bem delineadas na experiência de trabalho dos Oficiais de Justiça,
interpondo em suas relações intersubjetivas no trabalho.
A insegurança não está relacionada apenas às situações de risco a que estão
expostos, mas também dizem respeito à inexistência de uma forma clara de avaliação
que indique a forma com o trabalho está sendo realizado. Só há manifestação quando
devolvem as certificações para serem refeitas quando há erros menos graves e a punição
através de processo administrativo para os casos considerados graves. O critério para
avaliar o que é certo ou errado, grave ou menos grave varia de cartório para cartório, de
modo que o que é errado ou grave para um pode não ser para outro. Esses processos
administrativos os inibem de usarem sua criatividade e agirem de forma mais adequada
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a cada situação, temendo serem punidos por isto. Também ficam inseguros quanto a
questionarem a execução de uma ordem quando a mesma não está muito apropriada
para a realidade à qual se destina ou situações que eles já sabem por experiência que não
são as mais adequadas. Já se falou da importância do olhar do outro, que tanto pode ser
o colega de trabalho quanto o superior, sobre a qualidade daquilo que se faz para a
afirmação da identidade do trabalhador. Dejours (1999, p. 22), diz que “o não
reconhecimento dessa relação do sujeito com o trabalho, da relação ego-real é perigosa
para a identidade, podendo levar à loucura. Esta necessidade de um retorno da qualidade
do seu trabalho sentida por esta categoria trás à memória uma afirmação de Dejours
(2010) de que a avaliação, quando apropriada, é desejada pelo trabalhador. Esta falta de
avaliação, por outro lado, se relaciona ao não reconhecimento sentido e mencionado por
todo o grupo, que segundo eles se expressa de várias maneiras: na falta de apoio diante
dos riscos no trabalho que realizam; na indiferença e forma discriminatória com que são
tratados; na falta de uma linha direta de comunicação entre eles, os juízes e diretores de
Fóruns e de Cartórios, o que seria natural uma vez que todos estão envolvidos no
mesmo fazer. Como não se comunicam não podem expor seus questionamentos, falar
das situações que dificultam o trabalho. Esta falta de articulação é vista pelo grupo
como um ponto falho na organização do trabalho, que poderia ser bem mais produtivo
caso os setores não fossem tão desarticulados entre si. Faltam conhecimento e respeito
entre estas categorias. Pensam que esta articulação deveria fazer parte da política da
instituição. Sobre esta questão afirma Dejours (in Lancman & Sznelwar, p. 353):
“Sempre insuficiente e imperfeito, o entendimento é mesmo assim possível e
desejável. Há situações de entendimento que denotam grande sucesso; e as
situações de entendimento sem êxito completo podem ser sempre consideradas
como passíveis de melhoria.”
Voltando ao reconhecimento, o grupo inclui neste item as agressões sofridas no
trabalho que a instituição não qualifica como tal, segundo o artigo 302 do código penal,
em que a agressão sofrida por um agente público no exercício do seu trabalho é
considerada uma agressão ao Estado. Quando a instituição altera um boletim de
ocorrência colocando o Oficial como vítima eles se sentem traídos na sua dignidade de
trabalhador que foi ameaçado, ferido e até morto no cumprimento de uma missão e não
é reconhecido nesta condição. Tal é o caso de um Oficial que foi vítima de um cão
rotwailer solto pela parte para atacá-lo. Ele foi salvo pela esposa do agressor, que
chegou a tempo de impedir a agressão, prendendo o cão. O Oficial deu ordem de prisão,
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acionou a polícia, levou-o até a delegacia, fez o boletim de ocorrência e viu a questão
ser encaminhada como se o profissional fosse a vítima. Outro profissional que sofreu
ameaça de morte no exercício do trabalho enfrentou a mesma situação. A morte da
colega ocorrida há quatro anos foi tipificada como latrocínio, quando todos sabiam que
o assassino já havia sido intimado e era reincidente.
Para os Oficiais de Justiça todas estas situações de insegurança estão
estreitamente relacionadas com a desvalorização da categoria. A psicodinâmica do
trabalho relaciona desvalorização à falta de reconhecimento. Dejours (in Mendes, Lima
& Facas, 2007, p. 21), dá um valor muito grande ao reconhecimento, atribuindo-lhe a
função de mediador insubstituível de construção de saúde e o meio pelo qual o
sofrimento pode ser transformado em prazer no trabalho. Diz ainda que da dinâmica do
reconhecimento depende a mobilização subjetiva das pessoas e a qualidade da
cooperação.
Dentre os motivos de sofrimento mencionados pelo grupo estão os mandados
ilegais, como mandados de busca e apreensão de bens essenciais. Há um sofrimento
ético claro por terem de operacionalizar a contradição do objeto de trabalho. Eles se
reconhecem fazendo um trabalho que é, às vezes, ilegal e injusto contra os mais pobres
entre os pobres, mais humildes e mais indefesos. Este é o pior de todos os sofrimentos,
que às vezes os levam às lágrimas na realização de suas atividades. Karan (2010) e
Dejours (2010) falam de um sofrimento indizível. Creio que esta é a melhor definição
para este sofrimento. Fica evidente nesta situação a lógica instrumental a que estão
submetidos os trabalhadores das empresas e também o serviço público, diante das metas
a serem cumpridas. Em nome desta instrumentalidade, faz-se qualquer coisa, os fins
justificam os meios. Estes trabalhadores são confrontados com o sofrimento ético, onde
são constrangidos a passar por cima do que consideram correto, fazendo coisas nas
quais não acreditam em nome de uma racionalidade que lhes é imposta.
Ao refletir sobre as situações de trabalho, diante das pressões, da insegurança,
da solidão, da falta de reconhecimento, o grupo se pergunta: “como não adoecemos
todos nós? Como resistimos a tudo isto?” A resposta que vem sendo dada pelo grupo
remete às defesas construídas de maneira coletiva e principalmente individualizada, que
acomodam o sofrimento tornando-o suportável, mas não trás sua superação. O caminho
da superação passa pelo espaço de fala e escuta que possibilita a construção do coletivo,
para a cooperação, para o uso da inteligência criativa que pode transformar o sofrimento
em prazer e saúde.
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CONCLUSÃO
Nas reuniões realizadas com o grupo de Oficiais de Justiça de uma instituição
pública do Distrito Federal, houve evidências de que este grupo está exposto às
exigências feitas pelo trabalho, muitas vezes contraditórias e ameaçadoras. Além disso o
grupo desenvolve um trabalho solitário, num ambiente que oferece risco e insegurança,
sem reconhecimento pelo seu esforço e capacidade de superação. Tudo isto gera tensão
e adoecimento.
O grupo sente necessidade de uma articulação entre os diferentes setores
envolvidos na execução do trabalho, que possibilite a troca de experiências e saberes e
mais autonomia na realização da tarefa. Reclama condições de segurança e um sistema
de avaliação que indique para eles a qualidade do seu trabalho e o que precisa ser
aperfeiçoado. Reclama, sobretudo, o reconhecimento da organização como profissionais
capacitados e dedicados ao exercício da justiça em favor de todos. É por este trabalho
que querem ser reconhecidos, por que é este trabalho que os realiza. Estas são, para a
psicodinâmica do trabalho condições de prazer e saúde no trabalho.
Finalmente, acreditamos que os objetivos propostos inicialmente para este
estudo foram alcançados. O espaço de fala e escuta foi instituído entre estes
trabalhadores, com reflexões sobre suas vivências de prazer e sofrimento no trabalho.
Chegamos a uma aproximação maior do conhecimento da organização do trabalho e
suas implicações sobre as relações intersubjetivas. Por outro lado, a realização desta
pesquisa trouxe maior clareza sobre os conceitos da Psicodinâmica do trabalho à luz das
vivências de trabalho em análise, nas quais vimos refletido plenamente o referencial
teórico. Para o grupo ser ouvido e ao mesmo tempo ouvir seus colegas foi uma
experiência nova e agregadora que está suscitando novas experiências, as vezes
sofridas, às vezes plenas de esperanças. Sabemos que estamos apenas no início de um
processo que requer muito mais de todos nós. Mas já foi dado o primeiro passo. Nosso
desejo é continuar e evoluir para a Clínica do Trabalho.
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