coronelismo enxada e voto- victor nunes leal

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  • Sumrio

    Prefcio stima edioPrefcio terceira edioPrefcio segunda edio

    1. Indicaes sobre a estrutura e o processo do coronelismo2. Atribuies municipais3. Eletividade da administrao municipal4. Receita municipal5. Organizao policial e judiciria6. Legislao eleitoral7. Consideraes finais

    NotasBibliografia citadaSobre o autor

  • Prefcio stima edio

    Jos Murilo de Carvalho

    DVIDA

    Devo, indiretamente, a Victor Nunes Leal o interesse pelo tema do coronelismo. Segundo seuprprio depoimento, ele recusou o convite para redigir o verbete sobre o assunto, que lhe fora feito pelosresponsveis pelo Dicionrio Histrico-Biogrco Brasileiro organizado pelo CPDOC/FGV e publicado em1984. Alegou na ocasio falta de competncia, por desatualizao, em mais uma de suas costumeiras eexageradas manifestaes de modstia. Como segunda opo, fui eu convidado para a tarefa. Ganhei eu,perdeu o Dicionrio, perderam os leitores.

    RECEPO DE CORONELISMO

    O primeiro contato que tive com Victor Nunes se deu por ocasio de homenagem que lhe prestamosem 1980 no Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que ento inaugurava oprimeiro programa de doutorado em Sociologia e Poltica organizado no Brasil nos moldes do novosistema de ps-graduao implantado ao nal da dcada de 1960. Na ocasio, ao responder a saudaoque lhe z, Victor Nunes voltou pela primeira e ltima vez ao tema de seu livro que sara em 1948, paraefeito de defesa de tese, ainda com o ttulo original de O municpio e o regime representativo no Brasil:contribuio ao estudo do coronelismo. Intitulou sugestivamente sua resposta, publicada na revista doInstituto, O coronelismo e o coronelismo de cada um. Sua principal preocupao na ocasio foiresponder a alguns crticos, sobretudo a Eul-soo Pang, que, segundo ele, no tinham compreendido seuconceito de coronelismo.

    De fato, a maioria dos autores que empregaram o conceito usado por ele, sem distino entrecrticos e admiradores, identicava coronelismo com mandonismo local. Era o caso do crtico Eul-SooPang, mas tambm do admirador Barbosa Lima Sobrinho, que por insistncia do autor escreveu oprefcio segunda edio do livro feita pela Alpha Omega em 1975 (a primeira sara em 1949, j com o

  • ttulo atual, sugerido por Emil Farhat, pela Forense), que vem nessa edio tambm reproduzido. Contraa incompreenso, rearmou, na resposta mencionada, que para ele o conceito de coronelismoincorporava, sim, traos de mandonismo local, mas era mais que isso, fazia parte de um sistema, de umatrama que ligava coronis (mandes), governadores e presidente da Repblica. Insistiu no ponto: era aideia de sistema que distinguia seu conceito e lhe conferia originalidade. Em suas palavras: O coronelentrou na anlise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocupava era o sistema, a estrutura e amaneira pela qual as relaes de poder se desenvolviam na Primeira Repblica, a partir do municpio.

    A diculdade que crticos e admiradores encontraram, e ainda encontram, em compreender anovidade do livro, exposta, alis, com clareza meridiana, marca registrada de tudo que ele escrevia,lembra o episdio vericado durante a defesa da tese na antiga Faculdade Nacional de Filosoa, em1947, e comunicado por ele em carta a Alberto Venncio Filho. O episdio saboroso e, mesmo que odestinatrio da carta j o tenha registrado no prefcio terceira edio, feita pela Nova Fronteira em1997, merece ser relembrado. Pedro Calmon, um dos examinadores, no melhor estilo bacharelesco dapoca, recorreu a uma das muitas frmulas usadas para humilhar os candidatos aos concursos. CitandoCapistrano de Abreu, sentenciou, provocando gargalhadas, que ningum poderia ignorar completamenteo que fosse coronelismo sem ter lido a tese de Victor Nunes. Apesar da extrema modstia, a vtima, quese preparara cuidadosamente para o certame, no se deixou intimidar. Retrucou, duplicando asgargalhadas, que ningum poderia ignorar completamente o que fosse sua tese sem ter ouvido a arguiodo professor Pedro Calmon.

    Sinto-me a salvo do risco de merecer a resposta dada a Pedro Calmon, uma vez que, na mesmaresposta, Victor Nunes considerou correta minha interpretao de seu livro. Mas, diante da diculdadeque muitos ainda parecem ter na compreenso ou aceitao da novidade conceitual trazida porCoronelismo, e, sobretudo, diante da absoluta necessidade de frisar sua relevncia para a histria denossa produo intelectual, creio valer a pena, mesmo passados tantos anos da primeira edio, retomaro debate. Procederei da seguinte maneira: primeiro, mostrarei a novidade da obra; depois, buscarei, naformao de Victor Nunes e no contexto em que trabalhou, possveis explicaes para a naturezainovadora dela; finalmente, comentarei o que resta de Coronelismo nos dias de hoje.

    ORIGINALIDADES DE CORONELISMO

    No foi uma, foram vrias as originalidades do livro. Para apont-las, retomo alguns comentriosque z na saudao a Victor Nunes por ocasio da homenagem que lhe foi prestada pelo Iuperj. Aprimeira, a mais importante e menos compreendida, j foi comentada. Tem a ver com o enfoque docoronelismo como sistema, como caracterizao da rede nacional de poder desenvolvida no perodohistrico que correspondeu primeira experincia do federalismo. O coronelismo, nessa viso, no simplesmente um fenmeno da poltica local, no mandonismo. Tem a ver com a conexo entremunicpio, Estado e Unio, entre coronis, governadores e presidente, num jogo de coero e cooptaoexercido nacionalmente.

    Outra inovao importante foi romper com o estilo dicotmico de analisar a poltica e a vida

  • nacionais, expresso em polarizaes como casa-grande versus Estado (Gilberto Freyre), feudalismo versuscapitalismo (Partido Comunista), litoral versus serto (Euclides da Cunha), eleio versus representao(Gilberto Amado), e, sobretudo, pblico versus privado (Nestor Duarte, Srgio Buarque de Holanda). Adivergncia mais clara de Coronelismo era com A ordem privada e a organizao poltica nacional (1939)de Nestor Duarte, que separava poder pblico e ordem privada. Sempre tive a impresso de que, em suatese, Victor Nunes estava polemizando com Nestor Duarte. Ele negava tal inteno. Mas, talvez por suaconhecida elegncia, talvez por receio da banca, ou pelas duas coisas, ele no polemizou abertamentecom ningum na tese. Mesmo que o tivesse feito no caso de Nestor Duarte, dicilmente o reconheceria.Victor Nunes no ignorava nem negava as tenses envolvidas nas polarizaes, mas buscou entend-lascomo relaes quase diria dialticas. O coronel e o governador obedeciam a dinmicas distintas, masinteragiam, imbricavam-se, invadiam reciprocamente seus territrios, corroendo e alterando no processoa prpria natureza do pblico e do privado. Est a, parece-me, uma proposta de interpretao de poderexplicativo muito maior do que o das dicotomias, em que pese a atrao analtica exercida por elas.

    E m Coronelismo Victor Nunes superou tambm os determinismos que ainda povoavam nossopensamento social, alguns deles herdados do sculo XIX. Havia, entre outros, juridicismos (AlbertoTorres), economicismos (Caio Prado), culturalismos (Gilberto Freyre), racismos (Oliveira Viana),psicologismos (Paulo Prado). Victor Nunes combinou diversas abordagens, sem atribuir a apenas umavarivel carter explicativo exclusivo e excludente. Reconhece uma estrutura agrria e uma classeproprietria que se inserem na economia de exportao. Mas o coronel, operador dessa economia, tambm um ser profundamente poltico que interage com o Estado, servindo-o e dele se servindo,perdendo lentamente no processo sua hegemonia. No esquema analtico do autor entram fatoreseconmicos, polticos e sociais, alm dos tradicionais aspectos jurdicos e nanceiros. Entra ainda grandesensibilidade para a dimenso histrica, que o faz caracterizar o fenmeno do coronelismo como sistemarestrito a um momento especco de nossa vida poltica. Com isso, evita as anlises genticas que viam nahistria do pas, em sua cultura e sua histria, permanncias que o condenavam eterna infantilidadedemocrtica.

    A essas virtudes, o livro acrescentava um trao metodolgico que poderamos chamar de moderno,surgido aps a introduo das cincias sociais em nosso sistema universitrio. Ele pode ser denido comocombinao do tratamento terico e conceitual com cuidadosa pesquisa emprica. Em Coronelismo, apreocupao com a preciso conceitual e o esboo de uma teoria que poderamos chamar de mdioalcance (o sistema coronelista) combinam-se com o recurso aos dados quantitativos do IBGE, disponveisno censo de 1940 e nos anurios, aos Anais e Dirio do Congresso, e aos jornais da poca e s pesquisassociolgicas e antropolgicas que comeavam a ser produzidas. Educado na tradio bacharelesca,propensa ao juridicismo e ao ensasmo, sem treinamento ou estada no exterior de que se beneciaram,por exemplo, Gilberto Freyre e Srgio Buarque, sem recorrer a autores estrangeiros, cujas lnguasaparentemente no dominava, o rapazinho caipira de Carangola, como certa vez se deniu, no esforode se tornar titular da ctedra de Cincia Poltica da FNFi, produziu o primeiro trabalho moderno decincia poltica em nosso pas.

  • GNESE DE CORONELISMO

    Mais difcil do que apontar as inovaes do livro traar sua gnese, isto , o caminho percorridopelo autor em sua produo. Diante da escassez de informaes fornecidas por ele, tenho que merestringir a pequenas indicaes e algumas hipteses. Victor Nunes formou-se em 1936, aos 22 anos,bacharel em direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, instituio resultante da fuso, em1920, da Faculdade Livre de Cincias Jurdicas e Sociais com a Faculdade Livre de Direito da CapitalFederal. Embora exercendo simultaneamente, por necessidade nanceira, trabalho jornalstico, no podeno ter sido inuenciado pela forte presena na faculdade de professores de esquerda, como Lenidas deResende, contratado em 1932, depois de derrotar em concurso Alceu Amoroso Lima; Hermes Lima, queimps em 1933 outra derrota ao lder catlico; e Edgardo de Castro Rebelo, de gerao mais antiga.Hermes Lima tem quatro textos citados em Coronelismo, e foi posteriormente colega de Victor Nunes noSupremo Tribunal Federal, tendo sido, com este e Evandro Lins e Silva, aposentado compulsoriamenteem 1969. Edgardo de Castro Rebelo tambm citado na tese. Na Faculdade de Direito, segundodepoimento de Evaristo de Moraes Filho, todos os estudantes eram mordidos pelo marxismo.

    Coronelismo foi criticado, em chave marxista, por Paul Cammack, sob a alegao de que o autor viaos coronis apenas como atores polticos, no como produtores, quer dizer, no como classe social. Noentanto, est claro no texto que eles constituem uma classe social, e uma classe dominante, e que foi seuenfraquecimento como produtores que os levou a acordo com o poder estatal. H a, sem dvida,indicao da mordida marxista. A viso de classe no poderia ter tido origem no crculo de amizades doautor, composto de advogados, jornalistas e homens de governo. Muito menos da Faculdade Nacionalde Filosoa, onde predominavam professores integralistas, como lvaro Vieira Pinto e iers MartinsMoreira, ou tidos como simpatizantes, como Santiago Dantas, alm de militantes catlicosconservadores, como Alceu Amoroso Lima. A mordida marxista pode lhe ter inoculado tambm umgostinho por grandes esquemas interpretativos.

    Depois de trabalhar com Gustavo Capanema no Ministrio da Educao, Victor Nunes foi, porindicao do ministro, contratado em 1943 pela Faculdade Nacional de Filosoa, criada em 1939.Substitua o professor Andr Gross, que retornara Frana, como catedrtico interino da disciplina deCincia Poltica. A titularidade na ctedra exigia defesa de tese. Victor Nunes ps-se logo a trabalharintensamente na preparao das aulas e na feitura da tese. Foram, em suas prprias palavras, tempos deangstia verdadeira. Nas horas vagas, assistia a concursos para estudar a ttica dos arguidores. No hcomentrios seus sobre a convivncia com os colegas e sobre a possvel inuncia sobre seu trabalho.Comentou uma vez apenas sobre Manuel Bandeira, poeta de sua admirao, mas que nada tinha a vercom coronelismo. Depoimentos da poca armam que, na verdade, havia pouco contato entreprofessores. Contato ou no, alguns dos colegas so citados na tese. Um deles L. A. Costa Pinto,professor assistente da cadeira de sociologia. Dele, Victor Nunes aproveitou os estudos sobre a sociedaderural brasileira e sobre as lutas de famlia. Outro Jorge Kingston, catedrtico de estatstica que escreverasobre a concentrao da propriedade rural em So Paulo. Alceu Amoroso Lima, professor de literaturabrasileira, e Djacir Menezes, de economia poltica, tambm aparecem na bibliograa. Mas no parece quea citao desses colegas indicasse real inuncia. O mais provvel que apenas tenham fornecido suporte

  • anlise.Mais fcil explicar a escolha do tema. Victor Nunes nos d uma razo algo pedestre, talvez mesmo

    anedtica. Ao assistir s defesas, confessou ele, testemunhou o espetculo de trucidamento doscandidatos pelas bancas examinadoras. Notou que a ttica preferida dos examinadores para destruir oscandidatos era recorrer a generalidades, nas quais, em geral, eram especialistas. Imaginou evitar essetipo de ataque escolhendo um tema restrito que, em sua expresso, lhe permitisse enveredar pelosestreitos e sinuosos igaraps, longe do mar alto e fora do alcance dos couraados dos examinadores. Essetema foi o municpio e, dentro dele, o coronelismo. Seguramente, a escolha no se deveu apenas a umattica de defesa. Imagino duas outras razes para ela. A primeira era a prpria experincia de vida em suaterra natal, Carangola, localizada na Zona da Mata mineira, junto aos limites com Rio de Janeiro eEsprito Santo. Observando as disputas polticas em que o pai, misto de fazendeiro e comerciante, seenvolvia, pde sem dvida entender como funcionava a poltica local. Estudar o municpio era, assim, decerto modo, estudar sua prpria terra, quase um exerccio autobiogrco. A segunda razo que jexistia um bom nmero de estudos sobre municpios. Em Minas, havia o trabalho de Baslio deMagalhes, de 1924. Desse autor Victor Nunes incluiu no livro longa nota sobre a origem do termocoronelismo. Havia, sobretudo, os trabalhos escritos por Orlando M. Carvalho, o primeiro dos quais,Problemas fundamentais do municpio, sara em 1937 pela Cia. Editora Nacional. Orlando Carvalho,que mais tarde receberia Victor Nunes na Academia Mineira de Letras, tornou-se com o tempo grandeespecialista no tema. Usava sua Revista Brasileira de Estudos Polticos para divulgar artigos sobre o poderlocal, seus e de outros pesquisadores. Ele prprio conta que, assinando Orlando M. Carvalho, foi umavez inadvertidamente chamado por jornal do interior de Orlando Municipal de Carvalho. Coronelismocita nada menos que seis trabalhos seus.

    Mas da opo pelo tema do municpio poderia ter resultado mais uma monograa sobre omandonismo local, seguramente bem-feita, mas sem a marca da inovao. No estilo da literaturaexistente sobre o tema, a tese falaria sobre a legislao, as nanas, as lutas polticas, com sua violncia eseu folclore, as famlias dominantes e por a vai. No foi o que se passou. O que saiu de sua pesquisa foicoisa totalmente distinta. Por certo, o municpio continuou no centro da anlise, mas o alcance doestudo transbordou em muito seus limites. Victor Nunes deu um salto qualitativo no apenas nosestudos sobre municpios, mas tambm nas vrias tentativas at ento existentes de interpretar o Brasil.Enganou tanto a banca que alguns examinadores, como Pedro Calmon, no entenderam o sentido datese, no se deram conta de sua originalidade. Continuamos sem saber de onde veio a inspirao para anovidade do livro. O autor dialogou com os autores brasileiros de sua poca, no recorreu a nenhumlivro de estrangeiro, buscou fugir de muita especulao e, no entanto, produziu Coronelismo. At quemaiores informaes surjam para elucidar o problema, preciso concluir que a novidade se deveu felizinspirao de um dedicado e competente trabalhador intelectual.

    CORONELISMO HOJE

    Creio haver, no que foi dito at aqui, razes mais que sucientes para justicar esta nova edio, a

  • stima, do livro. No entanto, no quero terminar sem acrescentar razo adicional. Preencher os requisitospara ocupar a ctedra foi o motivo imediato do trabalho. H na tese e, por sinal, em toda a obra e navida pblica de Victor Nunes, uma como metateoria, um valor mais alevantado, que vai expresso nottulo original, rebaixado, por razes editoriais, a subttulo O municpio e o regime representativo noBrasil. Para alm do coronelismo que, por sua denio, j era coisa do passado, havia a preocupaomaior com a implantao no Brasil de um autntico sistema representativo, isto , da democraciapoltica. Escrevendo ao nal do Estado Novo, quando renasciam as esperanas de avanos democrticos,Victor Nunes via no coronelismo muito mais do que um tema de pesquisa. Via nele um dos sintomas dofalseamento da representao. O momento poltico lhe transmitia ainda otimismo em relao ao futuroda democracia, distanciando-o da maioria dos pensadores da dcada de 1930. Estes, ou no acreditavamna democracia, caso de defensores do Estado Novo como Francisco Campos, Azevedo Amaral, OliveiraViana, ou eram cticos a seu respeito, como Srgio Buarque de Holanda.

    Victor Nunes, embora tivesse sido funcionrio do Estado Novo, tambm se afastou dos defensoresdo regime ao no colocar nas mos do Estado a liderana de nosso processo de modernizao. De acordocom suas premissas, o processo dependia da transformao do mundo rural, da urbanizao, dalibertao, pela educao e pela abertura do mercado de trabalho, da massa dos trabalhadores epequenos proprietrios rurais do domnio econmico e poltico dos coronis. A democratizao plena,podemos acrescentar hoje, s ser alcanada quando estiver plenamente constitudo um corpo decidados independentes capaz de dirigir os governos pela representao. Longo caminho foi percorrido,mas o alvo ainda est longe de ser atingido, na medida em que a plenitude da cidadania ainda nochegou a todos os recantos e a toda a populao do pas. Enquanto isso no se vericar, os valoresdemocrticos que informaram Coronelismo continuaro vivos a nos desaar com novas tarefas. VictorNunes mirava mais alm que sair, analiticamente, do igarap do municpio para o mar alto da vidanacional, mirava o mundo dos valores universais da liberdade e da democracia. Em 1969, pagou com aaposentadoria compulsria a fidelidade a esses valores.

    Como observou Orlando Carvalho, esse universalismo de Victor Nunes, por surpreendente que aarmao possa parecer, seria um trao comum aos mineiros. o que expressam os versos de um colegado autor de Coronelismo no Ministrio da Educao, tambm mineiro de uma cidadezinha do interior:Tenho apenas duas mos/ e o sentimento do mundo.

    Janeiro de 2012

  • Prefcio terceira edio

    Alberto Venncio Filho

    Habent sua fata libelli. Os livros tm o seu destino. O livro Coronelismo, enxada e voto Omunicpio e o regime representativo no Brasil foi publicado pela primeira vez como tese universitria paraprovimento da cadeira de poltica da Faculdade Nacional de Filosoa da Universidade do Brasil em1948, sob o ttulo O municpio e o regime representativo no Brasil Contribuio ao estudo docoronelismo, e divulgado com o novo ttulo em 1949 em edio comercial. Alcanando grande sucesso,s em 1975 foi reeditado, tendo ainda merecido em 1977 uma edio em ingls pela CambridgeUniversity Press, com o ttulo de Coronelismo: municipality and representative government in Brazil.Desde 1975 desapareceu das livrarias.

    Ao contrrio de Os Sertes de Euclides da Cunha, publicado em 1902 e hoje na 37a edio,Coronelismo, enxada e voto cou inacessvel por esse longo tempo, e se equipara, assim, a outra grandeobra de historiograa brasileira: Dom Joo VI no Brasil, de Oliveira Lima, publicada em 1908, comsegunda edio em 1945, e s recentemente reeditada.

    A presente reedio de Coronelismo, enxada e voto reproduz integralmente o texto original. O autor,para a segunda edio, nada quis alterar, considerando que o livro descrevia com delidade ummomento da vida poltica brasileira, e que poderia permanecer como exemplo desse momento. Essasegunda edio de 1975 foi feita quase sua revelia. Em carta de 2 de agosto de 1974 a um amigo, diria: possvel mesmo que eu me anime a reler meu livro, o que no z por inteiro, desde ento, como no liat hoje a traduo inglesa. A obra est ligada ao magistrio de Victor Nunes Leal, professor de polticacomo atividade preponderante, desde 1949 at 1956. Naquele ano foi designado chefe da Casa Civil dopresidente Juscelino Kubitschek e depois nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1960,quando se transferiu para Braslia; injustamente aposentado em 1969, voltou a exercer a advocacia atfalecer, em 1985.

    necessrio situar o livro no exato contexto, bem como mencionar as origens do autor e ascircunstncias que o levaram ao exerccio da cadeira de poltica e preparao da tese que se converteuno livro famoso.

    Nascido em Carangola, Minas Gerais, em 1914, lho de agricultor tornado comerciante com

  • ascendncia na comuna, os episdios da infncia devem ter sido um dos motivos da escolha do tema.Raul Machado Horta caracterizou bem essa circunstncia:

    A atrao de Victor Nunes Leal pelo coronelismo e a congurao sistemtica de seu comportamento pode ser exemplicada porlembranas de infncia na mata mineira, regime que desenvolveu o sistema do poder e os processos polticos do coronelismo.Lembranas que se xaram no fundo da conscincia para mais tarde, na idade adulta, adquirirem nitidez na anlise objetiva dofenmeno poltico.

    Diculdades paternas levaram-no a vir estudar no Rio, morando com um grande advogado, PedroBatista Martins. Diplomou-se em direito em 1936, ao mesmo tempo em que exercia o jornalismo;formado, continuaria a trabalhar com seu mentor. O anteprojeto do Cdigo de Processo Civil de 1939,que unicou o processo civil, foi de autoria de Pedro Batista Martins, e Victor Nunes Leal colaborounesse trabalho. Convm assinalar que em volume do Cdigo Comentado, publicado naquele mesmoano, consta o nome de Victor Nunes Leal, jovem advogado de 25 anos, ao lado do de Pedro BatistaMartins.

    No exerccio do jornalismo, indicado por Olmpio Guilherme para integrar a equipe do ministroGustavo Capanema na pasta da Educao, cujo gabinete era dirigido por Carlos Drummond de Andradee composto de intelectuais como Peregrino Jnior, Leal Costa, Flavio Miguez de Melo e Joo Neder, etinha como frequentador assduo Rodrigo M. F. de Andrade, responsvel pelo Servio do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional.

    Anos antes fora extinta a Universidade do Distrito Federal, incorporadas algumas das unidades Faculdade Nacional de Filosoa da Universidade do Brasil. O ministro Capanema tinha interesse emdesenvolver aquela unidade de ensino, que no possua quadros xos de professores, com algunsprofessores visitantes franceses e catedrticos interinos. Por indicao do reitor Raul Leito da Cunha, foinomeado em 1943 diretor da faculdade um jovem professor de direito civil, que se destacaria no cenriointelectual e poltico do pas Francisco Clementino San Tiago Dantas.

    Regia a cadeira de poltica o professor Andr Gross, que posteriormente faria brilhante carreirajurdica como juiz da Corte Internacional de Justia de Haia. Com a guerra, como muitos de seuscolegas, Andr Gross foi participar do Movimento da Frana Livre. A cadeira, pois, deveria serpreenchida com um catedrtico interino. No se conhecem bem os motivos pelos quais Victor NunesLeal foi convidado para a funo, mas o fato que, nomeado, empenhou-se a fundo nas atividadesdocentes.

    Consta que, inicialmente, os alunos o receberam com certa reserva; mas logo ele venceu essaresistncia, dedicando-se ao estudo da disciplina e preparando a tese de concurso.

    Ele comentaria:

    Para iniciar meu curso na Faculdade Nacional de Filosoa, tive de abandonar a advocacia: urgia dar tempo integral ao preparo dasaulas e dos trabalhos escolares. Foi um perodo de angstia verdadeira, que s fora de tenacidade eu pude transpor.

    E diria em outro passo:

  • Outra fase de esforo mais intenso, em que a advocacia foi sacricada, veio com os estudos para elaborao da tese de concurso.Eles me consumiram trs anos, acrescidos de seis meses, a contar do edital de concurso, para redao, reviso e impresso do livro.

    Victor Nunes Leal explicaria mais de uma vez a escolha do tema. Em primeiro lugar, preparando-separa o concurso, assistiu a vrias arguies, e o impressionou o fato de os examinadores semprequestionarem as generalizaes tericas, quase sempre apressadas.

    Assim, disse:

    Evitei na minha tese de concurso temas tericos, procurando compreender com o mximo de objetividade as caractersticas de umfenmeno da nossa realidade poltica coronelismo em suas conexes com o funcionamento da federao brasileira, com nfaseespecial no relacionamento dos Municpios com os Estados.

    A banca de concurso foi constituda de dois professores da casa, Djacir Menezes, de economiapoltica, recentemente concursado, e Josu de Castro, de geograa humana, e trs professores de fora de direito , Pedro Calmon, Bilac Pinto e Oscar Tenrio.

    Na nova instituio de ensino, por inuncia dos professores de outras faculdades, especialmente dedireito, o concurso se ressentia ainda do velho estilo coimbro, em que o examinador procurava destruira tese para anal lhe dar a nota mxima. O concurso no discrepou do sistema, em que mais aguerridose mostrou Bilac Pinto, amigo e colega de Leal na redao da Revista de Direito Administrativo,manifestando dvidas sobretudo na metodologia e na utilizao dos dados estatsticos; mas anal abanca conferiu o grau mximo.

    Em carta ao amigo que lhe ofertara um volume do Coronelismo, encontrado em sebo com asanotaes de Oscar Tenrio, comentaria:

    O seu achado me repe, como numa fotograa esmaecida, no salo da velha Faculdade Nacional de Filosoa, com livrosenleirados minha frente e ao lado uma ampla mala cheia de outros que ento nem cheguei a consultar. Voltam-me os calafriosdas crticas mais contundentes ou mais difceis de responder.

    Ouo de novo as palavras iniciais de Pedro Calmon: Disse Capistrano de Abreu de Pereira da Silva que ningum poderiaignorar completamente a histria do Brasil sem ter lido sua obra. Tambm lhe digo, professor Victor Nunes Leal, que ningumpoder ignorar completamente o que seja o coronelismo sem ter lido sua tese.

    Quase afundei com a risada que sacudiu o auditrio, mas, pronto, me preparei para pagar na mesma moeda, quando me couberesponder: Ilustrssimo Professor Pedro Calmon. A admirao e o respeito de que merecedor no me impedem de lhe devolver,com a devida vnia, o dito de Capistrano de Abreu. Ningum poder ignorar completamente o que seja a minha tese sem ter ouvidoa arguio que V. Exa. acaba de fazer. Os risos da assistncia compensaram meu desalento inicial, mas a chamada de cada um dosexaminadores reabria minha ansiedade.

    Exerceu at 1960 o ensino de poltica na Faculdade Nacional de Filosofia. Diria com modstia:

    Nunca passei de um professor dedicado e srio, mas discreto e sem pretenses, pela minha prpria condio de autoridade, pelapouqussima familiaridade com as lnguas estrangeiras, pela carncia de bibliograa e pela nenhuma frequncia a cursos de ps-graduao, seja no exterior, seja no Brasil.

  • Comentaria ainda:

    O penoso sacrifcio quando acumulei a ctedra com as funes de chefe da Casa Civil da Presidncia da Repblica: eu precisavareunir dois salrios para cobrir minhas despesas acrescidas, j que a mordomia da poca se limitava ao carro ocial com motoristae gasolina. Consegui na faculdade o primeiro horrio, bem cedo, mas assim mesmo, ao sair da classe frequentemente encontravarecados do infatigvel madrugador que era o presidente Juscelino.

    A tese de concurso, publicada em edio comercial com o ttulo sugerido por um amigo, opublicitrio Emil Farhat, obteve grande xito, por se tratar de um trabalho pioneiro que apresentavametodologia nova.

    O historiador Francisco Iglesias foi o primeiro a destacar-lhe a importncia, em resenha publicadana Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em outubro de 1950. Emboraacoimasse o ttulo de um tanto sensacionalista, sugerindo propaganda ou polmica, comenta:

    Trata-se de obra objetiva feita de conformidade com o princpio que deve presidir a pesquisa social, sem qualquer intromisso dejulgamento ou ponto de vista comprometido. O autor s se preocupou por compreender uma pequena parte de nossos males,deixando a outros a tarefa de dedicar o remdio, mas o ensasta mostra nesse estudo a informao de que dotado, ampla eslida. Com boa linguagem, adota planos positivos de bons resultados e que se deve louvar, sobretudo com clareza. O texto contmquase sempre apenas o essencial.

    E conclui:

    Com esse livro, Victor Nunes Leal enriquece a sua obra de jurista e cientista poltico, ao mesmo tempo que d valiosa colaboraoaos estudos de histria de poltica entre ns.

    Os comentrios elogiosos se sucedem. Baslio de Magalhes, que colaborara com nota sobre aetimologia da palavra coronelismo, diria em carta:

    A sua contribuio ao estudo do coronelismo vai certamente marcar poca em nossa escassa literatura histrica-jurdica e poltico-social. Voc aproveitou bem todo material que se lhe deparou, comentando muito apropositadamente e em muitas vezes combastante originalidade.

    Fernando de Azevedo afirmaria que:

    um trabalho excelente sobre todos os aspectos: bem construdo, bem pensado e documentado. trabalho que projetou uma luzviva com suas anlises seguras e penetrantes, tratando-se de contribuio de primeira ordem para inteligncia da vida poltica dopas.

    Hlio Viana armaria que o livro constitui, no gnero, a maior e melhor pesquisa at hoje feita emnosso pas.

    Francisco de Assis Barbosa diria anos depois que

  • Victor Nunes Leal abrira o caminho para o aprofundamento do tema do coronelismo, num livro que nasceu clssico e por issomesmo desde logo consagrou o neologismo. Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1949, mas que s em 1975 teria uma segundaedio, depois de insistentemente solicitado por professores e estudantes, muitos dos quais tomaram a iniciativa de tirar cpiasxerogrficas da primeira edio e distribu-las em aulas e seminrios universitrios.

    Nesse mesmo ano, Otto Lara Resende afirmaria:

    Mais de um quarto de sculo decorrido, o livro continua atual e copioso de lies, indispensvel ao entendimento do Brasil.

    O livro obteve grande sucesso e repercusso nos meios universitrios, sobretudo nos cursos decincias sociais, por marcar um divisor de guas. At a dcada de 1930 os estudos de poltica eram deautoria de autodidatas, alguns bastante importantes como, entre outros, Tavares Bastos, Alberto Torres eOliveira Viana, mas que se ressentiam da falta de uma cultura sistemtica e do convvio universitriocom a literatura especializada. Provenientes das faculdades de direito, que naquele momentomonopolizavam os estudos sociais, essas obras se emparelhavam com outros livros de realce estritamentede direito pblico, como Poder Judicirio, de Pedro Lessa, e O Poder Executivo na Repblica Brasileira,de Anibal Freire.

    Na dcada de 1930 inicia-se em bases universitrias o ensino das cincias sociais, e as faculdades dedireito, tmidas e omissas, aferradas tradio coimbr, no tiveram condies de manter a hegemoniadesses estudos, e passaram o basto para outras instituies de ensino superior. Em So Paulo, ArmandoSales de Oliveira, sob a inspirao de Julio Mesquita Filho e Fernando Azevedo, criava na Universidadede So Paulo a Faculdade de Filosoa, Cincias e Letras. No ento Distrito Federal, Anisio Teixeiraorganizava a Universidade do Distrito Federal, com as escolas de Filosoa e Letras e de Economia eDireito.

    Para esses estudos, num esforo honesto e prudente, foram contratados professores estrangeiros, quevieram iniciar em bases srias o ensino das cincias sociais no Brasil, tendo sido substitudos depois porprofessores brasileiros.

    Victor Nunes Leal foi um desses substitutos; para o concurso, apresentou tese transformada emlivro.

    Trata-se de monograa modelar, com a viso dos problemas da organizao municipal no pas, compleno domnio das fontes histricas, amplamente decantada por uma mente privilegiada, e que alia comrara percucincia o ponto de vista da cincia poltica e o ponto de vista jurdico. A no introduo nosdepartamentos de cincias sociais do estudo do direito pode ser apontada como uma das causas remotasde decincias nos trabalhos produzidos por esses departamentos mesmo nos mais importantes. Aconjugao da anlise da cincia poltica e do direito constituiu um dos mritos principais dessa obra.

    A atividade intensa de Victor Nunes Leal no ensino da cincia poltica no durou muito, pois em1956 ele ascendeu chefia da Casa Civil da Presidncia da Repblica, tarefa que o absorveria ao extremo.Em 1960 assumiu em Braslia o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.

    Teve ento funo destacada na organizao da Universidade de Braslia, coordenando o curso-tronco de direito, economia e administrao, embrio da futura Faculdade de Estudos Sociais Aplicados,

  • lecionando inicialmente introduo cincia poltica e, posteriormente, direito constitucional, mas sem adedicao que os encargos da magistratura lhe obstavam.

    Na dcada de 1950, escreveria o importante trabalho A diviso de poderes no quadro poltico daburguesia, em que analisa a concepo do Estado individualista e liberal, baseado na doutrina deMontesquieu, contrapondo-a sociedade moderna, com os problemas de urbanizao e da tecnologia.Exporia que:

    A teoria da diviso dos poderes est condenada no mundo contemporneo, pois nasceu para atender a um reclamo profundo daconscincia humana, que a proteo das liberdades do homem e do cidado. O problema, pois, que se coloca nos dias de hoje ode descobrir uma nova tcnica em proteo das liberdades humanas.

    E conclui:

    Este o grande desao a que o nosso tempo lana os homens de estudo e de ao: o desao a sua capacidade de organizaradequadamente a felicidade humana.

    Em 1958 proferia aula inaugural na Faculdade de Filosoa sob o ttulo Objeto da cincia poltica,que sntese expressiva sobre a matria.

    Pode-se armar que o livro de Victor Nunes Leal foi responsvel pelo interesse que o tema docoronelismo passou a desfrutar. Em 1965, dois jovens intelectuais pernambucanos, Marcos ViniciusVilaa e Roberto Cavalcante de Albuquerque, publicavam o livro Coronel, coronis, anlise do processode ruptura da sociedade agropecuria do Nordeste brasileiro feita atravs de pesquisa de quatro casosrecentes de domnio econmico social e poltico do coronelismo, os coronis Chico Romo, Jos Albino,Chico Herclio e Veremundo Soares.

    No ano seguinte, Eul-Soo Pang publicava em ingls o volume traduzido com o ttulo Coronelismo eoligarquias (1889-1934), um estudo do fenmeno do coronelismo na Bahia na Primeira Repblica. EMaria Isaura Pereira de Queiroz trataria do mandonismo na vida poltica no Brasil.

    Entretanto, permanecia totalmente esgotado o livro e, quase contra a vontade do autor, que exigiuum prefcio de Barbosa Lima Sobrinho, era editado em 1975 pela editora Alpha Omega, na sriePoltica, dirigida por Paulo Srgio Pinheiro e com conselho orientador de vrios elementos prestigiososdas cincias sociais.

    No prefcio, (reproduzido nesta edio), dizia Barbosa Lima Sobrinho, que:

    o livro de Victor Nunes Leal desde o seu aparecimento passou a valer como um clssico de nossa literatura poltica. No umaglomerado de impresses pessoais, mas uma anlise profunda de realidades que aprofundaram suas razes na organizao agrriacomo produto espontneo do latifndio.

    Victor Nunes Leal, entretanto, foi sensvel publicao em ingls, solicitada pelo professor MalcomDeas para a Cambridge University Press na srie de Estudos Latino-Americanos. No prefcio acentuava-se que o livro representa um marco divisrio dos estudos de cincia poltica no Brasil, constituindo o

  • incio da fase universitria desses estudos.Na nota do editor, o professor Malcom Deas apontava que o livro

    era tambm um texto essencial para o estudo do caciquismo no mundo hispnico e mediterrneo. O material de Victor Nunes Leal a histria do Brasil, as leis do Brasil, mas a investigao modelar oferece orientao e estmulo na rea das relaes entre os nveissuperior de governo e as localidades, as fronteiras do poder pblico e privado e sua interdependncia em solos pouco frteis, seja noBrasil, seja no exterior.

    As atividades da magistratura e posteriormente da advocacia no permitiram que Victor Nunes Lealvoltasse ao tema; assim, a segunda edio, como a edio inglesa, foi publicada sem nenhuma alteraoem relao edio original.

    Em 1984, ao receber o ttulo de professor emrito da Universidade de Braslia, declararia que:

    medida que envelheceu o tema em termos acadmicos, outros estudiosos se preocuparam com ele e de todos os lados vieramcrticas. At hoje no tive tempo nem disposio de as reunir e analisar, numa tentativa de me defender.

    De fato, instado insistentemente, no aceitou convite em 1984 para escrever o verbete sobrecoronelismo do Dicionrio Histrico-Biogrco Brasileiro organizado pelo Centro de Pesquisas eDocumentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC), em 1984, tarefa de que se desincumbiucom proficincia o professor Jos Murilo de Carvalho.

    Em maro de 1980, o Instituto Universitrio de Pesquisas no Rio de Janeiro (IUPERJ) promoverauma homenagem a Victor Nunes Leal. Na ocasio, o professor Jos Murilo de Carvalho, com o estudoEm louvor de Victor Nunes Leal, homenageou o autor, na inaugurao do programa de doutorado doIUPERJ. A escolha se deu no consenso do corpo docente pela contribuio do livro, como o exemplo deintegridade e coerncia, de homem pblico e de profissional.

    Acentuava que o livro tornara-se clssico, o que tem a desvantagem de coloc-lo acima da crtica,impondo-se a leitura que teste novos conhecimentos. Apontava que o Coronelismo foi a primeira obraimportante da moderna sociologia poltica brasileira, no pela temtica, pois j fora abordado por vriosautores desde o Imprio, mas pela abordagem e metodologia, e pela quebra do estilo de analisar osfenmenos brasileiros atravs do estilo dicotmico em polaridades. Por outro lado, avanava na maiorintegrao entre a cincia poltica e a sociologia, e mesmo a econmica, mostrando a estrutura agrriacom o sistema de estraticao social e insero na economia primria. Um terceiro ponto de inovaoera metodolgico, com a integrao da teoria e da pesquisa.

    Naquela ocasio, Victor Nunes faria tentativa de explicao do livro, com o expressivo ttulo de Ocoronelismo e o coronelismo de cada um. Agradecendo as referncias de Jos Murilo de Carvalho, queteria revelado compreenso mais profunda do que alguns outros especialistas do tema, procura mostrarque as crticas derivavam de diferena de enfoque do problema e de diferentes conceituaes do que sejacoronelismo.

    Mostra que a anlise feita por Eul-Soo Pang difere profundamente da abordagem que utilizou e que

  • o coronel entrou na anlise por ser parte do sistema; mas o que mais preocupava era o sistema, a estrutura e a maneira pelas quaisas relaes do poder se desenvolviam a partir do municpio, mostrando que na Primeira Repblica a gura do senhor absoluto jdesaparecera por completo.

    E armaria mais adiante que se tivesse de reescrever o livro manteria suas linhas essenciais, emboracorrigindo deficincias de informao e retificando pormenores.

    Absorvido inteiramente pelas atividades forenses, Victor Nunes Leal no foi insensvel aos apelosdos estudiosos das cincias sociais. Em 1976 prefaciava o livro de Maria do Carmo Campelo de Souza,Estado e partidos polticos no Brasil (1930-64). Ali deu mostra de sua competncia no assunto, tecendoconsideraes extremamente relevantes sobre o processo poltico.

    Em 1980 presidiria uma das sesses do Seminrio sobre Direito, Cidadania e Participao,organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contempornea (CEDEC) e pelo Centro Brasileiro deAnlise e Planejamento (CEBRAP), que foi uma das primeiras manifestaes de anlise, naqueles temposperigosos, do problema dos direitos humanos. Presidiu a sesso de Direito e Economia, na qual foramexpositores Clovis Cavalcante e Pedro Sampaio Malan.

    Participou, em 1981, da banca examinadora de doutorado da professora Maria Victoria deMesquita Benevides sobre a tese A UDN e o udenismo, junto com os professores Assis Simo, BolivarLamounier, Maria do Carmo Campelo de Souza e Francisco Weort. Victor Nunes Leal iniciou aarguio timidamente, alegando estar muito tempo afastado dos estudos polticos, mas na verdaderealizou arguio excelente, com domnio completo dos problemas do sistema partidrio de que tratava atese.

    No leito de morte, o ltimo livro que leu foi a obra de Lucia Hiplito sobre o PSD De raposas areformistas.

    Concluindo o texto O coronelismo e o coronelismo de cada um, Victor Nunes Leal falava daoportunidade de expressar-se sobre o assunto que me custou na poca vrios anos de pesquisa emeditao e concluiria: o que me consola pensar que quando estiver aposentado das atuaisatividades, ainda me reste algum sopro de vida para voltar aos estudos polticos.

    Victor Nunes Leal faleceu cinco anos depois, em plena atividade de intensa advocacia, e no pderealizar esse propsito.

    Mas o Coronelismo, enxada e voto, publicado pela primeira vez h quase cinquenta anos, constituium marco fundamental dos estudos polticos entre ns, e sua reedio constitui contribuio de maiorimportncia.

    Janeiro de 1997

  • Prefcio segunda edio

    Barbosa Lima Sobrinho

    Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, foi publicado em 1949, sem indicao do editor,sob a responsabilidade da Revista Forense, que gurava como impressora. Trazia, como primeira nota,uma contribuio preciosa do notvel historiador que era Baslio de Magalhes, o qual, tendo casa emLambari e militando na poltica de Minas Gerais, conhecera de perto a inuncia e o poder doscoronis. guisa de prefcio, procurou analisar o sentido do vocbulo coronel, que os dicionriosapresentavam como brasileirismo, pela nova acepo com que se apresentara em nosso pas, emboratraduzindo uma realidade quase universal, como expresso de liderana poltica.

    A Guarda Nacional, criada em 1831 para substituio das milcias e ordenanas do perodocolonial, estabelecera uma hierarquia em que a patente de coronel correspondia a um comandomunicipal ou regional, por sua vez dependente do prestgio econmico ou social de seu titular, queraramente deixaria de gurar entre os proprietrios rurais. De comeo, a patente coincidia com umcomando efetivo ou uma direo, que a Regncia reconhecia, para a defesa das instituies. Mas, pouco apouco, as patentes passaram a ser avaliadas em dinheiro e concedidas a quem se dispusesse a pagar opreo exigido ou estipulado pelo poder pblico, o que no chegava a alterar coisa alguma, quando essafaculdade de comprar a patente no deixava de corresponder a um poder econmico, que estava naorigem das investiduras anteriores.

    Recebidas de graa, como uma condecorao, acompanhada de nus efetivos, ou adquiridas porfora de donativos ajustados, as patentes traduziam prestgio real, intercaladas numa estrutura socialprofundamente hierarquizada como a que costuma corresponder s sociedades organizadas sobre asbases do escravismo. No fundo, estaria o nosso velho conhecido, o latifndio, com os seus limites e o seupoder inevitvel.

    A presena e a inuncia do potentado local j estavam registradas em Antonil, na sua justamentefamosa Cultura e opulncia do Brasil, quando dizia que o ser senhor de engenho ttulo, a que muitosaspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. O prprio Antonil oaproximava da posio dos dalgos, no reino de Portugal. Mas levando a vantagem de apoiar-se a umabase slida, que era a propriedade territorial, mais do que o favor e as benesses da autoridade rgia,

  • numa fase em que no poucos eram os nobres que decaam por fora da dilapidao de fortunashereditrias.

    Alberto Torres estudara de perto a fora desses potentados rurais, que ele colocava como eixo deuma vegetao de caudilhagem, que em torno dele ia crescendo, como resultante de dependnciasirresistveis. E dele o conceito de que a base das nossas organizaes partidrias a politicagem local.Sobre a inuncia dos conselhos eleitorais das aldeias, ergue-se a pirmide das coligaes transitrias deinteresses polticos mais fracos na segmentao do Estado, dependentes dos estreitos interesses locais:tnue, no governo da Unio, subordinada ao arbtrio e capricho dos governadores. Mas tendo sempre,como ncleo essencial, o cl rural, ou o potentado, que no raro se enfeitava com a patente de coronel,concedida pelo poder pblico ou outorgada pelo povo, numa espcie de plebiscito que, pelo fato de serespontneo, j dispensava, por si mesmo, o diploma ocial e o fardamento das paradas. Coronel poreleio um fenmeno raro na hierarquia militar, a exemplo daquele heri brasileiro, Abreu e Lima,que parecia ter mais prazer em ser chamado de General das Massas do que de General de Bolvar. O clrural compe a parte essencial da sociologia de Oliveira Viana que, inspirado em Le Play, dele fazia aunidade bsica de sua doutrinao.

    O livro de Victor Nunes Leal, desde o seu aparecimento, passou a valer como um clssico de nossaliteratura poltica. No um aglomerado de impresses pessoais, mas uma anlise profunda derealidades que aprofundaram suas razes na organizao agrria como produto espontneo dolatifndio. Seu estudo levou em conta a presena do municpio, assim como o relacionamento com osdemais poderes pblicos do pas, o estadual e o federal. A base do poder vem, seno da propriedade, pelomenos da riqueza. Se o potentado local no possui recursos sucientes, no tem como acudir snecessidades de seus amigos e muito menos s despesas eleitorais, que muitas vezes se sente obrigado asatisfazer de seu prprio bolso, embora a criao de partidos polticos tenha concorrido para lhe atenuaros sacrifcios, atravs do fundo partidrio, formado com as subscries de grandes rmas, interessadasem manter boas relaes com os poderes pblicos. Eleies sempre se zeram com dinheiro, na base deum rateio, que levava em conta o nmero de votos arregimentados. Os melhores cabalistas costumavamdividir os Estados em duas zonas, uma a dos comcios, sensveis propaganda em praa pblica, outra ados cochichos, na dependncia das instrues recebidas dos potentados locais. O que se pode observar,com a expanso dos instrumentos de propaganda, uma reduo considervel da rea dos cochichos,em proveito da rea dos comcios.

    Nem sempre, porm, a vida poltica signicava apenas sacrifcio e despesas para o coronel. MarcosVincius Vilaa e Roberto de Albuquerque, num livro excelente, como observao, 1 revelam que no raroo coronel dilatava seus domnios territoriais, custa de propriedades usurpadas, aos adversrios ou aosprprios amigos, pela presso de cabras, que o coronel mobilizava, para criar, no dono de pequenaspropriedades, a convico de que era melhor vend-las do que abandon-las, pela impossibilidade denelas continuarem. No sistema do coronelismo, aqueles dois autores conrmavam a observao deVictor Nunes Leal, de que o que nele se traduzia era uma hegemonia econmica, social e poltica, queacarretava, por sua vez, o lhotismo, expresso num regime de favores aos amigos e de perseguies aosadversrios. Mas a paixo pela terra cresce tanto que leva o coronel a incluir na expanso de suapropriedade as terras dos prprios correligionrios, tranquilizando a sua conscincia com a avaliao

  • exagerada dos preos espoliativos que oferece.Erraria, porm, quem s quisesse observar no coronelismo os aspectos negativos de sua presena

    ou de sua ao. Para manter a liderana, o coronel sente a necessidade de se apresentar como campeode melhoramentos locais, seno para contentar os amigos, pelo menos para silenciar os adversrios. E oprestgio poltico de que desfruta o habilita como advogado de interesses locais.

    Victor Nunes Leal tem razo quando observa que o coronelismo corresponde a uma quadra daevoluo de nosso povo. E uma quadra, que, por isso mesmo, nunca se reproduz ou se repete, s se podeencontrar bem reetida na velocidade dos instantneos. Da, talvez, a hesitao do autor em concordarcom uma segunda edio do livro, pelo desejo de transform-lo ou de adapt-lo s novas condies dasociedade brasileira. Mas, se quisesse afeio-lo a essas novas condies, teria necessariamente queescrever outro livro. E o que se desejava era justamente que se reeditasse o livro em sua forma original,como instantneo ntido, fotografando tambm realidades o que constitui o mrito da obra publicadaem 1949.

    O coronelismo, em 1975, no ser a mesma cousa que o de 1949. Dia a dia o fenmeno social setransforma, numa evoluo natural, em que h que considerar a expanso do urbanismo, que libertamassas rurais vindas do campo, alm de modicaes profundas nos meios de comunicao. A faixa doprestgio e da inuncia do coronel vai minguando, pela presena de outras foras, em torno das quaisse vo estruturando novas lideranas, em torno de prosses liberais, de indstrias ou de comrciosventurosos. O que no quer dizer que tenha acabado o coronelismo. Foi, de fato, recuando e cedendoterreno a essas novas lideranas. Mas a do coronel continua, apoiada aos mesmos fatores que a criaramou produziram. Que importa que o coronel tenha passado a doutor? Ou que a fazenda se tenhatransformado em fbrica? Ou que os seus auxiliares tenham passado a assessores ou a tcnicos? Arealidade subjacente no se altera, nas reas a que cou connada. O fenmeno do coronelismopersiste, at mesmo como reexo de uma situao de distribuio de renda em que a condioeconmica dos proletrios mal chega a distinguir-se da misria. O desamparo em que vive o cidado,privado de todos os direitos e de todas as garantias, concorre para a continuao do coronel, arvoradoem protetor ou defensor natural de um homem sem direitos.

    H os que acreditam que a televiso acabou com o coronel. Mas a televiso no se faz sentir nospleitos municipais, em que se constituem os poderes locais, justamente aqueles que mais de pertointeressam ao cidado do interior. O prprio rdio, com a sua maior divulgao, no leva ao eleitor aimagem dos oradores, num momento em que ele se defronta com a gura do coronel de seumunicpio. E ser com essas lideranas locais que tero de se entender os poderes federais e estaduais,para as composies polticas, de que vo depender. O que vale dizer que ainda no desapareceu aquelapirmide das coligaes transitrias de interesses polticos, a que se referia Alberto Torres. Continua,pois, o coronelismo, sobre novas bases, numa evoluo natural, condicionada pelos diversos fatoresque determinam o seu poder ou a sua autoridade. E para acompanhar essa evoluo que hnecessidade do excelente livro de Victor Nunes Leal, para um paralelo indispensvel.

    Foi o prprio autor que condicionou a sua concordncia com a reedio de seu livro minhapresena, no prefcio da nova edio. Para mim, era, decerto, uma grande honra o gurar numa obra detantos mritos, como a de Victor Nunes Leal. Mas o que acima de tudo concorreu para que eu acedesse

  • foi a certeza de que estava apenas concorrendo para que se tornasse de novo acessvel aos nossos leitoresuma obra fundamental para o conhecimento da realidade brasileira.

  • 1. Indicaes sobre a estrutura e o processo do coronelismo1

    PALAVRAS INTRODUTRIAS

    O fenmeno de imediata observao para quem procure conhecer a vida poltica do interior doBrasil o malsinado coronelismo. No um fenmeno simples, pois envolve um complexo decaractersticas da poltica municipal, que nos esforaremos por examinar neste trabalho.

    Dadas as peculiaridades locais do coronelismo e as suas variaes no tempo, o presente estudo spoderia ser feito de maneira plenamente satisfatria se baseado em minuciosas anlises regionais, queno estava ao nosso alcance realizar. Entretanto, a documentao mais acessvel e referente a regiesdiversas revela tanta semelhana nos aspectos essenciais que podemos antecipar um exame de conjuntocom os elementos disponveis.

    Como indicao introdutria, devemos notar, desde logo, que concebemos o coronelismo comoresultado da superposio de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econmicae social inadequada. No , pois, mera sobrevivncia do poder privado, cuja hipertroa constituiufenmeno tpico de nossa histria colonial. antes uma forma peculiar de manifestao do poderprivado, ou seja, uma adaptao em virtude da qual os resduos do nosso antigo e exorbitante poderprivado tm conseguido coexistir com um regime poltico de extensa base representativa.

    Por isso mesmo, o coronelismo sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre opoder pblico, progressivamente fortalecido, e a decadente inuncia social dos chefes locais,notadamente dos senhores de terras. No possvel, pois, compreender o fenmeno sem referncia nossa estrutura agrria, que fornece a base de sustentao das manifestaes de poder privado ainda tovisveis no interior do Brasil.

    Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo so alimentados pelo poder pblico,e isso se explica justamente em funo do regime representativo, com sufrgio amplo, pois o governo nopode prescindir do eleitorado rural, cuja situao de dependncia ainda incontestvel.

    Desse compromisso fundamental resultam as caractersticas secundrias do sistema coronelista,como sejam, entre outras, o mandonismo, o lhotismo, o falseamento do voto, a desorganizao dosservios pblicos locais.

    Com essas explicaes preliminares, passamos a examinar os traos principais da vida poltica dosnossos municpios do interior.

    A PROPRIEDADE DA TERRA ENTRE OS FATORES DA LIDERANA POLTICA LOCAL

    O aspecto que logo salta aos olhos o da liderana, com a gura do coronel ocupando o lugar demaior destaque. Os chefes polticos municipais nem sempre so autnticos coronis. A maior difusodo ensino superior no Brasil espalhou por toda parte mdicos e advogados, cuja ilustrao relativa, sereunida a qualidades de comando e dedicao, os habilita chea.2 Mas esses mesmos doutores, ou so

  • parentes, ou afins,3 ou aliados polticos dos coronis.4Outras vezes, o chefe municipal, depois de haver construdo, herdado ou consolidado a liderana, j

    se tornou um absentesta. S volta ao feudo poltico de tempos em tempos, para descansar, visitar pessoasda famlia ou, mais frequentemente, para ns partidrios. A fortuna poltica j o ter levado para umadeputao estadual ou federal, uma pasta de secretrio, uma posio administrativa de relevo, ou mesmoum emprego rendoso na capital do Estado ou da Repblica. O xito nos negcios ou na prossotambm pode contribuir para afast-lo, embora conservando a chea poltica do municpio: os lugares-tenentes, que cam no interior, fazem-se ento verdadeiros chefes locais, tributrios do chefe maior quese ausentou. O absentesmo , alis, uma situao cheia de riscos: quando o chefe ausente se indispecom o governo, no so raras as defeces dos seus subordinados. Outras vezes, ele prprio quemaconselha essa atitude, operando, pessoalmente, uma retirada ttica.

    Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primrio desse tipo de liderana ocoronel, que comanda discricionariamente um lote considervel de votos de cabresto. A fora eleitoralempresta-lhe prestgio poltico, natural coroamento de sua privilegiada situao econmica e social dedono de terras. Dentro da esfera prpria de inuncia, o coronel como que resume em sua pessoa, semsubstitu-las, importantes instituies sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdio sobre seusdependentes, compondo rixas e desavenas e proferindo, s vezes, verdadeiros arbitramentos, que osinteressados respeitam. Tambm se enfeixam em suas mos, com ou sem carter ocial, extensas funespoliciais, de que frequentemente se desincumbe com a sua pura ascendncia social, mas queeventualmente pode tornar efetivas com o auxlio de empregados, agregados ou capangas.5

    Essa ascendncia resulta muito naturalmente da sua qualidade de proprietrio rural. A massahumana que tira a subsistncia das suas terras vive no mais lamentvel estado de pobreza, ignorncia eabandono.6 Diante dela, o coronel rico. H, certo, muitos fazendeiros abastados e prsperos, mas ocomum, nos dias de hoje, o fazendeiro apenas remediado: gente que tem propriedades e negcios,mas no possui disponibilidades nanceiras; que tem o gado sob penhor ou a terra hipotecada; queregateia taxas e impostos, pleiteando condescendncia scal; que corteja os bancos e demais credores,para poder prosseguir em suas atividades lucrativas. Quem j andou pelo interior h de ter observado afalta de conforto em que vive a maioria dos nossos fazendeiros. Como costuma passar bem de boca bebendo leite e comendo ovos, galinha, carne de porco e sobremesa e tem na sede da fazenda umconforto primrio, mas inacessvel ao trabalhador do eito s vezes, gua encanada, instalaessanitrias e at luz eltrica e rdio , o roceiro v sempre no coronel um homem rico, ainda que no oseja; rico, em comparao com sua pobreza sem remdio. 7 Alm do mais, no meio rural, o proprietriode terra ou de gado quem tem meios de obter nanciamentos. Para isso muito concorre seu prestgiopoltico, pelas notrias ligaes dos nossos bancos. , pois, para o prprio coronel que o roceiro apelanos momentos de apertura, comprando ado em seu armazm para pagar com a colheita, ou pedindodinheiro, nas mesmas condies, para outras necessidades.

    Se ainda no temos numerosas classes mdias nas cidades do interior, muito menos no campo, ondeos proprietrios ou posseiros de nmas glebas, os colonos ou parceiros e mesmo pequenos sitiantesesto pouco acima do trabalhador assalariado, pois eles prprios frequentemente trabalham sob salrio.Ali o binmio ainda geralmente representado pelo senhor da terra e seus dependentes.8 Completamente

  • analfabeto, ou quase, sem assistncia mdica, no lendo jornais nem revistas, nas quais se limita a ver asguras, o trabalhador rural, a no ser em casos espordicos, tem o patro na conta de benfeitor. E dele,na verdade, que recebe os nicos favores que sua obscura existncia conhece.9 Em sua situao, seriailusrio pretender que esse novo pria tivesse conscincia do seu direito a uma vida melhor e lutasse porele com independncia cvica. O lgico o que presenciamos: no plano poltico, ele luta com o coronele pelo coronel. A esto os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organizaoeconmica rural.10

    CONCENTRAO DA PROPRIEDADE FUNDIRIA RURAL

    Para compreender melhor a inuncia poltica dos fazendeiros, to importante no mecanismo daliderana local, cumpre examinar alguns aspectos da distribuio da propriedade e da composio dasclasses na sociedade rural do Brasil. O recenseamento de 1940, as anlises parciais de seus resultados,elaboradas pela repartio competente, e as interpretaes de outros estudiosos armados de critrios nopuramente censitrios fornecem dados muito ilustrativos.

    Considerado o problema de conjunto, a concentrao da propriedade ainda , nos dias atuais, ofato dominante em nossa vida rural. A maior frequncia da pequena e da mdia propriedade em algunslugares explica-se por fatores diversos. No que toca a So Paulo, Caio Prado Jr. procurou enumer-losem estudo publicado h mais de dez anos. Os fatores que indicou, na ordem por ele prprio seguida eque no est na razo da importncia, foram os seguintes: 1) colonizao ocial, cujo principal objetivo,segundo os autorizados depoimentos recolhidos, era formar uma reserva de mo de obra para osfazendeiros; 2) colonizao particular, de menor relevo que a primeira, procurando ambas criarcondies capazes de atrair correntes imigratrias; 3) proximidade das grandes fazendas, a cuja ilharga sedesenvolvia a pequena propriedade como depsito de braos para a grande lavoura; 4) decomposio dafazenda, pelo esgotamento da terra, pela eroso, pelas pragas, pelas crises econmicas etc; 5) inunciados grandes centros urbanos, cujo abastecimento exige produo de artigos de subsistncia incompatveiscom a agricultura extensiva. Ao tratar da decadncia da fazenda, o autor notou, ainda, um pouco forade lugar, a presena da pequena propriedade nas zonas em que o regime de fazenda, encontrando terrasinferiores, no fez mais que passar, abrindo espao para o retalhamento e instalao da pequenapropriedade.11

    O trabalho citado, como j cou dito, refere-se especialmente a So Paulo. Em obra mais recente,relativa a todo o pas, o mesmo escritor atribui importncia primacial, na criao da pequenapropriedade, s correntes imigratrias, o que se verificou notadamente no extremo sul: Rio Grande, SantaCatarina e Paran. Em So Paulo, esse fator teve sua inuncia muito reduzida pela concorrncia dagrande lavoura cafeeira, que absorveu a maior parte dos imigrantes. A produo de verduras, frutas, avese ovos, ores etc. para abastecimento dos maiores centros urbanos e industriais foi de grandeimportncia para a implantao da pequena propriedade, no s em So Paulo, como tambm, de modogeral, embora com variaes, nos demais Estados. A decadncia das fazendas, mormente emconsequncia das crises econmicas e da agricultura depredadora que praticamos, tambm um fator

  • que no se limita a So Paulo, mas est generalizado pelo menos a toda a regio do caf: No seudeslocamento constante, a lavoura cafeeira ir deixando para trs terras cansadas e j imprestveis paraas grandes lavouras; essas terras depreciadas sero muitas vezes aproveitadas pelas categorias maismodestas da populao rural que nelas se instalam com pequenas propriedades. 12 O fato pode serfacilmente observado no Esprito Santo, Estado do Rio e Minas Gerais, em particular no vale do Paraba.Em outras regies, causas diferentes, de natureza local, tambm tero concorrido.

    Contudo, apesar do aumento numrico das pequenas propriedades no Brasil, a expresso percentualda concentrao da propriedade rural no tem diminudo. J notara o prof. Jorge Kingston, analisando ocenso agrcola e zootcnico de So Paulo, de 1934, que, ao invs de uma distribuio mais racional dapropriedade fundiria, se vericava um agravamento da concentrao agrria. 13 As razes dessacontradio devem ser encontradas na fragmentao, preferentemente, das propriedades mdias,14 narecomposio de grandes propriedades,15 compensando as que se parcelam, ou ainda na sobrevivncia degrandes fazendas, mesmo decadentes, pela substituio, por exemplo, da agricultura pela pecuria. 16 Acontiguidade de terrenos frteis e virgens, sobretudo no caso do caf, tem sido a condio primordial daformao de grandes fazendas, pela sua elevada produtividade, ainda que em regime de exploraoextensiva e predatria. Esse processo, porm, est em vias de atingir o seu termo nal, pelo menos em SoPaulo, onde o fenmeno assumiu propores gigantescas, depois de haver o caf, partindo da BaixadaFluminense, atravessado e esgotado uma parte considervel dos Estados do Rio de Janeiro e MinasGerais. A no ser que surjam novos fatores capazes de conduzir recomposio de grandes propriedades(como foi o caso do algodo) ou impedir que as existentes se desmembrem (como seria odesenvolvimento da pecuria, ou a introduo da grande explorao tipicamente capitalista, empregandotcnica avanada), so cada vez mais desfavorveis as condies de subsistncia da grande propriedade,pela atual precariedade das trs grandes lavouras extensivas do pas: cana-de-acar, caf e algodo.17

    No obstante essas perspectivas, ainda bvio o domnio da grande propriedade, nos dias quecorrem, como foi comprovado pelo censo agrcola de 1940, cujos dados o prof. Costa Pinto interpretouem trabalho recentssimo.18 Classicando as propriedades rurais segundo a rea, obteve ele os resultadosque assim resumimos:19

    REA % SOBRE O NMERO TOTAL % SOBRE A REA TOTAL

    Superpropriedades latifundirias(de 1000 ha e mais)

    1,46 48,31

    Grandes propriedades(entre 200 e 1000 ha, exclusive)

    6,34 24,79

    Mdias propriedades(entre 50 e 200 ha, exclusive)

    17,21 15,90

    Pequenas propriedades(entre 5 e 50 ha, exclusive)

    53,07 10,45

    Minifndios(de menos de 5 ha)

    21,76 0,55

  • Nem todo proprietrio rural possui uma propriedade s. Admitindo-se, porm, com desvantagem,

    que assim seja, verica-se que os pequenos e nmos proprietrios (at 50 ha), representando cerca detrs quartos dos donos de terras (74,83%), possuem apenas 11% da rea total dos estabelecimentosagrcolas do pas. Da rea restante (89%), apenas uma parte pequena (15,90%) pertence aos proprietriosmdios, tocando nada menos de 73,10% da rea total aos grandes proprietrios (de 200 ha e mais), querepresentam somente 7,80% do nmero total dos proprietrios. Reunidos, os mdios e os grandesproprietrios representam pouco mais de um quarto dos donos de terras e suas propriedades cobremquase nove dcimos da rea total dos estabelecimentos agrcolas.20

    A situao dos pequenos proprietrios em regra difcil em nosso pas, sobretudo quando emcontato com a grande propriedade absorvente. Essa precariedade agravada pela pouca produtividadedo solo nos casos em que o parcelamento da terra foi motivado pela decadncia das fazendas. Somam-seainda as diculdades de nanciamento. E todos esses inconvenientes pesam muito mais sobre as glebasnmas de menos de 5 ha , que em 1940 compreendiam 21,76% do nmero total dosestabelecimentos agrcolas. A pequena propriedade prspera constitui exceo, salvo naquelas regies emque no est sujeita concorrncia da grande, nem se constituiu como legatria de sua runa.

    Este o quadro que nos apresenta o setor dos proprietrios rurais, minoria irrisria da populao dopas: quadro que reflete a imensa pobreza da gente que vive no meio rural, j que os proprietrios de maisde 200 ha no passavam, na data do censo de 1940, de 148622, considerando-se aproximativamente onmero de proprietrios igual ao de estabelecimentos agrcolas. Como os proprietrios mdios de 50 a200 ha , segundo o mesmo critrio, somavam 327713, teremos para uma populao rural de28353866 habitantes21 apenas 476335 proprietrios de estabelecimentos agrcolas capazes de produzircompensadoramente. claro que tais dados no exprimem a situao exata de nossa economia agrria,pois tambm possumos pequenas propriedades prsperas e grandes propriedades arruinadas; so,contudo, bastante expressivos para nos dar uma ideia bem viva da mesquinha existncia que suporta agrande maioria dos milhes de seres humanos que habitam a zona rural do Brasil.22

    ALGUNS ASPECTOS DA COMPOSIO DAS CLASSES NA SOCIEDADE RURAL

    O panorama descrito torna-se ainda mais ntido quando se observam os principais aspectos dacomposio de classe da nossa sociedade rural. Ainda aqui, basear-nos-emos na elaborao do prof.Costa Pinto, no trabalho anteriormente referido, embora utilizando os resultados a que chegou comapresentao modificada ou com desdobramentos.

    O censo agrcola de 1940 forneceu-lhe a seguinte discriminao da populao ativa, agrupadasegundo a posio ocupada pelas diversas categorias que exercem sua atividade principal na agricultura,pecuria e silvicultura:23

  • CATEGORIAS NMERO (HOMENS E MULHERES) %

    Empregadores 252047 2,67Empregados 3164203 33,47Autnomos 3309701 35,01

    Membros da famlia 2565509 28,19De posio ignorada 62052 0,66

    Total 9453512 100,00 Chamando a esse quadro pirmide censitria da sociedade rural, o autor procurou reagrupar os

    dados segundo critrio mais adequado compreenso da posio de classe dos diversos grupos, paracompor o que denominou pirmide social da sociedade rural brasileira. Dois dos grupos acimaindicados empregadores e empregados denem-se por si mesmos, e o quinto de posioignorada pode ser desprezado, porque abrange somente 0,66% do nmero total. A diculdadereside, pois, na interpretao das duas categorias que o censo rotulou de autnomos e de membros dafamlia. Mas as prprias denies adotadas pelo Servio competente fornecem indicaes muitovaliosas.

    A categoria dos autnomos, representada pelos que exercem atividade por sua prpria conta, ouisoladamente ou com o auxlio, no diretamente remunerado, de pessoas de sua prpria famlia,compreende, portanto, alm dos proprietrios de pequenos tratos de terra, os colonos ou rendeiros,que trabalham em regime de parceria. Tudo indica que a subcategoria dos parceiros bem maior que ados pequenos proprietrios, e Costa Pinto procurou demonstr-lo numericamente. Admitindo, comoregra, que o pequeno proprietrio possui apenas uma propriedade e considerando que para 3309701autnomos s havia, em 1940, 1425291 propriedades de menos de 50 ha, concluiu,aproximativamente, pela existncia de 1425291 autnomos proprietrios contra 1884410 autnomosno proprietrios, ou seja, 43,07% para os primeiros e 56,93% para os segundos.24

    Quanto outra categoria de difcil interpretao, membros da famlia, o seu conceito censitrio o seguinte: so aqueles que exercem atividade em benefcio de outrem, sem receberem salrio fixo ou portarefa; esclarecendo a repartio competente que a grande maioria so membros das famlias ecolaboradores dos autnomos.25

    Considerando todos os componentes dessa categoria como ligados ao grupo dos autnomos, 26tambm podemos dividi-la, aproximativamente, na mesma proporo, entre as duas subcategorias dosautnomos: proprietrios e no proprietrios. Assim, os 2665509 rotulados como membros dafamlia contribuiro com 1517474 para a subcategoria dos autnomos no proprietrios (que caelevada a 3401884) e com 1148035 para a dos autnomos proprietrios (que fica elevada a 2573326).

    Se, entretanto, no considerarmos os membros da famlia como ligados exclusivamente categoriados autnomos,27 o clculo se tornar mais defeituoso, mas em todo caso ser ainda muito expressivo,porque a maior margem de erro desfavorvel s concluses a que devemos chegar. Poderamos adotaros seguintes critrios:

    Em primeiro lugar, admitamos que os membros da famlia do grupo de posio ignorada e do

  • grupo de empregadores colaborem com estes, nas atividades agrrias, na mesma proporo dosmembros da famlia dos autnomos. Temos a a primeira margem de erro desfavorvel s nossasconcluses, porque evidente que na classe dos empregadores o nmero de membros de suas famliasque com eles colaboram proporcionalmente menor.

    Em segundo lugar, notamos sensvel diferena entre o nmero de empregadores (252047) e onmero de mdias e grandes propriedades (476335). Isso se explica, naturalmente, pela existncia demdios proprietrios que no empregam assalariados, ou pela existncia de grandes proprietrios quepossuem mais de uma propriedade, ou, como parece mais provvel, por ambos os motivossimultaneamente. Tomaremos, entretanto, aquela diferena (224288) como representativa somente dosmdios proprietrios que no empregam mo de obra assalariada e, portanto, devem ser includos nacategoria dos autnomos. Eis a uma segunda margem de erro, desfavorvel s nossas concluses,porque no levamos em conta os casos em que mais de uma grande propriedade pertence a uma spessoa. E tais casos tudo indica serem mais numerosos do que os de mdios proprietrios que noutilizam empregados.

    Feitos os clculos pelo critrio descrito, os 2665509 da categoria dos membros da famlia serepartiro pela seguinte forma: para os empregadores, 185519; para os autnomos mdiosproprietrios, 164995; para os autnomos pequenos proprietrios, 1048345; para os autnomos noproprietrios, 1221070; para os de posio ignorada, 45580. Da distribuio cou excluda a categoriados empregados, porque estes, por definio, se contam por cabea.

    Agrupando agora os dados obtidos, encontramos para as duas modalidades de clculo os resultadosque seguem:

    Modalidade A

    Diviso dos membros da famlia somente entre os autnomos, considerados como tais ospequenos proprietrios (at 50 ha) e os no proprietrios (parceiros):

    CATEGORIA NoMEMBROS

    DA FAMLIA% Total %

    I. Empregadores 252047 252047II. Autnomos:a) pequenos proprietrios 1425291 43,07 2573326 27,22b) no proprietrios 1884410 1517474 56,93 3401884 35,98III. Empregados 3164203 3164203 33,47IV. De posio ignorada 62052 62052 0,66Total 6788003 100,00 9453512 100,00

  • Modalidade B

    Diviso dos membros da famlia por todas as categorias (menos a dos empregados), incluindo-se entre os autnomos, como mdios proprietrios, a diferena entre o nmero de empregadores e onmero de mdias e grandes propriedades:

    CATEGORIA NoMEMBROS

    DA FAMLIA% Total %

    I. Empregadores 252047 185519 6,96 437566 4,63II. Autnomos:a) mdios proprietrios 224288 164995 6,19 389283 4,11b) pequenos proprietrios 1425291 1048345 39,33 2473636 26,17c) no proprietrios 1660122 1221070 45,81 2881192 30,48III. Empregados 3164203 3164203 33,47IV. De posio ignorada 62052 45580 1,71 107632 1,14Total 6788003 2665509 100,00 9453512 100,00

    Os dois quadros acima constituem desdobramento dos dados apresentados pelo prof. Costa Pinto

    com base no censo ocial. Subdividimos as categorias censitrias dos autnomos e dos membros dafamlia, segundo os critrios j descritos, e chegamos, na hiptese mais desfavorvel s nossasconcluses, ao seguinte resultado: na data indicada, 66,95% da populao ativa ocupada na agricultura,pecuria e silvicultura pertenciam s categorias dos empregados e parceiros (no proprietrios);somando-se os pequenos proprietrios (at 50 ha), cuja situao em muitos lugares de todo precria,aquela percentagem sobe a 90,12%.

    No obstante a evidente decincia dos critrios aproximativos adotados, no ser difcil, diante dedados to impressionantes e referentes populao ativa, avaliar a situao de dependncia da gente quetrabalha no campo, j que, em termos de generalizao, pouca diferena existe entre a misria doproletrio rural e a do parceiro e do pequeno proprietrio. No h, pois, que estranhar os votos decabresto.

    DESPESAS ELEITORAIS. MELHORAMENTOS LOCAIS

    H ainda as despesas eleitorais. A maioria do eleitorado brasileiro reside e vota nos municpios dointerior.28 E no interior o elemento rural predomina sobre o urbano.29 Esse elemento rural, como jnotamos, pauprrimo. So, pois, os fazendeiros e chefes locais que custeiam as despesas do alistamentoe da eleio. Sem dinheiro e sem interesse direto, o roceiro no faria o menor sacrifcio nesse sentido.Documentos, transporte, alojamento, refeies, dias de trabalho perdidos e at roupa, calado, chapu

  • para o dia da eleio, tudo pago pelos mentores polticos empenhados na sua qualicao ecomparecimento.30 Como os prprios chefes locais so em regra somente remediados, o suprimento dedinheiro para essas despesas apresenta certas particularidades que, para melhor ordem da exposio,deixamos para examinar mais adiante. O velho processo do bico de pena reduzia muito as despesaseleitorais. Os novos cdigos, ampliando o corpo eleitoral31 e reclamando a presena efetiva dos votantes,aumentam os gastos. , portanto, perfeitamente compreensvel que o eleitor da roa obedea orientaode quem tudo lhe paga, e com insistncia, para praticar um ato que lhe completamente indiferente.

    Esse panorama j se apresenta, alis, com alguns indcios de modicao, segundo pde serobservado nas eleies realizadas em 1945 e 1947. No seio do prprio eleitorado rural vericaram-setraies dos empregados aos fazendeiros. O fato merece um estudo atento e que ainda no foi feito.Observadores locais costumam atribu-lo em grande parte propaganda radiofnica. Nas cidades dointerior j so numerosos os aparelhos receptores, e os trabalhadores rurais tm hoje maior possibilidadede contato com a sede urbana pelo uso bastante generalizado do transporte rodovirio. O rdio, alis, jse vai introduzindo nas prprias fazendas: as baterias resolvem parcialmente o problema da energia. Nose deve esquecer tambm o grande incremento que se vericou durante a guerra na migrao detrabalhadores do campo para atividades urbanas empreendimentos industriais, construo civil, basesmilitares , ou para a extrao de borracha e explorao de minrios, especialmente cristal de rocha emica. A maior facilidade de arranjar emprego nas cidades e as notcias que a respeito lhes chegam deparentes e amigos aguam o nomadismo da populao rural j habituada a mudar das zonasdecadentes para as mais prsperas ,32 reduzindo o grau de sua dependncia em relao ao proprietrioda terra. Mas ainda cedo para tirar qualquer concluso mais positiva sobre o fenmeno apontado,porque as eleies de 1945 e 1947 apresentaram certas peculiaridades, que lanaram perturbao natradicional alternativa eleitoral do Brasil: governo e oposio.33

    A falta de esprito pblico, tantas vezes irrogada ao chefe poltico local, desmentida, comfrequncia, por seu desvelo pelo progresso do distrito ou municpio. ao seu interesse e sua insistnciaque se devem os principais melhoramentos do lugar. A escola, a estrada, o correio, o telgrafo, a ferrovia,a igreja, o posto de sade, o hospital, o clube, o campo de futebol, a linha de tiro, a luz eltrica, a rede deesgotos, a gua encanada , tudo exige o seu esforo, s vezes um penoso esforo que chega aoherosmo. E com essas realizaes de utilidade pblica, algumas das quais dependem s do seu empenhoe prestgio poltico, enquanto outras podem requerer contribuies pessoais suas e dos amigos, com elasque, em grande parte, o chefe municipal constri ou conserva sua posio de liderana.34

    Apesar disso, em nossa literatura poltica, especialmente na partidria, o coronel no tem sidopoupado. Responsvel, em grande parte, pelas vitrias eleitorais dos candidatos do ocialismo, frequentemente acusado de no ter ideal poltico. Sua mentalidade estreita, connada ao municpio,onde os interesses de sua faco se sobrepem aos da ptria, seu descaso pelas qualidades ou defeitos doscandidatos s eleies estaduais e federais, tudo isso incute no esprito dos derrotados amarga descrenanas possibilidades do regime democrtico em nosso pas. E habitualmente esse ceticismo perdura at omomento em que o interessado, concorrendo a nova eleio do lado governista, se possa beneciar dosvotos inconscientes do coronel.

    fora de dvida que a mentalidade municipal tem predominado em nossas eleies. Mas um erro

  • supor que o chefe local assim procede por mero capricho ou porque nele no tenha despontado ou estejapervertido o sentimento pblico. Basta lembrar que o esprito governista a marca predominante dessamentalidade municipal para vermos que alguma razo mais poderosa que o simples arbtrio pessoal atuanaquele sentido. Para falar em termos de generalizao, computados os altos e baixos de sua conduta, ocoronel, como poltico que opera no reduzido cenrio municipal, no melhor nem pior do que osoutros, que circulam nas esferas mais largas. Os polticos estaduais e federais com excees, claro comearam no municpio, onde ostentavam a mesma impura falta de idealismo que mais tarde,quando se acham na oposio, costumam atribuir aos chefes locais. O problema no , portanto, deordem pessoal, se bem que os fatores ligados personalidade de cada um possam apresentar, neste ounaquele caso, caractersticas mais acentuadas: ele est profundamente vinculado nossa estruturaeconmica e social.

    FAVORES E PERSEGUIES. DESORGANIZAO DO SERVIO PBLICO LOCAL

    No se compreenderia, contudo, a liderana municipal s com os fatores apontados. H ainda osfavores pessoais de toda ordem, desde arranjar emprego pblico at os mnimos obsquios.35 nestecaptulo que se manifesta o paternalismo, com a sua recproca: negar po e gua ao adversrio. Parafavorecer os amigos, o chefe local resvala muitas vezes para a zona confusa que medeia entre o legal e oilcito, ou penetra em cheio no domnio da delinquncia, mas a solidariedade partidria passa sobretodos os pecados uma esponja regeneradora. A denitiva reabilitao vir com a vitria eleitoral, porque,em poltica, no seu critrio, s h uma vergonha: perder. Por isso mesmo, o lhotismo tanto contribuipara desorganizar a administrao municipal.

    Um dos principais motivos dessa desorganizao a generalizada incultura do interior, cpia muitopiorada da incultura geral do pas. Se os prprios governos federal e estaduais tm tanta diculdade emconseguir funcionrios capazes, por isso mesmo improvisando tcnicos em tudo da noite para o dia,imagine-se o que ser dos municpios mais atrasados. Os inquritos que se zeram a esse respeito emvrios Estados depois da Revoluo de 1930 revelaram coisas surpreendentes. Da a criao dosdepartamentos de municipalidades, que, ao lado da assistncia tcnica prestada s comunas, notardaram a assumir funes de natureza poltica. Mas o despreparo do interior s explica uma parte daanarquia administrativa observada em muitas municipalidades. A outra parcela de responsabilidadecabe, de um lado, ao lhotismo, que convoca muitos agregados para a gamela municipal, e, de outrolado, utilizao do dinheiro, dos bens e dos servios do governo municipal nas batalhas eleitorais.

    A outra face do lhotismo o mandonismo, que se manifesta na perseguio aos adversrios: paraos amigos po, para os inimigos pau. 36 As relaes do chefe local com seu adversrio raramente socordiais. O normal a hostilidade.37 Alm disso, como bvio, sistemtica recusa de favores, que osadversrios, em regra geral, se sentiriam humilhados de pedir.

    Nos perodos que precedem s eleies que o ambiente de opresso atinge o ponto agudo.38 Nosintervalos das campanhas eleitorais, melhoram muito as relaes entre as parcialidades do municpio,chegando eventualmente a ser amenas e respeitosas. nessa fase que se processam os entendimentos que

  • permitem faco que est no poder, ou apoiada pelo governo estadual, engrossar suas leiras, pelaadeso de cabos eleitorais urbanos ou de coronis. Esse clima propcio ao acordo tambm atinge seuponto timo por ocasio das eleies, mas na fase que precede tomada de compromissos. Uma vezdenidas as posies, entra-se ento na etapa da compresso, que antecede imediatamente ao pleito. 39Alguns provveis aderentes podem ser poupados at mais tarde, enquanto subsiste a possibilidade de oschamar ao seio confortvel da situao.40 Outros sero convencidos pelos primeiros indcios de violncia.Muitos se abstero de votar para evitar dissabores maiores, e uns poucos faltaro palavra empenhada.A regra ser honrado o compromisso que no municpio se rma de homem para homem, e a quebra desua palavra repugna tanto ao chefe local quanto o exaspera a traio de companheiros.41

    Mas h nisso tudo uma tica especial: como os compromissos no so assumidos base deprincpios polticos, mas em torno de coisas concretas, prevalecem para uma ou para poucas eleiesprximas. Quando v a necessidade de mudar de partido (o que signica geralmente aderir ao governo),o chefe local ou o coronel retarda o seu pronunciamento. Se sofreu alguma desconsideraopessoal, ou deixou de ser atendido em pretenso que reputa importante, j tem a o motivo da ruptura,porque o cumprimento de sua prestao no acordo no foi correspondido pelo chefe a quem emprestouapoio eleitoral. Quando no houver tais motivos, no lhe faltar o grande argumento: no tem direito deimpor aos amigos o sacrifcio da oposio. E esse argumento, que pode ser insincero, em substnciaverdadeiro e procedente, porque o primeiro dever do chefe local alcanar a vitria, o que signica obterpara sua corrente o apoio da situao estadual.42

    SISTEMA DE COMPROMISSO COM O GOVERNO ESTADUAL. GOVERNISMO DO ELEITORADO DO INTERIOR

    A rarefao do poder pblico em nosso pas contribui muito para preservar a ascendncia doscoronis, j que, por esse motivo, esto em condies de exercer, extraocialmente, grande nmero defunes do Estado em relao aos seus dependentes. Mas essa ausncia do poder pblico, que tem comoconsequncia necessria a efetiva atuao do poder privado,43 est agora muito reduzida com os novosmeios de transporte e comunicao, que se vo generalizando. A polcia de hoje, salvo em raros Estados,poder comparecer ao local de perturbao e atuar com relativa eccia num perodo de tempo, que cadavez se torna mais curto. A rebeldia do chefe local to caracterstica de certo perodo da Colnia jno um meio de consolidar, mas de enfraquecer e minar a inuncia do coronel. Ainda assim, comoa organizao agrria do Brasil mantm a dependncia do elemento rural ao fazendeiro, impedindo ocontato direto dos partidos com essa parcela notoriamente majoritria do nosso eleitorado, o partido dogoverno estadual no pode dispensar o intermdio do dono de terras. Mas no se submete a ele senonaquilo que, no sendo fundamental para a situao poltica estadual, , contudo, importantssimo parao fazendeiro na esfera connada do seu municpio. Sabe, por isso, o coronel que a sua impertinncia slhe traria desvantagens: quando, ao contrrio, so boas as relaes entre o seu poder privado e o poderinstitudo, pode o coronel desempenhar, indisputadamente, uma larga parcela de autoridade pblica. 44E assim nos aparece este aspecto importantssimo do coronelismo, que o sistema de reciprocidade: deum lado, os chefes municipais e os coronis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa

  • de burros; de outro lado, a situao poltica dominante no Estado, que dispe do errio, dos empregos,dos favores e da fora policial, que possui, em suma, o cofre das graas e o poder da desgraa.45

    claro, portanto, que os dois aspectos o prestgio prprio dos coronis e o prestgio deemprstimo que o poder pblico lhes outorga so mutuamente dependentes e funcionam ao mesmotempo como determinantes e determinados. Sem a liderana do coronel rmada na estruturaagrria do pas , o governo no se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade, e sem essareciprocidade a liderana do coronel ficaria sensivelmente diminuda.

    Muitos chefes municipais, mesmo quando participam da representao poltica estadual ou federal,costumam ser tributrios de outros, que j galgaram, pelas relaes de parentesco ou amizade, pelosdotes pessoais, pelos conchavos ou pelo simples acaso das circunstncias, a posio de chefes de gruposou correntes, no caminho da liderana estadual ou federal. Mas em todos esses graus da escala polticaimpera, como no podia deixar de ser, o sistema de reciprocidade,46 e todo o edifcio vai assentar na base,que o coronel, fortalecido pelo entendimento que existe entre ele e a situao poltica dominante emseu Estado, atravs dos chefes intermedirios.

    O bem e o mal, que os chefes locais esto em condies de fazer aos seus jurisdicionados, nopoderiam assumir as propores habituais sem o apoio da situao poltica estadual para uma e outracoisa. Em primeiro lugar, grande cpia de favores pessoais depende fundamentalmente, quando noexclusivamente, das autoridades estaduais. Com o chefe local quando amigo que se entende ogoverno do Estado em tudo quanto respeite aos interesses do municpio.47 Os prprios funcionriosestaduais, que servem no lugar, so escolhidos por sua indicao. Professoras primrias, coletor,funcionrios da coletoria, serventurios da justia, promotor pblico, inspetores do ensino primrio,servidores da sade pblica etc., para tantos cargos a indicao ou aprovao do chefe local costuma serde praxe. Mesmo quando o governo estadual tem candidatos prprios, evita nome-los, desde que venhaisso a representar quebra de prestgio do chefe poltico do municpio. Se algum funcionrio estadualentra em choque com este, a maneira mais conveniente de solver o impasse remov-lo, s vezes commelhoria de situao, se for necessrio. A inuncia do chefe local nas nomeaes atinge os prprioscargos federais, como coletor, agente do correio, inspetor de ensino secundrio e comercial etc. e oscargos das autarquias (cujos quadros de pessoal tm sido muito ampliados), porque tambm praxe dogoverno da Unio, em sua poltica de compromisso com a situao estadual, aceitar indicaes e pedidosdos chefes polticos nos Estados.

    A lista dos favores no se esgota com os de ordem pessoal. sabido que os servios pblicos dointerior so decientssimos, porque as municipalidades no dispem de recursos para muitas de suasnecessidades. Sem o auxlio nanceiro do Estado, dicilmente poderiam empreender as obras maisnecessrias, como estradas, pontes, escolas, hospitais, gua, esgotos, energia eltrica. Nenhumadministrador municipal poderia manter por muito tempo a liderana sem realizar qualquer benefciopara sua comuna. Os prprios fazendeiros, que carecem de estradas para escoamento de seus produtos ede assistncia mdica, ao menos rudimentar, para seus empregados, acabariam por lhe recusar apoioeleitoral. E o Estado que, por sua vez, dispe de parcos recursos, insucientes para os servios que lheincumbem tem de dosar cuidadosamente esses favores de utilidade pblica. O critrio mais lgico,sobretudo por suas consequncias eleitorais, dar preferncia aos municpios cujos governos estejam nas

  • mos dos amigos. , pois, a fraqueza nanceira dos municpios um fator que contribui, relevantemente,para manter o coronelismo, na sua expresso governista.48

    O apoio ocial revela-se ainda precioso no captulo das despesas eleitorais, que os chefes locais nopodem custear sozinhos, embora muitos se sacriquem no cumprimento desse dever. Por isso, de praxeque os candidatos tambm contribuam, assumindo, alguns, pesadas responsabilidades nanceiras paradisputar a cadeira desejada. Mas, como notrio, so os cofres pblicos que costumam socorrer oscandidatos e os chefes locais governistas nessa angustiosa emergncia. Os auxlios so dados, algumasvezes, em dinheiro de contado, ou pelo pagamento direto de servios e utilidades. Outras vezes, o auxlio indireto, atravs de contratos, que deixem boa margem de lucros, ou pela cesso de edifcios,transporte, ocinas grcas, material de propaganda etc. Dos recursos, tradicionalmente nmos, denossas municipalidades, uma boa parte, em poca de eleio, destina-se a essa nalidade.49 Entre osmotivos que tornam