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A penumbra da noite ainda abraçava o reino quando Domno foi acordado pelo toque de um dos criados de seu pai. Ao abrir os olhos, contemplou diretamente a luz do lampião que Selber segurava, incomodando ainda mais suas vistas, já ressecadas pela falta de sono. Com sacrifício, pôs-se para fora das cobertas, expondo seu corpo ao ar gélido da madrugada. Vestia ainda sua camisa de mangas longas, feita de fibra de linho-negro, e sobre ela seu colete de couro marrom, que não tivera disposição de tirar antes de se jogar em sua cama para tentar aproveitar as poucas horas de noite que ainda lhe restavam. O criado pendurou a lanterna no gancho mais próximo, dispondo-se então a ajudar o príncipe a vestir sua capa. - Selber, - fez uma pausa para pigarrear   não acha que poderia ter esperado até o amanhecer?  Aposto que o cadáver do m eu pai não iria se incomodar e m esperar , acrescentou, mas apenas em pensamento. - Seu pai deseja vê-lo novamente, senhor.   o servo respondeu, pegando outra vez seu lampião e dirigindo-se até a saída dos aposentos do príncipe.  Ah, o velho continua vivo? E por que isso não me i mpressiona? Vivendo como viveu, já me surpreende que tenha chegado a idade que chegou. Talvez os deuses estejam querendo  prolongar o sofrimento del e um pouco mais. E o meu também. Ao sair de seu quarto, ouviu Selber fechar a porta, provocando um guincho que ecoou pelos corredores mortos, escuros e vazios do castelo, agulhando seus ouvidos e faz endo-o acordar de vez. Como diabos eu não acordei com esse maldito ruído quando ele entrou? , perguntou-se. Mas a infeliz resposta veio assim que ele deu o passo seguinte, o que fez com que seu corpo clamasse para voltar para a cama. Estava exausto. Sua carcaça doía como se tivesse sido pisoteada pelos cavalos de toda a Guarda Real. O fr io martelava até o fundo de sua alma, e tentar se esconder dentro da capa de pele de urso cinzento que o envolvia não adiantou muito. Começou a sentir as fisgadas nos músculos, com as quais nunca conseguia se acostumar. Apoiou-se na parede, sentindo o peito apertar, e por um instante duvidou que viveria mais que seu pai. - Deseja algo para a dor, senhor?  o criado perguntou, ao aproximar a lamparina do príncipe, iluminando seu rosto que falhava em esconder sua agonia. - A dor vai parar assim que isso acabar e eu puder dormir, Selber.   respondeu. A respeito de sua doença, Domno sempre fora orgulhoso demais para pedir ajuda, impaciente demais para buscar uma solução e pessimista demais para achar que a encontraria. Assim como quase todos os fatos de sua vida, ele simplesmente a aceitava. Tentava fingir não ser tão

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A penumbra da noite ainda abraava o reino quando Domno foi acordado pelo toque de um dos criados de seu pai. Ao abrir os olhos, contemplou diretamente a luz do lampio que Selber segurava, incomodando ainda mais suas vistas, j ressecadas pela falta de sono. Com sacrifcio, ps-se para fora das cobertas, expondo seu corpo ao ar glido da madrugada. Vestia ainda sua camisa de mangas longas, feita de fibra de linho-negro, e sobre ela seu colete de couro marrom, que no tivera disposio de tirar antes de se jogar em sua cama para tentar aproveitar as poucas horas de noite que ainda lhe restavam. O criado pendurou a lanterna no gancho mais prximo, dispondo-se ento a ajudar o prncipe a vestir sua capa. - Selber, - fez uma pausa para pigarrear no acha que poderia ter esperado at o amanhecer? Aposto que o cadver do meu pai no iria se incomodar em esperar, acrescentou, mas apenas em pensamento.- Seu pai deseja v-lo novamente, senhor. o servo respondeu, pegando outra vez seu lampio e dirigindo-se at a sada dos aposentos do prncipe. Ah, o velho continua vivo? E por que isso no me impressiona? Vivendo como viveu, j me surpreende que tenha chegado a idade que chegou. Talvez os deuses estejam querendo prolongar o sofrimento dele um pouco mais. E o meu tambm. Ao sair de seu quarto, ouviu Selber fechar a porta, provocando um guincho que ecoou pelos corredores mortos, escuros e vazios do castelo, agulhando seus ouvidos e fazendo-o acordar de vez. Como diabos eu no acordei com esse maldito rudo quando ele entrou?, perguntou-se. Mas a infeliz resposta veio assim que ele deu o passo seguinte, o que fez com que seu corpo clamasse para voltar para a cama. Estava exausto. Sua carcaa doa como se tivesse sido pisoteada pelos cavalos de toda a Guarda Real. O frio martelava at o fundo de sua alma, e tentar se esconder dentro da capa de pele de urso cinzento que o envolvia no adiantou muito. Comeou a sentir as fisgadas nos msculos, com as quais nunca conseguia se acostumar. Apoiou-se na parede, sentindo o peito apertar, e por um instante duvidou que viveria mais que seu pai. - Deseja algo para a dor, senhor? o criado perguntou, ao aproximar a lamparina do prncipe, iluminando seu rosto que falhava em esconder sua agonia.- A dor vai parar assim que isso acabar e eu puder dormir, Selber. respondeu.A respeito de sua doena, Domno sempre fora orgulhoso demais para pedir ajuda, impaciente demais para buscar uma soluo e pessimista demais para achar que a encontraria. Assim como quase todos os fatos de sua vida, ele simplesmente a aceitava. Tentava fingir no ser to dolorosa a ponto de merecer a ateno de terceiros, apesar de no poder esconder as olheiras causadas pelas noites sem dormir que a doena to frequentemente lhe proporcionava. Selber aguardou dois ou trs minutos at que o prncipe conseguisse se recompor, tempo que, na quietude da noite, pareceu uma pequena eternidade. Amparado pelo servo, Domno pde ento prosseguir, quebrando o silncio dos corredores cavos do palcio com o som de suas botas num andar vacilante, e s abandonou sua muleta-humana pouco antes de avistarem os dois guardas que resguardavam o quarto do rei, com meia armadura e lanas em p. - Majestade. saudaram-no, antes de abrirem as portas dos aposentos reais, num movimento simultneo e quase coreografado. Boas dobradias essas. Sem barulho algum.Foi entrando a passos lentos, porm menos sofridos que antes. - Pai?O rei estava sentado em sua cama, de costas para a entrada, cercado por servas que assistiam e comentavam enquanto o escudeiro dava o ltimo n no ombro da armadura pesada que ele estava trajando. Virou-se com muito esforo, dando um sorriso sincero, sem esconder a agonia.- O futuro rei! Veio se despedir do seu velho pai? perguntou, como se no tivesse sido ele mesmo que o chamara. O infeliz satiriza a prpria morte.- No poderia esperar o amanhecer para poder morrer, meu senhor? riu com seu pai.- Voc sabe que pacincia no um dos meus muitos dons. Nem quando se trata de esperar a morte.- O que quer dizer? Domno deu um sorriso confuso.- Bem, decidi que agonizar em meu leito de morte esperando a boa vontade dos deuses no um bom jeito de se ir para o outro mundo. H dias cago sangue e vomito sem mesmo ter o que botar para fora. As ltimas palavras dignas de um rei.O prncipe se aproximou de seu pai ao tempo em que as servas tentavam acomodar a ele e sua armadura na luxuosa cama, e sentou-se na cadeira ao seu lado, podendo finalmente relaxar. Quando eu for rei, vou me lembrar de construir uma esttua de ouro macio em homenagem ao homem que inventou as cadeiras.Suspirou, j sentindo seus msculos se descontraindo aos poucos. - No um bom jeito de morrer, nem para reis ou homens to ruins quanto eu. continuou Sua Majestade.- H reis e homens piores. respondeu, tentando reanim-lo.- Voc to bom com as palavras quanto eu. soltou um risinho levemente entristecido. Deve ter sido a falta de prtica. Era to calado que at os seis anos eu achei que voc fosse mudo. riu.- Aos seis anos foi a primeira vez que voc me viu, meu rei. At ento o senhor estava neste mesmo local, esmagando crnios e passando os filhos do Traidor a fio de espada. - E at nisso fracassei. No final de tudo, acabei dedicando mais de minha vida a meus inimigos do que a meu povo. E a voc. Soou quase como um pedido de desculpas. Parece que, diante da morte, at mesmo o grande Jordal pode mudar.- Marcou a histria, meu pai. - Marquei com sangue. replicou.- Sangue de traidores.Mulheres e crianas, mas traidores.- Mas sangue. Morte. - No achei que fosse viver para ver meu pai ter um ataque de conscincia. Voc meu nico bom legado. Meu filho. Meu amigo. continuou.- No seu nico filho. relembrou-o. Se Jordal parecia pouco importar-se com Domno, seu primognito e herdeiro do trono, aos mais jovens dava tanto valor quanto a bastardos.