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ARTIGO ARTICLE 1639 1 Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Estadual de Feira de Santana. Km 03, BR 116, Campus. 44031-460 Feira de Santana BA. [email protected] A zooterapia popular no Estado da Bahia: registro de novas espécies animais utilizadas como recursos medicinais The popular zootherapy in Bahia state: registration of new animal species used as medicinal resources Resumo Este artigo discute o uso de animais como recursos medicinais no Estado da Bahia, nordeste brasileiro. Os dados resultam de uma avaliação processual de desempenho acadêmico, uma vez que se tratou de um exercício requerido pelo professor da disciplina Etnobiologia (semes- tre 2007.2) aos estudantes do curso de Formação de Professores do Estado da Bahia da Universida- de Estadual de Feira de Santana, quando lhes foi solicitado que fizessem um breve registro, em suas respectivas cidades, sobre o uso de animais medi- cinais. Participaram 41 estudantes, provenientes de 21 cidades do interior do estado. Foram regis- trados 95 animais (nomes comuns), dos quais dezessete são novos acréscimos à lista de animais medicinais anteriormente publicada. O registro da utilização medicinal de animais no Estado da Bahia fornece uma contribuição relevante ao fe- nômeno da zooterapia, abrindo espaço para de- bates sobre biologia da conservação, políticas de saúde pública, manejo sustentável dos recursos naturais, prospecção biológica e patente. Necessi- ta-se desenvolver mais estudos etnozoológicos tanto para compreender a importância real da zootera- pia para as comunidades tradicionais, quanto para desenvolver estratégias de manejo e uso sus- tentáveis das espécies animais, especialmente da- quelas em risco de extinção. Palavras-chave Zooterapia, Etnozoologia, Me- dicina popular, Recurso natural, Sustentabilidade Abstract This article deals with the use of ani- mals as medicinal resources in Bahia state, North- eastern Brazil. The data come from a procession- al evaluation of academic performance, since it was an exercise requested by the professor of the discipline Ethnobiology (2007.2 semester) to the students of the course Bahia State Teachers’ Un- dergraduation of Feira de Santana State Univer- sity. They were asked to make a brief survey, in their respective cities, on the use of animals as medicines. Forty-one students, from 21 cities of the country of Bahia State, have participated with data. A total of 95 animals (common names) were recorded, from which 17 are new additions to the list of medicinal animal species already published. The recording of the use of animals as folk medi- cines in the state of Bahia provides a significant contribution to the phenomenon of zootherapy, because it opens a space to debate about conser- vation biology, health public policies, sustainable management of natural resources, bioprospection, and patent. It is necessary to carry out more eth- nozoological studies both to comprehend the true importance of zootherapy to the traditional com- munities and to develop some strategies of sus- tainable management and use of animal species, especially for those under risk of extinction. Key words Zootherapy, Ethnozoology, Folk med- icine, Natural resource, Sustainability Eraldo Medeiros Costa Neto 1

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1 Departamento de CiênciasBiológicas, UniversidadeEstadual de Feira deSantana. Km 03, BR 116,Campus. 44031-460 Feirade Santana [email protected]

A zooterapia popular no Estado da Bahia: registrode novas espécies animais utilizadas como recursos medicinais

The popular zootherapy in Bahia state: registrationof new animal species used as medicinal resources

Resumo Este artigo discute o uso de animaiscomo recursos medicinais no Estado da Bahia,nordeste brasileiro. Os dados resultam de umaavaliação processual de desempenho acadêmico,uma vez que se tratou de um exercício requeridopelo professor da disciplina Etnobiologia (semes-tre 2007.2) aos estudantes do curso de Formaçãode Professores do Estado da Bahia da Universida-de Estadual de Feira de Santana, quando lhes foisolicitado que fizessem um breve registro, em suasrespectivas cidades, sobre o uso de animais medi-cinais. Participaram 41 estudantes, provenientesde 21 cidades do interior do estado. Foram regis-trados 95 animais (nomes comuns), dos quaisdezessete são novos acréscimos à lista de animaismedicinais anteriormente publicada. O registroda utilização medicinal de animais no Estado daBahia fornece uma contribuição relevante ao fe-nômeno da zooterapia, abrindo espaço para de-bates sobre biologia da conservação, políticas desaúde pública, manejo sustentável dos recursosnaturais, prospecção biológica e patente. Necessi-ta-se desenvolver mais estudos etnozoológicos tantopara compreender a importância real da zootera-pia para as comunidades tradicionais, quantopara desenvolver estratégias de manejo e uso sus-tentáveis das espécies animais, especialmente da-quelas em risco de extinção.Palavras-chave Zooterapia, Etnozoologia, Me-dicina popular, Recurso natural, Sustentabilidade

Abstract This article deals with the use of ani-mals as medicinal resources in Bahia state, North-eastern Brazil. The data come from a procession-al evaluation of academic performance, since itwas an exercise requested by the professor of thediscipline Ethnobiology (2007.2 semester) to thestudents of the course Bahia State Teachers’ Un-dergraduation of Feira de Santana State Univer-sity. They were asked to make a brief survey, intheir respective cities, on the use of animals asmedicines. Forty-one students, from 21 cities ofthe country of Bahia State, have participated withdata. A total of 95 animals (common names) wererecorded, from which 17 are new additions to thelist of medicinal animal species already published.The recording of the use of animals as folk medi-cines in the state of Bahia provides a significantcontribution to the phenomenon of zootherapy,because it opens a space to debate about conser-vation biology, health public policies, sustainablemanagement of natural resources, bioprospection,and patent. It is necessary to carry out more eth-nozoological studies both to comprehend the trueimportance of zootherapy to the traditional com-munities and to develop some strategies of sus-tainable management and use of animal species,especially for those under risk of extinction.Key words Zootherapy, Ethnozoology, Folk med-icine, Natural resource, Sustainability

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Introdução

O termo zooterapia remete a diferentes significa-dos. No dicionário, ele é sinônimo de zootera-pêutica e equivale à terapêutica dos animais, ouseja, ao tratamento das doenças acometidas aosanimais1. Também pode ser entendido como si-nônimo de terapia animal assistida, na qual ani-mais domésticos e domesticados, como cães, ga-tos e cavalos, são empregados como coadjuvan-tes terapêuticos no tratamento e melhoramentode diversos estados patológicos, como, por exem-plo, deficiências mentais2. No entanto, o termoempregado no presente artigo refere-se, strictusensu, ao uso de remédios elaborados a partir departes do corpo do animal, de produtos de seumetabolismo, como secreções corporais e excre-mentos, ou de materiais construídos por ele,como ninhos e casulos, para o tratamento e pre-venção de doenças e enfermidades acometidasaos seres humanos3-5.

Há séculos que os seres humanos vêm utili-zando as mais diversas espécies animais com fi-nalidades terapêuticas6-10. Esta interação etnozo-ológica tem sido registrada nas mais diversasculturas ao todo o mundo11-20. A ampla distri-buição geográfica e o registro etnográfico do fe-nômeno da zooterapia resultaram no estabeleci-mento da hipótese da universalidade zooterápi-ca, segundo a qual toda cultura que apresentasistema médico desenvolvido utiliza animaiscomo remédios17.

No Brasil, os registros sobre utilização deanimais como recursos medicinais datam do sé-culo XVII, com as obras de Guilherme Piso, Ge-org Marcgrave e Johannes de Laet21,22. Provavel-mente, devido à extensão territorial do país, àalta diversidade biológica encontrada nos ecos-sistemas nacionais e ao significativo patrimôniosociocultural representado por povos indígenase populações tradicionais, uma grande varieda-de de espécies animais (mais de trezentas já fo-ram registradas!) pode ser encontrada comopossuindo alegadas propriedades medicinais e,por isso, comercializada como produtos da me-dicina popular por erveiros e ambulantes nas fei-ras livres de todo o país23.

Apenas no Estado da Bahia, um total de 180animais (tendo como base seus nomes comuns)foi registrado como recursos medicinais reco-mendados para a cura de uma grande quantida-de de condições patológicas culturalmente diag-nosticadas24. Estes recursos zooterapêuticos es-tão representados por doze categorias taxonô-micas: milípedes (0,5%), anelídeos (1,0%), anfí-

bios (1,0%), aracnídeos (1,0%), equinodermos(1,5%), crustáceos (4,0%), moluscos (6,0%), rép-teis (12,0%), aves (13,0%), peixes (17,0%), ma-míferos (20,0%) e insetos (23,0%). Uma das prin-cipais razões para o alto número de animais nafarmacopéia baiana se deve provavelmente aofato de que as pessoas acreditam no poder decura dos remédios preparados à base de maté-rias-primas animais4,5,25.

Infelizmente, muitos dos animais usadoscomo recursos zooterapêuticos estão listadoscomo espécies ameaçadas26. A diminuição donúmero de espécies, especialmente de regiões neo-tropicais, por meio da caça, enfraquecimento deecossistemas e usos culturais variados tem sidoenorme, ao ponto de que muitas se tornam ex-tintas antes mesmo que a ciência tenha tido chancede estudá-las. Daí que os estudos sobre zootera-pia e seu significado para as comunidades hu-manas devem ser realizados a fim de conseguir omelhor modo de explorar os recursos naturais,levando ao almejado uso sustentável dos animaisculturalmente utilizados para tal fim27.

Considerando a importância do uso de ani-mais medicinais no Estado da Bahia, este artigodiscute a ampliação do registro do fenômeno emtermos de localidades inventariadas e acrescentanovas espécies.

Material e métodos

Os dados resultam de uma avaliação processualde desempenho acadêmico, uma vez que se tra-tou de um exercício requerido pelo professor dadisciplina Etnobiologia aos estudantes do cursode Formação de Professores do Estado da Bahiado semestre 2007.2. A turma é formada por 45professores de ciências que atuam em escolas darede estadual de ensino, nos níveis fundamentale médio, sendo composta por 38 mulheres e setehomens. Foi-lhes solicitado que fizessem um bre-ve registro, em suas respectivas cidades, sobre ouso de animais como recursos medicinais.

O modo como cada estudante buscou as in-formações foi variado, pois enquanto alguns, emsua prática docente, pediram aos seus própriosalunos que registrassem o que sabiam sobre ani-mais usados na medicina popular, outros fize-ram curtas entrevistas com diferentes atores so-ciais, como moradores idosos, curandeiras, ser-ventes das escolas, parentes e vizinhos.

A palavra “doença” é aqui utilizada em umsentido amplo, referindo-se tanto às enfermida-des de origem personalística (provocadas por um

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agente humano ou sobrenatural) quanto àque-las de origem naturalística (provocadas pela in-tervenção de causas ou forças naturais), incluin-do-se desde estados dolorosos a perturbaçõesde ordem psíquica28. Neste trabalho, as doençasforam registradas segundo a terminologia utili-zada pelos informantes ou como foram encon-tradas na literatura.

As espécies estão listadas, quanto aos gran-des grupos, seguindo-se ordenação taxonômicade Brusca e Brusca29 para os invertebrados e dePough et al.30 para os vertebrados.

Resultados e discussão

Do total de 45 estudantes matriculados na disci-plina Etnobiologia, 43 retornaram com o exercí-cio solicitado. Destes, dois foram invalidadosporque traziam informações sobre uso de plan-tas medicinais ao invés de animais medicinais. Adistribuição dos indivíduos quanto ao gênero e alocalidade onde atuam como professores e/ouresidem é mostrada na Tabela 1. Um total de 21cidades do interior do Estado da Bahia está re-presentado, destacando-se três: São Gonçalo dosCampos (17% dos participantes), Riachão doJacuípe (14%) e Feira de Santana (12%).

Foram registrados 95 animais utilizados comorecursos zooterapêuticos, segundo os nomes co-muns. Deles, são extraídas diversas matérias-pri-mas empregadas na elaboração de remédios po-pulares visando à cura de um grande número deenfermidades e doenças (Tabela 2). Saliente-se,contudo, que muitas das doenças e enfermidadesregistradas pelos estudantes fazem parte do con-texto cultural onde as informações foram obti-das. Sua interpretação e possíveis paralelismos compatologias conhecidas pela ciência médica ociden-tal requerem estudos mais aprofundados23.

À lista de animais medicinais conhecidos parao Estado da Bahia, foram acrescentados dezesse-te novos registros de recursos zooterapêuticos,mesmo que alguns destes façam parte da faunaexótica, como o elefante e o tigre. Os novos regis-tros estão indicados na Tabela 2 com o sinal deasterisco (*), sendo eles: um anfíbio (rã), doisinsetos (lagarta-de-fogo e morotó-de-coqueiro),dois peixes (moréia-preta e tubarão), dois mo-luscos (ostra e caracol-vermelho), cinco aves (ara-ponga, coruja, ganso, garrincha e pica-pau) e cin-co mamíferos (elefante, jegue, ovelha, preá, tigre).

O número de recursos zooterapêuticos (ani-mais) citados por estudante variou de três a 21.Se considerado o número de recursos zootera-

pêuticos registrados por localidade, observa-seque cinco deles são os mais bem representadosnos 21 municípios inventariados: carneiro (76%),lagartixa (71%), galinha (66%), sapo (57%) eurubu (52%). Há ocorrência de recursos de múl-tiplo uso, uma vez que deles são obtidas mais detrês matérias-primas que se recomendam paraelaborar remédios populares: a galinha (Gallusdomesticus) e o urubu (Coragyps atratus e Ca-thartes aura), que fornecem seis matérias-pri-mas cada, e o boi (Bos taurus), do qual se utili-zam cinco recursos. A aplicação dos remédiosvaria de acordo com a natureza da enfermidade,do objetivo de uso e dos ingredientes utilizados.A maior parte dos remédios populares é admi-nistrada na forma de chás, seguindo-se os defu-madores e o uso tópico. Beber a água na qual osanimais inteiros ou suas partes (por exemplo, opreá, Cavia sp., cujo caldo se recomenda paracasos de tuberculose) foram cozidos é procedi-mento recomendado para a cura de determina-das doenças. Poucas são as receitas que prescre-vem o consumo do animal (por exemplo, a car-ne cozida do urubu, que é indicada para o trata-mento da tuberculose e da epilepsia). Alguns

Tabela 1. Distribuição dos participantes da pesquisa quanto àlocalidade e o gênero.

Cidades

AlagoinhasAngueraAntônio CardosoCachoeiraCoração de MariaFeira de SantanaGovernador MangabeiraIchuIpiauIpuaçuIraráRiachão do JacuípeSantanópolisSanto AmaroSanto EstevãoSão Gonçalo dos CamposSão Sebastião do PasséSão FélixSerra PretaTanquinhoTeodoro SampaioTotal

Sigla

ALANACCACMFS

GMICIPIAIRRJSTSASESGSBSFSPTQTS

Masculino

1

1

1

14

Feminino

111114111115111732111

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modos de preparo e de administração são exem-plificados a seguir:

. Geléia de mocó (Kerodon rupestris) – cozi-nhar o mocó até sua carne soltar-se dos ossos.Depois, passar numa peneira para que não fiquenem uma ponta de osso. A seguir, bater no liqui-dificador e levar ao fogo com açúcar até o ponto

de geléia. Coloca-se em uma compoteira e todosos dias se deve comer um pouco. Recomendadopara casos de úlcera e gastrite;

. Fezes de elefante (Loxodonta sp. ou Elephassp.) – secar as fezes e fazer um xarope para trata-mento de derrame. Também são usadas comodefumador. “É tão bom que quando aparece cir-

Tabela 2. Espécies animais citadas como recursos zooterapêuticos pelos estudantes do curso Formação de Professores cursandoa disciplina Etnobiologia (semestre 2007.2) da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA).

Taxonomia

AnnelidaOligochaeta

MolluscaBivalvia

Crassostrea sp.Gastropoda

EchinodermataAsteroidea

ArthropodaCrustacea

Decapoda

HexapodaBlattodea

Periplaneta americanaIsopteraLepidoptera

OrthopteraAcrididae

Gryllus sp.

Diptera Musca domestica

ColeopteraPalembus dermestoides

Curculinidae (?)

HymenopteraMutillidaeApoica pallensVespidae

Nome comum

Minhoca

Ostra*Lesma

Caracol-vermelho*

Estrela-do-mar

Caranguejo

Camarão

BarataCupimLagarta-de-fogo*

GafanhotoGrilo

Mosca

Besouro-do-amendoimMorotó-de-coqueiro*

Formiga-onçaEnxu-de-chapéuMarimbondo

Matéria-prima

Inteiro

Inteiro (caldo)Inteiro

Gosma

Inteiro

Inteiro

OlhosBanha (gordura)Inteiro

InteiroCupinzeiroFato (massa visceral)

Líquido da pernaPerna

Inteiro

Inteiro

Inteiro

InteiroInteiroNinhoPicada

continua

Finalidade zooterapêutica

Asma

AfrodisíacoDepressão, ansiedade, asma,gastrite, furúnculo, rachaduranos pés, acne, verrugaManchas de pele, cicatrizante,acne, rachadura nos pésAlcoolismo

Asma

Inchaço nos olhosInfecçõesAlcoolismo

Asma, cólicas, cicatrizanteAsmaPara combater os sintomascausados pelo contato com ospelos urticantes

TerçolRetenção de urina, infecçãourinária

Furúnculo

Afrodisíaco

Inchaços, reumatismo

AsmaDerrameAsma, papeiraReumatismo

Locais citados

CM, RJ, SG, CA

TSTQ, Rj, SG, FS,CA, IP, IC, ST

SF

SF, GM

RJ, FS

FS, SF

SP, RJ, AC, SG, IRSG, CA

SG

FSRJ, FS

FS, TS

SG

SA

SGRJ

SE, IP, IR, SB

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co por aqui as pessoas vão recolher as fezes parafazer o remédio”;

. Caldo de lagartixa (Gekkonidae) – escaldaruma lagartixa e tomar o líquido em casos de sa-rampo;

Taxonomia

Dinoponera sp.Atta sp.Atta sp.FormicidaeTrigona spinipesMelipona scutellaris

Melipona sp.Apis mellifera scutellata

PiscesOsteichthyes

SyngnathidaeHippocampos sp.

CharacidaeSerrasalmus sp.

ErythrinidaeHoplias malabaricus

GadidaeGadus sp.

Gobiidae. . .

Electrophoridae Electrophorus sp.

. . .Condrichthyes

Carcharhinidae. . .

AmphibiaAnura

BufonidaeBufo sp.

Nome comum

Formiga-congaTanajuraFormiga-da-mandiocaFormigaAbelha-arapuáAbelha-uruçu

Abelha-mandaçaiaAbelha-italiana

Cavalo-marinho

Piranha

Traíra

Bacalhau

Moréia preta *

Peixe-elétricoCambotáPeixe

Tubarão *

Sapo

Matéria-prima

InteiroInteiroInteiroInteiroNinho (pedra)Mel

MelMel

PicadaSamborá (massade pólen)

Inteiro

Fel

GosmaBanha

Óleo de fígado

Inteiro

Óleo (banha)InteiroEspinhas

Banha

Banha

Inteiro (recém-abatido)Couro

continua

Finalidade zooterapêutica

Dor de ouvidoCirculaçãoDor de gargantaProblemas de visão, reumatismoPneumonia, derrameInflamação nos olhos, dor decabeça, gripe, sinusiteFortificanteFadiga, cansaço, gripe, picada deinsetos, hipertensãoReumatismoGripe

Asma

Icterícia

AlcoolismoDor de ouvido, inflamaçãoocular

Fortificante

Alcoolismo

Dores muscularesAsma, tuberculoseAlcoolismo

Problemas de circulação, doresem geral

Problemas de fígado, gargantainflamada, dor de ouvido,feridas, artrite, gonorréia, sífilis,reumatismo, asma, para retirarespinhos, câncer, fraturas ósseas,furúnculoFeridas crônicas

Sarampo, catapora, bronquite,cicatrizante

Locais citados

ICIP

ANRJ, AS

CM, RJ, STSP, FS, TS

FSSG, GM, IR,SB, RJ, TS

SF, GM, IR, SB

FS

TQ, RJ, FS, IC

CA

SF

RJ, GM, IR, SBAC, SG, GM

SG

GM, IR, IA

SP, AC, TQ,CM, RJ, SG,FS, GM, IR,SE, IC, AL

Tabela 2. continuação

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Tabela 2. continuação

Taxonomia

Leptodactylidae. . .

ReptiliaChelonia

TestudinidaeGeochelone sp.

ChelidaePhrynops sp.

Phrynops sp.

Cheloniidae. . .

SquamataTeiidae

Tupinambis sp.

IguanidaeIguana iguana

TropiduridaeTropidurus sp.

Gekkonidae. . .

CrotalidaeCrotalus durissus

BoidaeBoa constrictor

. . .

CrocodiliaCrocodilidae

Caiman sp.

AvesAnatidae

Anas sp.

Nome comum

JiaRã *

Jabuti

Cágado

Cágado d’água

Tartaruga

Teiú

Camaleão

Lagarto

Lagartixa

Cascavel

Jibóia

Cobra

Jacaré

Pata

Matéria-prima

CarneFígadoBanha

Inteiro

SangueInteiroFígadoBanha

Banha

Banha

Banha

BanhaInteiro

Inteiro

Inteiro

Couro

Banha

ChocalhoCouro

Banha

InteiroSangueFígado

Banha

Couro

Ovo

continua

Finalidade zooterapêutica

AlergiaDepressãoFeridas, câncer

Asma

Erisipela, vitiligo, reumatismoAsmaVitiligoGripe, retirar espinhos, dor degargantaDor de ventre, vermífugo, dor deouvido, inflamação

Reumatismo, machucados

Feridas crônicas, inchaços,reumatismo, inflamações, dor deouvido, criança que demora aandar

FeridasAsma

Cicatrizante

Sarampo recolhido, dor degarganta, coceira, catapora,varíola, asma (puxado), cólicasDerrame, sarampo

Dores de coluna, acne,reumatismoAsmaAsma

Artrite, artrose, reumatismo,dores em geral, erisipela, cólicas,para retirar espinhosAntiofídicoAntiofídicoAntiofídico

Asma, facilitar primeira dentiçãoem bebês

Bronquite, asma (puxa), dor degarganta, gripe, inflamação nosnervos

Locais citados

TQRJ, SG

AC, SB

SP, AC, TQ, RJ,SG, FS, TS, IA

RJ, SE

SB, IA

RJ, SG, IC

CM, SE

RJ

SP, TQ, CM,RJ, SG, FS, CA,SF, GM, IR, TS,SE, IA, ST, AN

RJ, FS, TS, SE,IA

IC, RJ, SG, CA,SB, TS, SA

RJ, SG, SF,GM, IR

FS, TS, IA

SP, CM, RJ,SG, FS, TS, ST,

AL, IC

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oletiva, 16(Supl. 1):1639-1650, 2011

Tabela 2. continuação

Taxonomia

Anser anserPicidae

. . .Stringidae

. . .Cuculidae

Crotophaga ani

ColumbidaeColumba liviaColumbina sp.

CorvidaeCyanocorax cyanopogon

TinamidaeNothura boraquiraCrypturellus noctivaguszabele

PhasianidaeGallus domesticus

Numida mellagusMellaguis gallopavo

PsittacidaeAmazona aestiva

RheidaeRhea americana

CathartidaeCathartes auraCoragyps atratus

CotingidaeProcnias nudicollis

TurdidaeTroglodytes musculus

MammaliaMarsupialia

DidelphidaeDidelphis sp.

Nome comum

Ganso *

Pica-pau *

Coruja *

Anum-preto

PomboRolinha-fogo-apagou

Cancão

CodornaZabelê

Galinha

PintoGalinha-d’angolaPeru

Papagaio

Ema

Urubu

Araponga*

Garrincha*

Saruê

Matéria-prima

Pena

Bico

Ovo

SangueInteiro

SangueInteiroSangue da cabeça

Pena

OvoPena

Banha

Ovo (inteiro)Ovo (casca)Gema (crua)MoelaPenaInteiroOvo (casca)FezesBanha

Fezes

Banha

Fígado

Inteiro

PenaCoraçãoOvoBanhaCarne

Ninho

Couro

continua

Finalidade zooterapêutica

Asma (puxado)

Impotência sexual

Insônia

AsmaEnjôo de mulher grávida

Fortalecer o anjo da guardaAbrir o apetite da criança, enjôoProblema de audição

Mofina, problemas neurológicos

PancadasEpilepsia

Expectorante,descongestionante, catarro,gripe, falta de ar, cicatrizanteBronquite, recuperar as forçasOsteoporose, ajuda na gravidezExpectoranteAsma, defruçoDerrameAsma, problemas de falaFortalecimento dos ossosDerrame, asma, cólicasAlcoolismo

Derrame, asma, dor de ouvido

Surdez

Alcoolismo, asma

Epilepsia, tuberculose, doençasinfecciosasDerrame, asmaAlcoolismoAsmaDores de colunaTuberculose

Epilepsia

Apressar o parto

Locais citados

TS

FS

SB

TQ, IC, RJ

GM, IRTQ, RJ, FS

SP, RJ, FS

TQRJ

AC, RJ, SG, FS,CA, SF, GM,

SB, TS, SA, SE,ST, AL, IC

TQ, CA, GMRJ

RJ, SG

RJ, SG, CA, ST

RJ

SP, RJ, SG, CA,SF, GM, IR, SB,

TS, SE, IA

FS

RJ

FS

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Tabela 2. continuação

Taxonomia

XenarthraDasypodidae

Dasypus sp.

MyrmecophagidaeMyrmecophagus tridactyla

CarnivoraCanidae

Canis familiaris

Dusicyon sp.

MustelidaeConepatus semistriatus

FelidaePanthera tigris

Cetacea. . .

SireniaTrichechidae

Trichechus sp.Proboscidea

ElephantidaeLoxodonta sp.Elephas sp.

RodentiaErethizontidae

Coendou cf. prehensilisCaviidae

Kerodon rupestris

Cavia sp.Artiodactyla

CervidaeMazama sp

SuidaeSus scrofa domesticus

BovidaeBos taurus

Nome comum

Tatu

Tamanduá-bandeira

Cachorro

Raposa

Gambá

Tigre*

Baleia

Peixe-boi

Elefante*

Luís-cacheiro

Mocó

Preá*

Veado

Porco

Leitoa

Boi

Matéria-prima

Rabo

Couro

Fezes

CarneFígadoBanha

Carne

Osso

Pênis

Óleo (banha)

Óleo (banha)

Fezes

Couro (espinho)

BanhaFezesGeléiaInteiro (Caldo)

Tutano dacanelaCouroBanha

Leite

Fezes

UrinaFígadoBuchoFel

continua

Finalidade zooterapêutica

Dor de ouvido, surdez

Asma

Catapora, asma, sarampo

Furúnculo, feridas, tosseAnemia, falta de ar, diabetesReumatismo

Dores reumáticas

Doenças de pele, convulsões,maláriaAfrodisíaco

Dores musculares, luxação

Dores reumatismo, torção,fortificante

Derrame

Derrame

SurdezDores nos ossosGastrite, úlcera, câncerCoqueluche

Reumatismo, dor de ouvido

HemorróidasSangue pisado, cicatrizante,sarnicida, pancadasAlcoolismo

Para afastar insetos, pararetirar forças negativas,sarampo, coceira, frieira,rachadura nos pésQueda de cabeloAnemiaVitiligo, frieiraDores no corpo, retirarespinhos, reumatismo

Locais citados

AC, RJ, SG, TS,AL, IC

IP

SP, CM, FS,SE, ST

IC, AL, AC,CM, SG, IR,

SB, TS

FS

SB

GM, SE

RJ, GM

CA

RJ, CA,

RJ, ST, AN

RJ

RJ

TQ, SG, IC, TS

SP, AC, RJ, FS,SF, IP, SB, TS

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iência & Saúde C

oletiva, 16(Supl. 1):1639-1650, 2011

. Fígado da raposa (Dusicyon sp.) – comer ofígado, cozido sem sal, para tratar diabetes.

O fenômeno zooterápico faz parte de um sis-tema médico tradicional bastante complexo, noqual estão incluídas, entre outras práticas popu-lares de cura e prevenção de doenças, as simpati-as e as profilaxias mágicas, tais como patuás,bentinhos, amuletos, talismãs, gestos e transfe-rências31. Os conhecimentos sobre utilizaçãomedicinal de animais são transmitidos de gera-ção a geração, especialmente por meio da tradi-ção oral, e estão bem integrados com outros as-pectos da cultura da qual fazem parte32. Dessemodo, o uso de substâncias animais deve sercompreendido segundo uma perspectiva cultu-ral, uma vez que sistemas médicos são organiza-dos enquanto sistemas culturais. Por outro lado,deve-se considerar a possibilidade de que deter-minado zooterápico, recomendado para trataralguma enfermidade específica, não surta efeitoterapêutico porque simplesmente não possuiprincípio ativo capaz de produzir tal efeito ou,existindo, não estar em concentração eficaz após

o preparo, acarretando prejuízos e riscos à saúdede quem acredita na eficácia do produto.

A literatura registra que a investigação etno-biológica sobre remédios tradicionais provenien-tes de recursos naturais é um recurso valioso nacrescente arte da bioprospecção para compostoscom potencial farmacológico23. No entanto, osrecursos faunísticos extraídos da natureza e co-mercializados como produtos da medicina po-pular podem produzir reações adversas sériasdevido às más condições de preparo e conserva-ção das matérias-primas de interesse zooterápi-co. Desse modo, é primordial que os naturoterá-picos à base de partes corpóreas dos animais(pena, osso, couro, bico, etc.), materiais fabrica-dos por eles (ninhos, casulos) ou produtos de seumetabolismo (peçonha, fezes, urina) sejam sub-metidos a uma análise de risco/benefício.

Várias doenças infecciosas podem ser trans-mitidas dos animais aos seres humanos (zoono-ses). Alves e Rosa27,33 chamam a atenção para apossibilidade de transmissão de infecções ou en-fermidades das preparações animais aos usuári-

Tabela 2. continuação

Taxonomia

Ovis aries

Capra hircusPerissodactyla

Equidae

Equus caballus

Equus asinus

Lagomorpha Leporidae

Oryctolagus cuniculus

Nome comum

Vaca

Carneiro

Ovelha*

Cabra

Cavalo

Jegue*

Jumenta-preta

Coelho

Matéria-prima

Leite

Urina

FezesSebo

LeiteFezesLeite

CrinaSuorCasco

Leite

Fezes

Finalidade zooterapêutica

Coqueluche, gripe, tosse alérgica,desnutrição infantilTosse, bronquite, coqueluche, quedade cabelo, tuberculoseDoenças de pele, gripe, asmaReumatismo, juntas endurecidas,dores nos joelhos, rachadura nospés, torção, fraturas ósseas,favorecer os primeiros passos dacriança, retirar espinhosAnemiaRestabelecer as forças do corpoAlergia, raquitismo, tuberculose,criança que demora a andar

VerrugasAsmaAsma (puxado)

Coqueluche (tosse convulsa),bronquite, tuberculose

Conjuntivite, problemas oculares,problemas de coluna

Locais citados

AC, SB, RJ, SG,FS, SF, IP

AC, TQ, RJ,SG, FS, CA,GM, IR, SB,

TS, SA, SE, IA,ST, AL, IC

RJ, IP

TQ, RJ, GM, IR

AC, RJ, TS

CM, RJ, SG, IP,ST, TS

TQ, RJ, CA

TQ, RJ

* Primeira citação para o estado da Bahia.

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os de zooterápicos, devendo-se este fato ser seri-amente considerado. Por exemplo, vários órgãose tecidos, incluindo ossos e bílis, podem ser umafonte de infecção por salmonella, causando diar-réia crônica e choque endotóxico33. Estes autoresenfatizam que a possibilidade de transmissão deoutras infecções e zoonoses sérias e amplamentedistribuídas, como a tuberculose e a raiva, de-vem ser consideradas se os tecidos do animal deorigem desconhecida forem manuseados e usa-dos como remédios tradicionais. Além disso, exis-te a possibilidade de haver reações tóxicas ou alér-gicas aos produtos animais.

Por outro lado, os produtos medicinais deorigem animal (zooterápicos) geralmente sãocomercializados sem levar em conta as condi-ções sanitárias dos mesmos. Tal fato pode, mui-tas vezes, acarretar o agravamento dos sintomasque aquele mesmo “medicamento” deveria com-bater, ou então provocar danos em outros ór-gãos e sistemas do usuário (paciente), podendolevá-lo a óbito. É importante, pois, realizar estu-dos microbiológicos para se detectar o nível depatogenicidade microbiana do uso medicinal deprodutos e/ou remédios tradicionais à base dematéria-prima animal.

Os animais, tanto quanto as plantas, demons-tram possuir princípios ativos de interesse para amedicina. Descobrir novas fontes de drogas a par-tir de informações populares requer dos pesqui-sadores formados nas técnicas e métodos da ciên-cia ocidental que se despojem de seu etnocentris-mo e encarem o fenômeno da zooterapia sem pre-conceitos, investigando laboratorialmente as es-pécies indicadas como medicinais para compro-var se compostos de valor farmacológico esta-riam, de fato, presentes5, 4,23,24. O fenômeno dazooterapia vem despertando o interesse de pesqui-sadores de diferentes domínios da ciência, que tantoregistram essa prática cultural quanto procuramcompostos que tenham ação farmacológica5,23,24.Esse interesse vai mais além quando se leva emconsideração os benefícios que compostos deri-vados de animais oferecem em termos de valormonetário e bem-estar humano. Por exemplo, aangiotensina, um anti-hipertensivo, traz para acompanhia Squibb cerca de 1,3 bilhão de dólarespor ano em vendas, além de contribuir para obem-estar e longevidade de milhares de pessoas23.

A perspectiva cultural deve ser levada em con-sideração em todo debate sobre uso sustentávelde recursos naturais23,25,34. Uma vez que os indi-víduos constituem componentes essenciais dapaisagem e suas atividades são fundamentais parao uso compatível em longo prazo, as políticas de

conservação biológica devem ser guiadas por umviés sociocultural, o qual inclui o modo como ospovos percebem, utilizam, alocam, transferem emanejam seus recursos naturais35. Desse modo,recomenda-se discutir os conhecimentos e práti-cas tradicionais relacionados com a zooterapiadentro de um contexto multidimensional do de-senvolvimento sustentável, uma vez que o uso deanimais devido ao seu valor medicinal é uma dasformas de utilização da diversidade biológica36.

Sob o ponto de vista ambiental, o uso demedicamentos tradicionais à base de animaispode ameaçar a biodiversidade. Desse modo, aprática da zooterapia é relevante porque implicapressão adicional sobre populações animais crí-ticas. Na maior parte das vezes, usuários e com-pradores de recursos zooterápicos não sabem quedeterminados animais estão ameaçados e em ris-co de extinção. Um exemplo tipifica a questão:dos 55 recursos zooterápicos medicinalmenteutilizados pelos pescadores do povoado de Siri-binha, em Conde, sete encontram-se listadospelo IBAMA26 como animais ameaçados de ex-tinção. São eles: jacarés (Caiman cf. latirostris),tartarugas marinhas (Chelonia mydas, Carettacaretta, Lepidochelys olivacea e Eretmochelys im-bricata), lontra (Lutra longicaudis) e preguiça(Bradypus sp.). Embora tenham sua caça, perse-guição e abate proibidos pela Lei Federal no 5.197,de 3 de janeiro de 1967, estes animais continuama ser usados, de forma clandestina, tanto tróficaquanto medicinalmente. Jacarés e lontras, porexemplo, fornecem duas matérias-primas cada,enquanto que a preguiça fornece apenas uma.Das tartarugas, animais de uso múltiplo, extra-em-se quatro matérias-primas, que são empre-gadas na elaboração de seis remédios prescritospara a cura de doze enfermidades5.

O registro da utilização medicinal de animaisno Estado da Bahia fornece uma contribuiçãorelevante ao fenômeno da zooterapia, abrindoespaço para debates sobre biologia da conserva-ção, políticas de saúde pública, manejo sustentá-vel dos recursos naturais, prospecção biológica elei de patentes. Sugere-se a realização tanto deestudos bioquímicos quanto farmacológicospara descobrir se de fato princípios ativos estãopresentes nos corpos destes animais, e que pos-sam promover o desenvolvimento de novas dro-gas para a indústria. Necessita-se, também, de-senvolver mais estudos etnozoológicos tantopara compreender a importância real da zoote-rapia para as comunidades tradicionais, quantopara desenvolver estratégias de manejo e uso sus-tentáveis das espécies animais, especialmente da-

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quelas em risco de extinção24. Uma alternativapara diminuir a demanda por produtos naturaisde uso medicinal deveria ser o de buscar nos la-boratórios a forma sintética de determinadocomposto ao invés de coletar populações intei-ras na natureza, levando-as à exaustão.

Ainda considerando a sustentabilidade da prá-tica zooterápica, governo e órgãos de saúde e am-bientais devem garantir a coparticipação dos usu-ários e pessoas interessadas no uso de recursosanimais com fins medicinais em todo o processo

de discussão, que envolve desde a obtenção damatéria-prima e modos de preparação e admi-nistração do zooterápico, passando pelos siste-mas populares de cura de uma dada doença diag-nosticada conjuntamente por médicos e curan-deiros. Aqui, deve-se pensar em programas deeducação ambiental e de saúde pública cultural-mente embasados, respeitando o conhecimentotradicional e tornando os praticantes da zootera-pia coautores e corresponsáveis pelo tratamento.

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Artigo apresentado em 08/08/2008Aprovado em 17/03/2008Versão final apresentada em 20/05/2008

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