cp 128102

Upload: joallancardimrocha

Post on 05-Oct-2015

23 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

mineria en bolivia

TRANSCRIPT

  • Luiz Fernandes de Oliveira

    HISTRIAS DA FRICA E DOS AFRICANOS NA ESCOLA.

    As perspectivas para a formao dos professores de Histria quando a diferena se

    torna obrigatoriedade curricular.

    Tese de Doutorado

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Orientador: Prof. Vera Maria Ferro Candau

    Rio de Janeiro, Abril de 2010

  • 2

    Luiz Fernandes de Oliveira

    HISTRIAS DA FRICA E DOS AFRICANOS NA ESCOLA.

    As perspectivas para a formao dos professores de Histria quando a diferena se

    torna obrigatoriedade curricular.

    Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Educao do Departamento de Educao do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

    Prof. Vera Maria Ferro Candau Orientadora

    Departamento de Educao PUC - Rio

    Prof. Marcelo Gustavo Andrade de Souza Departamento de Educao PUC - Rio

    Prof. Maurcio Paiva Andion Arruti Departamento de Educao PUC - Rio

    Prof. Luiz Alberto Oliveira Gonalves Faculdade de Educao UFMG

    Prof. Catherine Walsh Universidad Andina Simon Bolvar Equador

    Prof PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Cincias Humanas

    PUC Rio

    Rio de Janeiro, 08 de abril de 2010.

  • 3

    Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do autor e do orientador.

    Luiz Fernandes de Oliveira

    Luiz Fernandes de Oliveira, graduou-se em Sociologia em 1998 pela Universidade La Sapienza de Roma Itlia. Obteve o ttulo de Mestre em Cincias Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em maio de 2002, com a dissertao Caadores de Utopia: a construo de identidades e associao entre religio e poltica no Rio de Janeiro, orientada pela professora Dr Patrcia Birman. professor da UERJ, com atuao nos anos iniciais do Instituto de Aplicao Fernando Rodrigues da Silveira (CAp UERJ). Atua como professor de Sociologia no Ensino Mdio da Fundao de Apoio s Escolas Tcnicas do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC).

    Ficha Catalogrfica

    Oliveira, Luiz Fernandes de Histrias da frica e dos africanos na escola. As perspectivas para a formao dos professores de Histria quando a diferena se torna obrigatoriedade curricular. / Luiz Fernandes de Oliveira; orientador: Vera Maria Ferro Candau. 2010. 281 f. ; 30 cm

    Tese (Doutorado em Educao) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Inclui bibliografia

    1. Educao Teses. 2. Lei 10.639/03. 3. Formao docente. 4. Ensino de Histria/Diferena tnico-racial. 5. Histria da frica. I. Candau, Vera Maria F. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Educao. III.Ttulo.

    CDD: 370

  • 4

    Minha homenagem a Ex, o abridor de caminhos, senhor

    de todas as coisas. Lary!

    Ao meu irmo Ogum, companheiro das lutas mais difceis.

    Ogum y, ptki or ris!

    Ao meu pai Oxssi, que mostra-me a luta por um outro mundo possvel.

    ode k ro!

    minha me, lutadora e guerreira.

    meu pai (in memoriam). Ancestralidade e fora.

    Aos meus querid@s filh@s, Isadora, Malcolm, Joo Cndido e Francisco.

    minha eterna companheira, Mnica Lins.

    Ax!

  • 5

    Agradecimentos

    Este trabalho s foi possvel graas a uma srie de amig@s, companheir@s de luta e colegas de nossa incansvel profisso docente. As marcas na escrita e nas formulaes desta tese so decorrentes de anos de partilhas com diversas pessoas. Por isso meu agradecimento especial:

    minha orientadora, Vera Maria Candau, que com seu rigor e doura, possibilitou-me caminhar com segurana e f nesta complexa tarefa acadmica;

    s minhas(eus) professoras(es) da Ps-Graduao em Educao da PUC Rio, Isabel Lelis, Alicia Bonamino, Menga Ludke, Maurcio Arruti e Ana Waleska, pois partilharam minhas aflies e conquistas durante o percurso do doutorado;

    professora Iolanda de Oliveira da UFF, que me fez saborear seus profundos conhecimentos sobre os estudos tnico-raciais no Brasil;

    Ao Professor Ilmar Rohloff de Mattos, por ter contribudo com sugestes preciosas para esta tese nas bancas de qualificao;

    Aos professores que participaram da Comisso examinadora;

  • 6

    s(os) companheiras(os) do Grupo de Pesquisa em Estudo sobre Cotidiano, Educao e Cultura(s) (GECEC) da PUC Rio, que me acolheram com carinho e ateno;

    professora Ana Canen da UFRJ, que me iniciou nessa grande jornada acadmica;

    Ao professor e amigo Luiz Antnio Baptista dos Santos da UFF, que sempre acompanhou meu percurso acadmico;

    Aos professores da FAETEC, pela luta por uma educao antirracista e por compartilharem uma insistente jornada por um outro mundo possvel;

    Aos professores do municpio de Maca, que me fizeram compreender a luta por uma educao de qualidade, muito alm dos olhares, como dizem, especializados;

    s minhas colegas e amigas do Departamento dos Anos Iniciais do CAp UERJ por compartilharem a esperana de uma educao antirracista;

    Aos meus estudantes, de todos os tempos e idades, por me fazerem ser o que sou: um profissional que aprende no dia-a-dia;

    Aos meus companheiros de luta: Jorge Carneiro, Adriano Bueno, Jorge Nascimento e Jorge Sena, porque sempre apostaram no meu investimento

    acadmico;

    Aos meus amigos e colegas da Ps-Graduao em Histria da frica (a Turma afro de 2004) da UCAM, nos quais aprendi e fiz descobertas indispensveis para a luta antirracista;

    Ao amigo e Professor Ricardo Cesar, por ser um parceiro eterno;

    Aos meus amig@s do movimento negro, especialmente, Luciene Lacerda, Azoilda Trindade, Marcinha e Marquinhos;

  • 7

    famlia Tamburrano: Mario e Amlia (in memoriam), Cristiana e Alessandra, por terem sido fundamentais para que eu chegasse onde me encontro;

    Aos professores por me darem a honra e a oportunidade dos belssimos encontros nas entrevistas para esta tese;

    Aos Professores Marcelo Bitencourt, Mnica Lima e Edson Borges, pela ateno, pacincia e generosidade;

    Aos companheiros do SEPE, especialmente ao Professor Tlio, a Professora Izabel e a Professora Marize, por fornecerem preciosas contribuies polticas e acadmicas e;

    Aos(as) amig@s e a minha famlia, especialmente Mnica, Isadora, Malcolm, Joo Cndido, Francisco, Djanira, Moacir, Z Carlos, Beatriz, Elias, Carolina e Rafael, que seguraram a peteca nos momentos em que mais precisei.

  • 8

    Resumo

    Oliveira, Luiz Fernandes de; Candau, Vera Maria. Histrias da frica e dos africanos na escola. As perspectivas para a formao dos professores de Histria quando a diferena se torna obrigatoriedade curricular. Rio de Janeiro, 2010. 281p. Tese de Doutorado - Departamento de Educao, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    A presente tese desenvolve como tema a implementao da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educao Bsica. Por ser uma legislao que abre uma nova demanda educacional, o problema de investigao que apresento quais seriam as tenses e desafios terico-prticos postos formao de professores de Histria diante da iniciativa do Estado brasileiro em reconhecer a diferena afrodescendente nos currculos de Histria. Tem como objetivos analisar as perspectivas tericas presentes na legislao; identificar e analisar as aes do Estado brasileiro e do movimento negro nos processos de formulao e implementao da legislao; identificar os conhecimentos que os professores de Histria possuem sobre as questes mobilizadas pela Lei 10.639/03; analisar como os professores de Histria do ensino bsico se situam em relao ao reconhecimento da questo racial e da Histria da frica nos currculos de Histria para identificar a existncia ou no de tenses terico-prticas entre esse reconhecimento e suas trajetrias de formao profissional; compreender a maneira como esses profissionais enfrentam essas possveis tenses nas suas prticas pedaggicas a partir da sua formao e levantar algumas possibilidades de reflexo histrica e pedaggica para contribuir numa perspectiva de implementao da nova legislao. Como suporte terico, baseia-se nas contribuies de um grupo de intelectuais Latinoamericanos denominado Modernidade-Colonialidade sobre o processo de construo do conhecimento histrico na Amrica Latina. Desenvolve uma pesquisa emprica de carter qualitativo, atravs de entrevistas semi-estruturadas e da anlise documental e bibliogrfica. A pesquisa foi realizada com sujeitos com prvio conhecimento da Lei que realizaram um curso de extenso em Histria da frica, em 2006, promovido pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educao do Rio de Janeiro. Os resultados da investigao apontam para a constatao que os professores de Histria da educao bsica, diante das suas

  • 9

    formaes iniciais e prticas profissionais, esto e estaro vivenciando complexas e duradouras tenses e desafios de ordem poltica, epistemolgica e identitria sobre as relaes tnico-raciais em educao. Complexas por trs razes, em primeiro lugar, a nova legislao prope novos parmetros epistemolgicos,

    historiogrficos e pedaggicos para interpretao da realidade tnico-racial brasileira mobilizando-os, por sua vez, a reconstrurem seus conhecimentos histricos e pedaggicos adquiridos anteriormente; em segundo lugar, porque esta reconstruo exige a articulao de um projeto educacional comum envolvendo outros atores como os movimentos sociais e a intelectualidade negra e, por fim, por que esta construo abre a possibilidade de uma disputa sobre a legitimidade da razo moderna como nico referente do conhecimento histrico e a perspectiva de uma educao intercultural que aponte para as novas geraes no a simples constatao da diversidade tnico-racial brasileira, mas um caminho de negociaes, enfrentamento de conflitos, reconhecimento, trocas e dilogos entre diversos conhecimentos, Histrias e culturas.

    Palavras-chaves Lei 10.639/03; Formao docente; Ensino de Histria; Histria da frica; Diferena tnico-racial.

  • 10

    Rsum

    Oliveira, Luiz Fernandes de; Candau, Vera Maria. Histoires de lAfrique et des africains lcole. Les perspectives pour la formation des enseignants dhistoire quand la diffrence devient un impratif curriculaire. Rio de Janeiro, 2010. 281p. Thse de Doctorat - Departamento de Educao, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Cette thse a pour thme la mise en oeuvre de la Loi 10.639/03 et des Orientations Curriculaires Nationales pour lEducation des Relations Ethnico-raciales et pour lEnseignement dHistoire et Culture Afro-Brsilienne et Africaine dans lEducation Fondamentale. Comme il sagit dune loi qui met en scne une nouvelle demande ducationnelle, le problme de recherche se tourne vers les dfis thorico-pratiques relevs par la formation denseignants dhistoire devant liniciative de lEtat brsilien qui reconnat la diffrence afrodescendante dans les cours dhistoire. Mon objectif sera danalyser les perspectives thoriques prsentes dans la lgislation; identifier et analyser les actions de lEtat brsilien et du mouvement ngre dans les processus de formulation et de mise en oeuvre de la lgislation; identifier les savoirs des enseignants dhistoire sur les questions concernant la Loi 10.639/03 ; analyser la position des enseignants dhistoire de lducation fondamentale par rapport la reconnaissance de la question raciale et de lhistoire de lAfrique dans les cours dhistoire, dans le but didentifier lexistence de tensions thorico-pratiques entre ces savoirs et les trajectoires de formation professionnelle ; comprendre comment ces professionnels font face ces tensions dans leurs pratiques pdagogiques tout en considrant leur formation et engager une rflexion historique et pdagogique qui puisse contribuer la mise en oeuvre de la nouvelle lgislation. Comme cadre thorique, jaurai recours aux contributions dun groupe de savants dAmrique latine nomm Modernit-Colonialit concernant le processus de construction du savoir historique en Amrique latine. On mne une recherche empirique de base qualitative travers des interviews semi-structures et lanalyse de documents et bibliographique. Le travail de terrain a t men auprs de sujets connaissant dj la Loi et qui avaient suivi un cours dhistoire de lAfrique en 2006, organis par le Syndicat Etatal des Professionnels de lEducation de Rio de Janeiro. Les rsultats de cette recherche indiquent que, par rapport leur formation initiale et leur pratique

  • 11

    professionnelle, les enseignants dhistoire de lEducation fondamentale subissent (et continueront subir) la complexit des tensions dordre politique, pistmologique et identitaire lorsquil sagit des relations ethnico-raciales en Education. Si je parle de complexit, je le fais pour trois raisons principales : tout dabord, la nouvelle lgislation propose aux enseignants de nouveaux paramtres pistmologiques, historiographiques et pdagogiques pour linterprtation de la ralit ethnico-raciale brsilienne, tout en les poussant reconstruire leurs connaissances historiques et pdagogiques acquises prcedemment ; ensuite, parce que cette reconstruction exige larticulation dun projet ducationnel commun qui puisse accueillir dautres acteurs, lexemple des mouvements sociaux et de lintellectualit ngre ; finalement parce que cette construction ouvre la voie une dispute sur la lgitimit de la raison moderne comme rfrence unique de la connaissance historique et la perspective dune ducation interculturelle qui soit mme doffrir aux nouvelles gnrations non seulement la simple constatation de la diversit ethnico-raciale brsilienne, mais aussi un chemin de ngociations, daffrontement de conflits, de reconnaissance, dchanges et de dialogues parmi la diversit des savoirs, des histoires et des cultures.

    Mots-cls Loi 10.639/03 ; Formation de lenseignant ; Enseignement dhistoire ; Histoire de lAfrique ; Diffrence ethnico-raciale.

  • 12

    Sumrio

    1 Introduo .............................................................................................14 1.1 Como cheguei ao tema da tese?........................................................15 1.2 Situando o tema, o objeto e os objetivos de estudo ...........................22 1.3 Estratgias metodolgicas. ................................................................26 1.4 Limites da pesquisa............................................................................30 1.5 Relevncia acadmica e social da pesquisa ......................................31 1.6 Estrutura da tese ................................................................................36

    2 Histria, Epistemologia e Interculturalidade ..........................................37 2.1 Modernidade e Colonialidade.............................................................40 2.2 Diferena colonial, Interculturalidade e Educao..............................56 2.3 Pensamento lliminar, Pedagogia decolonial e a Lei 10.639/03: aproximaes...........................................................................................64

    3 Trajetrias, histrias e episdios na construo da Lei 10.639/03........74 3.1 Relaes raciais no pensamento social brasileiro..............................74 3.2 O negro no ensino de histria e na historiografia brasileira................84 3.3 Do movimento negro s discusses acadmicas na rea de educao: a Lei 10.639/03. ......................................................................98 3.4 A formao docente .........................................................................116

    4 O curso de Histria da frica na perspectiva dos sindicalistas ...........127 4.1 Da fundao do SEPE questo racial ...........................................127 4.2 A tese da Secretaria de Gnero, Anti-racismo e Orientao sexual 130 4.3 500 anos de resistncia indgena, negra e popular .......................133 4.4 Aes afirmativas e as novas demandas na rea de histria...........141 4.5 A Lei 10.639/03 chama o SEPE para uma nova dinmica...............145 4.6 A Secretaria de Combate a discriminao racial do SEPE ..............151 4.7 Tenses e perspectivas....................................................................160

  • 13

    5 O curso de Histria da frica na perspectiva dos formadores.............163 5.1 A proposta do curso .........................................................................163 5.2 Trajetria acadmica e poltica dos formadores...............................168 5.3 O curso do SEPE .............................................................................174 5.4 Formao docente, relaes raciais e a Lei 10.639/03 ....................177 5.5 Tenses e criao de espaos de enunciao.................................185

    6. O curso de Histria da frica na perspectiva dos participantes .........191 6.1 Identificando os docentes.................................................................191 6.2 Docncia, opes tericas e choque de realidade.........................194 6.3 A formao inicial e a introduo da Lei 10.639/03..........................200 6.4 Buscando uma nova formao no curso de extenso do SEPE ......205 6.5 Aplicabilidade da Lei 10.639/03 no ensino de histria e na educao ...210 6.6 Tenses e desafios: outras faces.....................................................214

    7 Perspectiva e emergncia de construo de uma anlise decolonial: concluses? ...........................................................................................233

    8 Referncias bibliogrficas ...................................................................256

    Anexos ...................................................................................................275

  • 14

    1 Introduo

    Sem passado negro, sem futuro negro, era-me impossvel viver minha negritude. Sem ser branco ainda, j no mais realmente negro, era um condenado.

    (Frantz Fanon, 1951)

    O branco quer o mundo (...) Mas existem valores que lhe escapam. (Frantz Fanon, 1951)

    No percamos tempo em litanias estreis ou em mimetismos nauseabundos. Deixemos esta Europa que no pra de falar do homem ao mesmo tempo em que o massacra por toda parte em que o encontra, em todas as esquinas de suas prprias ruas, em todos os cantos do mundo. H sculos... que em nome de uma suposta aventura espiritual, ela sufoca a quase totalidade da humanidade.

    (Frantz Fanon, 1961)

    Jean-Paul Sartre afirmou em 1961 que as palavras de Fanon representavam um tom novo. Quem ousa falar assim?. Mais adiante, Sartre declarava que esse mdico no queria conden-la (Europa), mas estava propondo uma anlise social e histrica a partir do olhar de um ex-colonizado. Poderia acrescentar que o pensamento de Fanon ecoa em nossas terras brasileiras em tempos de polmicas, discrdias acadmicas e proposies tericas em torno da questo racial, especialmente no campo da educao.

    O que proponho neste trabalho uma anlise, sem pretenses de trazer um tom novo mas inserida nos atuais debates acadmicos sobre a questo racial e a educao. Proponho uma reflexo sobre a implementao da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da Histria da frica e dos Africanos, da Luta dos Negros no Brasil e da Cultura Negra Brasileira no Ensino Bsico. Parto da afirmao, como suspeita, de que esta lei abre uma nova demanda no campo educacional brasileiro. Mais do que defender um reconhecimento da Histria da frica, uma releitura da Histria do Brasil, das relaes raciais e do seu ensino, a Lei 10.639/03 parece mobilizar uma dimenso conflitante e delicada, ou seja, o reconhecimento da diferena afrodescendente com certa intencionalidade de reinterpretar e ressignificar a Histria e as relaes tnico-raciais no Brasil pela via

    dos currculos da educao bsica, e trazendo consequncias para a formao docente.

    Quando iniciei a tarefa de escrever a tese de doutorado, muitas recordaes, aflies e sentimentos me ocorreram. Lembranas do percurso acadmico e

  • 15

    profissional enquanto docente, recordaes de carter filosfico e poltico, angstias e tenses em apresentar um problema consistente e coerente em funo de obrigaes e compromissos de estudo e sentimentos de que todo meu acmulo e experincia acadmica ainda no so suficientes para esta tarefa de grande responsabilidade social e cientfica. Entretanto, escolhas devem ser feitas.

    Considero necessrio comear pelo relato da minha trajetria profissional e acadmica, na medida em que ela justifica parte de minhas escolhas sobre o tema e o problema de investigao da tese de doutorado, pois, segundo Jorge Larrosa (1994, p.69), contando Histrias, nossas prprias Histrias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a ns prprios uma identidade no tempo.

    1.1 Como cheguei ao tema da tese?

    Em 1992 iniciei minha graduao em Cincias Sociais no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Aps trs semestres de curso, fui estimulado por amigos a mudar de planos e resolvi tomar outros rumos. Em 1993, surgiu a oportunidade de inscrio para a universidade La Sapienza de Roma. Animei-me, porque conhecia uma famlia italiana que aceitou me abrigar. A universidade La Sapienza (pblica) abria todos os anos um concurso para estudantes estrangeiros. A seleo consistia de uma prova oral em lngua italiana, ou seja, de uma entrevista baseada num livro de sociologia. Feita a minha inscrio no consulado italiano no Rio de Janeiro, parti para Roma em julho de 1993 e realizei o exame em outubro.

    Aps superar a prova, em novembro iniciei meus estudos em sociologia. Durante o curso, fui me aproximando das discusses no campo da antropologia, principalmente das temticas sobre cultura brasileira, identidades tnicas e religiosidades populares. O curso de graduao na Itlia muito diferente dos padres brasileiros. A graduao estruturada em provas orais com leituras prvias de quatro livros no mnimo - e a apresentao de um trabalho final denominado tesi di laurea. Depois de algum tempo neste pas, comecei a perceber que conhecia pouco sobre a realidade brasileira nos aspectos da diversidade tnica, cultural e religiosa. Aproximei-me da leitura de clssicos da antropologia brasileira e, quando se

  • 16

    apresentou a necessidade de produzir um trabalho final de curso, fiz a proposta ao meu orientador de realizar uma pesquisa etnogrfica sobre um tema que passou a me interessar muito: as religies de matriz africana, especialmente o candombl.

    O interesse pelas religies de matriz africana se origina em minhas descobertas pessoais sobre a cultura brasileira e suas implicaes polticas nos anos de 1990 e em minha ancestralidade negra. Por um lado, vivendo um longo tempo longe de minha terra, tomei conscincia de que lutar por transformaes polticas e sociais requer pensar a dimenso do simblico nas relaes sociais. Por outro lado, ao viver numa quase solido emocional durante cinco anos, recordaes de infncia tomaram conta de minha memria, e nestas, descobri que meu pai falecido em 1980, quando tinha apenas doze anos era negro.

    Essas duas motivaes viscerais deram o tom de minhas preocupaes de pesquisa a partir do ano de 1996. Com algumas informaes em mos sobre a existncia de militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) que so iniciados e praticantes da religio dos orixs, iniciei uma pesquisa de campo no Rio de Janeiro entre novembro de 1996 e julho de 1997 sobre a construo de afinidades eletivas (Lowy, 1988) e de identidades culturais entre religio e poltica (Clifford, 1984). Essa pesquisa somente se efetivou em funo de ter recebido uma bolsa de incentivo aos estudos que a universidade La Sapienza concedia a todos os estudantes baseada no mrito, ou seja, na realizao de provas com notas altas num menor tempo possvel. Ressalto que a bolsa tornou a pesquisa possvel, pois era um estudante que realizava diversos servios manuais (garom, porteiro de hotel, colheita de uvas etc.) nos intervalos entre as provas.

    Meu objeto de pesquisa se traduzia na investigao sobre alguns militantes do PT que pertenciam ao candombl e, ao mesmo tempo, associavam seus pertencimentos e prticas religiosas sua militncia poltica e utopias socialistas, sendo que alguns tambm se consideravam marxistas. Ao final da pesquisa, retornei a Itlia e defendi a monografia em maro de 1998.

    De volta ao Brasil, em abril, por conta de minha participao poltica e sindical desde 1986, fui contratado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educao SEPE, como funcionrio encarregado de algumas funes administrativas por um perodo de um ano. Esta fase no sindicato me possibilitou um contato bem prximo com as questes do campo educacional vividas pelos professores e conhecimento mais acurado das dificuldades e lutas destes por profissionalizao e melhorias na

  • 17

    qualidade de ensino. Desde ento, at o ano de 2003, participei de vrios eventos do SEPE e das suas discusses sobre polticas educacionais.

    Em novembro de 1998 fui selecionado para realizar o curso de Mestrado em Cincias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em dezembro, prestei o concurso e fui aprovado para lecionar Sociologia no Ensino Mdio na Fundao de Apoio s Escolas Tcnicas (FAETEC).

    No ano seguinte, fui chamado pela FAETEC para lecionar na Escola Tcnica Estadual Repblica, no bairro de Quintino, um subrbio do municpio do Rio de Janeiro. Concomitantemente, cursei o Mestrado at o ano de 2002 na UERJ, quando defendi a Dissertao Caadores de Utopia: Religiosidade afro-brasileira e militncia petista no Rio de Janeiro, uma continuao de minhas pesquisas iniciadas em 1996. Este trabalho significava um aprofundamento das discusses tericas que desenvolvi na graduao tendo por referncia as valiosas contribuies de Michael Agier (2001), Stuart Hall (1997) e Marshall Sahlins (1997). Estes, nas ento recentes anlises antropolgicas sobre cultura e identidades, rediscutiam as implicaes tericas contemporneas desses conceitos.

    No entanto, principalmente a experincia no magistrio, a partir de 1999, aliada as minhas preocupaes em relao s temticas africanas e Afro-brasileiras, que me motivaram e construram meu percurso at a tese de doutorado. Do ponto de vista pedaggico, o exerccio da docncia na educao bsica se revelou fundamental para a compreenso de processos educacionais relativos diferena tnico-racial.

    Sob diversos aspectos, no somente restritos relao pedaggica em sala de aula, como tambm possibilidade de participar e produzir seminrios, debates e projetos inter/multidisciplinares sobre a questo racial no Brasil, aprofundei meus estudos sobre as relaes entre esta temtica e as prticas de ensino, tendo como objeto de estudo as culturas e Histrias afro-brasileiras. Esta trajetria levou-me ao encontro das discusses realizadas no interior do movimento negro.

    Entretanto, um fato relevante na minha trajetria de conjugao entre experincia docente e o futuro projeto de doutorado foi minha atuao - em funo de ter obtido aprovao em concurso pblico em 2004 - no Colgio Municipal Maria Isabel Damasceno Simo de Maca e na Secretaria de Educao (SEMED) do mesmo municpio.

    Em Maca, a discusso sobre as questes tnico-raciais e educao inicia-se a partir de 2004, com perspectiva e inteno de criar uma poltica pblica voltada para

  • 18

    as questes da promoo da igualdade racial na educao. Esta se expressava atravs da Coordenao de Cultura Afro-brasileira (CORAFRO), um setor da Fundao Maca de Cultura da Prefeitura de Maca que desenvolvia projetos culturais e de cidadania com afrodescendentes. Uma de suas propostas foi a organizao de um curso de formao para os professores, atendendo nova demanda educacional estabelecida pela Lei 10.639/03. Entretanto, a proposta no teve de incio uma grande receptividade entre os gestores da Secretaria de Educao da poca.

    Em funo da iniciativa de dois professores de Sociologia, apresentei um projeto de trabalho com a comunidade e os professores da escola Maria Isabel Damasceno Simo. A partir da temtica Africanidade Brasileira, proposta pela escola desde o inicio do ano, apresentei um projeto de formao docente visando a construo da perspectiva de implementao da Lei 10.639/03 na escola e na Rede Municipal. Iniciamos, em setembro de 2004, um curso de extenso introdutrio sobre Histria da frica e dos Negros no Brasil, coordenado e ministrado pelos professores de Sociologia. O curso, alm dos contedos especficos de Histria africana e dos negros no Brasil, discutiu questes didticas, curriculares e metodolgicas para esse eixo temtico nos currculos do Ensino Bsico.

    Concomitante a este processo, em outubro de 2004, a CORAFRO incorpora esta iniciativa e realiza um seminrio que reuniu a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial do Governo Federal (SEPPIR), diretores de escola, gestores municipais (tambm de municpios vizinhos), supervisores e coordenadores para discutirem a implantao da Lei 10.639/03. As repercusses das discusses realizadas no seminrio chamaram a ateno da SEMED que, por iniciativa de alguns de seus gestores, convidou-me para discutir o tema. A partir desse convite que surge a proposta do projeto de Africanidade Brasileira nas Escolas de Maca.

    O projeto foi apresentado formalmente em janeiro de 2005. Logo em seguida foi realizada a primeira reunio oficial da SEMED com coordenadores pedaggicos, j incorporando o projeto de reestruturao curricular como uma das propostas de poltica educacional da SEMED. Nesta reunio foram relatadas algumas propostas de ao imediata e algumas metas a serem alcanadas. Dentro dessas metas, inauguramos, em novembro de 2005, uma Ps-graduao lato sensu em Ensino de Histria e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras para os professores da rede municipal.

  • 19

    Nessas intervenes integradas (Maca e FAETEC), comecei a perceber que no bastava o poder pblico e a gesto de uma unidade escolar tomarem iniciativas burocrticas para implementao da Lei 10.639/03. Fui fazendo descobertas e percebendo implicaes muito alm da ampla mobilizao poltica provocada por militantes negros e no negros, preocupados com as discriminaes raciais no setor pblico de ensino. De imediato observei que at mesmo a produo de materiais didticos no mobilizava as sensibilidades docentes e discentes para a reverso dos mecanismos de esteretipos e estigmatizao de negros e negras.

    Participando de diversas discusses e reflexes no espao acadmico e em escolas do estado do Rio de Janeiro, comecei a perceber que as novas diretrizes no estavam mobilizando os professores somente na discusso de como incluir nos currculos o novo artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN), iam alm, apresentavam aspectos mais profundos do ponto de vista da formao e das subjetividades docentes que exigiam pensar uma perspectiva no tradicional de prticas de ensino, a partir de contextos multiculturais e de questes referentes s identidades tnicas.

    Em minhas andanas por diversos espaos, ouvi diversas falas docentes em diferentes contextos escolares, no somente sobre a discusso da referida Lei, como tambm sobre as concepes e leituras iniciais de docentes que, desafiados pela obrigatoriedade da Lei 10.639/03, expressavam dilemas acerca de sua formao profissional e tenses em suas prticas de ensino diante de possveis conflitos tnico-raciais na escola e na sala de aula e da suposta dicotomia entre igualdade e diferena.

    A grande maioria dos docentes, ao longo de suas carreiras e formao inicial, j acumulara saberes pedaggicos, tericos e prticos, de carter tnico-raciais que, em grande parte, esto marcados pela ausncia de reflexes sistematizadas e pelos esteretipos consubstanciados pelo conhecido mito da democracia racial. A partir de algumas falas como Na frica a escravido existe at hoje (para justificar a inferioridade dos povos negros), percebi que h uma srie de reflexes conceituais a serem realizadas que mobilizam conflitos tericos, concepes eurocntricas e que tambm, mesmo tratando-se de concepes epistemolgicas, histricas e didticas amplamente consolidadas, esto sendo insistentemente postas prova diante da nova realidade educacional brasileira de escolarizao em massa.

    Em seguida, surpreendi-me com depoimentos docentes que confirmavam as produes acadmicas recentes sobre concepes hegemnicas do senso comum,

  • 20

    desconhecimentos histricos, assim como revelavam a pessoalidade das relaes que procura evitar conflitos cognitivos ou constrangimentos de opinio. Nestes aspectos se inserem as falas de professores que, constrangidos pela evidncia do racismo, no sabem lidar com pais de alunos ou no repreendem posturas racistas, seja l de onde vierem. Destaco ainda os relatos de docentes que no enfrentam os acobertamentos de colegas de profisso, quando estes solicitam deixar de lado um possvel conflito advindo de uma situao de discriminao contra crianas e jovens negros como: as crianas negras so chamadas de faveladas e o professor no intervm. Enfim, evidencio uma significativa distncia entre as reflexes tericas e conceituais sobre a questo tnico-racial e a disponibilidade efetiva, de grande parte dos docentes, de enfrentar possveis conflitos na prtica de ensino.

    Entretanto, uma novidade aparece na minha pequena caminhada e que no tinha observado na literatura acadmica: nas falas docentes as pssimas condies de trabalho eram consideradas um obstculo quase intransponvel para aplicar a nova legislao, ou seja, a falta de recursos e de tempo (tomado por uma carga altssima de trabalhos) intimamente relacionada s condies acadmicas objetivas, isto , ao pouco hbito de pesquisa e de leitura. Aqui se revelava uma dimenso pedaggica pouco discutida pelos especialistas da questo racial em educao, ou seja, as condies objetivas da docncia, aparentemente no relacionadas com a questo racial, mas que interferiam na predisposio da grande maioria dos professores para enfrentarem a discusso. Ora, se no h incentivo pesquisa por parte dos sistemas de ensino, se h pouco investimento em material didtico, se existe pouca valorizao da leitura por parte do docente e, o que o pior, uma precariedade de condies de trabalho, como exigir desses profissionais a pesquisa, a leitura ou o investimento com dedicao formao intercultural e antirracista de seus alunos? Ou como dizia uma professora: os professores, atualmente, tm que entender as vrias culturas. No temos tempo para isso.

    Na esteira deste discurso, surgiam tambm as questes das imposies administrativas, da permanente cobrana de resultados nas avaliaes e da precariedade salarial que vm instalando um cenrio de dificuldades, de desmobilizao e de desnimo entre os profissionais da educao. Tal quadro servia de justificativa para manter tudo do modo como estava, uma vez que, na lgica de um crculo vicioso presente na maioria das falas docentes, no adianta mudar nada, pois

  • 21

    nada muda na gesto educacional. Enfim, como desabafava uma professora: na minha escola o discurso do professorado refora o desnimo.

    Por fim, surgia a questo das relaes entre educao, igualdade e diferena. A maioria das falas docentes era permeada pela concepo de que as novas diretrizes curriculares do um carter problemtico educao, pois o que se pretende com a nova legislao, segundo sua leitura e interpretao, um tratamento especial para negros, contrariando a concepo de educao igualitria. Por outro lado, apareciam nas falas o reconhecimento da diversidade como um problema a ser enfrentado na sala de aula. O que percebi, portanto, uma tenso nas relaes entre igualdade e diferena, s vezes contrapostas, s vezes ambiguamente formuladas. Expressiva desta problemtica a pergunta de uma professora: Como falar das diferenas na sala de aula se a educao para todos?.

    No decorrer destas experincias com docentes e com os estudiosos da temtica, e tambm com meus estudantes, apresentei na seleo do doutorado na PUC Rio em 2005, um pr-projeto intitulado Histria da frica e dos africanos na escola: mais que um desafio, uma ferida aberta na formao docente. Este trazia como tema central pesquisar as possveis limitaes e desafios da formao docente para a implementao da Lei 10.639/03, e suas implicaes e dilemas no campo do currculo, das prticas pedaggicas e dos saberes docentes sobre as questes das relaes tnico-raciais em educao. Entretanto, a partir de 2006 o projeto se tornou mais especfico e mais focado em funo do aprofundamento das questes relativas interculturalidade e s diferenas tnico-raciais no Grupo de Pesquisa em Estudos sobre Cotidiano, Educao e Cultura(s) (GECEC) da PUC Rio, coordenado pela Prof. Dr. Vera Maria Candau e do qual sou membro at hoje. Veremos mais adiante que as questes que perpassam minha investigao e anlise dizem respeito a temas contemporneos da educao, interculturalidade, ao ensino de Histria, formao docente e s diferenas tnico-raciais.

    Enfim, foi um caminho tortuoso, de certezas abaladas e dvidas que surgiram como punhaladas nas minhas ingnuas convices professorais. Com suporte terico e metodolgico e na esperana de que as incertezas poderiam se transformar em novas reflexes, assumi um desafio que no somente individual, mas coletivo e profissional.

  • 22

    1.2 Situando o tema, o objeto e os objetivos de estudo

    Como apresentei no incio, esta tese est centrada na reflexo sobre a implementao da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educao Bsica. A partir de minha trajetria profissional e acadmica, mais do que formular hipteses, tendo a suspeitar que esta lei abre uma nova demanda no campo educacional brasileiro, qual seja, o reconhecimento da diferena afrodescendente com uma certa intencionalidade de reinterpretar e ressignificar a Histria e as relaes tnico-raciais no Brasil pela via dos currculos da educao bsica. No entanto, esse processo de implementao da Lei, vem trazendo, ao mesmo tempo, tenses, desafios e inquietaes para a formao docente, principalmente dos professores de Histria.

    O texto da lei afirma: Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, oficiais e particulares, torna-se obrigatrio o ensino sobre Histria e Cultura Afro-Brasileira. 1 O contedo programtico a que se refere o caput deste artigo incluir o estudo da Histria da frica e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio do povo negro nas reas social, econmica e poltica pertinente Histria do Brasil. 2o Os contedos referentes Histria e Cultura Afro-Brasileira sero ministrados no mbito de todo o currculo escolar, em especial nas reas de Educao Artstica e de Literatura e Histria Brasileiras. Art. 79-B. O calendrio escolar incluir o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Conscincia Negra. (Brasil, 2003)

    Como veremos mais adiante, a Lei referencia-se no reconhecimento do multiculturalismo1 como dado da realidade brasileira, na perspectiva da interculturalidade e na crtica ao eurocentrismo nos currculos oficiais. Sua proposta de releitura da Histria traz implicaes objetivas para a prtica de ensino e a formao docente, uma vez que, at recentemente, a grande maioria dos professores de Histria teve, em geral, em sua formao inicial, uma perspectiva terica marcadamente hegemonizada por um olhar eurocntrico e monocultural (Silva, 2001).

    A Lei 10.639/03 foi fruto de um processo histrico de lutas do movimento negro pela incluso da Histria e Culturas africanas e Afro-brasileiras nos currculos

    1 Sabe-se que este termo tem um carter polissmico (Candau, 2002), entretanto, utilizo esta terminologia, associando-a a perspectiva adotada nos textos oficiais sobre o reconhecimento do carter pluritnico e pluricultural brasileiro.

  • 23

    da educao bsica. A Lei foi sancionada em 09 de janeiro de 2003. Em maro de 2004, o Conselho Nacional de Educao (CNE) emitiu um parecer dirigido aos administradores dos sistemas de ensino e aos estabelecimentos de ensino e seus professores em todos os nveis. Tendo por base este parecer, o CNE, em 17 de junho de 2004, aprova por unanimidade, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais e para o Ensino de Histria e Culturas Afro-brasileiras e Africanas. 2

    A obrigatoriedade de incluso de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currculos da Educao Bsica trata-se de deciso poltica, com fortes repercusses pedaggicas, inclusive na formao de professores. (...). importante destacar que no se trata de mudar um foco etnocntrico marcadamente de raiz europia por um africano, mas de ampliar o foco dos currculos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econmica brasileira. Nesta perspectiva, cabe s escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, tambm as contribuies histrico-culturais dos povos indgenas e dos descendentes de asiticos, alm das de raiz africana e europia (Brasil, 2004, p. 8).

    As deliberaes do CNE so normativas e a Lei 10.639/03 tem um carter obrigatrio.3 Entretanto, um aspecto relevante na atual conjuntura das polticas educacionais que h uma obrigatoriedade de contedos a serem ministrados no mbito das disciplinas curriculares que compem o Ensino Bsico.

    Frente a uma nova perspectiva de obrigatoriedade de contedo, surgem algumas questes para o tratamento dessa delicada tarefa. Em primeiro lugar, ter presente que se trata de uma legislao em processo de implantao, com diversas iniciativas dos sistemas de ensino estaduais e municipais sendo realizadas por todo o Brasil desde 2004; portanto, qualquer anlise de sua implementao deve considerar a heterogeneidade destas experincias em construo. Em segundo lugar, a Lei est mobilizando sistemas de ensino e, principalmente, os docentes nas discusses curriculares acerca do que deve ser ensinado e quais so os marcos conceituais e paradigmas que consubstanciaro a escolha dos contedos.

    A partir destas consideraes iniciais, devemos levantar duas outras questes. A primeira se refere fundamentao terica da Lei, expressa no parecer do CNE,

    2 Em 10 de maro de 2008, foi sancionada a Lei 11.465/08. Esta nova Lei revoga a Lei 10.639/03 e acrescenta apenas a incluso do ensino da Histria e cultura dos povos indgenas. No entanto, trabalharei nesta tese a denominao da Lei de 2003 (10.639), pois esta denominao que obteve e tem grande popularidade na literatura acadmica e entre os docentes da educao bsica a nvel nacional. 3 Os pareceres emitidos pelo CNE orientam e fundamentam as diretrizes que se apresentam em forma de resoluo. Um parecer tem efeito de lei e serve para normatizar, deliberar ou assessorar as polticas pblicas do MEC e as legislaes em curso.

  • 24

    que estabelece alguns princpios e conceitos bem explcitos; a segunda, que estes no se apresentam em conformidade com a ampla tradio curricular praticada nos sistemas de ensino e por grande parte dos docentes diretamente envolvidos pelo que propugna a legislao. Portanto, as questes que se abrem com as novas diretrizes curriculares, que tm a seu favor uma ampla mobilizao e presso dos movimentos negros, alm da incorporao de indivduos nos sistemas de ensino engajados na luta antirracista, so inmeras e complexas. O fato que a Lei 10.639/03 mobiliza uma temtica no campo educacional as relaes raciais no Brasil altamente controversa e polmica.

    Ao tomar conhecimento da nova legislao e ao participar de diversas reflexes com docentes em vrios estados brasileiros4 sobre a Lei, percebi mais nitidamente que, instituir a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e dos Negros no Brasil, requer um investimento na formao docente e uma problematizao dos referenciais tericos e pedaggicos dos cursos de graduao e licenciatura. Observei que os cursos de formao de professores parecem partir de uma perspectiva monocultural e da negao de outras Histrias, criando lacunas na prtica pedaggica que precisam ser preenchidas ou ultrapassadas diante das novas diretrizes.

    Com base nestas reflexes, a tese que ora submeto a apreciao da banca tem como problema central de investigao a seguinte questo:

    Quais so as principais tenses e desafios terico-prticos postos formao de professores de Histria da educao bsica diante da iniciativa do Estado brasileiro em reconhecer a diferena afrodescendente nos currculos de Histria, expressa pela Lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de Histria e culturas afro-brasileiras e africanas nos currculos de Histria?.

    O foco na formao de professores de Histria se relaciona percepo de que este campo de conhecimento o que mais est absorvendo as tenses provocadas pela legislao. As Diretrizes Curriculares no tm como alvo exclusivo esta rea de conhecimento; entretanto, seus textos, normatizaes e orientaes, privilegiam uma

    compreenso propedutica do conhecimento histrico-social. Em outros termos, as questes que orientaram a pesquisa realizada foram:

    4 Alm de encontros especficos com professores da educao bsica, exposto na introduo, presenciei vrias discusses sobre a Lei 10.639/03, entre congressos, encontros e seminrios acadmicos nos estados de Alagoas, Bahia, Braslia, Cear, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e So Paulo.

  • 25

    Quais so as questes tericas que os professores de Histria tm de enfrentar diante da obrigatoriedade da implementao desta legislao?

    Que conhecimentos esses professores tm sobre as propostas tericas expressas na legislao?

    Quais suas posies sobre o reconhecimento da diferena tnica nos currculos de Histria?

    As presses dos movimentos negros e dos sistemas de ensino esto provocando tenses tericas e pedaggicas para os professores de Histria?

    Quais so as respostas que os professores tm dado diante da obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e dos negros no Brasil e seus principais desafios para aplicao das diretrizes diante de uma suposta invisibilidade das questes tnico-raciais e da Histria da frica em suas formaes iniciais?

    As questes que se colocam nesta pesquisa dizem respeito s implicaes tericas e prticas deste dispositivo legal diante da formao inicial de professores de Histria, ou seja, as implicaes para a educao das relaes tnico-raciais parecem ser muito mais complexas e tensas do que se possa imaginar. Exigir dos docentes a aplicao das novas diretrizes, significa mobilizar novas perspectivas de interpretao da Histria e desconstruir noes e concepes apreendidas durante os anos de formao inicial. Esta problemtica nos mobiliza na perspectiva de aprofundar as reflexes sobre a formao dos professores de Histria em relao s temticas sobre as diferenas tnico-raciais e educao.

    A partir das questes postas acima, os objetivos dessa investigao so os seguintes:

    Analisar as perspectivas tericas presentes na legislao que esto sendo apresentadas aos professores de Histria;

    Identificar e analisar as aes do Estado brasileiro e do movimento negro nos processos de formulao e implementao da legislao;

    Identificar os conhecimentos que os professores de Histria possuem, a partir de suas formaes iniciais, sobre as questes mobilizadas pela Lei 10.639/03;

    Analisar como os professores de Histria do ensino bsico se situam em relao ao reconhecimento da questo racial e da Histria da frica nos

  • 26

    currculos de Histria para identificar a existncia ou no de tenses terico-prticas entre esse reconhecimento e suas trajetrias de formao profissional; Compreender a maneira como esses profissionais enfrentam essas possveis tenses nas suas prticas pedaggicas a partir da sua formao;

    Levantar algumas possibilidades de reflexo histrica e pedaggica para contribuir numa perspectiva de implementao das novas diretrizes curriculares sobre a questo racial e educao.

    1.3 Estratgias metodolgicas.

    A perspectiva que proponho e sua abrangncia analtica para investigar as possveis tenses e desafios provocados pela introduo de uma nova legislao e suas respectivas polticas pblicas, exigem um tratamento metodolgico que articule, na perspectiva qualitativa, as tcnicas de entrevista e a anlise documental e bibliogrfica.

    A entrevista, segundo May (2004), tem a inteno de gerar compreenses sobre experincias, opinies, valores, aspiraes, atitudes e sentimentos das pessoas ou, como afirma Duarte (2004 p. 215), entrevistas so fundamentais quando se precisa/deseja mapear prticas, crenas, valores e sistemas classificatrios de universos sociais especficos, mais ou menos bem delimitados, onde os conflitos e contradies no estejam claramente explicitados.

    O tipo de entrevista que utilizei foi a semi-estruturada. As perguntas tinham o propsito de desencadear reflexes sobre o tema da pesquisa. Como veremos a partir do captulo trs, este tipo de entrevista foi bastante produtivo na medida em que possibilitou aos entrevistados desenvolverem questes muito alm do solicitado, o que enriqueceu nossa compreenso sobre o problema em foco. Em muitos momentos este tipo de entrevista possibilitou, tambm ao entrevistado, uma ocasio de organizao de ideias e de construo de um discurso para o entrevistador, ou seja, um momento de reflexividade sempre presente neste tipo de tcnica de pesquisa (Szymanski, 2004). Neste sentido, em muitas ocasies, tanto entrevistado como entrevistador, perceberam que os conhecimentos, informaes e descries analticas da temtica foram expostos numa narrativa indita, provocando por sua vez uma auto-reflexo sobre os sentidos dos contedos conversados na entrevista.

  • 27

    Assim, para um melhor entendimento das perspectivas docentes e as tenses e desafios entre os saberes histricos adquiridos na formao inicial, confrontados por sua vez com uma nova legislao, esta perspectiva metodolgica foi adequada na busca dos significados sobre a formao docente para estes professores. A partir da, a anlise do pesquisador, tendo como suporte sua experincia docente, seu referencial terico e sua aproximao junto aos sujeitos, permitiu uma leitura e compreenso aproximada da realidade.

    O trabalho de investigao que realizei, tentou identificar a existncia ou no de tenses e desafios no campo da formao docente de professores de Histria, provocadas pela implantao da Lei 10.639/03, privilegiando a dimenso da construo do conhecimento histrico e seus desdobramentos na Histria ensinada a partir da formao docente.

    Na delimitao do campo de investigao, escolhi um grupo de professores de Histria filiados ao Sindicato Estadual dos Profissionais de Educao do Rio de Janeiro (SEPE) que, durante seis semanas do ano de 2006, participaram de um curso de extenso em Histria da frica, promovido pelo SEPE em convnio com a Universidade Federal Fluminense (UFF).

    A escolha desses profissionais justifica-se pelo fato de ser um grupo que, alm de integrado s discusses pertinentes ao SEPE, tomou a iniciativa de participar de uma proposta de formao no campo das relaes tnico-raciais em educao para iniciar a aplicao da Lei 10.639/03 em suas prticas de ensino. Ou seja, por conta de uma demanda de formao, o sindicato, os docentes e a UFF investiram numa proposta de reflexo e possibilidade de aplicao, buscando atender s novas demandas abertas pela nova legislao no campo das questes de Histria da frica e relaes raciais em educao.

    Entretanto, este curso no se configurou como uma ao isolada do SEPE diante de tantas iniciativas acadmicas e dos movimentos sociais. Desde a sua fundao, o SEPE, como principal entidade representativa da categoria dos docentes no Rio de Janeiro, tem investido na formao docente, paralelamente e de forma conveniada, com as instituies responsveis pela formao profissional desde sua fundao, associando reivindicaes econmicas formao de professores como condio essencial para as melhorias da qualidade de ensino. Alm disso, a relevncia e a escolha deste grupo para a pesquisa, baseou-se em um histrico de discusso mais sistemtica que o SEPE tem desde 1998, sobre as questes raciais em educao. E

  • 28

    mais, veremos que ocorria, no incio deste sculo, uma organizao de professores de Histria dentro do sindicato que j se preocupava com as especificidades pedaggicas deste campo de conhecimento, muito alm das questes econmicas e sindicais. Em decorrncia disto, a proposta do curso era explicita: (...) contribuir para a atualizao dos professores diante das mudanas curriculares em curso na educao bsica. (SEPE, 2006a)

    Este curso de Histria da frica contou com a participao de cerca de 300 professores de diferentes redes de ensino, estudantes de Histria e sindicalistas. No incio da pesquisa de campo, procurei o SEPE para recolher informaes acerca do seu desenvolvimento e da participao dos cursistas. Verifiquei a existncia, dentre os participantes, de oitenta e sete professores de Histria. A escolha final dos entrevistados foi realizada de modo aleatrio entre aqueles que lecionavam Histria. Inicialmente enviei a proposta de pesquisa por e-mail, em seguida fiz alguns telefonemas apresentando a proposta de investigao e solicitando a participao como entrevistados. No decorrer destes contatos, vinte e dois professores aceitaram de imediato a solicitao. Entretanto, por conta de questes operacionais, alguns desses no puderam conceder entrevistas no tempo previsto. Ao final, o nmero de entrevistas realizadas com os professores de Histria participantes do curso foi de quinze profissionais.

    Aps a identificao do perfil profissional de cada um, ou seja, a escola, o ano de escolaridade e o sistema de ensino em que atuam, foram produzidas as entrevistas em diversos locais: algumas escolas em que eles trabalhavam e, predominantemente, em suas residncias. As entrevistas foram realizadas entre janeiro e maio de 2009. A partir de alguns eixos temticos da investigao e dos objetivos, constru um roteiro de entrevista com 20 questes semi-estruturadas relacionadas formao dos professores de Histria (Anexo 1); questo das relaes tnico-raciais no Brasil; ao reconhecimento da questo racial e da Histria da frica nos currculos e s possibilidades de aplicao da Lei 10.639/03 no ensino de Histria.

    Identifiquei tambm os formadores deste curso e seus organizadores, e realizei um segundo momento da investigao emprica com entrevistas, tambm semi-estruturadas, com esses sujeitos, privilegiando os mesmos eixos temticos acima descritos. Foram realizadas mais cinco entrevistas: dois sindicalistas do SEPE que organizaram e coordenaram o curso e trs professores que foram os professores-formadores (Anexos 2 e 3). Esses professores-formadores so especialistas em

  • 29

    Histria da frica: um professor de Histria da frica da UFF (foi o que formulou os contedos do curso e apresentou a proposta aos sindicalistas organizadores), outra professora de Histria da UFRJ (uma das principais especialistas em estudos africanos no Brasil) e, o terceiro, professor de Histria da frica da Universidade Cndido Mendes (UCAM). Vale destacar que neste curso participou tambm um outro professor de Histria da frica da UCAM, porm, por motivos de sade dele, no consegui entrevist-lo, embora suas publicaes e referncias tenham sido bastante divulgadas no curso e descritas por outros professores formadores.

    Outra tcnica de investigao utilizada foi a anlise documental e bibliogrfica. Muito se tem produzido no atual processo de implementao da Lei 10.639/03 o que influenciou bastante na mobilizao e na participao dos professores, dos sindicalistas e dos formadores deste curso.

    Assim, partimos da reconstituio histrica do processo que deu origem obrigatoriedade do ensino da Histria da frica e dos Negros no Ensino Bsico, por meio de anlise dos materiais impressos das diversas entidades do Movimento Negro, Ongs, Secretarias Municipais e Estaduais de Educao, alm dos materiais de formao pedaggica da Secretaria de Educao Continuada e Diversidade do Ministrio da Educao (SECAD / MEC), da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial do Governo Federal (SEPPIR) e da Fundao Cultural Palmares, bem como os textos referentes ao curso de extenso do SEPE, os documentos sindicais referentes temtica e textos e artigos dos formadores identificados na pesquisa.

    Outras fontes importantes que se constituem como documentos, referem-se s diversas produes acadmicas, livros, dissertaes e teses recentemente publicadas e defendidas em diversos programas de ps-graduao em educao. Essas fontes vm trazendo uma srie de reflexes e descries de diversas tentativas de implementao da Lei 10.639/03. A referncia a estes espaos de produo pedaggica e dos documentos neles produzidos, possibilitou-nos compreender melhor os caminhos e apostas para a implementao da Lei e, somada s entrevistas, ajudou-nos a identificar e contextualizar as aes dos sujeitos coletivos e individuais na promoo de propostas referenciadas na nova legislao.

  • 30

    1.4 Limites da pesquisa

    Como toda pesquisa acadmica que tem um recorte, faz-se necessrio explicitar que a nossa nfase em um dos elementos do campo educacional a formao docente delimita a perspectiva de construo do objeto de estudo. Neste sentido, possvel identificar principalmente trs limites deste estudo.

    Ao enfatizar a formao acadmica de professores de Histria esta pesquisa no pretende analisar as questes de construo curricular e dos aspectos didticos que o estabelecimento de uma nova legislao tende a mobilizar na educao bsica, at por que, com base no levantamento das experincias docentes que realizei, pude observar que nesta fase inicial de aplicao da legislao muitas tenses e contradies se apresentam, principalmente nos aspectos didticos.

    Estar analisando uma poltica pblica, oriunda de uma legislao ainda no seu nascedouro, no nos permite avaliar o que uma gerao inteira est colhendo como benefcio ou nus. O impacto da legislao d-se em diversos campos, como na prtica de ensino, nas questes curriculares, na formao docente, nas aprendizagens discentes etc. Por outro lado, numa perspectiva histrica (Cruz, 2007), a implementao de propostas curriculares voltadas para o contexto da sala de aula depende diretamente do papel exercido pelo docente. Portanto, os limites so precisamente aqueles de ordem didtica e de construo curricular, na medida em que, nestes aspectos, h que se dar tempo historicidade de uma legislao a ser efetivamente construda no seu lcus privilegiado de implementao, isto , na sala de aula.

    Entretanto, cabe aqui explicitar um outro limite da pesquisa. Trata-se da escolha dos profissionais de Histria da educao bsica que fizeram o curso.

    No incio da pesquisa, tinha uma ideia difusa de que a Lei 10.639/03 mobilizava uma dimenso conflitante na formao inicial dos professores de Histria. Mas quais profissionais escolher para realizar uma pesquisa mais aprofundada? Aqueles que no conhecem a legislao? Aqueles que somente ouviram falar?

    Aqueles que conhecem e aplicam a legislao? Aqueles que so vinculados a alguma associao de pesquisadores ou de professores de Histria? Algumas dessas opes e realidades eu j conhecia, em funo do que descrevi no incio desta introduo. Certamente, a escolha de uma ou outra opo, poderia resultar em achados

  • 31

    diferenciados. Neste sentido, optei por um contexto bastante especifico e desafiador: de profissionais que passaram por um processo de formao em Histria da frica no qual livremente se inscreveram, j revelando, assim, um interesse pela temtica.

    Portanto, o limite da escolha dos profissionais expressa uma possibilidade de pesquisa que poderia indicar um interesse de formao por parte desses professores em funo de um conhecimento prvio sobre os contedos da lei, o qual, talvez, no se apresentava na formao inicial dos mesmos. Obviamente, se procurasse por professores em determinadas escolas ou atravs de uma procura difusa ou aleatria, certamente outras conexes de sentido, alm da formao docente, poderiam se apresentar de forma mais intensa.

    1.5 Relevncia acadmica e social da pesquisa

    Nesta pesquisa, identifiquei, em linhas gerais, que a partir das grandes questes abertas pela Lei 10.639/03, as produes acadmicas e os textos chancelados pelo Estado brasileiro, concentram-se em elementos histricos, jurdicos e ideolgicos. As questes pedaggicas e tericas da formao docente no encontram ainda muito espao, mesmo fazendo-se presentes nos interstcios de muitos artigos ou trabalhos.

    Entretanto, esta constatao no pode se limitar a uma crtica a essas produes. Faz-se necessrio compreender que estamos tratando aqui de uma nova poltica pblica no campo da educao, e que tem como caracterstica a inovao, a disputa poltica contra-hegemnica, a desconstruo de conceitos e noes fortemente arraigados inclusive no campo educacional e, por conta disso, a proposio de novos parmetros interpretativos e analticos alternativos queles j consolidados nos estudos histricos e na educao.

    Neste sentido, justifica-se a nfase no discurso sobre aspectos histricos da questo racial no Brasil, na medida em que se faz urgente, com a nova legislao, visibilizar Histrias deliberadamente negadas. Por outro lado, a explicitao de aspectos jurdicos, alm de denunciar o silncio sobre os movimentos educacionais das populaes negras, coloca em evidncia que na Histria da educao brasileira existiram contribuies relevantes at mesmo em aspectos clssicos estudados no campo educacional elaborados por estes movimentos.

  • 32

    Por fim, a questo que se refere aos aspectos ideolgicos, est merecendo destaque de grande parte dos estudiosos e autores da rea, uma vez que o prprio parecer do CNE um documento oficial de Estado corrobora a luta antirracista na proposta de polticas afirmativas e de reparao na educao. Este aspecto evidencia-se como uma questo capital, pois, a meu ver, qualquer tentativa, legislao ou ao,

    visando a superao do racismo na educao, necessita de um combate s estruturas ideolgicas consolidadas que reproduzem os esteretipos, as discriminaes e o racismo contra negros e negras no espao escolar. Aqui fica evidente, como afirmam alguns trabalhos, que a nova legislao no mobiliza somente o espao escolar ou a comunidade em torno dela, mas tambm a sociedade por inteiro.

    No mais, preciso destacar que os textos e as produes oficiais de Estado possuem aspectos positivos de grande repercusso para as discusses tericas e pedaggicas no campo educacional.

    Em primeiro lugar, eles tm uma divulgao nacional. Ao contrrio das dezenas de livros, revistas acadmicas, de divulgao cientfica etc., a grande maioria dos rgos responsveis pelos sistemas de ensino (secretarias estaduais e municipais, alm de muitas universidades) receberam vrias coletneas de livros, textos etc., promovendo-se uma crescente divulgao nacional, mesmo sabendo que poucos professores e educadores tenham acesso fcil s mesmas.

    Em segundo lugar, estas publicaes foram forjadas dentro de uma rede de contatos e articulaes que envolveram especialistas da rea e movimentos sociais negros. Ou seja, diferentemente de muitas outras publicaes, construdas em espaos exclusivamente acadmicos e que, em seguida, se transformam em referncias para os pacotes educacionais vindos de cima das secretarias para as escolas -, estas tiveram a participao daqueles que tambm fazem parte dos de baixo, ou seja, educadores e profissionais que participam das tenses das prticas escolares. A prpria legislao foi forjada e elaborada a partir de anos de luta e combate ao racismo presente no espao escolar por parte de grupos e profissionais vinculados aos movimentos negros.

    Um terceiro aspecto se configura na sua dimenso propositiva. Ou seja, ao contrrio de alguns anos atrs, os discursos e produes no se limitam mais a denncia do racismo e da invisibilizao dos negros, mas incluem a elaborao de propostas concretas de superao da desigualdade racial na educao. Sem sombra de dvida, como afirma Lauro Cornlio da Rocha (2005), houve um salto qualitativo no

  • 33

    combate discriminao racial nas escolas a partir do movimento negro, da presena de negros e negras no espao acadmico e nas estruturas governamentais desde a abertura democrtica em meados dos anos de 1980.

    Um exemplo desta realidade se expressa quando comparamos algumas publicaes com outras no oficiais, como o relatrio A frica na escola brasileira (Nascimento, 1993), do 1 Frum Estadual Sobre Ensino da Histria das Civilizaes Africanas na Escola Pblica, realizada em junho de 1991, organizado por Elisa Larkin Nascimento. Neste, h uma vasta descrio sobre livros didticos, dicionrios e materiais pedaggicos que incitam, explicita e implicitamente o racismo nas escolas, alm de vrios esteretipos sobre a frica e os africanos e seus descendentes no Brasil, se caracterizando como uma publicao de denncia. Este relatrio foi divulgado em algumas escolas do Rio de Janeiro e de So Paulo. Nas suas referncias bibliogrficas encontram-se pouqussimas obras relacionadas a questes pedaggicas e de material didtico sobre negros e educao. Desde ento, ocorreram diversas iniciativas de carter propositivo em publicaes, fruns, concursos e, as legislaes como a LDBEN, os Parmetros Curriculares Nacionais e a culminncia expressa na

    Lei 10.639/03. Ainda neste aspecto, importante ressaltar o livro 100 anos de Bibliografia

    bsica sobre o Negro no Brasil (Brasil, 2000a), publicada pela Fundao Cultural Palmares, do Ministrio da Cultura, que descreve minuciosamente centenas de livros, artigos e materiais pedaggicos publicados desde a dcada de 1980 no Brasil. Todo esse movimento desemboca em outro aspecto positivo dessas publicaes: as iniciativas governamentais.

    Eliane Cavaleiro e Ricardo Henriques explicitam nas introdues e apresentaes, de uma coletnea do MEC (Brasil, 2005a), que essas publicaes so fruto das discusses realizadas nos Fruns Estaduais de Educao e Diversidade tnico-Racial e das elaboraes dos principais especialistas na rea de educao e relaes tnico-raciais. Numa dessas publicaes, no texto de Lucimar Rosa Dias, explicita-se que a Lei 10.639/03 demorou cerca de quatro anos para ser aprovada e que coincidiu com a ascenso do ento candidato Luiz Incio Lula da Silva a Presidncia da Repblica, em 2003, embora o projeto de Lei tenha sido apresentado em 1999, pelos deputados federais Ester Grossi e Ben-Hur Ferreira. Seguindo a trajetria de aprovao e regulamentao da Lei no CNE, a responsabilidade da redao do parecer, ficou sob os cuidados da professora Petronilha Beatriz Gonalves

  • 34

    e Silva, da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar) e antiga militante do movimento negro em So Paulo.

    O que se percebe nitidamente a presena de estudiosos, militantes ou ex-militantes do movimento negro, cada vez mais presentes em estruturas de governo, o que por sua vez facilitou a mobilizao de propostas de polticas pblicas de promoo da igualdade racial na educao.

    No resta dvida e veremos com mais detalhes - de que h uma trajetria, que se no linear, nos convida a perceber que antigos militantes do movimento negro ascenderam aos espaos das universidades e aos espaos governamentais. Isto ajuda a explicar tambm as conquistas legislativas e formais sobre a incluso das questes raciais nos sistemas de ensino e as formas propositivas, e no somente reivindicativas e de denncias, das vrias formulaes no atual momento. Esses atores sociais esto sendo caracterizados tambm como agentes da Lei. Este termo foi utilizado pelo professor Amauri Mendes Pereira no XXIV Simpsio Nacional da Associao Nacional de Histria (ANPUH) em 2007 e refere-se condio dos divulgadores e dos cobradores da aplicao da Lei 10.639/03. Ironicamente, este professor afirmava que se, em anos anteriores, muitas das aes dos movimentos sociais se encontravam na ilegalidade, agora, com uma Lei que instrumentaliza negros e negras a lutarem contra o racismo, os defensores dessa legislao so mais do que militantes so os agentes da Lei, ou seja, sujeitos que, numa condio anloga a dos militares, governos ou juzes, exigem o cumprimento da Lei 10.639/03, se encontrando numa posio contraditria, pois ocorre uma inverso de papeis sociais, ou seja, so os governados que exigem a aplicao jurdica da Lei 10.639/03 e punio dos infratores. Este momento da ANPUH foi a primeira vez que ouvi este termo, mas, segundo o mesmo professor, esta expresso j esta sendo recorrente em diversos espaos acadmicos e polticos.

    Entretanto, mesmo caracterizando esses aspectos positivos das elaboraes que vm sendo produzidas, este trabalho pretende contribuir basicamente em dois aspectos para o aprofundamento das questes colocadas.

    Embora no haja dvida sobre a relevncia das produes em curso, preciso destacar que as questes propostas em vrios trabalhos acadmicos ainda se encontram muito distantes das tenses, dos conflitos e dos desafios das prticas de ensino e da formao docente. Essas so bem evidentes e angustiadamente explicitadas por Lauro Cornlio da Rocha (2005, p. 203): por que to difcil

  • 35

    discutir prticas racistas no interior da escola?. Esse questionamento talvez seja compreensvel pelo fato deste estudioso ter enfrentado a dura realidade do espao escolar como coordenador pedaggico de uma rede municipal, ter participado de uma estrutura governamental a Secretaria de Educao do municpio de So Paulo - e ser um estudioso formado por um Programa de Ps-Graduao da Universidade de So Paulo (USP).

    Ou seja, para quem conhece e vive as prticas conflituosas do espao escolar, as produes disponveis nem sempre obtm ecos nas prticas vivenciadas por educadores. Portanto, primeira vista, h uma lacuna a ser preenchida a partir das produes em curso: quais mecanismos se fazem necessrios, de forma efetiva, para que as elaboraes e legislaes de uma poltica de promoo da igualdade racial na educao, que questiona valores, vises de mundo etc., se traduzam no espao escolar? E mais: essas produes bastam para que educadores e docentes tomem conscincia das mazelas produzidas pelo racismo na educao?

    A meu ver, as publicaes que vm se afirmando oficialmente devem levar em considerao tambm algumas questes essenciais para pensarmos a efetividade da implementao das diretrizes curriculares para a educao das relaes tnico-raciais. Essas questes perpassam a formao docente e a construo do conhecimento histrico, tanto acadmico quanto escolar.

    Esta problemtica se desdobra, tambm, num embate poltico antirracista, pois o que parece estar em jogo uma nova interpretao dos processos histricos, uma nova abordagem da construo de saberes que, at o presente momento, foi privilgio de um setor dominante na sociedade brasileira.

    H tambm uma srie de movimentos dentro dos espaos escolares e das salas de aula, que devem dialogar com as produes oficiais e acadmicas, pois, na dialtica dessas relaes que, na construo de uma nova poltica pblica, se favorecer a criao de poderosos laos e redes de combate ao racismo.

    Neste sentido, a relevncia social desta tese se insere na compreenso de que h necessidade de uma nova poltica educacional de formao inicial e continuada, para proporcionar positivamente s novas geraes, uma nova interpretao da Histria, uma nova abordagem da construo de saberes e a construo de novos paradigmas para a promoo de uma perspectiva intercultural, baseada em negociaes culturais e favorecendo um projeto comum onde as diferenas sejam patrimnio comum da sociedade brasileira.

  • 36

    1.6 Estrutura da tese

    O texto que se segue est estruturado em seis captulos, alm desta introduo. No segundo, apresento uma reflexo terica e epistemolgica sobre a construo do conhecimento histrico, tendo como interlocutores privilegiados as teorizaes de um grupo de estudiosos, em sua maioria latinoamericanos, chamados decoloniais, vinculados ao grupo de pesquisa denominado Modernidade/Colonialidade. Este ser nosso suporte terico de anlise.

    No terceiro capitulo, discuto o contexto histrico e terico de desenvolvimento das questes raciais em educao e a construo do processo de surgimento e tentativa de aplicao da Lei 10.639/03, articulando o texto em quatro eixos: o pensamento social brasileiro, o negro no ensino de Histria e na historiografia brasileira, o movimento social negro e a Lei 10.639/03 e, por ltimo, a questo da formao docente dos professores de Histria.

    No quarto captulo, introduzo a pesquisa de campo, apresentando os organizadores do curso de Histria da frica promovido pelo SEPE e pela UFF. Apresento os sujeitos e, de forma mais detalhada e com base em algumas categorias de anlise, discuto as aproximaes entre o declarado pelos sujeitos e o referencial terico.

    No quinto captulo, apresento os formadores do curso de Histria da frica e, na mesma perspectiva do captulo anterior, discuto algumas aproximaes entre o referencial terico e o declarado pelos sujeitos.

    O sexto captulo se constitui tambm em descrio e anlise, porm, os sujeitos so os professores participantes do curso promovido pelo SEPE. Com base em algumas categorias de anlise, investigo suas formaes e perspectivas de aplicao da Lei.

    Por fim, na parte conclusiva retorno s minhas questes iniciais o problema e os objetivos com o intuito de costurar possveis aproximaes entre o referencial terico e os dados empricos da pesquisa de campo alm de tecer algumas consideraes dos possveis desdobramentos do debate em curso no pas sobre relaes raciais e educao.

  • 37

    2 Histria, epistemologia e interculturalidade

    A cincia como um tronco de um baob, que uma nica pessoa no pode abraar. Provrbio africano

    Neste captulo farei uma reflexo acerca de uma possvel leitura sobre as questes raciais no campo das discusses em educao no Brasil, numa aproximao da mesma com as teorizaes de um grupo de estudiosos, em sua maioria latino americanos, que buscam um projeto epistemolgico e tico-poltico especfico a partir de uma crtica modernidade ocidental em seus postulados histricos, sociolgicos e filosficos.

    Esta escolha terica se justifica na medida em que o problema da minha investigao se encontra no campo dos estudos sobre a construo do conhecimento histrico dentro de um contexto marcado pela crtica colonizao e subalternizao de outros conhecimentos por uma perspectiva eurocntrica dominante at os dias atuais.

    Por outro lado, a leitura que assumi das diretrizes curriculares e da Lei 10.639/03 parece se encontrar numa perspectiva de construo de uma possibilidade de novas abordagens histricas sobre a identidade nacional, bem como de construo de uma educao intercultural e contra hegemnica, abrindo a possibilidade de tenses tericas na formao de professores de Histria. Entretanto, cabe destacar que as razes desta escolha no so as afinidades substanciais entre a nova legislao e esta formulao terica, mas a percepo da possibilidade, como veremos, de construo de um pensamento outro sobre a Histria social brasileira.

    Em 2006, entrei em contato pela primeira vez com as formulaes deste grupo de pesquisadores denominados Modernidade/Colonialidade (MC). E a primeira afirmao que me chamou ateno foi a de Catherine Walsh (2005), citando um pensador rabe-islmico Abdelkebir Khatibi: Descolonizar-se, esta a possibilidade do pensamento (p. 22).

    poca no era claro para mim o significado profundo desta ideia para a autora e os autores que veremos mais adiante. Porm, no contexto da discusso sobre

  • 38

    a interculturalidade em educao em meu grupo de pesquisa5, fui percebendo que as questes levantadas por estes autores do grupo MC faziam referncia s possibilidades de um pensamento crtico a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista e, na esteira dessa perspectiva, a tentativa de construo de um projeto terico voltado para o repensamento crtico e transdisciplinar, caracterizando-se tambm como fora poltica para se contrapor s tendncias acadmicas dominantes de perspectiva eurocntrica de construo do conhecimento histrico e social.

    Mergulhando nesta literatura, fui percebendo algumas afinidades com a questo que problematizo neste trabalho, ou seja, a formao de professores de Histria. Por conta de uma nova legislao calcada numa mobilizao social e acadmica com alguns pressupostos no eurocntricos, poder-se-ia abrir uma tenso terica na formao destes profissionais, marcada hegemonicamente por uma base epistemolgica eurocentrada.

    Essas afinidades, na medida em que um dos pressupostos das Diretrizes Curriculares (...) destacar que no se trata de mudar um foco etnocntrico marcadamente de raiz europia por um africano, mas de ampliar o foco dos currculos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econmica brasileira, revelavam ser uma das principais proposies epistemolgicas do grupo MC, o questionamento da geopoltica do conhecimento, entendida como a estratgia modular da modernidade. Esta estratgia, de um lado, afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e, de outro, invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem outros conhecimentos e Histrias. Para vrios desses autores como Enrique Dussel, Walter Mignolo, Anbal Quijano, Arturo Escobar, Santiago Castro-Gmez, Ramn Grosfoguel, Catherine Walsh, Edgardo Lander, Nelson Maldonado-Torres, entre outros, foi este o processo que constituiu a modernidade, cujas razes se encontram na colonialidade. Implcita nesta ideia est o fato de que a colonialidade constitutiva da modernidade, e esta no pode ser entendida sem levar em conta os nexos com a herana colonial e as diferenas tnicas que o poder moderno/colonial produziu.

    Foi Arturo Escobar, antroplogo colombiano e professor da Universidade da Carolina do Norte que, em julho de 2002, apresentou em grandes linhas as

    5 O GECEC, desde 2006, vem estabelecendo intercmbios com uma das intelectuais deste grupo Modernidade/Colonialidade.

  • 39

    teorizaes deste grupo, num trabalho apresentado no III Congresso Internacional de Latinoamericanistas em Amsterdam, intitulado Mundos e conhecimentos de outro modo. O trabalho analisava e relatava a perspectiva de um grupo que busca um projeto epistemolgico novo. Trata-se, em sntese, de uma construo alternativa modernidade eurocntrica, tanto no seu projeto de civilizao, como em suas propostas epistmicas.

    O grupo formado predominantemente por vrios intelectuais da Amrica Latina e apresenta um carter heterogneo e transdisciplinar. As figuras centrais deste grupo so: o filsofo argentino Enrique Dussel, o socilogo peruano Anbal Quijano, o semilogo e terico cultural argentino-norteamericano Walter Mignolo, o socilogo

    porto-riquenho Ramn Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada no Equador Catherine Walsh, o filsofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, o antroplogo colombiano Arturo Escobar, dentre outros.

    O postulado principal do grupo que a colonialidade constitutiva da modernidade, e no derivada (Mignolo, 2005, p. 75). Ou seja, modernidade e colonialidade so as duas faces da mesma moeda. Graas colonialidade, a Europa pode produzir as cincias humanas com um modelo nico, universal e objetivo na produo de conhecimentos, alm de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente. As principais categorias de anlise do grupo se constituem nos conceitos e noes sobre o mito de fundao da modernidade, a colonialidade (derivando da a colonialidade do poder, do saber e do ser), o racismo epistmico, a geopoltica do conhecimento, a diferena colonial, o pensamento liminar, a transmodernidade e a interculturalidade critica.

    Escobar, neste trabalho, alerta que o programa de investigao MC deve ser entendido como uma maneira diferente de pensamento em relao s grandes narrativas produzidas pela modernidade europeia como a cristandade, o liberalismo e o marxismo. Castro-Gmez (2005), por outro lado, esclarece que as questes que o grupo levanta se inserem num contexto discursivo mais amplo, conhecido na academia europeia e norteamericana como a teoria ps-colonial. Entretanto, reitera que essas questes no so simples recepes das teorias ps-coloniais (Said, 2001; Bhabba, 1999; Gilroy, 2001 entre outros), como se fossem sucursais latinoamericanas. So, ao contrrio, uma especificidade latinoamericana que estabelece um dilogo com a teoria ps-colonial e se situa em outra perspectiva, porm fora do eixo moderno/colonial.

  • 40

    2.1 Modernidade e Colonialidade

    Para compreender o entrelaamento dessa perspectiva com a discusso proposta nesta tese, necessitamos iniciar com a crtica contundente de Enrique Dussel ao mito de fundao da modernidade.

    Dussel, em seu artigo Europa, modernidade e eurocentrismo, de 2005, prope uma mudana de interpretao sobre o significado do conceito de Europa. No entanto, deixa claro o quanto esta questo difcil de discutir, pois se trata de um estudo que pode reverter concepes profundamente enraizadas na construo do conhecimento europeu.

    Para o filsofo argentino, a Europa moderna (em direo ao Norte e ao Oeste da Grcia) no a Grcia originria, est fora de seu horizonte. Com isso, ele deixa muito claro que a diacronia unilinear Grcia-Roma-Europa (esquema 1) um invento ideolgico de fins do sculo XVIII romntico alemo; uma manipulao conceitual posterior do modelo ariano, racista.

    Esquema 1

    (Fonte: Dussel, 2005, p. 59)

    Segundo o autor, difcil perceber que se trata de uma inveno ideolgica que rapta a cultura grega como exclusividade europeia e ocidental (Dussel, 2005, p. 59) e cuja inteno fazer entender que desde as eras grega e romana essas foram o centro da Histria mundial. Ao contrrio das vises predominantes que associam uma evoluo do pensamento de Plato, passando por Santo Agostinho a Descartes, ou seja, a sequncia greco-romana, crist, moderna como sendo unilinear, Dussel mostra que a seqncia histrica do mundo Grego Europa moderna, passa por outra perspectiva (esquema 2):

  • 41

    Esquema 2

    (Fonte: Dussel, 2005, p. 57)

    Como est exposto, a influncia grega no direta na Europa latino-ocidental (passa pelas setas a) e b). A seqncia c) da Europa moderna no entronca com a Grcia, nem tampouco diretamente com o grupo bizantino (seta d), mas sim com todo o mundo latino-romano ocidental cristianizado (Dussel, 2005, p. 57).

    O mito de fundao da modernidade para Dussel se encontra na assertiva de que o conceito de Europa eurocntrico, provinciano e regional, atravs de uma ideia de autoemancipao, uma sada da imaturidade por um esforo autctone da razo que proporciona humanidade um pretenso novo desenvolvimento humano. neste sentido que para Dussel se explica as descries de Hegel sobre a Histria universal.

    No esquema 2 ilustrado por Dussel, percebe-se que empiricamente nunca houve uma Histria mundial at 1492, pois para o autor:

    Antes dessa data, os imprios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expanso portuguesa desde o sculo XV, que atinge o extremo oriente no sculo XVI, e com o descobrimento da Amrica hispnica, todo o planeta se torna o lugar de uma s Histria Mundial. A Espanha, como primeira nao moderna (com um Estado que unifica a pennsula, com a Inquisio que cria de cima para baixo o consenso nacional, com um poder militar nacional ao conquistar Granada, com a edio da Gramtica castelhana de Nebrija em 1492, com a Igreja dominada pelo Estado graas ao Cardeal Cisneros etc.) abre a primeira etapa Moderna: o mercantilismo mundial. As minas de prata de Potosi e Zacatecas (descobertas em 1545-1546) permitem o acmulo de riqueza monetria suficiente para vencer os turcos em Lepanto, vinte e cinco anos depois de tal descoberta (1571). O Atlntico suplanta o Mediterrneo. Para ns, a centralidade da

    d

  • 42

    Europa Latina na Histria Mundial o determinante fundamental da Modernidade. Os demais determinantes vo correndo em torno dele (a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual etc.) so o resultado de um sculo e meio de Modernidade: so efeito, e no ponto de partida. A Holanda (que se emancipa da Espanha em 1610), a Inglaterra e a Frana continuaro pelo caminho j aberto (Dussel, 2005, p. 61).

    Continuando a argumentao, Dussel nos apresenta uma segunda etapa da modernidade, ou seja, da revoluo industrial e do iluminismo que aprofunda e amplia o horizonte no qual o incio se encontra o sculo XV.

    A Inglaterra substitui a Espanha como potncia hegemnica at 1945, e tem o comando da Europa Moderna e da Histria Mundial (em especial desde o surgimento do Imperialismo, por volta de 1870). Esta Europa Moderna, desde 1492, centro da Histria Mundial, constitui, pela primeira vez na Histria, a todas as outras culturas como sua periferia (Ibid, p. 61).

    A partir desse entendimento, podemos perceber que embora toda cultura apresente um comportamento etnocntrico, o caso especfico do etnocentrismo europeu parece ser o nico que pde pretender uma identificao com a universalidade-mundialidade. Pois, segundo Dussel, ocorreu historicamente uma unificao entre uma ideia de universalidade abstrata com uma universalidade concreta hegemonizada pela Europa como o centro. quando Dussel formula a ideia de que o ego cogito, a conscincia de si, foi antecedida em mais de um sculo pelo ego conquiro (eu conquisto), prtica luso-hispnica que impe sua vontade sobre as Amricas:

    A conquista do Mxico foi o primeiro mbito do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha evidente superioridade sobre as culturas Azteca, Maia, Inca etc, em especial por suas armas de ferro presentes em todo o horizonte euro-afro-asitico. A Europa moderna, desde 1492, usar a conquista da Amrica Latina (j que a Amrica do Norte s entra no jogo no sculo XVII) como trampolim para tirar uma vantagem comparativa determinante com relao a suas antigas culturas antagnicas (turco-muulmana etc.). Sua superioridade ser, em grande medida, fruto da acumulao de riqueza, conhecimentos, experincia etc., que acumular desde a conquista da Amrica Latina (Ibid, p. 63).

    Nesta lgica de raciocnio, a modernidade pode realmente nascer quando se deram as condies histricas de sua origem efetiva: 1492, uma emprica mundializao, uma organizao colonial e o usufruto da vida de suas vtimas, num nvel pragmtico e econmico (Ibid, p. 63).

    Walter Mignolo (2005) explicita melhor este mito, desconstrudo por Dussel, quando recorda que:

    (...) a emergncia do circuito comercial do Atlntico teve a particularidade (e este aspecto importante para a ideia de hemisfrio ocidental) de conectar os circuitos

  • 43

    comerciais j existentes na sia, na frica e na Europa (rede comercial na qual a Europa era o lugar mais marginal do centro de atrao, que era a China, e que ia desde a Europa at as ndias Orientais) (Abu-Lughod, 1989; Wolff, 1982), com Anhuac e Tauantinsuiu, os dois grandes circuitos at ento sem conexo com os anteriores; separados tanto pelo Pacfico como pelo Atlntico (2005, p. 75).

    Isto pode ser ilustrado nas figuras que seguem:

    Alguns dos circuitos comerciais existentes entre 1330 e 1550, segundo Abu-Lughod (1989). At esta data, existiam tambm outros no Norte da frica, que ligavam o Cairo a Fez e a Tombuctu (frica ocidental). (Fonte: Mignolo, 2005, p. 76).

    A emergncia do circuito comercial do Atlntico interligou os circuitos assinalados na ilustrao anterior com pelo menos dois no interligados at ento: o circuito comercial que tinha seu centro em

  • 44

    Tenochtitln e se estendia pelo Anhuac; e o que tinha seu centro em Cusco e se estendia pelo Tawantinsuiu. (Fonte: Mignolo, 2005, p. 77).

    A partir desta constatao, assim como Dussel, Mignolo defende a tese de que a emergncia da ideia de um hemisfrio ocidental deu lugar a uma mudana radical no imaginrio e nas estruturas de poder do mundo moderno/colonial.6 Nesta perspectiva, a cristandade na Europa, at o final do sculo XV, era marginal, identificando-se com Jaf e o ocidente, distinguindo-se da sia e da frica.

    A partir do sculo XVI, com o triplo fato da derrota dos mouros, da expulso dos judeus e da expanso atlntica, mouros, judeus e amerndios (e com o tempo tambm os escravos africanos), todos eles passaram a configurar, no imaginrio ocidental cristo, a diferena (exterioridade) no interior do imaginrio.

    Quando o grupo MC postula que a colonialidade constitutiva da modernidade, e no derivada, ele formula a ideia de que a modernidade na Europa e a colonialidade no resto do mundo, constituram a imagem hegemnica sustentada na colonialidade do poder, o que torna difcil pensar que pode haver modernidade sem colonialidade.

    Assim, a modernidade como um novo paradigma da Hist