cérebro se acreditarmos muito, a magia acontece? · m novembro de 1974, o ci-neasta alemão werner...
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CérebroSe acreditarmos muito, a magia acontece?AMULETOS NA CARTEIRA. RITUAIS DE BOA SORTE. COINCIDÊNCIAS EM QUE DESCOBRIMOS SIGNIFICADOS.
A IDEIA DE QUE «TUDO ACONTECE POR UMA RAZÃO». A ESPERANÇA, ASSUMIDA OU SECRETA, QUEOQUE
FAZEMOS, DE BOM OU DE MAU, ACABA POR SER-NOS DEVOLVIDO. PORQUE É QUE, NUMASOCIEDADE DOMINADA
PELO PENSAMENTO CIENTÍFICO, MESMO OS ATEUS E CÉTICOS CONTINUAM A FAZER USO DO PENSAMENTO
MÁGICO, UMA FORMA DE RACIOCÍNIO PRIMITIVA E IRRACIONAL?
Texto Sofia Teixeira Ilustração Shutterstock
m novembro de 1974, o ci-neasta alemão WernerHerzog recebeu um tele-
_ fonema a avisá-lo de queLotte Eisner - cineasta e
amiga inuilo querida de
Herzog - estava doente. Tão doente que pro-vavelmente morreria em breve. Herzog po-dia ter apanhado um voo que rapidamente o
levaria de Munique, onde vivia, a Paris, ondevivia Lotte. Issogarantiaquechegariaatem-po de se despedir dela. Só que Herzog não
queria despedir-se, queriaque Lotte vivesse.Por isso, no dia 23 de novembro, calçou umas
hotas, pegou mima.bússola, enfiou meia dií-zia de coisas num saco e iniciou uma cami-nhada a pé de três semanas para ir ter coma amiga. «Segui pelo caminho mais diretoaté Paris, com a firme convicção de que elaviveria se eu fosse ter com ela a pé», explicano livro Caminhar no Gelo (Tinta da China,2011), que reúne as notas desta peregrina-ção. Werner Herzog caminhou durante três
semanas no inverno, atravessando dois pa-íses, porque uma parte de si acreditava queesta caminhadademais de 700 quilómetrospodia adiar a morte da sua amiga.
O pensamento mágico define-se pe-la convicção de que o nosso pensamento,crenças, palavras ou ações podem alteraracontecimentos no mundo físico, ou, comoo definiu o historiador inglês Richard Ca-
vendish, «é um tipo de lógica que prefere a
plausibilidade poética à física». Nem todos
nospomos a caminho para fazer 700 quiló-metros a pé, mas quem nunca descortinou
significados ocultos em coincidências es-tranhas que atire a primeira pedra. E quemnunca desejou um milagre num momentode aflição que atire a segunda.
Acredita-se que o homo sapiens, a nos-sa espécie, surgiu há cerca de 300 mil anos.
Sabe-se, porém, que alguma coisa aconte-ceu há cerca de 70 mil anos: foi quando co-
meçámos a criar ferramentas sofisticadas,a usar adornos pessoais - como pulseiras
- a pintar o corpo e as parede das cavernas,a sepultar os mortos e a praticar uma sériede outros rituais inéditos até então. O bri-tânico Steven Mithen, especialista em ar-queologia cognitiva, acredita que isto acon-teceu porque houve uma alteração cerebral
que designou por «fluidez cognitiva»: atéaí coisas diferentes estavam arrumadas nonosso cérebro em gavetas diferentes e sem
comunicação, nessa altura, defende, elas
passaram a comunicar. Foi isso que nostrouxe a capacidade de abstração e a criati-vidade, mas também o pensamento mági-co, exatamente porque começámos a criarrelações entre coisas sem relação aparente.
A LER0 Ano do PensamentoMágico, Joan Didion,Cultura Editora, 2017
A escritora norte--americana conta comolidou com a morte do
marido, o escritor JohnDunne, e, durante o
mesmo período, a doençagrave da filha, QuintanaRos, dando conta de comoo pensamento mágicotomou conta da sua vidadurante este ano de luto e
angústia. Esta é uma dasmuitas frasesmemoráveis do livro queexplica em parte asorigens do pensamentomágico: «Porque nascimedrosa, semprepercebera que algunsacontecimentos na vidaestariam além dasminhas capacidades paraos gerir ou controlar.Alguns acontecimentoslimitar-se-iam a ocorrer.E este era um deles.Sentas-te para jantar e a
vida, como a conheces,termina. Muitas pessoascom quem falei, nessesdias em que Quintanaestava inconsciente no
hospital da UCLA,pareciam não ter essaperceção. 0 seu instintoinicial era que esteacontecimento podia sergerido. De forma a geri--10, só precisavam de
informação.»
A ANTROPÓLOGA E INVESTIGADORACatarina Casanova, professora associadado Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas da Universidade de Lisboa e dou-toradaemAntropologiaßiológica, garante,no entanto, que há possibilidade de isso teracontecido mais cedo na história da huma-nidade. «Há autores que defendem que aexistência de fluidez cognitiva é necessária
para anoção do "eu" e do "outro", para aexis-tênciade algum tipo de comportamento re-ligioso ou mágico-religioso e que os chim-panzés possuem essas características.»É disso exemplo a chamada «dança da chu-va» que fazem. «Por isso é aceitável pensarque, se tanto os chimpanzés atuais como os
humanos anatomicamente modernos pos-suem características idênticas, estas pode-riam já estar presentes num ancestral co-mum : um hominídeo que viveu há cerca de
6 a 7milhões de anos», defende.Os nossos ancestrais começaram muito
cedoatentar arranjar explicaçõesparaos fe-nómenos que observavam, e, numasocieda-de pré-científica, não é de estranhar que es-sas explicações tossem de natureza mágica.Eram as explicações possíveis: quando nãosabemos, só nos resta conjeturar. Mas podeser mais difícil de perceber como é que tan-tas vezes, em sociedades contemporâneas,
industrializadas e urbanas, se recorre a este
tipo de pensamento. «As sociedades com-plexas estão, por norma, construídas à vol-ta de um paradigma muito dependenteda ciência e não tanto de crenças mágico--religiosas ou superstições. Tal não signi-fica que todos os indivíduos tenham umaabordagem racional, lógica e científicaao mundo que os rodeia», explica a antro-póloga.
O ser humanoé obcecado com ocontrolo. E é isso queexplica que adultossaudáveis, ateus,céticos, recorram aopensamento mágicona exata proporçãodas suas angústiaspessoais.
AS CRENÇAS RELIGIOSAS SÃO A FORMAde pensamento mágico mais generalizada,muito embora tenham também - e alémdisso - uma forte componente histórica,cultural e de controlo ético e moral. Váriosestudos situam a população sem religiãoentre os 11 e os 16 por cento e os ateus 2 a3 por cento. Sabe-se que a tendência é pa-ra este número crescer, já que entre as no-vas gerações dos países industrializados onúmero de jovens sem crenças religiosasestá aumentar. Mas o que também está emfranco progresso são as novas formas de vi-vência espiritual, nascidas nos anos 1970,que se enquadram no movimento new-agee que misturam filosofias orientais, esote-
rismo, medicinas alternativas, astrologia,e cultura para-científica.
Veja-se o sucesso de obras como O Segre-do, de Rhonda Byrne, traduzido em 50 lín-guas e com mais de 30 milhões de exempla-res vendidos em todo mundo. O segredo de
Rhonda para vender tanto? Ter tido OprahWinfrey como «madrinha» não é um fatorde desprezar, mas o conteúdo que entusias-mou e mobilizou milhões foram frases co-mo estas: «Se consegue ver uma coisa namente, consegue tê-la na palma da mão»,«Nós atraímos aquilo que queremos atraire, se queremos atrair o sucesso, consegui-mos atrair o sucesso» e ainda «Peça, acre-dite e receberá». Os milhões de cópias ven-didas contam uma outra história: a de umaespécie que quer desesperadamente acredi-tar quepode controlar o seu próprio destino.
Na realidade é assim que começamos anossa vida, o ceticismo vem depois: os gran-des representantes do pensamento má-gico são as crianças entre os 2 e os 7 anos.«É umaforma de se adaptarem ao ambien-te externo que ainda têm dificuldade emcompreender», explica o psiquiatra DiogoGuerreiro. Por outro lado, também em cer-tas doenças mentais como a perturbaçãoobsessivo-compulsiva, os pacientes têm
crenças que levam o pensamento mágicoao extremo. «Acham, por exemplo, que se
não fizerem as coisas em determinada or-dem, cumprindo um ritual ou compulsão,
alguém de quem gostam pode ter um aci-dente.» Mas o psiquiatra garante que alémdas crianças, dos povos primitivos e doen-tes com patologia mental, muita gente, per-feitamente saudável, usa este tipo de pensa-mento. Porquê? «Porque nos permite criarsentido para coisas para as quais não há res-
posta e viver com maior tranquilidade. Con-fere uma ilusão de controlo, em situaçõesem que tudo parece caótico.»
Quando em excesso, causa disfuncio-nalidade, mas Diogo Guerreiro garanteque não ter qualquer tipo de pensamentomágico também não é muito normal. «Ter
algumas crenças em algo que não com-preendemos também nos ajuda a viver deforma saudável. Quer seja uma religião,uma forma de espiritualidade, acreditar
que o seu clube vai ganhar o campeonato
ou mesmo acreditar e confiar em alguémmesmo que ainda não tenhamos pro-vas lógicas para isso.» E lembra que esta
crença tem efeitos poderosos, dando co-mo exemplo o efeito placebo e as doençaspsicossomáticas: «Se acredito num me-dicamento, sinto-me melhor. Se acredi-to que tenho problemas cardíacos, sintoo coração abater mais forte.»
Talvez esta sensação de realidade em re-lação ao que não é real possa ser explica-da através do que acontece no nosso cére-bro: pensamento lógico e pensamento má-gico são processados da mesma forma e
pelas mesmas estruturas. «Ambos envol-vem a perceção sensorial, seguida do seu
processamento, interpretação e armaze-namento e incluem um processo criativo e
consequente análise crítica. As estruturas
e circuitos cerebrais responsáveis por es-tes processos cognitivos não são necessa-riamente indissociáveis, e não conheço ne-nhum estudo que demonstre claramente
que existem áreas do cérebro mais ativas
aquando do pensamento mágico versuscientífico», explicaoneurocientistaMiguelRemondes, do Instituto de Medicina Mole-cular de Lisboa, que estudano seu laborató-rio os mecanismos neuronais da perceção,memória e decisão.
Ou seja, na sua essência, os dois tipos de
pensamento não correspondem necessa-riamente a mecanismos neuronais distin-tos. Talvez porque também não respon-dem a necessidades diferentes: temos ne-cessidade de formar modelos acerca do quenos rodeiapara não sermos surpreendidos.«A nossa sobrevivência sempre dependeude como entendemos e nos adaptamos a
uma realidade dinâmica. Mas há duas for-mas de representar o universo, uma depen-dente exclusivamente da aquisição de da-dos e sua interpretação racional seguidade testes para validar cada interpretação,como as experiências científicas; outra de-
pendente deuma confabulação que, embo-ra ligada à realidade, apenas o está inicial-mente, já que a interpretação que lhe suce-de não precisa de ser racional. Aqui se situao pensamento mágico. Na sua base tudo é
possível, qualquerteoriaéigualmente acei-tável, já que não existem necessariamentecritérios para a sua aceitação», explica o
ncurocientista.
É Preciso Acreditar'.As sete leis do pensamentomágico, Matttew Hutson,Clube do Autor 12013]
Mattew Hutson, jornalistacom formação em neurociên-cias, explica neste livro comotodos nós acreditamos emalguma coisa e elenca as seteleis do pensamento mágicoque passam, por exemplo,pela nossa relação emocionalcom os objetos: já pensouporque équealgunssãoinsubstituíveis ou têm umvalor muito superior ao dos
simples átomos que o com-põe? Pensamento mágico.
E OS DOIS MODELOS PODEM CONVIVER
tranquilamente dentro de cada um de nós,mesmo quando a nossa profissão c fazer ci-ência. «Vários colegas são religiosos - cris-
tãos, judeus, hindus, budistas - e não são
por isso menos cientistas. Julgo que o prag-matismo leva os cientistas que professamreligiões a utilizar o pensamento científico
quando fazem ciência, e o pensamento má-gico quando fazem religião», opina MiguelRemondes.
Para os ateus e céticos, as explicações ra-cionais são sempre o primeiro caminho.Masnemsemprepermitemfazeroquemaisgostamos: identificar e catalogar, explicare gerir. Controlar. Somos obcecados com ocontrolo. E é isso que explica que os adultossaudáveis, ateus, céticos e que vivem em so-ciedades desenvolvidas, recorram ao pen-samento mágico na exata proporção dassuas angústias pessoais. Porque é que acon-tecem coisas más a pessoas boas? Porque é
que o nosso familiar morreu? Porque é que a
relação que pensávamos ser eterna acabou?
Quando nos privam de respostas racionais
aos nossos dramas ou perplexidades e, racio-nalmente, aresposta é umamão-cheia de na-da, ninguém pode levar-nos a mal por cons-truirmos uma história que responda a essas
perguntas. Precisamos de coisas que façamsentido como de pão para boca. E o opostode sentido é o vazio. Por isso, quando há umvazio, preenchemo-10, não importa muitocom o quê.
(WernerHersog chegou aParis no dia14 de dezembro, 21 dias depois de terpartido de Munique. LotteEisnerestava ainda doente, mas estávele vi-ria a morrer cerca de nove anos depois.Quando chegou, depois de se sentar,Herzog disse-lhe: «Abra ajanela, de háuns dias para cá aprendi a voar.»)