criminologia genÉtica: uma janela aberta...

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CRIMINOLOGIA GENÉTICA: UMA JANELA ABERTA PARA O RETROCESSO BIOLOGISTA Eduardo Luiz Santos Cabette Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal. Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”. Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23. Nada se sabe, tudo se imagina”. Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107. 1 – INTRODUÇÃO O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens etc. A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse ramo científico. Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos, surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma base marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.). Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genéticas pode influenciar os estudos criminológicos, ocasionando uma importante alteração de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória do pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos, prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana. Uma inicial incursão acerca da evolução histórica do pensamento criminológico, será capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da genética no campo criminológico hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de velhos paradigmas etiológicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram equivocadas e ilusórias. Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de alguma maneira atingir a existência humana, ensejando vilipêndios a tudo aquilo que caracteriza o “ser” do homem.

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CRIMINOLOGIA GENÉTICA: UMA JANELA ABERTA PARA O RETROCESSO BIOLOGISTA

Eduardo Luiz Santos CabetteDelegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação

Penal e Processual Penal Especial na Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal.

“Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”.Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.

“Nada se sabe, tudo se imagina”.Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107.

1 – INTRODUÇÃO

O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens etc.

A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse ramo científico.

Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos, surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma base marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).

Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genéticas pode influenciar os estudos criminológicos, ocasionando uma importante alteração de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória do pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos, prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.

Uma inicial incursão acerca da evolução histórica do pensamento criminológico, será capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da genética no campo criminológico hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de velhos paradigmas etiológicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram equivocadas e ilusórias.

Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de alguma maneira atingir a existência humana, ensejando vilipêndios a tudo aquilo que caracteriza o “ser” do homem.

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2 – ESBOÇANDO UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINOLOGIA1

O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estudos criminológicos encontra-se no surgimento do Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal preocupava-se com o estudo dos postulados jurídico – penais, procurando desenvolver uma formulação teórico – dogmática do Direito Penal, o advento da Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltando os olhos da pesquisa científico – criminal para o estudo do fenômeno do crime e, especialmente, da figura do criminoso.

O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois que defende a irradiação do método científico para todas as áreas do saber humano, até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas desse referencial teórico então dominante.

O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao método das ciências naturais, objetivando limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de mensuração e descrição. Por isso é que seu resultado acaba sendo a limitação do Direito às normas legais, evitando a consideração de fatores axiológicos, metafísicos etc.

O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao método de experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o fenômeno da criminalidade.

A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo método científico, dando destaque nunca dantes constatado ao estudo do homem criminoso e à pesquisa das causas da delinqüência.

Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com sustentação em dados empíricos ofertados pela demonstração experimental de leis naturais seguras e imutáveis.

O criminoso passa a ser objeto de estudo, uma fonte de pesquisas e experimentos com vistas à descoberta científica das causas do fenômeno criminal.

A obstinada busca de causas explicativas do agir criminoso em oposição às condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação do “livre arbítrio”, apontado até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitimador da responsabilidade criminal.

É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista, pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja apropriar-se de um conhecimento que propicie o domínio seguro de leis constantes a regerem o mundo e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele desviado.

A conseqüência imediata foi a consideração do criminoso como um “anormal”. A partir daí, bastaria dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar, de forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana aparentemente homogênea ou normal.

1 Um desenvolvimento mais aprofundado desta temática já foi por nós levado a efeito em outro trabalho. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A criminologia no século XXI. Revista Forense. Volume 374, jul./ago., 2004, p. 53 – 78.

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O primeiro grande passo dado por um pesquisador nesse sentido foi a doutrina preconizada por Cesare Lombroso, destacando-se a publicação de sua conhecida obra “O homem Delinqüente”, em 1876.

Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de “homo sapiens”, o qual apresentaria determinados sinais, denominados “stigmata”, de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chamado “criminoso nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões do crânio, maxilar inferior procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura dos braços, mãos e pés, pouca sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade sexual etc.). Todos esses sinais indicariam um “regresso atávico”, tendo em conta sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso intentou demonstrar uma ligação entre a epilepsia e aquilo que chamava de “insanidade moral”.

Percebe-se claramente o conteúdo determinista das teorias lombrosianas, o qual conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora, se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, tendo em vista uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigido por forças naturais irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sendo, jamais poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sendo as práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a sociedade legitimada a defender-se , impondo-lhe desde a prisão perpétua até a pena de morte.2

A doutrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por estudos ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica entre homens que perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpridores da lei.

Não obstante, deve ser atribuído a Lombroso o mérito de ser o primeiro a impulsionar os estudos que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua Antropologia Criminal, os estudos do homem delinqüente, razão pela qual tem sido considerado o verdadeiro “Pai da Criminologia”.3 A partir dele começam os mais diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o comportamento criminoso.

Inúmeras investigações científicas nos mais variados campos das ciências naturais e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas do fenômeno criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.

Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais destacados: Biologia Criminal, Criminologia Genética4, Psiquiatria Criminal, Psicologia Criminal, Endocrinologia Criminal, Estudos das Toxicomanias etc.

Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação etiológica endógena do crime e do homem criminoso. Procura-se apontar uma causa da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da criminalidade.

Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia Sociológica”, tendo como seu mais destacado representante Enrico Ferri.

2 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. São Paulo: RT, 1995, p. 75.3Op. cit., p. 82.4 O tema presente será melhor desenvolvido em itens posteriores.

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A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”, pondo a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da criminalidade, olvidava as importantes influências ambientais ou exógenas para a gênese do crime. Aliás, para os defensores da “Criminologia Sociológica”, as causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exógenas, de forma que mais relevante do que perquirir as características do homem criminoso, seria identificar o meio criminógeno em que ele se encontra.

No entanto, a “Criminologia Sociológica” em nada inova no que tange à postura de procurar uma etiologia do delito. Os criminólogos ainda insistem em encontrar “causas” para o crime, somente alterando a natureza destas, transplantando-as do criminoso para o ambiente criminógeno. Em suma, muda o “locus” da pesquisa, mas não muda a natureza claramente etiológica desta.

Os estudos relativos à atuação do ambiente na criminalidade são variegados, podendo-se mencionar alguns ramos a título meramente exemplificativo: Geografia Criminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrição, Sistema Econômico, Mal vivência, Ambiente familiar, Profissão, Guerra, Migração e Imigração, Prisão e contágio moral, Meios de Comunicação etc.

Ainda no matiz sociológico deve-se dar atenção especial às chamadas “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, as quais podem ser tratadas como item apartado, tendo em vista suas peculiaridades.

As Teorias Estrutural – Funcionalistas afirmam que o crime é produzido pela própria estrutura social, inclusive exercendo uma certa função no interior do sistema, de maneira que não deve ser visto como uma anomalia ou moléstia social.

A base teórica principal é ofertada por Émile Durkheim que dá ênfase para a normalidade do crime em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referência que “o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente impossível”. 5 Mas, o autor vai além, chegando a reconhecer que o crime não somente é normal, mas também “é necessário” para a coesão social, sendo uma sociedade sem crimes indicadora, esta sim, de deterioração social. Durkheim indica o fenômeno criminal como reafirmador da ordem social violada e, portanto, legitimador de sua existência. Toda vez que acontece um crime, a reação desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigência das normas legais. 6

Portanto, o desvio é funcional, somente tornando-se perigoso ao exceder certos limites toleráveis. Em tais circunstâncias pode eclodir um estado de desorganização e anarquia, no qual todo o ordenamento normativo perde sua efetividade. Não emergindo disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma situação de carência absoluta de normas ou regras, ficando a conduta humana à margem de qualquer orientação. A isso Durkheim dá o nome de “anomia”, efetiva causadora de desagregação e deterioração social. 7

O conceito de “anomia” e o reconhecimento da funcionalidade do crime no meio social produzem uma revolução quanto às finalidades e fundamentos da pena, vez que estes já não devem mais ser buscados na fantasiosa profilaxia de um suposto mal.

Outra formulação teórica relevante de matiz estrutural – funcionalista deve-se a Robert Merton. Ele se apropria do conceito de “anomia” para demonstrar que o desvio não passa de um produto da própria estrutura social. Portanto, absolutamente normal, considerando que esta própria estrutura é que vem a compelir o indivíduo à conduta 5 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martim Claret, 2001, p. 83. 6 Op. Cit., p. 86.7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 – 60.

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desviante. Merton expõe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o indivíduo ao crime no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas não lhe disponibiliza os meios necessários para o seu alcance legal. O indivíduo perde suas referências, sentindo-se abandonado sem possibilidades “normais” de conseguir seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressionado para a conquista de certos objetivos sociais, o indivíduo precisa preencher esse vácuo (anomia) de alguma maneira. E a única maneira disponível será a perseguição dos fins colimados por meios ilegítimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legítimos não estão acessíveis.

De acordo com Merton: “a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes”. 8 E mais: “a cultura coloca, pois, aos membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado, aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem – estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos, lhes são, em ampla medida, negados”.9

Outro referencial importante é a denominada “Teoria da Associação Diferencial”, produzida por Edwin H. Sutherland. Segundo essa construção teórica, a criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano, é aprendida conforme as convivências específicas às quais o sujeito se expõe em seu ambiente social e profissional.10

Essa linha de pensamento possibilitou a formulação da conhecida “Teoria das Subculturas Criminais”, para a qual o sujeito aprenderia o crime de acordo com sua convivência em certos ambientes, assumindo as características de determinados grupos aos quais estaria preso por uma aproximação voluntária, ocasional ou coercitiva.

Afirma Sutherland que o processo de “associação diferencial” propicia ao sujeito, de conformidade com seu convívio, aprender e apreender as condutas desviantes respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo de convívio – aprendizado os infratores menos privilegiados praticariam usualmente os mesmos crimes, vez que estariam conectados ao convívio de pessoas de seu nível social e só teriam oportunidade de aprender essas determinadas espécies de condutas delitivas, não sendo-lhes possibilitado o acesso a conhecimentos e condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De outra banda, os mais abastados teriam acesso ao aprendizado de outras modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razão disso também dificilmente incidiriam nas condutas afetas às classes mais baixas.

Há certo ponto de contato entre a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a modalidade de conduta atribuída aos indivíduos das classes pobres e abastadas apresentaria uma distribuição em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulação de Sutherland tem a pretensão de ser mais ampla, fornecendo uma fórmula geral apta a explicar a criminalidade dos pobres e das classes altas. Para o autor sob comento, qualquer conduta desviante seria “apreendida em associação direta ou indireta com os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse comportamento criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o comportamento conforme a lei”. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou não criminosa de acordo “com o grau relativo de freqüência e intensidade de suas relações com os dois tipos de

8 Op. Cit., p. 63.9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65.10 Op. Cit., p. 66.

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comportamento” (legal e ilegal). Isso é o que se denomina propriamente de “associação diferencial”. 11

Essa maior abrangência da teoria preconizada por Sutherland a teria tornado mais completa do que aquela defendida por Merton. Segundo a maioria dos críticos, as explicações de Merton seriam bastante satisfatórias para a criminalidade dos pobres, mas não serviriam para esclarecer por que pessoas dotadas de todos os meios institucionais e legais para a consecução de seus objetivos sociais, mesmo assim, perpetrariam ações delituosas. 12 Portanto, não é sem motivo que o termo “crime de colarinho branco” ou “white collar crime” foi cunhado e empregado originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma conferência que se passou na sede da “American Sociological Society”, com a finalidade de fazer referência a uma espécie de criminalidade praticada por pessoas de nível social elevado, e em especial na sua atuação profissional.13

Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural – funcionalista pode-se mencionar a chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, cujos principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma “correção da Teoria das Subculturas Criminais”, mediante a complementação implementada pelo acréscimo dos estudos das “técnicas de neutralização”. Estas seriam maneiras de promover a racionalização da conduta marginal, as quais seriam apreendidas e usadas lado a lado com os modelos de comportamento e valores desviantes, de forma a neutralizar a atuação eficaz dos valores e regras sociais, aos quais o delinqüente, de uma forma ou de outra, adere. 14

Na verdade, mesmo aquele indivíduo que vive mergulhado em uma subcultura criminal não perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma, sobre a influência e presta reconhecimento a algumas de suas regras. É desta constatação que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usados pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.

São descritas algumas espécies básicas de “técnicas de neutralização”: 15

a)Exclusão da própria responsabilidade – o infrator se enxerga como vítima das contingências, surgindo muito mais como sujeito passivo quanto ao seu encaminhamento para o agir criminoso.

b)Negação da ilicitude – o criminoso interpreta suas atuações apenas como proibidas, mas não criminosas, imorais ou destrutivas, procurando redefini-las com eufemismos.

c)Negação da vitimização – a vítima da ação delituosa é apontada como merecedora do mal ou do prejuízo que lhe foi impingido.

d)Condenação dos que condenam – atribuem-se qualidades negativas às instâncias oficiais responsáveis pela repressão criminal.

11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.12 Para um aprofundamento e uma discussão dessa crítica, a qual não caberia no presente trabalho, remete-se o leitor a nosso estudo anterior já mencionado: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 69 – 71.13 A conferência de Sutherland teve o título “White Collar Criminality” e foi publicada pela “American Sociological Review”, em seu número 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. O crime de colarinho branco: aplicação e eficácia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97.14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.15 Op. Cit., p. 78 – 79.

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e)Apelo às instâncias superiores – sobrevalorização conferida a pequenos grupos marginais a que o desviado pertence, aderindo às suas normas e valores alternativos, em prejuízo das regras sociais normais.

Note-se que a mais destacável “técnica de neutralização” é a própria criação de uma subcultura. Esta é a maior ensejadora de abrandamentos de consciência e defesas contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovação por parte de outras pessoas integrantes do grupo, ocasionam uma tranqüilização e um sentimento de integração que não se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e valores oficiais. 16

Inobstante os avanços obtidos com as “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, uma alteração verdadeiramente radical do modelo de pesquisa do fenômeno criminal somente adviria com o surgimento da chamada “Criminologia Crítica”. 17 É com ela que se leva a efeito o abandono da mais constante premissa da Criminologia Tradicional, qual seja, aquela de ser o crime uma realidade ontologicamente reificada.

A partir das idéias trazidas à tona pela revisão criminológica crítica, o crime passa a ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social responsável pela edição, vigência e aplicação das leis penais. Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encarado como um “anormal” e o crime como manifestação “patológica”.

A explicação para a criminalidade é agora procurada no desvelar da atuação do Sistema Penal que a define e reage contra ela, iniciando pelas normas abstratamente previstas, até chegar à efetiva atuação das agências oficiais de repressão e prevenção que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicação de alguém como criminoso é dependente da ação ou omissão das agências estatais responsáveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivíduos praticantes de atos desviantes não são tratados como criminosos, até que sejam alcançados pela atuação das referidas agências, as quais são pautadas por uma conduta e exercem um papel altamente seletivo. Ser ou não ser criminoso é algo que não está ligado à presença ou não de alguma doença ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou não o indivíduo sido retido pelas malhas das agências seletivas que agem baseadas em orientações normativas e sociais. 18

Propõem as Teorias da Criminologia Radical o abandono do velho modelo etiológico, visando erigir uma inovadora abordagem crítica do Sistema Penal, inclusive propiciando um sério questionamento de sua legitimidade.

A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia de que o Sistema Punitivo é construído e funciona com apoio em uma ideologia da sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um convívio harmônico entre as pessoas. O verdadeiro fim oculto de todo Sistema Penal seria a sustentação dos interesses das classes dominantes. Qualquer instrumento repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recaindo pesadamente sobre os pobres e raramente atuando contra os integrantes das classes dominantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O Direito é visto como absolutamente despido de qualquer finalidade de transformação social. Ao contrário, é encarado como um instrumento de manutenção e reforço do “status quo” social, conservando e alimentando desigualdades pelo exercício de um poder de dominação e força. 19

16 Op. Cit., p. 81.17 Também denominada “Nova Criminologia”, “Criminologia Radical”, “Criminologia Dialética”, “Criminologia Interacionista” ou “Criminologia da reação social”.18 Op. Cit., p. 86.19 LYRA, Roberto, ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 204 – 205.

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Impõe-se uma conscientização da gigantesca diferença de intensidade da atuação do Direito Penal sobre setores desvalidos da sociedade, enquanto apresenta-se bastante leniente e omisso perante condutas gravíssimas ligadas às classes dominantes.

É nesse contexto que emerge a “Teoria do Labeling Approach” ou “Teoria da Reação Social”. Enquanto o pensamento criminológico até então vigente advogava a tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente natural e até era preexistente às normas penais que o definiam num mero exercício de reconhecimento, o qual, aliás, consistia em um certo acordo universal, um consenso social; a “Teoria do Labeling Approach” virá para desmistificar todas essas equivocadas convicções.

O “Labeling Approach” ou “etiquetamento” indica que um fato só é tomado como criminoso após a aquisição desse “status” através da criação de uma lei que seleciona certos comportamentos como irregulares, de acordo com os interesses sociais. Em seguida, a atribuição a alguém da pecha de criminoso depende novamente da atuação seletiva das agências estatais.

Passa a ser objeto de estudo da Criminologia a descoberta dos mecanismos sociais responsáveis pela definição dos desvios e dos desviantes; os efeitos dessa definição e os atores que interagem nessas complexas relações. Deixa-se de lado a ilusão do crime como entidade natural pré – jurídica e do criminoso como portador de anomalias físicas ou psíquicas.

Essa nova linha de reflexões produz uma derrocada no mito do Sistema Penal como recuperador dos desviados. Contrariamente, entende-se que a atuação rotuladora do Sistema Penal exerce forte pressão para a permanência do indivíduo no papel social (marginal e marginalizado) que lhe é atribuído. O sujeito estigmatizado ao invés de se recuperar, ganharia um reforço de sua identidade desviante. Na realidade, o Sistema Penal assim concebido passa a ser entendido como um criador e reprodutor da violência e da criminalidade.

Finalmente cabe expor sumariamente a relação entre a “Sociologia do Conflito” e a “Nova Criminologia”.

Como já visto, a Nova Criminologia põe em cheque a idéia de que as normas de convívio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns. Aí está o ponto de contato com a “Sociologia do Conflito”, que apregoa ser uma tal concepção uma mera ficção erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na realidade, essa ordem social seria produto não de consenso, mas do conflito de interesses de grupos antagônicos, prevalecendo a vontade daqueles que lograram exercer maior dominação.

Com o esboço desse quadro evolutivo da ciência criminológica, é possível determinar dois principais momentos de mudanças conceituais e epistemológicas: o primeiro deles refere-se à transição do Direito Penal Clássico para o nascimento da Criminologia, sob a égide do Positivismo, com as inaugurais pesquisas lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente aí é que o homem criminoso adquire importância central nos estudos, que não mais se reduzem às dogmáticas jurídicas. O segundo momento relevante foi o da mudança radical do referencial teórico da Criminologia, propiciado pela emergência da chamada “Criminologia Crítica”. Nessa oportunidade abandona-se o modelo de pesquisa etiológico – profilático, mediante um consistente questionamento de um longo “processo de medicalização do crime”. 20 O fenômeno criminal passa a ser perquirido como criação da própria organização social e não mais

20 BORELLI, Andréa. Da privação dos sentidos à legítima defesa da honra: considerações sobre o direito e a violência contra as mulheres. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 10.

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como um ente pré – existente, passível de compreensão e apreensão pela aplicação isolada do método das ciências naturais.

A virada epistemológica propiciada pela “Criminologia Crítica” não desmerece o conjunto dos estudos anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa criminológica. Tão somente faz perceber que são possíveis explicações parciais para o fenômeno criminal, mas jamais tal questão pode ser devidamente desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violência em geral são problemas complexos que somente permitem uma visão ponderada através de um conjunto de saberes e métodos de investigação, os quais, isolados, produzem noções fantasiosas e distorcidas. Não é por outro motivo que atualmente se fala numa “Criminologia Integrada”. 21

Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evolução dos estudos criminológicos já anteriormente levada a efeito em outro trabalho 22 com um objetivo bastante definido: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possível como se chegou à ponderada e racional conclusão de que o “crime” em si não existe na natureza, tratando-se do resultado de normas humanas convencionadas. O criminoso, portanto, é somente todo aquele que infringe tais normas e não o portador de anomalias. As pesquisas etiológico – profiláticas, que são o original impulso da Criminologia, são impregnadas de um determinismo irreal porque baseadas em uma noção ilusória do crime como ente natural pré – jurídico, que o Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quando, na verdade, o crime é uma criação do Direito, podendo inclusive modificar-se ao longo do tempo e das mudanças sociais.

Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explicados por meio de uma abordagem etiológica (v.g. o homicídio perpetrado por um esquizofrênico que acredita estar esfaqueando um monstro) 23, deve-se ter em mente que se trata de um critério válido somente de forma eventual e parcial. Além disso, mesmo sua validade eventual em nada atinge a conclusão inarredável de que o crime é uma criação normativa, um filho do Direito e das convenções e não um rebento da natureza. O retorno a uma noção equivocada a este respeito, devido a qualquer espécie de descoberta científica e novas possibilidades de intervenção, constitui um enorme retrocesso do pensamento criminológico com riscos de terríveis conseqüências sociais e individuais.

3 – GENÉTICA: SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E DO CRIME?

3.1 – A REFLEXÃO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE

21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 – 618.22 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 – 78.23 O exemplo refere-se ao ato de “matar alguém”, tido como criminoso, mas obviamente não se olvida a questão da inimputabilidade sob o ângulo legal. É que o fim da exemplificação consiste na discussão sob o prisma criminológico e não jurídico.

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Há sempre uma casca envolvendo tudo que se apresenta ao nosso conhecimento e avaliação. Se nossa análise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela superfície, jamais rompendo essa casca de aparências, corre-se o grave risco de proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em dados e informações fantasiosas.

Sobre isso nos alerta o literato José Saramago em sua crônica “Jogam as brancas e ganham”, afirmando que “por baixo ou por trás do que se vê, há sempre mais coisas que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro”. 24

Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que propicia a ação ou omissão acrítica ou até mesmo bem intencionada, embora equivocada. Hanna Arendt chama a atenção para este ponto quando destaca a “banalidade do mal” escancarada no julgamento do medíocre funcionário do nazismo, Eichmann, responsável por massacres terríveis de seres humanos. À enormidade do mal produzido não correspondia o homem insignificante em julgamento: ele não era estúpido, porém era dotado de “uma curiosa e totalmente autêntica incapacidade de pensar”. 25

A capacidade de pensar é um atributo humano que não deve jamais ser desprezado. Quando isso ocorre, além de configurar uma deturpação do homem, pode ser a via ideal para sua autodestruição.

Mas, não basta pensar, este pensar precisa ser também livre, não pode estar amarrado a idéias pré – concebidas pelo próprio pensador ou assimiladas de terceiros sem um necessário filtro crítico. Não é bom que idéias alheias simplesmente dominem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente não é adequado que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o mundo a seu talante, vendo apenas aquilo que quer ver e desprezando a realidade. 26 São respectivamente casos de submissão acrítica e esquizofrenia intelectual, os quais freqüentemente se entrelaçam para conformar ideologias perniciosas.

A genética na atualidade tem sido apresentada, especialmente na grande mídia, como uma espécie de panacéia para todos os males. De outra banda, há aqueles que satanizam as pesquisas genéticas, somente apontando seus danos potenciais e perigos.

Diante de tal quadro é imprescindível exercitar nossa capacidade de pensar criticamente, não acatando simplesmente tudo aquilo que é proposto de acordo com esta ou aquela orientação.

No seguimento será abordada a apresentação da genética como possível solução para a criminalidade, como já tem sido aventado e alardeado pela imprensa na divulgação de certas pesquisas acerca de supostos “genes da violência” ou “genes do crime”.

3.2 – BASES DA CULPABILIDADE

O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto à sua legitimidade. Uma das discussões mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsável por seus atos criminosos ao

24 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 226. Ver também sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalém. 6ª. ed. Trad. Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, “passim”. 26 Desde antanho alertava Descartes sobre o perigoso erro de julgar que as idéias que estão em nós são semelhantes ou conformes as coisas que estão fora de nós. DESCARTES, René. De Deus, que Ele existe. In: SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda, 2006, p. 206.

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ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente responsável por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a repressão do criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?

A tradicional fundamentação legitimante do Direito Penal encontra-se na aferição da presença de “culpabilidade”, significando que determinada ação ou omissão pode ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejando a reprovação jurídica em razão de sua conduta ilícita.

Não obstante, a configuração teórica da culpabilidade já formalmente explicitada nos termos acima mencionados, carecia de uma sustentação material a indicar qual seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prática criminosa.

Neste passo surge a questão do “livre arbítrio” em conflito com uma concepção determinista do ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segundo o qual a culpabilidade reside na liberdade do autor atuar de modo diverso no momento do fato. Melhor dizendo, a censurabilidade do comportamento tem lastro no fato do culpado haver desejado agir de modo contrário ao dever quando podia atuar em conformidade com este. 27 Se o homem é dotado de certa liberdade para agir ao ponto de tornar-se o responsável por suas condutas, solucionada estará a questão da culpabilidade. Ao reverso, se o homem é, em suas ações e omissões, apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento, entra em crise a pretensão de responsabilizá-lo por seus atos.

Em “As Viagens de Gulliver”, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os Houyhnhnms) são seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por puro instinto. Não diferente do acima narrado é a postura dos Houyhnhnms perante os Yahoos, conforme se vê pelo seguinte trecho da ficção:

“Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, não os culpava por suas odiosas qualidades mais do culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma pedra afiada por cortar-lhe o casco”.28

Essa antiga discussão que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas teses deterministas, não teve fim e vem permeando toda a discussão acerca da legitimidade e eficácia dos instrumentos coercitivos penais.

Agora as afirmações de que talvez a genética possa apontar causas endógenas para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polêmica.

Nesse diapasão manifesta-se Casabona, aduzindo que “as hipóteses geneticistas sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente importante, mas não novo, na discussão sobre o fundamento da imposição da pena no livre arbítrio ou não”.29

O geneticismo que ameaça dominar as pesquisas criminológicas apresenta traços nitidamente reducionistas e deterministas.

O criminólogo passa a assumir um caráter semelhante ao heterônimo de Pessoa, Ricardo Reis, marcado pela crença “no destino como uma lei indiscutível e imutável que dirige a vida dos homens”. 30 É isso que o leva a produzir versos como estes:

“Nossa vontade e o nosso pensamentoSão as mãos pelas quais outros nos guiam

27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade Culpa – Direito Penal. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese do livre arbítrio como pressuposto da culpabilidade há bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo sentido: IDEM, O Problema da Consciência da ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, “passim”.28 SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 278.29 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.30 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25.

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Para onde eles queremE nós não desejamos”. 31

“Contenta-te com quem seres quem não podesDeixar de ser”. 32

Nesse contexto o homem é retratado como um títere passivo, movido por cordas invisíveis. Essas cordas já foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo demônio, passando para a crença Positivista nas causas endógenas mais variadas, e chegam na atualidade às mãos invisíveis ou microscópicas da genética.

Ora, se o crime é determinado pela presença de certos genes, o mal que ele representa deixa de ser “moral” para configurar um exemplo de “mal natural”. Um genocídio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espécie. Ao homem nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou solução a ser aventada deve ter um conteúdo terapêutico e jamais punitivo. Até sob um ponto de vista teológico as discussões ficariam polarizadas entre argumentos como os de Bayle, apontando Deus como “um gigantesco criminoso”, em contraposição a uma “teodicéia” de Leibniz, procurando formular uma defesa do Criador sob o argumento dos insondáveis mistérios dos desígnios divinos. 33

No início do século XIX, o Marquês de Laplace, conhecido físico e matemático francês, afirmava que a natureza e o homem eram guiados por um conjunto de leis físicas imutáveis, das quais não seria possível qualquer espécie de evasão. Essas leis guiariam os destinos das partículas mais ínfimas da matéria até a formação dos pensamentos humanos. Ele formulou a suposição de que uma vez configurado inicialmente o universo, “todos os eventos futuros, incluindo os que envolvem experiências humanas de passado, presente e futuro, foram especificados de maneira irreversível”. Tal suposição, como é bastante límpido, não deixa espaço para o conceito de livre arbítrio e configura “uma forma extrema de determinismo científico”. Não obstante, não foi preciso mais que um século para que o conceito determinista de Laplace fosse derrubado por descobertas científicas como as bases da física quântica e o Princípio da Incerteza do físico Werner Heisenberg. 34

É preciso questionar, como faz Casabona, se as investigações genéticas podem constituir no campo criminológico um verdadeiro “retorno às teorias biológicas sobre a criminalidade”. 35

Não parece restar dúvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizendo, retrocesso, às teorias biológicas deterministas sobre a criminalidade, a partir do momento em que se cogita da descoberta de um ou vários genes responsáveis pelo agir criminoso ou pelos vícios comportamentais humanos. Quando se verifica esse claro retrocesso à superada visão do crime como uma entidade natural pré – jurídica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e determinista, carregado de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuñez, “el ser humano es plenamente humano cuando es capaz de ir mas allá de onde es ‘impulsado’ y llegar al ámbito en

31 Op. Cit., p. 68.32 Op. Cit., p. 93.33 NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel, 2003, p. 31.34 COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. Trad. Giorgio Cappelli. São Paulo: Gente, 2007, p. 85 – 86. “Esse princípio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplaciano de um só golpe, já que demonstrou que qualquer configuração inicial do universo jamais poderia de fato ser determinada com a precisão que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace”.35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 – 114.

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que és ‘libre y responsable’, donde decide. El ser humano se deshumaniza cuando deja de ser responsable”. 36

É bem verdade que por um lado a biologização do crime retira do homem criminoso o pesado fardo da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punição, que passa a configurar uma retribuição tão injusta quanto um castigo imposto a um animal que agiu movido de acordo com suas naturais predisposições. Em contrapartida, não mais existe a esperança de emenda do homem criminoso, razão pela qual se não se pode mais legitimamente falar em sua punição, pode-se conceber um legítimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o infrator não é passível de reforma, seja por sua vontade manifestada espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social podem perfeitamente atingir extremos inimagináveis em outro contexto.

Considerando o homem delinqüente como portador de uma anomalia que inevitavelmente o precipita à conduta desviada, somente três opções podem ser aventadas: sua cura, sua neutralização ou sua eliminação pura e simples.

Se a cura não era em regra uma hipótese palpável para Lombroso, os novos biologistas criminais, sustentados na genética, sonham com terapias profiláticas mediante manipulações tornadas possíveis com o avanço científico. Descoberta a presença de um “gene criminógeno”, quem sabe sua extração ou sua manipulação pudesse significar a produção de um novo homem devidamente adaptado às regras do convívio social? Além disso, a atuação poderia não somente ser repressiva e preventiva pós – delitual, mas realmente preventiva (pré – delitual), atuando sobre os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham a enveredar-se pela senda do crime, numa concepção algo parecida com a ficção cinematográfica de “Minority Report”.

Aparentemente a genética aplicada à Criminologia seria portadora de grandes esperanças de um mundo melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.

Não obstante, os potenciais da genética nesse e em outros campos têm sido alargados de maneira fantasiosa, como será exposto no seguimento deste trabalho. Ademais, a manipulação genética alteradora da personalidade humana pode ser um instrumento extremamente arbitrário, incompatível com o respeito da dignidade humana e com as concepções do Estado Democrático de Direito.

A esperança de “recuperação”, “ressocialização”, “reforma”, “readaptação” ou “reeducação” do delinqüente permeia os sistemas normativos, mas merece questionamento quando se aventa a autoritária “intervenção estatal na esfera da consciência” do infrator. Ao Estado não é dado “oprimir a liberdade interna do condenado, impondo-lhe concepções de vida e estilos de comportamento”. É, pois, incompatível com o Estado Democrático a imposição ao condenado dos valores dominantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator, o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negando-se a adaptar-se às regras de convívio coletivo. 37

É por isso que o moderno pensamento criminológico e penitenciário optou desde muito tempo pelo afastamento da “pretensão de reduzir o cumprimento da pena a um processo de transformação científica do criminoso em não criminoso”. 38

Entretanto, conforme já exposto, ao criminoso determinado inevitavelmente por fatores endógenos não é somente o caminho terapêutico imaginável. Resta também,

36 NUÑEZ, Juan Martín. Sabiduria China. Disponíbel em: www.farodelautopia.webcindario.com , acesso em 31.03.07, p. 1.37 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 39.38 Op. Cit., p. 40.

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abandonada a vã esperança em sua mudança, o caminho da neutralização por meio da prisão perpétua ou da eliminação pela pena de morte.

Sabe-se que tais opções são impraticáveis no ordenamento jurídico brasileiro por força de normas constitucionais impedientes (art. 5º., XLVIII, “a” e “b”, CF). Mas, a discussão neste trabalho supera o âmbito estritamente jurídico – normativo razão pela qual se impõe a análise de todas as hipóteses.

No seio de um regime orientado por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais ou genéticos), seria natural o surgimento da idéia da eliminação dos inconvenientes ou pelo menos sua neutralização.

Arendt, tratando da configuração dos regimes totalitários, bem destaca que o “crime”, enquanto ação ou omissão deliberada é passível de “castigo”; já o “vício”, como pecha indelével e determinante do agir “só pode ser exterminado”. 39

Citando Proust, a autora lembra que a consideração de uma “predestinação genética” como motivadora de condutas pode produzir, até certo ponto, uma relativa tolerância para com os transgressores. Entretanto, “num certo momento essa tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os verdadeiros criminosos mas todos os que estão ‘racialmente’40 predestinados a cometer certos crimes, o que pode ocorrer quando a máquina legal ou política, refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial. Se for permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício, ele será mais cruel e desumano do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta”. 41

É preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebido como um ramo científico autônomo de caráter normativo, é altamente influenciado em sua conformação pelas concepções formuladas pela ciência criminológica. Pode-se afirmar que “a ciência penal, em data de hoje, é totalmente permeável às propostas da Criminologia”. 42

Como afirma Peláez:“La criminología y el derecho penal son dos ciencias autónomas , pero ni

opuestas, ni separadas, más bien asociadas. No se resuelve ningún problema penal sin tener en cuenta los resultados de la criminología, convertida en base indispensable de la teoria y la práctica del derecho penal moderno, así como del derecho penitenciario y del derecho procesal”. 43

Cabe agora a seguinte indagação: Qual espécie de Direito Penal seria aquele conformado de acordo com uma

criminologia genética?A resposta evidente a esta relevante questão é a de que seria um modelo de

Direito Penal Autoritário, estruturado como um “Direito Penal do Autor” e não como um “Direito Penal do Fato”. As pessoas passariam a sofrer uma repressão criminal não por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.

39 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 109.40 Acrescentaríamos ao texto também a palavra “geneticamente”.41 Op. Cit., p. 103.42 NASCIMENTO, José Flávio Braga. Curso de Criminologia. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 229.43 PELÁEZ, Michelangelo. Introducción al studio de la criminología. Buenos Aires: Depalma, 1966, p. 190.

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Ferrajoli expõe com absoluta propriedade esse modelo autoritário de Direito Penal:

“Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal do chamado tipo de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’. A lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função reguladora, mas constitutiva dos pressupostos da pena; não é observável ou violável pela omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. Está claro que ao faltar, antes inclusive da própria ação ou do fato, a proibição, todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se, com efeito, de uma técnica punitiva que, por isso, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal”. 44

Com referência a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, pode-se ir ainda mais longe com apoio no próprio Ferrajoli, chegando-se à possibilidade da construção de um “modelo punitivo irracional”. Isso tendo em conta a idéia de uma prevenção especial pré – delitual, mediante a atuação sobre a pessoa, manipulando seu código genético para evitar a potencial conduta criminosa, hipótese aventada por aqueles que fazem uma profissão de fé nos poderes milagrosos da ciência genética.

É o que o autor sob comento denomina de “Sistema de mera prevenção”, no qual a punição assume “a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva, não – tenha-se em conta – a função de ‘prevenção geral’, exercida por sua ameaça legal preventiva como conseqüência do delito, mas uma função de ‘prevenção especial’, ligada à sua cominação preventiva, como um prius em vez de um posterius relativamente ao fato criminoso. É evidente o caráter não igualitário, ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de retribuição, dirigido a prevenir fatos delituosos por meio da comprovação e da punição dos já ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a mera suspeita de delitos cometidos, mas não provados, ou o mero perigo de delitos futuros”. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a legalidade e a jurisdicionariedade, passando a ser “informado por meros critérios de discricionariedade administrativa” e degenerando-se ou pervertendo-se em simples “procedimento policial de estigmatização moral, política e social”. 45

É preciso refletir sobre essas conseqüências deletérias, capazes de deitar por terra conquistas seculares, antes de ceder às pressões de teorizações pseudo – científicas tentadoras. Afinal, como adverte Carbonnier, “um manto de ilogicidade, de absurdo, por intermédio do direito, tem invadido a existência de cada ser humano. Nenhum cérebro resiste completamente a esta pressão da irracionalidade jurídica”. 46

3.3 – O TOTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENÉTICA

O retrocesso que pode ocorrer com uma adesão acrítica a uma Criminologia Genética com pretensões de controle sobre a conduta humana mediante intervenções pré ou pós – delitivas, aparte estribar-se em concepções superadas do crime e do criminoso 44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et. al.” São Paulo: RT, 2002, p. 80 – 81.45 Op. Cit., p. 81 – 82.46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7ª. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: “Une nappe de déraison, d’absurdité, par l’intermédiaire du droit, a envahi l’existence de chaque homme. Aucun cerveau ne resiste complétement à cette pression de l’irrationnel juridique”.

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como entes naturais marcados por desvios patológicos, também apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma clara tendência para a conformação de uma estrutura totalitarista de poder.

O fenômeno do crime, ampliado muitas vezes de forma artificial pela mídia, com sua capacidade de comunicação nunca antes historicamente igualada ou sequer semelhante, mas também inegavelmente configurador de uma justa preocupação social, tendo em vista a potencialização da violência real nas sociedades modernas, caracterizadas pela heterogeneidade multiplicadora de desigualdades e conflitos, ocasiona uma constante demanda por soluções.

Em meio a esse clima de terror, freqüentemente não se ponderam devidamente os custos e benefícios de certas vias apontadas como soluções para o problema da criminalidade, em especial a violenta.

Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais não é o crime em si mesmo, mas o perigo de que o encarniçamento na sua repressão termine por desembocar no totalitarismo. 47

A Criminologia Genética nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de seus argumentos e demonstrações, o que induz à sua aparente neutralidade.

É justamente essa característica de tal concepção acerca da questão criminal que pode conduzir a um terrível cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.

O cientificismo é uma “ideologia daqueles que, por deterem o monopólio do saber objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa do saber”. 48

Já foi destacado neste trabalho como essa crença no saber científico como único detentor da verdade, sob a forma do pensamento positivista, influenciou a Criminologia, erigindo a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes etiológicas da Criminologia Clínica.

É interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a possibilidade de qualquer contribuição da religião para o saber humano, também não deixa de erguer-se sobre pilares intocáveis que podem bem ser definidos como verdadeiros “artigos de fé”:

“1)a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor dos sabedores; 2)a ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver todos os problemas práticos, desde que bem formulados, quer dizer, positiva e racionalmente; 3)não somente é legítimo, mas sumamente desejável que seja confiado aos cientistas e aos técnicos o cuidado exclusivo de dirigirem todos os negócios humanos e sociais; como somente eles sabem o que é verdadeiro, somente eles podem dizer o que é bom e justo nos planos ético, político, econômico, educacional etc.”. 49

Como adverte Étienne Gilson, os dogmas do cientificismo podem ser tão arbitrários quanto os religiosos o seriam de acordo com o ponto de vista dos cientistas.50

Assim sendo, se há realmente o perigo e exemplos históricos passados e contemporâneos de regimes totalitaristas influenciados por concepções religiosas, igualmente pode-se temer e constatar exemplos semelhantes orientados pela crença desmedida nos atributos do saber científico.

47 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Trad. Sara Costa. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24.48 JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 44.49 Op. Cit., p. 44.50 Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Macedo. Lisboa: Edições 70, 2002, “passim”.

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Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky organizam uma coletânea de textos sobre a questão do fanatismo, chamando a atenção para o fato de que não se deve falar em “fanatismo” (no singular), mas em “fanatismos” (no plural). 51 Dessa forma, a obra aborda o problema sob várias faces de sua manifestação, dividindo os textos em blocos que têm por temática comum o problema proposto, mas sob suas diversificadas “faces” (religiosa, racista, política e esportiva). 52

A revelação divina atribuída a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos pode perfeitamente ser substituída pela crença em um suposto saber científico que acaba sendo “divinizado”, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, é a tão decantada racionalidade científica que, levada a extremos, abre caminho para o irracionalismo característico dos fanatismos que, invariavelmente, desembocam no totalitarismo. A irracionalidade é condição para o fanatismo e também para o totalitarismo a partir do momento em que a contestação não tem espaço. 53 Certas “verdades científicas” acabam desqualificando de tal forma seus opositores que ganham foros de intangibilidade. Se uma raça é perversa por natureza, que valor têm seus argumentos e que espécie de pessoas se dá ao trabalho de defendê-la? Se os portadores de certos genes são maus, criminosos, pode-se dar crédito ao que dizem ou àqueles que pretendem defender seus direitos?

A precaução contra essa espécie de “discurso científico” não configura um desejo de opressão à livre pesquisa e à própria liberdade de expressão na sociedade. Na verdade, quando um pensamento (científico ou não) tem a pretensão de naturalizar o mal moral, selecionando determinadas categorias de pessoas como suas portadoras, seja por que for (crentes de certa religião, pertencentes a uma raça, aderentes a um movimento político ou portadores de certos genes); claro está que tais grupos é que terão seu direito de livre expressão absolutamente desrespeitado, de acordo com aquilo que Fiss denomina de “efeito silenciador do discurso”. Nessas circunstâncias o direito à livre expressão é limitado por si mesmo, pois, a partir do momento em que seu exercício ilimitado implicaria no silenciar de contra – argumentos, nítida está a necessidade de impor-lhe limites. 54

Embora não esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista não possa ainda cativar um número suficiente de incautos, ensejando algo semelhante com o holocausto 55, penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos genericamente considerada, tenha aprendido alguma coisa com os erros do passado e não mais se deixe levar por ideologias tão grosseiras.

No entanto, é fato que, como diz Bauman, “nenhuma das condições que tornaram Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada para evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a Auschwitz”. 56 Talvez o próprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento da dignidade humana no século XXI, mas se ele não convencer como antes, quem sabe uma versão mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?

O nazismo se baseava em “verdades reveladas” pela “ciência”. Essas “verdades” convenceram as pessoas um dia a acreditarem que “o mais imbecil doa ‘arianos puros’ pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista”. Isso não resultava

51 Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 9.52 Op. Cit., p. 15 – 282.53 Op. Cit., p. 10.54 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 – 60.55 Basta ver o que tem ocorrido na atualidade na África e Europa devido a conflitos étnicos e raciais.56 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 30.

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de uma “apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada pela propaganda nazista”. Tratava-se de um “dogma de fé” legitimado por argumentos pseudocientíficos.57

Ainda antes disso, no século XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma sucessão de crânios que ia dos macacos, passando pelos orangotangos até chegar aos negros e daí, seguindo num suposto processo evolutivo, até chegar à outra extremidade onde se achavam os asiáticos centrais e os europeus. Tratava-se também de uma explicação pseudocientífica não só para a classificação das raças, mas também para justificar “as disparidades de poder, ordenando-os em termos de superioridade e inferioridade”. 58

Hoje a genética, dependendo dos rumos que venha a tomar, tem o potencial de engendrar uma versão mais sofisticada e sutil do racismo, com alto potencial genocida e violador da dignidade humana.

Na extensa obra de Hanna Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato entre as características de um totalitarismo racista e segregador operado no passado, com o potencial modelo calcado no determinismo genético da atualidade.

Uma primeira e importante aproximação encontra-se no fato de que o poder genético projetado sobre o homem é muito mais profundo e opressivo do que qualquer outro exemplo de controle político antes existente e executável.

É uma característica inerente aos regimes totalitários não se contentar com a simples “irradiação do poder”, controlando os destinos exteriores das pessoas, mas pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, donde o biopoder torna-se o sonho de qualquer burocracia totalitária com sua gana de controle absoluto, podendo interferir “com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior”. 59

Não é sem razão que as utopias da biotecnologia têm evocado a memória do nazismo e de outros regimes totalitários, conforme expõe o jornalista e historiador José Arbex Júnior em entrevista concedida a Cláudio Tognolli:

“Toda utopia tem uma forte vocação totalitária (a perfeição de um não – lugar que projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como uma ‘nova utopia’, ela me produz uma sensação de desumanização do homem por um jogo, que tem como um dos componentes a total biologização do corpo (entendido como máquina produtiva) e como outro componente a erradicação do desejo, no sentido lacaniano, que só pode existir como resposta ao precário e ao frágil provisório que constitui a humanidade do homem; o desejo da máquina biotecnológica é substituído por metas, por ‘vontade de potência’. Isso me cheira a nazismo”. 60

Também Leão Serva, em entrevista similar manifesta-se no mesmo sentido, afirmando ver a biotecnologia “como a manifestação contemporânea do modelo de medicina perseguido pelos nazistas”. 61

Entretanto, o poder de sedução desta e de outras utopias tendencialmente totalitárias é muito grande e tem como sustentação dois pilares: o formato “científico” de apresentação das idéias e a propaganda que difunde a ideologia.

A ciência funciona como um manto de segurança e neutralidade a legitimar o poder absoluto pretendido. Nas palavras de Arendt:

57 PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Op. Cit., p. 10.58 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81.59 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 277.60 TOGNOLLI, Cláudio. A falácia da genética. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 233.61 Op. Cit., p. 238.

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“Tanto no caso da publicidade comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’ desaparece assim que eles assumem o poder”. 62

As informações veiculadas pela imprensa, dando conta dos supostos potenciais da genética para a solução de todos os problemas humanos, colaboram para o reforço da crença em uma utopia que se projeta para o futuro.

Além do fato de que tais informações nem mesmo retratam a realidade do estágio das pesquisas e o verdadeiro potencial das técnicas, também ensejam um clima de aposta cega numa “salvação” que a ciência (agora a genética) teria o condão de propiciar à humanidade, de forma a tornar desinteressantes considerações de ordem ética sobre os procedimentos e conseqüências.

Bauman alerta para o fato de que a ciência costuma ser posta à parte das considerações morais, mediante a preponderância do foco nos fins, sendo os meios relegados a segundo plano, pelo menos quanto ao aspecto ético:

“(...), mais do que qualquer outra autoridade, a ciência é autorizada pela opinião pública a praticar o princípio, de outra forma eticamente odioso, de que os fins justificam os meios. A ciência é o mais completo exemplo da dissociação entre meios e fins, que é o ideal da organização racional da conduta humana: os fins é que são submetidos a avaliação moral, não os meios”. 63

Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento científico tem sido freqüentemente utilizada justamente para protelar as discussões, gerando argumentos incontestáveis no presente, já que seus efeitos promissores são sempre projetados para o futuro, de modo a justificarem a atuação presente sem maiores considerações éticas sobre os meios, tendo em vista os fins que se vislumbram à frente.

Eis a lição de Arendt:“A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de

afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos. Contudo, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual ‘a ciência tornou-se um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem’”. 64

Percebe-se, portanto, quão comum é que o totalitarismo se aproprie e aproveite do cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultação de propósitos, inclusive sem grande preocupação com a real consistência das teorias “científicas” preconizadas.

Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma “febre biocrática” 65 a ensejar um poder de caracteres absolutamente inéditos na história da humanidade. À “biocracia” corresponde a implantação de um “biopoder”, o qual apresenta um espectro

62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187.64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.65 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 94.

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de irradiação muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre os destinos de toda uma população, inclusive de gerações futuras. 66

Esse biopoder, exercitado visando uma sociedade livre do crime e da violência, seria dotado dos instrumentos necessários para atuar sobre os genes a fim de adequar o comportamento da população às regras sociais consideradas convenientes.

Uma grave questão está em saber a quem seria dado o privilégio de decidir quais seriam os padrões desejados por tal sociedade.

Talvez a suposta neutralidade científica indique que esse poder não deva concentrar-se nas mãos de uma pessoa determinada, mas ser exercido de acordo com o conhecimento técnico – científico devidamente burocratizado. Nesse contexto o exercício do poder não apresenta um centro de irradiação, tornando-se impessoal, alicerçado em critérios técnicos praticamente incontestáveis.

Essa diluição do poder, longe de enfraquecê-lo em sua atuação sobre o indivíduo, torna-o absoluto. A conversão dos governos em “burocracias” faz com que não pertençam mais ao império da lei ou dos homens, emanando agora de “escritórios ou computadores anônimos, cuja dominação inteiramente despersonalizada pode vir a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual nenhuma vida comunitária é concebível, do que jamais foi a mais abusiva arbitrariedade dos tiranos do passado”. 67

Um dos traços que diferenciam as ditaduras dos governos totalitários está na burocratização do poder tornado impessoal e, por isso, ainda mais arbitrário, distante e atroz. A burocracia enquanto “mando de ninguém”, torna-se “a forma menos humana e mais cruel de governo”. 68

Essa característica de um “governo de ninguém”, que não significa “ausência de governo”, como uma das mais “tirânicas e cruéis” versões do exercício do poder é insistentemente destacada nas obras de Arendt. 69

A impessoalidade do exercício do poder sustenta-se também na crença em uma “ficção comunística”, ou seja, na suposição da existência de um interesse comum da sociedade, o qual poderia ser assegurado pela força de uma “mão invisível” que teria o condão de guiar o comportamento humano e produzir a harmonização de eventuais conflitos de interesses. 70

Ora, o que mais convincente e adequado a esse tipo de pensamento do que uma modalidade de poder exercitável sobre a humanidade, partindo de seu interior, de códigos genéticos sutilmente manipulados para guiar de forma irresistível o comportamento e harmonizar a convivência social?

É impossível não fazer a ligação de todo esse contexto com a obra de ficção, hoje nem tanto futurista, de Huxley, “Admirável Mundo Novo”, na qual um governo totalitário instrumentaliza homens e mulheres “padronizados em grupos uniformes”, objetivando a consecução da “estabilidade social”. 71

66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 296.67 ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 66. 68 Op. Cit., p. 94 – 95.69 IDEM. A Condição Humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 50. 70 Op. Cit., p. 53 – 54.71 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 2ª. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2003, p. 14.

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3.4 – A DESCONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA

Quando se trata da possibilidade de manipulação genética, especialmente levantando-se a hipótese de alteração do genoma humano, mediante a exclusão de características consideradas negativas a critério de quem quer que seja, impossível não vislumbrar uma flagrante violação da autenticidade do homem em sua natural diversidade.

Certamente uma das piores violências a serem perpetradas contra a humanidade seria a exclusão arbitrária da riqueza da diversidade, característica esta, aliás, muito claramente constatável por meio da própria genética, a qual demonstra a singularidade de cada ser humano.

Talvez as gerações que não tenham conhecido o que seria viver em um mundo onde as diferenças se chocavam sim, mas também surpreendiam, se completavam e libertavam, não tenham noção daquilo que perderam. Entretanto, não é justo que nós, cientes do que significa essa perda, condenemos nossos pósteros a um mundo de homogeneidade monótona e arbitrária.

O que nos restaria em um mundo de seres humanos pré – moldados ao sabor de uma burocracia qualquer, detentora do poder decisório do que seja bom ou mau em relação à capacidade de conduta e à personalidade?

Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofundado, retratado por Saramago ao ver os pés de oliveira dos campos de sua terra natal expulsos pelo milho híbrido por força de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:

“Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Européia pagou um prêmio aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos”. 72

Jonas fala em sua obra das utopias do “homem autêntico vindouro”, dentre as quais menciona o “super – homem” do futuro de Nietzsche, e a superioridade dos homens criados numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias socialistas. O primeiro não disse jamais uma palavra sobre o que se poderia concretamente fazer para o advento de seu “super – homem”. Os segundos alicerçavam suas crenças nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida sobre um modelo econômico revolucionário. 73 Mas, ambas as teorizações têm em comum um projeto de homogeneização do humano, extirpando as diferenças, as variações, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da própria personalidade.

Quem sabe na atualidade a manipulação genética pudesse tornar tais projetos bem mais palpáveis?

A questão, porém, é saber se é possível falar em um homem autêntico construído na homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboçar a autenticidade humana, a

72 SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12. 73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 258 – 263.

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destrói, ao pretender eliminar a diferença, o inesperado e até o ambíguo que é inerente à humanidade.

Nas palavras de Jonas:“Tendremos también que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza

unívoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( en si) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidad de ser bueno o ser malo, más aún, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Cierto es que de los grandes malvados se dice que son inhumanos, pero solo los hombres pueden ser inhumanos; y los grandes malvados ponen de manifesto la naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habrá de rechazarse también, por tanto, la idea de una riqueza de la naturaleza humana existente, pero dormida, que solo aguarda a ser abierta (des – encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse. Solamente existe la dotación biológico – anímica de esta naturaleza para la riqueza y pobreza del poder – ser; riqueza y pobreza son igualmente naturales, si bien se da un predomínio de la última, pues la pobreza em humanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas como elegida – incluso em las circunstancias más favorables – por la pereza y la sobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riqueza del yo, además del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de la lucha contra la pereza)”.74

A extinção dessa potência do “poder – ser” humano convertida em um ser pré – fabricado é altamente limitadora. Se por um lado, como já visto, a crença em um determinismo biológico ou genético exime o homem de responsabilidade, também lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim também, a construção de um homem geneticamente direcionado para o “bem” (ainda que sem entrar em pormenores sobre a legitimidade desse conceito formulado por alguém ou alguns), praticamente extermina a noção do mérito da ação moral, juntamente com a liberdade e a identidade de cada ser humano.

É bem verdade que a grandeza da liberdade não é isenta de riscos, inclusive altamente negativos. Mas, é preferível viver em um mundo onde a escolha é possível do que em outro onde tudo é pré – determinado. É de Viktor Frankl a afirmação de que é melhor um mundo no qual seja possível, por um lado, um fenômeno como o de Adolf Hitler e, por outro, o de tantos santos que já viveram. 75 Necessário se faz recordar que a singularidade é uma nota característica de toda existência humana. 76

Há um terrível perigo que corre todo aquele que tem a pretensão de aprimorar algo, qual seja, o risco de que suas mudanças acabem por desnaturar o original, transformando-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que inicialmente era.

Um breve conto de Brecht muito bem ilustra esse dilema:O personagem Sr. Keuner narra, no episódio intitulado “Forma e Conteúdo”, que

certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe entregou uma tesoura e mandou aparar um loureiro, orientando-o a fazer o corte de modo que a árvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu início imediato ao trabalho, cortando os brotos selvagens, mas sentindo sérias dificuldades para atingir o formato de uma bola. Finalmente a árvore tomou em suas folhagens o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por

74 Op. Cit., p. 350 – 351.75 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em: www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 44. É bom lembrar que Frankl sofreu na pele as agruras do nazismo.76 Op. Cit., p. 46.

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isso, quando o jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepcionado: “Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?”. 77

O desejo de aprimoramento do homem por meios genéticos revela um anelo de fuga da “condição humana” que nos é dada para ingressar em um novo estágio no qual o próprio homem pretende moldar sua condição. Move a humanidade um desejo incontido de afastamento da natureza, seja pela criação de ambientes artificiais, seja, agora, pela possibilidade da criação de um “homem artificial”. É esse desiderato que se manifesta quando se pretende criar a vida em uma proveta ou unir sob um microscópio o sêmen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir “seres humanos superiores”, mudar-lhes as dimensões, as formas, as capacidades etc. Também certamente o mesmo desejo de escapar da “condição humana” anime a “esperança de prolongar a duração da vida humana para além dos cem anos”. Realmente o homem do futuro, projetado pelos cientistas para menos de um século, “parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais”. 78

O que Arendt propõe é que os potenciais e riscos advindos com os novos conhecimentos científicos não sejam simplesmente “engolidos” por todos em silêncio respeitoso à figura do “cientista sábio”. A autora convida todos a agirem, concebendo a ação como a efetiva participação política nas importantes decisões a serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexão sobre os rumos a serem seguidos não são pertencentes a um grupo privilegiado, mas a toda humanidade. 79

E neste ponto podemos retomar com Arendt a questão da singularidade humana como essencial para a preservação da autenticidade do homem.

Lembrando Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como um dos fatores preponderantes na diferença entre o homem e o animal. Isso porque o primeiro foi criado “unum ac singulum”, enquanto os animais foram ordenados a existirem “vários de uma só vez” (“plura simul iussit existere”). Para Santo Agostinho, a criação demonstra que os animais vivem como “espécie”, ao passo que os homens têm uma existência singular. Resta claro que “a pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido ou venha a existir”. 80

Note-se que a ação do homem, isto é, sua participação ativa na sociedade, seus atos próprios, suas manifestações pessoais, só é viável, tendo em conta sua singularidade; o inesperado que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o homem pode ser o mesmo que o cão eterno vivendo na espécie, com seus latidos e o rabo a

77 BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 33.78 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 10 – 11.79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial ênfase à importância que Hanna Arendt dá à participação ativa do homem na sociedade (“Vita Activa”). Para a autora o que caracteriza o homem em sua condição humana é a ação, entendida como participação política, manifestação de sua personalidade e identidade no seio da sociedade. O labor e o trabalho também integram o ser do homem, sua condição, mas somente a ação é que o caracteriza realmente como humano.80 Op. Cit., p. 16.

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abanar do início ao fim dos séculos, como vislumbra Schopenhauer. 81 Acontece que no homem está ínsita a novidade e “o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”. 82 Pretender evitar essa originalidade é o mesmo que destruir um milagre.

A singularidade necessariamente se imbrica com a liberdade, pois somente sendo livre poderá o homem ser o que desejar ser e não aquilo a que seja obrigado a ser por forças naturais ou por outros homens. Não é sem razão que Max Frisch define a identidade como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja”. 83

A tentativa de levar adiante a metáfora da identidade humana como um quebra – cabeças a ser montado com peças pré – determinadas é vã e inadequada. Esse quebra – cabeças somente seria aceitável se fosse assumido como sempre incompleto e imprevisível, deixado nas mãos de cada homem singular para criar sua identidade livre da opressão ou limites externos. 84

O homem jamais pode ser concebido como uma espécie de massa de moldar. Somente a crueldade profunda e a megalomania ou uma inocência pueril podem levar a crer ser possível direcionar vidas humanas como brinquedos de crianças. Arendt chama a atenção para o fato de que a expressão “material humano” não deve ser percebida simplesmente como uma metáfora inofensiva. Ao seu lado seguem “inúmeras experiências científicas modernas no campo da engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral etc., todas visando a manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro material”. Essa é uma postura “mecanicista” característica da modernidade. Na antiguidade, visando os mesmos objetivos, o homem era concebido “como um animal selvagem que devia ser domado e domesticado”. O que importa é que em qualquer caso, esse tratamento implica na “morte do homem”, talvez não como “organismo vivo, mas enquanto homem”. 85

Ratzinger também alerta para o perigo inerente à tentação do homem “criar o homem”. Nada mais que uma recente “forma de poder, que aparentemente pode até parecer benéfica e digna de aprovação, mas que na realidade poderia tornar-se uma nova ameaça para o homem”. É sabido ser possível produzir homens em tubos de ensaio, mas com isso o humano “torna-se um produto”, alterando drasticamente seu relacionamento consigo mesmo. Perde a característica de um “dom da natureza ou do Deus criador” para tornar-se “produto de si mesmo”, numa descida até as profundezas “da fonte de poder, até as nascentes de sua própria existência”. Daí conclui-se que “a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer experiências com o homem, a tentação de considerar como lixo os homens e livrar-se deles já não são mais fantasias de moralistas hostis ao progresso”. 86

É imperativo rechaçar qualquer visão reducionista do humano capaz de instrumentalizá-lo, violando sua dignidade e produzindo sua reificação. Viktor Frankl advoga a urgência de superar qualquer espécie de reducionismo. E há reducionismo na

81 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte, Metafísica do Amor, Do sofrimento do mundo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46. 82 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 191.83 Apud, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 45. 84 Op. Cit., p. 54 – 55.85 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 201.86 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Bento XVI questões de fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger. Trad. Roberto Cattani. São Paulo: Claridade, 2005, p. 107 – 108.

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visão biologista, no condutivismo, no psicologismo, no sociologismo e até no antropologismo. Todas essas visões reducionistas levam ao niilismo e constroem uma falsa imagem do homem, pois o concebem como um “homúnculo”, um artefato. Dessa forma não se pode compreender o homem, mas sim estabelecer-lhe uma imagem distorcida e mutilada, extremamente pobre, a que se pode denominar de “homunculismo”, na qual o ser humano é visto como um autômato de reflexos e instintos, como um mero produto de impulsos, herança e meio ambiente. 87

Para trabalhar com o que é humano é preciso acostumar-se com o imprevisível e não pretender eliminá-lo das equações; é preciso tolerar e, mais que isso, valorizar a diversidade do gênero humano. Caso contrário, o que ocorre é uma tendência ao “genocídio”, entendido como “um ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é, a uma característica do ‘status humano’ sem a qual a simples palavra ‘humanidade’ perde o sentido”. 88 Não é porque a forma de eliminação da diversidade é praticada com maior sutileza, através de manipulações microscópicas, e não por meio de massacres de milhares de pessoas em câmaras de gás, a golpes de facão ou por fuzilamento, que o ato genocida é menos gravoso ou inexiste. Ao reverso, quanto mais sutil, mais imperceptível e insidiosa a ação, maior o seu potencial destrutivo.

A tal ponto pode chegar a atuação da ciência por meio da genética, alterando arbitrariamente o genoma humano, que caracteres podem simplesmente deixar de existir de forma irrecuperável, atingindo irreversivelmente futuras gerações.

Este é um dos novos desafios da ética contemporânea, o qual produz uma “densificação da noção de responsabilidade”. A responsabilidade requerida nos dias atuais se apresenta muito mais complexa e geradora de maior comprometimento. Na ética tradicional a responsabilidade do ator se adstringe ao que é previsível, àquilo que é controlável no espaço do cognoscível, do imediato ou, no máximo, do próximo. Mas, esse paradigma se alterou muito drástica e rapidamente, de modo que hoje “somos também responsáveis por tudo aquilo que, muito embora não seja imediatamente previsível é já expectável”. Não é à toa que se firma atualmente uma chamada “Fernethik”, ou seja, uma ética de responsabilidade que “carrega em si o elemento novo da distância longínqua”. Dessa maneira, vivemos o futuro no presente, um futuro que se mostra “não como simples e encantatória evanescência, mas como uma realidade densa que condiciona toda e qualquer decisão de hoje”. Opera-se, em verdade, uma “contração temporal” a que não estavam familiarizadas as construções éticas tradicionais. 89

Retomando a especificidade do objeto deste trabalho, deve-se considerar que a diversidade humana não se manifesta somente nas diferenças entre os homens, mas também na impermanência do homem em relação a si mesmo; no fato de que todo ser humano jamais pode ser tomado como acabado, pronto ou definitivo. O homem é sempre um projeto, um contínuo porvir, como bem retratam as palavras do poeta:

“Quem és não o serás, que o tempo e a sorte”.Te mudarão em outro”. 90

Portanto, é absurda a pretensão de prever ou prognosticar quem será o homem que hoje se apresenta à nossa frente, seja com base em que espécie de conhecimento for inclusive no genético. Não há como cortar fatores e simplificar arbitrariamente a complexa e caótica equação humana. Certamente aqui se pode falar com segurança de

87 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 38.88 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. 6ª.ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 291.89 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de Filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 200 – 201.90 PESSOA, Fernando. Op. Cit., p. 141.

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uma “complexidade irredutível”. Quando essa simplificação é levada a efeito, reduz-se o homem a um ou alguns de seus aspectos isolados, mutilando-o e convertendo-o no “homúnculo” caricato de que falar Viktor Frankl.

No ano de 1959, Roberto Rosselini produziu um filme chamado “O General Della Rovere”. Segundo consta, a história é baseada em fatos reais. Conta o filme haver um homem mal caráter, um baixo vigarista, capaz de tirar dinheiro do luto alheio, da dor e da aflição das pessoas, sem pesar-lhe um momento sequer a consciência. Frente às suas vítimas, procura iludi-las a elas e a si mesmo, argumentando haver agido movido pela piedade. Ora, desde que um tal sentimento possa render dinheiro, tudo bem. Seu nome é Brandone e segue obtendo dinheiro em troca de vãs promessas de ajuda “a presos políticos, resistentes, guerrilheiros, em poder dos alemães”. É um homem sedutor, de fala macia “por natureza e necessidade do ofício”, um enganador medíocre que seguiria nessa toada até o fim de seus dias ou até um golpe de monta que o fizesse enriquecer e poder, finalmente, ingressar no grupo das pessoas que vivem honestamente. No entanto, está este homem destinado a outra conquista: “a da dignidade”.

Quando suas artimanhas são descobertas a Gestapo lhe oferece a chance de salvar-se e ainda locupletar-se com uma gorda recompensa em dinheiro. Ele aceita. Sua missão é ocupar na prisão o lugar do General Della Rovere (o qual morreu no desembarque clandestino na Itália, quando deveria encontrar-se com Fabrizio, um líder da resistência). Brandone deveria agir para denunciar o líder Fabrizio, o qual também estava preso, mas cuja identidade era ignorada pela Gestapo. No seguimento natural das coisas Brandone iria fechar sua carreira de imoralidades como “o grande denunciante”, “o grande traidor”. Ele que nunca passara de um estelionatário medíocre, poderia terminar na riqueza e, quem sabe, ainda usufruindo alguma “honra”, como um comendador ou coisa semelhante ao final da guerra.

Acontece que “as oportunidades e as situações é que fazem e desfazem os homens”. Disfarçado como o general, recolhido a uma cela “cujas paredes conservam ainda as palavras de despedida dos resistentes fuzilados, forçado pelos acontecimentos a mostrar-se firme e valente – acorda nele pouco a pouco um outro homem”. É confrontado com a tortura, a coragem real e um respeito que nunca merecera e nem recebera de ninguém. Tudo isso o converte profundamente no General Della Rovere, “tomando atitudes e dizendo palavras que do general se esperavam”. Ao final, quando tudo se perde e ele é submetido a torturas, mas ainda lhe acena a oportunidade de salvar a própria vida delatando Fabrizio, ele opta livremente por caminhar com os outros detentos para o poste da execução. “São dele as palavras corajosas que honram a pátria e reclamam a derrota dos inimigos. Aos olhos de todos é o General Della Rovere que morre”. No entanto, os espectadores sabem que “quem vai morrer é um pobre homem, fraco, burlão, jogador sem sorte, chamado Brandone, que aprendeu a ser corajoso, honrado e digno. Esta morte é uma vitória”.

Novamente é José Saramago quem nos brinda com sua sensibilidade ao captar e descrever a mensagem de um filme que chega à profundidade da alma humana mutável e surpreendente, acrescentando ainda que “talvez a fraqueza de cada um de nós não seja irremediável. A vida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar a prova real do que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”. 91

A eventual intervenção ou influência exercida sobre o homem, visando seu aprimoramento moral não pode basear-se na alteração arbitrária de sua personalidade, acomodando-a a padrões alheios. Isso seria uma forma de padronizar os seres humanos, instrumentalizando-os e tratando-os como coisas e não como pessoas. Também seria

91 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 133 – 135.

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desconsiderar sua diversidade e impermanência, sua liberdade de expressão e pensamento, que merecem respeito sempre, somente comportando limitações quando por condutas exteriores venham a prejudicar os direitos correlatos dos outros.

O homem vive em relação contínua com as coisas e com os outros homens no mundo. Esses “entes” são tudo aquilo que “existe concretamente”, “designando tudo o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos preenche, nos exalta e nos decepciona”. 92 No entanto, a relação do homem para com os “entes – envolventes”, ou seja, “a presença simples e objetivada” das coisas e da natureza não é a mesma que mantém com o “ser – aí” (“Dasein”) dos outros (homens). “Estes entes não são jamais meros objetos ou entes – envolventes; ao contrário, são como é o verdadeiro ser – aí que os desvela, ‘são aí também’ e ‘aí com’”. 93

O “eu” do homem em relação aos “outros” não deve ser compreendido isoladamente. Esses “outros” não são todas as demais pessoas com exceção de mim mesmo. Na verdade, “esses ‘outros’ são aqueles de quem, na maioria das vezes, alguém não pode se distinguir – aqueles no meio dos quais alguém também está”. Dessa forma, não se trata de mera presença objetivada junto com os outros. Trata-se de um “ser – lá – também – com eles dentro do mundo”, de tal maneira que “o mundo é sempre algo que eu partilho com os outros”. 94

Observe-se que a nossa maneira de atuar perante os “entes – envolventes” pode ser definida como o “cuidar”. Não obstante, o “cuidar” não serve para descrever a relação entre o “Dasein” e o “ser – aí – com”, ou seja, entre as pessoas. Os outros “com os quais o ser – aí como ser – com se comporta não têm o mesmo modo de ser que pertence à ‘totalidade dos entes – envolventes’”, pois eles próprios são ser – aí e não mera presença objetivada. Assim, a eles não está reservado o “cuidar”, mas sim a “solicitude”. Os entes com que o “ser – aí é com, não são objetos de cuidado, mas de solicitude”. 95

Entretanto, a própria solicitude pode desvirtuar-se no extremo do “tomar conta do outro”, aproximando-se de um modo de “cuidar”, como se faz com as coisas. Assume-se o encargo do outro que é o de cuidar de si mesmo. Isso produz uma retirada do outro de seu lugar próprio, podendo torná-lo alguém dominado e dependente. Nesse contexto ocorre um “saltar sobre o outro” que, na realidade, é próprio de nossa relação de cuidado para com os entes – envolventes (coisas). Resta claro que essa atuação sobre o outro o reifica e instrumentaliza. Portanto, a relação não deve ser esta, não se deve “saltar sobre o outro”, “mas antecipar-se a ele em sua existencial possibilidade – para – ser” de forma a salvá-lo para “torná-lo transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo livre para si”. 96

A relação entre os homens não deve ser orientada pelo salto sobre o outro que o domina, mas sim pelo salto “diante do outro, que o liberta”. 97

Percebe-se que a genética tem o potencial de invalidar o existencialismo, que descreve a vida humana como “um projeto de realização pessoal, de ‘transformação’” (grifo nosso), de maneira que quem somos vai mudando de acordo com o desenrolar do referido projeto. 98 Segundo Sartre, “o homem é apenas uma situação” ou “nada mais do que aquilo que ele faz de si mesmo (...) o ser que se lança para o futuro e que tem

92 HEIDEGGER, Martin, Apud, JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Op. Cit., p. 82.93 HEIDEGGER, Martin. Todos nós...ninguém. Trad. Dulce Maria Critelli. São Paulo: Moraes, 1981, p. 3494 Op. Cit., p. 34 – 35.95 Op. Cit., p. 40.96 Op. Cit., p. 41.97 Op. Cit., p. 42.98 FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 151.

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consciência de se imaginar como ser no futuro”. Para ele “a modelagem de si mesmo” é um ato afirmativo da humanidade que não se sujeita a qualquer espécie de determinismo, “o homem é livre, o homem é liberdade”. 99

É claro que essa liberdade não é isenta de perigos e responsabilidades. Em anexo à obra de seleção de textos de Heidegger antes examinada, tratando do tema da educação, Dulce Critelli bem destaca que o “saltar sobre o outro” o alivia e alija “da responsabilidade de seu próprio ser” na medida em que lhe tolhe a liberdade. De outra banda, o “libertador”, que “salta diante do outro” e lhe entrega “à sua própria transparência e responsabilidade”, permite-lhe tomar as rédeas do próprio destino, com todos os prazeres e dores daí advindos. Parece muito claro que o “outro”, enquanto ser humano dotado de dignidade, somente poderia ser tratado com essa autonomia. No entanto, é fato que uma das mais duras dificuldades que encontramos em nossa relação com os outros “é a de sermos capazes de confiar ao outro o seu destino, de confiar no destino que ele descobre, de confiarmos na possibilidade do outro responsabilizar-se por ele mesmo, pela possibilidade desse destino escapar à nossa determinação”. 100

Este é um dos fortes motivos que tornam tão tentadora a eventual possibilidade da programação genética de seres humanos, em especial no âmbito criminológico. Nossa tendência a pretender dominar os outros nos impele ao objetivo e à crença da determinação e controle absoluto das personalidades e condutas alheias.

Quando a ciência e a técnica nos acenam com a possibilidade prática desse projeto, o agir parece correr adiante do pensar, deixando no caminho, desprezados, aspectos sumamente relevantes para a preservação (ou conquista paulatina) da dignidade da pessoa humana.

Infelizmente, a dinâmica veloz da sociedade contemporânea vem ocasionando com freqüência essa perversão da ordem entre o pensar e o agir, na qual o segundo se antecipa ao primeiro que resta simplesmente abandonado. Afinal, “a uma civilização que se consuma e se consome ao nível exclusivo do ‘fazer’, o compreender torna-se obsoleto e sem sentido”. 101

É preciso perceber o quanto essa perversão pode ser deletéria e recuperar o pensar como pressuposto do agir, especialmente quando se trata de questões que envolvem o “status dignitatis” do humano. Aí se destaca a missão da bioética e da filosofia como veículos do pensar. O pensamento ético – filosófico não remete somente ao pragmatismo de um agir, mas também o abrange e supera. Conforme afirma Critelli, “o fazer e o pensar, enquanto possibilidades existenciais e eqüiprimordiais do homem, imbricam-se mutuamente. Muito embora fazer e pensar não sejam excludentes um do outro, a recuperação da ação de pensar implica que, num primeiro momento, possamos nos entregar à ação de pensar o pensamento, independendo do vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmático não catalise nossas atenções. Precisamos permitir que um novo fazer emerja de um novo horizonte. O pensar abre o fazer, mas só se confiarmos no vigor do próprio pensamento. Se a única coisa que podemos querer é a prontidade das respostas, das fórmulas, das regras, nesse querer o pensar não pode se presentificar como sendo fundamental. A difícil tarefa dos que querem ir mais além de um fazer pragmático sem se sentirem sufocados pela ‘incerteza imediata’ de um ‘o que’ fazer e pela segurança do já convencionado, é poder deixar o fazer no ‘vazio’, abandonar sua prioridade e, concomitantemente, poder abandonar-se à verdade de um fim ainda não dado”. 102

99 SARTRE, Jean – Paul, Apud, Op. Cit., p. 151 – 152.100 CRITELLI, Dulce Mara. Para recuperar a educação. In: HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., p. 70 – 71.101 Op. Cit., p. 60.102 Op. Cit., p. 60 – 61.

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Em suma, é preciso compreender que a ciência e a técnica podem nos dizer claramente tudo aquilo que “podemos” fazer, mas nada podem esclarecer quanto àquilo que “devemos ou não devemos” fazer.

3.5 - CRIMINOLOGIA GENÉTICA: UMA PERIGOSA MISTURA DE FANTASIAS, INTOLERÂNCIA E EXCLUSÃO

É comum deparar com a divulgação de “estudos científicos” que afirmam poder detectar “genes da esquizofrenia, genes sensíveis aos poluentes industriais e a condições insalubres de trabalho, genes da criminalidade, genes da violência, genes do divórcio e genes dos marginais”. Para Daniel Kleves, citado por Cláudio Tognolli, “o racismo dos nazistas agora se converte em clínicas genéticas”. 103

O grande problema relacionado a essas ilusões reducionistas é que elas podem fomentar toda uma mentalidade destrutiva, a qual, depois de posta em movimento, torna-se muito difícil de conter.

Questões como alcoolismo, desagregação familiar, violência e criminalidade são extremamente complexas e esse reconhecimento (da complexidade) não é alentador. Ele nos joga muitas vezes em meio à indeterminação, a um universo de perguntas sem respostas ou com respostas sujeitas a inúmeras variáveis. A sensação é desagradável e então se tende a buscar alguma solução simplista ou simplificada, ainda que isso implique na mutilação da verdade com todas as suas terríveis conseqüências. 104

A pretensão de descobrir algo que guia o agir humano, obliterando a intencionalidade, não é novidade. O inconsciente em Freud, a “vontade de representação” como um “querer cego e irracional” em Schopenhauer, são exemplos desse intento levado a efeito anteriormente. De acordo com essas concepções somente conhecemos o agir humano como uma “casca” de algo oculto que o determina e que não está no domínio do “querer” livre do homem. As teorias genéticas, sem inovar muito no cerne do pensamento, apenas apresentam algo mais concreto como explicação. Ao invés da “vontade” ou do “inconsciente” como fatores extremamente imateriais e intangíveis, a ciência agora apresenta, sob as lentes microscópicas, a materialização daquilo que determina e conduz o homem, ou seja, os genes. 105

Sem negar o fato de que a genética pode oferecer respostas e benefícios, é necessário perceber que ela, como qualquer outro ramo do saber, somente pode deter parte da verdade.

Invariavelmente, quando a verdade é atribuída exclusivamente a algum ramo do saber, da atividade humana ou do pensamento, advém a intolerância, a arrogância e a exclusão.

Os exemplos, inclusive ligados ao tema discutido, não são difíceis de encontrar. Sabe-se que em 1907, no Estado de Indiana, nos EUA, promulgou-se a “primeira lei de esterilização compulsória”, que visava impedir a procriação de “criminosos, idiotas, estupradores e imbecis”. O Estado passava então, de forma arbitrária, a decidir quem podia ou não ter filhos, e pior, quem podia ou não nascer. Por esta razão a legislação chegou a ser contestada na Justiça. Mas, em 1927, a Suprema Corte confirmou lei similar do Estado de Virgínia, dando ênfase ao pragmatismo do procedimento seletivo –

103 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 84.104 BURTT, Edwin. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques. Brasília: UNB, 1984, p. 195.105 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 85 – 86.

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preventivo. Foram as seguintes as palavras do relator da decisão, Oliver Wendell Holmes:

“Será melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole degenerada pelos crimes que cometeu ou deixá-la morrer à míngua por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os manifestamente inaptos de perpetuarem a própria espécie (...). Três gerações de imbecis é o suficiente”. 106

É impossível deixar de fazer o elo entre a realidade do fato histórico acima exposto e a obra de ficção satírica de Swift, que toca a ferida da exclusão e da indiferença:

“Algumas pessoas de espírito desalentado estão bastante preocupadas com o grande número de pobres, idosos, doentes e mutilados e tenho sido solicitado a empregar meu pensamento para encontrar alguma possível solução que alivie a nação de tão pesado fardo. Mas essa questão não me preocupa nem um pouco, pois é bem sabido que eles estão a cada dia morrendo e apodrecendo, de frio e de fome, e de sujeira e de vermes, tão rapidamente como se possa razoavelmente esperar. E, quanto aos trabalhadores mais jovens, eles estão agora em situação quase tão promissora: não conseguem trabalho e, conseqüentemente, estão desfalecendo por falta de alimento, a tal ponto que, se fossem, por acaso, contratados para algum serviço ordinário, não teriam forças para executá-lo, estando assim o país e eles próprios, felizmente, livres dos males que estão por vir”. 107

É dessa lógica exclusiva cruel que devemos nos precaver, e é ela que ameaça conduzir os rumos de uma Criminologia Genética desatenta (intencionalmente ou não) para com a complexidade do ser humano.

Collins bem destaca essa premente necessidade frente aos potenciais da genética, asseverando que, “embora contenha uma promessa estimulante no aprimoramento de intervenções em doenças psiquiátricas, a pesquisa genética sobre comportamentos humanos, de algum modo, é perturbadora, pois parece trilhar perto demais como uma ameaça ao nosso livre arbítrio, a nossa individualidade e talvez mesmo a nossa espiritualidade”. 108

Mister se faz “confrontar a promessa e a ameaça da genética”. 109 É bem verdade que as potencialidades vislumbradas com o seu advento produziram um “efeito inebriante”, levando os mais entusiasmados a aventar a hipótese de que os genes poderiam fornecer explicações seguras para vários ou mesmo a totalidade do comportamento humano e que este poderia ser controlado mediante intervenções e manipulações precisas do código genético. 110

A tentação de aperfeiçoar a natureza é inerente ao espírito humano e não é apanágio da ciência. Na arte já se pretendeu superar o mero retrato do mundo, de modo que “todo artista era um idealista” que pretendia superar a natureza. Na ciência e na técnica os esforços para o aperfeiçoamento da natureza, especialmente tendo em vista os fins humanos, têm pelo menos “dez mil anos de história atrás de si”. Esse esforço tem suas origens nas técnicas de acasalamento de animais de diferentes espécies, visando obter espécimes mais dóceis no trato, de carne melhor e mais saborosa etc. Também a

106 WATSON, James D., BERRY, Andrew. DNA o segredo da vida. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40 – 41.107 SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. Trad. José Oscar de Almeida Marques e Dorothée de Bruchard. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29. 108 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 262.109 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 134. 110 Op. Cit., p. 135.

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botânica pode ser apontada como uma das atividades pioneiras desse intento humano, logrando produzir vegetais comestíveis, ornamentais etc. 111

Nenhum susto pode provocar que essa perspectiva se espraiasse e chegasse à intenção de aperfeiçoar os próprios seres humanos. Esse objetivo é antigo, podendo ser constatado já no pensamento de Platão, e possivelmente tais idéias não eram originais dele, mas resultado de observações comuns em sua época. Encontramos nele o ideal da busca de uma sociedade perfeita constituída de homens perfeitos, os quais deveriam ser incentivados a reproduzir, enquanto os imperfeitos deveriam ser exterminados. Nota-se que muito antes dos conhecimentos genéticos sofisticados estarem disponíveis a idéia da hereditariedade determinista já produzia seus frutos. 112

Vejamos o que o filósofo fala pela boca de Sócrates em “A República”:“De acordo com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito

freqüentes entre os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além do mais, é necessário educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição; e todas estas medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistrados, a fim de que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue entre os guerreiros”. 113

O ideal de Platão estava na harmonia que impregnava suas concepções desde a cosmologia até a política. Ele pretendeu desconsiderar as irregularidades dos movimentos dos corpos celestes, idealizando sua movimentação em círculos regulares. Intentou comprovar sua tese com um misto de matemática e teologia que poderia comprovar o caráter divino dos corpos celestes pela inalterável regularidade de seus movimentos circulares e perfeitos. Com isso pretendia banir as alterações e irregularidades dos céus. De forma análoga, idealizará em sua República uma utopia “totalitária, puritana e inquisitorial” da qual serão banidos todos os desviados, irregulares ou dissonantes. 114

Uma nova roupagem para as mesmas idéias surge no século XIX na Europa e na América do Norte sob o signo do racismo. Francis Galton, primo de Darwin, em 1885, faz a proposta indecente da “eugenia”, segundo a qual “a espécie humana poderia ser aperfeiçoada pela eliminação de qualidades mentais e morais indesejáveis”, o que poderia ser levado a efeito por meio de “uma fertilidade seletivamente controlada”. 115 É de Galton a seguinte manifestação entusiasmada, datada de 1865:

“Se a vigésima parte dos custos e esforços que são despendidos para o aperfeiçoamento da reprodução de cavalos e gado fosse gasta em medidas para o aperfeiçoamento da raça humana, que galáxia de gênios não poderíamos criar!” 116

Essa ideologia dominou o pensamento de uma época, reforçada pelo racismo. A Rússia Soviética, em seus primórdios, e certas regiões dos EUA adotavam a proibição do casamento para pessoas “oficialmente classificadas como débeis mentais, criminosos e até (em alguns casos) alcoólatras”. No ano de 1926, em algumas regiões dos EUA (quase metade) adotou-se a “esterilização compulsória” dessas categorias de pessoas. 117

Nem é preciso dizer que a eugenia foi recepcionada com o mais vivo entusiasmo na Alemanha Nazista, onde atingiu o seu ápice de desumanidade. Ali não só o controle da

111 Op. Cit., p. 140.112 Op. Cit., p. 141.113 PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 162. 114 PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 16 – 17.115 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 141.116 Apud, Op. Cit., p. 141. Parece que Galton “apenas” esqueceu que homens não são gado e que a humanidade não é um rebanho.117 Para maior aprofundamento sobre a eugenia norte – americana, ver: BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, “passim”.

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procriação foi adotado, mas também, e principalmente, o extermínio de todos aqueles considerados geneticamente inferiores (judeus, ciganos e até os homossexuais). Por outro lado, buscava-se o aprimoramento da “raça ariana pura”, através da reprodução seletiva entre pessoas supostamente portadoras de caracteres considerados excelentes. 118

A crueldade do regime nazista acabou emprestando à eugenia um estigma extremamente repulsivo. No entanto, deparamos hoje com o seu retorno sob vestes bem mais sutis. A engenharia genética pode tomar rumos muito similares aos das ideologias eugênicas do passado.

Deparamos nos dias de hoje com manuais de Direito Penal publicados anualmente e alegadamente “atualizados”, nos quais podemos encontrar verdadeiros resquícios de uma eugenia preconceituosa e cruel. Mirabete, ao comentar os fundamentos do chamado “aborto sentimental, humanitário ou ético” 119, afirma que, além do respeito à dignidade humana da mulher, justificaria essa espécie de aborto a prevenção quanto à transmissão de certos traços criminosos pela hereditariedade. Textualmente:

“Além disso, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade”. 120

Assim como já se falou em “raça pura” ou do “super – homem”, tem-se detectado aquilo que Francis Fukuyama denominou de “um futuro pós – humano”. 121 E se falamos em algo “pós – humano”, falamos em algo “não – humano”, relegando o “humano” ao passado, como uma peça de museu ou um conceito obsoleto. Por isso o autor em comento alega que “a biotecnologia vai fazer que de algum modo percamos a nossa humanidade (...). Ainda pior, poderíamos fazer essa mudança sem reconhecer que havíamos perdido algo de grande valor. Poderíamos assim aparecer do outro lado de uma grande divisória entre a história humana e pós – humana, sem sequer perceber que o divisor de águas fora rompido”. 122

Portanto, é de extrema relevância tomar consciência dos problemas éticos e políticos relativos à manipulação genética e, principalmente, às concepções genéticas reducionistas. Também é imprescindível firmar um núcleo duro de direitos e garantias referentes à contínua proteção e preservação da dignidade humana. Pressuposto disso é, certamente, a conceituação segura daquilo em que consiste a humanidade do homem, sob pena de realmente nem nos darmos conta de a havermos perdido. 123

Efetivamente, o insidioso desgaste do conceito de “humano” e de “humanidade” tem propiciado um correlato risco de seu desvanecimento, permitindo sua perda nas veredas do relativismo, com nefastas conseqüências no presente e, especialmente, para o futuro.

Fernández – Armesto bem destaca a paradoxal situação do atual estágio da humanidade, que tanto esforço despendeu e despende para preservar o humano, mas vai, aos poucos, perdendo a noção daquilo por que tem lutado ao longo de tanto tempo:

“Aqui está um paradoxo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos investido muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que chamamos de valores

118 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 142.119 Trata-se, como sabido, do aborto legal previsto na legislação brasileira quando a gravidez é resultante de estupro (art. 128, II, CP).120 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 69.121 Nosso futuro pós – humano. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, “passim”. 122 Apud, FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 143.123 Op. Cit., p. 143.

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humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade humana e da vida humana. Ao longo do mesmo período, silenciosa mas devastadoramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência do nosso entendimento do que significa ser humano está agora em discussão. E se o termo ‘humano’ é incoerente, o que acontecerá com os valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça conceitual”. 124

Debatendo-nos em densas trevas e trilhando caminhos tortuosos, podemos ao menos entrever um norte a indicar o traço comum que revela um início ou pressuposto para a construção de uma atuação ética perante a humanidade. Esse traço é o fato de que somos todos “humanos”, independentemente das variadas diversidades. Somos desiguais sim, mas temos sempre de nos lembrar do laço comum a unir-nos. É a nossa “humanidade” que, em primeiro plano, consiste em que somos todos (brancos, negros, católicos, judeus, pobres, ricos, deficientes, criminosos ou santos) “humanos”, que configura o primeiro fundamento para que as pessoas não possam ser categorizadas, selecionadas e excluídas. O atributo da humanidade, inerente a todo homem ou mulher, independente de sua condição, não permite gradações. Em suma, jamais uns podem ser mais humanos que outros.

Pode parecer que esse pressuposto seja algo por demais óbvio, mas é preciso atentar que por boa parte da história da humanidade e ainda hoje, as pessoas sentem certa dificuldade para admitir esse traço comum de humanidade em todos os seres humanos indistintamente. 125 E mesmo quando em dada sociedade isso é admitido, em teoria, sem muita contestação, a aplicação prática do conceito não se perfaz sem grandes obstáculos. 126

A verdade é que existe sempre uma tendência a selecionar certas categorias, por meio de critérios diversos (v.g. origem, religião, posição social e, quem sabe, código genético), as quais acabam integrando a categoria dos humanos ou “mais humanos”, enquanto outras parcelas são simplesmente excluídas, tratadas como “outsiders”, marginais, pertencentes a alguma outra classe que acaba reduzida a “status” semelhantes aos de coisas ou animais, sofrendo ainda um verdadeiro processo de demonização. 127

A partir da identificação de certas pessoas como pertencentes a determinadas categorias, opera-se uma poderosa “estratificação” a atribuir diferentes tratamentos a camadas consideráveis da população. No cerne desse mecanismo diferenciador encontra-se o fato de que alguns podem livremente escolher sua própria identidade individual e social, enquanto outros são simplesmente compelidos a assumir uma certa identidade imposta de fora para dentro. Normalmente essas espécies de identidades impostas são daquelas que “estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam...” 128

Mas, ainda não é o fato mais grave essa falta de direito de escolha, essa imposição. Há ainda quem possa ser impelido para um degrau ainda mais baixo. Tratando-se de pessoas que, uma vez estigmatizadas, perdem total e definitivamente o direito de “reivindicar” uma nova identidade. “Pessoas cuja súplica não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto”. Estas estão destinadas a formar aquilo que Bauman denomina de “subclasses”, ou seja, o conjunto de todas aquelas pessoas “exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade –

124 Op. Cit., p. 9.125 Op. Cit., p. 14.126 Por que outra razão seria necessário que nossa Constituição Federal mande, por exemplo, reprimir com rigor a prática do racismo e a lei ordinária regule essa repressão?127 Op. Cit., p. 14.128 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 44.

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fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas”. 129

A partir do momento em que alguém é destinado à composição de uma subclasse (devido à baixa escolaridade, à pobreza, vício de drogas, falta de moradia, mendicância ou outras categorias inadequadas, agora, talvez, aqueles portadores de um código genético indesejável), ocorre uma negação apriorística de qualquer identidade aceitável, em suma, fecham-se as portas. “O significado da ‘identidade da subclasse’ é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, do ‘rosto’ – esse objeto do dever ético e da preocupação moral”. Opera-se uma exclusão “do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”. 130

Giorgio Agamben, citado por Bauman, chama a atenção para que a subclasse é um “grupo heterogêneo de pessoas” que sofreram a redução de seu “bios” (vida como “sujeito socialmente reconhecido”) a mero “zoë" (vida somente animal, “com todas as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas”). 131

Note-se que quase nada pode ser mais conveniente para exacerbar um quadro como este ora apresentado do que uma ciência genética seletiva e determinista, inclusive e muito especialmente, no que tange às suas irradiações para o campo criminológico.

Esse conjunto de fatores que alimentam a exclusão e a estratificação social, conflui para a tendência do processo neoliberal de globalização econômica, com sua interminável “produção de lixo humano” ou, melhor dizendo, de “pessoas rejeitadas”, que se tornam desnecessárias e até disfuncionais para o bom andamento do “ciclo econômico”. O Capitalismo Contemporâneo troca o modelo de “exploração” pelo da “exclusão”, e esse modelo é bem mais cruel do que o anterior, constituindo atualmente a “base dos casos mais evidentes de polarização social, de aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de pobreza, miséria e humilhação”. 132

Não há dúvida de que o modelo econômico tem enorme influência na conformação do paradigma de Direito Penal e, principalmente, na construção do discurso referente à finalidade da pena. Em um contexto no qual a mão de obra humana é um valor na dinâmica do processo econômico, é fácil reconhecer a pertinência do discurso “ressocializador”. A coisa muda de figura quando essa mesma mão de obra passa a ser muito abundante frente à mecanização proporcionada pela tecnologia, a substituir com vantagens a força de trabalho humana. Nessas circunstâncias um indivíduo desgarrado não é mais considerado uma peça relevante na sociedade. Seu descarte passa a ser uma solução e até um objetivo a ser perseguido em prol da funcionalidade do sistema. Este é certamente um efeito daquela substituição das relações exploradores/explorados pelas relações incluídos/excluídos. Agora, já não há valor algum, nem mesmo comercial ou econômico, atribuído pelos ocupantes do topo da escala social aos que estão em sua base. Se a relação vertical anteriormente se processava como uma opressão que visava o domínio das massas exploradas, hoje tal domínio não é tão atraente e a relação vertical tende a ser transmudada para uma pressão no sentido de “esmagar” e descartar os excluídos, já que eles não interessam ao

129 Op. Cit., p. 45.130 Op. Cit., p. 46.131 Op. Cit., p. 46.132 Op. Cit., p. 47.

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sistema e até constituem entraves que precisam ser expurgados por vias diretas e indiretas. 133

Tudo isso é um caldeirão onde pode muito bem ser preparado o prato amargo de um novo holocausto, com bem adverte Arendt:

“Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. Ao contrário, a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido a sua emergência inicial. As razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graças à automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos setores da população até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao lado dos quais as instalações de gás de Hitler pareciam brinquedos de uma criança maldosa – tudo isso deve bastar para nos fazer tremer”. 134 E mais adiante, na mesma obra, a autora acrescenta:

“É bem concebível que na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível”. 135

Para que isso ocorra, ao contrário do que comumente se imagina, não seria necessário o surgimento de um novo Hitler ou algo parecido. Basta que cada um de nós permita esvaecer o conceito de humanidade, “pois é perfeitamente concebível e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria - à conclusão de que, para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma”. 136

Também Zaffaroni faz essa constatação, dissertando especificamente sobre os efeitos da globalização econômica na América Latina:

“El fenômeno tiene a crear en los paises latinoamericanos una massa excluída que no responde a la dialética explotador/explotado, sino a una no relation entre excluído/incluído. El explotado contaba, era tenido en cuenta y estaba dentro del sistema, como explotado pero dentro, el excluído no cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica de este esquema, si no se le interrumpe, es el genocídio”. 137

Neste contexto o Direito Penal pode surgir como um instrumento direto de seleção e destruição dos excluídos, servindo a contento aos desígnios inconfessáveis do novo modelo. É notável que o discurso da recuperação vai cedendo espaço para as soluções extremas, como a pena de morte e a redução da menoridade penal. 138 Bem pode encaixar-se aqui a concepção de uma Criminologia Genética seletiva e determinista, tendente a eliminar arbitrariamente caracteres presentes na constituição genética das pessoas, seja em sua geração ou posteriormente mediante intervenções forçadas a desconfigurarem suas personalidades. Isso sem falar no reforço que teses 133 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999, p. 4.134 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jersualém. 6ª. Ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 296.135 Op. Cit., p. 312. E que instrumento seletivo não seria a genética (mal direcionada) para tal desiderato.136 IDEM. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 332. E para aqueles que pensam que esse dia esteja muito longe, basta meditarem um pouco sobre o rumo que têm tomado as discussões sobre as questões previdenciárias no mundo moderno.137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y Sistema Penal en América Latina: de la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez, 1997, p. 22.138 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 4.

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deterministas concedem às hipóteses anteriormente mencionadas da pena de morte e da redução da menoridade penal. Quem sabe até mesmo se cogite um dia a completa eliminação da questão da imputabilidade, já que mesmo em um feto poder-se-ia encontrar e abrir a caixa – preta onde se ocultam os segredos do futuro criminoso.

Mas, não é só no Sistema Penal que se pode constatar a insidiosa e perigosa influência do Capitalismo Globalizado. Ela se faz sentir, por exemplo, no crescente abandono das questões previdenciárias, de saúde e educação públicas. Tudo isso empurra a massa excluída para as garras do Sistema Penal ou diretamente para a morte devido ao mais absoluto abandono e falência do Estado como entidade assistencial e promotora da igualdade. 139

Retomando a perspectiva criminal, percebe-se que na sociedade a infração penal é concebida como um mal, a criminalidade como uma doença infecciosa e o infrator como um ser daninho. Isso fomenta uma tomada de posição belicosa em relação ao crime, a qual influi na construção de toda a política referente ao “combate” à criminalidade. 140

Este é um campo fértil para as divisões e polarizações, a tal ponto que já se cogita a formulação do que se convencionou chamar de um “Direito Penal do Inimigo”, em oposição ou contraste com um “Direito Penal do Cidadão”, conforme teorizado por Jakobs. 141

Hoje pode-se constatar um processo razoavelmente generalizado daquilo que se poderia chamar de “paradigma do inimigo”, pelo qual a pessoa é julgada em virtude do que é ou do que acredita ser; com base em sua periculosidade supostamente inerente à sua personalidade, muito mais do que por aquilo que efetivamente tenha cometido. 142

No seio desse paradigma a tendência é que se consolide um modelo de Direito Penal que empreste gradativamente mais e mais destaque à prevenção, configurando um inovador e mais sofisticado “panoptismo social” marcado pela descoberta seletiva da figura do “inimigo”. 143

Acontece que agora a idéia original de Bentham 144 não precisa mais da parafernália arquitetônica por ele concebida e nem fica restrita aos ambientes prisionais. A tecnologia permite uma vigilância muito mais ampla e invasiva, cogitando-se não só o controle absoluto da conduta humana exteriorizada, mas, quem sabe, de suas tendências ou potencialidades internas por meio dos conhecimentos genéticos.

Para Tognolli, “a nova ideologia do DNA lastrearia, em longo prazo, a idéia dos ‘novos inimigos’ da saúde perfeita: os portadores de genes ‘deficientes’. (...). O mesmo processo que movimenta a sociedade em torno dos ‘novos inimigos’ geopolíticos é o que agrega, (...), a todos na busca e encontro dos ‘genes culpados’”. 145

Acontece que, para além de que essa seleção dos “inimigos” através da genética configure um arbitrário, totalitário e desumanizante “Direito Penal do Autor”, lastreia-se em um referencial teórico há muito tempo superado. Nada mais, nada menos do que

139 Op. Cit., p. 4. Relembremos neste ponto o texto satírico de Jonathan Swift, exposto linhas volvidas, “Modesta Proposta”. 140 MUÑOZ CONDE, Francisco, HASSEMER, Winfried. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1995, p. 37.141 JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2003, p. 142 – 143.142 APONTE, Alejandro. Derecho penal de enemigo versus derecho penal del ciudadano. Günther Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 51, nov./dez, 2004, p. 16.143 Op. Cit., p. 17.144 BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Trad. Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, “passim”. 145 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 215.

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aquilo que com razão se poderia denominar, como o fez José Nêumanne, de um “neolombrosianismo”. 146

Seguiria dizendo que se ressuscita a tese do “determinismo biológico”, mas parece mais adequado constatar que ela jamais feneceu realmente, sendo mais correto admitir que dormitasse sempre latente nos meandros do imaginário popular e até dos cientistas.

Conforme alerta Lewontin, “tudo isso é um grande nonsense” 147, que se baseia numa terrível confusão entre fantasias e realidade, ocasionada por uma mistura entre aquilo que é representado em uma simples metáfora com o objeto ou fato real. Em suas palavras:

“A ideologia do determinismo biológico usa muitas metáforas retiradas do modelo de máquina de Descartes e agora dos modelos computacionais. Essas metáforas permitem então ‘jogos de linguagem’ porque elas são levadas a sério e assim as conseqüências lógicas de se levar metáforas a sério são levadas à última instância. Todos os cientistas empregam metáforas, mas as metáforas podem ser os maiores inimigos de se compreender adequadamente o mundo material. As pessoas confundem as metáforas com os objetos reais. Norbert Wiener e Arturo Rosenblith escreveram que ‘ o preço da metáfora é a eterna vigilância”. 148

Realmente, o fato de que alguém se utilize da imagem de um “chip” de computador em comparação com os genes, falando no código genético como uma espécie de “programação”, não pode ser acatado além do mero sentido metafórico para levar à conclusão de que o homem pode, na realidade, ser equiparado a uma máquina pré – programada. Da mesma forma a metáfora não pode extravasar para reabilitar a absurda e superada crença de que o crime possa ser considerado como um ente natural e não como um conceito normativo criado pela sociedade humana, produto de seus artifícios.

Com bem observa Karam, é comum o equívoco de falar “genericamente em crime como se tal expressão pudesse traduzir um conceito natural, que partisse de um denominador comum, presente em todo tempo ou em todo lugar. Mas, na realidade, crimes são meras criações da lei penal, não existindo um conceito natural que os possa genericamente definir. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser em outro; o que hoje é crime, amanhã poderá não ser”. 149

A Criminologia Genética reducionista e determinista parte, portanto, de duas premissas equivocadas: nem o homem é um sistema fechado (é, na verdade, caracterizado pela constante abertura); nem o crime é um conceito natural, independente da normatização da conduta humana operada pelas leis penais.

Mesmo considerando isoladamente o conhecimento genético, não se pode afirmar a existência de consenso quanto a serem os genes em si “estruturas fechadas”. Para Richard Lewontin, os genes são passíveis de alterações pelas “condições de trabalho, psicológicas, sociais, antropológicas” etc., e defini-los como sistemas fechados não passaria de mera ideologia. Lembra o autor que a ciência não é tão objetiva como se costuma apregoar, ela, “como outras atividades produtivas, como o Estado, a família, o esporte, é uma instituição social completamente integrada e influenciada pela estrutura de todas as nossas outras instituições sociais. O problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses problemas, até mesmo os resultados científicos, tão alardeados, decorrentes da investigação científica, são todos 146 Apud, Op. Cit., p. 265.147 Op. Cit., p. 265.148 LEWONTIN, Richard. Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. cit., p. 267.149 KARAM, Maria Lúcia. Sistema Penal e publicidade enganosa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 52, jan./fev., 2005, p. 159 – 160.

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profundamente influenciados por predisposições que derivam da sociedade na qual vivemos. Os cientistas não começam as suas vidas como cientistas e sim como seres sociais imersos na família, no Estado, na estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que foram moldadas por suas experiências sociais. Acima do nível pessoal da percepção, a ciência é moldada pela sociedade porque ela é uma atividade produtiva humana que demanda tempo e dinheiro. A ciência usa dinheiro e ‘comodities’. Muitas pessoas ganham dinheiro e sobrevivem da ciência, e como conseqüência as forças sociais econômica e socialmente dominantes determinam em larga medida o que a ciência faz e como ela faz. Mais que isso, tais forças têm a força de se apropriar das idéias científicas que são particularmente úteis para a manutenção e continuidade da prosperidade das estruturas sociais das quais elas são parte. Então outras instituições sociais têm um ‘imput’ sobre a ciência, tanto sobre o que é feito como sobre o que é pensado, eles tiram da ciência conceitos e idéias que suportem as suas instituições e façam-nas parecer legitimamente naturais. É um processo duplo – por um lado, da influência social e controle do que os cientistas fazem e dizem para mais à frente apoiarem as instituições da sociedade – o que é explicado quando falamos da ciência como ideologia”. 150

Não é sustentável a tese de que “a seqüência do Genoma Humano seja o ‘Graal’ que irá revelar tudo o que é o ser humano”. Mas, é fácil de compreender como essa tese reducionista encontra tanto eco na sociedade capitalista globalizada. Ela permite ocultar as reais causas dos problemas sociais (alcoolismo, drogas, criminalidade, violência, desequilíbrio nervoso, desagregação familiar etc.), satanizando os genes e os seus portadores, como é interessante para perpetuar o “status quo”. Lewontin compara a atual condenação dos genes anti – sociais com a satanização ocorrida no século XIX contra o “Bacilo de Koch”, levada a efeito, evitando a discussão sobre as condições sociais (moradia, higiene, condições insalubres de trabalho) que realmente levavam à proliferação da tuberculose. 151 Trata-se verdadeiramente de um “marcador substituto”, ou seja, uma variável relacionada com outra que é a causa real.

Fato é que tal concepção, se levada a sério, inobstante partindo de premissas insustentáveis, vai nos conduzir à intolerância ou ao preconceito para com pessoas portadoras de códigos genéticos que apontem para certas “tendências” negativas. Mais uma vez veremos a segregação, o preconceito e a exclusão sendo chancelados pela idoneidade e neutralidade (altamente contestáveis) da ciência. 152

Afinal, o próprio Diretor do Projeto Genoma Humano, Francis S. Collins, não corrobora qualquer concepção determinista ou premonitória da genética, no que tange ao comportamento humano. Segundo suas palavras:

“Para muitas características comportamentais humanas, existe um componente da hereditariedade do qual não se pode escapar. Em praticamente nenhuma delas a hereditariedade chega perto do profético. O ambiente, em especial as experiências da infância, e o papel de destaque das chances do livre – arbítrio individual têm sobre nós um efeito profundo. Os cientistas descobrirão um nível crescente de detalhes moleculares sobre os fatores herdados que se encontram subjacentes à nossa personalidade. Isso, porém, não deve nos levar a superestimar sua contribuição quantitativa. Sim, a todos nós foi dado um conjunto de cartas com as quais lidar, e essas cartas serão, enfim, reveladas. Contudo, a forma como jogamos com elas depende de nós”. 153

150 Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 137 – 138.151 Op. Cit., p. 140.152 Op. Cit., p. 302.153 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 266.

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E mais adiante o autor afasta qualquer possibilidade real de uma programação infalível da genética acerca da personalidade e agir humanos:

“A importância crucial da criação, da instrução e da disciplina na infância não seria evitada por um lance de dados levemente aprimorado. O casal narcisista que insistiu no uso dessa tecnologia genética para produzir um filho que poderia ser zagueiro de um time de futebol, tocar violino na orquestra da escola e tirar A+ em matemática poderia muito bem encontra-lo, em vez disso, em seu quarto, jogando videogame, queimando uma erva e escutando heavy metal”. 154

Outro fator que não pode passar despercebido é o papel representado pela mídia, em especial a imprensa na divulgação das notícias sobre as descobertas e potencialidades da genética.

Como salienta Cláudio Tognolli, em sua grande maioria as notícias sobre genética veiculadas pela imprensa são contaminadas por ideologia e carentes de um maior embasamento científico. 155

Pesquisando as notícias veiculadas sobre o tema, num período de sete anos (de 1994 a 2000), constatou o autor que menos de 3% delas trazia algum conteúdo crítico quanto às descobertas biotecnológicas. 156A tendência da imprensa tem sido, infelizmente, reforçar o caráter estigmatizante das descobertas genéticas, bem como acoroçoar o paradigma reducionista, determinista e simplista de encarar o ser humano, mediante o abuso de expressões características como: “isolamento de genes” (juntamente com a metáfora cibernética); além da suposta descoberta de “qualidades”, “disfunções”, “defeitos” e “tendências” individuais e indeléveis “que cada um traz dentro de si”. 157

Leão Serva, em entrevista a Cláudio Tognolli, chama a atenção para o fato de que a sociedade passa a depositar sua fé em um mundo melhor pela intervenção de um novo “deus moderno que é a biotecnologia”. E arremata, afirmando que a imprensa reflete esse ideário de forma acrítica, sendo que “o material jornalístico nunca nos leva a supor que alguém esteja pensando diferentemente dessas novidades biotecnológicas. Isso é vendido como se fosse pura técnica despida de uma ideologia na sua condução. É uma carga muito grande de informações sobre biotecnologia, mas em nenhum momento isso vem para permitir uma visão mais completa ou mais complexa do que está acontecendo”. 158 Enfim, o biologismo, seja por razões ideológicas ou por pura desinformação ou pressa no fechamento de edições, acabou ganhando campo na imprensa em detrimento de uma visão crítica e realista dos fatos. 159 Isso certamente empobrece ou até inviabiliza o cumprimento daquilo que Fiss refere como “a missão democrática da imprensa” 160, enquanto legítimo veículo possibilitador de que as pessoas formem informada e livremente as suas opiniões, e não sejam simplesmente conduzidas ou influenciadas tendenciosamente por determinada corrente ideológica.

Não se pretende apregoar uma satanização da genética, mas apenas uma visão equilibrada que também não a divinize ou lhe atribua poderes milagrosos, passando por cima de valores inalienáveis do ser humano e construindo teorias mirabolantes sustentadas em falsas premissas.

A genética pode muito bem ser veículo para grandes conquistas, inclusive quanto à solidariedade humana, a tolerância e a convivência pacífica entre as pessoas.

154 Op. Cit., p. 273.155 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 174.156 Op. Cit., p. 183.157 Op. Cit., p. 186.158 Op. Cit., p. 239.159 Op. Cit., p. 290.160 FISS, Owen M. Op. Cit., p. 99.

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Poucos aspectos do saber e da atividade humana podem contribuir e já contribuíram de forma tão valiosa para tornar o racismo algo visivelmente indefensável. A biologia comprovou que não só não existem “raças inferiores” como sequer há “raças”, pois que “não há praticamente nenhuma diferenciação racial entre os humanos”. As diferenças físicas constatáveis não se refletem em diferenças genéticas, já que “entre os humanos mais amplamente separados é minúscula” a variação genética em cotejo com outras espécies. 161

No campo penal certamente a genética pode dar sua contribuição, a qual não é desprezível. É claro que, em parte, certas condutas criminosas admitem uma explicação etiológica, que bem pode ser explorada no campo genético. Deve-se, porém, ter o cuidado de não assentar conclusões sobre fantasias e de não procurar simplificar o complexo a qualquer custo, apenas para tranqüilizar nossa perturbação diante dos mistérios da humanidade.

Procedendo a uma breve digressão em relação ao tema central deste trabalho, considera-se oportuno lembrar que a ciência genética pode colaborar imensamente e já o faz, na apuração da autoria de crimes. Trata-se de sua aplicação em outro campo das ciências criminais, qual seja, o da “criminalística”.

Zarzuela conceitua a criminalística como “o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos, artísticos etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escrita dos elementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento do crime e na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ou de evidente interesse judiciário”. 162

Os exames de DNA em vestígios deixados em locais e instrumentos de crime, vestes e corpos de vítimas e suspeitos, colaboram muitas vezes decisivamente para o esclarecimento de eventos criminosos, especialmente no que tange à sua autoria.

Watson cogita a possibilidade da criação de um banco de dados genéticos, a exemplo do que já existe com relação às digitais, a fim de facilitar a atuação da investigação criminal. É claro que a amplitude informativa dos códigos genéticos pode gerar questionamentos quanto a essa invasão estatal da privacidade. Isso porque, diversamente das digitais, o código genético contém muito mais informações sobre uma pessoa do que sua simples identificação (v.g. doenças congênitas). 163 No entanto, pensamos que algumas precauções legais e práticas, impondo um controle rígido do uso das informações genômicas restrito aos fins de investigação criminal, poderiam promover um saudável equilíbrio entre as garantias individuais e o interesse social na apuração dos crimes e punição dos criminosos. 164 Oportuno, portanto, transcrever a observação de Watson:

“Embora a legislação não deva atrapalhar nossa ambição de explorar o pleno potencial do DNA em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem somos e de onde viemos, ou em identificar quais dentre nós são culpados de algum crime, ela deve no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja privado de seus direitos civis ou humanos com base no que porventura estiver inscrito em seus genes”. 165

4 – CONCLUSÃO161 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 88.162 ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto, 1996, p. 15.163 WATSON, James D. Op. Cit., p. 296.164 Neste sentido: Op. Cit., p. 314.165 Op. Cit., p. 383.

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No decorrer deste trabalho foi discutida a questão da viabilidade da construção de um saber criminológico calcado nas modernas pesquisas genéticas.

Por intermédio de um esboço da evolução histórica da Criminologia, logrou-se demonstrar como esta passou de um estágio em que se buscava uma explicação etiológica do fenômeno criminoso, entendendo este como um ente natural e o infrator como portador de uma anomalia, até chegar às questionadoras concepções da Criminologia Crítica, e o ponto de equilíbrio que vem a ensejar a compreensão da complexidade do tema pesquisado, propondo-se o paradigma da Criminologia Integrada.

Finalmente, abordou-se o ponto sensível deste estudo, ou seja, o papel da genética na Criminologia contemporânea. Principiou-se pela defesa da importância da reflexão como pressuposto para a tomada de qualquer decisão, especialmente daquelas que se referem à intervenção no “status” do homem no mundo e na sociedade. A seguir, foram expostas as discussões acerca da legitimação da culpabilidade como pressuposto da punição, fazendo-se notar que a responsabilidade está atrelada de forma inseparável à liberdade. Por outro lado, afastada a responsabilidade por influência de teses deterministas, não se pode mais legitimamente falar em punição. Não obstante, resta viável a tese da defesa social, que pode tornar defensáveis os usos de medidas extremas de contenção ou mesmo de eliminação daqueles aos quais é atribuída, por algum critério, a pecha da periculosidade.

Analisou-se também a questão do totalitarismo oculto na conformação de uma criminologia genética reducionista e determinista. Em seu contexto parece inevitável uma constante intervenção sobre o indivíduo, controlando profundamente não só as suas condutas, mas também aquilo que ele seja ou pretenda ser. Isso certamente conflui para uma desconstrução da autenticidade, extremamente violadora da dignidade humana. Há numa Criminologia ou em qualquer teoria ou ideologia que apregoe a intervenção profunda no “ser” do homem um intento de recriar (destruindo) o humano, que é essencialmente “abertura”, para transforma-lo em um sistema fechado, moldado ao bel prazer de alguma elite ilegitimamente detentora do poder de decidir como deve ser o “ser” do homem.

Por derradeiro, foram apreciadas as fantasias e falsas bases que dão sustento a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, bem como suas naturais confluências com a conformação intolerante, excludente e cruel de um Capitalismo Globalizado. Verifica-se muito claramente que aquilo que hoje se apresenta como uma novidade capaz de revolucionar os estudos criminológicos, não passa de uma repristinação, acrescida de certa sofisticação e sutileza, de antigas teorias etiológicas do crime, configurando nada mais do que um “neolombrosianismo” tosco, mal disfarçado na pele sedutora da suposta vanguarda científica.

É fato incontestável que a ciência pode ou poderá em breve alterar o patrimônio genético da humanidade. Mas, o fato de ser detentor de um poder ou conhecimento, nada diz a respeito da conveniência de seu uso. Em primeiro lugar deve-se saber “quem, de que modo e com que finalidade pode levar a cabo tais alterações”. Depois é preciso ir ainda mais fundo e decidir se essas mudanças devem sequer ser levadas a efeito. 166

A história nos ensina que sempre que alguma mudança pode operar-se, ainda que seja perigosa e sofra resistências, acaba acontecendo. Neste caso, considerando que a decisão seja pela intervenção modificadora do genoma humano, ainda nos resta discutir a legitimidade das alterações porventura pretendidas. Mister se faz “encontrar a

166 COSTA, José de Faria. Op. Cit., p. 103.

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vontade consensual que possa dar um rumo límpido, claro e transparente à via ou caminho que se quer prosseguir”. É aqui que reside a missão do Direito. A ele não é dado dominar e oprimir a pesquisa científica, pretendendo impor uma verdade normativa em oposição à verdade aferível pela dialética própria da atividade da ciência. Afinal, como consta da célebre frase ora atribuída a Francis Bacon, ora a Galileu Galilei, “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”. Portanto, o Direito, aliado à ética, deve regular com bom senso os limites da aplicação dos conhecimentos científicos, sem contudo constituir uma barreira autoritária à livre pesquisa. Caberá, portanto, ao Direito (Biodireito) a árdua missão de encontrar um consenso, orientado por valores éticos, legitimando os comportamentos altamente relevantes da aplicação da genética sob os prismas comunitário e individual. 167

Note-se, porém, que o caminho a ser trilhado, passando pela discussão ética para chegar à normatização jurídica, não pode ser produto de uma ou outra categoria de pessoas (juristas, cientistas, religiosos etc.). Muitas vezes os cientistas se arrogam o direito de apropriação do discurso acerca da genética, isso com base no fato de serem detentores do conhecimento técnico. Não obstante, como já se disse, o domínio de um conhecimento ou poder nada significa a respeito do bom ou mau uso que se fará dele. Para a discussão de questões de alta indagação que suplantam em muito o mero saber técnico – científico, exigindo decisões informadas não somente pelo conhecimento, mas, principalmente, pela sabedoria, torna-se imprescindível a confluência democrática e pluralista. Cabe ao cientista a manifestação e até o esclarecimento sobre as questões técnicas, mas devem ser chamados à baila o sociólogo, o criminólogo, o jurista, o filósofo, o teólogo, em suma, a sociedade representada da forma mais ampla e esclarecida possível. Afinal, como aduz Gilson, a ciência pode fornecer muitas respostas no que diz respeito ao mundo dos fenômenos, mas, afora isso, nem sequer sabe fazer as perguntas. 168

Diverso não é o entendimento de um cientista esclarecido e equilibrado como Collins, que afirma:

“Sobre esses assuntos que representam desafios éticos verdadeiros, que não são situações artificiais e irreais, como nossa sociedade poderá tirar conclusões?

Primeiramente, seria errado simplesmente deixar os cientistas tomarem essas decisões. Eles têm uma função crucial nesses debates, já que sua especialidade pode permitir uma distinção clara do que é e do que não é possível. No entanto, os cientistas não podem ser os únicos nesse debate. Por sua própria natureza, eles têm fome de explorar o desconhecido. Seu senso moral, geralmente, não é nem mais nem menos desenvolvido do que o de outros grupos, e eles não conseguem evitar sua aflição diante de um conflito de interesses que pode fazer com que fiquem indignados com os limites estabelecidos por quem não é da comunidade científica. Portanto, uma ampla variedade de outras perspectivas deve ser representada nesse debate”. 169

Eis onde emerge a importante função da bioética. O termo foi cunhado em 1970 pelo cancerologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitulado “Bioethics, the Science of Survival” e corroborado em um livro de título “Bioethics, Bridge to the future”. 170 A “Encyclopedia of Bioethics” a define como o “estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e princípios morais”. 171

167 Op. Cit., p. 103 – 104.168 GILSON, Etienne. Op. Cit., p. 98.169 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 273 – 274.170 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 275.171 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Volume I. 2ª. ed. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2002, p. 43.

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A Bioética não é uma ideologia reacionária que pretende atravancar os avanços científicos, mediante sutilezas morais e/ou teológicas. Na verdade, ela é portadora de uma clara mensagem de que a ciência e a técnica não prescindem de uma “razão reguladora” que deve pautar-se por princípios éticos. 172

Afirma Ratzinger que “a ciência pode servir à humanidade, mas pode também se tornar instrumento do mal, dando-lhe os meios para desenvolver plenamente sua terribilidade; ela pode realizar sua verdadeira essência somente se for sustentada pela responsabilidade moral”. No entanto, “a força moral não cresceu junto com o desenvolvimento da ciência; pelo contrário, até diminuiu, porque a mentalidade técnica relega a moral ao âmbito subjetivo, enquanto seria justamente necessária uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pairam sobre a existência de todos nós”. Efetivamente, “a questão moral é hoje, mais do que nunca, manifestamente uma questão de sobrevivência para a humanidade. Na civilização tecnicista, que já se estendeu ao mundo contemporâneo todo, as antigas certezas morais, que sustentavam as várias grandes culturas, foram amplamente destruídas. A visão tecnicista do mundo dispensa os valores, e se questiona sobre a possibilidade prática, não sobre o que é lícito. Para muitos, a questão do que é lícito parece até ultrapassada, não mais compatível com a emancipação do homem de todos os vínculos. O que é possível fazer é também lícito fazer: é assim que se pensa hoje, cada vez mais.

Mas o verdadeiro problema coloca-se em um nível mais profundo ainda. Defrontadas com a certeza indiscutível que caracteriza as matérias técnicas, todas as certezas morais parecem algo frágeis e discutíveis. Muitos acham que só é razoável o que posso verificar de forma tão incontrovertível quanto as fórmulas matemáticas ou técnicas. Mas onde encontrar essa verificabilidade nas realidades tipicamente humanas, nas questões da moral e do reto viver humano? O fato de as grandes culturas, apesar dos importantes elementos comuns, darem nesse contexto resposta diferentes faz com que o relativismo se torne cada vez mais a opinião dominante. No âmbito da moral e da religião, não há nenhuma certeza partilhável; cada um deve achar por si mesmo como solucionar o problema. Cada um deve seguir suas próprias convicções”. Esse relativismo tem até certa coerência no cotejo com a realidade plural, mas destrói a segurança de qualquer critério ético e deixa o homem sem limites ao seu arbítrio. Nesse quadro, “a ciência se torna patológica e perigosa para a vida, quando se desobriga do contexto da ordem moral própria do ser – homens, e permite-se admitir unicamente suas próprias possibilidades como único critério admissível”. A pergunta crucial, porém, não é aquela que se refere ao que se “pode fazer”, mas aquela que se volta para o que se “deve fazer”, abrindo-se para a “voz da verdade e a seu chamado”. 173

Um dos aspectos que a Bioética deve preservar no que tange à dignidade humana perante as descobertas científicas é a vedação absoluta à instrumentalização, sob quaisquer pretextos.

É neste ponto que uma genética determinista, seja em sua aplicação criminológica ou em geral, é problemática. Isso porque ela reduz o homem a uma espécie de marionete guiada por mãos invisíveis, que seriam agora os genes. 174

Quando se perde de vista a noção básica de que somos sistemas abertos e não fechados abre-se campo para uma reificação do humano, que passa a confundir-se com as coisas e animais incapazes de autoconsciência e de contínua abertura para um “ser” que se constrói em processo sempre inconcluso.

172 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 274.173 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Op. cit., p. 101 – 102.174 Ver neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. Cit., p. 408. “Não somos meros marionetes cujos cordões são manipulados por nossos genes”.

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A liberdade e a responsabilidade são traços fundamentais da existência humana. O homem escolhe sua existência e toma posição frente aos valores. Por isso é o responsável pela escrita de sua própria história, a qual não é o mero resultado da preponderância dos instintos sobre o agir consciente, já que o homem tem a capacidade de superar os impulsos mais poderosos, a não ser que esteja sofrendo de alguma patologia psíquica. 175

Desse modo, desde que não se perca de vista essa noção básica da liberdade, responsabilidade e dignidade humanas, as pesquisas sobre genética para aplicação médica ou criminológica não devem ser descartadas ou impedidas.

Trata-se de uma tecnologia de altíssimo potencial para o mal e para o bem, de modo que os povos que virarem as costas para o seu estudo criteriosamente pautado pela ética, correm o risco de serem surpreendidos pelo seu uso descontrolado por parte de pessoas mal intencionadas e pouco ou nada preocupadas com princípios éticos. 176

O aprimoramento dos conhecimentos ligados à genética traz em si terríveis riscos, sempre que não for pautado por princípios éticos e uma visão antropológica que preserve a dignidade humana. No entanto, não se deve satanizar a genética e somente antever em seu desenvolvimento conseqüências catastróficas para a humanidade. A precaução é sempre uma virtude, mas o medo irracional nunca foi um bom conselheiro.

É preciso regular os potenciais da genética, mas não se pode crer que um instrumento como esse somente possa ser utilizado com fins egoístas e destrutivos. Mister se faz dar algum crédito à capacidade humana para o altruísmo e o sentimento comunitário, que podem tornar os potenciais dessa ciência altamente produtivos para o bem da humanidade. 177

A mesma ambivalência pode ser constatada num dos fatores capazes de fomentar uma aplicação até mesmo genocida e excludente do conhecimento genético, qual seja, a globalização.

Embora pululem por todo o mundo os chamados “movimentos antiglobalização”, sabe-se o quanto quixotesco é ser “contra a globalização”. Essa postura assemelha-se a ser contra, por exemplo, uma tempestade. A globalização é um fenômeno inevitável no atual estágio da humanidade, de modo que a questão não está em impedi-la, mas em controlar seus processos “selvagens” e converte-los “de ameaça em oportunidade para a humanidade”. 178

Assim como a genética pode ser usada com vistas ao sentimento de solidariedade e solicitude para com o outro, também a globalização pode ser um elemento de aproximação e de união da humanidade em torno de um projeto solidário. Ela permite uma visão do “outro” que jamais existiu. Desde que esse “outro” em face do qual nos colocamos seja tomado como sujeito de nossas obrigações éticas e não como inimigo ou obstáculo, a globalização pode produzir bons frutos.

Nas palavras de Bauman:“Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela

primeira vez na história da humanidade o auto – interesse e os princípios éticos de respeito e atenção mútuos de todos os seres humanos apontam na mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização pode até transformar-se em benção: a ‘humanidade’ nunca teve uma oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se

175 PASCUAL, Fernando. Op. Cit., p. 42.176 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 429.177 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 426.178 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 94.

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a chance será aproveitada antes que se perca, é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende de nós”. 179

Enfim, uma lição deve ser aprendida por todos, em especial com a questão dos errôneos fundamentos de uma Criminologia Genética determinista, a reviver um lombrosianismo, cujo valor é atualmente somente histórico:

Um dos cuidados que devemos sempre tomar, cientes de que errar é inevitável em nossa condição humana, é, pelo menos, evitar repetir os erros passados, ainda que sob novas roupagens.

Afinal, como bem lembrava Paulo César da Silva em sua fala final na Reunião do Grupo de Pesquisas de Bioética e Biodireito da Unisal 180: “o erro sempre é velho, só a verdade é nova”.

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179 Op. Cit., p. 95.180 Reunião realizada no dia 31.03.2007, na Unisal – Campus de Lorena-SP.

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