cultura política participante

7
98 A CULTURA POL˝TICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDA˙ˆO DEMOCR`TICA reflexıes sobre o Brasil contemporneo Resumo: Exame de alguns dos fatores histrico-estruturais, cuja influŒncia tem se mostrado significativa na estruturaªo de padrıes de atitudes e comportamentos de desconfiana e desencanto da sociedade brasileira em relaªo s suas instituiıes polticas e, principalmente, aos polticos. Os resultados do estudo indicam que a existŒncia de fatores dessa natureza acabam por descaracterizar a democracia no pas e permitem o surgi- mento de formas antidemocrÆticas de governar. Palavras-chave: cultura poltica; instituiıes polticas; democracia. s dificuldades que o Brasil enfrenta presente- mente de solidificaªo de seus partidos polti- cos como mediadores entre Estado e socieda- discutida estÆ centrada na idØia de que, na verdade, hou- ve uma modificaªo nas atitudes e no comportamento dos brasileiros em relaªo poltica, fruto de um conjunto de fatores (o mercado, a globalizaªo, a informÆtica, entre outros), porØm, na essŒncia, os brasileiros continuam a desacreditar nas instituiıes que constituem o pilar da democracia representativa. Observa-se uma adaptaªo das instituiıes democrÆticas a uma prÆtica de uso de proce- dimentos antidemocrÆticos que pervertem a representaªo poltica, gerando dœvidas e incertezas sobre o futuro da democracia. Isso se verifica nªo no sentido de favorecer retrocessos institucionais ou rupturas profundas, mas na institucionalizaªo de atitudes de indiferena, apatia e distanciamento da arena poltica, e na crena de que nªo hÆ nada que se possa fazer para mudar o atual estado de coisas. Tais atitudes podem ser muito mais deletØrias ao processo de construªo democrÆtica a longo prazo. VŒ- se, por exemplo, que apesar de vÆrios mandatÆrios latino- americanos terem sido depostos por mobilizaıes popu- lares (Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Bucaram e Mahuad, no Equador, e Peres, na Venezuela), essas mo- bilizaıes nªo conseguiram se transformar em eixos per- manentes de maior participaªo da sociedade civil. A nªo- resoluªo dos problemas mais imediatos (nas Æreas de emprego, saœde e educaªo), que levaram deposiªo desses executivos, parece ter operado para gerar um sen- timento de impotŒncia, acirrado pela forma de funciona- de; a nªo-consolidaªo de uma economia que estabele- a parmetros mnimos de redistribuiªo de riqueza; e a onda generalizada de corrupªo institucional e o agra- vamento da situaªo social no pas, propiciam algumas reflexıes sobre o impacto desses fatores na estrutura- ªo da cultura poltica do pas, bem como uma avalia- ªo do prprio processo de construªo democrÆtica. De maneira geral, nos œltimos anos, as pesquisas de opi- niªo pœblica tŒm revelado um declnio acentuado da confiana que os brasileiros depositam nas instituiıes polticas e particularmente na classe poltica. Nota-se claramente, tambØm, uma fragilizaªo dos laos sociais e a institucionalizaªo do individualismo, com o inte- resse privado ou individual se sobrepondo ao interesse coletivo. Poder-se-ia argumentar que essa situaªo nªo constitui uma novidade, pois sempre foi assim, e, ain- da mais, a presena desses fatores na sociedade brasi- leira nªo poderia ofuscar os avanos obtidos no campo da democratizaªo ao longo das duas œltimas dØcadas. O argumento que este trabalho se propıe a desenvol- ver tem o objetivo de avaliar se, de fato, os avanos no campo formal da poltica tŒm sido suficientes para gerar uma base na qual esteja se desenvolvendo uma cultura poltica democrÆtica e participativa. A problemÆtica a ser MARCELLO BAQUERO Professor do Programa de Ps-Graduaªo em CiŒncia Poltica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Upload: fernando-garcez

Post on 10-Aug-2015

21 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Cultura política participante

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

98

A

CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA EDESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

reflexões sobre o Brasil contemporâneo

Resumo: Exame de alguns dos fatores histórico-estruturais, cuja influência tem se mostrado significativa naestruturação de padrões de atitudes e comportamentos de desconfiança e desencanto da sociedade brasileiraem relação às suas instituições políticas e, principalmente, aos políticos. Os resultados do estudo indicam quea existência de fatores dessa natureza acabam por descaracterizar a democracia no país e permitem o surgi-mento de formas antidemocráticas de governar.Palavras-chave: cultura política; instituições políticas; democracia.

s dificuldades que o Brasil enfrenta presente-mente de solidificação de seus partidos políti-cos como mediadores entre Estado e socieda-

discutida está centrada na idéia de que, na verdade, hou-ve uma modificação nas atitudes e no comportamento dosbrasileiros em relação à política, fruto de um conjunto defatores (o mercado, a globalização, a informática, entreoutros), porém, na essência, os brasileiros continuam adesacreditar nas instituições que constituem o pilar dademocracia representativa. Observa-se uma adaptação dasinstituições democráticas a uma prática de uso de proce-dimentos antidemocráticos que pervertem a representaçãopolítica, gerando dúvidas e incertezas sobre o futuro dademocracia. Isso se verifica não no sentido de favorecerretrocessos institucionais ou rupturas profundas, mas nainstitucionalização de atitudes de indiferença, apatia edistanciamento da arena política, e na crença de que nãohá nada que se possa fazer para mudar o atual estado decoisas. Tais atitudes podem ser muito mais deletérias aoprocesso de construção democrática a longo prazo. Vê-se, por exemplo, que apesar de vários mandatários latino-americanos terem sido depostos por mobilizações popu-lares (Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Bucaram eMahuad, no Equador, e Peres, na Venezuela), essas mo-bilizações não conseguiram se transformar em eixos per-manentes de maior participação da sociedade civil. A não-resolução dos problemas mais imediatos (nas áreas deemprego, saúde e educação), que levaram à deposiçãodesses executivos, parece ter operado para gerar um sen-timento de impotência, acirrado pela forma de funciona-

de; a não-consolidação de uma economia que estabele-ça parâmetros mínimos de redistribuição de riqueza; ea onda generalizada de corrupção institucional e o agra-vamento da situação social no país, propiciam algumasreflexões sobre o impacto desses fatores na estrutura-ção da cultura política do país, bem como uma avalia-ção do próprio processo de construção democrática. Demaneira geral, nos últimos anos, as pesquisas de opi-nião pública têm revelado um declínio acentuado daconfiança que os brasileiros depositam nas instituiçõespolíticas e particularmente na classe política. Nota-seclaramente, também, uma fragilização dos laços sociaise a institucionalização do individualismo, com o inte-resse privado ou individual se sobrepondo ao interessecoletivo. Poder-se-ia argumentar que essa situação nãoconstitui uma novidade, pois sempre foi assim, e, ain-da mais, a presença desses fatores na sociedade brasi-leira não poderia ofuscar os avanços obtidos no campoda democratização ao longo das duas últimas décadas.

O argumento que este trabalho se propõe a desenvol-ver tem o objetivo de avaliar se, de fato, os avanços nocampo formal da política têm sido suficientes para geraruma base na qual esteja se desenvolvendo uma culturapolítica democrática e participativa. A problemática a ser

MARCELLO BAQUERO

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Page 2: Cultura política participante

99

CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA...

mento das leis, dando a idéia de que a justiça se faz ape-nas para os mais abastados.

Para respaldar esta análise, busca-se, num primeiromomento, resgatar alguns fatores de caráter histórico-es-trutural que possibilitem uma compreensão contextualizadade como foram condicionadas as crenças e os valores emrelação à política. Não se trata de estabelecer umdeterminismo histórico, mas de tentar compreender a in-fluência que essas matrizes tiveram na estruturação de umamentalidade coletiva que privilegia o distanciamento, odesencanto e a desconfiança generalizada. Num segundomomento, avaliam-se, de maneira ampla, resultados depesquisas de opinião, que mostram haver a institucionali-zação de uma cultura política fragmentada e de descon-fiança. Finalmente, sugere-se, pela importância, o desen-volvimento de associações informais, as quais deveriamfuncionar concomitantemente com as organizações tradi-cionais formais, com vistas a uma cidadania mais críticae participativa e com mais capital social.

RETROSPECTO HISTÓRICO

Fica claro, hoje, que o Estado brasileiro, ao contráriodas nações européias, nunca foi capaz de expressar suaprópria história e que tem sido, antes de mais nada, umreceptor aberto da história do Ocidente desenvolvido. Comefeito, a compreensão da especificidade histórica do paísé condição indispensável para reconceituar o sentido dapolítica e a natureza das relações sociais aí existentes.

Freqüentemente se constata, na bibliografia sobre a evo-lução do Estado no Brasil, e com certa razão, a influênciade um passado de instabilidade política e econômica, bemcomo de um legado autoritário que tem obstaculizado aconstrução de uma cultura política verdadeiramente de-mocrática no País.

Uma perspectiva teórica que dominou o pensamentopolítico brasileiro por muito tempo dizia respeito ao im-pacto dos fatores étnico-culturais na formação da socie-dade brasileira. Essa abordagem, denominada culturalista,trabalhando no plano simbólico-ideológico, examinou deque forma se institucionalizou o poder político no Brasil.Dessa perspectiva procurava encontrar as raízes do cará-ter nacional da nação.

Entre os autores mais significativos associados a esta li-nha de pensamento encontram-se Joaquim Nabuco, AlbertoTorres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Gilberto Freire,Guerreiro Ramos e Francisco Campos. O ponto de conver-gência entre eles está na tentativa de resgatar as matrizes

estruturais da sociabilidade brasileira. O fator preponderan-te desta linha de análise é a influência do clientelismo, opersonalismo e a incapacidade do povo na suposta incapaci-dade da sociedade em se mobilizar autonomamente para fis-calizar e modificar o processo político. A forma de evoluçãodo Estado teria propiciado a socialização de valores de dis-tanciamento e apatia tornando sua influência na política im-provável. Essa tendência não participativa era conseqüênciade governos e de uma estrutura social que favoreciam muitomais a desmobilização e a inércia do que a participação ci-dadã. Estabeleceu-se um consenso generalizado de que o paísnão tinha capacidade de reformar efetivamente as estruturastradicionais do Estado, gerando um descompasso entre umacelerado desenvolvimento econômico e uma estagnação dodesenvolvimento político, materializado na ausência de umacidadania organizada e eficaz na defesa de seus interesses, oque somou uma deficiente mediação entre Estado-socieda-de e partidos.

Tais elementos deram suporte ao surgimento da tecno-cracia, que serviria de eixo catalisador do �desenvolvi-mento� do País a partir dos anos 50, colocando a partici-pação popular como algo secundário.

A tecnocracia surge, portanto, como o principal atorda industrialização no Brasil. Assim, enquanto o núcleodas decisões estatais ficou a cargo dos técnicos insuladosnas agências estatais, deixou-se o espólio do sistema parao uso da política de clientela e do corporativismo; práti-cas que seriam realizadas, aí sim, pela classe política si-tuada no parlamento. Como o parlamento passa a de-sempenhar um papel historicamente secundário na esferadas grandes decisões estatais no Brasil, decorrente dessadinâmica, a hipertrofia do poder Executivo passa a ser umacaracterística prevalecente no Brasil.

Uma das conseqüências desse tipo de pensamentoculturalista, por exemplo, foi a sugestão de Oliveira Vianae de seus seguidores de que somente um sistema autoritá-rio e centralizador poderia construir o verdadeiro Estadonacional.

Nesse sentido, o Estado, dominado pela tecnocraciae por procedimentos clientelísticos, personalistas ecorporativistas, propicia a institucionalização do cha-mado Estado Patrimonialista (Uricoechea, 1978).

Quanto ao patrimonialismo, encontra-se na obra deRaymundo Faoro (1989) um dos principais trabalhos acer-ca desse tema. Para o autor, o atraso político brasileiro,do ponto de vista da incorporação da sociedade civil, tema ver com a forma de estruturação da burocracia no país.Fruto do avanço sistemático do poder político no contro-

Page 3: Cultura política participante

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

100

le da economia e da diferenciação social, o patrimonia-lismo ou o mercantilismo estatal destruiu a institucionali-zação dos direitos individuais. Os burocratas da cortepassaram a ter status maior do que os da fidalguia, queperdem seu poder econômico durante o processo de ex-pansão comercial.

Esse conjunto de fatores da sociabilidade brasileirapropiciou, segundo Buarque de Holanda (1992), o esta-belecimento de quatro elementos que caracterizaram aorganização social brasileira: ausência da tendência deautogoverno, a qual significava a ausência de solidarie-dade comunitária e de maneiras espontâneas de auto-or-ganização política; virtudes inativas, ou seja, o ser socialnão reflete ativamente para transformar a realidade, masprocura uma razão externa a sua existência; e razão refle-xiva, a qual provoca um pensamento que impede rompi-mentos, sustenta uma consciência conservadora e um do-mínio dos interesses pelas paixões.

De acordo com essa concepção, a sociabilidade brasi-leira nasceu influenciada pela pirâmide familiar, tendocomo fundamento a organização patriarcal, a fragmenta-ção social, as lutas entre as famílias, as virtudes inativas ea Ética da aventura. Originalmente o caudilhismo e, pos-teriormente, o coronelismo, que implicava a existência delideranças carismáticas, substituíam a racionalidade dosinteresses individuais e estabeleciam a matriz sobre a quala organização social e as fundações da política e do Esta-do foram delineadas.

Com efeito, na medida em que as relações afetivas ou fa-miliares precederam a constituição do espaço público, o po-der público incorporou uma dimensão personalista em que ocarisma-onipotente e a dependência do homem comum ge-raram uma atitude instrumental em relação à política.

Nos anos 80, a abordagem culturalista solidifica-se coma obra de Roberto DaMata (1993) em sua análise dos fe-nômenos sociais e da linguagem, examinando as causasda desigualdade e das formas de hierarquia existentes noBrasil. Já no exame das representações sociais e das con-cepções de cidadania, verifica-se o confronto da autori-dade social, baseada, de um lado, no personalismo e naidentidade vertical, e, de outro, na lei positiva. Nesse con-texto, segundo DaMata, enquanto o conhecido medalhãodetermina as iniciativas da ação coletiva, o personalismo,como modelo típico desse tipo de relações sociais,institucionaliza-se.

A conclusão do autor é a de que a sociedade brasileirapode ser caracterizada como sendo híbrida, pois combinauma identidade horizontal, tipicamente ocidental e baseada

no direito natural, com uma identidade vertical, caracte-rística das sociedades não-ocidentais, nas quais predomi-nam as tradições e a continuidade cultural.

Perspectiva diferente, na dimensão institucional, apre-senta Raymundo Faoro na obra Os donos do poder (1989),em que caracterizava o Estado no Brasil como uma ex-tensão do patrimonialismo ibérico, um poder imposto auma sociedade dominada pela política de manutenção dopoder vigente.

Nesse sentido, pode-se dizer que a experiência políti-ca brasileira tem se caracterizado pela predominância deformas autoritárias de governo, gerando, como conseqüên-cia, uma restrição às possibilidades de uma participaçãopolítica mais efetiva. O impacto do autoritarismo, ao lon-go das últimas décadas, não permitiu que se desenvolves-se um cenário no qual a ingerência da sociedade civil noEstado fosse significativa. Após 1974, com o processo deabertura política, o país atravessaria fases com amplasmanifestações de massa, dentre elas a marcha pelas dire-tas, em 1984; as manifestações pelo impeachment do pre-sidente Collor; a CPI dos anões, e as várias CPIs que têmse instalado ao longo do tempo. Esses acontecimentos, en-tretanto, que em outras circunstâncias poderiam consti-tuir matrizes capazes de catalisar modalidades de partici-pação mais duradouras e objetivas, acabam sendorelegados a um segundo plano em relação às crises eco-nômica e social que vêm abalando o país, apesar da exis-tência de indicadores estatísticos que mostram uma ex-pansão industrial e uma recuperação da economia.

Outrossim, historicamente, os instrumentos necessáriospara uma construção democrática caracterizada pela par-ticipação política estavam ausentes ou funcionavam demaneira precária ou com predisposições ideológicas de-terminadas. Um dos instrumentos de grande impacto, nessesentido, são os meios de comunicação. Ao lado disso, o(s)sistema(s) partidário(s) frágil(eis) e com pouca credibili-dade não têm constituído um instrumento de canalização,de mobilização e de participação política. Nesse contex-to, os pleitos eleitorais têm se caracterizado, ao longo dotempo, por apelos subjetivos, emocionais, personalistas eclientelistas.

Diante desse cenário, caberia indagar que tipo de cons-trução democrática está em andamento no Brasil?

DEMOCRACIA E CULTURA POLÍTICA

Um conceito que surgiu nos últimos anos, para avaliara saúde democrática do país, é a desconsolidação demo-

Page 4: Cultura política participante

101

CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA...

crática. Típico desse processo seria o uso privado das ins-tituições públicas, que a versão da democracia contem-porânea tem possibilitado, em que os poderes e os inte-resses econômicos utilizam os poderes políticos e asinstituições democráticas para continuar a exercer, comlegitimidade e eficácia, sua dominação e seu regime deenriquecimento.

Para grande parcela da comunidade acadêmica, pareceque a versão duracionista da democracia é mais impor-tante do que os resultados sociais que ela gera. Pensa-seque uma democracia se consolida meramente pela sua ca-pacidade de sobreviver a atentados contra sua institucio-nalidade. O que constatamos no Brasil contemporâneo éque a democracia está se sustentando, mas suas institui-ções, longe de se consolidarem, estão cada vez mais sub-metidas aos interesses privados dos setores econômicos.Schmitter (1994), em uma avaliação das democracias la-tino-americanas, porém aplicável ao caso brasileiro, su-gere que, apesar das instituições funcionarem anti-democraticamente com governos que não governam,parlamentos com mais representatividade privada do quepolítica, eleições que elegem candidatos mas não os legi-timam, instituições políticas que servem para o linchamen-to político e vinganças privadas, dão lugar a uma desor-dem democrática capaz de desordenar qualquer ordem eordenamento social, mas que, paradoxalmente, são natu-ralizadas por toda a sociedade. Conseqüência dessa desor-dem é a idéia de que uma alternativa aos déficits de repre-sentação política seria a maior participação política e,ignora-se, no entanto, que a participação requer uma melho-ria da própria representação, o que em realidade não ocorre.

Em conseqüência disso, tem-se tornado corriqueiro exa-minar as conseqüências dos déficits de representação po-lítica, deixando-se de examinar suas causas reais; demaneira geral, o Congresso e os partidos políticos apare-cem como os principais responsáveis pelas falhas na re-presentação política. Sem eximir sua parte nesse proces-so, seria pertinente resgatar a influência dos condicionanteshistórico-sociais no processo de representação política ede sua crise. Esse problema se agrava na atualidade emvirtude do aprofundamento da heterogeneidade estrutu-ral, que torna quase inviável a representação efetiva dosdiferentes interesses sociais.

O papel dos partidos políticos se vê hoje comprometi-do na sua função de agregação de interesses, pela insufi-ciência da consolidação democrática. Por um lado, o mo-delo político vigente tem permitido maior concentraçãode renda, legitimada pelo dogma neoliberal; por outro,

constata-se, simultaneamente, um crescimento da exclu-são social e o aumento da pobreza, transformando a so-ciedade brasileira não numa sociedade de interesses, masnuma nação de necessidades. Entretanto, diferentementedos interesses que podem ser objetivamente representa-dos, as necessidades passam pelo crivo imaginário dosrepresentantes eleitos e, portanto, de um modo geral, nãosão representadas politicamente.

Nos últimos anos, assistimos a uma reconversão darepresentação política que tem se orientado na defesa dosinteresses privados. Dessa forma, ao mesmo tempo quese legitima democraticamente uma dominação mais efi-caz sobre a sociedade e uma maior concentração de ri-quezas, as instituições políticas democráticas são desle-gitimadas.

A conseqüência da grave crise de representação políti-ca que o país vive tem redundado numa situação parado-xal em que, por um lado, busca-se o fortalecimento dasinstituições via reformas políticas, enquanto, por outro,buscam-se ou resgatam-se lideranças políticas cujo carismaé sempre proporcional à sua capacidade de se impor àsinstituições, o que acaba deslegitimando-as ainda mais.O resultado é a vigência de um ciclo vicioso, pois quantomaior a deslegitimação institucional, maior também a exi-gência de líderes carismáticos, os quais contribuem paraneutralizar e desacreditar essas mesmas instituições.

A chamada durabilidade da democracia nesse contex-to se dá às custas da perversão da legitimidade e da eficá-cia democráticas. Se a deslegitimação é grande, a ineficá-cia é maior, tendo em vista que os problemas do país cadavez mais são resolvidos por meios não democráticos (me-didas provisórias; loteamento de cargos; negociações es-púrias). Atualmente, por exemplo, fala-se muito na exis-tência de um clientelismo de coalisão no governo federal(Avritzer, 2001).

O enriquecimento de uma pequena parcela da popula-ção brasileira, enquanto a maioria enfrenta as incertezasde uma economia de mercado e o não-atendimento de suasnecessidades básicas, tem se tornado possível num con-texto democrático, precisamente porque as instituiçõesdemocráticas, em vez de desempenharem seus papéis es-pecíficos, de funcionarem democraticamente, têm, ao con-trário, servido de apoio a setores que, com maior eficáciae legitimidade, reproduzem sua dominação e seu enrique-cimento.

O neoliberalismo consegue, portanto, algo inédito, qualseja, sem destruir as instituições democráticas, submetê-las aos seus interesses e utilizá-las como instrumentos de

Page 5: Cultura política participante

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

102

dominação e enriquecimento ilícito. Nesse sentido, a de-mocracia, na sua versão brasileira, tanto opera na gestãoe administração de conflitos políticos, como permite amaior concentração de renda já observada na história dopaís. O paradoxo da democracia brasileira parece ser o deque, quanto mais ela dura, mais é pervertida, graças aoprocesso de globalização que tem possibilitado aos órgãosinternacionais repetirem reiteradamente que sem legitimi-dade democrática não há apoio para o desenvolvimento,colocando o país numa situação de dependência neoco-lonialista (Casanova, 1995).

Talvez a institucionalização dos procedimentos, comosendo suficientes na construção democrática do país, te-nha levado a negligenciar o fato de a democracia brasilei-ra estar em processo de deterioração e degradação. A du-rabilidade do modelo democrático parece se sobrepor aoscustos sociais de sua precariedade, visto serem elesinternalizados e pagos com o aumento da pobreza e daexclusão social, ao passo que os lucros são externalizados,beneficiando os defensores da globalização. Por efeitodessas características, que operam contra as instituiçõesdemocráticas, a democracia funciona cada vez maisantidemocraticamente e antiinstitucionalmente. Não énovidade, portanto, encontrar nas pesquisas de opiniãopública o pouco apego e confiabilidade que os cidadãosbrasileiros depositam nas suas instituições políticas. Emmédia, nos últimos 15 anos, os partidos são avaliados ne-gativamente por mais de 60% da população brasileira(Baquero, 2000). O resultado é o distanciamento e a crisepermanente das instituições políticas, levando ao fortale-cimento do personalismo como instrumento de governa-bilidade. Na verdade, vivemos numa democracia perma-nentemente instável.

Assim, repensar o processo histórico que deu origem àformação de valores, normas e atitudes que norteiam o com-portamento político na sociedade brasileira é, sem dúvida,uma tarefa bastante complexa, porque se de um lado nosdeparamos com uma ampla bibliografia enfocando aspectossocioculturais, políticos e econômicos, de outro encontramospoucos estudos que nos permitam entender como se forjou aconsciência política desta sociedade e de que modo ela temse expressado em sua cultura política.

Se cultura política é vista ao mesmo tempo como cau-sa e conseqüência do funcionamento do sistema político(Lamounier e Souza, 1991:311), pode-se afirmar que a cul-tura política de uma sociedade é resultado de um padrãode orientações cognitivas, emocionais e valorativas que,além de estáveis, tornam-se vivas e atuantes ao longo do

tempo, pois �a menos que grandes rupturas históricas for-cem os grupos sociais a redefinir esses padrões, a culturapolítica continuará a reproduzir-se de acordo com as ma-trizes originais�.

Nesse sentido, o que importa destacar é que a culturapolítica ocupa um lugar central no cotidiano dos indiví-duos, podendo servir tanto para regular a transmissão devalores políticos, quanto para legitimar o funcionamentodas instituições políticas. A forma como se constrói e sedifunde essa cultura está diretamente relacionada a comose reproduzem os comportamentos, as normas e os valo-res políticos de determinada comunidade.

Desse ponto de vista, a análise da cultura política deuma sociedade pressupõe a necessidade de caracterizaros diferentes contextos histórico-culturais que irão con-tribuir para a sua configuração. Assim sendo, a compreen-são da sociedade brasileira deve ser vista como resultadode um processo interativo e cumulativo de experiênciasvividas, cujas matrizes políticas podem ser identificadaspela determinação de seu processo de formação histórica.

Dessa perspectiva, interessa destacar neste trabalho oimpacto do modelo político vigente no país nas relaçõessociais e políticas. Até que ponto, por exemplo, o neoli-beralismo não tem conseguido eliminar traços tradicionaisda política brasileira. Em primeiro lugar, é importanteconstatar que a bibliografia sobre democracia, de modogeral, aponta para a necessidade de instituições mediado-ras eficazes, democráticas e com legitimidade, como fa-tor fundamental para o desenvolvimento democrático.Numa retrospectiva histórica daqueles países considera-dos avançados, verifica-se que conseguiram estabeleceruma democracia duradoura, atravessando etapas históri-cas que se iniciaram com relações primárias � a famíliaera o núcleo em torno do qual os cidadãos transitavam. Aidentidade social era grupal ou familiar.

Com o advento da urbanização e da modernização, queimpactaram a noção de família, surgem as chamadas rela-ções sociais secundárias em que as instituições políticas,especificamente os partidos políticos, catalisam identida-des coletivas. É a fase da consolidação da democracia re-presentativa, na qual os partidos são os mediadores dasdemandas da sociedade civil. É a solidificação das relaçõessecundárias que fortalecem o sistema democrático. No en-tanto, observa-se no Brasil o surgimento e prevalência dasrelações sociais terciárias, em virtude da precariedade dospartidos políticos. Por relações sociais terciárias entende-se o estabelecimento de uma relação direta entre Estado eindivíduo, em detrimento dos partidos políticos.

Page 6: Cultura política participante

103

CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA...

Relações sociais dessa natureza têm-se fortalecido nosúltimos governos neoliberais, cuja estratégia, no campopolítico, orienta-se para fragilizar o sistema de represen-tação política. Um dos exemplos disso seria o enfraqueci-mento da estrutura sindical. A própria instalação de umaeconomia de mercado, ao catalisar o desemprego estrutu-ral e o surgimento de uma economia informal, vulnerabilizaos setores mais frágeis da sociedade. Os partidos, por suavez, historicamente frágeis, tornam-se mais deficientescomo instituições de identidades coletivas em economiasde mercado.

Não é surpreendente, portanto, o surgimento do cha-mado neopopulismo, definido como surgimento de líde-res personalistas que contam com o apoio da populaçãoem virtude de suas características pessoais e defendem oreceituário neoliberal, o qual age contra essa mesma po-pulação para instalar a austeridade econômica e os ajus-tes estruturais que agravam a situação social do povo. OBrasil, junto com outros países da América Latina, comoPeru e Argentina, é o exemplo mais emblemático desseneopopulismo contemporâneo.

Ao mesmo tempo, um componente que tem se tornadoevidente no Brasil é a aceitação, por parte significativada sociedade, de um discurso que contrapõe a continuida-de ao caos, para viabilizar a manutenção no poder e a re-eleição de líderes que defendem esse modelo. A vulnera-bilidade objetiva da população, nesse contexto, possibilitaque as pessoas internalizem a crença de que, a menos quese dê continuidade aos governos para terminar as refor-mas, o caos se instalará comprometendo a estabilidade de-mocrática.

Aqui surge um outro ponto da cultura política brasilei-ra a ser considerado. Estabeleceu-se uma relação causalentre estabilidade econômica e estabilidade social e de-mocrática, desmentida pela realidade. A maior parte dospaíses do mundo em desenvolvimento, onde se alcançoua estabilidade econômica, está longe de ser modelo deestabilidade social, se por estabilidade social se entendea crença dos cidadãos na democracia e nas instituiçõesem virtude de elas serem capazes de solucionar os pro-blemas sociais básicos (transporte, educação, emprego esaúde). O que as pesquisas de opinião pública, feitas nosúltimos anos no país, mostram é que há um declínio signi-ficativo de apoio dos cidadãos ao atual sistema político.

Uma das conseqüências mais marcantes do neolibera-lismo também tem sido o de possibilitar o surgimento deorganizações paraestatais, organizações que funcionam àmargem da lei e que contam com o apoio significativo das

populações mais carentes. Destaca-se aqui, especificamen-te, o narcotráfico. Essas organizações estão propiciandoo aumento da criminalidade e da marginalização, levandoos grupos tradicionalmente excluídos dos benefícios so-ciais a legitimar ações deletérias em nome de uma novacidadania. Pesquisas realizadas na área antropológicamostram adolescentes que matam por um par de tênis por-que consideram ser esse um ato de manifestação de cida-dania.

Esses dados indicam que o país vive, no presente, umasituação em que prevalece o princípio de exclusão social.Paradoxalmente, os governantes tendem a considerar essasituação como inevitável e a desigualdade social, um fatonatural.

Dessa maneira, constata-se uma crise dominante dalegitimidade do Estado no país. As pessoas parecem nãomais acreditar na autoridade constituída. Roberto DaMata(1993) ilustra bem esse ponto ao observar que as pessoas,quando se sentem ameaçadas, aumentam a altura das gra-des das suas residências, em vez de pressionar o Estadona busca de soluções para o problema da violência. Naárea da educação pública, que conta com recursos mate-riais, quando insatisfeitos com a qualidade do ensino, nãolutam por melhores escolas mas transferem seus filhos paraescolas particulares.

Todos esses elementos sugerem que, longe de se estarconstruindo uma cultura política participativa e democrá-tica, materializa-se uma cultura política fragmentada eindividualista, com pouco capital social. Trata-se, portanto,de considerar importante que hoje o desenvolvimento deredes baseadas na confiança interpessoal poderia consti-tuir o mecanismo de resgate da sociedade civil, para umcomportamento mais crítico e fiscalizador da coisa públi-ca. O que se observa, entretanto, é um sentimento gene-ralizado de desconfiança entre as pessoas e em relação aoEstado e suas instituições.

Como decorrência dessa cultura, constata-se o surgi-mento de um eleitor individualista e pragmático, cujo com-portamento político se guia por princípios de eficácia ad-ministrativa e capacidade gerencial e não por princípiosideológicos.

CONCLUSÃO

Examinou-se o processo de formação de crenças e atitu-des da sociedade brasileira no momento atual, a partir dereflexões de caráter histórico, tendo como parâmetro os di-ferentes momentos em que foram estabelecidas as bases de

Page 7: Cultura política participante

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

104

um comportamento mais orientado a relações sociais de ca-ráter paternalista, personalista e clientelista. Não surpreen-de, por exemplo, a pouca participação dos brasileiros napolítica num sentido mais amplo, que vá além do simples atode votar. Vivemos presentemente uma situação de elevadosdéficits de capital social, que permite a permanência de umacultura política desafeta à participação.

A maneira como a democracia funciona hoje possibilita ainstitucionalização de formas antidemocráticas de governar.O questionamento crescente de parte da sociedade civil àsações governamentais está ocasionando uma situação de ero-são dos princípios democráticos, sem que isto signifique umapotencial ruptura institucional. O modelo neoliberal vigenteparece ter conseguido estabelecer padrões de comportamentoem que os cidadãos e as autoridades públicas se tornam indi-ferentes à continuidade de um conjunto de procedimentosque, claramente, compromete-se a construção democráticaefetiva no país. Um dos pontos a enfatizar é o acúmulo deexperiências que ocorre no país e, como forma antide-mocrática de resolução de problemas, uma vez internalizadospelas pessoas, constitui a base de uma memória coletiva di-fícil de ser alterada. Nessa dimensão, a ausência de capitalsocial, fruto da falta de confiança interpessoal e da falta deconfiança nas instituições, pode levar à manutenção de umsistema democrático permanentemente instável.

NOTA

E-mail do autor: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVRITZER, L. �O pano de fundo da crise é a concepção de aliançapolítica de FHC�. Conjuntura Política. Minas Gerais, jun. 2001,p.1-4.

BAQUERO, M. A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise dademocracia na América Latina. Porto Alegre, Editora da UFRGS,2000.

CASANOVA, P.G. O colonialismo global e a democracia. Rio deJaneiro, Civilização Brasileira, 1995.

DaMATA, R. �Reflexões sobre o público e o privado no Brasil: umponto de vista perverso�. Cadernos de Ciências Sociais. MinasGerais, v.3, n.3, abr. 1993, p.51-62.

FAORO, R. Os donos do poder. Rio de Janeiro, Globo, 1989.HOLANDA, S.B. de. Visão do paraíso. Rio de Janeiro, Brasiliense,

1992.LAMOUNIER, B. e SOUZA, A. de. �Democracia e reforma institu-

cional no Brasil: uma cultura política em mudança�. Dados, v.34,n.3, 1991, p.311-348.

SCHMITTER, P. �Dangers and dilemmas of democracy�. Journal ofDemocracy, v.5, n.2, 1994.

URICOECHEA, F. O minotauro imperial. São Paulo, Difel, 1978.VIANA, O. Problemas de organização e problemas de decisão: o povo

e o governo. Rio de Janeiro, Record Cultural, 1974 (Edição pós-tuma).