currÍculo e conhecimento escolar como mediadores
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Revista e-Curriculum, São Paulo, v.16, n.3, p. 594-620 jul./set.2018 e-ISSN: 1809-3876
Programa de Pós-graduação Educação: Currículo – PUC/SP
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CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR COMO MEDIADORES
EPISTEMOLÓGICOS DO PROJETO DE NAÇÃO E DE CIDADANIA
ALMEIDA, Fernando José de* SILVA, Maria da Graça Moreira da**
RESUMO
Este artigo tece o diálogo entre currículo e conhecimento escolar, frente às crescentes demandas e
responsabilidades educacionais, não tipicamente escolares, originadas nas últimas décadas do século
XX. Reconhece e nomeia as tensões inerentes ao contexto educacional contemporâneo e suas variáveis
e, para fomentar o diálogo, revisita brevemente as raízes da educação integral escolanovistas, bem como
os marcos da construção das políticas educacionais brasileiras culminando com a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Versa sobre a centralidade epistemológica do conhecimento escolar que cabe à
finalidade da escola e à sua coerente competência como agência social de formação do conhecimento
de gerações. O artigo contribui com o diálogo apontando caminhos para a construção de um desenho
curricular que aproxime o conhecimento social do conhecimento cultural, linguístico, científico e
histórico, para consolidar um trabalho escolar de formação de competências cognitivas dos estudantes
na participação da vida e de um digno viver coletivo. Conclui, provisória e preocupadamente, que as
variáveis culturais e políticas que marcaram o cenário onde o debate curricular ocorreu, se organizam
em torno da carência que o pensamento estratégico sobre currículo acontece, sobre a pouca clareza do
que seja o conhecimento escolar como espaço epistemológico de desenvolvimento do pensamento de
um país e de uma indefinição da função do estado como instituição social que cuida da educação como
direito de todos e como bem público.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Conhecimento escolar. Cultura. Educação integral.
* Doutor em Educação (PUC SP). Docente e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação:
Currículo, linha de pesquisa de Novas Tecnologias em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
E-mail: [email protected]
** Doutora em Educação (PUC SP). Docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação:
Currículo, linha de pesquisa de Novas Tecnologias em Educação, e docente do Departamento de Computação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo . E-mail: [email protected]
Fernando Jose de ALMEIDA, Maria da Graça Moreira da SILVA. Currículo e conhecimento escolar como mediadores epistemológicos do projeto de nação e cidadania.
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CURRICULUM AND SCHOOL KNOWLEDGE AS EPISTEMOLOGICAL MEDIATORS OF
THE PROJECT OF NATION AND CITIZENSHIP
ALMEIDA, Fernando José de* SILVA, Maria da Graça Moreira da**
ABSTRACT
This paper addresses the dialogue between curriculum and school knowledge, facing the growing
demands and educational responsibilities, not typically the school ones, originated in the last decades
of the twentieth century. It recognizes and names the tensions inherent in the contemporary educational
context and its variables and, in order to foster dialogue, revisits the roots of the new school integral
education, as well as the milestones for the construction of Brazilian education policies culminating
with the National Common Curricular Base. It discusses about the epistemological centrality of school
knowledge that is the purpose of the school and its coherent competence as a social agency of knowledge
formation of generations. The paper contributes with the dialogue pointing out ways to construct a
curricular design that brings social knowledge closer to cultural, linguistic, scientific and historical
knowledge, in order to consolidate a school work of cognitive skill formation of students in the
participation of life and a dignified collective living. It provisionally and worriedly concludes that the
cultural and political variables that marked the scenario where curricular debate occurred are
organized around the lack of strategic thinking about curriculum, the lack of clarity of what school
knowledge is as an epistemological space of development of the thought of a country, and a lack of
definition of the function of the state as a social institution that takes care of education as a right of all
and as public well-being.
KEYWORDS: Curriculum. School knowledge. Culture. Integral education.
* PhD in Education (PUC-SP). Professor and Researcher at the Program of Post-Graduate Studies in Education:
Curriculum, Research Line of New Technologies in Education at the Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo E-mail: [email protected]
** PhD in Education (PUC-SP). Professor and Researcher at the Program of Post-Graduate Studies in Education:
Curriculum, Research Line of New Technologies in Education at the Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. E-mail: [email protected]
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1 INTRODUÇÃO
As duas primeiras décadas do século XXI reacenderam o interesse social pela escola.
Tal valorização da escola traz-lhe a responsabilidade de que ela crie as competências para o
Século XXI além de formar para novos mercados de trabalho e de organizar a vida intelectual
e produtiva das populações que envelhecem – em nome da educação ao longo da vida. Desse
modo, amplia-se o escopo da escola e de seu currículo trazendo-lhes um desafio não óbvio de
ser resolvido.
Tais preocupações e interesses de uma parte da sociedade sobre a escola trouxeram-lhe
algumas sobrecargas sorrateiras que ainda não foram suficientemente analisadas pelos
educadores e pelas políticas públicas. Além da sobrecarga nebulosa, ainda pode-se temer que
ela pode trazer desvios conceituais da função social da escola e da produção de conhecimentos
que lhe são próprios. Mas não só isso. A escola básica como negócio altamente rentável abriu
enormes portas com o aumento da demanda de público, em um país que acaba de universalizar
a Educação Básica, ampliando-lhe as idades escolares. Editoras, grupos internacionais, sistemas
de ensino nacionais cresceram como oportunidade de negócios articulados.
No século XX, já começaram a ser feitas, discretamente, terceirizações para as escolas
públicas ou privadas de algumas competências antes atribuídas à sociedade, como a educação
para a religião, a educação para o trânsito, para a coleta de lixo reciclável, para a alimentação
saudável, para o controle das doenças sexualmente transmissíveis, etc. As questões que aqui se
põem não são o teor das problemáticas, todas justas, urgentes e dignas do olhar da educação em
geral e da escolar em particular. O problema é o viés a partir do qual elas são tratadas. Este
artigo quer lhes evidenciar a “dimensão epistemológica” do tratamento dos sobreditos temas e
não dos crivos afetivos, políticos partidários nem daqueles defendidos pela fé. Defendemos
aqui que o olhar descritivo, analítico, crítico dos temas seja crivado pela literatura, pela visão
das ciências, interpretação da história, das análises de circunstâncias territoriais, das
compreensões dadas pelas linguagens e pelos conceitos das matemáticas ou das múltiplas
pesquisas que os interpretam e os expressam.
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A escola, claramente, é uma importante agência civilizatória de ampla escala, pelo seu
tamanho territorial e abrangência do contingente de estudantes de múltiplas faixas etárias.
Todos sabem. E nem se pode fugir do enfrentamento de problemas tão graves da sociedade
como os trazidos aqui: problemas de trânsito, consumo destrutivo, as doenças endêmicas, de
fundamentalismos religiosos e de falta de vida saudável... Por causa do alargamento do espectro
da função da Escola, começa-se fortemente a exigir que a educação nela vivida seja uma
educação, dita integral. O que isso significa? Integral ou seria íntegra? Quais os sentidos desses
termos quando referentes à educação?
O objeto deste artigo é discutir o que é a integralidade da educação escolar que cabe à
finalidade da escola e à sua coerente competência, como agência social de formação do
conhecimento de gerações. O que toca à escola fazer na íntegra? Qual o tipo de conhecimento
que só ela pode e tem função social de trabalhar com as gerações que entram na escola e vivem
seus currículos?
Focalizando melhor a pergunta acima e a sua resposta, pode-se dizer que a característica
mais marcante do conhecimento escolar, proposto pelos currículos, tem sua centralidade no seu
caráter epistemológico: um modo próprio de conhecer, já que o conhecimento tem amplos e
variados sentidos. Nem todo o conhecimento é atributo da escola, como, por exemplo, o
conhecimento trazido pela fé ou pela emoção. A escola não é especialista em análises ou
divulgações ou tratamento especializado das emoções ou da fé. Tais inteligências são objeto
das teorias psicoterapêuticas e das religiões como difusoras e aspectos vivenciais de tais
fenômenos.
As contribuições que a escola traz (pensando-se nas da Educação Infantil até nas da
Superior) se referem às dimensões epistemológicas que por elas trazidas à compreensão das
ciências e das linguagens, à formação e à análise dos valores, à elaboração de diagnóstico da
realidade, dos territórios e da História, à vivência e às produções da cultura e à dimensão
filosófica e criativa da vida e do futuro, ao conhecimento de si. Tudo isso a partir do recorte
epistemológico. Tudo pode nascer do “conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o
universo” de Sócrates (469-399 A.C.), passando pela compreensão dos arquétipos sociais, indo
ao pensamento científico e tecnológico assim como ao entendimento da função de cultura e das
artes e às questões gnosiológicas dos conceitos transcendentais da fé e das divindades, por
exemplo. Não se trata de explorar na escola o caráter instrumental, afetivo, político, pragmático
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ou místico de cada área do saber, mas da análise cognitiva de suas grandes questões e
fundamentos.
Esse artigo parte do princípio de que o conhecimento escolar, aqui referido, perdeu parte
de sua identidade nas últimas décadas do século XX, tornando ralas e superficiais as próprias
funções do sentido da escola, podendo, assim, fazer-se dela mera reprodutora da visão de um
mercado para um conhecimento utilitarista e difuso.
O conjunto da sociedade de massa e produtivista resolveu erigir a escola como uma
instância responsável para o atendimento de todos os seus problemas e todas as suas demandas,
fossem, ou não, adequadas às funções prioritárias e essenciais da escola. Passaram-se a ela as
funções de responsabilidade que outras instâncias, como a família, as religiões ou as empresas,
poderiam cumprir, retirando da escola de sua precípua e essencial tarefa - a formação da
capacidade de pensar e pesquisar do ponto de vista epistemológico. Todas as demais funções
cognitivas de nossas múltiplas inteligências se referenciam na Escola como caudatárias dos
aspectos epistemológicos da inteligência. A cidadania, a percepção das delicadezas das artes,
os encantamentos das ciências e suas críticas, o domínio das habilidades tecnológicas, a
produção de textos ou de interpretações da realidade histórica ou política, assim como a
participação no mundo do trabalho e na compreensão das questões internacionais ganham na
escola a densidade do conhecimento das epistemologias das diferentes ciências e dos conteúdos
curriculares. As contribuições que a Escola e seu currículo dão à sociedade estão exatamente
em formar o pensamento, a capacidade de análise, a pesquisa e a criação crítica de interpretação
da vida. Outras instâncias podem completar, com breves contribuições operacionais a formação
suplementar (com breves cursos técnicos), mas a formação do pensamento, da crítica, da
prospectiva, da fruição cultural, da reflexão só a escola pode fazer. O projeto de vida, atual e
futura, de cada estudante é apoiado pelo conhecimento escolar quando a escola lhes apresenta
o pensamento científico, vivências e práticas das tecnologias, experimentações do inusitado,
questionamentos livres, percepção das belezas nas diferenças culturais, tempo de
experimentação, sendo tudo isso a essência ímpar da escola. As angústias e as perguntas éticas
desenvolvem-se pela percepção epistemológica da riqueza das contribuições de cada área do
conhecimento. O rigor das linguagens científicas e de suas inseguranças, a visão estética da
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cultura, imbricadas com as constatações sociológicas das misérias e das opressões humanas são
o mais rico campo da dúvida, da perplexidade e da esperança para as novas gerações. O
conhecimento é o espaço de análise de cenários, de diagnósticos, de imaginação para a vida
social e política. Que outra instância social faz isso do ponto de vista do conhecimento
sistematizado e rigoroso e interdisciplinar?
Outra atribuição indevida que está muito em voga é atribuir à escola a função de preparar
para o mercado de trabalho. Diz-se, equivocadamente, que ela não tem preparado
adequadamente para o trabalho e agora com novo encargo atribuem a ela a missão de preparar
para o mercado de novas profissões ainda nem existentes dos próximos 10 a 30 anos do século
XXI! Mas como? Formar para o que não existe? Que mistério é? Em que parte do mundo?
No entanto, à escola não cabe preparar para o mercado de trabalho, uma vez que é a
opção do modelo econômico do país ou da região que gera a criação de postos de trabalho: a
taxa do dólar, o desenvolvimento de investimentos ou o financiamento da produção agrícola
que, de fato, criam e incrementam os postos de trabalho. Não a escola. Um aluno muito bem
formado não necessariamente consegue emprego na região ou na área de seu interesse e
especialidade. Frequentemente, atribui-se, enganosamente, à escola a função de geradora de
empregos. Ela pode ampliar a empregabilidade do jovem ou do adulto, mas não gera postos de
emprego. A rede de relacionamento e de cultura geral do jovem formando é, às vezes, mais
importante do que a formação dada pela escola.
Nesse sentido, não se trata de desenvolver ações estimuladoras aos aspectos afetivos, ou
operativos tecnológicos ou artísticos das nossas múltiplas inteligências, mas de se conceber a
escola como desenvolvedora do pensar livre, da reflexão, da criatividade analítica ou das
habilidades críticas advindas do tratamento de dados da memória interna e externa.
A escola é o lugar do desenvolvimento de um pensamento orgânico. O pensamento
orgânico que aqui se fala se afasta do organicismoi tradicional ou pelo determinismo biológico.
Entende-se a organicidade em seu sentido sistêmico, harmônico, em que suas partes se
interconectam e se inter-relacionam de variadas formas, em um todo que indica os ritmos e os
processos vitais.
Maturana (2001) enfatiza os aspectos orgânicos e sociais do conhecimento, e sua
dependência com o ambiente ou o contexto. O autor rejeita o fato de que a experiência é algo
externo ao homem ou um reflexo da natureza, mas confia o ato de conhecer ao humano e às
suas correlações internas (e externas). O ato de conhecer, ou o ato cognitivo, assim, é pensado
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orgânica, ou sistemicamente, não estando atrelado à uma profusão de informações desconexas,
práticas dispersas ou a recortes da realidade, mas resultam da interação diária da mente humana
com os acontecimentos que o rodeiam.
O conhecimento é baseado em representações que o homem faz do mundo e é construído
pelas interações e experiências que vivencia ao longo da vida. O conhecer está relacionado à
criação de enredos explicativos realizados pelo homem, por seus sistemas internos que
interagem com os externos. Esses sistemas, organicamente interdependentes, relacionam-se de
forma harmônica e coerente, compondo o “encaixamento de partes autônomas”, um sujeito
sistêmico sempre interligado ao meio onde se encontra inserido e que se transforma constante
e ativamente. Para Maturana (2001), o conhecimento orgânico encontra-se em constante
processo de transformação devido ao papel mediador da cultura e da educação, enfatizando que
a escola é um lugar para humanizar-se, pela aceitação das diversidades, pela compreensão das
diferenças e do processo de aprendizagem de cada um por meio da convivência.
Pelo pensamento orgânico, cujos conceitos estão acima desenvolvidos, eles, os jovens
e adultos, podem articular as diferentes áreas do conhecimento por meio de seus métodos e
conteúdos historicamente construídos, como, por exemplo, o conhecimento geral da Química.
Não se defende aqui a aprendizagem de Química para lhes decorar nomes, números atômicos,
ou fórmulas de soluções de problemas, mas para desenvolver a estrutura do pensamento
científico pelo qual a Química analisa, interpreta, nomeia, classifica e transforma a realidade
no que ela tem de fenômeno cognitivo e formador da história, da vida e da economia. Os jovens
e adultos que entram na escola têm o direito de experimentar cognitivamente os conceitos
espantosos dos fenômenos da Química. Privar-lhes dessas experiências, em nome de que não
vão em suas futuras profissões se dedicar à área afim à das ciências da natureza, é privar
gerações de gerações de cidadãos de, ao menos no Ensino Médio, vivenciar a beleza e a análise
que a ciência faz da realidade e da compreensão da vida humana.
Se a ideia de que “é preciso toda uma aldeia inteira para educar uma criança”ii, seria
irresponsabilidade da aldeia deixá-las apenas aos cuidados da escola! A função da escola é fazer
a sua parte dentro da óptica da aprendizagem para formar o ser integral. Educação íntegra,
portanto, é aquela que faz sua parte bem-feita: a formação da inteligência sensível, cidadã,
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pacífica, tolerante, competente, leitora, científica, histórica, situada, artística, reflexiva,
libertadora e laboral.
É dentro dessa perspectiva que este artigo caminha: aprofundar e esclarecer o sentido
da aprendizagem escolar. Íntegra, coerente com os princípios constituintes de sua essência. E
não apenas atendendo cobranças imediatistas de setores da sociedade que hegemonicamente
pretendem lhes impor suas prioridades que não são impreterivelmente as necessidades de todos.
2 EDUCAÇÃO ÍNTEGRA
A educação escolar vem sendo adjetivada de várias maneiras como se o adjetivo
modificasse sua essência. É como se, por força etimológica, as práticas pedagógicas fossem
produzindo novos resultados porque tem novo nome: construtivista, educação ativa ou integral.
Um exemplo contemporâneo disso é o termo “integral” ajuntado à palavra educação.
Termo banalizado pelo seu uso aplicado analogamente adjetivando qualquer ação, produto,
objeto ou valor humano. Na verdade, para usar uma acepção muito usual do termo integral, é
aquela que atribuímos ao “pão integral”. Aquele que contém de tudo um pouco: múltiplos
farináceos, passas, aveia aparente, grãos exóticos, coloração próxima à da terra e formato rude.
Essa imagem não cabe bem à educação, mas indica uma tendência genérica.
Segundo o senso comum, assume-se que educação integral deve ser um conjunto de
disciplinas e atividades não necessariamente ligadas entre si, mas que aparecem juntas no dia
do jovem. Misturam-se conceitos díspares em uma cesta de bondades pedagógicas, como
xadrez, alguns esportes exóticos, umas doses de artes descomprometidas, compondo tudo com
algumas criatividades isoladas, com pouco sentido entre si. Em resumo, alguns movimentos
educativos que querem nomear e adjetivar a educação como mais do que ela é (e deve ser),
ajuntam-lhe o apelido de “integral”.
Aprofundando o conceito: a palavra integral, pode ter dois sentidos (entre outros). Um
é o de juntar partes de um todo. Integra-se o que está disperso. Nesse sentido, supõe-se que a
educação não sabe direito ainda o que são suas ações constituintes e essenciais. Ao perceber-se
a dispersão dos componentes da educação, ajuntam-lhe pedaços que, a partir de visão do senso
comum, lhe faltam. Qualquer coisa serve à educação, já que tudo vale. Torna-se ela, assim, um
caleidoscópio vistoso mas ineficaz, de generalidades. O conjunto das atividades nem sempre
coadunam com as finalidades últimas da aprendizagem da educação escolar.
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Ao juntar inintencionalmente as partes de um todo, a educação mostra-se mais próxima
à fragmentação dos saberes do que à integralidade, evidenciada pela oferta confusa de uma
plêiade de componentes curriculares e atividades compondo uma pseudo-integralidade, porque
é carregada de frágil intencionalidade pedagógica. Substitui-se, assim, o projeto pedagógico a
partir de um currículo construído coletivamente pelos diferentes agentes educacionais e com a
gestão articulada em diálogo permanente com a comunidade, por um emaranhado de atividades
desconexas. Escapa-se, desse modo, frequentemente da proposição curricular “íntegra”,
elaborada como uma política de estado, de valores, de cultura; enfim, de projeto de nação, como
veremos a seguir.
Em um segundo sentido, a palavra integral tem a ver com a integralidade a partir de sua
essência: coerência conceitual e prática com seus propósitos fundamentais. O que se pode
chamar de educação íntegra? Todas suas peças e seus princípios alinhados coerentemente para
gerar aprendizagem e compreensão do mundo para dele participar. Mais tempo na escola não
transformará o ensinamento disperso em educação íntegra. Daí a importância de que o
currículo seja planejado a partir de princípios estratégicos da boa formação humana, social e
política íntegras: partindo-se da realidade vivida pelo país, pela região, pelo grupo social, pelas
comunidades, pelas pessoas; articulando tudo isso a um concerto internacional das relações que
se estabelecem a partir do local. “Alunos cidadãos e não clientes”.
A educação íntegra deve partir do que os estudantes querem, mas também evoluir para
levar-lhes à reflexão e ao conhecimento do que eles necessitam. O nosso aluno na visão de
Paulo Freire (2001) traz um mundo de conhecimentos com quem a escola e o currículo precisam
aprender. Freire vê neles um sujeito social de direitos, deveres e pensamentos. Não os vê como
clientes. “O que eles querem?”. Essa não é a questão. O cliente é sujeito de atividades de
consumo. Ele quer tablets, roupas novas, quer saber uma língua estrangeira para viajar, para
saber comprar, quer sucesso imediato, consumir espetáculos, ... de outro lado, há as suas
necessidades. Nem sempre percebidas facilmente, mas são resultados de trabalho, reflexão e
partilha no interior das vivências escolares. Não se compram as percepções das necessidades.
Os estudantes precisam também trabalhar com instrumentos que lhes permitam
contemplar suas necessidades de vida. De pensar, de refletir, de compreender, de ter
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curiosidade, de cooperar.... Seus desejos podem, inclusive, corresponder às suas necessidades,
mas isso faz parte do trabalho pedagógico contemporâneo dos mais importantes. O que não será
feito nem pela simples exposição dos estudantes à internet, ou às redes ou mídias sociais, sem
eles terem um plano de navegação que lhes permita serem internautas, planejadores a partir de
seu projeto de vida, intencionalmente construído, responsável e de cunho social e político.
O internauta que se forma na escola não é um surfista que anda movido pelos ventos na
superfície das ondas do momento, mas se assemelha mais a um navegador que escolhe as
direções, intensidades, acolhe e planeja os seus rumos criteriosamente. Tal internauta bem
formado reconhece que o ser humano é um ser íntegro, que as suas partes se articulam orgânica
e inteiramente. Ele é total e multidimensional como cultura, valores e identidade. Reconhece,
também, as singularidades e as diferenças e o direito de todos à aprendizagem. No contexto da
educação íntegra, a gestão escolar atua com intencionalidade pedagógica engajando todos os
agentes no planejamento, na construção, no monitoramento e na constante avaliação, reflexão
e ajustes em diálogo contínuo.
É íntegro porque o espaço da escola é articuladamente limpo, acolhedor, esteticamente
adequado, com participação dos alunos em suas paredes e suas histórias documentadas. É
integro porque é coerente entre seu plano pedagógico e político e suas práticas docentes. Porque
sua avaliação é coerente com o planejado e as disciplinas trabalhadas em sala de aula ou fora
dela. Porque o conjunto do corpo docente e os gestores aliam-se para planejarem, avaliarem e
prestarem contas sociais dos resultados de seus trabalhos com os estudantes. Porque as suas
práticas são organicamente articuladas entre os marcos regulatórios da Educação, a comunidade
do entorno, os gestores, os alunos, os problemas locais são trabalhados de forma reflexiva e
propositiva. Porque o diálogo, a leitura e a escrita do mundo nascidos das aulas ganham
consistência na transformação da realidade local. Esse é o sentido da integralidade da educação.
A escola, para dar conta das dimensões da formação e das questões contemporâneas e
das novas necessidades e problemas que hoje apresentam as escolas públicas brasileiras,
necessita mais coerência com suas finalidades cognitivas e sociais. O aumento de tempo escolar
– mais permanência na escola – é decidido a posteriori da escolha do sentido da aprendizagem
íntegra a ser trabalhada em seu currículo.
No sentido “íntegro” da educação, a escola busca ressignificar seu papel social frente à
ampliação desordenada e fragmentada dos compromissos e das tarefas a ela impostas
consequentes das mudanças no cenário econômico, ou social que tem sempre a tendência de
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elaborar projetos de segregação de grupos sociais por meio da escola.
A própria formação para a cidadania, valor muito recorrente para muitas tendências
pedagógicas contemporâneas, tem, na visão defendida por este artigo, o significado de que a
cidadania na escola se forma pelo domínio das habilidades e dos debates a partir do cognitivo.
A História deverá ver a evolução da cidadania grega ou romana e como chegam até hoje seus
conceitos; verá como as práticas cidadãs se alteraram durante a revolução industrial ou como o
romance “Germinal”, de Émile Zola (2004), ou “Os Miseráveis”, de Victor Hugo (2014), como
retrato histórico da evolução do sentido de cidadania, por exemplo.
Nesse sentido, não se trata de dar aulas de cidadania, mas de mostrar como evolui, como
se refinam, como se constroem em lutas históricas os princípios e as vivências de cidadania.
Isso a escola pode e deve fazer, o que não significa que haja uma espécie de formação para a
cidadania, mas de percepção do conceito, de criação de valores cidadãos, de construção da
evolução das práticas e das consequências históricas, econômicas e culturais da cidadania.
Escolher pesquisas sobre a febre amarela ou sobre a doença de Chagas é a visão cidadã da
perspectiva da medicina vivida por Carlos Chagas ou por Osvaldo Cruz no século passado.
Estudem-se os impactos sociais e econômicos, por exemplo, da contribuição das ciências como
valor de defesa da vida. Isso pode ser o debate cognitivo sobre a cidadania, feito sob a
perspectiva cognitiva da escola.
Para adensar as reflexões sobre currículo e conhecimento, este artigo revisita o debate
de alguns contributos dos escolanovistas e alguns dos marcos da construção de políticas
educacionais brasileiras que resultaram na recente publicação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), para a Educação Básica.
2.1 O momento do Brasil e de outros países
No Brasil, de modo especial nos últimos 5 anos (2014-2018), a promulgação da BNCC
(BRASIL, 2017) reacendeu o debate sobre sua importância e suas modalidades. Tensões,
contradições, mudanças sub-reptícias, interesses de grandes grupos internacionalizados,
açodamento nos prazos de aprovações, envolvimento partidário nas consultas públicas,
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evidenciaram que o Currículo Escolar da Educação Básica é um espaço de disputa política e
econômica.
E é a partir de uma reflexão situada e estratégica sobre a Base Nacional Comum
Curricular que é adequado re-olhar o sentido do próprio Conhecimento Escolar. As propostas
curriculares não definem com clareza o que é o conhecimento próprio da escola, o que faz que
o debate se torne sem rumo conceitual – e o próprio documento se apresenta contraditório a
uma visão coerente do que seja o conhecimento próprio da escola. Os modismos pedagógicos,
as pressões econômicas e político-partidárias tornam-se os definidores – voláteis – da escolha
de suas finalidades e metodologias.
Para iniciar o conceito de conhecimento escolar, a BNCC é entendida como um direito
de todos, como garantia de participação social pelos estudos escolares e como obrigação do
Estado de garantir-lhe as condições de exequibilidade, para todo o povo brasileiro. Tais
considerações partem de exigências das Leis que definem, de 1988 a 2014, a necessidade de
Base Curricular para o País. Ela está prevista no Artigo 210 da Constituição de 1988 (BRASIL,
1988), no Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), no
Artigo 49 das Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental de 9 anos (BRASIL, 2013) e
na estratégia 7.1 no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014).
A construção de uma nação atual passa necessariamente pela educação formal pública,
sistematizada, com princípios definidos segundo a Constituição Federal e com projetos
educativos que apontem para um projeto a ser marcado pela construção da coesão social e não
apenas marcado por atender a requisições de alguns grupos econômicos hegemônicos. Contudo,
não é essa a marca da atual BNCC, pois ela fica a meio caminho de um anúncio de diretrizes
sem explicitar-lhes as formas de construir as bases desta nação a partir de seu contexto e de
diagnósticos do que ela está sendo.
Além disso, as finalidades da BNCC devem se identificar com as finalidades do
conhecimento próprio do trabalho escolar. Ele tem características especiais que o distinguem
do conhecimento em geral, como ampla e genérica condição humana de interpretar a vida e
dela participar. O conhecimento geral do mundo é uma tarefa humana e pertence como
responsabilidade à toda a sociedade, em todos os lugares e dimensões sociais. O conhecimento
escolar, no entanto, tem outra essência e especificidade. É sempre difícil precisá-lo, pois a todo
o momento as instâncias sociais demandam da escola o serviço aos seus interesses.
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As indústrias ou o comércio sempre quiseram instrumentalizar a escola para preparar-
lhe mão de obra rápida e sem custos para ela. A lógica é a seguinte: como os alunos precisam
de trabalho, a escola deve prepará-lo para o mercado. No entanto, a escola não é
instrumentadora do comércio, nem da indústria, nem de serviço de qualquer natureza. Ela é
instituída para criar gerações que pensem, se comuniquem, se instruam para escrever, ler,
criticar, propor, desenvolver o pensamento científico e tecnológico e serem motivadas e
instrumentadas para sempre saberem estudar. Os seus conteúdos não são aqueles eleitos pelas
indústrias ou empresas produtoras, mas os dos conhecimentos produzidos pela humanidade nas
artes, nas ciências, na literatura, nas matemáticas, nas histórias, nas filosofias, na cultura em
geral.
O domínio do saber escolar é o seu espaço de apresentar, analisar, criticar, dominar
linguagens dos instrumentos epistemológicos do mundo material, social e cultural. O
conhecimento escolar parte de uma constatação: não há conhecimento sem o conhecimento do
mundo. Não se trata de um conhecimento abstrato do mundo, mas do mundo real tal qual ele
se apresenta na história Brasileira e mundial.
Tal conhecimento do mundo se constrói a partir das práticas curriculares. Nesse sentido,
não há currículo sem mundo. E que mundo é esse? Que território é esse? Que país é esse em
que vivo? Qual a realidade de nossos estados, dos povoados, do campo, das florestas, dos rios,
da realidade das grandes metrópoles e das cidades de nosso continente? Além disso, estes
continentes estão ligados por destinos comuns?
Tudo isso em um mundo com valores conectados. Que mundo é esse em realidade tão
conectada? Nosso mundo está interconectado em quê? O que vale de fato a conexão? Com
quem? Quem produz a rede? Para quem? Quais os conteúdos das redes? Quem a elas acessa?
O currículo escolar é o lugar da inteligibilidade destes fenômenos a partir de suas
mediadoras do pensamento: a História, a Química, a Literatura, a Matemática e a Geografia,
entre outras. Não só delas e de seus conteúdos, mas também das finalidades de suas
contribuições.
Para responder a tais perguntas, há de considerarem-se inúmeras variáveis que
constituem o cerne da mobilização do conhecimento escolar e de seu acesso às conexões em
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redes. Será o mundo dos refugiados, dos que vivem sem acesso às redes de esgoto – talvez a
mais fundamental das redes sociais – dos sem trabalho, dos povos indígenas, das devastações
do meio ambiente, ou das novas formas de solidariedade, cujo conteúdo se estende à justiça, à
democracia, à liberdade e à participação cultural.
O conhecimento escolar mobilizado pelo compromisso com o mundo não tem como
finalidade gerar uma visão descritiva penalizada do mundo, mas descrições densas, uma
fenomenologia das desigualdades, dos diagnósticos fundamentados e das soluções partilhadas.
A partir dessas visões, o currículo e suas vivências cognitivas podem elaborar um projeto de
nação na busca da paz e da coesão social.
2.2 O debate retorna forte e com novos atores poderosos
O debate dos escolanovistas Anísio Teixeira (1909-1967), Fernando Azevedo (1902-
1976) e Lourenço Filho (1978) abriram enormes pautas para compreensão dos ideais
republicanos, no início do século XXiii. Entretanto, não foi um debate tão amplo como o que se
dá no século XXI, retomando com força e com atores diversos, em que o mundo está invadido
pelos meios de comunicação ou que envolve debates nos fóruns políticos e econômicos, quando
forças de todas as tendências se digladiam e disputam o espaço da escola. Esses atores, como
os sistemas de ensino, as editoras, os diferentes partidos políticos, as redes de comunicação, as
centenas denominações de igrejas, a imprensa, as organizações não governamentais, os
investimentos de grandes capitais, todos se posicionam e disputam seu espaço na educação –
ou sua totalidade.
Não se trata mais do debate, quase idílico, nas décadas de 1950 e início da década de
1960, entre a Associação das Escolas Católicas (AEC) e o movimento republicano leigo que
defendia a escola pública e o compromisso do Estado com a responsabilidade dos estudos
básicos nacionais para todos – gerando a primeira versão da LDB, a Lei Nº 4.024/1961. No
novo contexto, das primeiras décadas do século XXI, o currículo aparece e se avoluma como
espaço de relevância civilizatória e política. E a escola como sua operadora crítica.
O currículo escolar desenvolve um pensamento peculiar. Partindo do conhecimento
trazido pelos seus estudantes e professores, o currículo mergulha no saber dos territórios em
que vive e coabita. Alarga-se para o conhecimento elaborado pela sociedade mais ampla e pela
história. Traz os conhecimentos científico, literário, matemático, histórico, cultural, geográfico,
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artístico, vividos e sistematizados. Apresenta como mediadores da compreensão do mundo o
conhecimento inicial de línguas estrangeiras e o do próprio corpo para comporem uma diferente
visão da realidade, que não é trazida apenas pela exposição à vida doméstica, midiática ou ao
mundo genericamente considerado.
A BNCC, logo no texto introdutório, manifesta seu compromisso com a educação
integral (BRASIL, 2017), manifestando que a Educação Básica “[...] deve visar à formação e
ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não
linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a
dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva [...]” ( BRASIL, 2017, p. 27). E mais,
admite a visão plural, singular e integral dos alunos como sujeitos de aprendizagem e promove
a educação voltada ao acolhimento, ao reconhecimento e ao desenvolvimento pleno. Considera
a escola como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva. Propõe a superação da
fragmentação disciplinar do conhecimento escolar e busca a articulação e a contextualização
entre os conhecimentos escolares e a vida real, conferindo sentido ao que se aprende.
No entanto, o que é conhecimento escolar mais claramente definido?
3 ESCOLA E CONHECIMENTO ESCOLAR
A aprendizagem havida na escola não gera um conhecimento abstrato, apenas lógico-
formal, nem gera um conhecimento genérico de tudo. Ela produz um conhecimento que afeta,
que toca, que desloca pontos de vista individualistas para a dimensão social do saber e da
participação cidadã.
Trata-se de um conhecimento afetivo. Entretanto, não há um conhecimento afetivo
abstrato! O afeto é sempre o afeto por alguma coisa? Affectare é ser tocado por algo. O
conhecimento escolar toca em quê? Deve tocar a relação com o outro, com os diferentes de
mim, com as realidades diferentes da minha. Produz uma inquietação cognitiva. Tal afeto toca
as pessoas, as instituições, os valores, a beleza, a ciência, a política, a tecnologia.
A realidade do mundo contemporâneo, povoado de tecnologias digitais ou não, é o que
faz o mundo conectado, tocado pelo outro. O que nos conecta e nos toca? As guerras, o
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comércio, a queda das bolsas de valores que empobrece milhões de pessoas e enriquece
pouquíssimos em poucas horas! Podemos tocados ainda pela fome, pela dizimação dos jovens
sem perspectivas de vida nas periferias das grandes cidades, pela urbanização consumista e
segregadora, ou pelas novelas, “Big Brothers”, desfiles de modas dos grandes desportistas, ou
pelo casamento de realezas ou pelas fake news. Isso nos afeta e isso é afeto. Afeto não é uma
emoção íntima que apenas une duas pessoas, o grupo de um condomínio, de um shopping
center, ou a intimidade psíquica.
O Currículo é o espaço programado onde se exerce o afeto escolar. O afeto de quem é
tocado pelas questões da humanidade e não apenas pelo consumo de espetáculos e redes
tecnológicas, ditas sociais. O afeto curricular é o afetar-se pelo mundo. Não é uma decisão da
psiqué! É uma decisão do “homo politicus”.
O conhecimento do mundo tem na escola um lugar privilegiado de formação da
delicadeza, da alegria, das habilidades da mente e do coração. O mundo amplo é de tal
complexidade que só o conhecimento interdisciplinar permite acessá-lo. Tal conhecimento
move, arrasta, empurra, afeta...– faz ad-fectum, per-fectum - é feito completamente e pode
abranger a totalidade do ser. Tal forma de afeto cria o espaço de um pensar próprio e de
complementar os demais modos de pensar.
O que é o pensar e o pensamento escolar? Começa-se por onde para desenvolvê-lo?
Vemo-lo com facilidade no olhar curioso e espantado da criança de 4 ou 5 anos que inicia seu
mundo das perguntas. Impressiona-se pelo porquê da vida e das coisas? E das falas e dos
números e das histórias e das cores e das mortes.
Ao currículo escolar cabe sempre, e desde seu início, desenvolver a capacidade de
perguntar e construir respostas plausíveis e esperançosas mesmo que provisórias. Abertas ao
caminho errático do conhecimento.
Começa-se, portanto, pelo entendimento e alargamento da visão de mundo. Além de sua
casa, de sua família, de seu bairro, inicia-se o conhecimento escolar pela visão de país e de suas
regiões. Mostram-se, no conhecimento escolar, as diferentes culturas, as economias, as
geopolíticas, as fomes, as riquezas disponíveis, de destruições ambientais eminentes, as
conquistas da medicina, a nano tecnologia, as novas formas de qualidade de vida, a redução de
formas de trabalho, o crescimento de tempo da vida, as tecnologias ubíquas e pervasivas.
O pensamento próprio da escola começa pelo despertar da preocupação dos jovens e dos
adultos para com os problemas e as esperanças que o mundo lhes coloca. As perspectivas da
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sociedade em rede de conhecimento e comunicação abrem imensos caminhos. Uma delas é a
esperança de participar de uma nova sociedade como uma promessa e uma dívida. Contudo,
anunciam-se a eles também o agravamento e as ameaças das novas formas de exclusão, pobreza,
das novas juventudes sem trabalho; anunciam as utopias da arte, os novos desafios das ciências,
as redes mundiais de solidariedade, mas também as modernas formas de escravidão.
O conhecimento escolar organiza-se em torno de tais sensibilizações e mobilizações
humana que permitem que três fundamentos - aprendizagem, pesquisas e formação de valores
- se desenvolvam.
O eixo de formação de valores sociais e o eixo da construção dos projetos de vida dos
estudantes se articulam. É dentro dessa perspectiva de direitos de aprendizagem que a BNCC
poderia se constituir assim como determinam as Leis Brasileiras e os pactos internacionais. As
propostas da BNCC, de 15 de dezembro de 2017, versão 4, desconsideram o país que vivemos.
Em nada se referem à descrição da realidade, muito menos ao diagnóstico da realidade
econômica, política, cultural e social em que vivem o Brasil ou mesmo a América Latina.
O currículo só é significativo como projeto civilizatório e não apenas como habilitador
do aprendiz para a ocupação de postos no mercado de trabalho ou para o atendimento de
projetos individualistas. Só há currículo digno se, a partir da compreensão do mundo em que se
vive, for apresentado ao debate nacional um sistema escolar que permita construir-se, pelo
conhecimento, um modo de viver socialmente de forma mais justa, digna, democrática e de
paz, não apenas aparente, mas de verdadeira coesão social.
No entanto, que conhecimento é esse detalhadamente? Pode-se, para caber na extensão
deste artigo, reduzir-se a 5 passos a construção dessa forma curricular de aproximar o
conhecimento social, disponível e rico, do conhecimento cultural, linguístico, científico e
histórico, para consolidar um trabalho escolar de formação de competências cognitivas dos
estudantes na participação da vida e de um digno viver coletivo.
3.1 A escola é o lugar de causar espanto, da indignação e da curiosidade epistemológica!
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Ela desenvolve a atitude filosófica e ética por excelência de espantar-se pelas belezas
da vida, pelas incoerências sociais, linguísticas, pelas fragilidades humanas, pelas guerras e
pelas utopias que a humanidade criou e pode vir a criar. À escola cabe sempre ser jovem nessa
capacidade de indignação, da curiosidade e de querer saber as causas últimas das coisas e do
significado da vida, assim como o sentido da perda e das desgraças, das tragédias e dos dramas.
Mesmo que o pensamento científico e a produção da ciência tenham trazido novas
modalidades de vida para a sociedade (algumas esperançosas e felizes e algumas terríveis como
os armamentos de destruição em massa), o pensamento científico trabalhado na escola tem
outras finalidades. A curiosidade das crianças e dos jovens tem de ser explorada, incentivada e
vista como valor. Entretanto, amplitude das ciências na escola vai além do atendimento à
curiosidade.
Na escola, espera-se que ela adentre no campo da compreensão das leis, causais ou não,
na experimentação básica, na formulação de hipóteses, na constatação dos princípios universais
e mutantes, na imaginação criadora, na constatação da necessidade de linguagem própria assim
como de medidas e metodologias cheias de rigor. Todo esse arsenal de percepções e de
conhecimentos requer a memória histórica gerada pelas suas conquistas, mas exigem também
fortemente a memória de seus esquemas cognitivos e de suas lógicas específicas – mesmo que
para depois criticá-los ou alterá-los. Desse conjunto de habilidades, nasce a formação científica.
As ciências guardam sempre o encantamento de ter algumas chaves da interpretação do
universo, da vida, do microcosmo, da morte, das superações de problemas, dos mistérios de
outros mundos. Não é só a ciência que encanta, espanta, explica e fascina. A Literatura também.
A Filosofia, a História, as Artes, a Educação Física também. E todas elas são íntimas das
ciências. É a partir daí que a memória da escola parte: da percepção afetiva do patrimônio
epistemológico do conhecimento. Aí nascem as perguntas éticas. O que é o bem?
3.2 A escola é o lugar das primeiras análises e diagnósticos sistemáticos
As ciências, a história, as matemáticas, a economia, as literaturas, sem falar na filosofia,
apresentam instrumentos de elaborar diagnósticos da realidade. Por que algo mais pesado que
o ar voa ou flutua e não afunda? Assim se quer saber que as línguas têm diferentes modos de
ser viva e mutante, e a Matemática é uma forma de organizar mentalmente o mundo material;
como a geografia que pode nos fornecer respostas à pergunta: onde estou?; a Educação Física
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é uma forma de situar meu corpo no espaço e aprender Geometria com a experiência do
movimento no espaço ou de aprender as dimensões do lúdico como forma de estar com o outro?
Compreender o mundo significa poder fazer diagnósticos de como as coisas funcionam e me
permitem o convívio. A criança e o jovem, sobretudo, querem saber as causas que constituem
a realidade com tantos mistérios e incompreensões. Os conteúdos e os métodos da escola
apresentam sistematicamente dados e reflexões sobre como se pode entender as causas de
muitos fenômenos da vida, do universo, da sociedade, da morte, da sorte, das emoções, da
existência do passado e dos sonhos com o que ainda não existe. Lógica, linguagens, observação
sistemática, hipóteses, admiração, insatisfação com algumas respostas são o resultado dessas
organizações mentais que nascem do pensamento escolar.
3.3 A escola é o lugar da compreensão dos fenômenos, pela Cultura
A análise e os diagnósticos apresentam um quadro de organização da realidade, mas sua
compreensão advém de formação de categorias para a interpretação do que se diagnosticou. A
Cultura traz a chave de interpretação para tal compreensão. Ela, a Cultura, é a riqueza das
múltiplas vivências pessoais e da sociedade pois traz a beleza, a textura da história, as riquezas
das artes, as vivências da alimentação, as sutilezas da música, a densidade da expressão da
escrita científica ou poética, os sentidos das transcendências, as pinturas dos corpos, os sonhos
em diferentes línguas e linguagens, a diversidade dos convívios e as tecnologias como forma
de ampliar as experiências da vida.
A palavra latina culturus ou cultura, que quer dizer aquilo que se vai cultivar, vê forte
sentido de cultura como “trabalho a ser feito desde a infância”, “condição de vida mais humana,
digna de almejar-se”, inspira, até hoje, os projetos que se queriam como organizadores de novas
revoluções ou grandes projetos como a Cultura da Contrarreforma, ou do Renascimento, do
Iluminismo, das revoluções científicas e sociais. Sem a dimensão clara dos aportes da cultura
às grandes mudanças históricas e econômicas propostas em todas as épocas da humanidade,
pouco teria se desenvolvido e sobrevivido nelas. Nesse sentido, a cultura e a educação “[...] são
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exigências contemporâneas de alto valor estratégico para o desenvolvimento econômico e
social sob uma perspectiva sustentável”, afirma Botelho (2016, p. 96).
Em um país como o Brasil, tão marcado por enormes fluxos migratórios, a explicitação
e vivência dos componentes culturais são condições de “[...] construir nossa identidade e
cidadania como modo de atender os imperativos da igualdade de direitos e elevar a qualidade
de vida” (BOTELHO, 2016, p. 96).
Todos os valores que marcam a constituição de um país ampliam a responsabilidade da
cultura como representação de um sistema linguístico, etnias, religiões, modos de pensar e viver
que, de alguma forma, presidem a esferas do poder social, do trabalho e das relações com a
natureza. Por isso, cabe à escola e ao seu currículo articular as aprendizagens cognitivas com
os elementos da cultura da região, do país e, também, das demais culturas existentes e vividas
pelos estudantes e seu ambiente. Um dos modos mais eficazes de algum país ou economia
dominar a outra é dominar-lhe as culturas por imposição de valores culturais hegemônicos.
Não há nesta proposta nenhum sentido de hierarquizar diferentes povos e nações a partir
de categorias ligadas ao desenvolvimento, sugerindo que existam países e comunidades “mais
civilizadas” do que outras. Valorizam-se aqui as diferenças entre as culturas como valor
intrínseco de cada uma, como a cultura helênica, a filosofia alemã, a música brasileira, as
pinturas dos corpos, as expressões idiomáticas ou as tecnologias da comunicação.
Ao longo do tempo, fortalece-se o entendimento do conceito de cultura, em sentido mais
amplo, reaproximando-o da significação etimológica da palavra, abrangendo todas as
dimensões da vida em coletividade, abarcando o conjunto de acontecimentos, manifestações e
representações sociais, como valores, hábitos, costumes, crenças, produção intelectual e
artística.
A cultura implica em algo incompleto, como a educação, em constante estado de criação
e renovação, oscila entre passado e futuro, mas também entre atividade e passividade, já que o
cultivo, tanto o da terra quanto o do espírito, pressupõe o movimento de um agente sobre um
objeto, um “cuidar ativo” permanente e comprometido.
As ações pedagógicas e educacionais ligando cultura e aprendizagem escolar carregam,
neste texto, o sentido da educação íntegra, pois, por essas integrações, as línguas, os territórios,
as religiões, as interações sociais, o tempo livre, as experiências e as fruições artísticas, as
vivências lúdicas, enriquecidas pela visão educacional, exigirão sempre existência de canais de
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comunicação para difusão do conhecimento. Este é o objetivo do conhecimento escolar: sentido
do currículo íntegro.
3.4 A escola como intervenção múltipla na sociedade
Os espantos são muitos, os diagnósticos são sutis, as compreensões são complexas.
Assim as chaves de interpretação são interdisciplinares uma vez que as epistemologias de cada
modalidade de conhecimento trazem múltiplos olhares à realidade. Se as ciências desenvolvidas
pelo pensamento ocidental trazem as ciências como suas analistas maiores, assim a escola e o
mundo contemporâneo pedem o olhar interdisciplinar para sua intervenção crítica e ampliada.
O objetivo do conhecimento escolar é permitir a participação no mundo por parte daqueles que
aprendem, diagnosticam, criam habilidades de compreensão e desenvolvem competências de
interferência na sociedade. A educação íntegra é aquela que consegue preencher de significado
o conhecimento trabalhado na escola, uma vez que o espanto, a indignação, o olhar sobre a
história e sobre a cultura, no amplo sentido, cumula-o de alto poder de interferência na
realidade. Ideias, imagens e fantasias são fundamentais para que o conhecimento se expanda e
ganhe sentido. Ganhe força. O conhecimento escolar, sendo um conhecimento ativo e cidadão
e não apenas individualista e pragmático-formal, desperta aquilo que há de muito marcante no
homo sapiens, a capacidade de ganhar e construir espaços de convivência e fazer história.
Harari (2016) pergunta:
Como o Homo sapiens conseguiu ultrapassar o limite (de pequenas
comunidades de 100 pessoas) fundando cidades com dezenas de milhares de
habitantes e impérios que governam centenas de milhões? O segredo foi
provavelmente o surgimento da ficção. Um grande número de estranhos pode
cooperar de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos (HARARI, 2016,
p. 35).
A aprendizagem sistemática e a cultura, com seu imenso poder sobre a imaginação, a
vontade, os valores, a criatividade, são capazes de criar mitos e práticas que formam
competências e experiências para intervenção na sociedade.
3.5 A escola é o lugar da participação criativa e crítica no mundo pela leitura e pela escrita
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O conjunto das experiências escolares e curriculares provê o estudante de um repertório
cognitivo, de experiências afetivas e culturais que o levam ao hábito de ler. De escrever. De ler
e escrever o mundo em suas múltiplas manifestações da cultura, da economia, das regras do
convívio, dos sonhos imaginativos, das fórmulas e dos algoritmos de pensar, das criatividades
e do compromisso social.
Isso exige um arsenal de habilidades de leituras e de repertórios que permitem a
interpretação do mundo. No entanto, a escrita de suas reflexões, de seus sonhos de conquistas,
da autoria de seu projeto de vida é também uma habilidade constituída na escola. O ler e o
escrever são, portanto, como as faces de uma mesma moeda. Escrever, ler o mundo e desenhar
sua participação nele são as finalidades últimas da escola e de seu currículo. Leitura crítica do
mundo.
Ler o mundo. Na visão de Paulo Freire (2001), ler o mundo não é apenas caminhar sobre
as letras dos textos, mas interpretar o mundo e poder participar dele. Tal habilidade, de cunho
profundamente humano e político, supõe forte dose de uso da memória significativa, marcada
por repertório verbal e de experiências culturais e sociais, assim como de linhas argumentativas.
A memória aqui trazida não é aquela desenvolvida pela educação bancária
antidialógicaiv, a qual parte do princípio de que a criança e o jovem vêm para a escola com a
cabeça vazia. Eles trazem suas vidas, suas experiências, seus conhecimentos organizados a
partir do senso comum e buscam a escola para reformatá-los com novas intencionalidades
cognitivas. À memória afetiva e social trazida por eles se ajuntam tantas outras memórias como
as do grupo classe, como as dos livros lidos, das experimentações de pesquisas, com dados da
história, com as contribuições das ciências – humanas e exatas – das artes, da cultura digital...
E a partir dessa riqueza de pensamentos e de vivências, o estudante cria, reelabora,
ajunta-lhe significado, apropria-se do conhecimento. A memória que traz não é ingênua, mas é
parcial. A construção social do conhecimento representa essa passagem do caminhar sobre as
próprias vivências para poder ler o mundo com as experiências, os relatos e os valores de outros
atores com ele.
Vygotsky (2005) é o mestre da explicação desse processo de construção social do
conhecimento e Paulo Freire amplia seu pensamento ao caráter político desse ato de ler. A
pesquisa do que chamava de universo vocabular [memória] nos dava assim as palavras do Povo,
grávidas de mundo. Elas nos vinham por meio da leitura do mundo que os grupos faziam.
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Depois voltavam a eles, inseridas no que chamava e chama de codificações, que são
representações da realidade (FREIRE, 2001, p. 20)
Apontados os caminhos para a construção de um desenho curricular que reflita e
consolide um trabalho escolar voltado à formação do conhecimento que lhe é inerente, com
participação ativa e convivência, são tecidas, a seguir, algumas considerações e conclusões, que
esclarecem filosófica e politicamente tais desígnios. Além disso, defende-se que o conceito de
nação existente e seu diagnóstico são as únicas condições para a construção de um currículo
íntegro.
4 ALGUMAS CONCLUSÕES PREOCUPANTES E PROVISÓRIAS
Dentro deste contexto da relevância do debate sobre currículo que o Brasil viveu entre
2013-2017, este artigo aponta para duas direções. Uma que, mesmo intensa e ocupando muitos
agentes educacionais públicos e privados e a grande mídia, o debate foi esporádico e
espasmódico. As ideias mestras eram trazidas em manchetes espantadas na grande mídia,
gerando entrevistas e artigos breves que se posicionavam estruturalmente contra ou
grandemente a favor; alguns alegavam a inevitabilidade de uma aprovação rápida, pois os
prazos governamentais estavam esgotados. A versão aprovada em 15 de dezembro de 2017
desconsiderou a especificidade do saber escolar e trouxe uma visão do currículo que se espelhou
em currículos de países que não somos para dizer como se deveriam formar nossos cidadãos.
O país no qual esse modelo educacional proposto pela BNCC será implantado poderia estar ao
norte dos EUA ou no Norte da Europa, como a Finlândia, por exemplo. Descuidou-se o texto
da BASE COMUM da formação dos estudantes para o conhecimento situado na nossa
realidade. A proposta curricular é tão abstrata que serve para qualquer país, correndo o risco,
assim, de não servir para país nenhum.
A reação imediata e concomitante de criação de inúmeras escolas de caráter
internacional nas grandes capitais e com patrocínio de corporações comerciais evidencia que a
BASE COMUM atendia àqueles apelos de uma formação para a economia internacional e da
inserção de suas lideranças e seus quadros no mercado global liberal.
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Em outra direção, viveu-se entre 2013-2017, a “gelatinização” do que é o sentido do
conhecimento escolar. Por isso, a escola ficou refém de dados modismos desfibradores da
educação, reduzindo a função de seus professores a meros “facilitadores” da aprendizagem,
atribuindo à escola o papel de ser motivadora lúdica da aprendizagem. Nesse contexto, cabe ao
aluno de qualquer idade a tarefa de gerenciar seus estudos, a partir de seus interesses
momentâneos e de seu repertório, a nosso ver insuficientes para sua tomada de decisões sobre
seus trajetos cognitivos e profissionais de longo prazo.
A realidade da vida dos grupos sociais e econômicos em que o aluno vive não contam
nos conceitos da BNCC. Nota-se, em muitas descrições dos estudantes, que eles são vistos
como clientes e não como cidadãos de direitos e deveres. A educação pública é um ato político
e civilizatório e não o atendimento a padrões de empregabilidade de um dado momento
histórico ou de uma demanda da economia.
Assim, o que foi descrito no artigo, como o nó de seu entendimento, é o caráter
epistemológico do conhecimento trabalhado por todos no currículo escolar. A multiplicidade
constatada nas habilidades de inteligência não obriga à escola trabalhar com todas elas ao
mesmo tempo e com os mesmos instrumentos pedagógicos e curriculares. O engano constatado
em muitas propostas curriculares em moda é o de fazer duas ofertas falsas: a de que estudar é
uma tarefa de segunda categoria, e, portanto, pode ser fácil e rápida; a segunda é a de que o
trabalho de aprendizagem pode ser transferido para máquinas auxiliares de sua memória, que
organizam seu conhecimento, realizando aquele trabalho que é do empenho próprio do
estudante, como o de atribuir significado aos conteúdos e, no fundo, de dar sentido à sua
proposta de vida cognitiva.
Remata-se este artigo apontando caminhos, sem, no entanto, esgotar o assunto para a
construção de um desenho curricular que aproxime e integre os conhecimentos para o
enfrentamento de toda a vida e não apenas para o ingresso no mercado de trabalho.
Todas essas variáveis culturais e políticas que marcaram o cenário dentro do qual o
debate curricular ocorreu organizam-se em torno da carência que o pensamento estratégico
sobre currículo acontece, sobre a pouca clareza do que seja o conhecimento escolar como
espaço epistemológico de desenvolvimento do pensamento de um país, e de uma enorme
indefinição da função do Estado como única instituição social que cuida da educação como
direito de todos e como bem público. Só com uma coerente posição do Estado como curador
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Revista e-Curriculum, São Paulo, v.16, n.3, p. 594-620 jul./set.2018 e-ISSN: 1809-3876
Programa de Pós-graduação Educação: Currículo – PUC/SP
http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum
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da educação pública poderemos ter condições para a implantação de uma educação para um
país democrático em uma escola íntegra.
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NOTAS
i Doutrina que busca aplicar leis físicas e biológicas aos fenômenos sociais. ii Ditado Africano (anônimo). iii Excelente obra sobre o tema é a de CUNHA, Luiz Antônio. (Org.). Escola pública, escola particular. São
Paulo: Cortez, 1985. iv “A expressão educação bancária é empregada por Paulo Freire para se referir à forma de educação que vê na
cabeça da criança um mero lugar onde se depositam conhecimentos sem sentido e como se nada trouxesse na sua
inteligência” (ALMEIDA, 2009, p. 43).