curso de pÓs-graduaÇÃo lato...
TRANSCRIPT
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - FAVENI
TENDÊNCIAS ATUAIS DA
EDUCAÇÃO
ESPÍRITO SANTO
EDUCAÇÃO NO BRASIL: CONCEPÇÃO E
DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI
Texto adaptado de Dermeval Saviani
http://www.ifpb.edu.br/reitoria/noticias/dia-internacional-da-educacao-1/image
O problema das concepções de educação pode ser abordado de
diferentes maneiras. Um enfoque possível é a partir da filosofia identificando-
se, em consequência, as principais concepções de educação expressas nas
grandes tendências que se manifestaram ao longo da história. Nessa linha de
análise poderíamos chegar às diversas concepções de filosofia da educação
considerando também as correntes filosóficas a elas articuladas. Outra forma
de abordagem seria levar em conta o aspecto propriamente pedagógico o que
nos conduziria a identificar as principais correntes pedagógicas como o
escolanovismo, o não-diretivismo, o construtivismo, o behaviorismo, etc. Uma
outra maneira seria considerar a educação a partir da função social
desempenhada nas diferentes sociedades ao longo do tempo. Nesse caso a
educação seria concebida como um processo de inculturação ou aculturação
das novas gerações nas tradições e nos costumes característicos de uma
formação social determinada. Nesse âmbito emergiriam, como assinalou
Durkheim, os papeis de homogeneização e diferenciação requeridos de seus
membros por parte da sociedade.
No entanto, para efeitos desta exposição no âmbito dessa Conferência
Nacional de Educação, Cultura e Desporto, não vou seguir nenhum dos
caminhos acima apontados. Vou procurar me ater aos objetivos desse evento
que, inspirado em Anísio Teixeira e pretendendo ser dominantemente
propositivo, nos convida a buscar alternativas concretas, em especial no âmbito
da legislação, de modo a delinear com a clareza que se revelar possível, a
concepção e as medidas dela decorrentes exigidas para se enfrentar os
desafios que se põem para a educação brasileira neste limiar do século XXI.
CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO
http://cursosedicas.com/wp-content/uploads/2014/06/banner_selecao_monitores_mais_educacao.jpg
O entendimento dos problemas enfrentados pela educação brasileira
atualmente implica a compreensão da forma assumida pela educação no
contexto das sociedades modernas. Caracterizadas pelo predomínio da cidade
e da indústria sobre o campo e a agricultura, essas sociedades se constituíram
sob a forma do direito positivo regendo-se por constituições escritas e
generalizando relações formalizadas através de contratos cujo teor se
manifestava também por escrito e cuja adesão se dava através da assinatura
que expressava a concordância , após sua leitura, com o conteúdo das
cláusulas do contrato. Incorporava-se, assim, à vida social a expressão escrita.
Em consequência, para participar ativamente desse tipo de sociedade nas
diversas e múltiplas funções por ela desenvolvidas, se faz necessário o
ingresso na cultura letrada. Ora, sendo essa forma de cultura um processo
formalizado, sistemático, só pode ser atingida através de um processo
educativo também sistemático. Portanto, a sociedade moderna não podia mais
se satisfazer com uma educação difusa, assistemática e espontânea, passando
a requerer uma educação organizada de forma sistemática e deliberada, isto é,
institucionalizada o que veio a colocar a educação escolar como a forma
principal e dominante de educação.
No contexto descrito o acesso à escola passa a ser considerado como
um direito de todo cidadão e, como tal, um dever do Estado. O cumprimento de
esse dever assume, no final do século XIX, a forma da organização dos
sistemas nacionais de ensino, entendidos como amplas redes de escolas
articuladas verticais e horizontalmente tendo como função garantir a toda a
população dos respectivos países o acesso à cultura letrada traduzido na
erradicação do analfabetismo através da universalização da escola primária
considerada, por isso mesmo, de frequência obrigatória.
http://envolverde.com.br/portal/wp-content/uploads/2013/08/abc.jpg
Os principais países, não apenas da Europa, mas também da América
Latina, como se pode ver pelo exemplo de nossos vizinhos, a Argentina, o
Chile e o Uruguai, tendo organizado os seus sistemas nacionais de ensino a
partir do final do século XIX, lograram universalizar o ensino elementar e, com
isso, erradicar o analfabetismo. O Brasil não fez isso. Após uma tentativa
fracassada por ocasião da Constituinte de 1823 e, depois, com a lei das
escolas de primeiras letras de 1827, relegou-se a educação básica durante
todo o Império e ao longo da Primeira República às Províncias e, depois, aos
Estados federados, desobrigando-se desse dever o Estado Nacional. Foi
somente após a Revolução de 1930 que a educação no Brasil começou a ser
tratada como uma questão nacional dando-se precedência, porém, ao ensino
secundário e superior já que foi só em 1946 que viemos a ter uma lei nacional
relativa ao ensino primário. E, ainda assim, o trato da questão educacional foi
sempre, entre nós, atravessado por um dualismo desqualificador da instrução
popular em confronto com aquela destinada às elites.
Com efeito, as reformas Capanema da década de 1940 foram
marcadas pela contraposição entre ensino secundário destinado às elites
condutoras e ensino profissional voltado para o povo conduzido. Procurou-se
corrigir essa distorção através das leis de equivalência entre os vários ramos
do ensino médio na década de 1950, equivalência essa que foi incorporada à
nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada
em 1961. E a Lei 5692 de 11 de agosto de 1971, ao justificar a tentativa de
universalização compulsória da profissionalização no ensino de segundo grau,
trouxe à baila o slogan "ensino secundário para os nossos filhos e ensino
profissional para os filhos dos outros" com o qual se procurava criticar o
dualismo anterior sugerindo que as elites reservavam para si o ensino
preparatório para ingresso no nível superior, relegando a população ao ensino
profissional destinado ao exercício de funções subalternas.
Deve-se notar, porém, que essa mesma lei 5.692 introduziu a distinção
entre terminalidade ideal ou legal, que corresponde à escolaridade completa de
primeiro e segundo graus com a duração de onze anos, e terminalidade real, a
qual implicava a antecipação da formação profissional de modo a garantir que
todos, mesmo aqueles que não chegassem ao segundo grau ou não
completassem o primeiro grau, saíssem da escola com algum preparo
profissional para ingressar no mercado de trabalho. Admitiu-se, pois, que nas
regiões menos desenvolvidas, nas escolas mais carentes, portanto, para a
população de um modo geral, a terminalidade real resultaria abaixo da legal,
isto é, chegaria até os dez anos de escolaridade ou oito, sete, seis ou mesmo
quatro anos correspondentes ao antigo curso primário devendo receber,
mesmo nesses casos, algum preparo profissional para daí passar diretamente
ao mercado de trabalho. Ora, através desse mecanismo a diferenciação e o
tratamento desigual foram mantidos no próprio texto da lei, apenas
convertendo o slogan anterior neste outro: "terminalidade legal para os nossos
filhos e terminalidade real para os filhos dos outros".
http://www.unifebe.edu.br/site//docs/imagens/pos_graduacao/especializacao_docencia_educacao_basica/educacao_ba
sica.jpg
Observe-se, finalmente, que o referido dualismo se faz presente
também na política educacional atual não apenas quando, na reforma do
ensino médio, se separa o ensino técnico do ensino médio de caráter geral e
quando se advogam no ensino superior os centros de excelência destinados a
ministrar às elites um ensino de qualidade articulado com a pesquisa em
contraste com as instituições que ofereceriam ensino sem pesquisa. Esse
dualismo se manifesta também no ensino fundamental ao se propor para a
rede pública um ensino aligeirado avaliado pelo mecanismo da promoção
automática e conduzido por professores formados em cursos de curta duração
organizados nas escolas normais superiores com ênfase maior no aspecto
prático-técnico em detrimento da formação de um professor culto, dotado de
uma fundamentação teórica consistente que dê densidade à sua prática
docente. Esta última alternativa ficará reservada às escolas destinadas às
elites que certamente continuarão a recrutar os seus professores dentre
aqueles formados nos cursos de licenciatura longa, preferentemente oriundos
dos centros de excelência constituídos pelas universidades públicas que
preservarão a exigência da indissociabilidade entre ensino e pesquisa.
http://www.linkedportugal.com/wp-content/uploads/2013/05/avaliar-linkedin.jpg
VISÃO CRÍTICA DA CONCEPÇÃO QUE
ORIENTA A POLÍTICA EDUCACIONAL
ATUALMENTE EM VIGOR
A política educacional que vem sendo implementada no Brasil, sob a
direção do Ministério da Educação, se caracteriza pela flexibilização, pela
descentralização das responsabilidades de manutenção das escolas através de
mecanismos que forcem os municípios a assumir os encargos do ensino
fundamental associados a apelos à sociedade de modo geral, aí
compreendidas as empresas, organizações não-governamentais, a
comunidade próxima à escola, os pais e os próprios cidadãos individualmente
considerados, no sentido de que cooperem, pela via do voluntarismo e da
filantropia, na manutenção física, na administração e no próprio funcionamento
pedagógico das escolas. Delineia-se, assim, um estímulo à diferenciação de
iniciativas e diversificação de modelos de funcionamento e de gestão do ensino
escolar. Em contrapartida, com base na montagem de um "sistema nacional de
avaliação" respaldado pela LDB, centraliza-se no MEC o controle do
rendimento escolar em todos os níveis, desde as creches até a pós-graduação.
Há, pois, um estímulo à descentralização traduzida na flexibilização,
diferenciação e diversificação do processo de ensino mas uma centralização do
controle dos seus resultados.
Ora, as características acima enunciadas permitem perceber que a
política educacional que está sendo implementada acentua, pela via da
diferenciação apontada, as desigualdades educacionais aprofundando o
dualismo antes referido.
http://veja.abril.com.br/assets/images/2012/2/66069/educacao-20120214-82-size-620.jpg
Aliás, cabe observar que a orientação em pauta se inspira naquilo que
poderíamos chamar de "modelo americano". Esse modelo, diferentemente
daquele que predominou nos países europeus, considera como função
principal do ensino fundamental, a socialização das crianças ao passo que o
modelo europeu enfatizava a função de formação intelectual o que implica a
garantia de uma base comum, mais ou menos homogênea a partir da qual
todos os cidadãos podem participar, em condições de igualdade, da vida da
sociedade a que pertencem. Visando, pois, criar esse patamar comum
centrado no domínio dos elementos fundamentais da cultura letrada de base
científica, os principais países organizaram os sistemas nacionais de ensino
como instrumento para universalizar a escola básica (o ensino elementar) e,
por esse caminho, erradicar o analfabetismo.
Em contrapartida nos Estados Unidos, a precedência da função de
socialização das crianças atribuída à escola básica levou a vincular as escolas
às comunidades próximas, isto é, aos municípios, dispensando-se um sistema
nacional e priviligiando-se, na avaliação da aprendizagem das crianças, sua
capacidade de relacionamento e interação com as demais crianças ao passo
que, no modelo europeu, a avaliação implicava um sistema de exames
destinado a aferir o grau de apreensão dos conhecimentos elementares que
caracterizam uma formação intelectual correspondente ao domínio da cultura
moderna entendida como necessária a toda a população e, por isso, sendo
objeto de um ensino comum a todos.
Do ponto de vista do processo, o modelo americano levou a uma maior
diferenciação de iniciativas assim como à maior diversificação das formas de
gestão, enquanto o modelo europeu conduziu a uma maior centralização das
iniciativas e a uma forma de gestão relativamente unificada cuja
responsabilidade primordial se localizava no Estado nacional.
Do ponto de vista dos resultados se verifica que o modelo europeu foi capaz de
garantir razoável coesão, assegurando um patamar comum que permitiu
homogeneizar o acesso à cultura letrada, o que significou um razoável grau de
igualdade de condições de participação de todos na vida social. Já o modelo
americano resultou bem mais desigual, apresentando diversas distorções que
têm sido objeto de alerta das próprias autoridades políticas e educacionais do
próprio país e que volta e meia são divulgadas através da imprensa.
Com efeito, de vez em quando nos deparamos com notícias em jornais
ou revistas dando conta de que nos Estados Unidos é comum ocorrer que um
significativo número de jovens cheguem a concluir o ensino médio e até
mesmo a ingressar na universidade sendo praticamente analfabetos (os
denominados analfabetos funcionais). Ora, essa é uma situação inteiramente
estranha aos países europeus. Em verdade, nunca encontramos notícias
semelhantes a respeito da Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suécia,
Dinamarca, Noruega, França, Itália, Espanha, Portugal, em suma, dos países
europeus de modo geral. Sem dúvida isso tem a ver com a diferença de
modelos que presidiu a organização do ensino em um e em outro caso.
http://cdn.mundodastribos.com/wp-admin/uploads/2010/03/Estagio-Supervisionado-Educacao-Infantil.jpg
As observações feitas acima nos permitem aquilatar a gravidade da
situação em que nos encontramos. Na verdade, considerando que nós sequer
chegamos a universalizar a escola elementar, a adoção do modelo americano
potencializa enormemente as consequências negativas detectadas nos
Estados Unidos contribuindo para aprofundar ainda mais a extrema
desigualdade que é a triste marca de nossa tradição histórica. Vê-se assim
que, se na Europa a influência do modelo americano pode ser até benéfica pois
poderá contribuir para flexibilizar a forma de um sistema já consolidado, no
caso do Brasil, onde não se conseguiu ainda implantar um sistema de ensino
abrangente em âmbito nacional, a referida influência resulta deletéria nos
distanciando ainda mais da meta de garantir a todas as nossas crianças a
desejada igualdade de acesso aos bens culturais.
DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI
http://www.primecursos.com.br/arquivos/uploads/2013/10/gestao-da-educacao-infantil.jpg
Curiosamente, a conclusão a que chegamos é que o grande desafio
que ainda se põe para o Brasil em termos educacionais ao ingressar no século
XXI, nos vem do século XIX. Trata-se da tarefa de organizar e instalar um
sistema de ensino capaz de universalizar o ensino fundamental e, por esse
caminho, erradicar o analfabetismo. A Constituição de 1988 estabeleceu, nas
Disposições Transitórias, o prazo de dez anos para o cumprimento dessas
duas metas. Os dez anos se passaram e agora, em decorrência da Emenda
Constitucional de número 14 e da nova LDB, está se procurando fixar no Plano
Nacional de Educação, mais dez anos para se atingir essas mesmas metas.
Corremos, assim, o risco de, daqui a dez anos, estarmos concedendo mais
uma década para realizar aquilo que os principais países fizeram a partir do
final do século XIX e início do século XX.
Nosso atraso já é, pois, secular o que vem implicando um grande
déficit histórico. E é preocupante constatar que a política educacional em curso,
embora disposta a atacar esse problema, não o está encaminhando da forma
mais adequada. Com efeito, como já foi indicado, ao aderir ao "modelo
americano" nós corremos o risco de universalizar o ensino fundamental sem
conseguir, porém, erradicar o analfabetismo. E esse risco fica mais evidente ao
se constatar que um dos principais vetores dessa política educacional é a
redução de custos, sob o aspecto econômico, o que leva a apostar todas as
fichas na "promoção automática" como via para possibilitar a todas as crianças
a conclusão do ensino fundamental. Mas, convenhamos, a promoção
automática não é solução para o problema da repetência. Isto porque, como se
infere da própria denominação, a passagem é automática, isto é, os alunos são
promovidos independentemente do que fizeram ou deixaram de fazer. Quer se
tenha atingido os objetivos quer não, tenham ou não preenchido os requisitos,
a aprovação irá ocorrer. Deixa de ser relevante o desempenho tanto dos alunos
como dos professores. Coisa diversa é o empenho em se atingir a meta da
"repetência zero", vale dizer, o objetivo de que todos sejam promovidos. Aqui
se trata de criar as condições para que todos os alunos atinjam os objetivos
definidos para os diversos componentes curriculares que integram o processo
de ensino-aprendizagem.
Acoplando-se simplesmente o mecanismo da "promoção automática" à
situação atual das escolas ficando intactas as suas condições de
funcionamento pode-se eliminar o problema da repetência resolvendo-se o
problema do ponto de vista estatístico. Permaneceria, porém, o mesmo quadro
de deficiências e precariedades que se associam, hoje, aos altos índices de
repetência. O que precisa ser feito é equipar adequadamente as escolas e
instituir uma carreira digna para o corpo docente como fizeram os países que, a
partir do final do século XIX, implantaram os seus sistemas nacionais de
ensino. Em condições adequadas o normal é que as crianças aprendam sendo,
portanto, promovidas. Assim, resolve-se o problema da repetência porque as
crianças, de fato, aprendem e não porque se decretou a promoção automática.
Aliás, os sistemas de ensino europeus estavam apoiados em uma sistemática
relativamente rígida de exames como mecanismo para aferir se os alunos
seriam ou não promovidos e nem por isso tiveram que se deparar com a
necessidade de exorcizar o fantasma da repetência. Ao contrário, o sistema se
mostrou eficaz para garantir a aprendizagem, o que permitiu estabelecer o
fluxo regular dos alunos que evoluíam, sem problemas, de uma série para
outra até a conclusão, sem defasagem de idade, da escolaridade obrigatória.
Para enfrentar esse desafio, que há um século nos afronta, é mister
assumir de vez a educação como prioridade de fato e não apenas nos
discursos como ocorre recorrentemente. Nesse esforço cabe, sem dúvida,
promover alterações na legislação educacional. Poderíamos aperfeiçoar
determinados dispositivos da Constituição assim como modificar a orientação
que prevaleceu na LDB e legislação complementar. Entretanto, não me parece
ser esta a questão fundamental mesmo porque uma efetiva mudança de rumos
na regulação legal da educação estaria na dependência de uma nova
correlação de forças políticas que conduzisse a uma outra relação de
hegemonia. No que se refere, porém, aos desafios fundamentais que se põem
para a educação me parece haver um razoável grau de consenso, o que faz
com que a legislação em vigor não chegue a ser, na letra da lei, um efetivo
obstáculo para as ações que se fazem necessárias. Nesse aspecto penso que
a legislação que conta, de fato, nas atuais circunstâncias, é aquela relativa ao
Plano Nacional de Educação. Sob esse aspecto o texto aprovado na Câmara
dos Deputados não deixa de se constituir num avanço em relação à proposta
do MEC. Entretanto, naquilo que é decisivo, isto é, a questão do aporte de
recursos para a educação, a gradualidade adotada acaba por diluir e amortecer
o impacto requerido para implementar as transformações que não podem mais
ser postergadas. Por isso, ouso insistir na minha proposta de um plano de
emergência cujas linhas básicas apresento a seguir (SAVIANI, S/D):
http://www.duniverso.com.br/wp-content/uploads/2010/09/crianca-livros-educacao-a-distancia-ead.jpg?d31342
Para fazer face ao atraso em que nos encontramos, proponho a
imediata duplicação do percentual do PIB investido em educação, passando
dos atuais 4% para 8%. Isso, em verdade, apenas nos colocaria no nível das
nações que mais investem em educação a exemplo dos Estados Unidos,
Canadá, Noruega e Suécia que, segundo tabela apresentada pelo MEC em
seu roteiro para a elaboração do Plano Nacional de Educação, se situam na
faixa entre 7,5 e 8,5%. Observe-se, porém, que esses países não têm o déficit
que temos. Portanto, se estamos empenhados em zerar o déficit, teríamos que
investir muito mais. Penso, porém, que, a partir desse esforço, teríamos
chances de começar a tratar com seriedade os problemas da educação,
ganhando condições de resolvê-los efetivamente. A propósito, recordemo-nos
da insistência de Anísio Teixeira para quem a educação requer significativos
investimentos não sendo possível tratá-la seriamente com pouco dinheiro.
http://faculdadefamesp.com.br/novosite/wp-content/uploads/2012/10/pintura-educacao-infantil.jpg
A duplicação do percentual do PIB permitiria que cada instância
passasse a ter o dobro dos recursos de que hoje dispõe para a educação.
Assim, os municípios que, por força do FUNDEF, têm apenas 10% de seus
recursos para investir em educação infantil, passariam a ter 20%. Com isso, já
começa a se tornar viável a construção de uma ampla rede nacional de
educação das crianças de 0 a 6 anos, mantida e gerida pelos municípios, com
a orientação dos Conselhos Estaduais de Educação.
Para o ensino fundamental, em lugar dos atuais 15% dos recursos de
Estados e Municípios, passaríamos a ter o equivalente a 30%. Lançando mão
do parágrafo único do artigo 11 da LDB, que permite aos municípios a opção
de se integrar ao sistema estadual ou compor com ele um sistema único de
educação básica, será possível construir, a partir dos Estados, um amplo
sistema de ensino fundamental coordenado nacionalmente.
No caso do ensino médio teríamos o equivalente a 20% dos recursos
dos Estados, o que já permitiria que o objetivo de universalização do ensino
médio, previsto pela Constituição Federal, deixasse o âmbito dos objetivos
remotos para se tornar viável no médio prazo. Com efeito, cabe observar que,
diferentemente do ensino fundamental que se compõe de nove séries, o ensino
médio tem apenas três.
http://noticias.universia.com.br/br/images/docentes/b/bu/bur/burocracia-contradicao-cenario-educacao-superior-brasil-
noticias.jpg
Quanto à questão dos professores, considerando a determinação do
FUNDEF de que 60% dos recursos se destinem ao corpo docente, a
duplicação do percentual tornará exequível a meta de implementar a jornada
de 40 horas em uma única escola, além de viabilizar a criação de uma espécie
de PICD da Educação Básica, semelhante ao que se fez com o ensino
superior, através da CAPES, viabilizando, assim, a qualificação dos
professores através de bolsas de estudo para frequentar cursos específicos
nas universidades públicas de melhor qualidade.
Finalmente, em relação ao ensino superior, a duplicação dos recursos permitirá
à União, com o montante atual, consolidar as universidades federais além de
manter sua rede de escolas técnicas. Os recursos adicionais, da mesma
magnitude dos atuais, poderiam ser divididos em duas fatias: metade se
destinaria à educação básica para que a União possa cumprir a função de
apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a outra metade
constituiria um fundo por meio do qual seriam financiados projetos que
engajariam fortemente as universidades na realização das metas definidas no
Plano Nacional de Educação.
Está claro que a implantação de uma proposta como essa não
resolverá, por si só, todos os problemas da educação brasileira. Mas estou
convencido que é somente a partir de uma iniciativa desse tipo que a solução
se tornará possível.
http://radiomirandelafm.com/wp-content/uploads/2014/04/LogoTodospelaEducacao.jpg
Apresentei essa proposta primeiramente no II CONED e depois a
registrei no livro Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação, publicado
em abril de 1998, retomando-a em outras oportunidades. A única objeção que
se poderia levantar contra ela diz respeito à sua viabilidade à vista da
propalada escassez de recursos com que conta o Poder Público para fazer
face a necessidades de toda ordem e em todos os setores, de modo especial
naqueles da área social. Entretanto, sua viabilidade pode ser constatada no
exemplo dos demais países que implantaram os seus sistemas, inclusive
aqueles que o fizeram tardiamente como são os casos do Japão e da Coréia.
Além disso, como também já se indicou, a meta de 8% do PIB destinados à
educação resulta perfeitamente viável porque foi praticada por diversos países.
Mas temos também demonstração dessa viabilidade em nosso próprio país
através de projetos de impacto que contaram com grandes investimentos
públicos em decorrência da vontade política de torná-los realidade. Estão
nesse caso a construção de Itaipu, as usinas nucleares de Angra dos Reis e,
no atual contexto, o SIVAM, o gasoduto proveniente da Bolívia e o PROER. Daí
ter eu sugerido em determinada ocasião que se criasse uma espécie de
PROEN (Programa de Recuperação da Educação Nacional), através do qual
seriam captados recursos de monta para viabilizar a implantação de nosso
sistema de educação em âmbito nacional.
http://escolas.madeira-edu.pt/Portals/71/Escola/OfertaEducativa/EducacaoBasica.jpg
Penso, portanto, que, se não partirmos para um plano de emergência
lúcido, corajoso, arrojado, que sinalize o empenho efetivo em reverter à
situação de calamidade pública em que se encontra o ensino dos diferentes
graus em nosso país, as proclamações em favor da educação não passarão de
palavras ocas, acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar o
problema. E, nesse diapasão, avançaremos século XXI adentro, ampliando
ainda mais o já insuportável déficit histórico que vem vitimando a população
brasileira em matéria de educação.
ARTIGO PARA REFLEXÃO
GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO: UMA
INTRODUÇÃO
Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres
(Do Livro: “Globalização e Educação – Perspectivas críticas”- org.
Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres / Porto Alegre:2004, Artmed
Editora, pp. 11-25)
http://novotempo.com/tv/files/banner_educacao.jpg
DA EDUCAÇÃO NO ILUMINISMO À EDUCAÇÃO GLOBALIZADA:
IDÉIAS PRELIMINARES
Este livro reúne um grupo notável de autores internacionais para discutir a
questão de como a globalização está afetando a política educacional em vários
Estados ao redor do mundo. Os autores apresentam visões bastante diferentes
sobre a "globalização". Para alguns deles, o termo refere-se ao surgimento de
instituições supranacionais, cujas decisões moldam e limitam as opções de
políticas para qualquer Estado específico; para outros, ele significa o impacto
avassalador dos processos econômicos globais, incluindo processos de
produção, consumo, comércio, fluxo de capital e interdependência monetária;
ainda para outros, ele denota a ascensão do neoliberalismo como um discurso
político hegemônico; para uns, ele significa principalmente o surgimento de
novas formas culturais, de meios e tecnologias de comunicação globais, todos
os quais moldam as relações de afiliação, identidade e interação dentro e
através dos cenários culturais locais; e para outros, ainda, a "globalização" é,
principalmente, um conjunto de mudanças percebidas, uma construção usada
pelos legisladores para inspirar o apoio e suprimir a oposição a mudanças,
porque "forças maiores" (a competição global, respostas a exigências do FMI e
do Banco Mundial, obrigações para com alianças regionais, e assim por diante)
não deixam "nenhuma escolha" ao Estado, além de agir segundo um conjunto
de regras que não criou. É claro que cada um dos autores cita a complexa
interação entre esses fatores diversos, atribuindo-lhes diferentes pesos e
relações.
Solicitamos que cada autor se concentrasse em um conceito que
consideramos central para entender o impacto específico da globalização sobre
as políticas e práticas educacionais, conceitos que têm sido repensados e
redefinidos neste contexto global (real e percebido), que são: "neoliberalismo",
"Estado", "reestruturação", "reforma", "administração", "feminismo",
"identidade", "cidadania", "comunidade", "multiculturalismo", "novos
movimentos sociais", "cultura popular" e o "local" (em oposição/relação ao
"global"). De forma clara, eles refletem não apenas mudança de conceitos, mas
também mudanças nas relações, nas práticas e nos arranjos institucionais. O
foco deste livro é analisar como o repensar essas ideias básicas sugere
mudanças fundamentais na maneira como as sociedades estão elaborando
políticas e práticas educacionais. Apesar de ser uma obra centralmente teórica,
estas discussões contêm implicações específicas e concretas para a forma
como a educação está mudando, e deverá mudar, em resposta a
circunstâncias novas. Este trabalho é crítico no sentido de que os autores
recusam- se a aceitar como algo determinado as formas específicas que a
globalização tem assumido, e questionam com ceticismo quem são os vence-
dores e os perdedores sob esse novo conjunto de regras. No momento em que
a "globalização" (concebida de determinada forma) tornou-se um discurso
ideológico que move a mudança, devido à urgência e necessidade de
responder a uma nova ordem mundial, queremos apresentar uma
admoestação aos entusiastas da globalização e sugerir que, mesmo que essas
mudanças ocorram, elas podem mudar de maneiras diferentes, mais justas e
equitativas. De acordo com a nossa opinião, os educadores, em particular,
devem reconhecer a força dessas tendências e enxergar as suas implicações
para moldar e limitar as escolhas disponíveis de políticas e práticas
educacionais, enquanto também resistem à retórica da "inevitabilidade" que
frequentemente motiva a prescrição de certas políticas.
http://pedrosamagalhaes.com.br/wp-content/uploads/2012/06/vozes_banner_educacao.jpg
Uma forma de reexaminar a aparente inevitabilidade da globalização é
situar o debate contemporâneo numa perspectiva história. De fato, algo parece
estar mudando no campo da educação, e essas mudanças têm ocorrido por
um período bastante longo. Na perspectiva do Iluminismo, nada pode ser mais
personalizado, mais íntimo e local, do que o processo educacional em que as
crianças e os jovens amadurecem num espaço de aquisição e aprendizagem
de sua cultura familiar, regional e nacional. Antes da instituição da educação
pública, a educação da elite era conduzida por tutores que trabalhavam com
seus pupilos de forma altamente personalizada. A educação da mente, das
capacidades e dos talentos do indivíduo era um princípio básico. Em um con-
texto de classe diferente, para crianças de famílias rurais ou de operários, a
educação ou a formação também era uma questão pessoal, gerida pelas
famílias e comunidades locais. Encaixar-se em uma comunidade, seja ela uma
cultura e forma de vida local ou nacional, pode ser visto como o imperativo
educacional que relaciona esses contextos.
Mais adiante, quando a escola foi moldada como instituição pública,
permaneceu essa noção de responsabilidade local e familiar pela formação. A
ideia de que as escolas agiam in loco parentis, reforçada por estruturas
políticas que sustentavam o controle da comunidade sobre o processo escolar,
situou o aprendiz em uma relação com necessidades imediatas e familiares de
aprendizagem: necessidades de identidade, afiliação, cidadania e papéis de
trabalho que respondiam a um contexto próximo. Mesmo em sistemas es-
colares públicos centralizados e nacionalizados, a mesma dinâmica pode ser
encontrada. Invocada em um nível diferente: as políticas impõem conformidade
e identificação com uma tradição nacional, uma comunidade maior e um
contexto mais amplo de cidadania e responsabilidade social, mas, ainda assim.
no qual as condições de afiliação baseiam-se na proximidade e
homogeneidade relativa (embora, nesse caso, brechas entre o local e o
nacional possam se abrir — e ainda o fazem).
As implicações desse processo educacional, especificamente à medida
que ele se torna uma preocupação pública, vão além do objetivo de
desenvolver o self individual. Como a economia da educação nos diz, a
educação do público tem custos e benefícios para a sociedade mais ampla e,
assim, não é apenas uma despesa, mas um investimento. Dessa forma, as
implicações políticas da educação superam as condições de um indivíduo a ser
educado e constituem um conjunto estratégico de decisões que afetam a
sociedade maior, de onde vem à importância da educação como política
pública e o papel do Estado (ver Raymond Morrow e Carlos Torres, neste
volume).
Este processo dialético de formar o indivíduo como um self e um membro
de uma comunidade mais ampla acarreta, como uma premissa da tradição
ocidental, a necessidade de preservar os tesouros da civilização dentro do pro-
cesso de socialização dos membros de cada geração nova, tornando-se um
imperativo ainda maior à medida que o Estado-nação se torna o lugar, cercado
por fronteiras, onde o processo pedagógico é governado. Os sistemas
organizados de educação operam sob a égide de um Estado-nação que
controla, regula, coordena, comanda, financia e certifica o processo de ensino
e aprendizagem. Não é de surpreender que um dos principais propósitos de um
sistema educacional projetado dessa forma seja criar um cidadão leal e
competente.
https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcS4NmXF7_U91o2SIR7c0DScwe8cXfOKqo6bOaopu6-
NhPhuSTg5
A questão que enfrentamos agora é: até que ponto o esforço educacional
é afetado por processos de globalização que ameaçam a autonomia de
sistemas educacionais nacionais e a soberania do Estado como regente
soberano em sociedades democráticas? Ao mesmo tempo, de que maneira a
globalização está mudando as condições fundamentais de um sistema educa-
cional que tem por premissa integrar-se em uma comunidade caracterizada
pela proximidade e a familiaridade? As origens, natureza e dinâmica do
processo de globalização são, portanto, um foco de preocupação para os
filósofos educacionais, sociólogos, aqueles que desenvolvem o currículo,
professores, legisladores, políticos, pais e muitos outros envolvidos com o
esforço educacional. Os processos de globalização, seja como forem definidos,
parecem ter consequências sérias na transformação do ensino e da
aprendizagem, pois estes têm sido compreendidos dentro do contexto de
práticas educacionais e políticas públicas que possuem um caráter altamente
nacional.
Muitas outras questões reaparecem nessas reflexões. Como podemos
definir a globalização? A globalização é "real" ou será ela simplesmente uma
ideologia? Se a globalização for uma tendência inexorável, como isso afeta a
economia política dos países e, assim, sua cultura e educação? De que
maneira ações no sentido de uma reestruturação econômica estão afetando
sistemas educacionais ao redor do mundo? Existe uma organização e agenda
educacional internacional que possa criar outra hegemonia em currículo,
instrução e práticas pedagógicas, de um modo geral, assim como em políticas
que dizem respeito ao financiamento escolar, pesquisa e avaliação? Será que
esses fatores e resultados são simétricos e homogêneos em suas implicações
para todos os países e regiões? De que maneira a globalização está
relacionada com o processo contínuo de luta política em diferentes
sociedades? Essas são algumas das questões centrais que os autores que
colaboraram com este livro buscaram responder.
REESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA E A TENDÊNCIA PARA A
GLOBALIZAÇÃO
De maneira a capturar a essência da ação
social, devemos reconhecer a cumplicidade ontoló-
gica, conforme sugeriram Heidegger e Merleau-
Ponty, entre o agente (que não é um sujeito ou uma
consciência e nem o mero executante de um papel
ou aquele que cumpre urna função) e o mundo
social (que nunca é uma simples "coisa", mesmo
que deva ser construído desta forma na fase
objetivista da pesquisa). A realidade social existe,
por assim dizer, duas vezes, em coisas e em
mentes, fora e dentro dos agentes.
Os padrões de reestruturação econômica global, que emergiram no final
da década de 1970, desenvolveram-se juntamente com a implementação de
políticas neoliberais em muitas nações. Naquela época, as administrações
capitalistas estavam em apuros, no que diz respeito aos lucros, com os
trabalhadores lutando para manter o salário alto e os concorrentes estrangeiros
pressionando para reduzir os preços. À medida que a economia esfriava, as
rendas estatais não conseguiam cumprir com os gastos sociais, e os
contribuintes começavam a expressar um certo ressentimento para com
aqueles que se beneficiavam mais da renda estatal (a burocracia estatal,
beneficiários da previdência social, instituições que recebiam subsídios esta-
tais, e assim por diante). Isso levou a um rompimento do consenso em torno da
viabilidade e valor do Estado de bem-estar social. O Estado afastou-se de seu
papel corno árbitro entre o trabalho e o capital, aliando-se ao capital e forçando
os trabalhadores adotar uma postura defensiva
http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/Image/noticias/educacao/educacao_paulo_freire.jpg
A reestruturação econômica refletiu urna tendência mundial caracterizada,
no mínimo, pelos seguintes elementos:
1. A globalização da economia no contexto de urna nova divisão
internacional do trabalho e a integração econômica de economias
nacionais (corno os mercados comuns emergentes e os acordos
comerciais);
2. O surgimento de novas relações e acordos comerciais entre nações, e
entre classes e setores sociais dentro de cada país, e o surgimento de
novas áreas, especialmente em países desenvolvidos, onde a
informação e os serviços têm-se tornado mais importantes que o setor
industrial;
3. A crescente internacionalização do comércio, refletida na crescente
capacidade de conectar mercados de forma imediata e de transferir
capital através de fronteiras nacionais (atualmente, 600 importantes
empresas multinacionais controlam 25% da economia mundial e 80%
do comércio mundial);
4. A reestruturação do mercado de trabalho, com o salário fixo sendo
substituído em muitos cenários por remuneração por trabalhos
realizados, e o poder dos sindicatos enfraquecido pelo relaxamento ou
pela falta de cumprimento da legislação trabalhista;
5. A redução de conflitos entre capital e trabalho, principalmente devido a
fatores como o aumento do número de trabalhadores excedentes
(desempregados ou subempregados), a intensificação da competição;
a redução da margem de lucro, menos contratos de trabalho com
proteção da legislação trabalhista e a institucionalização de estratégias
segundo o "conceito de equipe";
6. A mudança de um modelo de produção fordista rígido para um modelo
baseado na flexibilidade maior no uso da força de trabalho, na prescri-
ção do trabalho, nos processos de trabalho e mercados de trabalho, na
redução de custos e na maior velocidade em transferência de produtos
e informações de um local do globo para outro;
7. A ascensão de novas forças de produção, com a indústria mudando de
um modelo industrial mecânico para um modelo governado pelo
microchip, pela robótica, e por máquinas automáticas e auto
reguladoras, o que, por sua vez, levou ao surgimento de uma
sociedade de informação high- tech baseada no computador;
8. A crescente importância da produção intensiva de capital, que resulta na
desespecialização e no desemprego de grandes setores da força de
trabalho, situação esta que leva a um mercado de trabalho polarizado,
composto de um pequeno setor altamente especializado e bem
remunerado, por um lado, e um grande setor pouco especializado e
mal remunerado, por outro;
9. O aumento da proporção de empregados avulsos e do sexo feminino,
muitos dos quais trabalham atualmente em seus lares;
10. O aumento no tamanho e importância do setor de serviços, às custas
dos setores primário e secundário; e
11. O crescente abismo financeiro, tecnológico e cultural entre os países
mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos, sendo a única exceção
os países "recém-industrializados".
http://perlbal.hi-pi.com/blog-images/1414896/mn/136028398897.jpg
A reestruturação econômica também refletiu uma profunda crise fiscal, e
as reduções orçamentárias que afetam o setor público resultaram na redução
do Estado de bem- estar social e na crescente privatização dos serviços
sociais, de saúde, habitação e da educação. Verifica-se uma reestruturação da
relação Estado/trabalhador, de modo que o salário social (gastos públicos
distribuídos na forma de benefícios sociais) diminui às custas de salários
individuais. Como resultado disso, a sociedade foi segmentada em dois
setores: um protegido ou incluído pelo Estado, e outro desprotegido e excluído.
A reestruturação econômica levou a um modelo de exclusão que deixa de fora
setores amplos da população, particularmente as mulheres que vivem na
pobreza em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Esses elementos de reestruturação econômica têm ocorrido de forma
concomitante com a tendência para a globalização. De modo contrário à
previsão de Marx e Engels, a globalização da economia produziu uma
unificação do capital em escala mundial, enquanto trabalhadores e outros
grupos subordinados tornam- se mais fragmentados e divididos. De fato, a
reestruturação neoliberal está operando através da dinâmica impessoal da
competição capitalista em um mercado comum que é progressivamente
desregulado, aumentando o impacto local das tendências globais. Os Estados
torram-se cada vez mais internacionalizados, no sentido de que suas agências
e políticas ajustam-se aos ritmos da nova ordem mundial.
Conforme afirmamos, a reestruturação econômica levou a uma crescente
proletarização e desespecialização do emprego. Embora a alta tecnologia seja
apresentada como a solução para muitos problemas econômicos, ela não
contribuiu para elevar o padrão de vida da maioria das pessoas. Mesmo que
alguns empregos estejam sendo criados em indústrias de alta tecnologia,
esses empregos encontram-se principalmente nas áreas burocráticas ou de
montagem, que pagam salários abaixo da média e não exigem muitas
habilidades, ou em empregos que envolvem serviços pessoais. Como não é de
surpreender, a categoria mais importante de criação de empregos nos Estados
Unidos na última década foi o campo dos serviços pessoais, incluindo
categorias de empregos tão variadas quanto instrutores de ginástica e de
saúde até serviços de segurança privada.
Outra mudança evidente é que, com a implementação de políticas
neoliberais, o Estado demitiu-se de sua responsabilidade de administrar os
recursos públicos para promover a justiça social, a qual está sendo substituída
por uma fé cega no mercado (por exemplo, nos apelos por mais privatizações
de escolas, por "escolhas" e vales) e pela esperança de que o crescimento
econômico gere um excedente para ajudar o pobre, ou que a caridade privada
assuma aquilo que os programas estatais deixam de fora. Apesar dos apelos
da direita para desmantelar ou reduzir o tamanho do Estado, observadores
céticos da redução estatal afirmam que a principal questão não é o tamanho do
Estado, ou os seus gastos, mas a forma de suas intervenções e investimentos,
seja para promover o bem-estar e a igualdade, por um lado, seja para subsidiar
o crescimento de empresas por meio de incentivos fiscais ou por meio da
rubrica dos "gastos militares", por outro. O Estado neoliberal, particularmente
nas sociedades mais desenvolvidas, e nos países em desenvolvimento que
lutam para imitá-las, caracteriza-se por reduções drásticas em gastos sociais,
pela destruição desenfreada do ambiente, por revisões regressivas do sistema
fiscal, limites frouxos para crescimento empresarial, ataques amplos contra o
trabalho organizado e mais gastos com "infraestrutura" militar.
http://www.educacaoeciencia.net.br/site_on/images/fotos/Jovem2.png
As empresas estão se tornando tão poderosas que muitas estão criando
programas educacionais pós-secundários e vocacionais próprios. A Burger
King abriu "academias" em 14 cidades norte-americanas, e a IBM e a Apple
estão contemplando a ideia de abrir escolas devido ao lucro que estas
produzem. A Whittle Communications (uma empresa cujos principais
proprietários são a Time Warner e a British Associated Newspapers) não
apenas fornece antenas parabólicas e aparelhos de televisão em troca de
publicidade para mais de 10 mil escolas (o projeto Channel One), como
também está planejando abrir mil escolas com fins lucrativos para atender a 2
milhões de crianças dentro dos próximos dez anos» Além disso, as empresas
norte-americanas gastam aproximadamente 40 bilhões de dólares a cada ano,
aproximando-se dos gastos anuais totais de todas as faculdades e
universidades de graduação e pós-graduação, para treinar e educar seus
funcionários atuais. Já em meados da década de 1980, a Bell and Howell tinha
30 mil estudantes em sua rede de ensino pós-secundário e a ITT possuía 25
instituições pós-secundárias." Diz-se que a AT&T sozinha realiza mais funções
de educação e formação do que qualquer universidade no mundo.
Esse processo de privatizar a educação está ocorrendo no contexto de
novas relações e arranjos entre nações, caracterizado por uma nova divisão
global do trabalho, uma integração econômica de economias nacionais
(mercados comuns de livre-comércio e assim por diante), a crescente
concentração do poder em organizações supranacionais (como o Banco
Mundial, o FMI, a ONU, a União Europeia e o G-7), e aquilo que chamamos de
"internacionalização" do Estado.
A mobilidade do capital dá aos capitalistas, particularmente aos
especuladores financeiros, uma grande vantagem sobre o Estado, por si só um
produto da revolução industrial e não equipado, de muitas maneiras, para lidar
com as demandas básicas do mundo pós- industrial. A especulação com
moedas nacionais e a profecia autorrealizável da legitimidade do "crédito"
internacional contribuíram para a formação de um terreno movediço para os
países que tentam colocar em ordem sua economia. Os dias que precederam a
preparação deste livro presenciaram crises sérias na Rússia, nas Filipinas, na
Malásia e em outras economias emergentes da Ásia, que repentinamente
perceberam que as regras do jogo econômico global estavam mudando
enquanto tentavam jogar de acordo com elas.
Conforme afirmou Korten, a influência empresarial sobre o Estado é
exercida de forma indireta, por meio de liderança intelectual, incutindo nos
legisladores um novo conjunto de valores e impondo limites sobre a variedade
de opções do Estado, o que representa uma estratégia mais eficaz para mudar
prioridades políticas do que a ameaça explícita de sanções punitivas. Esses
novos valores, habilmente refletidos nas agendas neoconservadora e neoliberal
(ver Michael W. Apple, neste volume), promovem menos intervenções estatais
e maior confiança no mercado livre, e ainda mais atrativos para auto interesses
individuais do que para direitos coletivos. David Held afirma que "a
internacionalização da produção, das finanças e de outros recursos
econômicos está inquestionavelmente erodindo a capacidade de qualquer
Estado individual de controlar o seu futuro econômico. Empresas
multinacionais podem ter uma base nacional clara, mas seu interesse está,
acima de tudo, na lucratividade global. O país de origem interessa pouco para
a estratégia empresarial". De maneira clara, a crescente integração da
economia direciona-se rumo a um mundo sem fronteiras e proporciona evidên-
cias consideráveis da redução da capacidade dos governos nacionais
controlarem as suas economias ou definirem seus objetivos econômicos
nacionais.
https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSp46QT_gNO1u_ja2bd7-
ViQvxgO3YZCn_lENXeluNr5pKjEmsv
Em resumo, existem mudanças nos níveis econômicos, político e cultural
da sociedade, as quais tendem a promover e reforçar uma perspectiva mais
global sobre as políticas sociais. No nível econômico, esses fatores incluem
mudanças em relações comerciais (grupos como o GATT, ou o G-7, que
promovem a redução de impostos de importação, tarifas e normas; e a
formação de zonas de "livre-comércio", como o NAFTA ou a União Europeia);
mudanças em processos bancários e de crédito (sistemas de crédito mundiais
como o Visa, caixas eletrônicos, câmbio e fluxo de capital e mercados
financeiros que são realmente globalizados); a presença de agências de
financiamento internacionais (como o FMI e o Banco Mundial); mudanças nos
fatores da produção que levaram à ascensão de novas indústrias "pós-
fordistas" (a economia do conhecimento, o setor de serviços, as indústrias
turísticas e culturais); a presença de corporações globais que não sejam
ligadas (ou leais) a qualquer base ou fronteira nacional; a mobilidade da mão-
de-obra e a mobilidade de companhias que colocaram os sindicatos na
defensiva; novas tecnologias (para transmissão de dados, capital e pu-
blicidade); e novos padrões de consumo (às vezes chamado de
"McDonaldização" do sabor — rápido, padronizado e orientado para a conve-
niência antes da qualidade), juntamente com novas estratégias de publicidade
e marketing que promovem aquilo que George Ritzer chama de "meios de
consumo" (shopping centers, canais de compras, compras on-line e crédito
fácil).
Em nível político, o Estado-nação sobrevive como uma instituição medial,
longe daqueles que são impotentes, mas limitado por tentar equilibrar quatro
imperativos: (1) respostas ao capital transnacional; (2) respostas a estruturas
políticas globais (por exemplo, a Organização das Nações Unidas) e outras
organizações não-governamentais; (3) respostas a pressões e demandas
domésticas, de modo a manter a própria legitimidade política;'B e (4) respostas
a suas necessidades e seus interesses internos. A maioria das iniciativas
políticas, incluindo políticas educacionais, é formada na matriz dessas quatro
pressões, centrada no Estado-nação, não mais concebido como um agente
soberano, mas como um árbitro que busca equilibrar uma variedade de
limitações e pressões internas e externas. Fatores econômicos, como a dívida
externa, a crise fiscal do Estado, ou a criação de entidades regionais como a
União Europeia, apresentam profundas implicações políticas e econômicas.
Nesse contexto, as pressões sobre o Estado-nação estimularam uma questão
de teoria política que perdura há muito tempo: será o Estado uma esfera
pluralista para a disputa de grupos de interesses rivais, ou um terreno não-
neutro, refletindo um conjunto de limitações e preocupações que atribuem um
peso especial às demandas de interesses sociais específicos? Fica claro para
nós que tem ocorrido uma mudança pronunciada com relação a essa questão,
indo além de visões puramente estatizantes da política, para incluir um foco em
novos terrenos de contestação política, em novos atores políticos, como em
movimentos sociais globais (aquilo e Falk chama de "globalização de baixo
para cima"), e a constituição daquelas que são, com feito, sociedades civis
transnacionais.
http://www.unilab.edu.br/wp-content/uploads/2014/07/sala-alunos-estudando-concetracao-1.jpg
Finalmente, em termos culturais, mudanças nos meios de comunicação
globais (TV a cabo, satélites, CNN, Internet); cultura comercial (McDonald's,
Nike, cores da Benneton); maior mobilidade, com setores de viagens turismo
bastante ampliados; mudanças em tecnologias de comunicações; distribuição
mundial de filmes, televisão e produtos musicais; maior presença e visibilidade
de religiões globais que mudam rituais locais, transformando-os em rituais
transnacionais; ou o mundo global dos esportes, tanto com relação a eventos
competitivos (e espetáculos), como as Olimpíadas ou a Copa do Mundo, como
também, de maneira significativa, com relação ao marketing esportivo
(vestuário, tênis, equipamentos), patrocínio/publicidade, e apostas e loterias
globais, todos mostram os desafios que confrontam as sociedades que buscam
reconciliar seus valores locais e tradicionais com a crescente globalização de
culturas que não as suas.
Apesar dessas mudanças inegáveis, contudo, os efeitos da globalização
às vezes também são exagerados. Qualquer bom observador ou viajante do
mundo irá notar que o chamado “processo de globalização" não é tão global.
Vastos segmentos do mundo permanecem quase intocados por muitas dessas
dinâmicas da globalização. O que temos visto é uma segmentação (mundial)
entre a cultura globalizada — por exemplo, a prevalência de um habitus urbano
e cosmopolita — e o resto do mundo, que enxerga poucos dos benefícios (até
onde eles existem) do acesso ao mercado global ou a culturas cosmopolitas.
Da mesma forma, como observado anteriormente, a asserção de algo
chamado "globalização" frequentemente é usada para reforçar a sua
"inevitabilidade" e, dessa forma, para suprimir tentativas de resistir a ela, e,
mesmo assim, muitas tentativas de contrabalançar os processos de
globalização estão ocorrendo ao redor do mundo, como nos campos da eco-
logia e do gerenciamento de recursos.
http://1.bp.blogspot.com/-
gq6hR6qxYdU/Ulp9fFLEfeI/AAAAAAAATUE/ZrTKOUV6Ls4/s1600/educa%25C3%25A7aoemfoco.png
QUESTÕES CRÍTICAS
http://www.amplitudenet.pt/images/editorials/educacao-escola-virtual.jpg
O conhecimento em si não conquista a incerteza, mas produz incertezas
com as quais ninguém jamais teve a experiência histórica de lidar.
Embora a forma e direção gerais das mudanças recém-mencionadas não
sejam mais objeto de disputa, permanecem ainda desacordos consideráveis
com relação à natureza e à extensão dessa coisa chamada "globalização".
Quanto mais aprendemos sobre ela, maiores as incertezas a respeito das suas
consequências. Essas questões se tornam ainda mais desafiadoras, à medida
que avançamos das mudanças amplas com as quais temos lidado para áreas
específicas de política e prática, como a educação. Reunimos aqui diversas
questões críticas que, conforme nos lembra Giddens, refletem as novas
incertezas que as discussões sobre a globalização trouxeram à luz.
Quais são as origens da globalização? Teoricamente, um dilema
central é se devemos localizar as origens da globalização contemporânea em
torno de 1971-1973, com a crise do petróleo, que promoveu diversas
mudanças tecnológicas e econômicas direcionadas para encontrar fontes
substitutas para matérias-primas estratégicas e buscar novas formas de
produção que consumissem menos energia e trabalho. De maneira alternativa,
como fizeram alguns autores deste livro, podemos localizar as origens da
globalização há mais de um século, com mudanças nas tecnologias de
comunicação, nos padrões de migração e nos fluxos de capital (por exemplo,
como aqueles afetados pelo processo de colonização do Terceiro Mundo).
Uma questão importante para muitos observadores é se estamos
enfrentando uma nova época histórica, a configuração de um novo sistema
mundial, ou se essas mudanças são significativas, mas não sem precedentes,
com paralelos, por exemplo, nas mudanças semelhantes que ocorreram no
final da Idade Média. Nossa visão sobre esse tema, todavia, não é uma
questão de escolher entre uma ou outra opção. Estamos em uma nova época
histórica, uma nova ordem global, em que as velhas formas não estão mortas,
mas as novas ainda não estão inteiramente formadas. David Held sugere em
Democracy and global order, por exemplo, que estamos em uma nova "Idade
Média global", um período que reflete que, apesar de ainda terem vitalidade, os
Estados- nação não podem controlar suas fronteiras e, portanto, estão sujeitos
a todo o tipo de pressões internas e externas.
Além disso, mesmo que essa nova ordem global mostre o fim da
soberania do Estado- nação, essa situação apresenta impactos diferenciais, de
acordo com a sua posição na ordem mundial: Estados unificados em alianças
regionais, como o NAFTA e a União Europeia; Estados emergentes ou
intermediários, como o Brasil, a Coréia, a Índia e a China; Estados menos
desenvolvidos, como a Argentina, a Hungria, o Chile e a África do Sul; Estados
em desenvolvimento, incluindo muitos na América Latina, Ásia e África; e
Estados subdesenvolvidos, em um estado de dependência extrema, como o
Haiti, alguns Estados da América Central, Moçambique, Angola e Albânia. O
impacto e o significado da "globalização" não apenas são duvidosos, como
também podem operar de maneira diferente em várias partes do mundo e, em
certos contextos, ter pouco impacto. Aqui, mais uma vez, a globalização, em si,
não é um fenômeno unificado e global.
Assim, apesar de a globalização poder refletir um conjunto de mudanças
tecnológicas, econômicas e culturais bastante definidas, a forma de sua
importância e suas tendências futuras não estão determinadas. Conforme
observamos, a especificidade histórica desse processo não garante
necessariamente um impacto simétrico e homogêneo ao redor do mundo. Essa
narrativa da globalização é bastante diferente da narrativa neoliberal, um
discurso que tira vantagem dos processos históricos de globalização para
valorizar certas receitas econômicas sobre como operar a economia (através
do livre-comércio, des- regulamentação, e assim por diante) — e, por im-
plicação, receitas sobre como transformar a educação, a política e a cultura.
Além das narrativas dicotômicas sobre a globalização. Certas dualidades
são recorrentes na literatura a respeito deste tema. Em uma distinção de
influência ampla, existem duas forças principais em operação na ascensão da
globalização: a globalização de cima para baixo, um processo que afeta
principalmente as elites dentro e através de contextos nacionais, e a globa-
lização de baixo para cima, um processo popular que fundamentalmente
emerge das organizações de base da sociedade civil. Este contraste ressalta
uma importante dinâmica política (e ajuda a formar uma conveniente e
esperançosa imagem de luta e resistência em escala global), mas o seu uso
disseminado obscurece as formas pelas quais essas duas tendências não são
inteiramente independentes uma da outra. Por exemplo, os grupos "de cima" e
"de baixo" tendem a se fundir em determinadas organizações não-
governamentais; e os movimentos populares "de baixo" ainda podem ser
percebidos, em certos contextos, como uma imposição "de cima".
http://www.folhavitoria.com.br/economia/blogs/gestaoeresultados/files/2013/04/8ARQ-GAF2.jpg
Ainda assim, outras dualidades prevalecem: entre o global e o local; entre
dimensões econômicas e culturais da globalização; entre a globalização, vista
como uma tendência para a homogeneização em torno de normas e culturas
ocidentais (ou, de forma ainda mais limitada, norte-americanas) e vista como
uma era de maior contato entre culturas diversas, levando a um crescimento
em hibridez e novidade; e entre os efeitos materiais e retóricos da globalização
— ou, como pode ser colocado, entre a globalização e a "globalização".
Finalmente, há a questão de se a globalização é uma "coisa boa": será ela um
benefício para a causa do crescimento, da igualdade e da justiça econômica,
ou será prejudicial? Ela promove o compartilhar cultural, a tolerância e um
espírito cosmopolita, ou produz apenas a ilusão dessa compreensão, uma
apreciação consumista imperturbável, como em um parque temático da Disney,
que suprime questões de conflito, diferença e assimetrias de poder?
Para nós, nenhuma dessas questões captura as sutilezas ou dificuldades
dos temas que estão em jogo. Todas elas apontam uma escolha fácil entre
alternativas polares, tipos "bons" e "ruins" de globalização, em vez de uma
situação conflituosa de tensões prolongadas e escolhas difíceis. Uma
reconsideração ou, em muitos casos, um desafio direto a esse tipo de
dicotomia simples irá aparecer seguidamente em todo o livro. Consideramos
que isto é central para compreender a globalização em toda a sua
complexidade e ambiguidade.
Quais são as características cruciais da globalização? À luz de muitos
desses debates, pode ser extremamente arriscado estabelecer uma descrição
das características da globalização que afetam a educação de forma mais
rigorosa, mas elas parecem envolver, pelo menos:
• em termos econômicos, uma transição de formas fordistas a pós-
fordistas de organização do local de trabalho; um aumento na publicidade nos
padrões de consumo internacionalizados; uma redução de barreiras ao fluxo
livre de mercadorias, trabalhadores e investimentos entre fronteiras nacionais;
e, consequentemente, novas pressões sobre os papéis do trabalhador e do
consumidor na sociedade;
• em termos políticos, urna certa perda da soberania do Estado-nação ou,
pelo menos, a erosão da autonomia nacional e, consequentemente, um
enfraquecimento da noção de "cidadão" como um conceito unificado e
unificante, um conceito que possa ser caracterizado por papéis, direitos,
obrigações e status precisos (ver Capella, neste volume);
• em termos culturais, uma tensão entre as maneiras como a globalização
produz mais padronização e homogeneidade cultural, enquanto também
produz mais fragmentação com a ascensão de movimentos locais. Benjamin
Barber caracterizou essa dicotomia no título de seu livro, Jihad vs. McWorld;
contudo, uma terceira alternativa teórica identifica uma situação mais
conflituosa e dialética, com a homogeneidade e a heterogeneidade culturais
aparecendo de maneira simultânea no cenário da cultura. (Às vezes, essa
fusão, e tensão dialética, entre o global e o local é denominada "o global".)
GLOBALIZAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E A EDUCAÇÃO
http://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2013/09/educacao-ilustracao-desenho-material-escolar-%C2%A9-
cienpiesnf-Fotolia.jpg
Em termos educacionais, existe uma compreensão crescente de que a
versão neoliberal da globalização, particularmente da forma implementada (e
ideologicamente defendida) por organizações bilaterais, multilaterais e
internacionais, reflete-se em uma agenda educacional que privilegia, se não
impõe de modo direto, certas políticas de avaliação, financiamento, padrões,
formação de professores, currículo, instrução e testes. Diante dessas pressões,
são necessários mais estudos sobre as respostas locais para defender a
educação pública contra a introdução de mecanismos de mercado para regular
as trocas educacionais e outras políticas que busquem reduzir o patrocínio e o
financiamento estatal e impor modelos de administração e eficiência
emprestados do setor empresarial como um arcabouço para a tomada de
decisões envolvendo a educação. Essas respostas educacionais são
conduzidas principalmente pelos sindicatos de professores, pelos novos
movimentos sociais e por intelectuais críticos, expressadas com frequência em
oposição a iniciativas em educação, tais como os vales, ou subsídios públicos
para escolas privadas e paroquiais.
Isso apresenta um problema peculiar para análise. Devido ao fato de que
as relações entre o Estado e a educação variam de forma tão dramática de
acordo com a época histórica, as áreas geográficas, os tipos de governo e as
formas de representação política, e entre as diferentes demandas de diferentes
níveis educacionais (fundamental, secundário, educação superior, de adultos,
continuada e educação não- formal), qualquer alteração drástica nas formas de
governança (por exemplo, a instalação de uma ditadura militar que governe por
vários anos antes de permitir a volta da democracia) pode ter múltiplos efeitos
complexos e imprevisíveis sobre a educação. Essa situação exige uma análise
histórica mais matizada a respeito da relação entre o Estado e a educação.
Essa problemática é dificultada ainda mais pela tendência que discutimos
anteriormente: a erosão da autonomia do Estado em tudo o que é importante,
inclusive em questões que dizem respeito às políticas educacionais.
Por exemplo, consideremos brevemente a situação na América Latina.
Desde o momento em que as guerras civis terminaram, há mais de um século
e meio (culminando no processo de organização nacional da década de 1880),
os sistemas educacionais foram criados juntamente com o estabelecimento das
fronteiras dos países. A constituição de Estados-nação incluiu a criação de
fortes exércitos e a promulgação de constituições nacionais baseadas nos
princípios da Carta Magna britânica, da Revolução Norte- Americana e da
Revolução Francesa, e assim expressam uma fundamentação fortemente li-
beral. Dessa forma, pelo menos três formações estatais predominaram na
experiência latino- americana durante o último século e meio. (As exceções a
isso foram, é claro, períodos de intervenção militar, ditaduras militares e revo-
luções que costumam alterar a forma democrática liberal do Estado.) Essas
três formas do Estado incluíram o Estado liberal, promovendo a educação
liberal (digamos, da década de 1880 até a crise de 1929 em certos países, ou
até a Segunda Guerra Mundial na maioria dos países); o Estado
desenvolvimentista (da década de 1950 até a de 1980), em que houve um pa-
drão consistente de modernização (embora, às vezes, modernização "forçada"
por regimes autoritários), com um papel central desempenhado por reformas
educacionais baseadas no modelo do capital humano; e a constituição de
diferentes formas de estado neoliberal e políticas educacionais neoliberais.
https://salaaberta.files.wordpress.com/2014/08/desafio-ashoka-claro.jpg
Em síntese, a partir de uma perspectiva histórica, essa conexão complexa
entre a educação e o Estado apresenta um problema para a análise da relação
entre eles. Não existe uma forma única de associação entre essas instituições,
e assim não existe um modo único em que elas serão afetadas pelas
condições da globalização. Do ponto de vista econômico, as pressões das
condições de austeridade impostas externamente (por exemplo, a condição
para empréstimos do FMI) podem levar a reduções brutais nos gastos com
educação; em outros contextos, o desejo por maior competitividade econômica
e produtividade pode levar a maiores gastos com educação. Do ponto de vista
político, alguns contextos nacionais irão organizar a educação em torno de uma
concepção revitalizada de nacionalismo e lealdade do cidadão (talvez em
reação às lealdades tribais ou outras formas de lealdade); em outros contextos,
uma noção de cidadania cosmopolita pode prevalecer, encorajando viagens,
estudos de línguas estrangeiras e tolerância multicultural. Do ponto de vista
cultural, algumas nações irão aceitar, e até mesmo encorajar, uma confiança
maior na mídia, na cultura popular, ou novas formas de comunicação e
informática, como uma janela através da qual possam compreender o seu lugar
no mundo global; em outros contextos, essas mesmas tendências darão lugar
a um aumento em estreiteza mental, suspeição e resistência a influências
externas. Um livro como este pode apenas dar início ao processo de explorar a
diversidade desse tipo de respostas à globalização, por meio de contextos
nacionais variados, e a diversidade de relações entre o Estado e a educação,
que geram princípios, políticas e práticas educacionais à luz dessas novas
condições.
OS DILEMAS DA GLOBALIZAÇÃO
http://undime.org.br/wp-content/uploads/2012/12/014.jpg
Será que a globalização é meramente deletéria, ou existem
características positivas associadas a suas práticas e sua dinâmica? Já
tentamos desafiar essa estrutura simples de julgamento. Duas características
que podem ser denominadas "positivas" são a globalização da democracia ou,
no mínimo, uma forma peculiar de democracia liberal (mais uma democracia de
método do que uma democracia de conteúdo); e a prevalência e expansão de
uma crença em "direitos humanos" e no crescimento de organizações que os
tentam monitorar e proteger. Para aqueles que têm suficiente sorte de viver em
certos setores da sociedade, a globalização está associada a um padrão de
vida mais elevado, não apenas pela disponibilidade de itens de consumo, mas
também pelas ocasiões para viajar e para manter um contato enriquecedor
com outras culturas do mundo.
Os "males" mais óbvios da globalização são o desemprego estrutural, a
erosão da mão-de-obra organizada como força política e econômica, a
exclusão social e um aumento no abismo entre ricos e pobres dentro das
nações e, especialmente, ao redor do mundo. Certas pessoas associam a
globalização a um aumento na insegurança urbana, devido à progressiva
violência urbana, com a presença crescente de movimentos de fora do território
e de fora do Estado que impedem o desenvolvimento internacional e podem
representar ameaças sérias contra a segurança, a paz, a estabilidade e o
desenvolvimento (como o tráfico de drogas, máfias, comércio de armas de
destruição em massa, ou organizações terroristas).
Mas será que é possível separar os benefícios dos males? De fato, não
serão os "benefícios" para uns, "males", do ponto de vista de outros? De certa
forma, o modelo para esse tipo de julgamento não deve ser simplesmente uma
questão de se a globalização está ou não "acontecendo mesmo", mas da
globaliza- cão de que formas e nos termos de quem? Diversos países em
desenvolvimento, como a China e a Malásia, têm-se tornado cada vez mais
receosos com a globalização e têm buscado formas de restringir os seus
efeitos sobre seu modo de vida nacional. Ainda assim, ao mesmo tempo, eles
desejam alguns dos benefícios da participação em uma economia global e da
troca de mercadorias e de informação. Uma importante questão atual é o nível
em que as sociedades serão capazes de escolher as formas e o grau de
participação em um mundo global; ou se, como outras barganhas faustianas,
não existe uma alternativa intermediária.
De maneira semelhante, abaixo e além do nível nacional, existem
movimentos claramente regionais e tradicionais para os quais a globalização
deve ser combatida vigorosamente. 0 surgimento de novos movimentos sociais
e o papel de organizações não-governamentais locais e internacionais exercem
uma influência que pode ser denominada contra-globalização. Em certos
casos, esses grupos são igualmente "globais" em caráter (organizações
internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional; organizações
ambientalistas, como o Greenpeace; ou organizações trabalhistas, como a
OIT). Em outros casos, eles são antiglobalização, profundamente resistentes à
interpenetração econômica, política e cultural de diferentes sociedades e
culturas (por exemplo, grupos regionalistas e fundamentalistas de vários tipos).
Enquanto a globalização acontece de maneira clara, sua forma e contorno são
determinados por padrões de resistência, alguns com intenções mais
progressistas do que outros.
http://www.sescalagoas.com.br/educacao/sesc_jaragua6.jpg
Será possível, então, dar respostas gerais para a questão de como a
globalização está afetando as políticas e práticas educacionais ao redor do
mundo? Conforme indicado em nossa discussão anterior, acreditamos que não
pode haver uma resposta única; as mudanças econômicas, políticas e
culturais, nacionais e locais, são afetadas por tendências de globalização em
uma variedade de padrões e respondem de forma ativa a essas tendências. De
fato, como a educação é uma das arenas centrais onde essas adaptações e
respostas ocorrem, ela será um dos tantos contextos institucionais possíveis.
Assim, as respostas exigirão uma análise cuidadosa das tendências em
educação, incluindo:
• as atuais "palavras de efeito" populares (privatização, escolha e
descentralização de sistemas educacionais) que dirigem a formação
de políticas em educação e agendas de pesquisa baseadas em
teorias de administração e organização racional (ver Michael Peters,
James Marshall e Patrick Fitzsimons neste volume);
• o papel de organizações nacionais e internacionais no campo da
educação, incluindo sindicatos de professores, organizações de pais
e movimentos sociais (ver Bob Lingard neste volume);
• o conhecimento contemporâneo sobre as questões de raça, classe e
gênero, e sobre o lugar do Estado na educação (o que levanta
preocupações com o multiculturalismo e a questão da identidade na
educação, teoria crítica de raça, feminismo, pós-colonialismo, co-
munidades diaspóricas e novos movimentos sociais).
Questões quanto ao papel da pesquisa- ação participativa, da educação
popular e da luta democrática multicultural surgem como centrais nesses
debates. Dessas perspectivas críticas, podem surgir novos modelos educa-
cionais para confrontar os ventos da mudança, incluindo a educação no
contexto de novas culturas populares e movimentos sociais não- tradicionais (e
assim, o papel dos estudos culturais para compreendê-los); novos modelos de
educação rural para áreas marginalizadas e a educação do pobre; novos
modelos para a educação de imigrantes, para a educação de crianças de rua,
para a educação de garotas e mulheres, em geral, mas particularmente no
contexto de sociedades e culturas tradicionais que suprimem as aspirações
educacionais das mulheres; novos modelos de parcerias para a educação
(entre o Estado, as ONGs, o terceiro setor e, em certos casos, as organizações
religiosas e privadas); novos modelos de alfabetização de adultos e educação
não-formal; novos modelos de relações entre universidades e empresas; e
novos modelos de financiamento educacional e organização escolar (por exem-
plo, escolas charter°).
Certas iniciativas de reforma têm sido apoiadas ativamente pela UNESCO
e por outras agências da ONU. Entre estas estão, por exemplo, reformas no
sentido da alfabetização universal e do acesso universal à educação; qualidade
educacional como um componente fundamental da igualdade; educação- para
a vida toda; educação como um direito humano; educação para a paz, a
tolerância e democracia; eco-pedagogia, ou como a educação pode contribuir
para o desenvolvimento ecológico sustentável (e assim, para uma eco-
economia); e o acesso educacional a novas tecnologias de informação e
comunicação (ver Nicholas C. Burbules, neste volume). Assim. pode-se
considerar que a influência da globalização sobre as políticas e práticas
educacionais tem efeitos múltiplos e conflitantes. Nem todos esses efeitos
podem ser classificados simplesmente como sendo ou não benéficos, e alguns
deles estão sendo moldados por tensões e lutas ativas. Os ensaios
apresentados neste livro iluminam tais dilemas em toda a sua complexidade.
http://dj8xw3uz01vei.cloudfront.net/2013/04/educacao-ideal.jpg
CONCLUSÃO: DILEMAS DE UM SISTEMA DE EDUCAÇÃO GLOBALIZADO
Esperamos que os propósitos deste livro já estejam claros: em primeiro
lugar, identificar, caracterizar e esclarecer alguns dos debates em torno do
fenômeno da globalização; e, em segundo, tentar compreender alguns dos
efeitos múltiplos e complexos da globalização sobre as políticas educacionais e
a formação de políticas. A fim de sintetizar algumas das consequências da
globalização para as políticas educacionais, seguiremos a organização
anterior, dividida em três partes: identificar alguns dos impactos econômicos,
políticos e culturais.
No nível econômico, porque a globalização afeta o emprego, ela afeta um
dos objetivos tradicionais básicos da educação: a preparação para o trabalho.
As escolas deverão reconsiderar essa missão à luz de mercados de trabalho
instáveis, em um ambiente de trabalho pós-fordista; novas habilidades e a
flexibilidade de adaptar-se a novas demandas do trabalho e, portanto, mudar
de emprego durante o decorrer da vida; e lidar com uma mão-de- obra
internacional cada vez mais competitiva. Ainda assim, as escolas não estão
apenas preocupadas em preparar os estudantes como produtores; cada vez
mais, as escolas ajudam a moldar as atitudes e práticas do consumidor,
rajadas pelos patrocínios empresariais instituições educacionais e para
produtos curriculares e extracurriculares que confrontam os estudantes em seu
cotidiano na sala de aula. Essa crescente comercialização do ambiente escolar
tem-se tornado notavelmente impudente e explícita em suas intenções (como
no caso do projeto de Chris Whittle, o Channel One, discutido anteriormente,
que admite abertamente oferecer televisores grátis às escolas para expor as
crianças à dieta forçada de comerciais em suas salas de aula lados os dias).
Os efeitos econômicos mais amplos da globalização tendem a forçar
políticas educacionais nacionais em uma estrutura neoliberal que enfatiza
impostos mais baixos; redução do setor estatal e "fazer mais com menos";
aproximação das abordagens de mercado às escolhas escolares
(particularmente por meio de vales); administração racional de organizações
escolares; avaliação de desempenho (testes); e desregulamentação para
encorajar novos provedores (incluindo provedores on line) de serviços
educacionais.
No nível político, uma questão repetida tem sido a limitação sobre a
formação de políticas nacionais/estatais imposta por demandas externas de
instituições transnacionais. Ainda assim, ao mesmo tempo que a coordenação
e a troca econômica são cada vez mais reguladas, e à medida que instituições
mais fortes surgem para regular a atividade econômica global, com a
globalização tem havido uma crescente internacionalização de conflitos,
crimes, terrorismo e questões ambientais globais, mas com um
desenvolvimento inadequado de instituições políticas para lidar com elas. Aqui,
mais uma vez, as instituições educacionais podem ter um papel crucial a
desempenhar ao abordarem esses problemas e a complexa rede de
consequências humanas voluntárias e involuntárias que se seguiram ao
crescimento de corporações globais, da mobilidade global, das comunicações
globais e da expansão global. Em parte essa consciência pode ajudar a
produzir uma concepção crítica de educação exigida pela "cidadania mundial".
http://www.geraldojose.com.br/ckfinder/userfiles/images/Mais-Educa%C3%A7%C3%A3o.jpg
Finalmente, mudanças globais em cultura afetam profundamente as
políticas, práticas e instituições educacionais. Particularmente em sociedades
industriais avançadas, por exemplo, a questão do "multiculturalismo" assume
um significado especial em um contexto global. De que maneira o discurso do
pluralismo liberal — que tem sido o modelo dominante para a educação
multicultural em sociedades desenvolvidas que estão aprendendo a conviver
com outras, dentro de um modelo de tolerância e respeito mútuos — estende-
se a uma ordem global em que o leque de diferenças torna-se mais amplo, o
senso de interdependência e interesse comum mais atenuado, os fundamentos
da afiliação mais abstratos e indiretos (se existirem de fato)? Com as
crescentes pressões globais sobre as culturas locais, será papel da educação
ajudar a preservá-las? De que maneira a educação deveria preparar os
estudantes para lidarem com elementos de conflitos locais, regionais, nacionais
e transnacionais, à medida que culturas e tradições, cujas histórias de
antagonismo podem ter sido mantidas parcialmente suspensas por Estados-
nação fortes e poderosos, se desintegram, quando essas instituições perdem
um pouco de sua força e legitimidade? Até que ponto a educação pode ajudar
a sustentar a construção do self e, em um nível mais geral, a constituição de
identidades? Como pode o multiculturalismo, como movimento social, como
educação para a cidadania e como filosofia antirracista no currículo intervir na
dinâmica do conflito social que emerge entre as transformações globais e as
respostas locais?
Nesse contexto, por exemplo, os atuais debates sobre o bilinguismo nos
Estados Unidos são surpreendentemente limitados em seu conteúdo teórico e
sua visão política. Em uma perspectiva teórica, realmente não faz sentido lutar
contra o ensino e o aprendizado de diversas línguas; na verdade, os
estudantes necessitam desenvolver ainda mais proficiência do que o simples
bilinguismo. A experiência europeia com jovens que são proficientes em várias
línguas indica que essas habilidades facilitam a comunicação interpessoal,
acadêmica e social, expandem horizontes intelectuais e encorajam a apre-
ciação e a tolerância de culturas diferentes.
Nesse aspecto e em outros, o contexto global apresenta um tipo
fundamentalmente diferente de desafio à educação do que no modelo do
Iluminismo. Ao passo que a educação anteriormente concentrava-se mais nas
necessidades e no desenvolvimento do indivíduo, com um olho voltado para
ajudar a pessoa a se encaixar em uma comunidade definida por uma relativa
proximidade, homogeneidade e familiaridade, a educação para viver em um
mundo global amplia os limites da "comunidade" para além da família, da
região, ou da nação. Atualmente, as comunidades de afiliação potencial são
múltiplas, deslocadas, provisórias e mutáveis. A família, o trabalho e a
cidadania, as principais fontes de identificação na educação do Iluminismo,
permanecem importantes, certamente, mas estão se tornando mais efêmeras,
comprometidas pela mobilidade (seja ela voluntária ou diaspórica) e a
competição com outras fontes de afiliação, inclusive a ampla variedade daquilo
que pode ser chamado, segundo Benedict Anderson, de "comunidades
imaginadas". Enquanto as escolas ou (antes delas) os tutores agiam in loco
parentis, preparando os aprendizes para uma variedade relativamente
previsível de oportunidades e desafios futuros, as escolas de hoje confrontam
uma série de expectativas instantâneas conflitantes e mutáveis, dirigidas para
imprevisíveis caminhos alternativos de desenvolvimento e para pontos de
referência e identificação em constante alteração. Como resultado, objetivos
educacionais que têm mais a ver com a flexibilidade e a adaptabilidade (por
exemplo, em responder a exigências e oportunidades de trabalho que variam
rapidamente), com aprender como coexistir com o outro em espaços públicos
diversos (e, portanto, carregados de conflitos), e com ajudar a formar e
sustentar um senso de identidade que possa permanecer viável dentro de
contextos múltiplos de afiliação, todos se tornam imperativos novos.
http://www.primecursos.com.br/arquivos/uploads/2013/10/gestao-da-educacao-infantil.jpg
Para concluir, acreditamos que a maneira como esses novos imperativos
educacionais são resolvidos em cenários nacionais e culturais depende de dois
importantes conjuntos de questões. O primeiro é se, devido ao menor papel e
influência do Estado-nação em determinar políticas domésticas de forma
unilateral e devido à crise fiscal das receitas públicas na maioria das
sociedades, haverá um declínio correspondente no compromisso do Estado
com as oportunidades e a igualdade educacionais, ou se simplesmente haverá
uma maior virada em direção a modelos de mercado, privatização e livre
escolha, que enxergam o público como consumidores que irão apenas obter a
educação pela qual possam pagar. De maneira mais ampla, será que essas
mudanças produzirão um declínio geral no comprometimento cívico com a
própria educação pública?
A segunda questão fundamental é se os problemas que os sistemas
educacionais experimentam atualmente, os quais não estão todos relacionados
com os processos de globalização, assinalam um dilema decisivo e sentido
mais profundamente em sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento: a
questão da governabilidade diante da crescente diversidade (e uma maior
consciência da diversidade); limites permeáveis e uma explosão em mobilidade
mundial; e meios de comunicação e tecnologias que criam outras condições as
quais moldam a afiliação e a identificação. Qual é o papel da educação para
ajudar a moldar as atitudes, os valores e os entendimentos de um cidadão
democrático multicultural que possa fazer parte deste mundo cada vez mais
cosmopolita?
Pelo menos algumas das manifestações da globalização como processo
histórico chegaram para ficar. Mesmo que o tipo específico de "globalização"
apresentado pela narrativa neoliberal possa ser visto como uma ideologia
utilizada para justificar políticas que servem a determinados interesses e não a
outros, o fato é que parte dessa narrativa baseia-se em mudanças reais (e para
ser justo, oportunidades reais, pelo menos para certas pessoas de sorte). As
maneiras específicas como às pessoas falam a respeito da globalização, hoje
em dia, podem acabar por ser um modismo rápido, mas, como os capítulos
deste livro deixam claro, em um nível mais profundo, algo está mudando nas
áreas da economia, política e cultura, que irá alterar de forma fundamental o
terreno da vida pública e privada. A educação pública, atualmente, encontra-se
em uma encruzilhada. Se permanecer da maneira usual, como se nenhuma
dessas ameaças (e oportunidades) existisse, ela corre o risco de ser cada vez
mais substituída por influências educacionais que não são justificáveis perante
o domínio e o controle público. Segundo a nossa visão, o que está atualmente
em jogo é nada menos do que a sobrevivência da forma democrática de
governo e o papel da educação pública neste empreendimento.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. São Paulo, Paz e Terra, 1995.
BRAGA, Maria Lucia; SILVEIRA, Maria Helena. 2007. O programa diversidade
na universidade e a construção de uma política educacional antirracista.
Brasília : SECAD/UNESCO.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá
outras providências.
———. Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação. CP/DF
Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui as diretrizes curriculares
nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana.
———. Ministério da Educação/Secad. 2004 Diretrizes curriculares nacionais
para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana na educação básica.
CANDAU, Vera (org) 2008. Sociedade, Educação e Cultura(s) 2. ed. Petrópolis
: Vozes.
______. 2001. Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro : DP&A.
CANEN, Ana. 2006. Multiculturalismo e identidade escolar: desafios e
perspectivas para repensar a cultura escolar. In: Cadernos PENESB. Rio de
Janeiro/Niterói, v. 6. p. 35-47.
CARNEIRO, Suely. Gênero,Raça e Ascensão Social, Teoria e Pesquisa –
IFCS, UFERJ, PPICIS/UERJ, Rio de Janeiro 1995.
CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti racismo na educação. São Paulo:
Editora Summus, 2001.
CHAUÍ, M. Ética, Violência e Niilismo. Revista de Filosofia SEAF.Ano III, nº3
set. 2003. SEAF
CUNHA, Luiz Antonio. O ensino profissional na irradiação do industrialismo.
SP: Editora Unesp, 2005.
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?RJ: Rocco, 1986.
DA MOTTA, Luiz Eduardo Pereira. Direito Criado a partir do Conflito. Comum -
Rio de Janeiro - v.6 - nº 17 - p. 54 a 65 - jul./dez. 2001
[http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum17/pdf/direito.pdf.]
D’ AKESKY, Jacques. Antirracismo: liberdade e reconhecimento. Rio de
Janeiro: Daudt, 2006.
___________. Pluralismo Étnico e multiculturalismo. Racismos e antirracismos
no Brasil. Rio de Janeiro : Pallas, 2005
DIAS, L. R. Quantos passos já foram dados? A questão de raça nas leis
educacionais – Maringá: Revista Espaço Acadêmico nº38, julho, 2005 .
DIAS, Jussara; FREIRE, Lucienne;(orgs.) Diversidade - Avanço Conceitual
para a Educação Profissional e o Trabalho – Ensaios e Reflexões ,
Organização Internacional do Trabalho, Brasília, 2002
FIGUEIRA, V. N.. O preconceito Racial na escola. Rio de Janeiro. Cadernos
Cândido Mendes Estudos Afro-Asiáticos, nº 18, Rio de Janeiro, 1990.
GOHN, Maria da Glória. 2004 Teorias dos movimentos sociais, paradigmas
clássicos e contemporâneos. 4. ed. São Paulo : Edições Loyola.
GOMES, N. Lino. 2008 A questão racial na escola: desafios colocados pela
implementação da Lei 10.639/03. In: MOREIRA, A.F.e CANDAU, V.M.
Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis :
Vozes. p. 67-89.
______ (org). 2007 Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais.
Belo Horizonte : Autêntica.
GOMES, H. T. As marcas da escravidão. Editora da UERJ/EDUERJ, Rio de
Janeiro, 1994.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do Instituto da Ação Afirmativa pelo
Direito Constitucional Brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto dos, (Org.). Ações
Afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005.
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade Brasileira. Tendências:
editora Graal, 1982.
GONÇALVES, Luiz Alberto; SILVA, Petronilha Beatriz. 2002 O jogo das
diferenças, o multiculturalismo e seus contextos. 3. ed. Belo Horizonte :
Autêntica.
GUERRA, Marcia. 2008. Lei 10.639: uma experiência de descolonização do
olhar. In: MEC/SETEC. Implementação das diretrizes curriculares para a
educação das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-
brasileira e africana na educação profissional e tecnológica. Brasília:
MEC/SETEC. p. 82-87
GUERTZ, C. A interpretação das Culturas, Editora Guanabara Koogan S.A.,
Rio de Janeiro, 1989.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio. 2008. Preconceito racial. Modos, Temas e
Tempos. São Paulo : Cortez.
HALL, STUART. Identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: Editora
DP & A, 2007.
HASENBALG, C. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil, Rio de
Janeiro, Graal, 1979.
HENRIQUES, Ricardo. 2001. Desigualdade racial no Brasil: evolução nas
condições de vida na década de 80. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/pub/td/2001/td_0807.pdf >. acesso em 09/06/2008.
HERINGER, Rosana. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e
desafios no campo das políticas públicas. FIOCRUZ, Cadernos de Saúde
Pública vol.18, Rio de Janeiro, 2002
JACOBI, P. e NUNES, E. Movimentos Sociais Urbanos na Década de 80:
mudanças na teoria e na prática, Espaço e Debate, Revista de Estudo
Regionais e Urbanos Vol III, Rio de Janeiro, 1985.
Jorge, L. Inovação curricular, Editora UNIMEP, São Paulo, 1993.
LIMA, Candice Marques de e CUPOLLILO, Mercedes Villa. A teoria histórico-
cultural e a dialética inclusão/exclusão nas instituições de Ensino. Linhas
Críticas, INEP, Brasília, 2006.
LEMOS, Rosalia de Oliveira. Feminismo Negro em Construção: a organização
das mulheres negras no Rio de Janeiro, UFRJ, Dissertação de Mestrado em
Psicossociologia em__________.O Negro na Educação e nos Livros disáticos:
como trabalhar alternativas: Ministério da Justiça, CEAP, Rio de Janeiro.
1998.Comunidades e Ecologia Social, Rio de Janeiro, 1997.
LÉVI-STRAUSS, C. Raça e História. Col. Os Pensadores. Ed. Abril. S.Paulo.
1976.
LÉVINAS, E. Entre Nós. Ensaios sobre a alteridade. Ed. Vozes. Petrópolis.
1997.
MARTINS, José de Souza. A Racialização do Estado e do Conflito. São Paulo,
SP, Caderno Aliás, Estadão -19/08/2007.
MARTINS DA SILVA, Luiz Fernando As políticas públicas de ação afirmativa e
seus mecanismos para negros no Brasil e sua compatibilidade com o
ordenamento jurídico nacional. Disponível em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6357, 2004.
MATTOS, H. & ABREU, M. C. 2006. Subsídios para uma leitura crítica dos
PCNs e das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”.
Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Belo Horizonte, PUC-
Minas, Virtual, v.1, p. 49-59.
MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria (org) 2008 Multiculturalismo.
Diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis : Vozes.
MOURA, Carlos. Sociologia do Negro Brasileiro. Ática, São Paulo, 1988
MUNANGA, Kabengele (org) Superando o racismo na escola. Brasília :
MEC/SECAD, 2005.
MUNANGA, Kabenguele. Estratégias de combate à discriminação racial.
Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
_______. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática,1988.
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Documentos de uma militância pan-
africanista. Brasília: Fundação Cultural Palmares/ Rio de Janeiro: OR Editor
Produtor Editor, 2002.
NOGUEIRA, Oracy. “Preconceito de marca, Preconceito de Origem”. In: Tanto
preto quanto branco, estudos de relações raciais, São Paulo, T.A. Queiroz,
1977.
OLIVEIRA, Iolanda de. Raça, currículo e práxis pedagógica. In: Cadernos
PENESB. Rio de Janeiro/Niterói, v. 7. pp. 43-70.
OLIVEIRA, I; SILVA, P.; PINTO, REGINA (org) Negro e educação: escola,
identidades, cultura e políticas públicas. São Paulo : Ação Educativa/ANPED,
2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, Edgardo (org) A colonialidade do saber – eurocentrismo e ciências
sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. pp. 229
- 279.
RIBEIRO, Fernando Rosa. O que é ser negro ou africano, afinal de contas?
Estudos Afro-Asiáticos, 1995, (27): 203-211.
RODRIGUES, Tatiane. 2005 Embates e contribuições do movimento negro à
política educacional nas décadas de 1980 e1990. In OLIVEIRA, I; SILVA, P.;
PINTO, REGINA (org) 2005 Negro e educação: escola, identidades, cultura e
políticas públicas. São Paulo : Ação Educativa/ANPED
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das
ideias que naturalizam a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp;
Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SARTRE, J. P. Reflexões sobre o Racismo. São Paulo : Difusão Europeia do
Livro, 1960.
SILVA FILHO et alli. Ética, responsabilidade social e governança
coorporativa.Campinas, São Paulo: Alínea, 2008.
TRINDADE, A.L. e SANTOS, R. 1999 Multiculturalismo: mil e uma faces da
escola. Rio de Janeiro : DP&A
TOURAINE, Alain.Poderemos viver juntos?: iguais e diferentes. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
TODOROV, T. A Conquista da América. São Paulo: Martins Torres, 1983.