d. joão i e a aliança ingleza
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d. João i e a Aliança Ingleza.TRANSCRIPT
VIL A F R A N C Â , C o n d e d c — I). Joio I c a A l i a n ç a J n g j c » . 1SK4. 4 " . 300 OS*. . . 1 200 .00
D . J O À O I
E A
A L L I A N Ç A INGLEZA
D. J O Ã O I
E A
ALLIANÇA INGLEZA
I N V E S T I G A Ç Õ E S H I S T O R I C O - S O C I A E S
P E L O
C O N D E D E V I L L A F R A N C A
L I S B O A L I V R A R I A F E R R E I R A
1 3 2 — R u a Á u r e a — 1 3 4
1884
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H.SÍ6.
335
COIMBRA — I M P R E N S A DA U N I V E R S I D A D E
A O
I LLUSTRISSL MO E E X C E L L E N T I S S I MO S E N H O R
C O N S E L H E I R O ANTONIO DE S E R P A P1MENTEL
KX-MINI8TKO B SBCKKTARIO l)K B.STAÜO DOS KBGOCIOS BXTRANtiKIRO*
TESTEMÜMIO DE ALTO APREÇO E MUITA CONSIDERAÇÃO
L'histoire nc doit êtrc qu 'un miroir
d 'opt iquc, ou sc peigncnt les hommes
et les choses; dc loin, comme de pi es.
Henri Mar t in— I l i s to i re de France,
Avertisscment.
A historia da nação portugueza cm suas relações externas
com os demais povos desde o começo da Monarchia é aturado
estudo, em que o auetor lida ha diversos annos.
Não lhe permitte a amplidão da obra submettel-a desde
agora a juizo publico. Parte restricta d'esse estudo apresentam
porém algumas das paginas que encella o presente volume.
E seu principal objectivo manifestar que sob o sceptro de
D. João I assumiu com relação a Inglaterra phase nova e mui
diversa a política secular d'estes reinos, política geralmente
seguida desde então até os nossos dias.
Não desconhece o auetor o arrojo de prescnlar doutrina
em contradicção ao que ha séculos se tem ininterruptamente
escripto, mas em vez da practica rotineira dc compendiar as
velhas chronicas, e de implicitamente lhes seguir as asserções,
V I I I
procurou clle fundamentar sobre monumentos authenticos e
na m a x i m a parte desconhecidos entre nós os momentosos
successos que refere.
Mais procurou o auetor estudar nos documentos contem-
porâneos, e ainda em escriptores extrangeiros, coevos de taes
successos, a origem de muitos d'estes, bem como a sequencia
de outros, é não se poupou a fadigas para tirar a lume notáveis
faclos, ignorados completamente de nossos chronistas, mas
nem por isso de menos veracidade histórica, nem de menor
alcance para os entendidos. Pelo contrario.
Entre esses factos avultam os minuciosos passos dados
pelos embaixadores do mestre d'Aviz no tracto da missão
quejuneto dacôrte ingleza lhes fôra commettida; ogasalhado
benevolente com que em Inglaterra os acolheram tão bem o
soberano e seus ministros, como o duque deLancas ter futuro
sogro de D. João I; a vinda a nosso reino de cinco das terríveis
companhiasdeaventureirosquenaquelleseculoassoberbavam
a Europa central; o alistamento a serviço de Portugal de
grande numero de archeiros e homens de armas inglezes,
quando ácerca d'estcs últimos affirmara Fernão Lopes que
nem um só viera; e assim por deante.
Outros curiosos factos que o leitorportuguez não desdenhará
conhecer manifesta ainda o presente escripto. Dent re os mais
salientes podem citar-se: os usos da córtc de D. Affonso V
IX
e as notáveis solcmnidades com que ahi foi recebido o extre-
mado cavalleiro de 13orgonha, subdito do duque Filippe e
de sua terceira esposa, a ciosa infanta de Portugal;
A sociedade porlugueza sob o sceptro de I). João II, o
character e a vida intima d'este soberano, minuciosamente
descriptos por viajante contemporâneo que o visitou e conheceu
de perto, analysando-o meudamente;
As magniíicentes sumptuosidades da casa de Lancaster
em Inglaterra e a romantica historia do velho duque, mal
conhecida mesmo cm sua patria;
Um extranho episodio occorrido na juventude de sua filha,
a irreprehensivel Filippa, ao depois rainha de Portugal;
A educação dada a esta princeza, o nome da própria
educadora, e o centro social não mui honesto em verdade
em que desabrocharam os annos juvenis da futura rainha.
Não são menos para notar-se, cuida o auetor, as esplen-
dentes ceremonias, com que eram armados os antigos cavai-
loiros; alguns excentricos usos portuguezes em tempos de
I). Pedro I, o rei folgasão que se não avexava de andar pelas
ruas a bailar com o seu povo; o sumptuoso jantar do duque
dc Lancaster ao rei de Portugal, seu futuro genro, e o que
este 110 extremo dos dois reinos lhe olíereceu sob a própria
tenda que em Aljubarrota colhera ao rei deCastclla; as múl-
tiplas ceremonias dos banquetes na edade-media, tão alheias
X
a nossos usos; o serviço das mesas e os eníremczes; as bodas
d'a<|uelle tempo com as luxuosas formalidades que as reves-
tiam: o encontro do cavalleiro portugucz, João Fernandes
Pacheco, filho do famigerado Diogo Lopes conselheiro de
Afonso IV, com o historiador Froissart ; as hesitações do
antigo mestre d'Aviz cm receber sua esposa casando aliás
sendo freire professo, e sem para a annullação dos votos
haver obtido cm Roma a indispensável bulla; as solemni-
dades medievaes do consorcio de el-rei, bem como o serão
nos paços reaes, a dança das tochas, e a benção do leito,
onde já se achavam os noivos: esses c outros factos assaz
extranhos a nossos dias, e por isso mesmo de reconhecida
luz para a historia social do reino, em balde os procuraria o
erudito em nossas chronicas.
De todo ponto notável é também a convenção que em
Londres firmaram (9 de maio de 1386) os embaixadores de
Portugal obrigando o reino a servir em guerra com armas e
galés e á sua custa, como eíTectivamente serviu, a Inglaterra.
Esta convenção que os nossos historiadores nem sequer
mencionam, porque em geral se limitaram a copiar Fernão
Lopes, convenção que por certo o arteiro chronista omittira
adrede, para occultar que Portugal fosse servir Inglaterra,
marca isso mesmo epocha assignalada em nossas relações
com a Grã-Bretanha. Naquelle proprio dia foi (pie mediante
X I
solemne Iniciado os nossos embaixadores firmaram com
aquella polencia a denominada alliança mulua, inda lioje
existente.
Até áquelle tempo nenhum aclo de subserviência á Ingla-
terra se havia realisado por parte da nação portugueza. Pelo
contrario.
Aííonso IV, requestado pelo rei inglez Eduardo o grande
para ajustar o casamento de sua filha, a infanta D. Leonor,
com o já mencionado duque de Lancaster, filho daquelle rei,
c posteriormente com o proprio herdeiro da corôa, o inven-
cível príncipe de Galles (cognominado pelos de seu tempo o
príncipe negro em consequencia da armadura que usava),
teve em tão pouco apreço esta alliança, que na occasião cm
que os embaixadores inglezes chegaram a Lisboa para eííei-
tuarem o consorcio e acompanharem até Inglaterra a infanta,
•vieram encontral-a desposada havia cerca de um mez com o
rei de Aragão. Este extranho fado provam-no exuberante-
mente os documentos adeante historiados.
1). Fernando, o formoso, com quem sobremodo injusta ha
sido por muita vez a historia, alliou-se com os inglezes —
não para em suas longínquas terras os ir auxiliar, mas para
virem elles proprios trazer-lhe soccorro a Portugal.
Mais. Apenas chegados a Lisboa, em vez de lhes secundar
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Fernando os interesses nacionaes, serviu-se da superioridade
que sobre as forças inimigas lhe dava aquella hoste de au-
xiliares, para conlrahir pazes vantajosas com o rei de C a s -
tella,collocando assim em humiliante situação os seusalliados
inglezes, que o u t r a consideração lhe não mereceram, afora
o apresto de navios — e navios castelhanos — para de Por-
tugal os levarem caminho de suas terras.
Ainda mais. No tractado que o ardente esposo de Lconor
Telles celebrara com o rei de Inglaterra obrigava-se este a
prestar-lhe, como prestou, soccorro positivo de archeiros e
homens de armas.
Na convenção, que os embaixadores do mestre d Aviz
firmaram em Londres, foi Portugal que ficou obrigado a
servir á sua custa com armas, galés c gentes de guerra a
nação ingleza, como elTectivãmente serviu, durante quinze
mezes ininterruptos.
A epocha de D. João I estabeleceu pois, como o leitor vai
verificar, nova e mui diversa política nas relações de Por-
tugal com a Inglaterra. Esta política tem sido com raras
excepções seguida até agora.
Será acaso a mais consoante aos interesses da nação portugueza?
Busquemos examinal-o nos capítulos (pie vão seguir-se.
CAPITULO I
S U M M A R I O . — D . Fernando ent re os soberanos de Por tugal . — M Á ventura .
— A ra inha . — A herdeira da coroa. — Integr idade da pa t r i a . — O rei de
Castella. — Pacto falseado. — E n e r g i a do povo por tuguez. — O pendao da
independeneia. — Bastardo e padre . — Nobreza c burgues ia . — A arraia-
meuda. — A eleição popular . — O mestre d'Aviz. — O reino e Leonor
Tellcs. — Invasão ca s t e lhana .—Por tuga l contra si mesmo. — D e f e s a . —
Emissários a Inglaterra. — Urgência de auxil iares. — Os nobres e a r e -
g e n t e . — O mestre de Santhiago e o chanceller . — Suspeitas . — Missão
a L o n d r e s . — O s embaixadores .—Conveniênc ias . — A saneta ordem da
cavallaria.
i
Dentre os soberanos, que em Portugal cingiram coroa, nenhum foi acaso tão victimado pelo infortúnio, como D. Fer-nando, o gentil, primeiro do nome.
Idolatrando uma formosa mulher, de subdita 1 elevando-a
1 A ra inha I). Lconur Tellcs, tomada a seu mar ido , João Lourenço da
Cunha, por el-rei Ü. Fe rnando . E ra filha de Mart im AfTonso Tello, p r i -
vado int imo da rainha D. Maria de Castella, mãe de Pedro o cruel, e morto
por ordem d'este, quando á sahida da cidade de Toro dava o braço a própria
ra inha. Es ta rainha era filha de AlTonso o de Por tugal . Ayala , Chronica
de el-rei D. Pedro, anuo 7.°, cap. 2 . ° ; Mobiliário denominado do Conde
D. Pedro, tit . xxi, nota C, pag. 127, ed. Lavanha.
t
2 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
juncto dc si ao throno, essa. a ser verdade o que rezam chronicas, retribuiu tão devotados extremos com a traição mais hedionda.
Como á esposa desleal, quiz Fernando á única filha que
dos dois vingara e augurando-lhe felicidade em allianças múltiplas, foi dal-a ao homem que menos ditosa viria a tornal-a.
Mais que por esposa e filha estremeci i o rei pela inte-gridade da pa t r ia i . Ferido já de morte pela ; d i t h i s i c a q u e ao sepulchro o arrojaria, buscou elle nas con ições dc um tra-ctado 4 salvaguardar até ao extremo a indcpendencia do reino. Mas esse a quem dera a filha falseou o que havia jurado, e a indcpendencia que manteve ao reino portuguez foi inva-dil-o para avassallal-o 5.
Não o consentiram os povos. Lisboa, Porto, Évora, as prin-
1 A infanta 1). Beatriz nascida em Coimbra (1373) e casada aos onze annos
incompletos com I). João 1, rei de Castel la . Sanc tos , Afonarchia Lusitana,
parte viu, liv. 22.° , cap. (>0.°; Fcrnão Lopes , Chronica de el-rei D. Fer-
nando, cap. 1GD.° 2 Os incessantes esforços de I ) . F e r n a n d o pa ra man te r a integridade dc
Portugal manifestaram-se cm todos os seus actos , e sobre todos no celebre
tractado dc Salvatcrra (1383) , em q u e exclu i» do throno sua própria filha c
o rei de Castella, passando a corôa ao filho q u e d 'es tcs nascesse, quando
chegado a maioridade. Como o rei es t rangei ro t inha ou t ro filho q u e reinaria
em Castella, ficava assim assegurada a au tonomia de Por tuga l . Vejam-se
todos os historiadores. 3 Lc roi Ferrand chéy (tomba) cn l angucur qui lui d u r a plus d 'un an, et
mourut . Froissart , Chroniques, liv. III, cap . 3 , édi t ion Buchon . 4 O tractado de Salvaterra de Magos , 2 de abri l de 1 3 8 3 em Sousa,
Provas á hislor. gcncal. da casa real, tomo i , doe . n . ° 39.° , pag . 290. Veja-se a nota retro.
b Ayala, Crônica de D. Juan J; F c r n ã o Lopes, Chronica dc ü. João I, ç demais historiadores.
3 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
cipacs cidades proclamaram que o hálito do estrangeiro não infeccionaria o solo de Portugal l .
Para hastear o pendão da independencia patria urgia porém escolher homem que sobre os hombros (ornasse tão oneroso encargo.
Esse homem encontrou-o o patriotismo popular em um bastardo, um clérigo ligado a votos sacros \ Tal foi á luz da historia 1). João 1.
0 que cm tempos de 1). Fernando o vira, adstricto ao acaslellado exílio do mosteiro d'Aviz, ou rara vez appare-cendo na còrte, e abi recolhido em si mesmo, menosprezado de cortczãos e do proprio rei \ e simuladamente alheio ao que em torno de si passava, mal poderia aventurar que ante os olhos tinha o que ao deante com o volver dos aconteci-mentos viria a tornar-se um dos mais sagazes políticos de seu tempo, um dos mais pronunciados revolucionários da cpocha, e lambem um dos mais cumpridos reis que tem engrandecido o soiio de Portugal.
Contra a vontade da nobreza toda, affrontando a inacção interesseira da burguezia, assás opulenta já então, e por isso mesmo egoísta e conservadora, como hoje se diz, o povo baixo, a arraya-meuda que nada tinha que perder, mas a
1 Lopes, Chronica, ut supra, pa r te l . 4
2 Portugal se felicita de haber pueslo en el t rono á un bastardo y á un
religioso. Lafüentc , Hist. Gen. dc Espaiia, par te II, liv. III, cap. 22 .° 3 Tan t que le roi 1'crranl vesqui, il ne iit comptc de ce ba ta rd , et n ' eu t
j amais cu idé . . . que les communautós de son royaume . . . 1 'eussent. . . p r i s à
roi. Froissar t , liv. 3, cap. xxv iu . 4 O a junetamento dos pequenos povos . . . chamavam naquclle tempo a r -
r aya -meuda . Lopes, Chronica de JJ. João I, par te i, cap. 44 . °
*
4 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
quem, talvez como tal, abrazavam ardores de indcpendencia
patria, conferiu o mando ao desajudado mestre d'Aviz sob
a designação de regedor do reino.
Cumpriu-se o inesperado successo a if i de dezembro 1
do anno da Rcdempção 1383, ou era de César de 1421, conforme ainda então oílicialmentc sc dizia.
Assim que em seu novo cargo foi investido o regedor eleito, reconheceu-se em conselho a immediata urgência de tomar a soldo 2 gentes de guerra para defensão da auetori-dade nascente, que a principio mui poucos parciaes contava em todo o reino.
A mór parte des te , quasi todas suas cidades e logares fortes, haviam alçado pendão pela regente, a formosa Leonor Telles; e o proprio soberano de Castella, invocando os direitos de sua esposa, como filha herdeira de I). Fernando, trans-pozera por f im—em menosprezo dos t r ac lados—a fronteira de Portugal3 . Os defensores de Lisboa tinham por tanto de armar-se contra quasi todo o reino, c ainda contra a mais poderosa das monarchias, cm que se achava então dividida a Hespanha christã. Castella, diz judiciosamente a chronica, era contra Portugal, Portugal contra si mesmo 4.
Em tal apertura accordou-se no conselho do regedor enviar
1 D. Francisco dc S . Luiz, Estudos sobre a historia dc Portugal, edição de 1855, tomo único, pag. 2 2 4 .
* Ordenou o Mestre cõ os do seu Cõsclho q era b è daucr gètcs cm sua
ajuda. Fcrnão Lopes, Chronica dc l). João I , par te l . \ cap . 48 .° 1 El -Rey dc Castella violara os t rautos en t r ando no Keyno. Fernão
Lopes, ut supra.
* J-opes, Chronica, par te l . \ cap . xxvi.
21 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
quanto antes a Inglaterra embaixadores 1 para haverem gentes estrangeiras que por soldo viessem servir na guerra
Mas como no circulo estreitíssimo dos que á sorte do filho de Theresa Lourenço se haviam associado poderia elle en-contrar negociadores consoantes á magnitude do alevantado encargo?
I I
Quando a viuva de I). Fernando abandonara Lisboa alguns dias após a morte do conde Andeiro 3, seguiram-na como a regente os altos empregados de justiça e fazenda, e isso mesmo os fidalgos que acertavam de andar então na corte.
Primavam entre os mais opulentos senhores o mestre de Santhiago 1). Fernando Alíonso d'Albuquerque, e entre os outros o chanceller mór Lourenço Annes Fogaça. Ambos porém, não decorridos ainda dois mezes após a retirada de D. Leonor, apresentaram-se em Lisboa ao serviço do mestre \
Excellente acquisiçao eram estes dois proceres em qual-quer tempo, sobre tudo quando tão poucos se afoitavam a
1 Si ot conscil que il cnvoicroit en Angleterrc . . . grands messagers et
féablcs. Froissart , Chroniques, liv. m . chap. 2 Que por soldo & á sua votado viesse a j u d a r cõtra seus imigos. Lopes,
ut supra.
Ferido pelo mestre dWviz, o morto por um dos sons em C de dezembro
de 1383 nos paços d 'apar São Mart inho. 4 Fcrnão Lopes, toe. cit.
6 D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA
e s p o s a r a causa do isolado regedor, cujo triumpho se repu-tava ainda então, e de leito parecia, absolutamente impossível.
D. Fernando Aflonso, além de seu nobilissimo sangue, como filho de D. João Affonso d'Albuquerque, o do ataúde, e bisneto de el-rei D. Diniz pelo filho d'cste, Affonso Sanches \ possuía avulladas riquezas, havenda-lhe el-rei D. Fernando doado os bens confiscados ao marido ainda vivo da rainha sua esposa, João Lourcnço da Cunha, o qual, para vingar-se do soberano, quizera dar-lhe peçonha para o m a t a r A l é m d'isso era D. Fernando mestre da cavallaria de Santhiago, ecomo a tal seguiam-no os esforçados cavallciros da ordem, bem como todas as villas e castellos que a esta dc juro e herdade pertenciam.
Lourcnço Annes em qualidade de chanccller do reino
desempenhava um dos mais altos cargos de administração
1 D. João Affonso d ' A l b u q u e r q u e , filho de Affonso Sanches , fora aio e
grande privado de el-rei 1). Pedro o cruel de Castel la , q u e regularmente
governou, em quanto o teve j une to a si. Mas , a b a n d o n a n d o D . Pedro a rainha
Branca sua esposa por 1). Maria dc Pad i lha , I). J o ã o , q u e condemnara
este acto, a june tou-se aos inimigos do rei . Adoecendo , foi por ordem d'este
envenenado. E ra tal porém a sua aue to r idade , q u e os conjurados não o
sobterrando, traziam comsigo o corpo, c q u a n d o se r eun iam em conselho
collocavam o ataúde sobre um alto es t rado , ao redor do qual consultavam.
Veja-se Ayala, Crônica dc I). Pedro I dc Castella; Mobiliário do Conde
D. Pedro, t i t . v n , n .° 18 .° ; Lopes, Chronica de I). Pedro I, cap. 17.°;
Lafuente, Ilist. Gen. de Espaiia, pa r te 2 . a , l iv. 3 .° , cap . xv .
E quando aviaõ de aver conselho. . . faziaõ n o b r e es t rado de maromaques, e dc outros panos de ouro, c pnnhaõ o a t a u d e no meyo , e clles ao redor dei. Nobiliario, tit . v n , n.° 18.°, pag . 3 5 .
^ eja-sc na Ilist. Gen. dc Espaiia o al to conceito q u e Lafuen te formava
d'este estadista, apezar dc ser por tuguez , pa r te 2 . \ l iv. 3 . ° , cap . XXII.
2 Real Archivoda Torre do Tombo. Chancellaria dc el-rei I). Fernando, liv. ii. pag. 45 .
7 D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA
e jusliça l , cm que naquclles tempos não havia distineção, como se sabe.
Estes dois corlczãos eram porém feituras da rainha I). Leonor; isto é : deviam-lhe os cargos que exerciam, e a que por influencia d'cila haviam subido no reinado de seu esposo. A demais — D. Fernando AlTonso era cunhado dos condes de Neiva e de Barcellos, irmãos de Leonor Tellcs 2.
Ora, nos tempos que iam correndo, em que de um instante a ontro os homens mudavam, não de princípios, que os não havia, mas de bandeira, conforme o egoísmo pessoal, e muita vez os interesses do momenlo lhes segredavam, a presentação de qualquer potcnlado vindo de campo adverso era obra de grosso tomo, a que urgia altender, pois do mesmo cargo que desempenhavam se haviam muitos já valido contra o proprio governo a que iam acolher-se.
Por estes fados, que não raro se davam, já em Portugal, já cm Castella, tornava-se a pcrniancncia em Lisboa do mestre de Santhiago e do chanceller algum tanto suspeitosa \
llesolveu-se pois em conselho do regente 4 que fossem como embaixadores 5.
1 Assi como o capcllaÕ hc medianciro antre OEOS e Nós em feito de Nossa
alma, bem assi he o Clancel ler antre Nós c os homeês. Orden. Âffons., liv. i,
t i t . I I . 2 Casaram estes com duas irmãs, filhas na turaes de D . João Aflbnso, o
do a taúde , e irmãs de >. Fernando Aflonso. Nobiliario do Conde 1). Pedro ,
t i t . VII, n . ° 18.°, nota F, pag. 35 , e t i t . xxi, n.° lo . ° , nota C, pag. 127 . 3 Monarchia Lusitana, pa r te 8 . a , liv. x x m . cap. 14.° 4 Lopes, Chronica, par te 1 . \ cap . 48 . ° 5 Lo r s fu r en tnommés pardól ibóral ion du Consoil, e t . . . que l e g r a n d m a f t r e
de Saint Jacques et Laurentien Fougasse . . . iroient cn message cn Angle-
terrc. Froissart , Chroniques, liv. 3.°, chap. xxiv, édition Uuchon.
24 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Mais acertada, quanto á categoria dos indivíduos, não podia fazer-se escolha f . Uma das relevantes qualidades do filho de D. Pedro 1 foi a rara perspicacia com que soube conhecer os homens, e aproprial-os conforme as reciprocas aptidões ás exigencias do momento, ou aos encargos do
serviço.
0 mestre dc Santhiago pela elevação do cargo e altczada pessoa seria graciosamente recebido na côrte que a muni-ficcncia do príncipe negro, finado havia pouco, tornara a mais esplendida da Europa 2. Lourcnço Annes, out rora em-baixador a Castella, c á côrte de Paris, havendo abi em nome de D. Fernando celebrado alliança com o duque de Anjou s , fóra também sob o mesmo reinado em embaixada luzi-dissima a Inglaterra, c faliava com perfeição a língua fran-ceza \ predicado assaz raro então num portuguez, c indis-pensável na côrte britannica, onde aquclle idioma era depois da conquista de Guilherme, e ainda então, o que exclusiva-mente se falia va. Confirma esta verdade lima carta familiar da rainha D. Filippa a seu irmão Henrique IV de Inglaterra, escripta toda em francez 5. Encontrou-a no museu britannico
1 A l'avis du conscil de Por tugal 011 n 'y pouvoi l cnvoyer pour le présent
gens qui point mienx sauroient faire la besogne. Fro i ssa r t , loco citalo. 2 Lingard, Ilist. of England. vol. i . ehap . \ i \ . Acerca d 'estc príncipe,
legitimo herdeiro da coroa inglcza, e um dos p r imei ros vultos do século xiv
veja-se o que adcanle escrevemos (cap. iv) . 3 Lopes, Chronica dc l). Fernando, cap . 9 7 . ° 1 Laurenücn Fougasse savoit parlcr t r ê s beau f ran ro i s et à t rai t . Frois-
sart, loc. cit. & A íntegra d'cstc documento pôde ver-se no Caíhalogo dos mss portu-
gueses do museu britannico, por F . F . dc F igan i è r e , pag . 120 . e o próprio
documento na Biblinth. Coton. Secoão Vespasiant is . F . 111 .
25 D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA
o illustrado escriptor visconde de Figanière, e oblida venia reproduzimos aqui o fac simile
^ o p c e x w e f í
I | / ]
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Prosigamos. Lourenço Anncs, habituado a manusear já o digesto, já os
livros das decrelaes, e a marcar em sua chancellaria com o regio sello, cuja guarda lhe era confiada, os alvarás outor-gados pela mercê de el-rei, nunca, depois que para os estudos havia entrado, largara a talar garnacha, prova authenticá de que não se entendia muito em matéria de cavallarias. Indo porém presentar-se na côrte cavalleirosaentão por excellcncia, e onde os altos funccionarios de justiça pertenciam á saneta ordem da cavallaria era convinhavel ao objectivo da impo-nente embaixada, que sob a toga do doutor fulgisse o estoque de armas do cavalleiro.
Antes por tanto de sua partida mereceu a insigne honra
1 A decifrarão d'estas palavras, cscriptas todas por leltra da ra inha, c a
seguin te : Vostre entiere et loyal suer p(hilippc) de pfortugal) . A íntegra da
carta encontra-se no fim do volume, Nota A. 2 Eduardo III estatuiu que os juizes nos t r ibunaes de justiça fossem
crcados cavallciros. Millc, llist. of Chivalry, tomo "2.°, pag. 154. Veja-se
Bucklc, llist. of civi/isq(ion >'n Evqtopd. tomo 2.". cap. 9,"
10 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
de ser por mãos do regente armado cavalleiro, e por maior solemnidade realisou-se o auto na se calliedral
Peza-nos que a estreita dimensão do presente escripto nos não soíTra narrar circumstanciadamente as extranhas cere-monias d'esta solemnidade medieval. Vamos resumil-as.
1 Fcrnão Lopes, Chronica, p a r t e 1 / , c a p . 48.®
CAPITULO II
S U M M À R I O . — A edade-media e a caval lar ia .— As grandes idèas sociacs .—
Subordinação á egreja. — Como eram armados os cavalleiros. — A vigília.
— O pres t i to .— No templo. — Dupla usança quando era o rei que dava
a invés ti du ra . — Pedro I e o conde de Barcellos. — Descommunal appa -
ralo. — A noite semelha o dia . — O rei dançando através das r u a s . —
Character especial das danças. —Musicas estrepitosas. — As trombetas de
el-rei D. P e d r o . — U m capitão inglez .—Banquete ao povo.—Bois inteiros
assados. — O rei folgasâo c o novel cavallciro. — Os paços do regedor e
o conde Ande i ro .—Invasão de in imigos .—Salve-se a p a t r i a . — O mestre
na sé ca thedra) .—O chanceller novel.—Solemnidades da invest idura .—
A punhada sobre o pescoço. — O osculo da paz. — Ê cavallciro.
i
Durante a cdade-media era a ordem da cavallaria uma das primeiras instituições da sociedade Sob o aspecto, não só militar, senão ainda político e civil, compendiava em si quanto entre os homens havia de generoso e elevado 2. Como todas as grandes idèas que então dominavam, achava-se esta insti-
1 Veja-se ãíémoires sur Vancienne Chevalerie comme établissem. polit. et militairc, par Lacurnc de S . " Palayfc.
2 Hcnri Mart in, Ilist. de France, tom. 1 e h a j ) . xx. La Chevalerie,
28 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
tuição subordinada estreitamente aos dictames da egreja V e ás formas solemnes do cullo catliolico. Typo das mais acri-soladas virtudes cumpria (pie fosse o cavalleiro 2.
0 que a tal honra aspirava, disposto previamente com orações e jejuns, devia na vespera da solemnidade purificar-se entrando em um banho 3, que lhe era dado por escudeiros sob as vistas dos dois padrinhos 4. Collocado no leito 5 en-travam os cavalleiros, e estes o vestiam dos melhores panos. Amigos e parentes aguardavam-no fora para em pompa o levarem á egreja, onde devia velar as armas. Era imponente o cortejo, indo todos a cavallo. Na frente os donzeis e filhos de cavalleiros6 mui passo, e em duas alas. Seguia o reci-piendario, descoberta a cabeça conforme o rito 7, e em meio dos padrinhos. Logo após iam os que levavam as esporas, a adarga, a espada e demais armas de olTender. Cavalgavam então a dois e dois todos os que tinham na ordem o gráu de cavalleiro. Precediam o prestito musicas de trombetas eata-bales, sem as quaes não havia festa na edade-media.
1 Tout votre sane devez cspnndrc
Pour la sainte fcglise def lendre .
L'ordene de Chevalerie, pag . 6 5 , édit ion Méon. * Leia-sc o interessante t rabalho de Mr . Léon Gau t i e r , La Chevalerie
daprès les textes poé fiques du moyen dye. Alli se encontra o codigo da caval-
laria reduzido a dez mandamentos , como o Dccalogo. 3 Dos Cavalleiros, corno c por q u e m devem ser fei tos. Orden. Affons.
l i v . 1 . * , t i t . L X I I I , n . ° - 2 0 .
4 Mandaram os antigos q u e . . . des o meo dia cm d ian te l iam-no os Escu-
deiros de banhar c lavar com suas maãos . Dos Cavalleiros, ut supra. s E deital-o no mais aposto leito q u e poderem haver , ut supra.
* Muntaner , Chroniques, tomo n . cap . 20r».°, édil ion l inchou.
Estabelccerom q u e . . . as c abeçasno in as t ivessem cobertas. Dos Ca>al-Jeiros, ut supra.
v
® r D. JOÃO 1 K A ALLIANÇA INGLEZA 13
Collocada sobre o aliar a espada para ser benta, e tomada dentro do templo a usual refeição de fructa e vinhos, ia o noviço recitar em joelhos as orações prescriptas 4, findas as (juaes, se conservaria de pé ante o altar quanto tempo o soffrer podesse. Assim lhe era prescripto velar a noite inteira.
Ao primeiro alvor da manhã confessava-se, tomava o sacra-mento e ouvia missa, limpo de corpo e de espirito. Nas se-guintes ceremonias variava o rito usado cm Portugal, quando era o rei que armava os cavalleiros.
Ou o recipiendario caminhava a cavallo com o luzimento já referido até aos paços reaes, e ahi recebia o gráu, ou o soberano ia á egreja realisar por suas mãos a investidura.
Practiçou-se a primeira forma, quando D. Pedro I creou conde de Barccllos e armou cavallciro a D. João AlTonso Tello, denominado nos documentos do tempo o conde velho.
Não resistimos a esboçar algumas curiosas circumstancias daquella festa. São todas de veracidade authentica.
Na noite em que o futuro conde velou as armas em S. Do-mingos, foram pelas ruas, que do mosteiro levavam aos paços do castello, collocados em alas cinco mil homens com cirios accesos, e por meio d elles á deslumbrante claridade que semelhava o dia andava el-rei D. Pedro com muitos fidalgos c cavalleiros de sua côrte dançando e tomando sabor i.
Extranho espectaculo fóra esse para os nossos dias: um rei a dançar pelas ruas! Assim como Nero em Roma, des-pendera o filho de AlTonso IV boa parte da noite.
1 E oni quanto esta Oraçon fezer, hade estar cin giolhos ficados, c todo
al em pcc cm mentre o sofFrer poder . Dos Cavalleiros, ut supra. 2 Lopes, Chronica de D. Pedro I, cap. xiv,
14 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Dançar com o seu povo era uma das diversões characlc risticas do monarcha excentrico. Não raro. quando ao chegar a Lisboa iam esperal-o os moradores \ mettia-se cm dança com clles percorrendo a cidade, e se lhe escasseava o somno eil-o a descer de seus paços despertando as gentes e bailando com todos até alta manhã 2.
Às danças todavia em que naquella noite se retouçava D. Pedro, além de ao vivo representarem o character do rei folgasão, tinham lambem origem essencialmente histórica, por
serem as (pie os cavalleiros usavam dançar entre si. quando algum neophito entrava para a Saneia Ordem 3. De feição essencialmente feroz e grotesca, simulavam ellas, ou guerras ao natural invencionadas com broquel e escudo, ou desen-cadeadas luetas de mouros 4 e de selvagens em combates singulares, ou geraes refregas.
As musicas que as acompanhavam eram outrosim estre-pitosas e desordenadas 5. O som rouco e estridente que das trombetas de p r a t a 0 usavam tirar os músicos de el-rei 1). Pe-dro, João Matheus e Lourenço Paios 7, chegaram naquella
1 Lopes, Chronica de el-rei D. Pedro, cap. xiv, edição da Academia. 2 Lopes, ut supra. 3 Lacroix , Moeurs et usages au Moyen age. J eux , pag. 261. 4 Es ta s s imuladas luetas t i nham o nome de òfoi riscas. Eram, diz Lacroix,
essencialmente mer id ionaes , ass im como as selvagens. Só em França as
conheceram 110 anuo de 1 4 5 8 . E m Por tuga l ficaram desde os mouros. 5 Leurs conccrts n e p lu ren t aucunement à . . . qu i n'étoit pas fait à ccs
sortes de cacophonies. Anciens Mcnwires du XIV siècle sur Duguetclin.
Collection Petilot, tomo 4 .° , cap . xix, pag . 3 7 6 . 6 O som d 'es tas t rombetas es t r identes he rda ram os portuguezes dos sar-
racenos de H e s p a n h a . Lacro ix , Instruments de musique. Moyen age et Re-
nais s., tomo 4 .° 7 Lopes, Chronica de D. Pedro l, cap. xiv.
1). JOÃO I K A ALUANÇA INGLEZA 15
era, desmesurada em tudo, a atordoar os ouvidos de estran-geiros, habituados aliás em suas terras ás demasias do tempo.
As antigas Memórias deDuguesclin por Estouteville( 1387), copiando a chronica rimada dc Cuvelier, escripta ainda annos antes, apresentam entre diversas inexactidões uma descripção curiosa acerca da côrte de Portugal no reinado de D. Pedro I. Traclando-se dc um dos periodos mais obscuros da nossa historia social, folgamos de apontar em summula algumas d aquellas noticias. ICil-as:
«Deposto do throno Pedro o cruel de Castella, e refugian-do-se em Portugal, procurou o seu successor evitar que o soccorressem. Nesse intuito enviou a Lisboa o cavallciro inglez, Sir Malthew Gournay, capitão de uma das celebres companhias brancas, e filho de Thomaz Gournay, carcereiro e assassino do infeliz Eduardo I I F o i o inglez graciosamente acolhido cm Portugal pelo fogoso D. Pedro 1 que á sua mesa o banqueteou, festejando-o com as musicas de seus menestreis. Atordoaram estas os ásperos ouvidos do capitão3 ,
1 Sir Malthew Gournay w a s . . . son o f T h o m a s , one of the mnrdereres of
E d w a r d II . l i e was a soldicr of for tunc, and able and valiant man. Johncs
t rad . de Froissar t , liv. 11, cap. 24 .° nota , pag. OOD. 2 Lc roi le fit asseoir à sa tablc et 1c regala de son mieux. Estoutcvil le,
Anciens Mémoires, loco citato. 3 Les sons ctoient si «liscordants, qu ' i l s lui ccorchòrent les oreilles.
Idcm. Sir Malthew Gournay seguindo Henr ique d c T r a s t a m a r a na conquista
dc Castella, passou depois ao serviço do pr íncipe de Galles contra o mesmo
Henr ique , e nas batalhas de Poitiers e X a j a r a practicou bons feitos de armas .
Depois de haver sido governador das Landes em Aqui tania , voltou a P o r -
tugal como condcstavcl da hoste do conde de Cambridge em 1381, escapando
no mar a grande tempestade. Froissart , liv. i , cap. 160.°, 230 . ° , 2 4 1 . ° ; liv. n ,
cap. 50 . ° ; Johncs nota á I rad . , liv. II, cap. 2 4 . ° ; Wals ingham, Ilist. brevU,
pag. 2 4 7 .
b J 0 À 0 I E A ALLIANÇA INÜLKZA
e para s u a v i s a l - o chamou el-rei dois celebres músicos de sua camara». Não tinham elles a profissão de guitarristas, como referem as Memórias. Eram porém de certo os dois supracitados João Matheus e Lourenço Paios i , únicos que, segundo Fernão Lopes, tocavam as musicas a que el-rei dançava não querendo outras Pôde calcular-se o eiíeito que as descommunaes trombetas produziriam nos ouvidos já excitados do capitão inglez 3.
Ao romper da manhã, logo após as danças dos cavalleiros, appareceram grandes tendas armadas no Rocio a par do mos-teiro dominicano, abrigando altos montes de pão cozido, e ccntenarcs de tinas cheias de vinho. Ao ar livre fumegavam bois inteiros assados 4. Tudo foi distribuído ao povo, em-
1 Com razão censura o s r . Ferd inand Denis o auctor da Chronica rimada
pelas iuexactidões em que acerca de Por tuga l incorre , como dar a ü . Pedro I
o nome de roi Fagon, etc. Mas quan to aos dois músicos favoritos do rei, a
que a Chronica chama guitarristas, e r a m estes sem duvida , permitta-nos o
venerando escriptor, os dois celebrados t rombetas , q u e Fernão Lopes tam-
bém cita. Deu-se equivoco de profissão mus ica l , mas não pôde contestar-se
que ha fundo de narração verídica. 2 Estas danças eram a soom dhumas longas t rombe tas que cstonce hu-
savom sem curando doutro es t romento, posto q u e o hi ouvesse, c se alguma
vez lho queriam tanger , logo se enfadava c dizia q u e o dessem oo demo, e
que lhe chamassem os t rombeiros . Lopes , Chronica de el-rei D. Pedro I,
cap. xiv. 3 Ve jam-se : Anciens Mémoires du XIVsiècle, pa r Estoutcvil le na Collec.
Petitot, tomo 4.°, cap. xix, pag . 3 7 6 ; Cuvel icr , Chron. de Jiertrand Du-
guetclin; Documents inédits sur l'hist. de France; F. Denis, le Portugal,
pag. 4 3 ; Lopes, Chronica de D. Pedro 1, c ap . x iv ; San ta rém, Quadro ele-
ment. Relaç. com França, tomo 3.° , p a g . 2 o . 4 Lopes, Chronica de D. Pedro I , c ap . xiv. E r a na edade-media trivia-
lissimo o uso de assar bois in te i ros . E m Por tuga l chegou este uso até
D. João II . No convento de Alcobaça havia a inda no momento da extineção
I). JOÃO I K A ALLIANÇA IMiLKZA 17
quanto o rei cruento e tolgasno armava nos seus paços do caslello o novel cavallciro.
Antigos paços do eastello. (Mappa dc Lisboa — Lavanha, Viagem <lc Filip/ic // a Portugal.)
I). João, mestre d'Aviz, se bem que já como neto de reis habitava a par S. Martinho nos próprios paços reaes \ onde
uma grande machina para realisar aquelles assados descommunaes. A fôrma
d'cstas machinas pode ver-se na respectiva estampa cm Lacroix, Moeurs et
usages au Moyen age, pag. 2 1 1 . 1 Nos princípios da Monarchia fora alli a casa da Moeda, passando a ser
paço real ate q u e I). Diniz mandou ediílcar no castello os paeos da Alcaçova.
Posteriormente foi habi tarão de I). Fernando, de 1). João 1 quando regente, e
de I). Duar te sendo infante. Es te empres tou-o ás commendadciras de Sanctos
por se achar em m i n a s o mosteiro onde então viviam (Sanctos o velho).
A final D. Manuel reconstruiu o edifício aprovei tando-o para as casas da
Supplicação c Civel, c para a cadeia chamada ainda hoje do Limoeiro. Góes,
Chronica (te I). Manuel, par te iv, cap. LXXXV; Frei Agostinho de Saneia
Maria9 Historia tripartita, t ractado Hf, § xu i , pag. 4 1 9 .
2
1 8 D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA
ferira o conde Andeiro, não se linha por somenos com ir, segundo referimos, á sé cathcdral.
Não havia tendas no rocio, nem viandas se distribuíam
para deliciar o povo. Mais altos cuidados demandava então
a crise terrível em que se achava o reino. Armas de estran-
geiros haviam ousado invadil-o. Cumpria antes de tudo liber-
tal-o salvando a patria.
H •
Restricto séquito acompanhava á sé o eleito da nação, que
mui poucos eram ainda então os proceres que seu pendão
mantinham f.
Á falta de bispo, ao «piai por ser castelhano arrancara o
povo dias antes a vida - lançando-o a fundo da mais alta
1 «Os mores do l teyno tem todos da par te da Ka inha , a qual nu- quer
muy gran mal por a morte do Conde Johão Fcrnandez & sou certo que me
azará lodo o mal & deshonra por hu quer q u e poder .» Palavras textuaes
de 1). João, mestre d 'A\ iz , conservadas por Fe rnão Lopes , Chron., par le i ,
cap. 23.° 2 I)os paços de S . Mart inho baixava o povo cm tropcl apenas fora morto
Andeiro. Ao passarem á sé notaram q u e não rcpicavam os sinos. Enfure-
cidos subiram á torre, onde fora aco i ta r - se o b ispo, e d 'ahi o precipitaram
depois de lhe haverem tirado a vida. Os ma tadores f o r a m : João da Veiga,
Sylveslrc Estcves, procurador da c idade, Es tevão Anncs e outros. Elles
próprios o confessaram cm supplica de absolvição d i r ig ida ao papa. Veja-se
Breve de Urbano VI. Gênova, 14 de se tembro d e 1384 apud Soares da Silva,
tomo iv, c Cunha, Historia ecclcsiastica de Lisboa, p a r t e m , cap. 107.®
I). JOÃO I K A AI.MANCA INGLEZA 1 9
das Ires torres que então havia na cathedral, como prova a presente gravura, cópia de um precioso sello que tivemos o júbilo de encontrar, e que representa a velha só cm tempos de D. Afonso IV cantou o adayão missa solemne benzendo a espada.
A só de Lisbou no século xiv . (Scllo dos a rmas da cidade cm 13.'»2 —Torre dó lombo.)
1 Na torre tio tombo copiou Sousa, auclor da Historia gcneal., c r e p r o -
duziu no tomo iv, n.° xxxu este precioso seUo, achando-o ( já bastante
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
Em continente começou o atilo da investidura. O clian-celler, adcantando-se grave, em meio dos seus mais Íntimos (entre os quaes sobrelevava cm longas vestes de doutor de Bolonha o arteiro João das Regras) , íoi, seguindo-o todos os escudeiros presentes, collocar-se em joelhos ante a cadeira de espaldas que na capella mór da parle do evangelho occu-
pava o filho de Pedro 1. Feitas pelo regente as perguntas do eslylo, um cavallciro
calçou as esporas ao novel, que segundo a praxe 1 vestia todas as armas de defender encimadas pelo brial amplo o deteriorado) em um contracto ent re e l - re i e a di ta camara (gaveta 13, maç. 1, n." ü o " ) . Por mui c u r i o s o reproduzimos o documento em a nota ft no fim do
/
volume.
Assim como as actuaes armas de Lisboa represen tam a vinda do corpo
dc S. Vicente, assim este sello symbolisa o mesmo assumpto . Guiado por
um corvo apparccc o corpo do saneto sobre as aguas do Te jo tocando a
cidade. Em torno divisa-se a antiga mura lha com suas por tas e bastiões, e
em meio dc casarias toscas c june to a São Mar l inho avulta a sé, tendo além
das duas torres que ainda hoje existem na f ronlar ia uma outra construída
a fundo, muito mais alta que as ou t ras d u a s , e na qual estavam collocados
osViuos, como na estampa claramente se vê.
Ora sendo, conforme assevera Fcrnão Lopes , <i mais alta ilas torres, onde
estavam os sinos que se acolheu o bispo e sendo a ma i s alta das torres onde
estavam os sinos a que se erguia a fundo , t o r n a - s e evidente , cremos, que
foi d'cssa torre que os populares a r ro j a r am o b ispo .
Este sello vem ainda rcctilicar ou t ro facto historico mostrando ser mui
anterior ás actuaes armas dc Lisboa, as quaes os nossos historiadores re-
feriam haverem-lhe sido dadas por 1). Aflonso I I en r iques . 1 «Estabcleccrom q u e . . . os nobres hoinèes os fizessem cavalleiros scendo
armados de todas suas armas.» Regimento, ut supra. Ordcn. Áffons.. liv. i, tit . 63.°, n.° 22.°
2 I)o antigo francez blial E ra sobreveste longa e mui larga de seda. ou
i .Com alguns seus se íoy o.Bispo á mais alta tori« da Sé, onde estauam os sinos... logo o Bispo íoy morto com feridas, & lançado á pressa a fundo.» Lopes, parte u, cap. 13.°
* «Puis li Yeslircnt le blial dor ouvré.. Cbanson de Garin.
1). JOÃO I i: A ALLIANÇA INGLE/.A
largo. Por de sobre esle cingiu-lhe então o mestre estreita-menle a espada \ e logo lirando-a da bainha, e collocando-lha na inão, tomou-lhe os juramentos do ritual \ findos os quaes e dando-lhe uma forte punhada sobre o pescoço 3, proferiu as sacramentaes palavras: «Deus te guie a seu saneto ser-viço. e te deixe cumprir o que promelteste».
Depois beijou-o em signal de fé, de paz e de irmandade 4.
Ergueu-se então o agraciado, e d entre as cinco naves, em que então se dividia o vasto templo, percorrendo a quo ao centro cm lace do altar-mór se dilatava occupada em duas alas pelos cavalleiros presentes, recebeu de cada um d?estes com a paz ritual o osculo prescripto \
Estava armado cavalleiro o chanceller do reino. Podia desassombradamente partir caminho dc Inglaterra.
In, cerrada pela c inclura , e cahindo sobre esta em enormes pregas. Tinha
mangas. I)c Franca importáramos a vcslidnra e o nome, como inda hoje
succedc em muitas pecas de vestir e objeclos de moda. A fôrma do brial ,
conforme o usavam os cavalleiros, pôde ver-se em Quicherat , Histoire du
costume cn Francc. cap. vil, pa^. 1 íS . Veja-se o mesmo Quicherat , cap. vi
C VII. 1 «l ia dc cingir- lhe a espada sobre o brial que vestir , assy que a cinta
nom seja muito suxa , mas que se chegue ao corpo.» Ordcn.. ut supra. n . ° 2 1 2 E r a m tres estes ju ramentos . Podem ler-se no Hcyimento: Dos Cavalleiros
como devem ser feitos, n.° 23." 3 «Deve-lhe dar huma pcscoçada por que estas cousas . . . lhe venham em
mentes.» Dos Cavalleiros, ut supra. Ordcn.. liv. i, tit . (>3.°, n .° 23 . °
• «E depois d'islo o ha de beijar em signal, ele.» Dos Cavalleiros, ut supra. 5 «IO isso meesmo bani de fazer todolos outros cavalleiros que forem em
aqucllc logar.» Dos Cavalleiros, ut supra.
CAPITULO III
SUMMARIO. — Lisboa O as hordcs castelhanas. — Os embaixadores a Ing la -
t e r r a .— Luzimento do mestre de Santhiago. — Nome da nau que o t r ans -
p o r t a . — As naus na edade-media . — Às galés, verdadeiros vasos de
g u e r r a . — N a u s e c a r r a c a s . — M e r c a d o r i a s . — O porto dc Lisboa. — Sua
importancia . — O chanceller do reino em uma barca . — Mar dc r o s a s . —
Ladrões sobre as aguas .—Boa ven tu ra .—A costa b r i t ann ica .—Plymouth .
— Fraternal acolhei ta .—A capital de Ing la t e r r a .—Embaixadas de hoje
c as dc ou t r ' o ra .— Oricntaes e marroquinas . — A Kussia cxccpçao g r a -
c iosa .— Os embaixadores em Londre s .—Tomam pousada. — Nome da
hospedaria c db hospedeiro. — O j a n t a r . — P a l a c i o dc João dc Gnunt ,
duque dc Lancastcr. — Porque o procuram os representantes de Por tuga l?
i
No dia 31 do março dc 1384, quando já se aproximavam de Lisboa as bordes castelhanas a fim de em circulo de ferro estreitarem a donosa capital, desferiram velas mar cm fora os embaixadores portuguezes
1 «Par l i romdc Lisboa postrimeiro dia dc março.» Lopes, parte 11, cap. 79 . °
O chronista , cxacto quanto ao dia do mez, equivocou-sc cm relação á era
designando a dc 1121 correspondente ao anuo de 1383 . Ora nesse dia era
\ ivo ainda el-rci l>. Fernando. Os embaixadores par t i ram cffcctivainente
no anuo seguinte 13Hi, quando os castelhanos se aproximavam dc Lisboa.
40 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
0 mcslrc «lo Santhiago, ao qual, como a quem era, se<aiia
luzida companhia dc fidalgos e freires da Ordem, embar-
c a r a - s e na nau ingleza denominada Lincoln que pela forma
da construcção arcava com todos os ventos, e mais segurança
contra o mar oflcrecia, do que outro quahpier dos imios
então construídos
Não tome o leitor a palavra nau na accepção absoluta que hoje lhe damos. Naus armadas em guerra havia já então* formando parte de frotas ou armadas e quando cumpria, o s governos dos diversos reinos fretavam ou embargavam a> que cm seus portos acertavam de estancear, ainda quãiub estrangeiras fossem. Mas os verdadeiros vasos de guerra, os mais consoantes ás lides marítimas da edade-media. eram as galés 5.
Às galés, diz um cscriplor francez de nossos dias 6. era
o navio de guerra por excellcncia. Quando se procedeu á
1 Froissart, liv. ni , cap. 39 . ° 2 «Qui va dc tous ventos, et plus s i i rcmcnl q u e nul lc au l rc .» Froissarl,
loc. cit. 3 Doze tinha Porlugal no re inado de I). F e r n a n d o . Lopes, Chron. dc
1). Fernando, cap. 91.®
* Tinham então estas palavras significação d is t inc la . «Os navios que som porá guerra , dizia a ordenação, q u a n d o som mui tos a jun t ados cm hum... chamam Frota; quando são mais poucos, dizem A r m a d a . » Ordcn. Áffom., liv. i, tit. 5 í . ° , n.° 5.°
3 Anteriormente á invenção da polvora e ao emprego da artilheria no mar , emprego que alguns aflirmam se deve aos por tuguezes , os verdadeiros navios de guerra eram as galés. Quintcl la , Annacs da marinha portugueza, parte i, Mem. i. pag. (>.
fi Dufourmanlcllc, 1M marinr militaire cn Vrance au commencemcnt de
Ia guerre de cent am, § , v . Vc ja - sc Ja l , Archéologie navale.
I). JOÃO r K A ALIJANCA INGLKXA
conquista de Ceuta. I). João I conferiu o mando de Iodas as naus ao grande infante D. Pedro, mas para si, como logar de primazia, reservou o capitanear a frota das gales
•])e conslrucrao ligeira,-movidas a remos, e por isso vo-gando rapidas sem dependencia de vento obedeciam cilas muito melhor á estratégia Eram os vapores dos nossos dias.
As naus regiam-se á vela. Altas de amurada, redondas c pesadas serviam principalmente, como as carracas \ para o carregamento de mercadorias.
As transacções commerciaes de Lisboa com as principaes narões eram naquella epoclia importantíssimas. Dc quatro-centos a quinhentos navios havia habitualmente sobre an-
1 «El - rcy Icuaua a Capitania das gales, & o infante D. lVdro das naus
leuando cada um seu farol pera regimento das outras .» Azurara , Chron. (le
I). João / . par te m , cap. 49 .° 2 A galé tinha dois mastros que se abat iam, c uma vela latina em cada
u m . . . E r a commummentc dc vinte cinco a trinta bancos com dois ou tres
reinos ; c dois ou tres homens a cada u m ; tinha dc 200 a 250 palmos dc
comprido, 30 dc bocca, o 10 dc pontal . Couto, Memórias militares, tomo I,
pag. 2 7 8 . 3 «A conslrucrao era torpe e defeituosa.» Quintclla, Annacs. lococitalo. 1 As carracas eram de maior bojo que as naus , redondas como estas, e
muito mais compridas e chatas, dilTcrcnçando-se das galés que tinham forma
longa, mas estreita. Navegavam ;i vela. Ducange, Gtossarium, verbo Car-
roça; Dufourmantel le , Mem.. loc. cil.
As carracas portuguezas 1 excediam ás dc todas as out ras nações por sua
pujança e corpulencia. Havia-as de quat ro pavimentos 2 . As exigências do
nosso commercio com o Oriente , c o exclusivo que t ínhamos, levaram-nos
á necessidade dc tão desmesuradas construccôes.
1 Jal, Moyen age et Rennais., tomo iv, verbo Marine. 2 «Os grande? carraqucs ont quatro jionts ou ftages.» Fournier,citado por Jal, ut supro,
C ) ( . D . JOAO I E A ALLIANÇA INGLEZA
c o r a ante os muros da nossa.capital grande parte d'esses vasos eram naus mercantes, e muitas dc proveniencia ingleza. A melhor d'estas fretou, como vimos, o mestre dc Santhiago.
11
Lourcnço Annes, cujo séquito menos numeroso reputavam
por isso mais comcsinho, conlcntara-sc com uma barca, onde
entrou com os seus
Mar de rosas os levou rola batida, e nem encontro tive-ram dc piratas, que tantos ladrões, ou talvez mais, diz o chronista flamengo 3, havia então no mar, como em terra. Tres dias tão somente estiveram vendo mar e cco 4. Ao quarto avistaram as costas de Cournouailles, e foram por fim surgir á barra de Plyrnouth Favoravel acolhcita hou-veram do |)ovo da cidade e de seus regedores. Destes rece-beram guardas que dos ladrões os defendessem c cavallos para todos os da numerosa comitiva.
1 «Por a grande espessura de mtiylos navios q u e assi j az i am ante a cidade,
iam os barcos Dalmada a|>ortar a Sanc tos . . . nom podendo marcar per antr'-
ellcs.» Lopes, Chron. dc l). Fernando, prologo. 2 «Embarcarom em dois nauios, o Mestre cm huma não <k Lourcnço Anncs
em huma barca.» Lopes, Chron. dc I). João I. pa r t e i , cap. 48 .° 3 Cuida-se geralmente que Froissart nascera f ranccz . E m franccz escreveu
as chronicas, mas era subdi to do condado dc H a i n a u t . Lacurne de S."
Palaye, Mémrire sur Froissart. — CoUcction Iluchon, tomo 10.° 4 Froissart , loc. cit. J «Chegaram a huma villa que chamam Pr iamun .» Lopes, loc. cit.
* Naqnclla epocha eram coalhadas de ladrões as es t radas de Inglaterra.
27 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Não se maravilhe o leitor de haver cada um daquelles altos funccionarios embarcado em navio dilíerenle.
O embaixador hoje em dia, por grande que seja a nação que vai represenlar, limita-se, como qualquer mortal, a seguir viagem na linha férrea que, mais presto o conduza, e nem sombras de apparalo indica a importancia do personagem. No tempo a que nos remontamos não era assim. Faustuoso luzimento presidia a qualquer embaixada, que se compunha muitas vezes de centenares dc pessoas de diversas categorias. Ainda hoje dão d isso aresto as embaixadas orientaes e marroquinas. No império da Rússia são também graciosa-mente oflerccidos ainda agora aos representantes estran-geiros e suas famílias trens especiacs nas linhas férreas, quando da capital vão em visita de etiqueta a alguma das imperiaes rcsidencias l.
Não nos deixaram as chronicas o riu mero, nem a quali-dade dos (pie seguiam os embaixadores, mas a aquilatar por outras embaixadas portuguezas esta que descrevemos, deveria cila ter sido hizidissima. e ainda superior á que a 11 nos antes havia o proprio chanceller desempenhado em Inglaterra.
A salvamento percorreram o mestre de Santhiago e Lou-rcnço Annes as noventa e I r e s léguas (pie entre Plvmouth e
1 Falia por experieneia própria o auetor d 'cstas l inhas, havendo tido por
duas vezes a honra de represenlar a sua patria na esplcndcnle côrte de
S. Pctcrshurgo. d 'onde passou para a de Madr id .
D. JOÁO I K A ALLIANÇA INüLEZA
Londres medeiam. Chegados á côrle dirigiram-se á ampla ma de Gracechnrch qne ainda hoje existe e onde enlão c o m seus estandartes e divisas pintadas a córes campeavam os p r i n c i p a i s hotéis da grande capital. Abi tomaram pousada
n o hotel do falcão dc que era dono Thomelin de Winchester s. Curioso episodio de ha cinco séculos!
Acabava justamente de soar a hora de terça (nove da
manhã), a que então era de uso jantar-se cm Inglaterra1.
Jantaram os viajantes como é natural, e anhclando por dar
começo ao encargo que lhes fora commettido, encaminha-
ram-se, finda a refeição, ao palacio de Saboia 4, residcncia
sumptuosissiina do duque de Lancaster quando habitava a
côrte.
Mas porque antes de tudo buscaram este príncipe os
representantes de Portugal ? Que motivos para tal preferencia se dar iam?
1 Esla rua tornara-se j á , como c agora , uma das pr incipaes artérias <la
cidade conduzindo directamcntc á velha ponte «le Londres . 2 «Si descendirent à Círecerche (Graceehurch) à 1'hotel au Faucou sus
Thomelin de Winchester .» Kroissart, liv. m , cap . x m . Kstc hotel era enlão
sem dinida um dos pr imeiros , e como tal o ci tar ia Kroissart . J «Vinrent à Londres aussi q u e à heure de t iercc. Si y dinncrent.»
Kroissart, loco citalo. 1 «Apres diner ils s 'ordonnèrent et p r i nd ren t les let lres Í|IIÍ s'adressoiont
au duc de Lancaslrc et à Ia duchesse, et s 'cn a l lè ren t devers eux.» Kroissart, loco ciUilo.
CAPITULO I\
SCMMARIO.—Joiío de (lauut.—Origem d ' c s t c n o m e . — E d u a r d o III, o grande.
— O príncipe de Galles, assombro do mundo .—In t imidade de João com
o poeta C h a n c e r . - Seu amor por Branca de Lancas te r .—O primeiro d u q u e
embaixador a Por tugal . - -Guer ra dos cem annos.— AJIianças com as
monarcliias de l l c s p a n h a . — Casamentos em Castella c P o r t u g a l . — J o ã o
dc Gaunt c a filha de Afíonso I V . — A infante de Portugal c o herdeiro
da coroa ingleza.—Consorcio a jus tado.—Silencio dos historiadores p o r -
tugueses .— Provas por documentos. — Chegam a Portugal embaixadores
inglczcs para realisarem o casamento .— Portugal frustra Ing l a t e r r a .—
Castella e Aragao. Politiea ntil i taria das diversas cor tes .—O egoismo.
— AlTonso l \ ' e o es tandar te da pá t r i a .
i
0 duque de Lancaster João dc Gaunt, assim cognominado em Inglaterra por liaver nascido na cidade de Gand em Flan-dres era quarto filho do grande rei Eduardo III. e irmão
1 Costumavam então em Inglaterra e ou t ros reinos dar aos príncipes
depois do nome propr io o da terra onde nasciam e eram hapt izados. Assim
foi E d u a r d o III cognominado E d u a r d o dc Windsor , l t i ca rdo II Ricardo de
Rordctis, etc. O d u q u e nasceu em Gand, porque naqucl la cidade se achavam
os inglezes, a lim de realisarem a pr imeira invasao da França duran te a
guerra dos cem annos. Gand era então muito maior q u e Paris , Ve ja - se
Froissart , liv. i, cap. 123.°
; j ( ) D . JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA
(lo i n v e n c í v e l príncipe de Galles, denominado o príncipe negro cujas heróicas façanhas, assombrando os do seu tempo. á lhe marcaram na posteridade logar proeminente entre os mais abalisados pelejadorcs
Conforme em numerosos versos revela o pae da poesia ingleza, o fecundo Chaucer \ contemporâneo 5, amigo inse-parável e por fim cunhado de João de Gaunt, como adeante se refere, amou este príncipe desde a infancia e ardentemente a suave Branca sua prima, filha de Henrique de Lancastcr,
t Usava «le armadura negra , para rea lçando sobre esta a alvura «Ia pcllc
se tornar mais gent i l : «t«» sei o(V lhe fa i rness of Itis comple\i«»n,.and so tu
improve his bonnc mine.» S t r ick land , Liv cs of llic Queens of Enyland,
[orno n.° 12.°, pag . 5 9 0 , 4 . ' cd . 2 «II étoit la fleur «le toute la chevalerie du monde .» 1'roissart, tomo
pag. 420 , é«lit. Buchon. 3 Unanimes são nestes geraes encomios os cscr ip tores de todas as nações,
sobrelevando-se entre estes Lafuen te na llist. de Espana. 4 «Laurent Minot, auteur «le poésies su r les gue r re s «1'Kdouard III. vers
1353 est peut-òtrc le premier poete original en anglais . Mais le plusgraiul
poètc anglais du iMoycn-âgc fu t sans compara ison GeolTroi Chaucer. Cli.
Nisard,» Lapocsie nationale chez les différents peuples de VEurope. Moyen-
âge, tomo iv. 5 « l i e was very early at tached to that d u k e . » T i r w h i t . An abstrai!... of
the lifc of Chaucer, Nota I. r> Diversos foram os poemas consagrados po r Chaucer a estes românticos
amores. Podem c i ta r - se : l h e assembly of f o u l e s — T h e complaint of the
Jllach Knight — The bookc of the Dutchessc , or lhe death of lí lanch.
Acerca do primeiro poema escreve o seguin te o intransigente Tirwhitt,
para o qual só tem fé o q u e em documentos se encon t ra . «Es te poema alludc,
como supponho, ao projectado consórcio de João de Gaunt e Branca dc Lan-
castcr, que se cf lcctuouem 1359 .» Notes on the Can te rbury tales vers. 1920.
«A pessoa do desolado cavalleiro negro lhe blach knight representa, diz
Stowc, João de Gaunt, duque de Lancastcr , l amentando a morte da que
31 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
o mais cumprido cavallciro dc Inglaterra \ e o primeiro que depois do príncipe de Galles leve naqucllc reino o titulo de duque
Henrique veio a INulugal como embaixador de seu primo, o grande Eduardo III. depois que este soberano encetando a furi-bunda lucta, denominada na historia «guerra dos cem annos», intentara a conquista da França. A fim de ;» invadir pelo norte, confederara-se Eduardo com a Flandres,caudilhada por Jacques de Artevelde, e com o imperador de Allcmanha Luiz de Baviera, que lhe conferiu o cargo de. vigário do Império 3. Não colhendo, porém, desde logo as vantagens que previra, resolveu o rei inglez aggredir pelo sul o inimigo, e para em mais apertado circulo o estreitar, buscou habilmente con-trahir a venças com os diversos Estados, em que se achava dividida a llcspanha christã.
profundamente amou, e que se julga ser Hranea, a duqueza .» John Stowe,
Notes on lhe poetical icorks of (1. Chaucer.
I)o terceiro poema declara-se auetor o propr io Chaucer, alludiiulo a si
mesmo :
«He
. . . hcke the Death of lilaunch thc Duchesse.» The Icgend of good Women,
prologue, vers. 418 . 1 «L'homme le plus accompli de la cour d 'Angleterrc, portoit au degré le
plus éminent Ia bicnfaisance, i, Ia valem et 1'esprit de con-
duite.» I lume, Ilist. dAnglet., tomo 2.", chap. 4 .° , t rad . «On l 'appclloit
le bon duc .» Hapin, Ilist. d'Angl., tom. u i , liv. x. 2 « l l ic erat p r imus dux Laneastrije et ante ipsum non occurri t 1'uisse
duccm, nisi in Cornubia .» Knvghton, Dc evenlibus Angliae, col. 2 6 0 2 .
Os duques foram crcados cm Inglaterra por Eduardo III. Froissart , Chio-
niyues, vol. n . pag. 124, note Buchon. 3 JJarnes. Rapin de Thoyras , tomo iu , liv. x, etc.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
Guerra «le !ão momentosa importancia não ciaria resultado
profícuo sem o concurso dc allianças mulliplices para conlra-
pezar a superioridade que sobre a Inglaterra linha enlão
França l.
A Portugal, Aragão e Castella foi pois enviado como em-b a i x a d o r Henrique de L a n c a s t c r C h e g a d o a Lisboa, á côrlc de Alíonso IV (1344) , iniciou as bases para o consorcio da infante L). Leonor, filha des t e soberano, com um dos prín-cipes inglezes, da mesma fôrma que cm Castella 1 cimentara a união do herdeiro da coroa, o terrível Pedro o cruel com a formosíssima filha de Eduardo III. a mallograda Joanna, cujas graças a haviam tornado idolo de trovadores e inenes-treis 4. Esta união, contractada definitivamente, veio a fros-trar-se pela tragica morte da princeza (1348) \
1 l lapin dc Thoyras , llist. d'Angtclerrc, t om. m , l iv. x. 2 Pleno poder dc E d u a r d o III. Ad t r ac t andum s u p e r Alligantias cum
magnífico príncipe Domino Alphonso Por luga l l i ac et Algarbi i rege. Torre
de Londres, 2 1 dc março de 1 3 í í . I t y m e r , tomo v , pag . 4 1 0 .
Ao uso do tempo compunham esta missão dois emba ixadores . Era o se-
gundo l l icardo, conde de Arundc l . 3 Carta de E d u a r d o III a AlTonso XI de Castel la , a p u d l lysing 11 dc
agosto de 1344 . R y m e r , tomo v, pag . 4 2 2 . 1 «The beautes and graccs of l h e . . . pr inccss J o a n n a . . . wcre sucli as to bc
the themeofeverymins tVel .»St r ick land . LivesoftheQueens,tomo 1 n . " 1 2 . °
' Dc Inglaterra par t i ra Joanna d e s e m b a r c a n d o cm Aqui t an ia . Esperada
cm Hayonna por seu fu tu ro sogro AlTonso XI e pelo propr io noivo, foi
victima da peste negra q u e então «grassava. No p rop r io dia em que devia
casar-se na calhedral conduz i ram-na ahi aquc l les pr ínc ipes para ser dada
á sepul tura. Sl r ickland, Lircs, tomo i , n . ° 12.°, pag . 5 7 3 . Vejam-se em
l lymer , tomo v, pag. 6 Í 2 - 4 4 as car tas repassadas dc tristeza 1 cscriptas por
Eduardo III ao rei e rainha dc Castel la , bem como ao infante noivo. 1 De morte funesta Johanoae liliae regis, Burdegal is t r a rumissac primogênito regi*
Ca. tellac maritamlae. Wcsmnistor, t u dc setembro dc 1 m . l lymer, loc. cit.
D. JOÃO I K A AI.LIANÇA INGLEZA 3 3
I I
Desejara também o monarcha inglez que se realisasse o projcctado consorcio da infante dc Portugal com seu filho João de (idiint, o mesmo a quem dedicamos estas linhas. Nesse intuito enviou ainda novos embaixadores apenas se lhe apresentaram os que primeiro haviam partido; mas ou porque boa acolheila não houvesse a proposta na côrte de Lisboa, ou pela desproporção das edades, ou por qualquer outra causa não mencionada pela historia, determinou-se finalmente Eduardo a sollicitar a mão da infante portugueza para o seu próprio herdeiro, o invencível príncipe negro
Nenhum de nossos antigos historiadores mencionou este enlace importantíssimo, e ainda menos se referiu ás variadas phases da negociação, aliás de vasto alcance para o reino s.
1 As i n s t r u ç õ e s de Edua rdo III aos novos embaixadores que enviava
d iz iam: «Libenter t raetare volumus cum domino rege Portugall iae super
matrimônio inter Johannem, lilium nostrum, et liliani dieti regis.» A d a m b a s -
satores, l)e instruet ionibus. Sandwiei , 20 de junho de 1345. Hymcr, Voe-
dera, tomo v, pag. 462 . Á rainha de Castella. (ilha «le AlTonso IV, escrevia
Eduardo o seguin te : «Ad matr imonium inler Johannem, lilium nost rum
carissimum, et sororem vest iam, inclitam illustris regis Portugalliae filiam
con t rahcndum. . . nos inveniet propensiús inclinatos.» Carta á dieta ra inha.
Sandwich, 18 dc j u n h o de 1345 . Kymer , tomo v , pag. 4 6 2 - 6 4 . 2 Vejam-se os documentos adeante citados. 3 O visconde dc Santarém limitou-se a extractar sem critério alguns
documentos da collccção dc Kymer omitt indo outros , c adulterando por
vezes o própr io extracto. Veja-se Quadro elementar das relações diplomá-
ticas dc Portugal, tomo xiv.
3
3 i D . i o A ü 1 t A ALLIANÇA INOLEZA
O noivo era um dos mais eminentes vultos do século XIV, e a Inglaterra sol) aquellc reinado começava a subir de im-portância entre as nações europeas.
I I I
Numerosos documentos provam que, além das embaixadas referidas, enviou Eduardo III a Portugal (novembro dc 1345) I r e s embaixadores 1 e ainda outros (julho de 1347), vindo estes auctorisados a contractarem definitivamente o casa-mento da infante com o herdeiro da coróa inglcza *, o prín-cipe negro, bem como a estabelecerem as condições de dote c arrhas, e o tempo em (pie devia a infante de Portugal ser levada a Inglaterra :<.
A rainha dc Castella I). Maria, filha de AlTonso IV e irmã da noiva, tomou parte inuiactiva para o ajuste d esta alliança,
1 Ad regem Portugall iac, De Credent ia . Carta a AlTonso 4." acreditando
tres embaixadores para convencionarem sobre o casamento . Westminster,
8 de novembro dc 1345.
Pleno poder aos referidos embaixadores para cont rac ta rem o matrimônio
do príncipe dc tialles ou dc um dos ou t ros filhos de E d u a r d o com uma das
filhas de AlTonso 4.° Westmins ter , ut supra. Kyiner , tomo v, pag. 482 . 2 De tractando super matr imônio inter E d u a r d u m pr imogeni tum regis &
Leonoram regis Portugalliae filiam. Pleno poder aos embaixadores Roberto
Slratton, concgo da cathcdral de Chcster , e mes t re Ricardo dc Sahaud.
Cerca de Calais, 7 dc ju lho dc 1347. Rymer , tomo v, pag. 574 . J Dc tractando su|)cr dicto matr imonio & de te inpore, quo dieta Lconora
m Angliam sit t ransmissa. Out ro pleno poder aos mesmos embaixadores. Data ut supra. Rymer , loc. cit.
D. JOÃO I li A ALUAM-A ÍNGLHZA
como si1 ve das diversas carlas que lhe dirigiu Kduardo III ! ; e (jue mui a contento creste monarcha o de seu heroico filho era oconsorcio prova-o a carta authentica do soberano inglez ao chanceller de Portugal, Gonçalo Ànnes Hispano Mas depois dc haver Eduardo escripto esta carta (7 de jullio de 1347) e enviado os últimos embaixadores para eííectuarem o casamento e acompanharem ate Inglaterra a infante, vieram elles encontral-a cm Lisboa desposada havia mais de um m e z com o rei de Aragao, Pedro o ceremonioso \ que, temen-do-se do rei de Castella e querendo estreitar alliança com Portugal, sollicitara de AlTonso IV a mao da infante 5.
Por sua parte buscando o rei de Castella evitar este con-
1 Ati regi na m Castellae super - . , sponsal ibus. Sandwich, 18 de junho de
1345. Kymer, v. pag. 462 . Ad rcginam Castellae. W c s l m i n s t e r , 1 3 de agosto
dc 1345 . Kymer, v. pag. 477 .
Idem. Westminster , 8 de novembro de 1345. Kymer, v. pag. 4 8 3 .
Idem, idem, 18 dc março «le 1346 . Kymer, v. pag. 502 . 2 Littera missa regis Portugall iae cancellario. J u x t a Calcsiam, 7 de ju lho
dc 1347. Kymer, Acta, tomo v, pag. 571 . Este alto funccionario portugiicz
nâo vem mencionado no catalogo dos chancelleres de Portugal escripto por
Trigoso. A sua existencia é porém indubitavcl mediante o documento supra . 3 «Manda sesMcssagcsau Roy de Portugal ouc (avec) pleine pocr d 'af lermer
le dit Mariagc.» Instructioncs super Matrimonio Hispaniae. Westmins tcr ,
15 de fevereiro de 1348 . Kymer , tomo v, pag. 612 . 4 E d u a r d o assignou os plenos poderes a seus embaixadores a 7 de ju lho ,
c a 11 dc junho haviam-se realisado cm Santarém os desposorios da infante
com o rei de Aragao. Sousa, Ilist. gencal. da Casa Real, tomo 1.°, liv. 2.°,
cap. 5 . ° ; Zur i ta , Anales de Aragon, tomo 2.°, l ib. 2.°, cap. 6.° s «Keceando-sc el-rei I). Pedro o 4.° de Aragao de e l - re i dc Castel la . . .
querendo conservar a amizade d'elrei de Portugal concertou casamento com
a infante I). Lconor, filha d 'estc soberano.» Nunes de Leão, Chron. de
D. Affonso 4.°, pag. 169, ed. l . â
*
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
sorcio. pedia outrosim a mesma princeza para seu sobrinho,
() infante D. Fernando. 0 embaixador, porém, que era o celebre I). João AlTonso d'Albuquerque, o do ataúde, chegou á côrtc porlugucza apenas quarenta e oito horas antes de se realisar o enlace f. Nada conseguiu por tanto, apezar de ser
sobrinho de AlTonso IV 2.
A manifesta desconsideração, com que pelo rei portuguez
foi tractado o soberano de Inglaterra, desgostou este ao ponto
de mandar ofíicialmente declarar que, se o casamento sc
mallograra, não fôra por sua culpa \ e que só tarde houvera
elle conhecimento d aquellc facto, quando os seus embaixa-
dores voltaram de Portugal \
I V
Km tão intrincado labyrintho de negociações e enlaces é muito para ver a política utilitaria, que dirigia as diversas côrtes.
1 Nunes de Leão, Chron. de D. Afonso 4.° — M<>n. Lusit., parle vil, liv. 10. ' , cap. 9.°
2 Era. como já dissemos, filho de AlTonso Sanches , i rmão natural d'csle rei . e cm Castella senhor d 'A lhuquc rquc . I) 'ahi vem o appell ido ás famílias que d elle descendem. Nobiliario do Conde I). Ped ro . Sousa , llist. gental., e outros.
3 «Avant que les dits Messagcs poaint venir ao Roy de Portugal , le dit
Roy avoit inarié sa filie ao Roy d ' A r a g o u n . . . Si q u e le Mar iagc dc sou Fils,
I e Prince, faiUisl sanz sa coupc.n Ins l ruct ioncs super Matr i raonio Ilispaniac.
Westminster, 15 de fevereiro dc 1 3 i 8 . R y m e r , tomo v , pag. 012 .
<(l>e quoi . . . nc feust mye ccrtiíié tant q u e ore tarde que ses Messagcs vyndront dc Portugal.» Instruct iones, ut supra.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
0 rei inglez para se fortalecer contra França ajustava uma «le suas filhas com o herdeiro de Castella, e olTcrccia o seu proprio herdeiro á filha do rei de Portugal, sendo unicamente por culpa d'este, como vimos, (pie se não realisou oconsorcio.
Aflonso XI, a fim dc isolar o rei dc Aragao, esforçava-se por estorvar-lhe o casamento com a infante portugueza, e sollicitava-a |>ara seu proprio sobrinho.
Pedro, o ceremonioso, para se precaver contra os arrojos do castelhano empenhava-sc cm ter por sogro Affonso IV de Portugal
Este, desconfiado sempre de seu genro AlTonso XI, com o qual ainda pouco havia lidara em guerra, preferia, no intuito dc o collocar entre dois fogos, a alliança do Aragao á alliança ingleza. Em vez dc elevar a gloria de sua patria, dando a filha ao heroe d'aqucllas eras, ao vencedor de Poitiers e Grécy, loi ligal-a ao rei da mais acanhada monar-chia «le Hespanha, conhecido apenas na historia, alem dc seu perverso character - por ser o auetor de um ceremonial de córtc
A política utilitaria foi sempre a mesma. AlTonso IV manteve ao menos isento de influencia extranha
o estandarte glorioso de AlTonso Iicnriques.
1 «Propuso de confederarse en mui cslrccha amistad cõ clKey dc Portugal
pera en qualquicr succso.» Zuri la , Analcs dc Aragon, l ib. 2.°, cap. 0.° 2 «Fuè la condicion rtclKey don Pedro lan perversa c inclinada al ma l . . . »
Zuri la , l ib. v iu , cap. 5.° 3 A íntegra d'csta ordenação c contida no precioso códice que se encon-
trava em a sala E da exposição de arte ornamental rcalisada cm Lisboa o
anno passado. Per tencia á collcccão hespanhola.
CAPITULO V
SUMMÀRIO. — João dc Gauní esposa a herdeira de Lancaster . — Nasce F i -
lippa fu tura rainha dc P o r t u g a l . — Grandezas . — Morte de Branca . — O
duque em Escócia c França. — Com o príncipe negro invade Cas te l l a .—
Pedro o cruel.—Vencem a batalha dc N a j a r a . — J o ã o caudilhando a
vanguarda. — Pedro rest i tuido a C a s t e l l a . — f i morlo por seu proprio
i rmão. — Desamparo das filhas. — A herdeira e o d u q u e de Lancaster. —
Segundas nupe i a s .—Ambições dc conquista . — Alto alcance da alliança
com Por tugal . — Presentam-se os embaixadores . '—Como são recebidos.
I
João dc Gaunt, segundo atraz fôra dicto, amava desde a infância sua prima, 15rança de Lancaster !. Mal acolhido a principio tanto portou juneto da bondosa 3 princcza, que por fim logrou chamar-lhe sua \ D esta auspiciosa união
1 «Whom hcc intirely lovcd.» John Stowc, Notes on thc Chauccrs Works.
The hooke f)f lhe Dutrhcssc. 2 Chauccr, The hooke of thc fíutchesse. vers . 1 2 4 3 - 4 4 . 3 «MadameBlanchc, Ia três honncduchcssedeLancas t reavccqucsmadamc
l;i reine Philippc dWngle te r re ; je ne xis oneques deux meilleures dames .»
Froissart , liv. ui , cap. 32.° 4 Eflfccluou-sc o casamento, obtida dispensa d<> Papa , em 10 do maio
de 1359. Walsingham, Ilist. brevis. pag. 173.
4 ( ) D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
veio ao mundo entre outros filhos uma menina, sobre cuja fronte a Providencia collocou. andados annos, a coroa de Portugal.
Por morte do duque e dcMalhilde, sua íillia primogênita veio clíecti vãmente Branca a herdar a descommunal riqucia da casa dc Lancaster, tornando d e s f a r t e seu marido 1111 dos mais opulentos príncipes de Inglaterra, e ainda da chris-tandade. Mais esplendida corte o cercava, do que a da má-xima parte dos soberanos da Europa actual.
Não fruiram largo espaço os dois cônjuges a felicidadí que tão ampla lhes sorria. Na flor da juventude pereceu -1 virtuosa Branca 3 deixando orphfi aos nove annos a lilh;i IJIU.'
estremecia, e nos extremos da dor o marido que idolatrava.
1 Numerosos aue tores , e en t re esses o v isconde de San ta rém l , escreveram
que Branca de Lancaster fora filha ún i ca . AÍTirmaram out ros que fôra pri-
mogêni ta .— Duplo erro . — Mathi lde , a primogênita casou com (iuilherme.
conde de Zelandia, filho do imperador Luiz de Bav ic ra , mas tendo sobro-
vivido apenas um anuo a seu pae (1362) o p r i m e i r o d u q u e de Lancaster,
morto de peste (1301) , foi por isso Branca a he rde i ra universal d'aquclla
opulcntissima casa. Ve ja - se F ro i s sa r t , liv. i , c a p . 4 7 0 ; Knyghton, col.
2625-21»; Rapin , liv. \ . pag . 2 3 0 ; ImolT. Hegum Magnae Britar. Ilist.
geneai., cap. m , tal», v. 2 Wals ingham, Ilist. brevis. pag . 1 8 í .
«Being a woman verv devout .» C h a u c e r ' s A. B . C . , no t a . Esta poesia
A B C, ou, como então lhe chamavam, «La p r i c r e de Nost re Dame» com»'-
çando por cada uma das let t ras do a lphabc to , foi escr ipta por Chauccr,
dizem os seus eommentadorcs , a rogo de Branca dc Lancas te r romo oração
para seu uso par t icular .
« Quadro ciem. das rc/aç. diptom. dc Portugnl, tnn.o xiv, prologo ás rei. com IngMcrrt.
41 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
II
No cmtanto progredia implacavcl en t re Ingla tma c França a já mencionada guerra dos ccmannos. Nes t a exercitara as primeiras armas João de Gaunt, tendo sido por seu pac 1
armado cavalleiro (1355). Em incessantes lidas se assigna-lava, já invadindo por diversas vezes a Escócia e a França, já atravessando de mão armada todo o lerritorio inimigo (1370) desde Galais até Hordcus \ já exercendo em nome de el-rei seu pac o cargo de logar-tenente 3 em Aquitania e demais possessões inglczas no lerritorio hoje francez
Outro reino experimentou ainda a ardideza incançavel do duque de Lancastcr.
Pedro o cruel, rei de Castella, fôra expulso do llirono por seu irmão natural Henrique de Trastamara 5. Não encon-trando o ininimo gasalhado em seu tio, Pedro 1 de Portugal, que arteiramente lhe cerrara as portas da côrtc portugueza para se não involver na lucta entre os dois irmãos 6 , foi o
1 Knygh ton , col. 2 0 0 8 . 2 Sobre esta excursão veja-se Miehelet, llist. de Vrance, l i \ . vi, cap . 4 .°
Wals ingham, pag. 187. 5 !)«• Johnne rege Castcl lae. . . capi tano gencrale consli lulo, Carla patente
de E d u a r d o III. Westmins ter , 12 de j u n h o de 1373 . Rymer , tomo v, pag. 13. 4 «Tant cn nostre Uoiaulme dc Francc, come cn Aqui ta igne.» Carta ,
ut supra.
Ayala , Cron. delltei/ don Pedro e demais his toriadores. fi «Se clUcy escusou de o ver c lhe fazer a j u d a . » Lopes, Chron. d'cIRd
l>. Pedro, cap. xxxvm. Veja-se Ayala, Chron. citada; Mar iana , llist. gcn.
de Espana, libro XVIII, cap . 8 .° Nas antigas Memórias extrahidas das l l i s t .
de Dugucsclin por Estoulevil lc (1387) encontra-se q u e l>. Pedro I recebera
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
castelhano com as infantes, suas filhas, demandar o auxilio (Tcneroso do príncipe de Galles, (pie então governava Aqui-tania f . Celebrou com este um tractado" para com o soccorro das a r m a s inglczas reconquistar o throno, e como refens deixou em Bayonna as próprias filhas 3.
111
Invadiram inglezcs a Castella caudilhados pelo lieroe dc
Poiticrs, e por seu irmão o duque de Lancaster (1307).
cm Lisboa o fugitivo, c lhe aconselhara q u e p rocurasse o auxilio do prín-
cipe do Galles. Estas asserções discordam da na r ração feita por Fcrnão Lopes
c Ayala contemporâneos de Estoutevil le, porem q u e melhor dc> iam conhecer
os successos que historiavam, por serem na tu raes da península . Vide An-
ciens Mcinoircs du XIVsvde: Dugucscl in , na Co 11.I'ctil<>t, tomo iv, cap. xiv.
«Do Ia \a ine tentativo que lit Pi erre aupròs < I < i roi de Por tuga l pour enobtenir
du sccour.» Veja-se lambem Johncs , Notas a Froissart, t r ad . ingleza, liv. i,
cap. 23.", pag. 312 . 1 Eduardo III havia estabelecido a independência , ou autonomia como
hoje se diz, da Aquitania (1362) sob o sccplro de seu fdho, o príncipe de
Galles com a condição de que annua lmente pagar ia urna onça dc ouro á
coroa ingleza em gracioso t r ibuto de vassal lagcm. Ve ja - se o propr io docu-
mento em Kymer, tomo v, pag. 3 8 9 . Littera pr inc ip is Aqui taniae a patre
tenenda. Wcstminster , 19 dc ju lho dc 1362 . 2 Em Bayonna, no caslcllo da cidade, a 9 de fevereiro dc 1366 . Este tra-
ctado foi confirmado por outro que se ul t imou cm Libourne no convento
dos frades menores em a camara do pr íncipe a 2 3 de setembro seguinte.
Kymer, tomo IU, parte ii , pag . 115 c seguintes .
* Tractado dc confederação, ut supra. Kymer , tomo w , pa r te li , pag. 11o, Ayala, Crônica dr dnn Pedro. ano 1366 , pag . 1 3 3 ; Lafuen te , tomo 7.% P«S. 278.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
Pelejaram e venceram a batalha de Najara (23 de abril), uma das mais memoráveis do XIV século f. Nobremente se assignalou abi João de Gaunt capitaneando a vanguarda i . Esta victoria rcstituiu ao throno castelhano o monarcha des-pojado. Pouco tempo o logrou todavia.
Auxiliado pelas terríveis companhias de avcnturciros-sal-teadoressob ornando do celebre Duguesclin, um dos capitães des tas , o bastardo de Trastamara penetrou de novo na asso-lada Castella, investiu com el-rei seu irmão, derrotou-o na batalha deMonliel, cahi por suas próprias mãos lhe arrancou a vida depois de lhe haver usurpado a corôa 3.
Em total desamparo se íicavam entretanto na cidade de Bayonna as orphãs de el-rei D. Pedro 4. Fallecida a primo-gênita, apressou-se João dc Gaunt a contrahir nupcias com a immcdiata, I). Constança e desde essa hora invocando os direitos de sua nova esposa, corno herdeira de 1). Pedro, resolveu conquistar por torça de armas a corôa dc Castella.
Em tal conjunctura a alliança dos portuguezes, que em
1 Ayala, Crônica, ut supra, ano 1.1(57; Lopes, Chron. dc I). Fernando.
cap. xix; Lafucnte , llist. dc Espana, par te 11, l i \ . m , cap. 17.° 2 «In prima acic erat dux Lancastr iac .» Knvghton , col. :2(>29. 3 «Don P e d r o . . . hubiera acabado con ei bastardo, si Hcrtran Duguesclin
tomando con su hercúlea mano por el pie a don E n r i q u e . . . nó le hubiera
puesto sobre don Pedro .» Lafucn te , par te II, liv. m , cap. 17.° 4 «Lcsquellcs étoicnt cn la cite dc ttayonnc... toutes égarées, dont on
pouvoit avoir g rand pit ic.» Froissar t , l i \ . i , cap. 454 .° 3 Nasceu I). Constanea cm Castro Xeris ein ju lho de 1354 . Tinha por
tanto dezoito annos quando casou, e seu mar ido tr inta e dois. Veja-se Ayala,
Crônica dcHici/ don Pedro, ano v, cap. 13.", pag. 131.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
poríiada guerra se achavam com aquclle reino, era de s I • alcance para os inlenlos du ambicioso duque. Foi p 0 r j! ° que antes de ludo se dirigiram ao seu palácio, como d i s s j , ^ os embaixadores de Portugal. 1 °s>
Pode calcular-se como seriam recebidos.
Entremos no palacio.
CAPITULO VI
SIJMMARIO. — Amplíssimas possessões da casa dc Lancastcr. — O palacio
d e S a h o i a . - Esplendores . - Joiio o bom, rei dc França. — Seu cap t i -
veiro. — Incêndio. — Uccdilicacão. — Sem rival. — Primeiro renasci -
incuto. — Progressos. — A magnanimidade do d u q u e . — Proteccao aos
grandes vultos. — Chaucer. — O Dantc e líoccacio. — Kroissart . — Frei
João, o pr imeiro physico dc Ing la te r ra .—Wicklcf , precursor de Luthcro.
— Tolerancia . — Influencia immensa. — João de Gaunt em E s c ó c i a . —
Insurreição cm Ing la te r ra .— A jacqueríe.— Cem mil revolucionados.—
A egualdadc completa. — Horrores . — A duque /a e as (ilhas do d u q u e .
— Para Escócia . — O castello de Pontfract . — Desamparo. — Alta noite.
— Sete léguas a pé. — Salvam-se. — Episodio na vida da rainha Filippa
ignorado em Portugal .
i
Por diversas províncias de Inglaterra, e ainda fora. possuia o duque de Lancastcr innumeros palácios, parques e castcllos, nolando-se entre oulros o dc Ponlfract, onde fôra degollado seu lio avô, Tliomaz, conde dc Lancasler1 que a egreja venera, como saneio, o de Hcrllord, sob cujas florestas passava Branca
1 «Indulto le elRey dei a r ras t re y cuerda concediondo misericordioso q u e
niuricse degollado.» Escosura , llist. constitucional de Inglaterra. libro ir,
cap. 2.°, pag. 2 5 1 .
62 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
a mor parte do anuo; o dc Heauforl d onde tiraram nume os filhos do duque c de sua terceira esposa; o dc Leycestcr, o de T u t t e b u r y o de Richmond, e outros muitos.
Dentre tão allcrosos ediíicios sobrelevava-se em esplendor e riqueza o que na côrte servia de residencia aos opulentos senhores de Lancaster. Tinha por nome palácio de Saboia Banhavam-no em toda a sua extensão as aguas du Tamisa 4. au longo de cujas margens se dilatava a grande fachada cm silio amenissimo juneto a uma das antigas portas da cidade (lemplc bar) não longe de Wcstminster. llccdilicara-o luxuo-samente o primeiro duque, tornando-o o mais sumptuoso palacio de Inglaterra3 . Como tal fôra escolhido para resi-dencia du rei de França, João, o bom, durante u seu capti-veiru em Londres e quando au depois voltou a esta curte 7, onde fallcceu (8 de abril dc i3(>i).
1 O castello de Bcauforl ao sul da França veio á casa dc Lancasler pelu
casamento de Branca (1'Artois com E d m u n d o , conde de Lancaster, avô do
primeiro duque. Bell/. (Lancaster hera ld) , Memoriais o/ lhe most Nobleorder
of lhe Garter, pag. 135. Veja-se l i n d a i Note á Hapin de I h o y r a s , Ilist.
dAnglcterre, liv. x. 2 Lingard, l/istory of England, tomo 1.°, pag . 5 8 9 . 3 Assim chamado por nout r 'o ra haver per tencido ao conde Pedro dc Saboia
que o doou á confraria de Mont jo ie . A esta comprou-o a rainha Leonor,
esposa de Henr ique III que o deu a seu filho E d u a r d o , o corcunda, conti-
nuando desde então na casa de Lancas le r . Ve ja - se T inda l , Note á Ihistoire
d Anglcterre de Hapin, tomo 3.°, liv. x. 1 Froissart, liv. i , cap. 480 . °
• «Mancrio ducis Lancaslr iae, tunc pu lcher r imo mancr io Angliae.» Knyghton, De eventibus Angliac, col. -26-27.
b Ihoyras , Ilist. d Anglcterre, livre x. pag. 21 <i, edie . dc 1719. : Knyghton, col. 2«27 ; Froissar t , liv. 1 . " , chap . 3 7 8 . ° ; Lingard, ilist.
o f England, vol. i, chap. 19."
I). JOÃO I K A Al.MANCA INUI.EZA 4 7
Posteriormente. e apenas quatro annos antes (13<SI) da chegada dos nossos embaixadores, fora aquellc palacio. como outros muitos da esplendida capital, reduzido a cinzas pela sedição popular, adeanlc mencionada, e destruídas assim as cxlraordinarias preciosidades (pie encerrava l. Mas a muni-ficencia dc João de Gaunt restaurou-o ainda mais sumptuoso, enriqueceu-o com tudo que as artes já então cm iniciado renascimento podiam ministrar-lhe, e tornou-o sem egual entre os demais. Assim o aílirmava naquelle proprio tempo um grave historiador coetanco nas seguintes palavras: «o palacio do duque dc Lancastcr que chamam dc Sabota não tem outro que possa scr-lhc comparado \ »
Como todos os bens de tão poderosa casa passou á corôa este magnífico edifício pela exaltação de Henrique IV, filho de João dc Gaunt, e décimo terceiro rei de Inglaterra depois da conquista normanda. Como volver dos annos transformado o palacio em hospital por Henrique VII, e por fim cabido cm ruínas, foram estas de lodo arrazadas quando se construiu a
1 Nenhum rei christão, escreve Knyghton, auetor contemporâneo, possuía
naquelle tempo um lhesouro de preciosidades maior, nem talvez egual. Só
de vasos e outros objectos dc ouro e prata era tal a abundancia , que cinco
carros mal chegariam para t ransportal-os. Tudo foi dest ruído.
Deu-se então um caso horrível.
Na cava encontraram os malfeitores vinhos tão preciosos, que os que
entraram cmbriagando-sc, c i rrompendo em desatinos, foram de repente
sitiados pelas chammas. Não podendo sahir , horridos brados soltavam sob
as abobadas. Estes brados foram ainda ouvidos durante dias, mas ninguém
os salvava: «ncc crat qui eos adjuvare t .» Assim pereceram. Ivnyghton,
col. :><>35. 2 «Mancrium ducis Lancastr iac vocatuin Salwey... non liabcns sibi
simile.» Knyghton, loc. cit.
D . JOÃO I K A Aí-LI ANCA INGLKZA
moderna ponle de Watcrloo ficando de pé tão sómentc a capeila que, na fôrma da presente gravura, ainda hoje existe depois de interiormente restaurada e engrandecida por gra-ciosa iniciativa da actual soberana, a rainha Victoria.
A cape)Io dc Saboia. Únicos res tos do palacio.
( I l lus t ra tcd London News , 1843).
ii
Xào eram sós porém a riqueza e a magnificência que então opulentavam o grandioso edifício. Naquella epocha dcclml-liçilo social, cm que as trevas dos séculos anteriores come-çavam a csvaecer-sc, e os progressos do primeiro renascimento irrompiam sob diversas formas, a grande alma do duque de Lancaster abraçara-as todas.
De sua mãe. a generosa Filippa dc Hainaut, herdara clle
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
o nobre intuito de apreciar os talentos insignes, e de engran-decel-os l .
Chaucer, o fundador da poesia nacional, o cmulo condigno do Dante e dc Boccacio Froissart, o historiador ]>oeta, o ainda hoje festejado chronisla :t, tinham como própria a casa dc Lancastcr.
Da mesma honra gozava um pobre frade meridicante, frei João, só porque a adestrado vigor nos campos de batalha reunia ser o primeiro physico de Inglaterra \
0 celebre Wicklef, precursor de Luthero, como lhe cha-maram, condemnado em sua doutrina e repellido geralmente,
1 «Phelippa in conjonclion with her son John d u k e of Lancastcr
warmly patronized Chaucer.» Str ickland, Lives of the Queens, tomo 1.°,
n .° 12.°
Froissart pelo seu talento exerceu duran te muitos annos o cargo de escrivão
da camara da rainha Fi l ippa, e a cila olícreceu o pr imeiro livro dc suas
chronicas. Veja-se o mesmo Froissar t , liv. i, cap. 1.° 2 Todos os biographos de Chaucer são unanimes em asseverar esta in t i -
midade. Para proval-a basta saber -se que Filippa Kouet, por alcunha a Pi-
carda em conseqüência de haver nascido cm Hainau t sobre as f ronte i ras da
Picardia, era irmã dc Kat tcr ina Kouet, governanta das filhas do duque de
Lancastcr, com a qual este pr íncipe casou a final cm terceiras nupeias.
Veja-se Str ickland, toe. cit.; T i rwhi t t , -l/i abstract of the histórical pas-
sages ofthe lifc of Chaucer; Codwin , Life of Chaucer; Chatcaubriand, Es sais
sur la litterature anglaise; Gomont , Clco/frcy Chaucer, Analyses et fra-
Qmcnts; IJeltz, Memoriais, pag. 154. 3 Pelo q u e respeita a Froissart diz o seguinte um dos seus mais aue tor i -
sados b iographos : «Froissart depuis 1329 jusqu 'à 13G9 passa une part ie
considcrablc cn Angletcrre attaché au roi (Edouard III) et à la reine (Phi -
lippe de l la inaut ) et \ i \ a i t dans une espèce de familiarilé avec les . . . pr inces
leurs enfants.» Lacurne de S . u Palaye, Mémoir. de 1'académie des Inscriptions,
tomo x. 1 Knyghton, Dc eventibus Angliae, col.
I
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
encontrava no tolerante príncipe4 , embora este lhe nãoespo-zasse os dictames, amizade ininterrupta, e defensão acriso-lada 2. O palácio de Lancaster era asylo franqueado sempre a quantos em scicncias ou artes buscavam avantajar-sc.
Mais. Legitimo soberano de Inglaterra, se chegasse a faltar o que então reinava 3, e cuja inaptidão começava a transpa-recer. João de Gaunt pelas eminentes qualidades que o engran-deciam, por sua experiencia c longos serviços a pró da In-glaterra, era geralmente considerado successor condigno de Eduardo, o grande. A influencia que sobre os negocios do reino exercia, tornara-se por tanto immensa.
III
A fim de á sombra de tão ampla influencia poder o duque de Lancaster negociar, como elYec ti vãmente negociou \ mais vantajosas tréguas com a Escócia achava-se aquelle príncipe (1381) na fronteira dos dois reinos 5, quando rebentaram as sedições que atraz referimos.
1 A tolcrancia dc João dc Gaunt p rova-se pelo seguinte facto entre muitos:
Até ao fim da vida teve por confessor frei João K i n i n g h a m , f rade carmeli-
tano, ao qual dedicava grande est ima. Es te foi o pr imei ro q u e se prestntuu
á arena das contendas escholares contra Wick le f , t ambém m u i protegido pelo
duque (segundo vimos). 1'itseus, De rebus Anglicis, l iv. i , pag. 5 6 í - o . 2 «Wicklef avoit pour protecteur lc d u c de Lancas te r , dont l'autorité
n c t o i t g u è r e moins rcdoutable q u e cclle du ro i .» T h o y r a s , Ilist. dAnglet.,
liv. x ; Knyghton, De eventibus, col. 2G68. 3 Lingard, Uistory of England, tomo i . 4 «Factum est, Dco volente, u t fe rmarentur t rcugac ad instantiam ducis.»
Walsingham, Ilist. brevis, pag. 2 7 9 . 5 Knyghton, De eventibus, col. 2G40, l in . 30 . 4
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Tendo estes alborotos relação directa com um facto concer-nente á vida intima de Filippa, futura rainha de Portugal, e sendo este facto desconhecido inteiramente entre nós, pois que nenhuma das antigas chronicas o menciona, julgámos de interesse historico dar-lhe publicidade. Ao leitor portu-guez não desagradará a leitura, cremos. Eis o caso.
O povo miúdo, alborotando-se nos condados dc Kent e de Essex em consequcncia de extorsões com que certos exactores do (isco o opprimiam, arrojou-se furibundo contra a capital, sendo-lhe abertas as portas (jue então havia sobre a ponte de Londres (London bridge) Eram mais de cem mil ho-mens " entrando dc tropel.
Cegos de fúria, practicaram os horrores fáceis de conceber. O seu brado era (pie, filhos dAdão os homens todos, cumpria reduzil-os a egualdadc completa 3. N'esse intuito arrazavam quanto encontravam; feriam de morte quantos nobres ou funccionarios lhes cahiam em mãos, e lançavam fogo aos mais sumpluosos edifícios, sendo entre os primeiros redu-zido a cinzas o palacio de Lancastcr.
1 Froissart , liv. 11, cap. 110.° 2 Rapin dc Thoyras , liv. x, pag. 2 9 0 , 3 . 8 cd. 3 «Étant tons enfants d 'Adam, il ne devoit y avoi r . . . ni distinetion ni
supérior i té , ct tout devoit è t re possédó cn commun.» Wal lcy , Noieà VAbregé
historique des actes publies d'Angleterre, tomo 3.°, pag. 563 .
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
IV
Alienadas com lamanhas atrocidades, as filhas do duque c sua esposa buscaram ir juneto d'elle acolher-se, partindo açodadas caminho dc Escócia
Entradas no condado de York ao norte de Inglaterra, diri-giram-se ao caslello de Pontfract, propriedade da casa de Lancasler, como já referimos. Os de dentro, ao vel-as em tal conjunclura, recusaram abrir as portas. Renegaram esposa e filhas do proprio senhor, cuja voz mantinham 2. Tal era o terror que então dominava!
Desamparadas assim, retrocederam as princezas «quasi vexadas, diz o chronista inglez, ao verem-se repellidas de sua própria casa 3.»
Era alta noite. Perdidas atravez da densidade das trevas, as desconsoladas senhoras erraram durante o espaço de sele léguas sem encontrarem quem d'"cilas se condoesse. Por fim extenuadas de fadiga poderam ao primeiro clarear da manhã colher a estrada (pie levava á cidade de Knaresborough, onde se asylaram até que, debellada a terrível insurreição, volveu a seus lares o magnanimo duque \
Este notável episodio occorrido na juventude de Filippa
1 Knyghton, De eventibus, col. 2 6 4 0 . 2 Knyghton, loc. cit. 3 «Et quasi a própria domo cum pudore in lass i tudine repulsa.» Kny-
ghton, loc. cit. 4 O mesmo chronista.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
de Lancasler, depois rainha de Portugal, era, como dissemos, ignorado entre nós completamente. De sua veracidade não ha porem duvidar, pois (pie o refere historiador mui sizudo, morador em uma das cidades sujeitas então á casa de Lan-casler, c contemporâneo do proprio succcsso (pie refere.
Mas em longas divagações fomos engolfando o animo do leitor. Seja-nos desculpa haverem cilas relação intima com factos notáveis da nossa historia.
Colhamos velas. Busquemos os embaixadores, que noatrio deixámos do palacio dc Lancaster.
CAPITULO VII
Si >FMARIO. — Os embaixadores no palacio dc Lancaster . — A camara do
duque . — À duqueza . — A dor dc enxaqueca. — O chancellcr per i to em
francez. —Cartas do mestre d'Aviz.—OfTerlas. —Conquis ta de Castel la .—
Especiarias e vinhos. — O duque c os embaixadores . — Luxuosa barca. —
O Tâmisa . — Os paços de Wcs tmins t e r .— O rei dc Inglaterra . — As c rc -
denciaes. — Favoravcl acolhimento. — Comi tê a j a n t a r . — Três barcas
reaes. — R a n q u c t c . — A duqueza . — Fil ippa, fu tura rainha dc Portugal .
— Ret i ram-se as senhoras. — Toast inglez. — Os \ inhos c os embaixa-
do re s .— Volvem as princezas. — Suas donas cdonze l l as . — A formosura
ingleza. — Dentre as mais bcllas uma. — Seu nome c situação na casa
dc Lancaster . — Um mysterio de ha cinco séculos.
I
Dc viver muilo mais regular que o de nossos dias eram os robustos homens da edade-media. Erguidos ao desabrocliar da aurora, jantavam mais cedo, que hoje á franceza é uso almoçar. Mui antes de meio-dia começava-lhes a tarde l .
1 Refere Christ ina de Pisan que o rei dc França Carlos V jantava ás dez
da manha Em Portugal ainda no tempo dc I). João V o celebre medico
Fonseca l í cnr iqucs na sua Ancora Medicinal aconselhava que duran te o
estio fosse o jantar antes das onze horas, porque o grande calor destroe o
appeti tc. Ancora Medicinal, secção u , cap. vf pag. 31 .
i «Knviron dix heures asséoit A table.» C. de Pisan, Livre des faitx et bonnes moeurs du sage roi Charles, cap. xvi, e^/tí. Petitot, tomo v, pag. 278.
100 D . JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Largo espaço tinham pois ante si os nossos embaixadores, que, segundo dissemos, se dirigiram, finda na pousada a refeição matutina, ao palacio do duque.
Recebeu-os o filho do grande rei de Inglaterra cm sua própria camara l . Achava-se alli também a duqueza, livre naquelle dia da dor de enxaqueca, que não raroaflagellava*.
Em sua pittoresca linguagem deixou-nos Fcrnão Lopes um curioso retrato do duque de Lancaster. «Era, diz o cln> «nista, homem dc bemícitos membros, comprido e direito, «e não de tantas carnes como requeria a grandeza do corpo... «de boa palavra, nom muito trigosa 3, misurado e de boa «condição. Seria de edade de sessenta annos 4».
Nesta apreciação chronologica enganou-se o velho paue-
gyrista, pois quando João dc Gaunt veio a Portugal não tocava
inda os cincoenta 5.
0 constante lidar nos campos de batalha, paixões insof-
fridas e mal reprimida ambição gastando-lhe a existencia,
haviam-ivo tornado velho antes de tempo.
E ra mui parecido com el-rei seu pae, e como este 6 de lào
soberano aspecto, que a um simples volver d'olhos impunha
veneração c respeito.
1 «Si en t ré ren t en la c h a m b r e du d u c dc Lancasl rc oü éloit Ia duchcssc.»
Fro i ssa r t , l iv. 3 . ° , cap . xxix . 2 «Une pet i te foiblessc et dc dou lcur dc ehcf qu i à Ia fois Ia tenoit.»
Fro i ssa r t , liv. 3.°, cap . x x x i x ; Va r i an t e , ed i t . Buchon , tomo 10.°, pag. 20o. 3 Apressada . 4 Lopes, Chron. dc 1). João / . pa r te 11, cap . 89 . ° 5 Nascera em Gand cm 1 3 4 0 . Imhoff , Histor. gencalog., pars i, caput v,
tab . v n . 6 Wi l l iam l í e c k f o r d , Charactcrs, or histórica! aneedotes ofall thehngt
and (Juccns of England. p a g . 4 3 .
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Assim o experimentaram os embaixadores, apenas entrados na camara ducal.
Attenta a dignidade da pessoa, fôra deante o mestre de Santhiago. Como porém Lourenço A mies conhecia bem a língua franceza, fallon primeiro 1 apresentando as cartas de crença, (pie do regente levavam.
Recordava este ao duque o propicio ensejo (pie se lhe oííerecia para conquistar a corôa de Castella, vindo com suas gentes reunir-se aos «pie em Portugal guerreavam ocommuin inimigo
Do melhor grado acolheu João de Gaunt os mensageiros, assegurando-lhes que ao dia seguinte os levaria ao paço a fim dc apresentai-os a el-rei seu sobrinho 3.
Não findou a audiência sem que, ao uso do tempo, entrasse em confeiteiros th; ouro cravejados de pedras preciosas um esplendente serviço de especiarias 4 e vinho5 , que generosos
1 «Et pour cc que Laurenticn savoit bien parlcr français , il parla tout
prcmièremcnt .» Froissart , liv. 3.°, cap. xxix. 2 «Que se o d u q u e Dalemcastro por seu corpo vir quisesse ao Ucyno dc
Castella. . . t inha o tempo muito prestes & todo Portugal em sua a juda .»
Lopes, par te H, cap. IS .° 3 «Si, dit 1c d u c a u x messages: nous irons demain devers le roi et vous
ferons toute adresse.» Kroissart, l i \ . 3.°, cap. xxix. 4 Sol» o nome dc especiarias designavam toda a qual idade dc doces, con-
feitos e amêndoas. l ) 'cstas faziam então grande uso nas diversas cortes,
como ainda hoje sc praclíca entre nós duran te a semana saneta . Veja-se
Duchesnc, llist. d'Angleterre, pag. 7 7 8 . 5 «Adonc (it le duc venir viu et épiccs, si burent et pr i renl congó et puis
rc tournèrcnt cc soir à leur hotel.» Froissar t , l i \ . 3 .° . cap. xxix.
100 D . JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
e finíssimos os t inha cm sua cava, segundo referimos, o magnificentc príncipe.
Na manhã seguinte a horas de prima 1 (seis da manhã) encaminharam-se os embaixadores em gala, acompanhados pelas gentes de sua comitiva ao palacio do duque. Ouvira este já missa, conforme preceito da saneia ordem da caval-laria e tinha prestes uma de suas mais luxuosas barcas, toda veludo e sedas, fluetuando á pópa e descendo ate entrar nas aguas o longo estandarte real de damasco carmesi, bor-dado a ouro, em (pie o leão de Castella se mesclava coin o leopardo inglez c as lizcs dc França
Embarcaram cm seguida no ancoradoiro do palacio, cuja ampla fachada corria, segundo referimos, ao longo doTamisa.
Impedida pelos vigorosos pulsos dos galcotes londrinos,
vestidos de seda vermelha, a barca desliza-se á ílor do rio
vogando rapida até aos paços dc Westminster.
1 «Á lendemain h honre dc p r ime tous dcux s'en allèrent devers lc duc,
et le t rouvèrcn t qu i il avoit oui sa messe.» Froissart , loc. cit. 2 «Tout chcva l ic r . . . doi t oui r Ia messe chaque jot ir .» Sr. Henri Martin,
Ilist. dc France, vol . 1.°, cap . xx. La Chevalerie.
3 «Trazia nas b a n d e i r a s . . . castcllos & lioens, posto que houuesse cu dles
miscladas as a rmas de Fraca & dc Ingra te r ra .» Lopes, parte n , cap. 89.°
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
II
Reinava então em Inglaterra, havendo succcdido a Eduardo o grande, seu neto Ricardo II, filho do legendário príncipe negro, fallecido antes de haver cingido a corôa.
Contava o rei dezenove annos apenas 4. Achava-se na camara estrellada, contígua á grande sala do doccl, com a maxima parte dos do seu conselho
A presença do soberano levou o proprio duque os embai-xadores 3. Ajoelhados estes por Ires vezes, segundo a praxe, então usada, entregaram ascredcnciaes que levavam escriptas em latim e bom francez 4. Leu-as Ricardo prazenteiro, c accrc-scenta a chronica, mui docemente respondeu aos embaixa-dores: «Bem vindos sois vós em esta terra. Grão prazer nos causou vossa vinda, e não vos partireis tão prestes sem res-posta que vos comprazerá 5.»
Acertavam dc estar alli também presentes os condes dc Canibridgc c de Buckingham, lios de el-rei.
Para mais honrar os embaixadores convidou o duque seus
1 Nascera em Bordcus em I3Gfi. IrnhoíT, Magnac lirilan. líislor. gen ca/.,
cap. v ; Wals ingham, pag. 181, etc. 2 Froissar t , liv. 3.°, cap. xxix. 3 «Le duc de Lancastre les lit enlrer en la chambre d u conseil et dit au
roi Monscigncur vcz-ci 1<- grand maitre «Ir Saint Jacques de Portugal et uu
ccuyer du roi de Portugal qui vous appor tent lct tres. Si lcsvoyer? Volontiers,
dit le roi .» Froissart , l i \ . 3.°, cap. xxix. 4 «Dictees bien et d iscrètcment cn bon françois et en latiu aussi.»
Froissart , ut supra.
'J Froissar t , loc. cit.
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
irmãos a j a n t a r c a horas dc nóa (meio-dia) entrando em suas fulgurantes ba rcas 2 os Ires príncipes, foram num credo t r a n s p o r t a d o s ao paço ducal dc Saboia. I n ú t i l é dizer que os embaixadores acompanhavam o duque.
Festejou-os este com um banquete esplendido 3, cujas honras foram feitas pela infante duqueza. Abrilhantavam-no oulrosim com suas graças juvenis c aprimorada educação a infante 1). Catharina, filha dos duques, e depois rainha dc Castella 4, e madame Filippa, que dal l i a tres annos viria adornar a fronte puríssima com a corôa dc Portugal.
I I I
Ao findar o banquete retiraram-se as senhoras conforme vetusta praclica da sociedade inglcza, c entre os homens começou então a usual palestra 5.
1 Froissart , liv. 3.°, cap. 29 .° 2 «Tons y al lcrent cn leurs barges par la Tamise .» Froissart , loc. cit. 3 Froissart , ut supra. 4 Foi regente durante a menor idade dc seu filho H e n r i q u e III dc Castella,
c parece abusou algum tanto da educação recebida, pois, segundo o respe-
ctivo chronista, corria fama de q u e se embr i agava . «Fcr tu r quod temulenta
crat mulicr.» Pcrez de Gusman , Gmerazioncs y Sanblanzas, cap. 3.°,
pag. 581, c d . d c 1779. «Fué , accresccnta o mesmo chronis ta , alta decucrpo,
muchogrucsa , blanca é colorada é r u b i a , y en el tallc y menco dei cuerpo
tanto parecia hombre, como m u g e r ; fué m u y honesta en su persona cfama.» a Froissart, liv. m , cap. 29 .° O toast era usanea mui antiga cm Ingla-
terra. Chamavam-lhe então á franceza «cola t ion». Assim oall irma cscriptor
contemporâneo. «Et quand vint a p r è s d incr à la colation.» Lebeau, Chro-
Itique de fíichard II. pag. fi, édition Buchon , tomo 2 i . °
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
0 conde de Cambridge durante a sua estada cm Portugal, quatro annos havia, conhecera muito o mestre de Santhiago e Lourcnço Anncs \ que já em tempos de D. Fernando exer-cia. segundo dissemos, o cargo de chanccller do reino.
Desejou o conde, como é natural, informar-se dos successos occorridos entre Portugal e Castella desde a sua partida Mais interessado em tudo saber era ainda o duque, pois o abrazava a idèa de reivindicar um throno. A ambos satis-fizeram os embaixadores com informações amplíssimas
Ao cabo de algumas horas, em (pie a libação dos vinhos se intermeiava com a narração dos embaixadores mui a con-tento do duque mandou este abrir as portas 5.
Voltaram as princezas. Seguia-as numeroso cortejo de donas e donzellas, ostentando o provcrbial esplendor da for-mosura ingleza. A par de todas sobresahia uma. Não estava já na primeira juventude. Era tal porém a belleza da physio-nomia intclligcnle caltiva, etãosenhoril a elegancia do porte, que sem rival fulgia entre as demais. Havia nome: Katterina Rouet.
1 «Le comte de Cantebrugc connoissoit assez Ic grand mailrc dc Saint
Jacques ct Laurcntien Fougasse, car il les avoil MIS au tcnips passe en P o r -
tugal.» Froissart , liv. m , cap . xxix. 2 Froissar t , liv. 3.°, cap. xxix. 3 Froissart , loc. cit. 1 «Moult prenoit le duc dc Lancaslrc grand plaisir à ouir Laurcnlicn F o u -
gasse par lc r . . . dc tout ce qui est avenu ent re Castillc et Por tugal .» Froissart ,
liv. 3.°, cap. xxix. 5 «Alors lit monseigneur le duc de Lancast rc la chambre ouvr i r .»
Froissart, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Esta dona, celebrada pelos escriptores contemporâneos representava então papel iinporlantissimo 110 viver intimo da casa de Lancaster.
Corramos o véo. Descortine-se um mvsterio de ha cinco séculos.
CAPITULO VIII
S I M M A R I O . — A verdade base da h i s to r i a .—Vida intima de João de Gaunt.
— Donzellas creadas a par dc Branca . — Uma entre as demais . — E n -
can tos .— Suas relações com o duque . — Um marido. — Mys te r ios .—
Ella c a nova duqueza . — Fascinação c ingenuidade. — Laços íntimos.
—Viver no centro da família. — Remorsos. —Confissão publ ica. — P r o -
testos dc emenda. — O coração supplanta o dever . — A educação c o la r .
— Filippa e a coroa de Por tuga l . — O desabrochar da existência. — O r -
phandade . — Mulhcr - typo . — Despedem-se os embaixadores. — O hotel
do Falcão. — Grande passo dado. — O regedor de Portugal ante a I n -
glaterra .
i
Diga-se a verdade. À verdade, só a verdade em seu in-exorável rigor é hoje a base sobre que se pode escrever a historia.
Com os escriptores contemporâneos de João de Gaunt estudemos a sua vida intima.
Ligada estreitamente se acha esta vida á nossa historia patria sob o sceptro de D. João 1. Patentear aquella é der-ramar luz sobre notáveis circumstancias que a esta respeitam.
Dentre as donzellas que ao uso do tempo haviam sido creadas nos paços do primeiro duque de Lancaster a par de
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
sua filha, a singela Branca f, uma havia 2 que ás demais todas dava ma t t e—Kat t e r ina Rouet lhe chamavam.
Nascida no condado dc Hainaul, c na bellcza do rosto ostentando a suavíssima cor dc pelle que era proverbial nas formosuras da sua terra educada em Londres, e reunindo por tanto á vivacidadc quasi franceza 4 a severa compostura das filhas d'Albion, fulgia entre as demais como lypo de ampla intelligencia c instrucçâo profundíssima 5. Seu pae Paon Houct, de profissão arauto segundo uns, c cavalleiro segundo outros era subdito do condado dc Hainaut, donde para Inglaterra viera na comitiva da rainha Filippa7 , quando se realisou o consorcio d e s t a princeza com o grande rei Eduardo 111.
Ardente como seu pae, arrojado c impetuoso como os de sua raça, vivendo no século em (pie a sensualidade brutal
1 «This lady had bcen of the house hold of the duchess Blanche.» Bcllz
(Lancaslcr hera ld) , Memoriais of lhe most noble Order of the Garter,
pag . l o í . 2 Duchesnc, llist. d'Angleterre, liv. xvi, pag . 7 7 1 . 3 « ' lhe br i l l iant coinplcxion for wich the woincn of her country are cclc-
b ra t ed .» S t r ick land , Liv es of the Queens of Kngland, tomo i, n.° 12.° 1 A família Kouet e ra do condado dc H a i n a u t , mas sobre a fronteira da
P icard ia . S t r ick land, pag . 5 8 8 . Kat te r ina podia assim considerar-se quasi
f ranceza . b «Cette Cathcrine de K u e t . . . fu t une d a m e qui saNoit molt de toutes hon-
ncur s , car dc sa jeunesse , et dc tout son temps , cllc y avoit etc nourne.»
Fro issar t , liv. iv, cap . oü .° 0 A pr imeira versão é seguida pelos escriptores inglezes. Froissart e os
q u e o tòin copiado ad i rmam q u e Paon fora cavalleiro. Froissart , loc. cit.;
Duchesnc, llist. d'Angleterre, l i \ . xvi . 7 E r a na tura l de H a i n a u t , couio se sabe , e filha do conde Guilherme,
Soberano d 'aquel lc Es tado .
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
irrompia sem diques \ não pôde João de Gaunt resistir á peregrina beldade, com a qual forçoso lhe era viver sob o mesmo tccto.
Amou, e foi amado. Eis o que com certeza nos revela a historia 2.
E certo ainda que a formosa dama, dada em casamento a sir Ilugh, ou Owen Swinford, cavallciro do condado de Lincoln 3, veio com o andar do tempo a separar-se de seu marido volvendo cm seguida ao palacio de Lancaster 4, lar onde com a educação recebera segunda vida.
Não cause maravilha ao leitor este proceder da juvenil esposa. Por mui natural o haverá, se comnosco se remontar ao viver intimo da epocha que buscámos descrever-lhe.
I I
A mais escandalosa desenvoltura eivava a sociedade in-gleza naquclla epocha.
Os escriplores coevos são unanimes em confirmal-o. Um d ellcs, e sujeito até ao dominio da casa de Lancaster, escrevia então o seguinte: «Senhoras da mais alta linhagem e formo-sura vangloriavam-se do seu proprio desregramento. Em
1 Sobre este assumpto consulte-se NValsingham, Ilist. brevis, pag. 2 7 9 ;
Knyghton, De eventibus. col. 2642 . 2 «Lui s'en étant enamourc . . . fut longuement.» Duchesnc, Ilist. dAngle-
terre, liv. xvi. 3 Heltz (Lancaster herald) , pag. 1 5 í . 4 «Le chevalier vivant et mor t toujours le Duc Jean dc I.ancastrc avoit
aimé et tenu cctte dame Catherine.» Froissar t , liv. iv, cap. 50.°
5
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
turmas de quarenta ou cincoenta, bisarramente vestidas á guisa de homens, e como estes em cotas de seda a côres bipartidas, atoxadas por cintas de prata ou ouro, na cabeça capuzes estreitíssimos, e tão longos que em torno da frente os cingiam em innumeras voltas, e compridos punbaes pen-dendo-lhes docollo, corriam os logares, onde seannunciavam torneios, montadas em fogosos cavallos, e apparentando em tudo o estupendo apparato de cavalleiros ao entrar era liça. Antecediam-nas centenares de mancebos tão desregrados como cilas.» Assim, accrescenta o mesmo escriptor: «dilapi-davam aquellas senhoras os haveres dos maridos, e em ar de graça iam maculando os corpos com lascivias torpes, roto o freio da matrimonial pudicicia 1.»
Em presença des t e quadro traçado por mão de contem-porâneo respeitável, e subdito, segundo dissemos, da casa de Lancastcr como pode causar maravilha odesaccordo entre Katterina e seu esposo?
Que motivos porém determinariam a separação dos dois cônjuges?
Deu-se eííectivamente infidelidade na juvenil esposa, e recorreria sir Owen ao divorcio, tão commum em a alta sociedade ingleza naquelles tempos de desmoralisação am-p l i s s i m a c o m o acabamos de ver?
1 Knyghton, De eventihus Angl iac apud T w y s d c n , col. 2612 . 2 O divorcio, c em seguida casamento com outros conjugcs, eram então
casos mui vulgares cm Inglaterra . A formosíssima Joanna (the fair maid of
K e n t ' ) , mãe do soberano então re inante R ica rdo II, e que haveria, cila
própr ia , sido rainha da Grã Bre tanha , se não houvera prematuramente fal-
lecido seu terceiro marido, o invencível príncipe negro, foi casada em pri-
» Assim chamada por sua extraordinária bellcza. Era fdba do conde dc Kent c neU de hduardo I, rei de Inglaterra. ImoíT, Regum Magnae Britanniae hist. gcneal., cap. iv, pag. 20.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Suspeitaria Branca o animogalanteador do marido instável, c na companheira dc infância descortinaria rival perigosa?
Como em tal extremo solta dos laços conjugaes volveu Katterina a habitar a casa de Lancaster?
Segredos são esses <pie ainda até ora não têm os docu-mentos revelado.
O que em verdade se sabe é o seguinte: Alcvantada ambição, base essencial do caracter perdulário
de João de Gaunt, levara-o a esposar em segundas nupeias a herdeira de Pedro o cruel de Castella, a fim de cingir a corôa d aquellc reino. Movera-o o interesse, não o coração. Este, como diz Froissart, pertencia sempre a Katterina Rouct, (jue no intuito por ventura de serem salvas as apparencias exercia no palacio dc Lancasler o cargo de governante das filhas do duque e de sua primeira esposa l.
A infante de Castella, se bem que muito mais nova que
meiras nupeias eom o conde dc Sal isbury, de quem se desquitou para casar
com Thomaz de I lol land e deixada por este 2 , foi realisar terceiro casa -
mento com o heroe d 'aquel las eras, o referido p r í n c i p e 2 . Estes factos definem
uma epocha!
A filha dc João dc Gaunt, Isabel de Lancaster, esposara em pr imeiras
nupeias o conde de Pcnbrokc , c em vida do marido casou segunda vez com
o conde de Hunt ingdon , João de I lol land, i rmão do r e i 3 . Po r morte d 'aquelle,
barbaramente just içado, casou ainda terceira vez. E assim por deante. 1 «This lady had bcen . . . chargcd with the education of the ladies Philippa
and Elisabcth dur ing thcir minor i ty .» Bcltz, Memor., pag. 154 .
1 «Pro cujus concupiscentia, ut diccbatur, divortium íactum cst.» Knyghton, col. '2620. 2 «Itelictam domiiii Thomac dc Hollami, quac olum fuit separata a coiuitc Sarum niilitis
praedieti causa.» Walsingham, Bist. bretis, pag. 178.
3 Knyghton, col. 2677.
*
^ G D. JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA
O duque seu marido e r a — e m antithese completa a sua irmã,
a leviana Isabel, duqueza de York 2 — a l h e i a a esplendores
mundanos, devota e recolhida3 . Não a opulcntavam os dotes
c o n s o a n t e s a attrahir o animo phantasioso do guerreiro ar-
dente.
Katterina, pelo contrario, achava-se cm toda a energia da seducção e dos encantos. A sua physionomia severa e fas-cinadora, o talento e a instrucção que a abrilhantavam, exer-ciam absoluto império sobre o impressionável duque \
A demais—Constança creada entre as horridas atroci-dades da corte de Pedro o cruel, íilba do perverso tresvai-rado, cujas sevicias assombram ainda boje a posteridade,
e r a — p o b r e infante! — por um d'csses contrastes que não raro apresenta a humanidade, dotada da mais crédula sin-geleza. Incapaz de mal proceder, julgava os outros por si.
1 Constança nascida cm 1 3 5 1 t inha menos dezoito annos que o duque
seu esposo. Ayala, Chron. delüey Don Pedro, a n o 1 3 5 4 . 2 Filha também de Pedro o cruel de Castella, c a sa ram-n ' a em Inglaterra
com o conde de Cambridge, depois d u q u e de Y o r k . Esta prinçeza veio a
Portugal com seu marido na expedição auxi l ia r ingleza cm tempo d'el-rei
D. Fernando.
Eis o que acerca do seu proceder escrevem os aue to res inglezes: «Isabel,
duchess of York second danghter to Ped ro the cruel, a lady noted for her
over-fmeness and dclicacy, yet at her dca th showing much penitence for her
pestilent vanities.» Str ickland, Liv es, tomo i , p a g . 6 1 4 .
«Isabella first wife of E d m u n d d u k e of V o r k . . . m u c h lamentcd for her
youthful wantoness.» Anderson H. Gen . cit . por Johnes , t rad . de Froissart,
liv. i, cap. 230.° , pag. 3 4 2 nota .
«Domina Isabella ducissa E b o r a c i . . . mu l i e r mol l is & dcl icata , sed in fine,
ut fer tur , satis poenitens & conversa .» W a l s i n g h a m , llist. brevis, pag. 350. 3 «Mulier super foeminas devota .» W a l s i n g h a m , loc. cit. 4 «Lui s'en étant enamouré 1'avoit en t r e t enue .» Duchesnc , llist. d Angle-
terre, liv. xvi.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Nunca tão dcscurada sinceridade, affirma um severo es-criptor da epocha, se abrigara em coração de mulher
Mais asada esposa não podia encontrar o amante de Katte-rina Rouet.
Laços Íntimos os estreitaram 2. Quatro filhos nascidos no progredir des ta união, duplamente iIlícita,3 porque se mantinha sob o mesmo teclo a par de um thoro maculado A, vieram a ser posteriormente legitimados pelo rei de Ingla-terra 5.
Com a esbelta amante vivia Lancaster em seu proprio palacio, cm meio de sua mulher c filhas. Embora se guar-dassem certas exterioridades, se guardadas eram, a verdade é esta 6.
Quando porém, assaltado pela insurreição popular, a que já nos referimos, teve o duque de permanecer cm Escócia, tão pungentes remorsos o assaltaram 7 ácerca de sua vida intima, e de no proprio lar c juneto á esposa legitima haver a que o não era, que em altos brados declarava arrepen-
1 «Mulier super foeminas innocens.» Wals ingham, pag . 3o0 . 2 «Le ducavo i t Iongtemps entretenu cette femme en qual i té de maitresse,
et en avoit eu plusicurs enfants.» l lapin , Ilist. d'Anglctcrrc, liv. x, pag. 320 ,
3.4 edição. 3 Tindal l , Notes à ihist. d' Anglctcrrc, loc. cit. 4 «Era t i|>si cum illa s lupri vetus consuctudo.» ImofT, Regum Magnac
Britan. Ilist. gen., cap. v . 5 Wals ingham, pag. 393 . O acto do legit imarão encontra-se em Kymer ,
Foedera, tomo m , par te iv, pag. 12(>. f' «Concupcsccntia excaccatus , nec Dcum t imens, nec homines c r u -
bescens, h a b e b a t . . . quandam K a t e r i n a m . . . al ienigenam in família cum
uxore sua.» Knyghton, col. 2(512. 7 «IIís cxcogitatis in scipsum, I)co gatiauí sibi inspirante, s ta t im reversus
cst.» Knyghton, loc. cit.
7 0 D. JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA
der-se 1 confessando publicamente os seus erros2 . attribuindo a estes os males que sobre Inglaterra então pesavam, e abor-recendo. ou antes abjurando as suas relações com Katterina3.
Item depressa porém regressando á patria. a voz do cora-ção supplantou a voz do dever. Continuaram as cousas no mesmo estado.
Assim proseguiam, quando os nossos embaixadores che-garam a Inglaterra.
I I I
Apezar da extraordinaria magnificência em (pie esplendia o palacio de Saboia, apezar das altas qualidades (pie engran-deciam a alma do generoso duque, o seu lar não era, como se vê, o mais consentaneo a servir de exemplo, nem o mais propicio a aprimorar a educação de donzellas.
Outro lar todavia não conheceu, em sua honra o dizemos, a irreprehensivel Filippa deLancas ter até que cingiu a corôa de Portugal. Sem mãe (pie a dirigisse, sem a educadora na-tural e amiga que lhe encaminhasse os primeiros passos no desabrochar da existencia, nem por isso deixou a futura rainha de ser sobre o throno e fora del lc exemplo a mães e a esposas, compêndio vivo das mais sublimes virtudes, mulher-typo, se as ha sobre a terra.
1 « T u n c dux ipse convcrsus ad rel igionem coepit acctisarc vitam suam
pr i s t inam.» Wa l s ingham, llist. brevis, pag . 2 7 0 . 2 «Non solum pr ivat is , se<l jmbl ic isconfcss ionibus .» Walsingham, loc. cit. 3 « T u n c illius K a t t c r i n a c . . . consor t ium abhor re re , vcl potius abjurarc.»
Wal s ingham, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
IV
Findo o sarai! com a usual refeição dc especiarias c vinhos 1
servidos ao redor da s a l a r e t i r a r a m - s e os embaixadores ao hotel do falcão 3, onde, como disséramos, tinham pousada.
A missão (pie lhes fôra incumbida havia dado naqucllc dia um grande passo.
0 mestre d'Aviz achava-se ofíicialmcnte reconhecido pela Inglaterra como regente de Portugal.
1 Naqucllc tempo o vinho era presentado cm uma grande copa á pessoa
mais auetorisada que se achava presente, e na mesma copa iam seguida-
mente bebendo, guardadas precedencias, os demais convivas. Não havia,
como hoje, copos para cada um. 2 «Aportcrcnt ccuyers et gens d'oílicc vin et cpiccs. Si burent et p r indren t
congé les Portingalois.» Froissar t , liv. m , cap. 32.° 3 «Rctournèrcnt à leur hotel au faucon à Londres . Froissar t , loc. cit.»
CAPITULO IX
SUMMAHIO.— Os embaixadores .— Propicia e s t r e i a . — A protecçao do d u q u e .
—Es tada occasional cm Londres .—Invasao dc Escóc i a .—Fer ro e sangue.
— Os representantes dc Portugal e o rei dc Ingla ter ra . — Caracter dc
Ricardo l i . — Seus privados. — Influencia c re s t e s .—Tac t i ca dos nossos
embaixadores .—Àuctor isação para recru ta rem gen tes .—Sua impor tancia .
—Si tuação peculiar da Ing la te r ra .—França c Escóc i a .—As luetas in lcs -
t inas .—Sacrif íc ios por egoísmo.—Ingla ter ra cm Portugal guer rea França .
i
Representantes de um governo ephemero, e apenas obe-decido em parle reslricta de acanhado território, haviam os nossos embaixadores pelo facto dc serem oíTicialmcnle rece-bidos na còrle ingleza prestado relevante serviço ao poder que representavam, e facilitado amplamente o bom exilo do encargo que lhes fôra commellido.
Para lão auspicioso resultado muito importara o valimento do duque de Lancaster, achando-se este occasionalmcnte em Londres, o que raro succcdia pela multiplicidade de negocios que o sobrecarregavam sempre.
Sendo o mais velho dos tios de el-rei, e por lanlo mais proximo do que nenhum d?ellcs á successão da coróa, tinha
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
o filho de Eduardo IIÍ, como dissemos, a maxima influencia 1
na administração do Estado, e ainda pouco havia chegara de França, onde fôra para negociar novas tréguas que deixou firmadas até outubro d aquelle anno 2.
Logo em seguida á chegada dos embaixadores deixou o incançavel duque novamente a côrte (1384) . e caudilhando numerosa hoste, partiu a invadir Escócia. Incendiou-lhe campinas e florestas, reduziu a cinzas povoas e cidades, e chegou ate ás portas da capital pondo tudo a ferro e sangue3.
Não se repoisavam entretanto os emissários de Portugal. Sendo-lhes livre o accesso na côrte, aproveitavam-n o tão bem juncto do soberano, como de seus ministros e privados.
Dezenove annos contava então, segundo referimos, o moço Ricardo II. e se bem que a principio governavam em seu nome os (pie da regencia tinham cargo, foi o rei a pouco e pouco impondo a sua aucloridade, e tornando-a soberana.
Instável, dissipado, amando o fausto mais que nenhum de seus predecessores \ não possuia elle o alentado espirito que
1 «Dux Lancas t r iae . . . inter magnos m a x i m u s era t .» Wals ingham, llist.
brevis, pag. 3 1 7 . 2 Escreve Wals ingham (historia brevis. p a g . 3 0 8 ) , q u e estas tréguas
durar iam até ao San João . O documen to au thcn t i co , pelo qual foram esta-
belecidas, manifesta o con t r a r io ; isto c, q u e o t e rmo seria o 1 d c outubro.
Veja-se Forma treugarum Franciae. L c n h y g h a m , 2 6 dc j ane i ro dc 1381
apud Rymer , Foedcra, tomo v n , pag . 4 1 8 . 3 Wals ingham, loc. cit. Uapin dc T h o y r a s , llist. d'Angleterre, liv. x ,
pag. 3 , 3.* edição. 1 Para provar o excesso a q u e R i c a r d o II levou o appara to dc sua côrtc
basta dizer-se q u e duzentos h o m e n s dc a r m a s o velavam du ran t e a noite, c
que dez mil pessoas j an t avam por dia em seus paços reacs . Stowc apud
f e r r a r i o , Arti e costumanze dei Jfritani, tomo vi, pag . 1 5 7 .
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
e essencial attributo para a governação de um grande povo. Por outra parte orgulho indomável, característico de raça, e ainda de indole própria, levava-o a formar alta opinião de si mesmo, desdenhando por tanto os que pelo conselho po-deriam dirigil-o \ e acolhendo os lisongeiros 2 (pie 011 lhe favoreciam as paixões c os vícios 3, ou lhe engrandeciam méritos (pie não possuía 4.
II
Eram com efieilo os privados que dirigiam o rei. Dentre os mais íntimos campeava Roberto de Ycrc, conde de Oxford mancebo ardente, cuja mediocridade compensavam apenas os dictos de sabor (pie desenfadavam Ricardo 6. Com grave escandalo dos outros condes, (pie nenhuma superioridade lhe reconheciam, foi Roberto elevado depois ao titulo de marquez (1385), o primeiro que em Inglaterra houve 7, c ainda posteriormente ascendeu a duque de Irlanda 8.
1 «Rex juvenis juvcniun consiliis acquicsccns.» Ypodigma Neustriae,
pag. 535 . 2 «Les flatteurs avaient hcaucoup de pouvoir sur lu i .» Rapin, liv. x,
pag. 29fí . 3 Wals ingham, Ilist. brevis, pag. 324 . 4 «Plusicurs nohles d 'Angleterre commencèrent à m u r m u r e r . . . qu ' i l
n'estoit laille que d'estre en chambre aveeques daincs et dainoisclles.» Jean
Lebeau, Chronique de Richard II, édilion Buchon, tomo 24 .° (appendicc ás
Chron. dc Froissar t ) . 5 «Par celui etoit tout fait, et sans lui n 'ctoi t rien fait .» Froissart , liv. iu f
cap. 18." 6 Hapin, Ilist. d'Angl., liv. x. pag. 2 9 7 .
Knyghton, Dc eventibus, col. 2 6 7 5 , ed. 3.* 8 Rapin , loc. cit.
D. JOAO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Á pcrspicacia dos nossos embaixadores não passava des-
a p e r c e b i d a a influencia d'esle 1 e dos demais privados, mui
s u p e r i o r á que podiam exercer os funccionarios antigos,
por cujas mãos corriam, ou deviam correr, os negocios do
Estado.
O mestre de Santhiago e Lourenço Annes eram então mui acceitos na brilhante côrte de Londres, onde o primeiro, apezar de ligado por votos sacros, marcava epocha por seu elegante porte e fino t r a t o D a s boas relações que um e outro haviam creado souberam tão a ponto aproveitar-se 3, que cm poucos mezes (julho de 1384) obtiveram permissão oflicial de po-derem tomar d'entrc os homens dc armas c archciros inglezes todos os que por soldo quizessem vir em soccorro de Por-tugal 4.
1 «AU favours passed throngh his h a n d s : acccss to the King could only
be obtained by his media t ion.» I Jumc, llist. of England, vol. III, chap. XVII.
2 D'csta galantcria apresentou o mes t re documento vivo trazendo dc
Inglaterra uma íilhinha (havida cm uma senhora ingleza) por nome Lora,
que, educada nos paços rcacs «le Por tuga l , veio a despozar -sc com o marechal
Gonçalo Vasques Coutinho. Lopes, Chron. dc I). João I. par te 11, cap. 90.° 3 De Lourenço Annes diz F r o i s s a r t : «Laurént icn Fougasse . . . bien con-
noissoit les chcvaliers et écuycrs anglois , car il les avoit vus . . . assez cn
Angleterre; Si leurs faisoit toute la mei l leure chère q u e il pouvoit , et bien
la savoit faire .» Chron., liv. m , cap. 39 . ° 4 Carta dc Ricardo II ao mestre d 'Aviz, regedor de Por tuga l : «Pcra o
acorrimcnto que a vós & a nossos al l iados d 'csscs Reynos compridouro era.
Nós outorgámos aos ditos Embaixadores q u e da nossa par le podessem tirar
homens d 'a rmas frccheiros por seu soldo quan tos & quacs lhe prouguesse.»
Importantíssima é esta car ta , pois manifesta q u e o mestre d*Aviz, como
temos referido, fôra ainda antes dc haver empunhado o sceptro officialmcntc
reconhecido pela Ingla ter ra , e o re ino de Portugal considerado como belli-
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Esta auctorisação abrangia não só quaesqucr subditos inglczes l, senão ainda os que fossem vassallos - (hommes Iiges) do soberano, e por tanto obrigados a scrvil-o em guerra. Além d'isso poderia cada um dos auxiliares demorar-se em Portugal quanto tempo Ilie aprouvesse (quandiu eis placuerit), e levar cavallos e armaduras
De alta importancia eram estas concessões que os nossos embaixadores obtiveram então do governo inglez. Para devida-mente lhes pezar o alcance, importa conhecer a fundo a situa-ção interna de Inglaterra naquelle ensejo.
III
De um lado a Escócia do outro a França collocavam a nação britannica entre dois fogos, c em quasi permanente
gerante. Veja-se a t raducção integral da carta em Lopes, parte i, cap. 48.°
Não traz data , mas pelo teor vê-se que foi escripta logo depois da concessão
para o recrutamento (28 de ju lho de 1384). 1 «De ligeis et subdi t is nostris lot homines ad arma et sagit tarios, quos
eis placueri t .» Provisão de Ricardo II. Westmins tcr , 2 8 de ju lho dc 1381,
apud Rymer , Acta, tomo v n , pag. 436 . 2 Vassallo tinha na edade-media significarão mui diversa da que poste-
riormente lhe foi dada . Significava o guerrei ro adstriclo com ju ramento a
qualquer potentado que reconhecia por senhor seguindo-o á guerra e do
qual em troco recebera um feudo, ou colhia por anuo quantia de te rminada:
«Yassallus qui rat ione feudi alicui domino lidei Sacramento addictus cst.»>
Ducange, Glossarium, verb. Vassaulus. Veja-se Vitcrbo, Elucidaria, pai.
Vassallo. 3 Dc licentia ducendi homines ad arma ad partes Por tugal iae . Provisão
de Ricardo II. Westminstcr , 2 8 de ju lho de 1384. Rymer , Acta, tomo vn ,
pag. 430 .
D . JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA
guerra. Por outra parte as luetas intestinas, promovidas pelo desaccordo entre os privados do rei e seus tios, os filhos de Eduardo III haviam subido de ponto aggravadas pela insur-reição da populaça que a exemplo da Jacquerie franceza, segundo referimos, arrazara o lerritorio, espoliara os grandes, e ameaçara a vida do proprio monarcha. Em taes circum-stancias tornava-se altamente nocivo para o governo inglez cercear o numero de braços que podessem defendel-o.
Se porém aquelle governo, egoista como todo o poder em Inglaterra, outorgava assim concessões tão momentosas, é porque estas iam directamente afagar os seus interesses. Com o monarcha francez achava-se em estreita liança o rei de Castella, e a Inglaterra mantendo contra este a guerra em Portugal, guerreava assim indirectamente a corôa de França.
CAPITULO X
SUMMARIO. — Alistamento em Inglaterra. — Faina dos embaixadores. — As
grandes companhias. — Flagello da Franca. — Km Castella. — Sua deca-
dência .—Seus melhores caudi lhos.—Contractam cinco os embaixadores.
—Nomes dos q u e vieram a Por tugal .—Aventure i ros c aux i l i a res .—Pro-
fissões diversas .—Contractos cspcciacs.—Ingcrencia do govenio br i t an-
n i co .— Embargo dc navios para t ransporte . — Emprést imos a Por tugal .
—Caução e seqüestro de portuguezes. — Auxilio e violência.— O direito
internacional na edade-media .
i
Obtida a concessão, faltava ainda encontrar gentes que se prestassem a sacrificar a vida nas longínquas terras de Por-tugal. Nova difíiculdade para os embaixadores! Seis mezes lidaram em superal-a.
Os celebres agrupamentos militares conhecidos na historia pelo nome de grandes companhias, on companhias brancas (compostas de mercenarios-salteadorcs dc diversas nações e cas tas) ( que annos a traz haviam sido o flagello da Fiança,
1 Quando E d u a r d o III machinou a conquista da Franca, tomou a serviço
quantas gentes quizcrain assoldadar-sc . Eram na maxima parte aventureiros
(le todas as nações. Finda a guerra pelo tratado dc Hrét igny, licaram sem
8 ( ) I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
c levado um bastardo fratricida ao throno de Castella
achavam-se já enlão em decadencia.
Os mais arrojados dc seus capitães, deixada a vida aven-turosa dos campos c da pilhagem, desempenhavam altos cargos militares entre as duas nações rivaes2 . Todavia muitos caudilhos havia ainda que, trazendo a soldo uni certo numero de homens de armas e de frccheiros, se alistavam para com as respectivas companhias irem fazer guerra onde boa retri-buição colhessem.
Cinco d'esles capitães e suas gentes foram então contra-ctados pelos embaixadores portuguezes
A especial attenção invocamos do leitor para os fados <pie vão seguir-se, e que os nossos chronistas nem de leve mencionam, porque de todo os ignoraram.
subsistência aqucllcs mercenár ios . E s p a l h a r a m - s e então cm turmas desor-
denadas atravez da França , accommettcndo c sal tcando quan to encontravam.
Eis em resumo a origem das grandes companhias. Ve j am-se os historiadores
da epocha. 1 Montavam a sessenta mil homens os q u e levaram ao throno de Castella
Henrique de Tras tamara . Capi taneava-os o celebre Duguescl in , Ypodigma,
pag. 5-26. 2 Duguesclin em França chegou ao mais al to cargo da mil íc ia : o de Con-
destavel. Roberto dc kno l les , o vencedor de N a j a r a ; Hugo de Cavcrley,
«virum. . . Europac famosum,» como diz W a l s i n g h a m ; .Matheus Gournay,
de quem já tractámos, f icaram, assim como ou t ros mui tos , ao serviço dc
Inglaterra, sua patr ia . Ypodigma Neustriae, loco citato. J Breve (provisão) de Ricardo II mandando prover acerca dos navios para
transportai 'cm estes cinco capitães c as companhias de homens de armas e
archeiros que levavam comsigo a Portugal. Wes tmins t e r , 8 de janeiro de
1385, apud Rymer , tomo 7.° , pag . 4 5 3 .
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
II
Chamavam-se aquelles capitães : Reinaldo Cobham \ Pedro Cressyngham, Elias Blithe, Roberto Grantham, Thomaz Dale 2.
As gentes que trazia cada um daquelles cabos de guerra, e com que se responsabilisava a servir por soldo, eram na maxima parte residuo das antigas companhias, e aventu-reiros de diversas nações, que nada tinham que perder 3 .
1 Tinha este nome um dos mais distinetos guerreiros da heróica pleiade
de Eduardo III . Não ousamos aventurar que fosse ellc que veio a Portugal .
Seria acaso filho seu ? 2 Provisão dc Kicardo II, ut supra. Cita Fcrnão Lopes alguns d'estes
capitães, es t ropeando-lhes porem os nomes: a Cressyngham, chama Tris inga,
a Reinaldo Cobham, Eleisabri e assim por deante . A Wil l iam de Monfcrrant
adul terando a abreviatura da pronuncia ingleza (Willy) denomina Clilho de
Monferro, c considera-o capitão dc uma das companhias, o que não é exacto.
Este guer re i ro , pelejador esforçado, e possuindo o grau de cavallciro, veio
então a Por tugal , mas por contracto s ingular , segundo prova documento
au thcn t i co l . Prestou aqui bons serviços morrendo na batalha de Al jubar ro ta . 3 «Les trois par ts étoient compagnons avcnturcux hors dc tous gages . . .
qui n'avoicnt qu 'à perdre .» Froissar t , liv. III, cap. 19.°
1 «Willelmua de Moníerrant milet... ad partes Portugaliae profecturuí, babet litteras de
protectione.ii Provisão de Kicardo II. Westminster, 16 de janeiro de 1385. Rymer, tomo YII,
pag. 454.
6
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Os capitães, seguindo as armas como profissão exclusiva,
exerciam com ardidez e perícia o mister da guerra f. O pri-
meiro sobrelevava-se por linhagem e herdado esforço, como
já referimos. Eram Iodos inglezes, e estavam no verdor da
edade 2.
Além das companhiasassoldadadas que dissemos, provam os documentos que outra classe de auxiliares conlractaram os embaixadores p o r l u g u e z e s s e n d o composta de alguns caval-leiros inglezes e gascões, grande numero de escudeiros e ho-mens de armas, um pastcleiro, alguns capellistas 4, dois
1 «Los quels ótoicnt bons hommcs d ' a r m e s , et tons étri lés ct usagés à
faire la guerre .» Froissar t , liv. III, cap . 19.° 2 Froissart , loc. cit. 3 Super viagio Por tugal iae . Dcpro tcc t ion ibus . Cartas de Ricardo II a cada
um dos auxiliares individualmente considerando como serviço a elle rei pres-
tado a vinda a Portugal. Wes tmins tc r , 1 de dezembro de 1384.
Idem, idem, 16 de j ane i ro de 1385 . K y m e r , tomo VII, pag. 450-454. 4 Este nome ainda ho je dado en t re nós aos q u e em suas lojas vendem
certos ramos de mercadorias (mercery) e modas , tem etymologia essencial-
mente histórica, sc bem que poster ior á epocha a q u e nos remontamos. Juncto
aos paços da ribeira na antiga Lisboa havia a capella rea l , e em torno d'esta
e debaixo das arcadas do palacio e ram a r r u a d a s as lojas d 'aqucllcs commcr-
ciantcs. D 'ahi , por estarem cerca da capella , lhes veio no décimo sexto século
o nome de capellistas 1 que ainda agora conse rvam.
Os paços da ribeira edificados, como todo.s sabem, por L). Manuel, occu-
pavam grande área a nor te e a leste da actual praça do Commercio 2 .
A capella, para a qual sc subia por duas amplas escadarias com frente
1 «O nome dc capellistas deriva da localidade em que t inham as suas lojas junto á . . . capella, por dentro c por fóra das arcadas.» Jacomc Rat ton, Recordações sobre occornn-cias do seu tempo em Portugal, § pag. 305.
2 ChriitovSo Rodrigues de Oliveira, Summario das Noticias de Lisboa em 1555, 2.» ed., pag. 124.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
escrivães, Johannes Pykering, clericus, Thomaz Deyster, clerícus (o visconde de Santarém no Quadro elementar,
para a moderna praça do Pelourinho, chamada então largo do relógio, com-
municava com o paço por dois arcos sobre a rua hoje do Arsenal
A frontar ia do amplo edifício, correndo de leste a oeste, e de norte a sul
ate ao mar , ostentava sobre este um grande torreão, em cu jo andar te r reo era
a casa da í n d i a 2 . Ante o palacio di latava-se um extenso largo denominado
«o terreiro do paço» \ nome q u e ainda agora conserva, não querendo o
publico subst i tui l -o pelo de praça do Commercio q u e em tempo do marquez
de Pombal lhe foi oHicialincntc dado. Ao sul confrontava o largo com um
amplíssimo caes, fundação dc I). Manuel , no propr io local, onde c hoje o
caes das columnas, e desde então chamado «caes da pedra» 4 — denominação
q u e entre o vulgo ainda não perdeu de t o d o — . A leste ficava-lhe a a l fan-
dega, a casa dos contos, e o terreiro do trigo e a nor te corr ia- lhe , como
dissemos, um lanço do palacio, c casarias i r regulares por dc sobre a lgumas
das antigas portas da c idade. E n t r a n d o na pr incipal , q u e foi der r ibada por
occasião da vinda de Fi l ippe III a P o r t u g a l 6 , entes tava-se com a praça do
Pelourinho Velho 7 , onde se \ i a m sentados cm suas mezas os doze escrivães
da cidade escrevendo cartas c petições em serviço do p o v o 8 . Facto assaz
característ ico! Ninguém quas i sabia então ler . Menos ainda escrever. C u m -
pria que no interesse geral o fizessem alguns empregados ofTiciaes. lVesta
praça corria para occidente a famosa rua nova 9 , a pr incipal da cidade, e
como tal, centro da moda , do g rande t racto dos negocios e do alto commercio .
1 Katton, lot. cit. 2 Frei Nicolau dc Oliveira, Grandezas de Lisboa, tractado ivf pag. 138. 3 Tinha de comprido (520 passos e de largo 210. O rocio era então menos espaçoso do
que o terreiro do paço medindo dc largo IoO passos e dc comprido iOO apenas. Cbristovfio Rodrigues, pag. 123; Frei Nicolau, tract. ív, cap. 1.°
4 «Mandou fazer o caes da pedra de Lisboa e taboleiros ao longo da ribeira.. . tudo de pedra canto.» Góes, Chron. de D. Manuel, parte iv, cap. i.xxxv. Havia alli também um grande chafariz, obra do me*mo rei, onde é boje o torreão da alíandega. Veja-se o curió-sissimo mappa do terreiro do paço, e antiga Lisboa, appenso a Lavanlia, Viagem de Fi-lippe III a Lisboa, pag . 14.
* Lavanha, Viagem, ut supra. Veja-se o mappa sob n.° 12, 13 e 11. 6 Lavanha, pag. 23. 1 Lavanha, pag. 22. s Christovflo Rodrigues, loc. cit. 9 Tinha de comprido 200 passos e de largo 40. ChristovSo Rodrigues, loc. cit.
*
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
lomo xiv denomina-os magistrados, o que a Iraducção legi-tima não comporia), um estalajadeiro, dois pelleiros, c muitos
Fulguravam ahi sob amplas arcar ias gothicas dando costas ao n o r t e 1 as pr in-
cipacs lojas da cidade, entre as quaes a\ ul tavam as dos cambistas (riquíssimas
em moedas dc prata c oiro) , as dos mercadores nacionacs , e estantes ílorcntins,
inglezes, flamengos e demais extrangeiros . DVsta pr incipal ar tér ia da cidade
destacavam-se para norte cinco ruas 2 , sendo a p r imei ra a rua nova de el-rei
q u e direita c comprida levava ao rocio 3 .
O rocio era então um dos ext remos da c idade . Logradouro commum,
servia-se o povo dc par te dVllc cm fornos de ti jolo ou sementeiras de
ferregiaes 4 . A outra par te (baldia) era coberta dc urzes c de immundicies.
Poucas semanas antes (dezembro dc 1383) dc haverem para Inglaterra pa r -
tido os embaixadores do mestre de A \ i z fôra sobre aqucl las safaras arrojado,
e ahi comido pelos cães, o cadaver do b ispo dc Lisboa D . Mart inho, como
a traz referimos.
Não vicejavam arvores na vasta p l anu ra , nem a pe javam ainda casas sobra-
dadas, nem edifícios, como os paços dos Es táos ou o hospital de Todos os
Sanctos, construídos mui poster iormente . Apenas a fundo lhe corria a mu-
ralha alevantada por I). Fernando , a qual sub indo da porta da Palma (na
actual rua nova d'essc nome pela calcada do jogo da polia ao a rco da Graça 6 ,
e seguindo a encosta, descia até á porta dc saneto Antao , cortava ahi a
grande estrada por nome a cor redoura 7 (hoje rua de saneto Antao) c ia
t repando pelo monte de S . R o q u e até á to r re de Álvaro Paes . A leste era o
rocio limitado pela cerca c anda r terreo do moste i ro de S . Domingos adjuneto
1 Ratton, Recordações sobre occorrencias, loc. cit.
* Lavanha, Viagem de Filippe III, pag. 35. 3 CbristoTío Rodrigues, Summario, pag. 123. * ««Eram terras devolutas de que o povo sc servia em te lhaes e fornos de tijolo por huma
parte, e por outra em sementeira de íerregiaes.» Frei Luiz de Sousa, Ilist. de S. Domingos, l iv . i n , c a p . XVIII.
5 Edificados pelo infante 1). Pedro quando regente para hospedagem de embaixadores e alliviar o povo do encargo de aposentadoria.
* Chamavam assim á porta do jogo da pella em consequencia de uma imagem da Senhora da Graça que alli existia. Sr. Yilhena Barbosa, Fragmentos de um roteiro. Archito Pitto-resco.
? Frei Luiz de Sousa, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
outros assalariados dc diversas classes e profissões, ou ainda sem cilas
Tinha cada um d'cstcs auxiliares conlracto especial fir-mado com os embaixadores, e garantido pelo soberano inglcz, «em cujo obséquio, diz o documento respectivo a cada um vinham servir em Portugal durante um anno.» O vencimento era-lhes pago individualmente, ao passo que o soldo para as companhias recebia-o, como responsável por eslas, o capitão de cada uma 3.
Para eííeituar o pagamento de soldos aos capitães 4 nomeou o governo inglez um commissario, Guilherme Newport que os acompanharia a Portugal 5 com auetoridade de prender
á ermida <fci Senhora cia Escada x9 c mais a longe divisava-se por de sobre
o valle da .Moinaria o monte dc Sancl 'Ànna, vestido dc oliveiras, ermo dc
casarias , e apenas coroado pela egreja da saneta, de que tomou o n o m e 2 .
Pcza-nos que a estreiteza d 'este cscripto não soflfra descripçdcs mais
amplas sobre tào curioso assumpto. Formamos porém votos porque em breve
cont inue a t rac ta l -o com a mestria que lhe c congênita o ameno c i l lustrado
auetor da «Lisboa ant iga .» 1 Cartas dc Ricardo II. De protect ionibus, ut supra. 2 De protect ionibus. Super viagio Por tugal iae . Cartas, ut supra. 3 Pro viagio Portugal iae . Provisão de Ricardo II. Wes tmins te r , 8 de
janeiro de 1383 . Rymer , tomo vn , pag. i 5 3 . 4 «Àd rationabilia vadia eorundem sol venda.» Provisão, ut supra, 8 dc
jane i ro dc 1385 . s «Àd profíciscendum abinde in obsequium nost rum vcrsiis partes p r a e -
dictas.» Carta dc Ricardo II ao mesmo Newpor t . E m Westmins te r , 8 de
jane i ro de 1385. Rymer , loc. cit.
l Ficava pelo sul unida á egreja dc S. Domingos. «É contígua, diz frei Luiz de Sousa, ao corpo da egreja d este convento, e quasi como parte, ou capella -iTella da banda do evangelho, a bermida que o povo chama de Nossa Senhora da Escada (sendo seu proprio e antigo titulo da Purificação) por ser casa dc sobrado, c se subir a ella por uma escada de pedra, que cabe no adro.» Sousa, liv. HI, cap. xix.
* Summario, pag. 120.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
os que aos compromissos faltassem l . Nomeou também o mesmo governo outros dois commissarios para formarem o arrolamento dos auxiliares contractados individualmente2. para verificarem se iam armados e guarnidos conforme o respectivo contracto \ e para sanarem qualquer discórdia, sc a houvesse reciproca, ou entre alguns daqucl les auxiliares que voluntariamente sc alistavam e os embaixadores que em nome do seu governo os recebiam por soldo \ Mui recom-mendada era aos dois commissarios a prompta realisação da viagem 5.
Também, a fim de transportar a Portugal Ioda a expedição de auxiliares, mandava o rei embargar nos portos de Cor-nouaillcs e Dcvonshire dentro do prazo de vinte dias quantos navios inglezes fossem precisos 6. Extranha forma dc acatar a liberdade individual e os interesses do commercio!
Finalmente para pagamento dos soldos e outras despesas inherentes á expedição contractaram os embaixadores com diversos negociantes de Londres avultados empréstimos7.
1 Carta de l l icardo II ao mesmo. Kymer , loc. cit. 2 Dc monstro hominum ad arma |»ro \ i ag io Por tugal iae super\idendo.
llrcvc de Kicardo II. Wes tmins tc r , G dc fevereiro dc 138o . Kymer, tomovii,
pag. 153. i De monstro hominum ad a r m a , ut supra. 4 De monstro, ut supra. 5 Ut supra. r' «Ad tot naves et mar inar ios , quot p ro passag io . . . hominum ad arma
et sagittariorum in obséquio nos t ro versiis par tes Portugal iae profccturorum
necessarii fuerint .» Provisão de Kicardo II . De navibus arrestandis pru
viagio Portugaliae. Westmins tc r , 8 de j ane i ro d e 1385 . Kymer, tomo vil,
pag. 453 .
«Muytos hy ouue que lhe empres ta rom d inhe i ros pera paga do soldo
das gentes . . . ass icomo Mosse Nicol , Mosse dc Londres , Anr iquc Viucmbra,
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Não se teriam porem estes podido rcalisar, se como caução das sommas adeantadas não houvesse Ricardo II com accordo do seu conselho mandado por duas vezes embargar e se-questrar todos os navios, c todos os marinheiros portuguezcs, bem coino todas as mercadorias c mercadores de nosso reino então existentes ante o almirantado inglez l.
Esta dupla violência contra os bens e as pessoas de um povo amigo, ao qual se estava prestando auxilio, ó notável característico de como se entendia e realisava o direito inter-nacional no século XIV \
caualeiro, que lhe emprestarão Ires mil & quinhentos nobres . E assi outros
mais 5c menos, conforme cada hum podia.» Lopes, parte i, cap. 48." 1 cQuibusdam cerbis de causis, de avisamento consillii noslri vobis
mandamos quòd quascumquc naves et mcrcandisas dc Portugalc infra
Admiratum existentes una cum Mercator ibus, Magistris & Marinari is co-
rundem arrestari, & cos sic sub Aresto salve & honeste custodiri faciatis.»
Hrci( dc Ricardo II. Westminstcr , 23 de janeiro dc 138o. Kymer, tomo vn ,
pag. 4oo. 2 Para esclarecimento do leitor cumpre notar os cqui \ocos cm que sobre
este assumpto incorreu o visconde de Santarém, não havendo comprehcndido
a doutrina do decreto que determinou o embargo, nem as causas q u e o
motivaram. Adcantcrccl i f icamosaqucl lcs equívocos, expondo a realidade dos
factos. Veja-se Nota C no fim do volume.
•
CAPITULO XI
SrMMARio. — Embarcam as forças auxi l iares . — Dirigem-se ao P o r t o . —
Dispersão no mar . — A salvamento. — Lisboa, uma nau e a b a r c a . —
Documento contemporâneo.—Sua val ia .—Gales castelhanas ante a cidade.
— Peleja marí t ima. — A barca ; esforço bri tannico. — A n a u ; dez contra,
uma .—Ard i s castelhanos.—Os archciros inglezes .—Victor ia .—Computo
da expedição. — A quant idade e a qual idade. — Deposito dos auxi l iares
em Évora .—Dis t r ibu ição mediante a guer ra . — Fcrnão Lopes cortesão.
—Estratagemas.—Refutam-11'0 documentos c cscriptores cocvos.—Fora
seguido duran te séculos.—A critica de hoje .—Alexandre Hcrculano .—
O romance e a historia. — O >elho chronista perante os nossos dias.
1
Na cidade dc Plymouth, conforme determinação do rei de Ing la te r raa junc ta ram-sc as companhias e demais auxiliares. Enibarcando-sc ahi em duas grossas naus inglezas, uma barca e um navio dc transporte, mandados embargar, como vimos, pelo governo inglez, desferiu velas a expedição meado março (1385) dirigindo-se ao Porto 2.
1 Breve de Kicardo II. De navibus arrestaiidis |»r<» \ iagio Portugal iae .
Westminstcr , 8 dc j ane i ro de 1385 apud Kymer, Foeilcra, tomo v n , pag. 4 5 3 . 2 Carta do eonego de Lisboa Gonçalo Domingues ao abbade de Aleobaça.
D. João d'Orncllas. Lisboa, 3 de abril de 1385 . Collec. dos mss d 'aquel le
mosteiro. Lopes, par te ii , cap . iv.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Ou por impericia dos marcantes, ou porque os assaltasse alguma tempestade equinoxial, derramaram-se cllcs sobre o Oceano, chegando todavia salvos todos a terra portugueza. Ao Porto, aonde a expedição se dirigia, como vimos, abicou somente uma nau. O navio foi surgir a Setúbal, e á barra de Lisboa aproaram a outra nau c a barca l.
Em documento contemporâneo de subida valia, porque fóra escripto por testemunha ocular vinte e quatro horas depois de occorridos os successos que narra vem circun-stanciadamente descripta a entrada no Tejo des tes dois vasos, bem como a renhida lucta que pelejaram, e venceram até lograrem lançar ancora á porta do mar sob as muralhas da capital.
I I
Foi assim: Dez galés castelhanas sitiavam então a cidade de Lisboa.
Ao avistarem a barca ingleza que mui a barlavcnto da nau singrava já, barra a dentro, partiram a accommettel-a 3.
«Os inglezes, diz a chronica, defendendo-se fortemente «magoavam mui mal ás frechas os das galés, e em pelejando «approuve ao Senhor Deos que havendo a barca bom tempo «sahio-se dan t r e os Castcllãos, e veo poer ancora ante a «cidade á porta do mar.»
1 Carla do coneyo de Lisboa, ut supra. 2 Veja-se a carta supra . Foi escripta em 3 d e ab r i l . A entrada dos navios
inglezes realisara-se na véspera, 2 dc abr i l , domingo dc Paschoa. Lopes,
Chron. de I). João I, par te li , cap . 4 .° 3 topes, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Paliava a nau. Todas as gales dc voga arrancada voaram então sobre ella. Eram dez contra uma. Á desegualdade do numero junctaram ainda o ardil da astucia.
Uma galé castelhana, escondendo na respectiva bandeira as armas nacionacs, c mostrando as quinas para sc fingir portugucza aproximou-se aos da nau bradando-lhes que amainassem. Estes tomaram um cabo da galé cuidando ser portugueza, mas reconhecendo a tempo o engano cortaram o cabo, e continuaram renhida peleja.
Outra galé castelhana, jogando então de proa, eatraves-sando-se por barlavento, buscou tolher o passo á nau ingleza. Esta, singrando de golpe, quebrou-lhe bem cincoenta remos e passando rapida atravez das demais, que deixou cmmara-nliadas como num feixe, veio impa vida fundear ante a cidade \ Estava salva! O esforço inquebrantavel dos archeiros inglezes operara milagres.
Rcalisara-sc esta victoria em domingo dc Paschoa, 2 «le abril, (1383). De grande imporlancia foi, porque assim con-servou illcsas as gentes de armas que de Inglaterra vinham, e «pie desde logo entraram a servir a causa do mestre de Àviz, que era também a causa da nação portugueza \
th 1 «Fingindosc de Portugal & mostrando as Qu inas . . . tendo as armas de
Castella envoltas.» Carla supra. 2 «A huma galé q u e se antepoz por a empachar quebrantou bem c in-
qüenta reinos & das ou t ras fez embrulhar £ empachar em hum.» Carta do
conego Gwçalo Domingues, ut supra. 3 Lopes, Chron. de D. João 1.°. loc. cit. 4 Cumpre-nos aqui rectilicar um equivoco em que incorreu Lafuente na
sua Historia geral de llcspanha, par te u , liv. m , cap. 19.° Confundindo
o objectivo d'csta expedirão em auxilio exclusivo dc Portugal , suppoz o
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
. III
Segundo testemunha ocular c contemporânea a que nos temos referido, o conego de Lisboa Gonçalo Domingues, orçava o total da expedição ingleza por oitocentos pelejadores entre homens de armas e archoiros l . Quinhentos destes, conforme escreve Froissart, também contemporâneo, for-mavam as companhias de mercenários assoldadados, que atraz descrevemos. O resto, segundo os irrefragaveis docu-mentos que lambem mencionámos, eram cavalleiros, escu-deiros, homens de armas, ou aventureiros vindos por conta própria mediante o respectivo soldo pago polo reino.
Sobre a aulhenticidade dos dois narradores, coevos dos successos que descrevem, não pode existir duvida. 0 pri-meiro estava em Lisboa no momento em que chegaram os inglezes, e escreveu logo no dia immediato ao do desem-barque. Froissart, conforme adeante mais largamente ex-
notavel escriptor q u e os inglezes vinham então para manter directamente as
pretenções (to d u q u e de Lancastcr á corôa d c Castella, o que. segundo fica
demonstrado, c claro engano. Vinham exclusivamente, como provámos,
assoldadados pelos embaixadores por tuguezes para serviço do reino. 1 Sc bem que ao uso do tempo fora esta expedição auxiliar computada
cm 800 pelejadores, cumpre no ta r q u e o seu n u m e r o era forçosamente mais
avultado, pois du ran t e a edadc-jiiedia cada homem dc armas representava
tres, ou qua t ro indivíduos validos, t razendo sempre comsigo um para lhe
levar a lança, ou t ro o cavallo, o u t r o para estar j u n e t o d'elle no ardor da
peleja e no caso de queda o e rguer , o q u e o out ro não poderia só |»or si
realisar em conscquencia do peso da a r m a d u r a , etc. Vcja-sc Johnes, .Vo/<>
a Froissart, t r ad . , liv. i, cap . Ü 9 . °
D. JOÃO I F, A ALLIANÇA INGLEZA 03
pomos, e elle proprio assevera \ colheu as informações respe-ctivas a Portugal do bem conhecido cavallciro portuguez João Fernandes Pacheco testemunha contemporânea, guarda-inór (pie fôra de I). João I, e que a par «Festo pelejara na batalha de Aljubarrota.
Mais todavia do que pela quantidade avultavam pela qua-lidade aquelles auxiliares. Os homens dc armas de Ingla-terra ostentavam-se cm toda a parte como a flor da caval-laria do mundo :i. Os seus archeiros eram os mais terríveis
9
pelejadores então conhecidos. A tenacidade inquebrantavel «1'estes. á certeira pericia com quemeneavam os arcos gigan-teos devera a nação ingleza pouco tempo havia as glorias de Crécv e de Poiliers.
V
Os (pie a Portugal vieram então de Inglaterra não deslus-traram por seus actos, antes a par «le nossas aguerridas gentes mantiveram, o alto nome que haviam universalmente conquis-tado. Um dos mais distinclos dentre aquelles auxiliares, William de Monferrant, cavalleiro «le Gasconha, perdeu como já dissemos, gloriosamente a vida na batalha de Aljubarrota.
Apenas desembarcados os auxiliares inglezes, foram en-viados para Évora, onde se organisou um deposito militar de importancia. A proporção que recebiam cavallos, eram
1 Froissart , liv. i n , cap. 28.° • • 2 «Si ouvrai sur les paroles ct rclations laitcs ilu gcutil chcvalicr Jean
Ferranl Perccck (Pacheco). C i l m'cnsi ta et me informa dc toutes les besogues
advenues entre le royaumc dc Gastille, et le royaume de Portugal .» Fro i s -
sart , Chron., liv. m , cap. 28 . ° 3 Lingard, Ilistory of England, tomo i, chap. 18.°
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
distribuídos pelo reino, conforme ás exigencias da guerra mais cumpria l.
I I I
0 chronista de D. João I, obs t inando-se—no desempenho de seu ollicio cor tesão—em sempre engrandecer os actos do rei. cuja chronica lhe fôra commettida, pretende attenuar o haver o mestre de Aviz, quando regente do reino, solli-citado soccorro de extrangeiros. Neste antecipado proposito* amesquinha quanto possível lhe é a importancia da expedição auxiliar e os seus eíTeitos; esconde que tivessem vindo ho-mens de armas, por isso que estes formavam enlão a parte mais considerável da organisação militar do tempo, e limita-se a dizer que os embaixadores enviaram algumas gentes de armas, avcheiros «por a necessidade em que o lieynoestaua», e leva a inexactidão ao ponto de aííirmar que estes archeiros foram poucos \
Ora, os irrefragaveis documentos que apresentamos, e que nunca haviam sido devidamente analysados, os escriptores coevos do tempo, a que nos referimos, e de que lambem não havia noticia, e sobretudo a auetoridade inconciissa de teste-
1 «Estes Ingrezes . . . receberão logo por mandado Del Rcy soldo & fo-
romse para Euora onde havião daue r bestas p a r a . . . hirem seruir onde os
mandassem.» Lopes, par te n , cap . 2 «Devemos sempre desconfiar um pouco, escreve o eminente historiador,
sr . Pinheiro Chagas, do velho chronis ta , po rque elle é visivelmente parcial
a favor de I). João I c dos q u e o a j u d a r a m a subi r ao throno.» Hist. dt
Portugal, tomo n , $ in , pag. 6 3 , segunda edição. J Lopes, Chron. de D. João I , pa r te i , cap . 48 . °
D. JOÃO I F, A ALLIANÇA INGLEZA 9 5
munha ocular exliibida 110 proprio momento em que desem-barcaram em Lisboa os auxiliares, provam exuberantemente o crescido numero d estes, e que não só vieram homens de armas o (pie Fernão Lopes negava, mas (pie a sua totali-dade era aproximadamente cgual ao numero dos archeiros.
Do que lica provado conclue-se a premeditada inexactidão que não raro, e ainda em assumptos de mór gravidade usava empregar o velho chronista sempre 110 proposilo de exaltar o rei, cuja vida escrevia por officio. Os nossos historiadores limitaram-se em invariavcl rotina a copiai-o durante séculos. Hoje porém a critica scienlifica, a severidade histórica im-põem como absoluto dever consultar a auetoridade das teste-munhas presenciaes, ([liando as haja, examinar os escriplos dos auetores de diversas nações, contemporâneos dos suc-cessos a «pie se alludc, e sobretudo estudar com profundeza nas entranhas dos documentos a exactidão dos factos. Assim praclicou entre nós Alexandre Herculano nos quatro volumes que deixou da Historia de Portugal.
Se houvera o grando historiador continuado em suas pre-ciosas elucubrações, e se (não pelo romance, mas com a his-toria) houvera chegado aos tempos de D. João I, teria elle, o pensador profundo, o analysta inflexível, evidenciado com a auetoridade da sua voz potente as múltiplas inexactidões, a fraudulenta lisonja, com que por muitas vezes buscou alterar a verdade o patriarcha dos historiadores portuguezes, mas
1 Cada homem de a rmas completamente a rmado representava quatro
pelejadores, tendo june to dc si mais tres para o auxi l ia rem. Veja-se a nota
retro.
0 0 D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA 112
que em realidade foi entre nós o mais antigo dos panegy-ristas oiliciaes, o decano dos aduladores retribuídos, a que chamaram chronistas.
CAPÍTULO XII
SuMMAitio. — À expedição ingleza e o throno do mestre d W v i z . — A sobe-
rania da nação. — Caracter de João I. — Seus actos. — Al jubar ro ta . —
Alliança ingleza.— Pr imei ros c u i d a d o s . — O s do conselho.— Intervenção
popular na governarão do E s t a d o . — Novos poderes aos embaixadores .
—Crise do governo br i tannico .—Invasão imminentc .—Aggridem Escor ia .
—.Momento de repoiso .—Pcrspicac ia dos nossos embaixadores .—í \ o rei
de Portugal reconhecido por I n g l a t e r r a . — O parlamento.— Resolve-se a
conquista de Castel la .— Subsídios e gentes . — Negociações para alliança
com Por tugal .— Pede o d u q u e a João 1 navios para o acompanharem.—
A luva. — O leopardo inglez, ou o leão castelhano?
i
Quatro dias depois de haver aportado ao Tejo a expedição ingleza, os Três Kstados da nação representada em cortes na cidade de Coimbra declararam vago o throno de Portugal, e para occupal-o elegeram o proprio regente (pie era, como já referimos, bastardo e padre. Tal se manifestou a vontade , omnipotente da nação soberana.
Se porém D. João 1 não herdou dircctamente o sceplro, se algumas condições lhe falleciam para legalmente o em-punhar, conquistara-o por serviços ininterruptos prestados á integridade da nação, honrara-o pelo acrisolado esforço
7
GG D. JOÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA
com que hasteara impávido o pendão da independencia pa-tria, conseguira-o pela astuta sagacidade com que em tão dilficil conjunctura soubera encaminhal-a ao ponto de com apparencias dc legalidade attingir o alvo de suas ambições ardentíssimas: a posse da corôa.
Rei pelo único direito que a sociedade aclual admitlc hoje. o bastardo de Thercza Lourenço manteve-se digno da con-fiança que cm seu patriotismo depositara a nação, quando lhe conferira o mando. Vendo em torno dc si, como diz a chronica, Portugal contra Portugal, e o mais poderoso dos soberanos, que então reinavam nas diversas monarchias «la Ilcspanha, prestes a realisar segunda invasão no reino, evocou de todos os ângulos d e s t e quantas forças poude, e sahiu a tolher passo a inimigo cinco vezes superior em numero.
Nas campinas de Aljubarrola se encontraram as duas hostes rivaes. Francezes e Gascões tinha a seu lado aos mi-lhares o rei dc Castella. Os auxiliarcs contractados em In-glaterra engrossavam a diminuta hoste portugueza. A perícia de alguns dos capitães assoldadados, os certeiros golpes de seus archeiros contribuíram para as immarcessiveis palmas que nossos avós colheram na grande peleja, uma tias mais gloriosas que se feriram em toda Ilespanha.
Estreitar a alliança com Inglaterra loi um dos primeiros passos do moço rei, ouvido o conselho, cujos membros as próprias cortes quizeram desde logo eleger (e elegeram) como poder ponderantejunetoda iniciativa real. ecomo intervenção do grande elemento popular na governação do Estado l.
1 Lopes, Chron. de 1). João 1, pa r te II, cap . I.
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA 9 9
Esta eleição evitlenceia até que ponto se achava então coarctada em Portugal a auetoridade do rei. e qual era a preponderância que pela evolução de séculos, e por trabalho ininterrupto e acerrimo havia alcançado já a burguezia. Sob proposta das mesmas cortes foi o conselho composto dos indivíduos que os povos indigitarain, dent re os quaes o rei podia escolher \ e de mais quatro cidadãos representando as cidades dc Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. O representante de Lisboa foi eleito directamente pela capital, sendo os demais escolhidos pelo soberano d entre Ires cidadãos que lhe propozera cada uma das cidades r e f e r i d a s C o m p a r e - s e este conselho na quasi totalidade electivo com o conselho de Es-tado, feitura exclusiva do absolutismo nos immediatosséculos.
Andados apenas nove dias (15 de abril) depois que o novo rei cingira a corôa, enviou cllc jdenos poderes aos embai-xadores que, segundo vimos, se achavam ainda cm Londres, auclorisamlo-os a negociarem naquella côrte um tractado de alliança perpetua c confederação reciproca 3.
II
Não eram o mestre dc Santhiago, nem Lourenço Aunes homens que descurassem o momentoso encargo que lhes ia
1 «Que dos qua t ro Estados do Rcyno, que eram Prelados, Fidalgos,
Letrados e Cidadãos, fosse sua mercê dc escolher destes q u e lhe nomeavam.»
Lopes, loc. cit. 2 L o p e s , loco cilalo. J Tenor mandat i , sive procuratori i per Sercniss imum Principem D o m i -
n u m . . . l legem Portugal iae et Algarbi i , etc. Coimbra , l o de abri l de 1385,
apud Kymer , tomo v n , pag . 5 1 8 . *
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
commcllido. Mas o governo inglez achava-se naquelle m o -
mento em grave crise.
França e Escócia unidas ameaçavam de nova invasão a Inglaterra. Nesse intuito 1 enviava o monarcha franccz o celebre almirante João de Vicnne com valioso soccorro2 aos Escocezes, a fim de pelo norte accommelterem Inglaterra3, em tanto que o proprio rei caudilhando innumeras gentes desembarcaria nas costas meridionaes da ilha. «D'est'arlc, accrescenta um escriptor inglez do tempo, o rei de França invadiria Inglaterra cm quanto os nossos se achariam em Escócia empenhados na guerra contra escocezes e fran-cczes 4.»
Para conjurar tão iinpendente calamidade evocou a súbitas Ricardo II as descommunaes forças de que dispunham os poderosos vassallos dc sua corôa, c á lesta de trezentos mil homens, segundo os chronistas inglezes contemporâneos 5, entrou em Escócia (julho de 1385) para tolher passo aos inimigos colligados. Não o aguardaram elles, temerosos do numero. Desviando-sc, foram penetrar cm Inglaterra r>. Não
1 Ford, Sclioti Chronicon, anuo dc 1 3 8 5 . Froissar t , liv. 11, cap. 233.° 2 Sc ó cxacto o que escreve K n y g h t o n , as t ropas f rancczas enviadas então
em auxilio de Escócia foram t ranspor tadas cm trezentos navios. «Dominus
Johannes, dux Viennae . . . venit de Franc ia cum CCC navibus benò onustis
a rmatorum manu .» Knygh ton , col . 2 6 7 4 . 1 Knyghton, loc. cit.; Wa l s ingham, pag . 3 1 6 ; Kapin , tomo IH, liv.
4 «Dum nostri in Scotia bcllo cont ra Seotos & Gallicos tenerentur.» Ypodigma Neustriae, pag. 5 3 7 .
1 Cumpre notar q u e os h is tor iadores inglezes de enlão usavam muito exaggerar o numero dos seus exerci tos.
ü Knyghton, Walsingham, Ilapin, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
querendo lambem Ricardo por máo aviso de seus privados sahir-lhcs ao encontro c derrotai-os, conforme aconselhava o duque de Lancasler, volveu antes de dois mezes 1 á sua capital (agosto de 1385), não sem haver assolado os territórios que de mão armada percorrera.
Este momento dc repoiso, raro então na côrte ingleza, foi habilmente aproveitado pelos nossos embaixadores, que dc novo buscaram o duque de Lancasler *.
I I I
A noticia da rola dos Castelhanos em Aljubarrota chegara a Londres pouco tempo havia 3. Propicio ensejo era para os negociadores. A grande victoria vinha assim poderosamente auxilial-os.
Não era já 1). João 1 o regedor advcnticio imposto pelo furor das multidões insurreccionadas. Rei eleito pela nação inteira, c havendo á frente des ta derrotado completamente o inimigo commum. acabava o soberano portuguez de funda-mentar sobre vigorosas bases a estabilidade de seu throno, c a independência dc sua pai ria. Podia por tanto Inglaterra traclar dignamente com a nova potência. Assim o entendeu a côrte de Londres expedindo desde logo a favor dos nossos
1 Walsingham, Ilist. brevis, pag. 3 1 7 ; Froissart , liv. H, cap . 2 3 o . ° ;
Lingard, tomo i, cap. xx ; I lume , tomo 11, cap. v i ; Ford , tomo xiv,
cap. 49.® c 50 .° 2 Lopes, parle n , cap. 80 . ° 3 Lopes, loco cilato.
D. JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA
r e p r e s e n t a n t e s o salvo conduclo 1 que era então uso dar-se
aos embaixadores nas diversas cortes onde ficavam acredi-
tados. e q u e n ã o haviam ate alli obtido o mestre de Santhiago
nem o chanceller, apezar de mui acceitos serem na côrte
ingleza, como disséramos 2.
Reunira-se o parlamento (5 dc novembro dc 1385) 3.
0 duque dc Lancaster invocando os direitos de sua se-gunda esposa á corôa dc Castella, insistiu na opportunidadc de conquistar aquclle reino \ para o què mui valiosa lhe era a coadjuvação olTcrecida pelo rei de Por tuga l 5 .
Dominado já Ricardo II pela influencia dos privados que ao deante o perderam, e aos quaes de sobra alTrontava a presença do duque 6, foi sem reluctancia accordado que par-tisse este á frente dc luzida hoste de inglezes 7 dando-se-llie
1 Pro ambassatoribus regis Por tuga l i ae . Wes tmins t c r , 20 <lc outubro dc
1385. Rymer , tomo v n , pag. 4 7 9 . 2 O visconde de Santarém não comprehendcu a na tureza d'este documento
(o salvo conducto chamando- lhc nova carta dc protccção c salvo conduclo
a favor do mestre dc Santhiago ' , e con fund indo assim as cartas dc protccção
guias) dadas aos subdilos inglezes \ i ndos a Po r tuga l , com o sal \o conducto
então inherente ao caracter olíicial dos emba ixadores . Accrcscc que este
diploma não foi expedido só em relação ao mes t re de Santhiago, mas refe-
ria-se também, como não podia deixar de r e fe r i r - s e , aos dois embaixadores
cumulativamente. Comparem-se os respect ivos documentos em Kymer,
tomo vn, pag. 43G, 4 5 4 e 479 . 3 Knyghton apud Twysden , Ilist. Angl. Scr ip tor , col. 2676 . 4 Knyghton apud Twysden , loro citato.
' Lopes, parte n , cap. 81 c «Richard fut satisfait dc trouver un p r e t e x t e pour I cloigner du roy-
aume.» Lingard, Hisl. d Anglcterre, t r a d u e t . , tomo i, cap . 20 .° 7 «Toutcs gens d'éli tc.» Fro i ssa r t , liv. m , cap . 32 . °
1 Qmiro <Um— M- com Inglaterra. Prologo, p a g . LXXIH.
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA 1 0 3
como subsidio mcladc das rendas que o parlamento votara para aquellc anno 1, e estabeleccndo-sc previamente alliança intima com a nação portugueza 2.
Nomeados polenipotenciarios adhoc, c reunidos estes aos nossos embaixadores, começaram as negociações 3.
No cmtanto o duque de Lancastcr enviou um mensageiro a Portugal pedindo soccorro de navios para a terras da península o acompanharem com os seus \
A luva estava lançada. As phalangcs inglezas iriam afinal medir-se braço a braço com os descendentes de Pelaio c dc Aífonso XI. O Dcos das batalhas decidiria se na mais pode-rosa das monarchias cm que se achava então dividida Ilcspanha flucluariam em seus respectivos estandartes o leopardo inglez. ou o leão de Castella.
1 Rot -par lam. III , 2 0 4 . L ingard , llist. of England, liv. i, chap. \ . 2 Lopes, parle n , cap . 61 .° 3 Os plcnipotcnciarios por pa r le dc Inglaterra e r a m : Richard Aberl)iiry
c John Clauvavc, cavalleiros, c mes t re Ricardo Rouhalc , doutor cm Íris.
Veja-se o proprio Pleno poder (Westmins ter , 10 dc abril dc 138G) cm Rymer ,
tomo vii, pag. 5 1 9 . 1 Diz Froissart parcccr-lhe que o d u q u e de Lancastcr sollicitara soccorro
dc Portugal por intervenção dos embaixadores por luguczcs , e alTirma que
estes par t i ram desde logo de Ing la te r ra . O grande chronista que tantas vezes
narrou com exactidão os successos de Por luga l , equivocou-se nestes dois
pontos. O soccorro foi d i rcc tamcnte pedido por um emissário inglez enviado
a l). João I, e que veio encont rar este quando sitiava o castello dc Chaves
Lopes, parte n , cap. 6o. 0 ) . Os embaixadores chegaram mexes depois na frota
que á península acompanhou o d u q u e de Lancastcr .
CAPITULO X I I I
SUMMARIO.—Acolhe e l - re i o pedido do d u q u e de L a n c a s l e r . — E M ia luzida
f r o l a . — O capi tão do m a r . — A l l i a n ç a mutua ent re Por tugal e Ing la te r ra .
—Trac tado cm Londres .— Condições .— DilTcrença das que firmara el -rei
D. Fernando. - C o n c l u e m os embaixadores ou t ra convenção .—Suas des -
vantagens pa ra o r e ino . — desconhecida dc nossos h i s to r i ado re s .—
Astucias dc Fcrnão Lopes . — Por tuga l a serviço dc Ing la te r ra . — Mais
condições onerosas.— A reciprocidade ingleza. — Confrontações lesivas.
— Plcnipotenciar ios dc I) . Fe rnando c os dc I) . João I. — Huscain estes
jus t i f i ca r - se .—Auxi l io fictício a Por tuga l .—Ing lezes serviam exclus iva-
mente o d u q u e dc Lancas te r .
1
Grão prazer deu a I). João 1 a mensagem que lhe asse-gurava com a presença do duque «le Lancasler 1 auxiliar valioso contra inimigo, aliás vencido já, e expulso do lerrilorio pelas armas portuguezas.
Para logo foram esquipadas cm Lisboa 2 seis robustas galés, e doze naus que sob o mando dc AlTonso Furtado,
1 Lopes, pa r te 11, cap . G5.° 2 Lopes, loco citato.
1 0 0 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
capitão dc mar partiram para Inglaterra, onde causaram m a r a v i l h a c o m o adeante referimos.
Proscguindo as negociações cm Londres, c fazendo-se cm tanto o duque prestes de navios e gentes3 , concluíram os pleni-potenciarios ao cabo de alguns mezes (9 dc maio dc 1386) um mui notável tractado, que foi a base dos que posterior-mente sc eflcituaram, regulando as relações dc Portugal com
a Grã-Bretanha4. Estabelecia o novo acto diplomático alliança perpetua c confederação reciproca entre as duas nações, obri-
gando-sc ambas a mutuamente se auxiliarem cm caso de
guerra \
Estas importantes condições que formam ha séculos a base da alliança anglo-portugucza, mas a (pie por muitas vezes não tem dado cumprimento os nossos alüados, haviam sido anteriormente estabelecidas cm tempos dc el-rei D. Fernando noutro tractado que cm Londres negociaram os seus embaixa-dores João Fernandes Andciro c Vasco Domingucs, chantre dc Bragança ( l ü de junho dc 1373) 6.
Ha porem uma difierença radical. No tractado de D. Fcr-
1 Sobre este cargo veja-se Nota I) 110 fim do volume. 2 Froissart , liv. m , cap. 32 .° 3 Lopes, parte 11, cap. 8 1 . ° ; Froissar t , loc. cit. 4 Reges Portugaliae Confcderat io. W i n d s o r , í) dc maio dc 1386. Kymer,
tomo vn , pag. 515 . J Da íntegra d'cstc t ractado existe na to r re do tombo o documento «la
chanccllaria ingleza (gnv. 18, nine. 3.°, n .° 2 5 . ° e corpo chronol. , par le i ,
doe. 10.°). No museu br i tannico, bibliothcca cotoniana c na collccção de
Rymer, loc. cit. está o q u e os nossos embaixadores s . c r r a '
O tractado in extenso pódc vcr -sc cm R y m e r . Focdera, tomo vil,
pag. 15 e seguintes, e P u m o n t , tomo II, pag. 0 0 .
D. JOÃO I K A AI. LI ANCA INGLEZA 1 0 7
liando obrigavam-se os inglezes a soccorro posilivo expe-dindo certo numero dc homens de armas e archciros que viriam, como eílec ti vãmente vieram, a Portugal caudilhados por um dos tios do proprio rei da Grã-Bretanha, a fim de auxiliarem e defenderem 1). Fernando e a rainha sua esposa na guerra contra Castella
Em tempos dc í). João í, quando cm mais renhida lueta sc achara o reino contra o antigo adversario, não sc estipu-lava no novo tractado soccorro algum directo da Inglaterra cm favor do rei de Portugal. Pelo contrario.
No mesmo dia cm que por parte dos embaixadores do antigo mestre d'Aviz se firmou o referido tractado (0 de maio de 1380) scllaram clles com os plcnipotenciarios inglezes outra convenção mal conhecida cm Portugal, mas nem por
1 I>c tanto momento é esta condição do tractado q u e julgámos dever exarar
aqui a traducção na ín tegra : «El-rci dc Inglaterra abraçado com ternura c
amor com os dielos Hei dc Portugal e Rainha D. Lconor, sua esposa, c não
obstante as presentes necessidades dc seu re ino, mandará de Inglaterra a
Portugal um certo numero dc soldados, a saber : seiscentos homens de armas
e quatrocentos archciros 1 para auxi l io c defesa do Rei e Rainha de Portugal ,
a lim dc combaterem c resistirem com todas as suas forças ás invasões hostis
e tyrannicas dc Henr ique , o bas tardo, ult imo rei de Castella c Leão, que
injustamente se intitulava pcr tcndcntc á coroa dc Portugal .»
Na grande collccção dc Rymer c omittida esta condição, mas enconlra-sc
no documento authcntico archivado 110 Museu Britannico. Santarém, Quadro
elementar das relações diplom., tomo xiv, pag . í) \ ; sr . \ iscondc de Figanicrc ,
Cathalogo dos manuscriptos portugueses do Museu Britannico, pag. 56 , c i -
tando Riblioth. Cottonian. Serie Nero. II. 1. pag. 17.
1 Santarém cscrovc 80 besteiro.'', o que foi equivoco. No documento inglez cncontra-so •ccrtuni numeram bcll.itorum ad regnum Portugalliac mittcndonim... vidclicct: sexccntos homines ad arma, ct quadringentos sagitarios,»
1 0 8 D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA
isso menos anthcnlica, nem de menor desvantagem para o reino E nem iFesta convenção, nem do objcctivo a que se refere, tractaram jamais os nossos antigos historiadores, porque inteiramente a desconheceram, limitados cm geral a copiar Fernão Lopes. Este porém, como é natural, não a mencionou mui adrede cm sua chronica, pelo invariavel cos-tume ile adulterar, ou esconder os factos, quando contraria-vam o seu mister de pancgyrista de D. João 1. Iria acaso mais longe o arteiro historiador inutilisando o documento como guarda-mór que era da torre do tombo ? O certo é que não existe, nem ainda copia, no archivo nacional. Por este motivo julgamos útil dar-lhe publicidade sendo a primeira vez (pie a íntegra do documento referido sahe a lume cm Portugal
Mediante a cilada convenção obrigavam os embaixadores a sua palria a servir desde o immedialo verão e por seis mezes Inglaterra3 com dez galés armadas e mantidas (art. l.° e2.v) á custa do thesouro portuguez 4.
Ainda mais. Outro artigo (era o 3.°) estipulava que não realisaudo as nossas galés aquellc serviço ininterruptamente durante os seis mezes convencionados, repetiriam o mesmo serviço por outros seis mezes 5, a começar em qualquer dos
1 Convontiones cum praefato rege super auxi l io p racs lando . Windsor, 9
de maio <!o 138G. Rymer , Focdcra, lomo MI, p a g . 5 2 1 . 2 Veja-se o documento sob Nota K no fim do volume. 1 «R<-x Portugaliae in aestate p r ó x i m a . . . inveniet et mi t t e t . . . domino regi
Angliac. . . dccem galeas bene a rma tas . Quae bene servire tenebunlur.» Convcntioncs, ut supra.
4 «Rex Portugaliae suinpt ibus et spensis .» Convenl iones, ut supra. 5 «Rex Portugaliae in alia aestate cx lunc f u t u r a quandocumquc pro
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
verões que a Inglaterra indigilasse. domo era entrado já o mez dc maio. c devia em setembro (art. 2.°) findar o serviço das galés, é claro que ficaria este durando cm vez de seis, nove mezes.
Tal era a reciprocidade que nos oulliorgavam os nossos
alliados! 1
par le . . . regis Angliac inde requis i tas fuer int per deccm galeas . . . per sex
menses faciet deservire .» Conventiones, ut supra. 1 O visconde dc Sanla rem grande collcccionador de documentos, c por
isso mesmo não tendo algumas vezes tempo de profundamente os investigar,
confundiu a ida das naus c galés por tuguezas q u e o d u q u e de Lancastcr
pediu lhe fossem enviadas para o acompanharem á península] com as dez
galés a que se referia a convenção firmada pelos nossos embaixadores, c que
mui posteriormente pa r t i r am , como veremos, cm soccorro de Inglaterra.
Allínnou ainda equivocadamcntc aquel lc escriptor que as galés foram para
Inglaterra, a fim dc suppr i rem a frota inglcza, que a Hcspanha t ransportou
o duque c o seu exerci to .
S<* o sábio visconde houvesse bem examinado os documentos que cllc
mesmo publicava, reconheceria nestes pontos a inexaclidão de suas asserções.
A ida das gales por tuguezas que , segundo veremos, par t i ram em soccorro
da nação inglcza, nada tem com as naus e galés que mais dc um anuo antes
havia o duque dc Lancastcr sollicitado llie fossem enviadas; e nem umas
nem outras poder iam ter ido para suppr i rem a frota inglcza que a Hcspanha
transportava o duque , porque esta frota apenas largou na Corunha a hoste
britannica partiu em cont inente para Inglaterra conforme as terminantes
ordens transmil l idas pelo rei inglez a seu lio o d u q u e dc Lancastcr: «Vobis . . .
post applicationcm ves t r am. . . IIK par l ibus suprad ic l i s . . . ad finem quod n a -
vigium nos t ru in . . . salvé et sccurc . . . in regnum nos l rum. . . redeal , aue tor i -
tatem et potes la tcmcommil t i inusspccia les .» C a r l a a u t h o g r a p h a d e Ricardo II
ao duque de Lancastcr super reditu narium in viagio Portugaliae de inten-
dendo. Wcst ininslcr , 12 de j u n h o dc 1380 . Rymer , tomo VII, pag. ó2i.
8() D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
II
Quão pasmosas diflcrenças são ainda para nolar entre o tractado (pie os embaixadores de I). Fernando sellaram em Inglaterra, e os cpic abi concluíram os emissários dcD.JoãoI!
A D. Fernando concederam os inglezes, como dissemos, soccorro eílectivo que rcalisaram vindo um exercito a Por-tugal caudilhado por um dos tios do proprio rei; c em com-pensação d este auxilio assaz valioso não lhes oulhorgou 1). Fernando concessão alguma, além do projectado consorcio dc sua filha herdeira com um príncipe de Inglaterra, consorcio que se mallogrou por fim.
Pelo tractado de I). João 1 não conseguiu o reino auxilio directo da coroa ingleza, e foi pelo contrario obrigado a ser-vil-a durante o espaço dc dois verões com gentes de guerra e navios armados.
Sob o reinado de D. Fernando em vez de irem em soccorro de Inglaterra as armas portuguezas. vieram os inglezes em auxilio cfieclivo de Portugal e do proprio rei.
Em tempos dc I). João I não só foram as galés c gentes portuguezas servir sem compensação Inglaterra, mas em vez dos prazos marcados na convenção demoraram-se alli quinze mezes successivos; o que nem Fcrnão Lopes 1 ousou negar aííirmaiido aliás hipocritamente que as galés, «COMO d'antes
1 Chron. dc D. João / , parle 11, cap. 127.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
fôra concordado, partiram para Inglaterra por servir a El-Rey.» O serviço a el-rei sabe o leitor qual era
Mais. As grandes despesas para a vinda a Portugal, e manutenção do exercito do conde de Cambridgc foram satis-feitas pelo lhesouro dc Inglaterra 2.
0 valioso soccorro com que a frota portugueza cm tempos de I). João 1 auxiliou a nação britannica foi, segundo a con-venção estabelecia, pago integralmente á custa de Portugal3 .
Ainda mais. No preâmbulo que mediante o uso diplomático da epocha precedia os artigos da convenção, observavam os plenipotenciarios que estabeleciam esta como compensação4
das grandes despesas com que Inglaterra ia onerar-se para a partida do duque de Lancaster em conquista de seus direitos,
1 Sobre este ponto é ainda o chronista desmentido pelo seu contemporâneo,
o inglez Wals ingham, dizendo este singelamente que o rei dc Portugal mandou
ao dc Inglaterra seis galés para o auxil iarem c lhe darem conforto contra
seus inimigos, c q u e estas gales acolhidas com bom animo prestaram cxcel-
lcntcs s en iços a Londres e a ou t ras cidades dc Inglaterra. Wals ingham,
Ilist. brevis, pag. 31S . 2 «Dc mandato regis Angliac solvantur vadia dicto domino Edmundo et
ilietis millc hominibus a rmorum.» All igantiarum cum rege et regina Cas-
tellac. Confirmação dc el-rei 1). Fernando ao tractado feito cm Londres com
o duque dc Lancaster . Extrcmoz, l o dc ju lho dc 1380. Kymer, tomo vn ,
pag. 203. 3 «Regis Portugaliae sumpl ibus et expensis . Nihil pcnitüs pro dicto s e r -
>itio a dicto domino Rege Angliac petendo seu exigendo.» Conventiones,
tit supra. 4 «In recompensationem onerum et expensarum q u a c . . . regem Angliac
circa profecl ionem.. . Johann i s . . . ducis I .ancastriac pro conqucstu jú r i s su i . . .
subirc . . . opportebit .» Conventiones, ut supra.
I). JOÃO I E A AM.IANCA INGLEZA
c em soccorro dc Portugal!. Ora, dc soccorro algum foi a
Portugal csla vinda do duque. Pelo contrario os embaixadores
obrigaram formalmente o reino a servir Inglaterra com gentes
c navios por determinado tempo, c em diversos annos, ao
passo (pie os inglezes, máo grado á confederação dc auxilio
mutuo e soccorro cfleclivo que acabavam de firmar com Por-
tugal. vieram aqui unicamente em serviço exclusivo do duque
de Lancastcr, c por tanto da corôa inglcza.
Maiores desvantagens pesaram ainda sobre a nação por-tugueza desde que o filho de Eduardo III no seu proprio interesse chegou á península a fim de cmprehcnder a con-quista de Castella.
Opportunamenle presentaremos ao leitor este novo quadro.
1 «El succiirsu praefali domini regis Por luga l i ae .» Convcnliones, ut supra.
CAPITULO XIV
SLMMARIO. — Chega a P lymouth a frota portugueza. — Assombro que p ro-
duz .—Ampla s t rue tura de galés e n a u s . — O Portugal dc hoje c o de
outr 'ora. — D u q u e de í .ancaster e o seu exercito, ílor da caval lar ia .—
Acompanham-n'o esposa e filhas.—Faustoso a p p a r a t o . — O rei e a rainha
de Ingla ter ra .—Despedidas r e a c s . — P a r t i d a . — C e n t o e trinta ve las .—Em
Gall iza .—Submissão p r o g r e s s i v a . — O pendão dc Lancas tc r .—Júbi lo de
I). João I com a chegada do d u q u e . — E m b a i x a d a s mutuas .—Accorda - se
encontro immedia lo .— Convoca e l - re i os principaes do re ino .—Ant igos
nobres c os que a revolução p roduz i r a .—Idcas novas i r rompendo .—O t r a -
balho aspirando á conquis ta da sociedade.—A frota portugueza e o Porto.
—Volvem os embaixadores á pa t r i a .—Como são acolhidos.
I
Em 30 de junho (1380) abicou a Plymouth AlTonso Fur-tado com a frota de seu mando para, segundo o pedido (pie ao rei de Portugal dirigira o duque de Lancastcr, seguir este e os seus a terras de Hcspanha l .
Grande assombro produziu então em Inglaterra a frota portugueza. Assim o afíirmacscriptor inglez contemporâneo: «As naus, accrescenta ellc, eram de maravilhosa grandeza c struetura. Nas galés amplas e robustas, a maior das quaes
1 Knyghton, Dc eventibus, col. 2676.
8
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
tiravam trezentos romeiros, e a menor conto oitenta, cara-j i e a v a m tripulações tle vigorosos pelejadores
Quão mudado do (pie era se encontra hoje Portugal! Quão
diversa é a opinião que ora formam de nós os escriptores
extrangeiros!
Cerca dc dois mezes havia que em Plvmoulh se encon-
trava o duque de L a n c a s l e r b u s c a n d o reunir as forças que
deviam acompanhal-o 3.
Unanimes são os escriptores contemporâneos em afíirmar
que este exercito ascendia a vinte mil homens 4; flor da caval-
laria ingleza Acompanhavam o duque sua esposa e filhas, Filippa que
1 «Virorum for l ium manu bene re fe r t ae . Q u a r u m quacdam cum CCC'
remigibus & minima carum cum ccn tum oc t ing in la .» Knyghton, col. 2076. 2 Provisão dc Ricardo II . Dc nav ibus p ro passagio regis Castellae acce-
lerandis. Westmins tcr , 2 3 dc abri l d c 1386 . I l y m c r , tomo VII, pag. 509. 3 í:. para notar o equivoco cm q u e incor reu Lafuen te dizendo que o duque
de Lancaster se embarcara para l l cspanha cm Br is to l . Froissart escreveu
Rrisco. D'ahi deduziram diversos auc tô res q u e fôra cm Bristol o embarque.
Sabe-se porém como Froissar t c os seus copis tas adul teravam os nomes.
Que o duque embarcou em P l y m o u t h p r o v a m - n ' o , a lém da provisão supra,
muitos outros documentos colleccionados cm R y m e r , e o proprio Knyghton
{col. 2676) , contemporâneo. 4 Se bem concordam na to ta l idade do n u m e r o , dificrem aquelles escri-
ptores quanto á especial idade. K n y g h t o n designa dois mil homens de armas,
e oito mil archciros [De eventibus, c tc . , col. 2 6 7 6 ) ; Froissart Ires mil
lentas lanças, c Ires mil a rchci ros (Chron iques , liv. III, cap . 32.°), c Fcrnão
Lopes duas mil lanças, c Ires mil a rchc i ros , afora outros muitos que nom
contauam (parte n , cap . 83 .° ) . 5 «Le duc de Lancaster avoit por lé en E s p a g n c la fleur des forces mili-
taires dei'Anglctcrrc.») H u m c , Ilist. d Anglcterre, t r ad . d e M . - B . . . , tomou, cap. 6.°
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
mezes depois cingiria a corôa de Portugal, Isabel, divorciada de seu marido o conde d c P e n b r o c k e c novamente esposada com mossc João deIlol land condestavel daquella hoste, e irmão, por sua mãe, do soberano então reinante 3 ; c Calhe-rina que foi posteriormente, como dissemos, rainha de Cas-tella. Vinha também com seu pae madame Joanna, filha na-tural do duque, c de Katterina Rouct, esposa de Thomaz Moriaux, um dos marechaes da hoste inglcza 4.
Seguidas as princezas de Lancastcr por grande numero de donas c donzellas, entre as quacs se encontraria por certo como governante que era das filhas do duque, a formosa Katterina Rouct, ostentavam cilas o extraordinário apparalo e o faustoso luxo cm que primava então, como é sabido, a côrtc de Inglaterra. Só crcados ascendiam a mi l 5 . Dir-se-ia que vinham a tranquilla posse dc tluono indisputado, e não a conquista violenta de terrilorio adverso 6.
A Plymouth foram pessoalmente despedir-se do duque 7
o rei de Inglaterra, c sua esposa, Anna de Bohemia, deno-
1 Knyghton, col. 2<»7(í. 2 Lopes, parte 11, cap . 83 . ° 3 Eram ambos filhos da formosa ilonzcUa de Kent (the fair maid of Kenl)
nota do rei Edua rdo I. Esta pr inccza, typo da leviandade proverbial então
na sociedade inglcza, foi mulher dc tres maridos , sendo o ultimo seu primo
o celebrado príncipe negro, como dissemos. Veja-se Imoft*, Uegum Maynue
llritan., llist. gcneal., capu t iv, pag. 2 0 ; Wals ingham, llist. brevis,
pag. 178; Knyghton , De eventibus, col. 2 6 2 0 . 4 Froissart , liv. m , cap. 32 .° 5 Froissart , liv. m , cap . 32 .° c Lafuentc , par te II, liv. m , cap. 19.®
«Le roi et la reine l esa l l é ren taccompagner au bord de la m c r . » T h o y r a s ,
llist. d Angtct., tomo 3.° , liv. x.
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
minada pelo povo inglez a boa rainha 4. Ao duque e duqueza
oíTercceram clles então, como a futuros soberanos de Cas-
tella, duas coroas dc oiro 2.
Finalmente a 9 de julho, entrada a noite 3, desferiu velas a grande expedição, composta, segundo auetores contempo-râneos, dc cento e trinta a duzentas velas \
A 2 5 aportaram á Corunha, submettendo progressiva-mente algumas povoações, e entre cilas a cidade de Santhiago. Muitos senhores alçaram pendão por 1). Gonstança. Quasi toda Galliza se lhe submetteu por fim 3.
A filha de Pedro, o cruel vinha reclamar a herança de seu
pae. Se ainda lhe não ornava a fronte a corôa de rainha, era i
já obedecida em valiosa porção do dominio castelhano.
1 «Thc pcoplt- of E n g l a n d . . . Iong hallowcd hor memory by lhe simplc and
expressive appcllation of «good quecn Atine.» B u r l o n , Irish history, cilada
por S t r ik land , Livcs of thc Quecns, tomo 1.°, 11.0 13.° 2 Knyghton , Dc eventibus, col. 2(»7(>. 3 Assaz ext ranha é a forma porque a expedi rão se fez ao mar . Dias havia
que sobre este pesavam as calmarias própr ias dc ju lho . Naquella noite,
porém, dadas t r indades, e quando o d u q u e dc Lancaster se achava a ceiar
cm sua galé com seu filho, o conde dc Dcrby , depois rei dc Inglaterra , vieram
dizer-lhe que dc repente começava a soprar vento d e s c r \ i r .
Para logo despediu o d u q u e o propr io filho, c o rdenou q u e a expedição
levantasse ancoras . Assim par t i ram cm meio da escur idão da noi te . Veja-se
Knyghton, De eventibus Angliae, col. 267G. 4 «Erom por todas cento & tr inta velas bem a rmadas 6: com muitos man-
timentos.» Lopes, par le 2." , pag . 80. Froissart aflirina q u e eram duzentas velas. Liv. i u , cap. 32.°
5 «O d u q u e em Sancliago cobrou logo a cidade & assi polia maior parte toda a terra de Galliza.» Lopes, pa r te 2.% cap. 89 . °
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
II
Mui ledo ficou o rei de Portugal com a chegada de tão poderosos auxiliares l .
Logo ncss'hora se dirigiu ao Porto, c cm continente ex-pediu dois embaixadores 2, que ainda em Galliza nos paços do duque foram encontrar os que esle por sua parte enviava ao soberano portuguez 3.
Trocadas aflcctuosas missivas c presentes, que certo não arruinariam os lhesouros dos dois potentados \ reconheceram estes a conveniência dc quanto antes se encontrarem, c accor-dou-sc que o logar das vistas fosse no alto Minho, extremo dos dois reinos, entre Monção e Melgaço sobre o plaino deno-minado Ponte de Mouro ": «A ponte de Mouro, escrevia não «ha ainda muitos annos um de nossos mais amenos histo-r iadores , é um logar dc Portugal acima da praça dc Monção, «e toma o nome de uma ponte que ahi ha sobre o rio Mouro, «que vai desaguar sobre o Minho a pequena distancia 6.»
Para que se realisasse com a maximasolemnidadc aquellc
aclo internacional, c fosse o príncipe da Grã-Bretanha rcce-
1 Lopes, par te 11, cap . 90 . ° 2 Lopes, pa r te II, cap . 91 3 Froissart , Chron., liv. m , cap . 38 .° 4 O presente q u e e l - re i enviou ao duque , á duqueza e ás princezas foram
machos de cór branca mui ligeiros. O d u q u e retr ibuiu com dois falcões pe re -
grinos, e dois galgos d c raça inglcza. Froissar t , liv. III, cap . 38.° 5 Lopes, par te u , cap. 91 . °
S. Luiz, Mcm., tomo único, cd. de 1835, pag. 2 f l .
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
bido, senão como a alleza da pessoa requeria, ao menos com o esplendor compatível com os acanhados haveres, a quC
estavam então reduzidos os cavalleiros de Portugal depois da guerra, que havia mais de três annos mantinham, con-vocou 1). João I os prelados do reino, e isso mesmo os poucos senhores que neste ainda existiam
Era assim limitado então o numero dos fidalgos de solar, em conscquencia de haver a maxima parte dos antigos seguido a voz de Leonor Tellcs, ou tomado armas pelo rei dc Cas-tella, perdendo até alguns junclo d'este a vida nos campos de Aljubarrota.
Desejando todavia o monarcha portuguez prescntar-sc ante os inglezes com esplendentc comitiva, buscou reunir d'cntre os seus proceres quantos lhe foi p o s s í v e l e que poucos faltaram reconhece-se cotejando os nomes dos que Froissart menciona como vindos ao chamamento de el-rei, com os que nas cortes de Coimbra formavam o braço da nobreza.
I I I
Afora esses antigos nobres, outros houve então (como dc ordinário succedc após as grandes revoluções) que, oriundos dc baixa condição, vieram por seu trabalho c serviços a erguer-se a altos cargos c dignidades.
1 «Alguns Senhores . . . que E IRcy de Por tuga l tinha comsigo.. . certa-
mente erom mui poucos.» Lopes, p a r t e 11, cap . 30 .° 2 «EIRcy teuc conselho dc m a n d a r chamar o condcstabrc e outros d"
Rcyno, c fazer libres pera quando sc ouucsscm dc ver.» Lopes, parte n, cap. 1)0.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA I I ! )
Eis como Fernão Lopes se expressava a esle respeito: «Parece sc levantou outro mundo novo, e nova geração dc «gentes, porque íillios de homens de baixa condição... por «seu bom serviço e trabalho neste tempo foram feitos cavai-«leiros... de guiza que por dignidades humanas & oflicios «do Reyno montaram tanto ao diante... que hoje em dia... «são teudos cm gram conta '.»
Sunima importância tem para a nossa historia social estas justas observações do chronista. Eram as idèas novas irrom-pendo. Era o trabalho começando a robustccer de nova seiva a sociedade, c sobre as ruínas do vetusto edifício da cdade-media decadente aspirando a conquista que nos séculos vindouros lograria sem competências.
Satisfeito o encargo dc ate Hcspanha acompanhar o duque de Lancastcr, e desembarcado esle cm Galliza, a frota por-tugueza desfraldou velas dirigindo-se ao Porto. A seu bordo regressavam á patria os embaixadores, 1). Fernando AlTonso d'Albuqucrque mestre de Santhiago, e Lourenço Annes Fo-gaça, havendo a missão que lhes fôra commettida durado mais de tres annos 2, facto rarissimo naquclles tempos, em (pie não havia, como c sabido, legações permanentes.
Pode calcular-se como os embaixadores seriam recebidos
pelo novo soberano.
O que fazia 110 emtanlo cm Galliza o pretendente á corôa de João de Castella ?
1 Lopes, parte 1, cap. 113.° 2 «Durarom fora do Ilcino Ires annos Ires mezes e vinte cinco dias .»
Lopes, parte n , caj). 90 . °
\
X
CAPITULO X V
S Ü M M A R I O . — O d u q u e de Lancastcr c a capital da Gall iza.—Magnificência
da corte i ng lcza .—Pousadas v i ce j an t e s .—O vinho c os archciros cabidos
pelas e s t r adas .—A reunião dos dois p r ínc ipes .—Par te el-rei com os seus.
—I lcunc-se - lhc o g rande condcstavcl .—Caminho dc Monção.—Desce o
duque a Mc lgaço .—Avis t am-se sobre M i n h o . — A ponte do M o u r o . — O
encontro .— Luxuoso appara lo dos inglezes .—A comitiva por tugueza .—
Jorncas c bordados. — Fus tão c ferro . — Contraste honroso. — A rainha
Leonor Tellcs c as vestes de a rmas .—Arnczes de Aljubarrota e a ga lan -
teria inglcza.
I
Em Santhiago, vetusta capital da província, estabelecera provisória côrtc o duque de Lancastcr como rei dc Castella.
Na abbadia se aposentara o intitulado rei com sua esposa e filhas, ostentando a usual magnificência da côrtc brilannica
A cidade do Apostolo, monotona por indolc c hábitos pouco attinenlcs ao viver do século, tornara-se de repente impro-visado arremedo de requintado luxo.
Não cabendo todos os barões c senhores da Grã-Bretanha dentro na povoarão restricta. tomaram pousada pelos vice-
1 «Le d u c et la duchessc et leurs deux filies à inar icr , Phil ippc et Cathé-
r ine se logcrent cn 1'abbayc.» Froissar t , liv. m , cap. 33,°,
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
jantes arredores. Dc ramos dc arvores e d e folhagens formavam
graciosas tendas, encantados os inglezes com a amenidadedas campinas, a profusão das flores c a opulencia dos vinhos
Os terríveis archciros, considerados então por sua perícia os primeiros pelcjadores do mundo, entregavam-se tão desre-gradamente ao precioso licor, que a maxima parte do tempo ficavam deitados pelas estradas sem poderem erguer cabeça. Nem ainda ao dia seguinte havia contar com ellcs
Aproximava-se entretanto (fins dc outubro) a hora apra-
zada para a reunião dos dois potentados.
Do Porto sahiu D. João 1 com os senhores que a seu chamamento haviam concorrido 3. Sempre leal c devotado, fôra á Ponte da Barca junetar-se ao mona ir ha o mais firme apoio de seu throno, o grande condcstavel I). Nuno Alvares \ seguindo-o bem corregidos c cncavalgados os escudeiros e cavalleiros de sua casa 5.
Reunida a comitiva portugueza, partiram caminho dc Monção 6.
1 «Et qui nc pouvoit t rouver ma i son, il faisoit logc dc fcuillcc de bois
que il coupoit .» Froissar t , liv. m , cap . 3 3 . ° 2 «Forts vins t rouvoicnl ils assez, dont ccs archcrs buvoicnt lant que ils
sccouchoicnt lc p lus du lemps i \ r c s . . . ils 11c sc pouvoicnt a ider loul lc jour.» Froissart , loc. cit.
i Lopes, parle 11, cap . 92 .°
* Chron. anonyma do Condcstavel, cap . i.vn, edição dc 152o. 5 Lopes, ut supra. r' «I.c ro i . . . siwit commc il sut q u e lc d p c approclioil son pavs, il sc parlit
du Po r t . . . ct s 'cn \ i n l . . . à u n e villc compostc su r lc départcmcnt dc son
royaumc, laqucllc on appcllc au pays Monçon .» Froissar t , liv. 111, cap. 38.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)
Ao mesmo tempo descendo Galliza ale ao mosteiro dc Gela nova onde as princczas dc Inglaterra ficaram apo-sentadas, veio o duque de Lancaster c os seus entestar com Melgaço
«Dc Melgaço a Monção, escrevia ha quatro séculos o pintor «chorographo Duarte d Armas, são tres léguas de mui bom «caminho, c mui aproveitado. Algumas ribeiras (ha) princi-«palmente huma por onde parte lio termo de Monsão... que «se chama rio do Mouro e passa-sc por ponte 3.»
Mui cerca estavam pois os dois alliados. Km dia de Todos os Sanctos ao desabrochar da manhã
avistaram-se reciprocamente inglezes e portuguezes. Áqucm Minho costeavam uns e outros em sentido inverso
a tortuosa corrente do poético rio. A leste, vindo d apar Mel-gaço. baixava com os seus o duque dc Lancastcr. Por oeste ia a cnconlral-o o rei de Portugal. Ante a ponte do Mouro chegaram ao mesmo tempo \
1 Es te insigne mosteiro de benediclinos existia desde o século x. em que,
S. Uozendo, bispo d»' Dumc (cerca de Braga) , e neto dc I lermene^i ldo, conde
ile Tuv e Por lucale , o fundara a qua t ro léguas ao sul dc Orense nas faldas
du monte Laborei ro . E r a de ampla e grandiosa fabrica. Vepes, Chron. gener.
dcS. licnito, Centúria v, cap. i ; Flores, Espana Sagrada, tomo xvii, trat. 61,
cap. 3.°, pag. 21 <• seguin tes ; Moralcs, liv. xvi, cap. 3<>.° 2 Lopes, loco ciíato; Froissart , idem. 3 Veja-se na torre do lombo o interessante códice intitulado «Livro das
fortalezas que sam si tuadas no cxlrcmo de Por tugal c Castella, por Duar te
d 'Armas», pag. 13(». 1 «E indo assi seu caminho da par te d 'aqiiem da Ponte do Mouro, o D u q u e
pareceu da outra par le , q u e vinha por a par de Melgaço.» Lopes, lococilato.
1 2 4 D. ÍOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA
II
Ostentava o príncipe inglez o proverbial apparato da côrte, cujos cavalleiros eram então no dizer de todos a flor da cavallaria do mundo l. Rodeavam-n'o, formando o que hoje chamaríamos o seu estado maior, cincocnta barões c caval-leiros 2. sobrelevando-se entre esses seu proprio genro, mosse João de Ilolland, condestavel da hoste, e irmão como já referimos dc el-rei de Inglaterra. Seguiam-nos, assaz de vis-tosos e bem corregidos3, trezentos homens de armas, e seis-ccnlos archciros 4, montados todos cm cavallos de formosa estampa c ligeirissimos, como da raça ingleza dc que pro-vinham 5.
1 «Ingrcscs som frol da Caualar ia do m u n d o . » í .opcs, parle 11, cap. Í3.° 2 «En sa compagnie . . . plus d c c i n q u a n l e ba rons et chevaliers.» Froissart,
liv. III, cap. 38.° Deve no la r - sc q u e desde o reinado d c Eduardo I o lilulo
de barão, commum a todos os Senhores q u e t inham terras da coroa, ficou
rcstricto aos q u e eram membros do pa r l amen to . Hapin dc Ihoyras , Hist.
d'Angleterrc, tomo III, liv. 3 Lopes, par te II, cap. 92 .° 4 Froissart , liv. III, cap. 38 .° Os archci ros inglezes não pelejavam so-
mente a pé. D'elles havia companhias dc cavallo, c eram as mais terríveis. 5 Dc Inglaterra t rouxera o d u q u e embarcados os cavallos do numeroso
exercito que o acompanhava l . Havia então um genero de navios adaplado
para o transporte dc cavallos. Chamavam- lhe á franccza «huissier.» Jal, Ar-
ehcologic na cale et glossairc nauliguc; Valbonnais , Pr caves dc l'hisi. du
Dauphinc, pag. o02 . O chronista d c S . Luiz descreve assim o embarque dos
cavallos cm a nau que o t ransportou á T e r r a - s a n c t a : «El fui ouverte Ia porte
de Ia n c f p o u r fairc entrer nos Chcvaulx, ceulx q u e devions mener oullre
i «Furent mis és navires el halleniircs plus de dcux millc chcvaux, les ijuels avoieut pourvéancc.» Froissart, liv. m, cap. 32.» Veja-se no cap. #2 0 o desembarque d estes ca-vallos cm Galliza.
I). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLÈZA
Por seu lado tinha o rei de Portugal quinhentas lanças que o seguiam dc cole e mais as gentes dos prelados, c dos poucos senhores 2, (pie então havia no reino, como dis-semos. Ascendiam por todos a dois mil homens de armas \ 0 estado real compunha-se dc quarenta pàlafrens \ levados á dextra, c cobertos de tellizcs bordados com as armas e a tenção do monarcha 3.
Se bem que superior cm numero era a comitiva portu-gueza, não podia esta nem por sombras rastear o esplan-dccente apparato, que ostentavam os seguidores do duque dc Lancastcr.
A riqueza «los trajos, a raça apuradissima dos cavallos, o brilhantismo de armas c armaduras, cm que o sol refleclia c, deslumbravam vistas.
mcr. E t quand tons furen t enlrcz, la porte fu t recousc ct cslonpcc, ainsi
commc 1'on vouldroit fa i rc un tonei de vin.» Sirc dc Joinville, llist. de
S.1 Loy*. edit . Pçt i tot , tomo 11, pag. 2 0 6 . 1 Lopes, par te n , cap . 92.° 2 O titulo dc senhor q u e tanto malbara tamos hoje dando-o ao primeiro
indivíduo que se encontra , era então t ractamcnto exclusivo dos que pos -
suiam senhorio de terras herdadas de avós, ou outorgadas pela mercê de
el-rei. Qualquer ou t ro indivíduo, ainda q u e superior , er;i simplesmente
t ractadopor seu nome, ou appel l ido. Y c j n m - s e a s C / i m i t W t f d e Femao Lopes
ou Azurara. O mesmo acontecia em França com relação ao titulo de Srigneur. 3 «Com as gentes dos fidalgos podiam ser por todos dois mil .» Lopes,
ut supra. 1 Dava-se então este nome aos cavallos de apparato , ou que eram como
taes levados á dextra . Derivava-se do francez palefroi. derivado também de
par le froi (pelo freio). Lit lró, Úictionnaire} Palefroi, tomo 3.°; Bcsche-
relle, idem, tomo u .
* Lopes, ut supra. 6 Froissart , liv. i u , cap . 38.°
1). JOÁO I K A ALLIANÇA INGLKZA
Sobre as colas o braçaes do aço fulgente 1 trajavam òs
inglezes ao uso dc sua côrte, e fluctuando-llies á mercê do
vento, jorneas de vclludo de Florcnça, ou de pannos dc Flan-
dres, chapadas de prata, farpadas de sedas ou bordadas a
ouro. Jorneas, diz cm uma de suas obras o erudito escriptor
d aquelles tempos, el-rei 1). Duarte, eram roupas soltas, assim
como mantões
Com o desmesurado luxo britannico rastejava em perfeito
contraste a restricta parcimônia da comitiva portugueza.
Em vez de jorneas c bordados, vestiam os companheiros do antigo mestre d'Aviz sobre as colas de ferro, pintadas algumas dVlIas conforme o péssimo gosto do tempo3 , loudeis de fustão branco 4, tendo sobre as costas e o peito chapada em largo a cruz vermelha de S. Jorge 5. Muitos dos que eram da mercê dos fidahjos enxergavam como simples, mas hon-rada vestidura, as antigas longas de couro atanado, ou pratas enferrujadas pelo lidar da guerra f \
1 «Os do duque traziam cotas e braçaes com jo rneas bordadas, e outros
farpadas, assaz dc vistosos c bem corregidos .» Lopes, parte n , cap. 92." 2 El -Rei 1). Duarte , Arte de bem cavalgar toda sela, pa r te " Í , cap. xviif. 3 Era então mui cominum p in ta rem o fer ro das cotas . Assim se encontram
no valiosissiuio códice da torre do tombo «Horas de el-rei D. Duarte»
(estampas do tempo). Veja-se acerca d 'este uso Lacroiv, Armurerie, pag. 90. 1 «Ent re os apostamentos q u e assi Icuaua deu a todos os que andauam
com elle dc c o t e . . . loudeis dc fus tam branco com cruzes dc san Jorge.»
Lopes, parte 11, cap. 92 .° O loudcl dilTcrcnçava-se do brial em não ter
mangas. Horas de el-rci D. Duarte, es tampa de S. Jo rge . 5 «Cada h u m . . . q u e da nossa par le for t ragua btium signal darmas de
San Jorge largo, hum deante e ou t ro det raz .» Orden. Affonsina, liv. i, tit . o l . ° , § o í . °
1 Chamavam então pratas a certa a r m a d u r a antiga dc ferro para cobrir
DEGOLAÇÃO DOS INNOCENTES
Miniatura do século xv - Horas dcl rci D. Duarte, A r c h i v o nac . da Torre do Tonbo.
1). JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
fê este gênero <le armaduras que a nossa estampa repre-senta, exlrahida do preciosíssimo livro dc horas de el-rei D. Duarte
Já sob a regcncia dc Leonor Telles notava a sagaz rainha que os porluguezcs em lemj)o dc paz andassem vestidos de
«armas, ao passo (pie cm tal corijuncção os inglezes só de finíssimas roupas se adornavam \
Naquelle momento ainda o proprio 1). João I. conforme refere o seu chronista, lendo apenas sobre os hombros um loudel quasi egual ao dos seus 3 estava coberto de todas as armas, excepto o elmo a que então á franceza chamavam «bacinete
Se, além d'este, o leitor se compraz em num relancear de olhos examinar quaes eram algumas outras armaduras então usadas, apressamo-nos cinsubmetter- lheas seguintes rapidas considerações:
Depois da primeira entrada dos inglezes em Portugal no tempo de el-rei I). Fernando o bacinete veio supprir como armadura defensiva da cabeça a antiga capellina, que era
o Ironco do corpo. E ra como cola mui un ida , ale á c inc tura , c d'ahi para
baixo c i rcumdavam-n 'a , como defesa á feição romana , lâminas de aço mui
unidas c eslreilas, d 'onde lhes veio o nome. Com esla a rmadura escusava-se
o loudel, a que a lei obrigava os q u e só usassem cola : «lerom cota e loudel,
ou praias.» Orden. A/Jons., liv. i, t i l . 71 .° , cap . i . 1 Arcbivo nacional da torre do tombo, casa da corôa. 2 Lopes, pa r te i , cap . 10.° 3 A única dilTercnça era na tela, sendo de seda o loudel d 'o l - rc i : «Elle
leuaua out ro semelhante dc pano dc s i rgo b ranco .» Lopes, pa r te u . cap . 1)2.° 4 «EIRcy hia a rmado dc todas as arinas, q u e lhe nom mingoava senom
o bacinete.» Lopes, loc. cit.
D. JOÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA
uma estreita gorra de ferro unida á tesla em forma achatada posta sobre uma coifa de malha dc ferro Desta haviam também sido ate alli as armaduras.
D então em deanlc passaram as que protegiam tronco e braços a ser fabricadas de grossas peças dc ferro batido, devendo jiolar-sc que já antes iam sendo estas mesmas peças' gradualmente empregadas como defesa ao resto do corpo2.
Realisava-se assim a transição para as armaduras com-pletas de ferro que cm seguida vieram 3. Estas tornaram-se muito mais pesadas, mas guardavam muito melhor a vida do guerreiro \
Foi lambem D. Fernando que cm Portugal encetou esta innovaçãotomando-a dos francezes assoldadados nas terríveis companhias, a que já nos referimos, denominadas compa-nhias brancas, as quaes ao cerco de Lisboa tinham vindo com Henrique II de Castella 5. A reforma foi radical.
Em vez do gambais, sobre cota estofada e mui longa6,
1 Fernão Lopes, Chron. de D. Fernando, cap. 87.°; Lacroix, Les arts
au Moycn-áge, verb. Armureric. 2 «Ccs t à la fin du treiziòmc siòclc q u e conimcncércnt à paraitre quel-
ques unes des pièccs dc r a r m u r e cn f c r . . . Les prcmiòrcs pièccs furent
appliquécs sur les j ambes , ensui le su r les cuisses, sur les bras, et enfin on
rcmplaça le haubcr t par Ia cuirasse .» F . Sau lcy , Le Moyen-uge el la Hen-
naissanee. verb. Armurerie, tomo iv. : Lacroix, ut supra, pag. 87 .
4 «Ccs épaisses c u i r a s s e s . . . ces for teresses mouvantes d'acier font sur-
tout bonncur à Ia prudcnce dc ceux qui s 'en a l íubla ient .» Michctcl, Hitt.
de Franee, tomo m , liv. vi, cap . i . 3 Lopes, Chron. de 1). João I. pa r l e i , cap. 50 .°
«Le gambais est 1'ancicn nom français dc la collc rembourree , on plulôt
de la bourre dont cettc colte clait r embour ree .» Quicherat , Uistoire du
costume cn France, cap. v i .
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 147
usada já em Portugal no tempo de D. Sanclio I, como demonstra a presente gravura, copia de uma moeda em ouro do mesmo rei, contendo a sua eíligie authenlica,
Morab i t ino dc ou ro (D. Sancho I)
Bibl iothcca Nacional de Lisboa, çjabin. dc mcdal.
veio o jacque estreito e curto A loriga formada a principio de grossas cscamas de couro, ou de estreitos anneis dc ferro, c posteriormente entretccida dc malha, foi então substituída pela cota de ferro massiço unida ao corpo 2. Em troco da capellina estabeleceu-se a barbuda, genero de capacete esto-fado para não molestar a cabeça, c posto dircctamenle sobre esta com forte viscira, a que chamavam cara. Tinha em logar de coifa ajustado 11111 amplo cabeção dc malha de ferro 3.
1 «Espècc dc casaquc contrcpointóe qu'011 mct loi t pa r dessus la cuirassc.»
Froissart , liv. 1, cap . 0 4 . 0 O jacque chamado depois jaqucttc, d 'onde vem
a actual j aque ta usada pelo nosso povo, e ra pr imi t ivamente uni forme dos
archciros cm Ingla te r ra . l ) 'a l l i passou a F r a n ç a como veste ligeira pa ra
trazer sobre a a r m a d u r a . Com o tempo veio a ser fabr icado dc sedas mui
ricas, to rnando-se ás vezes ves t idura prec iosa . Lacroix , Les arts au Moyen-
dgc, pag. 8G. Ve ja - se adean te (pag. 135 , nota 2.4) o que neste genero possuia
o duque dc Lancas ter . 2 As a r m a d u r a s compostas dc anneis de ferro foram importadas em França
c Inglaterra pelos n o r m a n d o s nos séculos ix c xi . As a rmaduras de malha
de ferro mui to mais perfe i tas c l igeiras q u e as ou t ras , e invenção a rabe ,
vieram do Or ien te t razidas pelos c ruzados . Sau lcy , loco citato. 3 Lopes, Chron. dc D. Fernando, cap . LXXXVII.
9
1 3 0 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Em lembrança (Testa armadura, c com a sua própria
fôrma creou I). Fernando uma nova moeda (gravura juncta),
a que deu aquellc nome l .
Logo depois, com a vinda dos inglezes a Lisboa, appare-ccram, importados porellcs de França, os bacinetcs cm forma ponteaguda, c tendo também para garantir o pescoço c braços um cabeção de malha muito mais curto que o outro, deno-minado carnali.
Barbuda nibl iothecn Nacional , loco citato.
Quicherut , llist. da costume, cap. x i .
1 Lopes, loco citato; Sousa , llist. geneal. da casa real. tomo iv, pag. 450,
n.° 8 ; S r . Aragão, Descripçõo das moedas portuguesas, tomo i, pag. 17", est . iv c v.
2 «La cervilicre dc platc ou sphér iquc qu 'e l lc étai t , devint pointuc à sa
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 149
Eslcs eram os bacinetcs de carnal tanta vez citados por Fcrnão Lopes, e usados então em toda Europa.
Lisos c desadereçados, dilTeriam muito do antigo elmo que ostentava ornatos e divisas, e que já então apparecia unicamente em justas c torneios.
Ainda em sua vida o usara o heroico príncipe negro cnci-mando-o com o famoso leopardo britannico.
Annos depois, e justamente 110 tempo a que nos estamos referindo, a nação ingleza primava já pela elcgancia que im-primia no trajar de seus cortcsãos, e que também era para notar nas armaduras de seus guerreiros
Em taes circumstancias, e mediante o (pie sobre o apu-rado luxo dos cavalleiros do duque de Lancaster deixamos referido, não é para causar pasmo se os sectários do antigo mestre d'Aviz, os acerrimos lidadores de Aljubarrota, de Valvcrdc e de Trancoso, embora 110 coração lhes pulsassem brios tantas vezes provados, mas aííeitos havia mais de tres annos ao constante guerrear dos campos de batalha, não podiam cm assumptos dc galanteria, e bom gosto servir de modelo aos elegantes caudilhos da côrte ingleza.
partic super ieure , et p r i t lc nom dc bassinet... P o u r proteger le cou on
attachait un tissu dc mail lcs dc fer qu i re tombai t sur les épaulcs , et qu 'on
appcllait camail.» Lacroix , Les arts, ve rb . Ârmurerie.
«E nós chamamos agora ás b a r b u d a s bacinctes dc carnal.» Lopes, par te 11,
cap. 50.° 1 Horacc de Viel Castcl, Moycn-áge et Rentiaissancc, tomo III, verb . Modes
et costumes.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Prosigamos porém com a narrativa, que a dcscripção das antigas armaduras momentaneamente interrompera. Vol-vamos aos piai nos da ponte do Mouro, onde frente a frente deixaramos os cavalleiros de Inglaterra, e os ardidos segui-dores do novo rei de Portugal.
CAPITULO XVI
SCMMARIO. — O rei dc Por tugal e o d u q u e dc L a n c a s t c r . — A d e a n t a - s e o
p r ime i ro .—Abraçam-se .—As tendas .—Despem-se a r m a s . — O banquete .
—As campinas do M i n h o . — A mesa r ea l .—As out ras .—Inglezes servidos
pelos portugueses. — A tenda dc e l - re i de C a s t e l l a . - O seu o ra to r io .—
Pcspojos da g rande v i c to r i a .—Admiração dos inglezes.—Conferências.
—Pacto firmado.—Portugal nada recebeu c dava tudo .—Segundo festim
á p o r t u g u e z a . — U m banque te inglez. — Ecl ipse. — Magnificência ca lcu-
l ista.—Os banquetes na edade-media .
I
Assim que el-rei enxergou o duque de Lancastcr, que pro-ximo á ponte do Mouro se adcanlava para vir a encontral-o, passou galantemente da parte d'além 4, apressando-se a ser dentre os dois o primeiro que se aproximasse do outro. Junctos que foram, pararam de súbito as duas turmas guer-reiras, examinando-se mutuamente inglezes e portuguezes com a curiosidade que era natural aos que em tão diversas terras haviam nascido, e por primeira vez sc encontravam.
Os dois príncipes abraçaram-se, c (accrescenta a chro-nica): «fazendo suas misuras com grande prazer e lcdicc,
1 «EIKey quando vio q u e o D u q u e assi vinha passou da par te dalem &
accrtarom-se ambos cm huma lade i ra .» Lopes, parte H, cap. 92.°
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
«estiueram um pouco falando, & deshi passarom sc ácpiem
«do rio, hu EIRcy tinha suas tendas postas & ali sc dcsar-
«marom
Era uso constante entre os guerreiros da edade-media assim que chegavam a casa, e sobretudo quando se assen-tavam a comer, despir as pesadas armaduras, e por com-modo envergavam sobre o gibão 2 uma longa e larga vesti-dura, a que chamavam roupa 3 ou mantão \ e que os cobria todos. O estofo variava segundo os haveres de cada um. Referem escriptores contemporâneos, que vestes d aquelle
1 Lopes, par te 11, cap . 92.® 1 Do franccz gipon. Conformo cos tume já então c a inda hoje usado cm
objcctos dc moda, importámos este dc F r a n ç a , c bem assim o nome. Quando
cm meio do século xiv as vest iduras longas usadas até alii foram depois
da horrível peste negra q u e devastou a E u r o p a (1348) substituídas por vestes
cur tas , aliás dc mui extravagantes fô rmas , apparcccu o gibão. Traziam-n'o
immcdiato á camisa. E ra aber to pelos lados c estofado. Sobre cllc usavam
o tabardo c o j a c k e , ou cm guerra as a r m a d u r a s , l lcfcr indo-sc ao condes-
tavcl escreve Fcrnão Lopes : «Aquelle dia sendo já o conde aposentado sc
rccrccco no arra ia l g rande vol ta . . . cmlanto q u e o conde sahio da tenda com
hum mantom coberto sem ou t ra c o u s a . . . & quando chegou hu a volta era,
perdeu o mantom, c ficou cm gibão.» Chron. dc D.João I, parte II, cap. 168.°;
Quichcrat , Ilist. du costume, cap . x ; fíaudrillart, Ilist. du luxe, tomo m,
liv. II, cap. 9 .° 3 Tomado o nome c a veste do franccz robe, vestidura longa. Littre,
Diclion., verb. liobc. E l - r e i D. Dua r t e , Leal conselheiro, pag. *2S5. Da roupa
veio mais ao deante a dcduz i r - sc roupão, a inda hoje usado. 4 O mantão também importado dc França c assim o nome (mantcl), era
como um grande capote dos nossos dias . Dif lercncava-sc do ferragoulo c
balandrau cm terem estes capcllo c mangas , sendo as do segundo mui largas
á moirisea. Servia para nVIlc se envolverem os guer re i ros , quando despiam
as armas ficando em gibão. Ordcn. Affonsina, liv. II, t i t . 103.°, n.° 1.°;
Viel Castcl, Moyen-dge, verb . Modes et costumes. Veja-se Lopes, loco citato;
e Lcbeau, Chron. dc llieardo II. edi t . Buchon, tomo xxiv, pag. 9 .
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 153
gênero tinham riquíssimas tanto D. João I como o duque
dc L a n c a s t c r \
Sumptuoso banquete ofíereceu ao reccm-chegado o sobe-rano de Portugal sob as suas próprias tendas, que á beira do Minho em meio da campina se dilatavam, diz Froissart, graciosamente fabricadas de festões e dc folhagens3 .
A fundo de uma mui real sala 4, armada na mais espa-çosa das tendas, c colgada de tapeçarias que representavam algumas das mais heróicas pelejas, cm que sc haviam extre-mado os portuguezes 5, avultava sobre degraus a grande
1 No Leal conselheiro faz el-rei D. Duar t e a dcscripção dc uma roupa
que possuía el-rei seu pae , na qual mandara bo rda r um camello carregado
com quatro saccas, allusivo ás q u a t r o v i r tudes , Leal conselheiro, pag. 2 8 5 .
Estes bordados nas roupas representando grandes figuras dc leões c outros
animaes, dc homens c mulheres , de r ios com peixes nadando , dc rochedos
c florestas, tudo cm rccamo, e ram então mui f reqüentes conforme as e x t r a -
vagantes modas do tempo. Na côrte dc França o rei Carlos VI usava uma
roupa marchetada in te i ramente dc andor inhas em orivesaria tendo no bico
bandejinhas de ouro soltas cm n u m e r o superior a quat rocentas . Vallet de
Viriville, Isàbeau de fíavière; IJaudri l lar t , llist. du luxe, tomo ni , liv. li ,
cap. xr, n.° 3.°, c liv. m , cap . iv . 2 «Dux Lamas t r i ac . . . quoddam vest imentum pracciosissimum ipsius,
qua\c jacke vocamus.» Wal s ingham, llist. brevis, pag. 2 4 9 . 3 «Avoit on sur les champs fait feuillees ct logis grands et p lanturcux
dc la partie du roi de Por tuga l , ct là alia dincr le duc aveeques le roi .»
Froissart, liv. m , cap. 38 . ° 4 Lopes, parte n , cap . 94 . ° 5 «El adorno dc Ias salas reales por tuguezas sc texia dc bacanas y tr iunfos
de sus Reyes y vasalos.» Faria y Sousa, Europa portugueza, tomo II,
parte iii, cap. l . ° Na casa dos d u q u e s do Infantado existia, c por ventura
existirá, uma tapeçaria que e l - re i 1>. AlTonso V , q u a n d o per tendia a corôa dc
Castella, doou áquella casa.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
mesa, onde cl-rci e o duque sc assentaram a par • sem curmlo de parte direita nem esquerda, cá indacntom nom era em usol. • Seguia-se-lhes na mesa real o arcebispo de Braga, o bispo do Porto c outro 2, únicos portuguezes que pela dignidade do cargo tomaram logar no banquete.
As outras mesas que juneto ás paredes se dilatavam ao longo des tas , conforme uso medieval, eram exclusivamente occupadas pelos barões c cavalleiros dc Inglaterra 3, a quem serviam mediante a etiqueta de então os fidalgos e senhores de Por tuga l 4 .
Todo o pavimento segundo estylo do século era juncado de verduras aromaticas e de flores.
Durou a esplendida refeição 5 até entrada a noite, retiran-do-se o duque a terra de Galliza, onde acampara frente a Melgaço.
II
Na manhã seguinte cerca de Monção a fundo do rio foi armada a grande tenda (pie el-rei de Castella trazia na ba-talha dc Aljubarrota 6, e que ahi os vencedores lhe tomaram
1 Lopes, parte 11, cap . 92 . ° 2 Froissar t , liv. 111, cap . 92 . ° 3 E ra só june to á parede q u e sc assentavam então os convivas. O outro
lado da mesa ficava livre para o serviço. Vicl Castcl, Vie privee, pag. 368. 4 Lopes, loco cit ato. h «Lcqucl diner fui tres bcl et bien o rdonnc dc toutes choses.» Froissart,
liv. I I I , cap . 38." 6 «Em outro dia a rmarom contra fundo do rio huma grande tenda que
fora DclKey de Castella, tomada na batalha real .» Lopes, parte n , cap. 92.°
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 155
com outros notabilissimos objectos, entre os quaes 1 avultava o rico oratorio do particular uso do rei, c inaprcciavcl por seu valor artístico c archeologico. Offertara-o L). João I á Senhora da Oliveira de Guimarães 2, quando áquella villa fôra em romagem para cumprir voto que fizera antes da ba-talha de Aljubarrota. Este precioso triptyco admirou-o ha pouco Lisboa inteira na exposição de arte ornamental, que tão justamente attrahiu a curiosidade publica 3.
Maravilha causou aos inglezes a famosa tenda castelhana, como tropheu recente dc nossas glorias. Nesse intuito haveria sido alli arteiramente collocada.
Era amplíssima e de rasgada forma Dentro haviam el-rei
c o duque suas camaras c salas ricamente alcatifadas c col-
1 «Muitas jó ias dc pra ta c d o u r o . . . acharam na lenda DelRey de Cas-
tella.» Lopes, pa r te n , cap . 46 .° LTma preciosidade salvou-se. E ra o propr io
elmo (bacinctc) do re i , cravcjado dc pedras preciosas sobre um circulo dc
oiro. O escudeiro, a cuja guarda estava, ponde cvadir -sc levando-o. Frois-
sart , liv. m , cap . 21 .° 2 «EIRcy chegou a Guimarães , hu havia p romct t ido . . . & feita sua oraçam
c offcrta... deu mui tas esmolas .» Lopes, pa r te n , cap. 62.° 3 Toda a capclla do rei dc Castella, onde havia preciosos objectos, cahira
cm poder dos por tuguzes . D . João I doou diversas peças á collegiada de
Guimarães c ou t ras ao mosteiro de Alcobaça. E n t r e estas ul t imas avulta
o primeiro volume da biblia (até aos prophctas) , o qual sc conserva na b ib l io-
thcca nacional dc Lisboa, vendo-se a inda nas chapas de bronze, q u e o a b r o -
xam, aber tas cm mui tas par tes as a rmas do rei vencido (leões c castellos).
O segundo volume contendo o resto da bibl ia levara-o comsigo o condcs -
tavcl. Sanctos, Alcobaça ülustrada, t i t . ix, pag. 2 1 8 ; Lopes, pa r te 11,
cap. 46 .° 4 «On y avoit fait 1c plus bcau logis ct lc p lus grand dc j amais .» Fro i s -
sart, liv. i n , cap. 38 .°
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
gadas de cortinas c tapeçarias Ahi se reuniam desde manhã
os príncipes com os de seu conselho 2 para accordarcm as
condições da liga, cm epie iam confederar-se. Sele dias du-
raram as conferências 3.
Sellado a final o grande acto diplomático, em (pie—de passagem seja dicto—Portugal nada recebeu dc faclo, e dava tudo, como adeante pôde ver-se, solcmnisou el-rei o mencio-nado pacto com um novo fcslim, mais esplendido (pie o pri-meiro, conforme rezam chronicas.
 tenda que fôra do rei de Castella addicionaram outras para a collocação das mesas \ O grande condestavel exerceu o cargo de vedor5 , sccundando-o os principaes senhores que serviam dc toalha c c o p a 6 .
No dia seguinte retribuiu o duque de Lancaster a hospe-dagem portugueza, convidando el-rei c todos os que o acom-panhavam 7.
O banquete do príncipe inglez deixou eclipsados, como é natural, os que lhe oflertara o antigo mestre d'Aviz.
Em matérias dc elegancia c luxo não podiam os portu-
! «Et avoit lc duc ct lc roi leurs chambres tendues dc draps , dc courtincs
ct dc tapis.» Froissar t , loc. cit. 2 «Alli faziam Ell lcy c o d u q u e seus conselhos cada dia .» Lopes, parte n ,
cap. 92.° 3 Lopes, parte n , cap . 9 i . ° 4 Lopes, loc. cit. 5 Lopes, loc. cit. 6 Sc r \ i r dc toalha era estar j une to das mesas assistindo os convivas.
Servir dc copa era formar par te do cor te jo q u e á sala trazia as iguarias com
grande apparato . I lavia por tanto dois g rupos dist inetos dc servidores. 7 Froissart , liv. m , cap. 38.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 3 9
guezcs, como provado fica, manter competências com a côrte inglcza, a mais esplendida então da Europa christã.
Demais, o duque de Lancastcr, magnanimo dc condição, c possuidor dc desconimunacs riquezas, buscava naquella hora a l l r a h i r o animo phantasioso dos castelhanos ostentando a maxima sumptuosidade.
0 banquete solemnissimo, com que festejou o seu conviva e demais portuguezes, marcou cpoclia entre os historiadores
" do tempo
Busquemos, estudando estes, descrever cm summula a imponente festa; c sc em sua bcncvolcncia o leitor quizer seguir-nos atravez das magnificentes ccremonias c deslum-brantes episodios, com que se rcalisavam na edade-media aquellas solcmnidades, poderá formar aproximada idêa do que era ha cinco séculos um grande banquete.
1 Violei le Duc, Vic privcc dc la noblesse féodale: Cours, fetes, banqueis,
pag. 3G6.
I
CAPITULO XVII
S U M M I R I O . — O viver das gerações ext inctas . — Importancia d 'cstc estudo.
—Sua applicaeão em F r a n ç a . — Atrazo em Por tuga l .—Escr ip lo rcs antigos
c modernos .—A tcnda-pa lac io .—Giro c sedas .—A grande sa la .—A alta
mesa.—Copeiras e c redenc ias .— Prec ios idades .—Ar cheiros em guarda .
—Minis t re is .—As flores atravez dos séculos .—Adornos progressivos.—
Monumentos dc ar te nos banque tes .—Isabe l dc Por tugal c a côrtc de B o r -
gonha.— As outras mesas .—Commcnsacs po r tuguezes .—Nomes c ca te -
g o r i a s . - S e r v e m - n o s os senhores dc Ingla ter ra . — Profusão c sumptuo-
sidade.
I
Não se haja por demais a descripção minuciosa dc que vamos occupar-nos. Tudo que possa hoje revelar o crer e viver das gerações extinctas, os seus usos, hábitos c costumes é de interesse incontestável perante a historia da sociedade em suas evoluções progressivas. «O característico do nosso tempo, escreveu ha pouco um moderno auetor francez, é o desejo insoffrido dc conhecer os passados séculos, ainda nas mais especiaes circumstancias da vida publica c particular de nossos maiores »
1 Le caractcrisl iquc dc notre epoque c'cst u n désir de plus cn plus grand
(te connaitre les siòcles passes j u s q u e dans les moindres détails dc la vic
publique et privcc dc nos ancêt rcs . Nouvelle rcvue, tome xi\, pag. 931 .
1 4 2 I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
E sc isto se diz cm França em meio de milhares de escriptos consagrados áquelles assumptos, muito mais neces-sários devem considerar-se taes estudos em Portugal, onde mui pouco se sabe, e ainda menos se escreve acerca da vida intima dos que nos precederam atravez das cdades. Demais, este banquete do duque dc Lancastcr marcou cpocha, segundo referimos, entre os escriptorcs do tempo, e ainda entre os modernos 4.
Á tenda em que sc rcalisou a esplendente solemnidade chama Froissart um palacio. Ouro c sedas fulgiam de toda parte. Salas espaçosas succcdiam-se armadas com os riquís-simos panos, as armas e os bordados da casa dcLancaster*: «Dirias, prosegue o chronista, que o duque estava em Londres, ou em algum dos seus sumptuosos castellos de Inglaterra3.»
No topo da mais vasta sala junclo á colgadura riquíssima que formava a parede, c ante um banco 4, sobre o qual atlrahia vistas uma alcatifa de Flandres, erguia-se ao cimo de muitos degraus atapelados a alta mesa, ou mesa travessa, como em Portugal diziam 5. Sombreava-a em amplo cortinado um
1 Veja-se entre outros Violei dc T)uc, Vicprivcc et publique dc la féodalilê. 2 «Et c to ient . . . chambres , ct sallcs toutes parées de 1'armoiric et des
draps de haute licc et dc b roder ic d u duc .» Froissar t , liv. m , cap. 3S.°,
continuation. 3 Froissar t , loco citato. 4 D'ahi se originou a palavra «banque te .» Ve ja - se nota ao capitulo se-
guinte, pag. 151 e seg. à Ainda sc guardava esta fôrma nos refei torios dos frades, sendo a mesa
travessa occupada pelo principal d 'en t re cllcs, c pelos convivas mais gra-duados.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 161
sobrecco de brocado de ouro com as armas de Inglaterra, França c Castella esquarteladas a seda dc côres.
Aos lados sobre copciras gigantcas, ergucndo-se desde o solo em degraus cobertos de fina tela, ostentava-se entre vasos c preciosos crystaes riquíssima baixella de prata e ouro, sendo muitas das peças creste metal ornadas de pedras pre-ciosas ao uso do tempo f .
Diversas credencias continham os mais delicados vinhos, fruetas e exquisitas especiarias \
Archeiros de athlctica estatura, pertencentes á guarda especial do duque, velavam aquellas preciosidades. Armados de frechas, empunhavam o terrível arco dc seis pés de com-prido 3.
A fundo da sala avuliavam dois altos estrados. De um echoavam estrondosos os sons guerreiros de trombetas e alabalcs. Do outro ministreis e cantores alternavam variadas musicas.
Todo o pavimento formava, segundo o eslylo já mencio-nado, um gracioso tapete de verdura natural juncada dc plantas odoriferas, e das mais bcllas flores 4.
1 Lacroix, Mocurs et usages, verbo Ameublcment; Mathieu dc Coucy,
Chron., cap. 88 . ° , pag. 98 . 2 Pela dcscripcão q u e fazemos vê-se a diíTcrcnça ent re copcira c c r c -
dcncia. Esta é de uso an t iqu iss imo, c a inda hoje serve com o mesmo nome
nas egrejas cerca do a l t a r - m ó r . A copcira c o aparador moderno. 3 Lingard, Ilistonj of England, tomo i.
* Este aprazível uso ainda o auetor foi em sua juven tude encontrar na
ilha de S. Miguel , d 'onde t rouxe, c conserva, as mais gra tas recordações.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 162
II
As flores constituíam desde os primeiros séculos adorno phantasioso das mesas. Encantando os olhos com o deslum-bramento das côres, enebriando os sentidos com a suavidade dos aromas, eram ellas parte integrante dos banquetes na-quelles tempos de sensualidade em tudo.
A moda foi-se progressivamente desenvolvendo. Nos sé-culos xn c xni, além de cobrirem a toalha com folhas dc rosa, também de rosas se coroavam os convidados, e coroavam taças, gomis e copas No século seguinte ainda mais bri-lhante uso deram ás flores, formando com ellas sobre as mesas apostamentos ao natural, como porlicos, templos c castcllos2. Com as cruzadas veio a moda de coberturas sobre as mesas. Deixando estas dc ser fabricadas de metaes preciosos 3, pas-saram a ser cobertas de tapeçarias c dc tecidos de ouro 4, a que cm Portugal chamavam á franccza bancáes.
No século xv mais amplitude foi dada ainda áqucllcs ade-reços das mesas, executando-sccom fôrmas de assucar, fruetas cobertas, e até gesso colorido, brasões de armas, homens, animaes e outras figuras, tudo a alto relevo e a côres5 .
1 Scré, Nourriturcet Cuisine. Moycn-âgcet Rcnnais., t o m o i , pag. Í8 vers. 2 Scré, Moxjen-àge ct Rennaissance, loco citato. 3 Ainda quando Pedro o cruel sc evadiu de Castella, avullava entre as
riquezas que levava uma mesa dc ouro cravcjada de pedras preciosas, á qual
sc at t r ibuiam sobrenaturaes maravi lhas . Estoutcvi l le , Anciens Mim. de
Duguesclin, cap. x v m , pag . 3 6 3 , edi t . Pc t i to t , tomo ív . 4 Lacroix, Les arts au Moyen-àge, verb . Amcuhlement, pag. 13 c l i .
* Scré, loco citato.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 163
Mciado o século, converteram-se as mesas em perfeitos monumentos de arte com as mais deslumbrantes invenções em fôrmas descommunaes e phantasticas. Ora similavam vasto templo, onde pessoas vivas representavam mystcrios, o u cantavam musicas ao som dc orgão c dc repiques de sinos. Ora em um lago espaçoso de agua natural bordado de cas-tellos e jardins vogava a todo panno uma nau modelada ao vivo. Ora uma floresta erguia suas arvores silvestres em meio da espessura povoada dc animacs ferozes movendo-se como se vivos fossem. E assim por deante
Em tão esplendentes acccssorios dispendiam-se fabulosas
som mas.
Antes dc começado o banquete era primordial ccrcmonia passarem os convivas ante as diversas mesas (que segundo dissemos corriam ao longo das paredes), a fim de examinarem as esplendencias dc cada uma 2. O banquete dado em Lille (1453) pelo duque de Borgonha Filippe, o bom, e sua ter-ceira esposa Isabeau 3 de Portugal tornou-se lypo cm seu gênero \ Sabido é que a mais brilhante côrtc da Europa era
1 Olivicr de la .Marche, Mémoires, tomo 11, cap . 2 9 . ° ; Mathieu de Coucy,
Chron., cap. 06.0
Veja-se Baudr i l la r t , llist. du luxe prive ct public, t o m o m , liv. v, cap. 1,
Les cnlremcts-spcctacles, pag. 4 7 7 . 2 Olivicr dc la Marche, loc. cit.; Mathieu dc Coucy, Chron., cap. 56.° ,
éd. Buchon, tomo 36.° , pag. 100 . 3 Assim lhe chamavam ao uso do tempo em Borgonha e F rança . Vide
Les honneurs de la cour, p a r Alconor dc Poi t ie rs . 4 Lettrc dc mai t re Jehan dc Molcsmc secretaire du duc de Bourgognc
Philippc le bon. clatif à un entremets , ou fètc dc tablc , donné par le duc
A Lille. Doe. inedits sur l'hist. dc France, tomo 4.°, pag. 4 5 7 ; Mathieu dc
Coucy, Chron.; Michelct , llist. dc France, tomo v; Baran te , llist des dues
10
130 D . JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
então a (lc Borgonha, onde como rainha fulgia a gentil filha
de D. João I.
Mal o poderiam cuidar seu avô c seu pae, quando ses-senta c sete annos antes sc achavam reunidos no banquete sumpluosissimo também, cuja descripção histórica vamos fielmente reproduzindo.
I I I
O centro da mesa real, ou alta mesa, collocada de travez no topo da sala, segundo o uso, foi como logar de primasia mediante a etiqueta ingleza offerecido pelo duque de Lan-caster ao rei dc Portugal l.
Um pouco mais a fundo sentava-se o proprio duque lendo após si por peregrina dislineção, além dos tres b i s p o s o s dois condcstaveis: mosse João dc Ilolland, irmão de el-rei de Inglaterra, e D. Nuno Alvares Pereira 3.
de llourgogne, Lacroix c mui tos ou t ro s t r a c t a r a m d 'cs ta sumpluosissima festa.
O que porém mais amplamente a descreveu foi Olivicr dc la Marche em suas
Memórias. 1 «Lc roi dc Por tuga l au mil icu dc la tab lc ct lc d u c dc Lancaster un
petit au dessous dc lui .» Fro i ssa r t , l iv. III, c a p . 38 . ° , contin. 2 Neste tempo c pr inc ipa lmente em Ingla terra e r a m já os bispos tractados
com muito menor consideração do q u e no século an te r ior duran te a grande
preponderância do alto c lcro . A inda p o r é m n ã o havia muitos annos o rei
Carlos ^ dc França em um b a n q u e t e of lcrccido no Louvrc ao imperador
Carlos IV dera ao arcebispo dc Hhcims o p r i m e i r o logar acima d'elle rei, c
do proprio imperador . « P r e m i è r e m c n t sist l ' a rchcvesque d e Rcims, ct après
sist 1'cmpcrcur, puis sist lc ro i .» Chr i s t inc dc P i s a n , Livre... du sage roy
Charles, par te III, cap. x u . 3 Froissart , loco citato.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 165
Em pé ante el-rei servia-o de vinho o cavallciro dc sua côrte Lopo Fernandes Pacheco, filho do terriüco Diogo Lopes. Ao duque servia outrosim Thierry dc Soumairc, cavallciro dc Hainaul l.
Ao correr da sala juneto ás paredes latcracs dilatavam-se, conforme invariavel uso de então, as outras mesas. O ccnlro da segunda foi em honra das sancías ordens da cavallaria reservado na falta dos respectivos mestres 2 para o com-mendador-mór servindo de mestre d Aviz, D. frei Fcrnão Rodrigues de Sequeira, futuro regente dc Portugal3 . Scguia-sc-lhe o octogenário Diogo Lopes Pacheco, um dos mais repellentes caracteres d'aquelles tempos \
Após o desprezível, mas não desprezado conselheiro estava
1 O mesmo aue to r . 2 O mestre de Santhiago D . Fernando Affonso fallecera no Por to poucos
dias depois de chegar dc Ingla ter ra . O mestre de Christus I) . Lopo Dias dc
Sousa achava-se doente em Thomar , c o mestre d'Aviz era ainda então o
proprio D. João 1. Lopes, pa r te n , cap . 90.° c 100.° 3 Era freire na ordem d'Aviz, c como tal mui acceito ao mestre . Apenas
este foi eleito rei contemplou largamente os que na adversidade o haviam
seguido. Como tal foi Fcrnão Rodr igues nomeado commcndador -mór , que
era alto cargo da Ordem. O Mestrado reservou-o por então cl-rei para si.
Foi o pr imeiro acto q u e inaugurou o systema de ccntralisação rcaccionaria
estabelecido por I). João I, apenas se viu seguro no throno, c q u e os seus
succcssores viriam ampl iar cm progressiva escala até ao absolutismo puro .
Fcrnão Rodrigues ficou regente do re ino, quando vinte e nove annos depois
I). João I part iu para a conquis ta dc Ceuta. 4 Conselheiro dc AlTonso IV na mor te de Ignez dc Castro, cvadiu-sc para
Castella. D'ahi tomou armas contra a pa t r ia invadindo-a c atraicoando-a
por mais dc uma vez. Voltou ao reino depois da morte dc D. Fernando, c
foi um dos que as cortes dc Coimbra designaram para o conselho do novo
rei.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
seu filho João Fernandes Pacheco, que annos depois se ma-
cularia lambem tomando contra a patria o serviço de Cas-
tella 4.
Andados annos, peregrinando por differenles reinos de Europa a fim de se ir a Prússia guerrear infiéis sob a ordem theutonica, encontrou clle o celebre Froissart, c lhe Irans-mittiu, segundo o mesmo chronista refere, as minuciosas informações que a esle serviram de base para os interessantes capítulos em que historiou os successos dc Portugal \
Seguiam-se aos Pachecos Vasco Martins de Mello, o velho3,
1 Lopes, par te 11, cap . 109.° 2 Esle encontro <le Froissar t com João Fernandes Pacheco é assaz curioso,
c cremos q u e nunca ate agora havia sido mencionado cm Portugal . Eis como
Froissart o c o n t a :
A Valencicnnes, sua pa t r ia , chegara clle do condado de Foix em Béarn,
onde colhera de castelhanos mui tas noticias acerca das recentes guerras entre
Portugal c Castella. Desejava o chronista escrever com imparcialidade, c
por isso queria ouvir também sobre aqucllcs successos a nar ração dc alguns
porluguezcs. Conslando-lhc q u e em Brugcs habi tavam muitos d'estes, diri-
giu—sc áquclla c idade. Abi lhe disseram q u e a Middlcbourg acabava dc chegar
um cavalleiro de Por tuga l , esforçado e p ruden te homem, q u e sc ia caminho
de Prúss ia . Pa ra logo par t iu Fro issar t a encont ra l -o . E r a João Fernandes
Pacheco. Deu- lhe esle completas informações de todas as occorrcncias na
península desde a morte de e l - re i D. Fe rnando , c , accrcsccnta o velho his-
tor iador : «Si douccment le m e con lo i t . . . q u e j c prenois grand plaisancc «•
l 'ouir et à l ' éc r i rc . . . ct chroniquai tout cc q u e dc Por tugal ct dc Castillc
est advenu j u sques à l 'an dc gràcc mil irois ccnts qua t r e vingt ct diz.»
Froissart , Chron., liv. 3.°, cap . x x v m . 3 Deveu-lhe exclusivamente a vida I). João I, q u a n d o , em tempos de seu
irmão el-rei D. Fernando, foi mandado p rende r , c encerrar com grilhões aos
pés no castcllo dc Évora , dc q u e era a lca idc-mór Vasco Mart ins dc Mello.
Este recebeu ordem dc matar o mestre, mas hesi tando foi mostrar a D. Fer-
nando o alvará, q u e se reconheceu ser falso. Ao depois seguindo Vasco
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 167
Lopo Dias d* Azevedo , , Gil Vasques da Cunha, alfcres-mór, e os principacs senhores de Portugal.
Á terceira mesa presidia o abbade dc Alcobaça, o celebre D. João de Ornellas 2, estando após elle o prior dc Sancta Cruz dc Coimbra 3, o camareiro-mór João Rodrigues de Sá, João Gomes da Silva copeiro-mór, Mem Rodrigues de Yas-concellos que ao depois foi mestre de Santhiago e outros muitos4 .
Estas e as demais mesas eram exclusivamente occupadas por cavalleiros c escudeiros portuguezes servidos uns e outros
Martins a rainha D. Beatriz esposa dc João dc Castella, despediu-se dc seu
serviço, quando o castelhano moveu guer ra a Por tugal . Vcjam-sc as Chron.
dc I). Fernando e T). João I, por Fcrnão Lopes. 1 Neto de Gonçalo Vasques d'Azevedo que pereceu cm Al jubarrota se -
guindo os castelhanos, c bisneto dc D . Francisco Pires , pr ior de Sancta
Cruz de Coimbra c de D. Tare ja Vasques d 'Azevedo, monja 110 mosteiro dc
Lorvão. Arch. nacion. da torre do tombo, legitimação de Gonçalo Vasques
d'Azevedo; Chanccl. de D. Fern., liv. 1, foi. 178 ; Soares da Silva, Mcnwr.,
tomo 1, cap. xii, pag. 72 , c tomo doe. n.° Nobiliario do condc
1). Pedro, t i t . o0.° , pag. 2 2 7 , Nota C, edição Lavanha. 2 Senhor dc quinze villas c dc dois castellos c f ronte i ro-mór de quat ro
portos dc mar . E ra grão parcial dc D. João 1, cu jo pendão alçara cm todos
os senhorios da ordem. Enviou a Al jubar ro ta valioso soccorro de homens
dc armas caudilhado por seu proprio irmão Mar t im d 'Ornel las , c deu hos-
pedagem principcsca a el-rei c aos seus cavalleiros, quando depois da victoria
sc dirigiram ao mosteiro dc Alcobaça. As part icular idades da hospedagem
podem ver-sc cm Sanctos, Alcobaça illustrada, tit . xi. 3 Era D. Vasco Mar t ins , filho dc Mar t im Affonso dc Sousa, senhor dc
Bayão, c irmão dc AlTonso Mar t ins , escrivão da pur idade de el-rei , e vedor
da rainha 1). Fi l ippa. Frei Nicolau dc Sancta Maria , Chron. dos Conegos
lie gr antes, liv. ix, cap . 23 . ° 4 Froissart, loco citato.
1 3 0 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
com grande ccrcmonial pelos senhores e barões dc Ingla-
terra l.
Pode calcular-se a profusão das iguarias, e a sumptuosi-
dade do bancpicte.
Prosigamos em sua descripçâo.
1 Kroissart, ut supra.
CAPITULO XVIII
SUMMARIO.—Banquetes; origem (Veste n o m e . — F o r a m servidos a cavallo.
—Sala descommuna l .—Franca entrada ao povo .—D. João II e as festas
dc É v o r a . — O cavalleiro do cysnc. — O rei actor diverte os subdi tos .—
Rapida t r ans fo rmação .—I) . M a n u e l . — O s autos dc Gil Vicente c os p a r a -
sitas da côrtc. — Proscr ipção das classes t rabalhadoras . — Uma ccia nos
paços de D. João I. — Dádivas trazidas a cava l lo .—Serviços das mesas.
—Prcs t i to á sala. — Prescntação das iguarias . — A côrtc dc Borgonha
modelo para as festas cm Por tugal . — O entremes, par te integrante dos
banquetes . — Historia sagrada e p rofana . — Pantomimas e h i s t r iões .—
Justas a cavallo den t ro na s a l a .—Autos cm tab lado .—Donas e galantes.
—Danças c m a s c a r a d a s . — O s j o g r a e s ; pcricia dos por luguezcs .—O duque
de Lancastcr cm acampamento mi l i ta r .—Intermédios mus icaes .—Gra t i -
ficação a menestreis c a rau tos . — A gr i ta do estylo. — Fructas c vinhos,
0 cafc de nossos dias . — Despedida.
I
Era usança invariável durante a edade-media que cm Iodas as comidas dc apparato os convivas, incluindo os que na mesa do topo occupavam o logar proeminente, se assen-tassem á mesa cm bancos. D a h i veio ás solemnes refeições o nome de banquete ainda hoje cm voga.
1 Legrand d 'Aussy , Vie privée fies français; Louandrc , Amcublcmcfít
civil ct rcligieux, Moyen-d gc et Rennaissancc, tomo iv ; Lacroix, Les arís
au Moyen-âge, pag. 5 .
Sendo as mesas collocadas june to ás paredes c tendo então as cadeiras
J K 4 D # JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 Om
Também nos brilhantes períodos d'aquclla edade eram as grandes festas culinarias servidas a cavallo l. Realisavam-se de ordinário em sala descommunal 2 que para esse eífeilo existia construída no plano térreo dos paços reaes 3 . Quando a não havia aposta, fabricavam-iva ad hoc.
Assim practicou cm Portugal D. João II mandando ale-vantar juneto aos paços dc Évora a famosa sala de madeira. Em Lisboa havia uma permanente nos paços d'Alcaçova4.
fôrmas amplíssimas, to rnavam-sc os bancos necess idade imperiosa naquellas
solemnidades. Não admit l ia , p o r q u e não podia admi l t i r , cxccpção esta regra
geral, como c dado verificar nas Memórias c chronicas dc todos os Estados
durante a edade-media , c pos ter iormente . 1 Lacroix, Moeurs et usages au Moyen-âge, v e r b . Nourriture ct cuisine,
pag. 191, 3 / c d . ; Baudr i l lar t , tomo m , liv. v, cap. i, pag. 4 6 1 .
Assim succcdeu cm França na coroação dc Carlos VI e no banquete dado
cm Cambrav pelo mesmo rei para solcmnisar as nupeias dc seus primos, os
filhos do duque dc Borgonha. F ro i s sa r t , liv. III, cap . 79 . °
Das diversas cortes foi progress ivamente desapparecendo aquclla usanea,
c veio só a conscrvar-se em Ingla terra na coroação dos reis até Jorge IV.
Buchon, nota a Froissar t , tomo ix, pag. 55 . 2 «On ne s ' é tonncpas des dirnensions ex t raord ina i res données aux grandes
sal les . . . lorsqu'on voit qucl était le n o m b r e dc personncs qu' i l y fallait
reunir .» Viollct lc Duc , Vie privee dc la fcodalUé françaisc, Diction. du
mobilicr, tomo i , pag . 3 6 6 . 3 Nesta sala cm Westmins tcr cc lebravam-se os banque tes da coroação dos
reis. O duque de Lancaster com os pr imei ros do re ino serviram a cavallo
a mesa dc Ricardo II por ent re innumcra mul t idão d e povo. Walsingham,
Historia brevis, pag. 197, n.° 53 .° S . Luiz , q u e r e n d o solcmnisar a reunião
magna dos grandes vassallos dc sua corôa cm S a u m u r , festejou-os com
esplendido banquete , c para local escolheu o mercado publico. Sirc dc
Joinville, Ilist. dc S.1 Loys, collcct. Pc t i to t , p rcmic rc série, tomo II, pag. 411 .
4 Rezende, Chron. dc D. João II. cap . c x m . Relação da embaixada de Filippe o bom a Portugal. Auetor a n o n y m o .
B A N Q Ü K T E S O L E M
Tioihl-lcDuc, Dictionnaire du Mobitier, Cours,féics ct banqueis, pag. 3CK), dcuxicmc edition.
N E D O S É C U L O X I V
iu?c \Z A l t C v f " n c c i o n í l r i o s t ranspor tam a cavallo as cguar ias — O t r inchantc oflercce-as de joelhos — Aos dois r rn Í , r c n l < _ v a r l c t e s se rvem vinhos e egiiarias No al to t r ibunas para os e spec tadores— A o cent ro r c m l c < l u c — A n t e a meza real vac representar se um en t remez , vendo se â direita a lgumas das figuras
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 5 3
Franca entrada se dava naquelles banquetes ao povo que, já como espectador, já como actor, era parte integrante em todas as festividades medicvacs. Ao depois, com o renasci-mento. veio o absolutismo dos reis, o isolamento das côrtes palacianas, c a proscripção das classes trabalhadoras.
Em Portugal ainda aos cidadãos de Évora franqueou 1). João II livre acccsso nas grandiosas festas, com (pie solemnisava o consorcio de seu único filho, c onde o proprio monarcha apparccia aos olhos de seus subditos invencionado no fictício personagem do cavalleiro do cysne.
Não era então o rei que assistia aos cspectaculos. Des-empenhava o papel dc actor para divertir o seu povo.
Sob o sceptro gravoso dc D. Manuel tudo mudou. Res-tringidas ficaram as solemnidadesfcstivaes ao interior do paço, e abi mesmo aos proprios autos dc (lil Vicente concorriam tão só as damas da rainha, os oíliciaes móres da casa real, e os parasitas que formavam a côrtc. As demais classes, as (pie em si continham já as forças vilães da nação, e que ao deante abarcariam pelo trabalho o dominio da sociedade inteira, proscrcvera-as mediante as idèas auctorilarias do tempo o absolutismo exclusivista do rei suspeitoso.
0 mesmo pela evolução que o renascimento ia gradual-mente operando se dava então nas diversas córles da Europa citilisada l.
Não fôra assim na quadra que buscamos aqui historiar. Ainda então o povo acompanhava cm as solcmncs festivi-
1 «La royaulé se faisant moins populai rc dcviciit plus rct i réc ct plus
solcinncllc. E l l e r cn fc rmc ses fètcs dans les magnif íques palais, ou les fcmmcs
et les court isans parés sc l ivrcnl à de pompeux divertissements loin de tout
mélange populairc .» Baudr i l la r t , tomo ni, liv. v , cap . 2.°, § 2.®
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
dades o rei por elle escolhido. Ainda então lhe dava este ampla entrada em seus paços, c ainda durante a sumptuosa ceia com que na alcaçova dc Lisboa festejava o mesmo 1). João I o consorcio dc sua filha, a infanta D. Isabel duqueza de Borgonha, foram á sala trazidas a cavallo grandes dadivas e larguezas, mandadas segundo uso do tempo distribuir pelo infante D. Duarte herdeiro da coroa aos trombetas c menes-treis que durante o banquete cnsoavam musicas l. Assim o refere narração contcmporanca de subido apreço historico, descrevendo usos mui curiosos da côrtc portugueza naqucllcs tempos á .
II
As altas solcmnidadcs culinarias dividiam-se então em grandes serviços, aos primeiros dos quaes chamavam inèls3, e cm Portugal cobertas \ Cada serviço era nos-paços de reis
1 «Nesta ceia deu o senhor in fan te p r imogên i to g randes dadivas e l a r -
guezas aos f raut i s tas e menes t re i s , as q u a e s foram t raz idas a cavallo, e al ta-
mente publ icadas por toda a s a l a ; c tocaram mui conce r t adamen tc as t rom-
betas c outros ins t rumentos .» Relação da emba ixada de 1'ilippc o bom a
Por tugal para o casamento com a infanta D. I sabe l . I i ibliothcca Nacional
dc Par i s casa dos ms, codicc n . ° 1 1 : 2 1 o . S a n t a r é m , Quadro elem., tomo III,
pag . 4 3 . Veja-sc o anter ior cap i tu lo . 2 Encon t r a - s c a ín tegra do notável documen to cm Gachard Collcctfon dc
documenls inedits sur ihistoirc de lírigiquc, tomo 2.° , pag . <>3 a 9 1 . Veja-sc
a nota sup ra .
Es ta na r ração , escripta por um dos q u e a Por tuga l acompanharam os
embaixadores , vem t ambém copiada em San ta r ém, Quadro elem., loc. cit.
c acha-se na Bibl iothcca Nacional dc Pa r i s , como dissemos . 3 «Au xiv sicclc les p remie r s scrvices d ' u n repas s 'appcl laicnt mèls.»
Lacroix, Mocurs, verb . Xnurriturc, pag . 180 . 5 Nos banquetes rcaes era uso cm signal de respei to i rem á mesa as
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 177
c príncipes composto dc muitas iguarias, c ao som dc estri-dentes musicas trazido á sala com a maxima solemnidade. Vinham deante os trombetas, atabales e o corpo dos menes-treis.Em seguida, porteiros com suas massas dc prata. Logo os passavantes, arautos e reis de armas envergando as cotas bordadas com as armas do reino. Após estes os pagens e escudeiros. Os altos funccionarios da casa (oíliciacs-móres) descobertos todos afora o mordomo-mór. Seguiam dois ren-ques de moços da camara levando em copas descommunaes as iguarias mais descommunaes ainda em formas e quanti-dades.
Chegados ao alto da quadra, c feitas aos príncipes as mesuras do cstylo, dividiam-se os servidores em turmas apro-ximando-seás respectivas mesas, e os que a estas especial-mente assistiam. presentavam as iguarias. A mesma solemni-dade, que assaz longa era, guardava cada coberta que á sala vinha l.
Posteriormente foi uso trazerem aquellcs serviços cm carros artisticamente invcncionados.
Assim se praclicou em Flandres no já referido banquete de Lille -. O mesmo cm parte viu Portugal nos decantados festins de 1). João II: «E lo^o A entrada da mesa vevo huma çj
grande carreta dourada . . . traziamna dous grandes boys
iguarias cobertas. IVahi veio em Por tugal o nome aos diversos serviços.
Adulterada depois a fôrma d*estes, ficou todavia o nome, até que a moda
inda hoje usada veio supplantar o serviço por cobertas. Es t e existia ainda
no principio do actual século. 1 «Era tamanha ccrcmonia q u e du raua muito cada vez q u e hião á mesa.»
Garcia de Rezende, Chron. de I). João II. cap. cxxiv. 2 «Et étoient les piais d u rosl chariots ctofés d 'or et d 'azur .» O. de la
Marche, Mcmoir., pag. 170, edit . Peti tot .
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 178
assados inteiros com as maôs c pés dourados. Os boys parcciaõ viuos e que andauaõ '.» Extraordinário cm tudo, o filho de AlTonso V modelou em as apparatosas solemnidades daquellc banquete, dado por seu tio o .duque de Borgonha, as grandiosas festas com que em Évora celebrou o casamento de seu único filho 2. Taes como estas, escrevem os contem-porâneos, nunca ate então houvera cm toda Hcspanha.
I I I
Em quanto os convidados saboreavam os manjares; isto é, entre serviço e serviço, entre mets, representava-se o entremez. Dalii lhe veio o nome, applicado entre nós com o volver dos tempos a certo gênero faceto de diversões theatraes.
Eram então os entremezes parle integrante dos banquetes
1 Rezende, Chron. dc I). João II, cap . cxxiv. 2 íi a primeira vez que sc escreve esta asserção. Mas quem cotejar as
historias dc la Marche c Coussy com as chronicas dc R u y de Pina c Rezende
encontrará a cxactidão do que af l i rmamos. Os entremezes nos paços dc Évora
e a sua fô rma ; os momos (mascaradas) cm que os pr incipaes senhores dc
Portugal vinham invcncionados; o g igante no cortejo, precursor das justas;
a grande nau ao n a t u r a l ; o cysnc precedendo o mantenedor , e mil outros
episodios naquel las festas foram exclusiva introducção flamenga. Como o
mantenedor cm Bolonha in t i tu lado : o cavalleiro do cysnc , tomou I). João II
este mesmo nome dc seu tio Adolpho de Clèves. O cysnc cm Évora vogando
nas aguas era como o cysnc de Lille desafiando as j u s t a s ; c assim por deante.
Houve alguma variação de fôrmas, a t tenta a diflerença dc costumes entre
as duas nações, c sobre tudo o resguardo tradicional cm q u e eram na côrtc
portugueza tidas as senhoras . A csscncia porem man t inha - se idêntica.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 179
de apparalo para goso, ou edificação dos assistentes Sym-bolisavam a principio qualquer facto da historia sagrada, ou profana, e nesse caso figura vam-no em pantomima2 os jograes em meio da sala 3. Outras vezes era o entremez composto de justas reacs corridas a cavallo dentro na própria sala do banquete pelos mais ardidos guerreiros 4.
Posteriormente vieram os autos representados, não já em meio da quadra, senão cm tablado ao fundo com sccnario e vestes a d e q u a d a s T a m b é m as mais nobres donas e galantes da côrte formavam então danças ou cantatas com luzido esplendor6 .
Ainda outras vezes fôra o entremez preenchido já porchufas etregeitos dcchocarreiros chistriões.já por momos de caval-leiros selvaticamcnlc invcncionados7 , já pelos jogos de saltar
1 «Cos cnlrcmcts spectacles sont lc plus grand elTort du luxe des festins
dans ccttc sccondc par l ic du moyen-àgc .» Baudr i l la r t , tomo III, l i \ . v, cap. i,
pag. 480 . 2 Rcnan, Discours sur Vliistoire des heaux arts en France au xir sièclc,
pag. 2 9 2 . 3 «Os jograes podem ser considerados como os primeiros actorcs das peças
profanas.» I .ouandre, Moycn-agc ct renaissancc, tomo iv, verb. Théatre,
pag. 90 . 4 Assim succcdcu cm Franca por occasião do casamento dc Carlos VI :
«Le roi, diz Froissar t , scant à l ab l e . . . en t re ren t en la sa l lc . . . dcux chcvalicrs
montes aux chevaux, a rmes dc toutes picces pour l a j o u t e . . . ct là joutòrent
fortement.» Chron., liv. m , cap . i . 5 01i \ icr dc la Marche, Mcinoircs, tomo 11, cap. xix, pag. 157, cd. Pcti tot . 6 O mesmo auetor . : Estas mascaradas grotescas appareccram cm Lisboa nos paços d'alca-
çova durante a ceia solcmnissima a q u e nos referimos, dada por D. João I .
Diz a Memória retro c i t ada : «I louve um q u e \e io cllc c seu cavallo todo
coberto dc espinhos, como dc porco espirn; outro q u e veio acompanhado dc
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 180
c trepar em cordas 1 por homens das mais desprezíveis classes, c que aliás sc haviam com a summa perícia a que chegara aquella arte na era a que nos estamos referindo. Portuguezes houve então que cm tal arte se tornaram insignes.
Como espccimen conceda-nos o leitor que ao voar da penna lhe presentemos um frisante exemplo. Menciona-o o celebre Matheus de Coucy exaltando em pleno século xv a pcricia de um jogral portuguez. Compatriota nosso, embora humilde, lancemos um volver dc olhos sobre as proezas que reaiisou ha quatrocentos annos, e que «espantaram a Eu-ropa,» diz emphaticamenle o experimentado Lacroix \
Eis o caso:
Por Milão acertavam de passar cm missão ao Papa mais de cinco annos após o rendimento do império byzantino (1459) , embaixadores do faustoso duque de Borgonha Fi-lippc o bom, marido, como temos referido, dc Isabcau dc Portugal, filha de I). João I, c — dc passagem seja dicto— uma das mais ciumentas esposas que tem enfadado o mundo3.
sete planetas, cada um figurando segundo sua propr iedade . Outros muitos
vieram graciosamente adereçados com suas divisas, cada um segundo seu
prazer .» Mss da Bibliothcca Nacional dc Pa r i s supra citado. Gachard,
documents inédits, tomo m . 1 Lopes, parte n , cap. 96 . ° 2 «Un spcctaclc . . . dans la villc dc M i l a n . . . dont 1'Europc enticre fui
émerveillee.» Lacroix, Moeurs et ttsages, verb . Jeux, pag . 2 Í 8 . 3 «Avoit este la plus soupsonncusc Dame qu ' i l eust iamais congnuc.»
F . de Commincs, Alcmoircs, liv. i , cap . i .
«Este Duque le dió bas tante ocasion a su D u q u c s a pera ser sospcchosi-
s ima, porque el fué incont inent is imo.» Vi t r ian t r aduc . dc Commines, liv. i,
cap. i, cscolio IL Além de casado por tres vezes teve dezcsctc filhos na tu raes . Art dc verifier
les dates, pag . 675 . édi t . dc 1770.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 5 9
0 primeiro desses embaixadores era João duque de Clèvcs, cunhado de Beatriz de Coimbra l, sobrinha da referida du-queza. c filha do nosso infante D. Pedro, o de Alfarrobeira
Tinha por objcclivo a embaixada libertar Constanlinopla organisando-se mediante os desejos do Summo Pontífice, que era o celebre iEneas Silvius (Pio 11), a grande expedição christã iniciada pelo duque no famoso banquete de Lille.
Reinava então no Milancz o duque Francisco Sforza, o qual ostentando a mais esplendeu lc hospedagem, agasalhou os embaixadores, e d entre as contínuas diversões com que os festejou avultava esta do jogral portuguez.
Traclando-se de compatriota nosso, não devemos abslcr-nos de transcrever as próprias palavras do chronista flamengo:
«Icelui duc de Milan fit tendre une corde de travers de son dit palais environ dc 150 piedsdehauteur et delongueur, et là fui veu un Portingalois qui monta sur la dite corde, et chemina sur icclle loul droit, puis alia à rebours, fil les hon-neurs à genoux, s'assit et se leva sur un pied, dansa sur icclle corde au son du tabourin, sc pendit à la dite corde, la tète dessous, et fit sur icclle corde toules les habilites que lonpourroitdeviser,tellement que lesdamesmuchoientleurs ycux de grand paour que il ne se tuast 3 .»
1 Davam-lhe este nome na corte dc Flandrcs derivando-o do titulo dc seu
pac, duque de Coimbra. Vcjam-sc O. dc Ia Marche, Coussy c outros escri-
ptores flamengos. 2 Assim chamado cm Portugal depois da sua tragica morte june to aquelle
rio. F. Luiz de Sousa, Ilist. dc S. Domingos, tomo I. 3 Mathicu dc Coucy, Chroniqucs, c ap . 12(i.°, edit . Buchon, tomo 3G.°,
P^g. 318.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Rclcvc-nos o amor proprio nacional esta digressão, embora
rápida, acerca do obscuro funambulo que extrangeiros cele-
b r a v a m ha quatro séculos, e dc (pie em sua própria terra
não existia até agora o minimo vestígio. Prosigamos.
Os laços que, segundo notámos, ligavam o duque dc Clèves
á filha do infante 1). Pedro, o de Alfarrubeira, haviam a se-
guinte origem:
Em extremo queria a duqueza de Borgonha ao antigo regente de Portugal seu irmão, porque, afora a consangüi-nidade intima que os unia, pedira clle á rainha D. Filippa, mãe dc ambos, que por morte des t a fossem á infanta doadas as terras que a rainha possuía l .
Morto D. Pedro, confiscados seus bens, c ficando ao des-amparo a família, a duqueza requereu a D. AlTonso V que lhe enviasse os filhos dc seu irmão. Superadas certas diífi-culdadcs, partiram para Flandres (1450-1451) D. Jayme, D. João c 1). Beatriz \
Acolheu-os a extremosa infanta como pode suppór-se3 . e casou a sobrinha com Adolpho de Clèves senhor dc Ra-vastain, irmão do duque embaixador \
1 «O infante I). Pedro disse á r a i n h a : Senhora se vossa mercê fosse a my
parecia bem chamarem a E l l l cy & lhe pedirdes q u e as terras que tendes
haja por bem dalas á Infanta .» Azu ra r a , Chron. de D. João I, parte m,
cap. 42 .° 2 Ruy dc P ina , Chron. dc D. Afíonso V, cap . 127.° 3 «Les rcccut le bon duc et Ia duchesse . . . cn grand pitié dc leur éxil.»
Olivicr dc la Marche , Mémoires, cap . xxn , pag . 5 7 , édition líuchon. 4 Soares da Silva, Memórias dc I). João I. liv. i ,*cap. xiv, pag. 373;
Sousa, llist. geneal. da casa real, tomo í ; Olivicr d c Ia Marche, Mémoires, loco citato.
D. JOÃO I E A A LI, t ANCA INGLEZA 104
Eis as causas do parentesco alludido. Esla princeza, neta de nossos reis, e pelos chronistas
flamengos denominada após o seu casamento Madame de Ravastain l, foi parte integrante no esplendido banquete dc Lillc, tendo logar na mesa ducal, c ao serão representando em 11111 mysterio o papel de caridade 2.
Neste mysterio entravam doze damas vestidas em cotas de setim carmesim com guarnimentos de finas pellcs, e co-bertas com mantillias redondas dc tela branca á moda de Portugal \
/
E para notar que um uso porluguez creassc moda na côrte então a mais elegante da Europa, c cm dia de tal sole-mnidade.
De passagem notaremos que a practica de sc occultarem as senhoras sob a veste que as cobria permaneceu em Lisboa ate ao marquez de Pombal 4. Na ilha de S. Miguel ainda o auetor encontrou este uso geralmente estabelecido com o celebre capello.
Volvamos ainda ao interrompido banquete cio duque dc Lancaster.
1 Teve um único filho, Fi l ippe dc Ravas ta in , ao qual D. João II dc P o r -
tugal a rb i t rou , como parente , uma tenra de 4 0 0 : 0 0 0 rcaes brancos. Archivo
nac. da tone do tombo, livro dos Mistieos, pag. 145 . Sousa, Ilist. geneal.,
liv. i n , cap. II, § 4 .° , c Provas ao livro III, doe . 2 2 . 2 M. dc Coucy, Chron., cap . 8 8 . ° ; Olivicr dc la Marche, cap. xxix,
pag. 187. 3 «Et avoyent un a tour tout rond , à la façon dc P o r t u g a l . . . ct fu ren t
leurs \ isagcs couvcrts du volet.» 01 i \ i c r de la Marche , loco citato.
* Jacomc Katton, Memórias sobre a lgumas occorrcncias do seu tempo.
1 1
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
IV
Muitas das diversões culinarias que deixámos descriptas sob o nome gencrico de entremezes haviam sido opportuna-mente usadas na magnificente côrte dos reis inglezes. É todavia para notar que nem todas as que então eram de moda podiam ter-se eíTcituado, nem as chronieas affirmam que o houveram sido na solemnidade a que nos reportamos.
O duque, máo grado ao descommunal apparato que usava ostentar, achava-se então mui longe de sua patria, em acam-pamento militar fora do povoado, e no extremo de duas pro-víncias extranhas, onde falleciam as victualhas e provisões das grandes cidades.
0 que porém não ha duvidar é que os intermédios (entre-mets) do grandioso banquete foram preenchidos com estri-dentes musicas c festins de tangedores e ministreis f; e que o numero d'estes subia mui alto prova-o Froissart mencio-nando que por ellcs e pelos arautos mandou então o duque distribuir duzentos nobres dc oiro 2.
Dadivas (Feste genero ao terminar dos banquetes medievaes eram usança obrigatoria, e realisavam-sc com estrondosa pompa 3. Assim succedeu então.
1 «Le diner fu t grand, et hei , ct bien estoufle dc toutes choses, et y ot
là grand foison dc mcneslr icux qu i Orent l eu r mét ic r .» Froissar t , liv. m ,
cap. 38.° , continualion. 2 Froissart , loco citato. 3 «Se doit la largcssc crier q u a n d ils sont à d iner , quand le segond cours
ct entremais sont servis.» Ms inglez: Du devoir ct dc Vofjkc des hcraulds
apud Ducangc : Dissertations sur Vhistoirc de SLoys du sirc dc Joinville,
collection Petitot, p remière serie, tomo m , pag. 101 .
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 163
Findo o ultimo serviço, a que também, chamavam entre-mez l, o mordomo-mór da casa de Lancaster, assomando em meio da sala, precedido por todos os gentis homens e pelas numerosas classes de varletes c serviçaes, chamou solemnc-mcnle o primeiro dos arautos inglezes, e entregando-lhe a dadiva do duque 2, c cru seguida aproximando-se da mesa real, onde este sc achava, proclamou em alta voz a genero-sidade do dador com o pregão do estylo 3.
Em desordenada grita irromperam então os agraciados soltando o usual brado: largueza, larguezac repetindo-o por diversas vezes foram assim atroando os ares ao longo da sala 5.
Após esta ccremonia essencialmente alheia aos tempos de hoje, mas inseparável, como dissemos, dos banquetes mc-
1 Es te serviço era o mais sumptuoso nos banquetes . Compunham-n 'o
cremes e gclcas dc côres com as armas do dono da casa c dc outros cm
relevo, faisões, pavões c cysnes com as próprias pcnnas ao natural c bicos
c pés guarnccidos dc oiro, c postos cm meio da mesa sobre uma espccic dc
estrados que cm Portugal chamavam pratos montados; designação que ainda
hoje existe. Pichon, Ménagier dc Paris, introduetion; Scré, Moyen-âge et
Rcunais., tomo i, verb . Nourriture et cuisine, foi. XLIII verso; Lacroix,
Mocurs, ctc., verb . Nourriture, etc., pag. 1 8 1 ; Lcgrand d 'Aussy, Tieprivéc,
tomo m . 2 «Et doit le grand maitre dc 1'hostel en une aumuchc ou sachet honno-
rable appcller lc hérauld lc plus notablc, ct lui dirc: Vc cy que Monscigncur
vous présente .» Ms inglez, loco citato. 3 O pregão era o seguinte : «Largueza, largueza, largueza do muito alto
c muito poderoso senhor João dc Gaunt , rei dc Castella e Leão, d u q u e dc
Lancaster .» Ms inglez, ut supra. 4 «Tous heraux doivent cricr apres lui largcsse sans dirc antro chosc, ct
en plusicurs licux au long dc la sallc doit estre fait en tcllc manicrc que
chascun Toe.» Ms inglez, loc. cit. b «Dont ils crioicnt largcsse à plcincs gueules.» Fio issar t , loc. cit.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
dicvaes, começaram os variados serviços do que hoje cha-
maríamos sobre-mesa, c eram não menos de tres \ findos os
quaes, novas especiarias c particulares vinhos foram ainda
presentados aos convivas, depois que estes havendo recebido
agua ás mãos e dado graças sc levantaram das mesas. Em
geral este serviço não o traziam á sala os creados, e por isso
lhe chamavam «serviço de camara» 2. Era como o café de
nossos dias.
Assim terminou ao cabo de muitas horas o banquete inglez,
ccom clle a reunião dos dois alliados. Nove dias durara esta.
1 Vinham no pr imeiro f rue tas (cm fô rmas dc al tas pyramides) , compotas,
amêndoas, grangeias, doce dc todas as qua l idades . Compunham o segundo
ohreias, fofos, biscoitos l igeiros e vinhos doces. E ra fo rmado o terceiro dc
especiarias dest inadas a favorecer a digestão c acompanhadas dc malvazia c
vinhos aromaticos. P ichon, Ménagier de Paris, introduetion; Lacroix,
Moeurs, etc., verb . Nourriture, pag . 1 8 4 ; Lcgrand d 'Aussy , llist. dc la
vic privée des français, tomo m ; Serc (Ferd inand) , Moyen-dgc et Remais..
verb. Nourriture et cuisine. As obre ias c fofos r emontam a muitos séculos
dc ant igüidade. Havia-os já no século x m . Se ré , loc. cit. 2 Ao rei ou á mais qualif icada pessoa q u e alii se achava offcrcciam-n'o
os mais distinetos d ' cn t r c os presentes . O pr imei ro trazia a toalha, o se-
gundo o cofre dos doces c confei tos, o te rce i ro presentava a f rue ta c o quarto
os vinhos. Assim vieram a prac t icar annos depois os filhos dc D. João I ser-
vindo o infante I) . Dua r t e no sa rau depois do casamento d 'es te . Veja-se a
interessante carta do infante D. Henrique a seu pae inser ta no tomo vi das
Provas á hist. gencal. da casa real, pag . 3 5 0 ». P ichon , Ménagier dc Paris,
loc. cit.; Lacroix, Moeurs ct usages au Moycn-dge, verb . Nourriture ct
cuisine, pag. 184.
» «O infante D. Duarte foi servido de vinho e fruita por nós outro?. O infante D. Pedro levava o pano, e eu o confeitciro, e o infante D. Fernando a fruita c o conde o vinho.» Carla ut supra. Coimbra, 22 dc setembro dc 1 Íi8. Sousa, Provas, loco citalo.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 6 5
A Galliza volveu João de Lancasler l . Caminho do Porlo foi com os seus o rei dc Portugal 2 .
A ambos cabia agora o imperioso dever de quanto antes realisarem as condições do pacto recente a que se achavam adstrictos.
Em primeiro logar vejamos quaes eram essas condições.
1 Conforme a et iqueta do tempo o condcstavcl D. Nuno Alvares, seguido
dc cem lanças, acompanhou largo espaço o duque no seu regresso da f r o n -
teira portugueza. Froissar t , liv. i n , cap. 38.° , continuation. 2 Lopes, parte II, cap . 9 i . °
CAPITULO XIX
SUMMARIO.—Confederação ent re o duque dc Lancastcr c I) . João I . — S o c -
corro valiosissimo outorgado por e s t e .—A corôa dc Portugal a I) . Filippa.
— A s concessões do duque .—Rec ip roc idade cphcmcra .—A conquista de
Castella c a inacção dos a l l i ados .—El- re i dissimula em casa r - s e .—Que
motivos?—A lenda do Barbadão .—Dois f i lhinhos.—Os votos sacros c a
dispensa dc Roma .—Ing la t e r r a cm cr i se .—Froissar t e as tergiversações
dc c l - r c i . — C o r r e m os d i a s . — A palavra d a d a . — O duque dc Lancastcr
não c o conde de Cambridge .—Solução urgente .
I
Mediante a confederação que nas ribas do Minho acabavam de firmar os novos alliados obrigara-se I). João I a servir em continente os interesses do duque de Lancastcr, entrando por Castella com um exercito de duas mil lanças, mil besteiros e dois mil homens de pó, commandados em pessoa pelo pro-prio soberano, e «á sua custa mantidos !.
Mais sc obrigava el-rei a prestar este soccorro valiosissimo por espaço de oito mezes ininterruptos, e a contrahir immc-diatas nupeias com Filippa de Lancastcr, filha primogênita do duque 2.
1 Fernão Lopes, pa r te 11, cap. 93 . ° : «Das auenças q u e El l ley e o D u q u e
t ra ta ram ant re si.» 2 Lopes, loc. cit.
1G8 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 190
Por sua parle João de Gaunt a nada se compromettia desde logo. Pelo que respeitava a dote, obrigação imprescriptivcl dc príncipes que naquelle tempo casavam filhas, nem uma dobra offerecia. Quanto a soccorro positivo a favor de Por-tugal, nem uma palavra mencionava no pacto firmado; e a única reciprocidade com que retribuía os vantajosos capítulos que lhe ficavam assegurados, era a ccdencia de diversas po-voaçòes de Castella (cerca da raia), quando estas fossem con-quistadas ao inimigol. Ephcmera reciprocidade! A conquista não sc realisou nunca; c Portugal ficou mais outra vez ads-tricto por gravosas concessões a inglezes, sem que d'ellcs houvesse logrado a minima compensação. Tal foi á luz dos documentos o resultado practico da confederação entre o rei dc Portugal c o duque de Lancastcr.
Ainda assim, sc cm seguida ás avenças que os dois prín-cipes acabavam de sellar, lhes tivessem clles dado cumpri-mento entrando sem delongas por Castella, haveriam colhido facilmente a posse d'aquelle reino, que por derrotas succes-sivas durante mais de tres annos se achava exhausto de capitães, e desprovido inteiramente de gentes dc guerra Mas o duque demorara-se em Galliza cerca de quatro mezes antes de ir a encontrar-se com o rei de Portugal, e este— máo grado ao concerto que então firmara—não sc apressava a dar-lhe execução invadindo Castella, e ainda menos curava de realisar o consorcio pactuado com a filha do príncipe inglez. Mais dc dois mezes passaram ainda por dc sobre os
1 Lopes, loc. cit. 2 Mar iana , llist. gen. dc Espana; La fucn te , pa r te 11, liv. m , pag. 379,
1,3 edição.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 191
quatro já decorridos, e o filho de Thercza Lourcnço dissi-mulava sempre. Saudações reiteradas, palavras melífluas enviava sem cessar á duqueza e ao duque mas quanto a csle não curava dc lhe receber a filha por mulher 2 .
II
Que motivos impenderiam para lal procedimenlo, não mui alheio em verdade ao characler de D. João I ? Porque tão cxlranha rcpugnancia manifestava elle em unir-se á primo-genita do duque dc Lancaster?
Seria porque esta, em vez da formosura que lhe atlribue a rotina dos escribas, era realmente feia, como prova o significativo silencio dc Fernão Lopes, e mais ainda o seu proprio retrato em alto relevo sobre o tumulo 110 mosteiro da Batalha?
Seria porque no coração do antigo mestre d'Aviz domi-nava só a gentil filha de Pero Esteves3 , alcunhado pela antiga
1 «Si avoit il tou jours tenu ct servi lc duc ct Ia duchcssc dc saluts et de
parolcs.» Froissar t , liv. m , cap. 52 . 0
2 «II s'ctoit un peti t dissimule devers lc duc dc Lancastrc dc non sitòt
prendre sa filie pour moui l l ier .» Froissart , ut supra. Ve ja - se o mesmo a u -
etor , liv. 111, cap . 41 .° 3 O animo galantcador do mes t re d 'A\ iz é geralmente conhecido, bem
como as suas relações intimas com uma donzcüa moradora em Lisboa (íguez
Pires) , da qual teve dois filhos, o pr imeiro d u q u e de Bragança, c I) . Beatriz,
condcssa de Arundcl cm Inglaterra Longo tempo duraram aqucl las intimas
1 Memórias sobre o casamento do primeiro duque dc Brayança, arch. da casa dc Brag. Soares da Silva, Memórias, tomo iv, doe. xiv, n.° S."
4 7 0 D- MÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA
lenda com o pscudonymo dc Barbadão de Veiros l, á qual o uniam laços Íntimos, que mais estreitara o nascimento de dois filhinhos que em Lisboa 2 sc creavam ?
relações, e parece q u e só com o casamento dc el-rei vieram a Onalisar en-
trando Igncz para o mosteiro de Sanctos, onde foi commcndadcira . Poste-
r iormente el-rei I). Duar te sendo infante cedeu- lhe os seus paços do Li-
moeiro, onde por a lgum tempo sc agasalhou com a communidadc , em con-
seqüência de estar em ruínas o mosteiro dc Sanctos , o velho. D. Igncz exerceu
largo espaço o cargo de commcndadci ra , cm que annos depois , c por idên-
ticos motivos entrou D. Anna de Mendoça, a donosa protegida dc I). João II.
Veio Igncz a fallecer na qu in ta dWnda luz , per tencente ao d u q u e seu filho.
Veja-se fr . Agostinho dc Sancta Mar ia , llist. tripartita, t ra t . 3.°, § xiu;
Soares da Silva, Mem., tomo 1.°, cap . 50.° , o l . ° , c tomo 4.°, doe. 14;
Brandão, Monarch. Lusit., par te 5 . \ l iv. 17.° , cap . 5 7 . 0
1 Esta lenda, aliás vulgar iss ima, é de todo ponto inexacta. O pae de Igncz
Pires não foi o Barbadão dc Veiros, c mui diversos sent imentos linha do que
a este são a t t r ibuidos . Chamava-se Pero Estcvcs da fonte boa c era da
geração dos Folegados de Veiros, onde clTcctivamentc exist iu um indivíduo
chamado João Barbadão , mas q u e nada t inha com a família da commcnda-
dcira. A coincidência dos nomes c da na tu ra l idade originaria acaso a fabu-
losa tradição. Pero Esteves veio viver para Lisboa, e no anuo dc 1392 deu-lhe
D. João I umas casas pa ra morar sitas na pedreira 2 , as quacs clle poste-
r iormente tomou de aforamento ao mesmo re i , assim como outras 3, o que
prova a boa harmonia cm que viviam. Vc ja - sc Soares da Silva, Mcm., tomo 1
cap. 5 1 . c tomo doe. lí c anncxos . 2 O mais velho, o fu tu ro d u q u e de Bragança , t inha então nove annos.
Nascera nas casas dc R u y Penteado á por ta da O u r a , onde vivia sua mãe,
c provavelmente seu avô. Ve ja - se Memória sobre o nascimento do primeiro
duque de Bragança, S. da Si lva, tomo 4 .° , doe . 14 .
1 Alvará do Marque* de Villa-Rcal a favor dc I.opo Yaz Tolerado, em Lisboa, 28 de abril de ISO';, apud, Soares da Silva, tomo í.«, doe. l í.
* Alvará dc I). Joào I. Lisboa, 22 dc dezembro dc 1392. 3 Carta de aforamento, passada pelo mesmo rei, cm Bragança, 2í de janeiro. Kra dc
l i í â . Soares da Silva, tomo 4.°, doe. l í , n.°* 4.° c 5.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 171
Seria ainda porque achando-se el-rei—como professo na ordem d'Aviz — ligado a votos sacros, cm que só ao Papa era dado dispensar, não havia até então podido obter de Roma a dispensação sollicitada, e estaria aguardando que esta che-gasse ?
Diz Froissart que as tergiversações do antigo mestre d'Aviz em realisar o casamento provinham de não querer elle arris-car-se a intima liança com inglezes, em consequencia das noticias que lhe haviam soado dc que Inglaterra estava per-dida 1 pela immediata invasão que 11a grande ilha iam rea-lisar com invencível poder as armas do rei de França, achan-do-se este prestes já a embarcar-se para a decisiva empresa Não ousamos aventurar de exacta a asserção do chronista flamengo; mui consoante é todavia ao charactcr simulado, interesseiro e calculista do outr'ora regedor do reino.
Como quer que fosse, os dias corriam, e D. João I, typo constante de aclividade apenas lograra o mando, não dava nem passo cm negocio que tão de cerca lhe respeitava.
Um pacto porem fôra scllado pelo rei. A sua palavra estava empenhada; e sc outr ora 1). Fernando rompera o consorcio que em Inglaterra contraclara para sua filha herdeira, os tempos corriam já mui outros, as forças inglezas que á pe-nínsula haviam aportado orçavam ainda por vinte mil pcle-jadores, e o duque de Lancaster não era o conde de Cambridge.
Que solução teria pois esta pendencia ?
1 «On lui donnait à entendre que Anglc tcr rc étoil toute pcrduc .» F ro i s -
s a r t , l iv . 3 . ° , c h a p . 5 2 . ° V c j a - s c o c a p . 2 Froissart , loco citato.
CAPITULO X X
S U M M A R I O . — O d u q u e dc Lancas tcr envia a filha ao P o r t o . — O c o r t e j o . —
Discordancias h i s t ó r i c a s . — A y a l a . — F r o i s s a r t . — F e r n ã o Lopes .—Atravcz
dc cinco séculos . — DcducçÕes. — Cumpr ia e l - re i o t rac tado quan to á
g u e r r a . — H e s i t a ç õ e s quan to ao c a s a m e n t o . — P o u c o cscrupuloso o d u q u e .
— E x i g ê n c i a s pos i t ivas .— Escreve e l - re i ás te r ras dc seu r e i n o . — R e l u -
c t anc i a .—Divagação ao longo das p rov ínc ia s .— Lisboa , coração c a lma .
— No Por to a final.—Vè Fi l ippa por p r ime i r a v e z . — A f a s t a m e n t o r áp ido .
— Regresso á ul t ima h o r a . — C a s o e x t r a n h o . — B ê n ç ã o s sem casamento .
— R e p u g n a n c i a mani fes ta .
I
Altivo como os dc sua r a ç a l , ambicioso como os que mais alto visavam e insoíírido acaso pelos desenganos que cm Inglaterra o haviam por mais de uma vez salteado, quando se tractara de casar a filha 3, o duque de Lancastcr tomou
1 «Ce pr ince c ta i t d ' u n c h u m e u r fiòre et han ta inc .» 11 a pi n , Ilistoire de
Angleterre, tomo x, p a g . 2 8 1 , ed . 3 . J
2 « Immodcra ta et n imis al ta semper concupivcra t .» ImofT, Itegum Magnae
lirilan. hist. geneal., capu t v , pag . 2 2 . 3 Altos esforços emprega ra o d u q u e pa ra rcal isar a un ião de Fil ippa com
o herdeiro do d u q u e Alber to dc Bavicra T a m b é m se cu idou cm casa l -a
com o propr io Carlos VI de F r a n ç a 2 .
» Froissart, liv. n, cap. 221." c 222.° 2 «Aussi parle íut dc la GIlc du duc de Lanca>trc qui puis fut reine de Portugal.» Frois-
sart, liv. ii, cap. 127.®
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 174
no cmtanto a resolução tcrminante dc a enviar ao Porlo instando com el-rei por (pie a recebesse em continente l .
Para dc mor auctoridade revestir esta ida da princcza ordenou seu pae que a acompanhassem além dc sua irmã Madame Joanna e das damas inglczas que lhe designou, o bispo de Acres e de Jaen capellão-mór, Messire João de Ilolland, condestavel, Mosse Thomaz Percy, almirante c o marechal João de Abrecicourt. Eram estes os mais quali-ficados d'entre os proccres que o cercavam, como o character oííicial dc cada um evidcnceia. Cerravam o cortejo cem lanças inglezas e duzentos archciros de cavallo 2.
Eis como Froissart que tão exacto foi muitas vezes ao historiar os successos dc Portugal, descreve a entrada de Filippa na cidade do Porto:
«Ao encontro da juvenil rainha para lhe tributarem preito «c reverencia, sahiram fora da povoação o bispo do Porto, «c dc mais prelados que alli acertavam de cstanccar, e bem «assim os principacs fidalgos: como o conde D. Nuno Alvares3
« c o n d e s t a v e l o conde D. Gonçalo 5 (irmão da rainha
1 Carta de el-rei I). João I adeante t r anse i i p t a . 2 Froissar t , liv. m , cap. 53 . ° ; Lopes, par te 11, cap . 9 i . ° 3 Froissart , escreve: le comte de Novare, loco citato. 4 A esta dignidade dá Froissar t o nome de conde de Escalez suppondo-o
personagem dilTcrcntc dc Nuno Alvares . IJuchon cm nota ao capitulo 53.°
diz singelamente não haver podido reconhecer quem fosse este conde. A ver-
dade 6 que nunca exist iu. Froissart tomava dc ouvida cm Flandrcs muitos
annos depois o que lhe refer ia João Fernandes Pacheco. Es te , como c na -
tura l , ao nome dc Nuno Alvares accrcsccnlou «condestavel,» e o chronista
pela toada para clle extrangeira tomou conde dc Escalez por condestavel, c
cuidou que em vez de um eram dois indivíduos . 5 Pelas razões supra denomina-o F ro i s sa r t : le comtc d'Angousse adul te-
rando pela toada o nome.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 197 I*" V /O
«D. Leonor Telles), Lopo Fernandes Pacheco João Fer-« nandes Pacheco *, Lopo Yasques da Cunha 3 , Vasco Martins «dc Mello, o velho \ Lopo Dias de Azevedo5 , Fernão Rodri-«gues, mestre d'Aviz interino, e outros, indo com elles mais «de quarenta cavalleiros e mós descommunaes de innumero «povo. Precediam-nos donas e donzellas da cidade, c Sodo o «clero revestido em hábitos proccssionaes 6.»
«Assim, accrescenta o chronista, foi Madame Filippa con-duzida ao Porto, e nos paços rcaes aposentada 7.»
Sobre a causa d 'esta vinda, inopinada por ventura dis-cordam completamente os escriptores do tempo.
Ayala, o illustrado chronista castelhano, prisioneiro em Aljubarrota aííirma que a filha de João dc Gaunt viera como refem dado por seu pae mediante condição do recente tra-clado (o de ponte do Mouro).
Esta af i rmação, impossivcl em verdade perante a critica histórica, tem sido seguida pelos escriptores hespanhoes desde Mariana até ao moderno Lafuente.
Froissart pelo contrario assevera que apenas constou que
o rei dc França desistira da invasão projectada 8, c que por
1 Galop Ferrant Percok segundo o mesmo Froissar t , loco citato. 2 Joan Ferrant Percok, loco citato. 3 Le Pounasse de Coingnc, item. 1 l asse Martin de Merlo, item. 5 Le Pondich de Senedc, item. 6 Froissar t , loco citato. 7 «Pouzou nos paços do bispo q u e som mui to perto da Sé desse logar.»
Lopes, loco citato. Froissar t equivocara-se neste p o n t o ; naquel la cidade não
havia paço rea l . 8 A desistencia do rei de França foi motivada por ser então o mez dc
dezembro, e prevalecerem os conselhos do d u q u e dc Berry dc que em tal
estação não deviam expór-se a a f ron ta r terra e mar . Fro issar t , liv. u i , cap . 48 .°
4 7 0 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 198
tanto estava salva Inglaterra, D. João I volvera á intenção de esposar a princeza de Lancaster, e que as nupeias sc reali-saram por procuração sendo representante de el-rei o seu caniareiro-mór João Rodrigues de Sá, o qual, segundo o ccremonial inglez, foi collocado com a noiva sobre o mesmo leito—acto a que elle mui respeitosamente a n n u i u C e l e b r o u a ccrcmonia religiosa o arcebispo dc Braga: «Em seguida, continua o chronista, foi a princeza enviada a seu marido.»
Fernão Lopes considera a questão mais comesinha refe-rindo que chegada a noticia de que o Papa concedera a dis-pensa sollicitada, sem comtudo vir a bulla, o duque enviara sua filha ao Porto com luzido séquito dc inglezes c porlu-guezes
Em meio de tão flagrantes conlradicçõcs encontradas nos proprios escriptores que foram coevos daquclles successos como podemos hoje atravez da extensão de cinco séculos descortinar os factos, como realmente occorreram?
Vejamos. D. João I (pie pelos votos sacros a que sc achava adstricto
pertencia ao estado ecclesiastico, c era portanto inhibido de tomar esposa, casou eflectivãmente, sem que de Roma hou-vesse chegado a bulla com adispensaçãocanonica. Este faclo é innegavel, c comprovam-no documentos e historiadores.
1 «Mcssirc Jcan Kadr igues de S a r . . . épousa madame Phil ippc dc Lan-
cas t re . . . coramc procurcur du roi dc P o r t u g a l . . . et fu ren t sus un lit cour-
toisernent, ainsi commc epoux ct cpouséc doivent c t rc .» Froissart , liv. III,
cap. 53.° Era esta uma das ceremonias obr iga tór ias nos casamentos em
Ingla terra . Veja-se Adams, Ilist. of England, liv. 11. cap . 8.°; Malrimonio
presso gli Anglo-Sassoni, apud Fc r ra r io , 11 costume, etc., tomo vi, pag. 101. 2 Fernão Lopes, par te II, c ap . 95 . °
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 177
Mediante a esperança de obter essa dispensa còntractara el-rei seu casamento. Também é isto sem duvida, e cgual-menle comprovado.
Havendo o lillio de Tlicreza Lourenço, apenas cingida a corôa, expedido embaixadores a Roma, noticiaram-lhe estes, se é cxac to o que Fernão Lopes escreve, que o Papa (Urbano VI então reinante) concedia adispensa, mas não enviaram abulla, nem a poderam nunca obter do Pontificc, que morreu sem a
Em tacs circumstancias o rei portuguez buscava cumprir o tractado no que dizia respeito á guerra de Castella, mas hesitava na realisação do casamento, e ia progressivamente adiando a ceremonia. Também estes factos ficam, suppomos, essencialmente provados.
O que resta unicamente a descortinar c a causa eílicicnte do adiamento. Rcstricta ao fôro intimo do interessado, só podemos conjectural-a. Ou a voz da consciência segredava ao cavalleiro-monge que devia aguardar o documento com-provai ivo da dispensa, sem a qual perpetraria um sacrilégio, casando-sc, ou eíTectivamente lhe repugnava unir-se a Filippa, ou não queria aventurar-se a estreitar laços com uma potência no momento em que esta podia ser totalmente avassallada. Dc que houve tergiversações, c numerosas, não resta duvida.
i
II
Por sua parte o duque de Lancastcr, pouco escrupuloso cm matérias de consciência, conforme o leitor verificou, c por ventura não mui devotado aos dictames da côrte de Roma,
12
1 7 8 D. JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA
como a c o r r i mo proteclor que fôra do denominado precursor de Lulhero, enviou a súbitas sua filha ao Porto, c do rei portuguez exigiu o cumprimento immediato da palavra dada, a realisação do juramento prestado.
É o proprio D. João I que o aífirma nas seguintes palavras dirigidas cm circular de 2 de fevereiro (1387) ás cidades c villas dc seu reino:
«Cremos que bem sabeis como havemos jurado & pro-«mettido casar com a Infanta Dona Filippa, filha dei R c y «dc Castella c duque dc Lencastro. E ora estando nós em «Guimarães prestes pera seguir nosso caminho 1 segundo «bem sabeis, fomos requerido per o dito Rcy dc Castella seu «padre (pie a tomássemos por mulher . . .ante que d'esta terra «partíssemos \ »
Provam as palavras supra que el-rei estava determinado a entrar por Castella antes de casar-se, mas que cedia ás ponderações do duque, embora dc modo evidente a demons-trar a repugnância que o dominava.
Ainda assim, muitos dias permaneceu Filippa na cidade do Porto, sem que o noivo procurasse ao menos conhc-ccl-a!
Folgava elle em andar-se vagueando pelo reino, passando a Alemtejo, demorando-se em Évora, e vindo estar oito dias em Lisboa 3, quem sabe se attrahido ainda pela que tantos annos havia lhe dominara coração c alma!
1 Este caminho era o de Castella q u e el-rei ia invadir á frente dos seus sem curar dc casar-se . Lopes, par te 2 . ' , cap . 9o . °
2 Lopes, loco citato. 3 Lopes, parte II, cap . 94 .°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NÜLKZA I7í>
A final dirigiu-se el-rci ao Porto. Viu por primeira vez Filippa que ainda não vira
Froissart descreve assim o encontro com a futura esposa: «0 rei tomou-a pela mão, beijou-a, beijou outrosim todas as damas que a acompanhavam, c levou-a até á entrada da sua camara c ahi se despediu. Os senhores despediram-se cgual-mente das outras damas, e todos se retiraram \ »
Em seguida partiu o antigo mestre d Aviz para Guimarães dcmorando-sc alli até á véspera da septuagesima, ultimo dia antes de Paschoa cm (pie se dão bênçãos matrimoniacs 3. Só naquclla própria tarde sahiu elle para o Porto, andando toda a noite, e vindo a chegar a esta cidade na própria manhã em que devia levar sua mulher á egreja 4 ! !
Aconteceu então caso extranbo, e por ventura sem exemplo. Nada mandara el-rei aprestar para a solemnidade do seu consorcio. Por este motivo receberam os noivos unicamente as bênçãos. Só passados doze dias é que se realisou o ma-lrimonio definitivo 5.
A repugnancia de 1). João I em receber por esposa a filha
1 O d u q u e de Lancaster , quando foi á Ponte do Mouro encontrar D. João I,
deixou, como dissemos, esposa c filhas cm Galliza, para onde voltou findas
as conferências. 2 Froissart , liv. III, cap. 53 .° «EIRcy . . . mandou á Infante suas j ó i a s . . .
entre as q u a e s . . . hum firmai dc ouro , cm que era posto hum galo com ricas
pedras , c aljofar maravilhosamente feito, e cila enviou a elle outro em que
era huma Águia bem obrada com pedras dc gram valor.» Lopes, parte n ,
cap. 94 .° 3 Lopes, par te 11, cap. 94 .° c 95 .° 4 «ElUcy cavalgou esse dia á tarde, & andou toda a noute cm guisa que
andadas aque l lasou to léguas amanheceu na cidade.» Lopes, parte u , cap. 95 .° 5 Lopes, loco citato.
1 8 0 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
do duque dc Lancastcr não podia pois ser mais positiva, mais terminante, nem mais claramente manifestada. Assaz o pro-vam as minimas circumstancias, a l iás de absoluta veracidade histórica, que deixamos descriptas.
CAPITULO XXI
StJMMAiuo.—Chegou o d i a . — P o m p a s nupc iacs .— Danças c t r ebe lhos .—A
liça para os t o rne ios .—A cidade c a fes ta .—Poét ica dcscripção do chro-
n i s t a .—Adorno das r u a s . — V e r d u r a s e p e r f u m e s . — O p re s t i t o .—El - r e i
e a rainha a cavallo. — O arcebispo primaz das Hespanhas . — Pipias c
t rombetas . — As donas cantando atraz dos noivos. — As solteiras. Sole-
dade c e spe ranças .—Os paços rcacs c a ca thedra l .—As ondas populares .
—Regu la r idade no t emplo .—O cor te jo .—Classes cp rcccdcnc ias .—O con-
destavcl mordomo-mór .—Senhore s ing lezes .—O irmão de el-rei de Ingla-
t e r r a . — A c l c r e z i a . — O gilvaz do a rcebispo .— Os noivos sob o pa l l io .—
Donas em coro .—Mat r imônio r e a l . — O s votos e a dispensação cauonica.
— H o r a s dc p rovação .—Nos paços dc e l - re i .
I
DesaíTrontado dos espessos nevoeiros que do Douro usam freqüentemente ascender involvendo em seu manto vaporoso cidade c campinas, amanhecera límpido e risonho o dia 14 dc fevereiro da era de 1425, segundo ainda então, como dissemos, officialmente sc contava.
A 2 daquelle mez havia, como também disséramos, rece-bido bênçãos a futura rainha dc Portugal.
Para a definitiva celebração do matrimonio fôra aprasado o dia 14, afim de haver o tempo indispensável a sc ultimarem os aprestos consoantes á esplendentc solemnidade. Era uso
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
d'então que as festas nupciaes se realisassem com a maxima pompa Annos depois ia este uso já decahindo 2.
Todos os ofliciaes da casa de el-rei e os da cidade traba-lharam afmcadamente na grande obra. Alargaram-se praças, desempacharam-sc ruas, organisaram-se trebelhos e danças populares, improvisaram-se matinadas; e mui á pressa no espaço entre o mosteiro de S. Domingos e a rua do Souto, que eraentom tudo hortas3, abriram uma grande praça, onde sc armou a liça para as justas c torneios — diversões indis-pensáveis em qualquer solcmnidade medieval 4 .
Toda a cidade era occupada nos desvairados cuidados da festa. Ouçamos a pittoresca descripção que d e s t a presenta o historiador contemporâneo, pintando a vivas côres os usos do tempo:
«E todo prestes pera aquellc dia partiosc EIRcy á quarta «feira donde pousava, & foyse aos paços do Bispo, hú pou-
1 «Alors . . . on entourai t Ics ccrémonies nupt ia lcs d ' u n l u x c i n o u i . » Viollct
lc Duc, Vie publique de la nóblessc fèodale. Noces. p a g . 3 2 7 . 2 Veja-se a este respeito Fernão Lopes, p a r t e 11, cap. 96 .° 3 Lopes, loco citato. 4 Nos princípios da edade-media cons t ru íam as l iças em feitio circular
a exemplo dos circos romanos . Com o andar dos tempos to rna ram-n ' a s qua -
dradas formando-as dc grossas traves dc made i ra , a q u e chamavam teia.
Esta era de ordinár io coberta dc r icos pannos das côrcs do mantenedor,
tendo bordadas, ou es tampadas por mui tas pa r tes as suas a rmas c empresa.
Veja-se Phi larc te Chaslcs, Moycn-dge et Ilcnnaissance, tomo i, verb. Che-
valerie. Garcia dc Rezende t rac tando das ju s t a s reaes q u e D. João II man-
teve nas grandes festas dc Évo ra , d i z : «A tèa era coberta dc panos finos
verdes c roxos que erão as côrcs dcIRey, toda dc huma p a r t e e da outra
chea de pelicanos dourados c bordados na t è a . . . E no c a b o . . . sc pozerão
em mastos muito altos bandeiras mui to g randes c mu i to r icas das armas de
Portugal , etc.» Rezende, Chron. de D. João I I , cap. cxxvi.
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 1 8 3
«sava a Infante, & á quinta feira foram as gentes da cidade «juntas cm desuairados bandos dc jogos c danças í per «todalas praças com muitos trebelhos que faziõ. As principaes «ruas, por hú estas festasauiom de ser, todas crom semeadas «de desuairadas verduras & cheiros.
«EIRcy sahio daquclles paços em sima de hu caualo «branco \ cm panos douro Realmente vestidos, & a Raynha «cm outro tal muy nobremente guarnida: leuauom nas ca-«beças corôas douro muy ricamente obradas de pedras cS: «aljofar de grade preço. Os moços dos caualos leuauaõ as «mais honradas peças q hi erõ de grande preço, não indo «arredados hum do outro, mas ambos a igual, e todos mui «bem corregidos, & o Arcebispo leuaua a Raynha de redea. «Diante liiam pipias e trombetas, & outros muitos instru-«mentos, tantos que se nom podiom ouuir, donas filhas dalgo «e isso mesmo da cidade cantauom indo de traz, como lie «costume de vodas 3.»
Annotaremos a histórica narração que nos deixou Fernão Lopes, tão rica de côr local, observando que, segundo usança
1 As danças eram na edade-media condição importante dc todas as festas.
Desde o século xiv ate ao xvi to rna ram-se par te integrante de qua lque r
solemnidade, a q u e o povo concorr ia como espectador . Lacroix, iíoeurs ct
usages, verb. Jcux ct divertissements, pag. 2 4 8 . 2 Cavallo branco era symbolo dc dominio. Por isso cm festividades p u -
blicas os reis montavam sempre cavallos d'esta côr. Quando Carlos V de
França foi visitado pelo imperador (Carlos IV) mandou- lhe cm presente um
cavallo dc appara to (dextrier) murzclo, a fim de q u e o imperador não appa -
rcccssc com um charactcr is t ico dc dominação, q u e só elle rei quer ia ter cm
França. Chrisl inc dc P i san , Livre des faits ct bonncsmocurs du roi Charles V,
cap. 35.° , edi t . Pcl i to t , tomo ív. 3 Lopes, par le n , cap . 96 .°
190 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
do tempo, e o chronista refere, só as senhoras c a s a d a s -
n o b r e s e b u r g u e z a s—i a m cantando e m côroatraz dos noivos.
A s pobres solteiras ficavam-se por setteiras e gelosias a in-
vejar c o m os olhos d'alma n ã o p o d e r e m concorrer á solemni-
dade, c m q u e aliás e s p e r a v a m ser u m dia protagonistas.
II
No limitado espaço que medea entre os paços do bispo c a egreja da só apinhoava-se cm mó descommunal o povo da cidade, e a caterva de inglezes que dos arraiaes alliados tinham vindo para ver passar o cortejo
Este assomou por fim ; mas era lanla a gente e lal o aperto, que entestando com a mole compacta mal ponde rompel-a\
Buscaram então os d avante caminhar guardando a fôrma possível. As ondas populares cresciam porém. Condensa-vam-se. Tornara-se geral a confusão. Assim, sem poderem jamais seguirem ordem, chegaram ás portas da cathedral3.
Recebidos sob pallio de brocado de oiro, a que pegavam os vereadores e principaes da cidade em talares garnachas negras, entraram os reis na egreja. Com a desordem que fóra ia contrastava a regularidade silenciosa dentro no templo. O prestilo poude então reger-se caminhando mui passo.
Na deanteira as trombetas c p i p i a s \ Vinham depois os
1 Lopes, pa r le 11, cap . 91 .° 2 Lopes, par te 11, cap . 96 . ° 3 «A gente era tanta , q u e sc nom podiom reger , nem ordenar . . . c assi
chegarom ás portas da Sc.» Lopes , pa r te II, cap . 9 6 . ° 4 «Diante hiam |>i|»ias e t rombetas .» Lopes, loco citato.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 8 3
ministreis, e logo os foliões e jograes, classe oííicial que nas solemnidades regias tinha cm aquelle tempo logar obriga-torio, immediato aliás a judeus e mouros. Estes, como é sabido, com suas danças guerreiras, e aquelles conduzindo graves a toura, ou livro da lei, formavam parte dos cortejos reaes, até que D. Manuel os expulsou do reino. Agora porém haviam uns e outros ficado além do adro, porque lhes era defeso, como a infiéis, entrar na egreja. Seguiam os porteiros com suas maças de prata, os arautos os escudeiros e cavalleiros, os alcaides-mórcs c senhores de terras, o repos-teiro-mór, Pero Lourcnço de Tavora, o alferes-mór Martim Vasques da Cunha com a bandeira real em funda, o vedor dc el-rei e seu dedicado amigo Fernão d'Al vares d'Almeida, os dois vedores da fazenda, João Gil e Martim da Maia. Como o primeiro na casa real (major domus) vinha então o grande D. Nuno Alvares Pereira, accumulando as funeções de condestavel com as de mordomo-mór.
Após os ofíiciaes-móres portuguezes seguiam todos os ca-valleiros e senhores da côrte de Inglaterra, e entre o almi-rante Thomaz Percv c o marechal Ricardo Burlev 2 cami-J V
nhava donoso e altivo, como irmão que era de Ricardo II então reinante, messire João de Ilolland condestavel da hoste do duque de Lancaster e seu genro. Começava então a des-lisar-se a numerosa clcrezia que entre outros prelados rema-tavam com suas mitras riquíssimas os bispos do Porto, de
1 Foi D . João I q u e cm Por tugal veio mui poster iormente a estabelecer
os reis d ' a rmas , como c notor io . 2 Es te a rd ido guer re i ro foi poster iormente morrer cm Castella ferido da
epidemia que , segundo adeante notamos, causou horríveis estragos na hoste
ingleza. Veja-sc Froissart , liv. m , cap. 81 .°
1 8 G D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Acquis c de Jaen e o arcebispo de Braga, o esforçado
D. Lourenço Vicente, ostentando este no gilvaz, que lhe sul-
cava nobremente a face direita, os brios de cavalleiro de
Aljubarrota i .
Sob o já referido pallio de alto preço, ornadas as frontes
dccoróas dealjofar c pedraria, e cm reacs mantos roçagantes
de brocado de oiro, vinham immcdiatamcntc el-rei e a nova
rainha seguidos, conforme era então costume de bodas, pelo
bando das senhoras casadas cantando cm coro, como já
referimos 3.
0 bispo da diocese, que em pontificai solemne fôra ás portas da cathedral aguardar os noivos, e dar-lhes água benta, tomou-os então pelas mãos ante o altar-mór, e por palavras de presente ratificou o matrimonio. (pie por procuração havia em Santhiago celebrado o arcebispo de Braga 4. Em seguida disse o bispo missa e pregação, não lhe havendo nesta sido
1 E ra castelhano. Ilavia nome 1). João de Castro. Seguira a voz de Pedro
o cruel de Castella contra Henr ique dc T r a s t a m a r a . Como tal, foi o mais
auetorisado conselheiro do d u q u e dc Lancastcr cm relação aos ncgocios
peninsulares. Lafucnte, Historia dc Espana, pa r te 11, liv. m , cap. 19.° 2 Acerca d'cstc ferimento escreveu o arcebispo cm carta dirigida a um
dom Abbadc, que alguns alTirmam ser o de Alcobaça, as seguintes engra-
çadissimas pa lavras : «Aprouve a Deos c a Sancta Maria ssa Madre que as
r ibeiradas do meu gilvaz sejam j á vedadas . . . Eu o s into b e m ; cá, sc >icr
cm caiso, já darcy c leuarcy out ra pela mesma reques ta , & credc vós, bom
amigo, q u e quem esta pespegou nom levou enxebres , nem irá contar cm
Castella aos soalheiros o cruzamento dc minha cara .» A íntegra d'este in-
teressante documento vem impressa após a pa r te n da Chronica de I). João I
por Fernão Lopes. O original guardava-se no moste i ro de Alcobaça. 3 Lopes, parte II, cap . 96.°
* Lopes, loco citato; Froissart , liv. m , cap. o3 . °
209 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
mui fácil cohonestar com os votos postergados a dispensa que não chegara.
Mediante o ceremonial referido volveram a seus paços o rei e a nova rainha dc Portugal.
Estava casado o antigo mestre d'Aviz. Hora de provação teria sidoaquclla para o animo doecclesiastico! Não poderia clle esquecer os votos perpétuos, a que se adstringira, e dc que não via ainda documento canonico que o desobrigasse.
Í v
0ê
CAPITULO XXII
SUMMARIO . — Banque te de b o d a s . — Inglezes c por tuguezes .— Nobres c c i -
dadãos .—A burguezia sob um sccplro democrá t ico .—Ceremonia l no s e r -
viço das igua r i a s .—Progress i s t a a côrtc de D. João I . — D o n a s e donzellas
á m e s a . — A n o m a l i a s . — I ) . João II c a galanter ia cor tesã .— D. Manuel ,
o cioso.—Proscripcão das senhoras . — Reinados t e t r i c o s . — O d u q u e de
Rragança e os seus p a ç o s . — O Legado apostól ico.—Recepção ác príncipe.
— Hercu lano . — Uma t raducção notável. — A sociedade portugueza no
século x v i . — B a n q u e t e cm Yi l l a -Yieosa .—Cont inua a proscr ipcão ao bello
sexo .—A casa do doccl , e as senhoras sentadas no chão .—A rainha I). C a -
tharina e a infanta I ) . M a r i a . — A n t i t h e s e . — O s dois sécu los .—Expansões
de l iberdade, c o absolut ismo auetor i ta r io .
I
Seguiu-se na grande sala dos paços o usual banquete de bodas.
Não fatigareraos o leitor com repetir as minuciosas cere-monias d'aquellas solemnidades. Reportando-nos ao que deixámos escripto annotaremos tão só, que além da alta mesa para os noivos erguida 110 lopo da sala sob docel riquíssimo, outras muitas houve ao correr das paredes, onde tomaram logar inglezes e portuguezes, nobres e também cidadãos â.
As mínimas occorrencias d'aquella epocha demonstram
1 Lopes, par te II, cap . 96 . °
18G D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
quão importante era já enlão a classe da burguezia, e quanto
se foi mais engrandecendo sob o sceptro democrático do
bastardo dc Thereza Lourenço.
Exerceu o cargo de mestre-sala das bodas reaes o grande condestavel, porque o seu amplo espirito abarcava tudo, e tudo era clle na córtc de D. João I. Por mãos do proprio D. Nuno Alvares c dos mais auetorisados senhores e caval-leiros do reino foram as iguarias trazidas ás mesas com o longo cercinonial então usado \ e que já fica referido.
Cumpre-nos aqui registrar um facto extranho.
Não o haja por somenos o leitor, que importante c tudo que possa revelar-nos a vida intima de nossos avós. Então por primeira vez em Portugal tiveram as senhoras logar num banquete.
Via-se já porventura neste progresso a influencia ingleza, que tanto veio a prevalecer sobre as antiquadas usanças de nosso reino \
«E que cousa apurou mais a córte DelRey D. João o Pry-meiro, que a vinda a ella do duque de Alencastre?» pergun-tava acuradamente o singelo auetor da Côrte na Aldeia3.
Poucos annos atraz, quando, vivo ainda el-rei I). Fernando, o conde de Cambridgc, filho do grande Eduardo III de In-glaterra, c sua esposa desembarcaram em Lisboa com a
1 Lopes, loco citato. 2 «A côrte dc Portugal adoptou mui tos usos da córte inglcza.» Santarém,
Quadro elemndar das rei. de Portugal, tomo n v . Introducçâo. 3 Francisco Rodr igues Lobo, Côrte na Aldeia, Dial. xiv, pag. 110. Ao
nosso amigo c mestre visconde dc Castilho, Jú l io , devemos a indicação d'csta nota .
I). F E R N A N D O , INFANTE D K P O R T U G A L , C O N D E D E F L A N D R E S
Prisioneiro na ba ta lha dc Bouvincs c conduzido ás pr isões do L o u v r c Uma procissão solcmnisando a victona sac do palacio — l>os campos que avizinham este correm ccifciros e cci fe i ras a ve r o pre*o — Ao fundo o no Sena .
{Miniatura das Chronicas dc Hainaut. Ms. do século xv. Bibliothcca de Borgonha, cm Bruxellas.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 18 3
grande expedição auxiliar, houve nos paços dWlcaçova um esplendido banquete, mas nesse a rainha Leonor Telles con-vidou á parle a condessa c suas damas, c com el-rei jantaram tão somente o conde e mais senhores inglezes e portuguezes l .
Na própria França, em festa solemnissimadada porS. Luiz, a rainha Branca de Castella, sua mãe, occupava mesa de estado dilfcrente do rei, sendo servida, conforme refere o chro-nista contemporâneo, pelo conde de Bolonha que ao depois veio a empunhar o sccptro portuguez sob o nome de AlTonso III Era clle sobrinho de D. Fernando de Portugal conde de Flan-dres, guerreiro assignalado, e prisioneiro na batalha de Bou-vines, como o representa a curiosa estampa que reprodu-zimos.
Com relação aos banquetes em França cumpre-nos ainda accrescentar, que mui posteriormente, nas próprias nupeias de Carlos VII todas as damas jantaram com a rainha Maria d'Anjou, c homem nenhum se assentou á mesa 3.
t
1 Fernão Lopes, Chron. del-rei I). Fernando, cap. cxxix. 2 «Et si scr \oi t à la Royne le conte dc Bouloingnc qui puis fu roi dc
Portingal.» Sirc de Joinvil le , llist. de SD>ys, Variante, édi t . Peti tot ,
pag. Í L 2 . Veja-se Baudr i l la r l , llist. du luxe, tomo M , liv. II, cap . v iu ,
§ 1.°, pag. 176. 3 «Au diner toutes les dames d inncren t avec la reine, et nuls homuies n'y
étoienl assis.» Aléonor dc Poi t icrs , Les honneurs de la cour.
Este livro, o pr imeiro que em França estabeleceu as regras do ccremonial,
deve merecer-nos par t icular apreço, por ser a auetora filha dc uma senhora
portugueza. Tinha esta o nome de Isabel dc Sousa. Era neta de 1). Lopo Dias
dc Sousa, mestre de Christo, c descendente por pae c mãe de D. Aflbnso III
de Portugal. Seguindo a Flandrcs a infanta D. Isabel duqueza dc Borgonha,
como sua dama, casou alli com João dc Poit icrs senhor d 'Arcis , cm Cham-
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Mór progresso manifestava já a côrte dc D. João I no
grande banquete que descrevemos. Importa ainda notar que
a este não concorreram somente senhoras casadas. Também,
c o que mais é, com suas graças juvenis o abrilhantaram as
meninas solteiras
Extranhaanomalia a d'aquellas eras! Pois se tractava de ceremonia nupcial, tinham por incongrucnte que a presen-ceassem donzellas indo á egreja, e ahi não podia faltar-se ao respeito devido. Foram ellas porém admittidas ao banquete, onde era praxe invaríavel dizerem-se por occasião de bodas as mais desregradas expressões, e certeiros trocadilhos.
Parte des tes insolitos usos chegou quasi aos nossos dias.
pagne. Leonor entrou de sele annos ao serviço da duqueza , casando poste-
r iormente com o visconde dc F u m e s .
De sua mãe havia recebido a auetora mui tas informações sobre as diversas
ceremonias da côrte, c a própr ia Isabel dc Sousa as colhera dc Joanna, con-
dessa dc Xamur que tinha um l ivro, onde todas as c i rcumstancias do cere-
monial franccz eram escriptas. Sobre estes assumptos de et iqueta nada fazia
a infanta portugueza sem previamente a consu l t a r : «Et la duchcssc dc liour-
gogne Isabcau nc faisoit rien dc ccllcs choses q u e cc ne f u t . . . par Favis dc
M . " de Namur, commc j 'ou is dire à madame ma m e r e . » Les honneurs de
la eour dc tíourgogne, par dainc Alconor dc Poi t icrs , appcns. ao tomo III
de Lacurnc dc S . u Palayc, Mim. de 1'ancienne chevalerie, édit . dc 1759.
Veja-se Sousa, Ilist. gcneal. da casa real, tomo x u , par te n , cap. v m , § 3.°;
Vallet de Virivillc, Moyen-âge et Rennaissance, tomo III, verb . Cerimonial,
Etiquctte; I.acroix, Moeurs, usages ct costumes au Moyen-âge, verb. Cérc-
monial, pag. 535 . 1 «As mezas estavam m u i g u a r n i d a s . . . hú era ordenado dc comerem fidalgos
e burguezes do lugar & donas & donzellas do paço c da cidade.» Lopes, parle II, cap. 96.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 9 3
II
Não sc cuide lodavia que desde aquellc lempo ficasse ininterruptamente mantida na côrte portugueza a regra de terem as senhoras logar nos banquetes. Ainda esta graciosa dcferencia mereceram cilas ao animo grandioso de D. João II, cuja côrtc manifestam os documentos haver sido uma das mais louças e galantes de nossa historia Mas D. Manuel o desconfiado, o cioso por excellcncia, máo grado a serem então festas e saraus abrilhantados pelas damas da côrtc, não as queria cm sua mesa. Até nos solemnissimos banquetes de natal e paschoa, cm (pie o exclusivo senhor do commercio oriental desenvolvia o mais esplendente apparato comendo em publico, nem a própria rainha collocava a seu lado 2. A mesma proscripção das senhoras presencearam os tetricos reinados de 1). João III c D. Sebastião 3.
Vivendo este, um Legado pontifício, o cardeal Alexandrino, sobrinho do Papa Pio V, e por clle enviado á côrtc portu-gueza em embaixada especial, foi ao atravessar Alemtejo caminho de Lisboa principescamente aposentado nos paços
1 «Na primeira meza comia o marquez dc Vil la-Rcal com as senhoras,
donas, e damas, e na da esquerda o arcebispo dc Braga . . . e pessoas p r i n -
cipacs que eram mui tas , assim homens, como mulheres.» Garcia dc Rezende,
Chron. da vida, etc., cap . cxxiv. 2 Vcja-sc Damião de Goes, Chronica do felicíssimo rei D. Manuel,
parte iv, cap. LXXXIV. 3 El-rei I) . Sebast ião, como sc sabe , era solteiro, mas a rainha sua avó
não habitava o paço, nem consta que jamais assistisse a banquetes dc appa-
rato.
1 3
1 9 4 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
dc Villa-Viçosa pelo duque dc Bragança, D. João, 1.° do
nome l.
Ao grande Ilerculano devemos a traducção d'esla viagem
do Legado, cscripla em italiano por um dos que o acom-
panhavam
É para nós de alto apreço a obra, porque além da ampla dcscripção das cidades e vil Ias que o Legado ia em sua viagem percorrendo, c afora a narrativa de muitos usos do reino, manifesta circumstanciadamente a vida intima da sociedade portugueza em fins do século décimo sexto.
O grande recebimento feito pelo duque dc Bragança, a dcscripção do seu palacio c o adorno das salas, o banquete, o acolhimento original da duqueza ao Legado, o trajar das senhoras, c muitas outras circumstancias vêm pelo auetor minuciosamente descriptas. Algumas aqui notamos.
Foi o duque a duas léguas áquem d'Elvas esperar o emis-sário apostolico 3, e trazendo-o em grande Estado até ao seu
1 O objcclivo d'esta embaixada era propor a I). Sebas t ião o seu casamento
na casa de França c uma liga da Chr is tandadc contra o T u r c o . E l - r e i annuiu
ás duas propostas , mas nem uma nem ou t ra se rca l i sou . 2 Venturino, Viagem a Portugal do cardeal Alexandrino em / 5 7 / , trad.
de I l e rcu lano , Panorama, vol. v, serie 1 .* 3 Eis como o auetor i tal iano desc re \ e esta recepção cm verdade cur iosa:
«Caminhando por bellos c ferieis c a m p o s . . . encontrámos a distancia dc
duas léguas D. João d u q u e dc l í r agança , manccbo dc vinte e nove annos,
de medíocre es ta tura , t r igueiro e d c boa côr, \ i s t a cur ta c de pouco robusta
compleição. . . Vinha vestido com uma capa d e p a n n o razo, aboloado o capuz
com diamantes c fechos dc o u r o . . . o bar re te era d e v e l u d o com fios dc rubins ,
d iamantes , pérolas c o u r o : as calças e ram dc veludo t u r q u i (azul-cscuro)
agaloadas de ou ro . Montava cm um cavallo rodado , cavalgando á gineta c
precedido por dois ginetes, q u e sobre as scllas cober tas dc cscarlata com
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 1 9 o
palacio dc Yilla-Viçosa \ oflcrcceu-lhc ao dia seguinte um sumptuosissimo banquete enriquecido de galantes episodios, notando-se entre esses sahirem, ao abrir grandes pasteis
franjas de ouro traziam duas m a l a s . . . também escarlates com as armas dc
Sua Excellcncia bordadas em brocado dc ouro .
«Vinham qua t ro alcaides e qua t ro meir inhos com varas vermelhas . . . S e -
guia-se a pessoa dc Sua Exccllencia, c a p ó s clle duzentos cavalleiros gent i s -
homens montados á gineta cm bellissimos caval los . . .
«Ao apear -nos á porta do palacio houve grande estrondo de ar l i lhcr ia ,
soaram os atabalcs tocados por prelos, os pífaros t rombetas , tambores e sinos
mostrando ext raordinar ia a legria .» 1 O palacio, o adorno das salas <• ou t ras circumstancias curiosas são assim
dcscriptos pelo a u e t o r : «O palacio é notável, bcllo exterior c interiormente,
c o mais aprazível c commodo q u e temos N Í S I O em I lespanha , cxccptuando
o palacio real de Madr id . O edifício fecha todo cm volta com grandes casarias,
que dão para ja rd ins f resquiss imos, u m dos quacs está a r ran jado ao modo
dc Italia.
Dentro dos paços estão p in tadas mui tas victorias alcançadas pelos duques
de Bragança pr incipalmente contra os castelhanos, e no alto da escada sc
vè a tomada d 'A/amor cm Á f r i c a . . . tudo ornado de r iquíssimos pannos de
Flandrcs.
Os que estão porem na sala q u e fica ao topo da escada da banda esquerda
são de ouro, pra ta c seda, lavrados dc figuras representando uma >ictoria
ganha por Nunalvres , condestavel de Por tuga l , contra os cas te lhanos . . . Dos
mesmos pannos está forrada ou t ra sala também 110 cimo da escada da par le
opposta.
No topo da escada que já mencionei sobre um estrado da al tura dc dois
palmos. . . coberto dc tapetes de seda, havia um doccl de brocado de ouro
debaixo do qual h a \ i a de comer o Legado.
Estava (alli) um aparador grandíss imo contendo peças dc ouro c dc p r a t a . . .
que avaliavam cm 1 3 0 : 0 0 0 escudos de ouro . I lavia abi dois vasos como
armas antigas, duas bacias, dois gomís e duas copas grandes , lavradas de
figuras pr imorosamente . Os vasos dourados eram ofi dc diversos fe i t ios . . .
além dc mui tas taças , c de numero quas i infinito de pratos . A prata era da
mesma qual idade.» Vcn tur ino , Viagem do cardeal Alexandrino, t rad. de
Hcrculano. Panorama, vol . v ( t .* serie) , pag . 338 .
1 9 0 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
durante o serviço dc copa, bandos de perdizes e outras aves. que prasenteiras voavam por Ioda a sala l .
Em o supra mencionado livro encontra-se analyse minu-ciosa des t a refeição esplendida para aquelle século, mas mui acanhada em relação aos que o haviam precedido Não desejando fatigar o animo do leitor, e não devendo aliás regatear-lhe factos (pie revelam o viver social das gerações passadas, em nota especial os exaramos 3.
0 (pie nos cumpre aqui notar em referencia ao (pie supe-riormente dizíamos, c que a este solemnissimo banquete do duque de Bragança nos seus paços de Villa-Viçosa em pleno século décimo sexto não compareceu senhora alguma, nem a duqueza4 , nem suas filhas, nem sua própria mãe, a infanta I). Isabel, que desde que enviuvara a acompanhava.
Apenas ao dia seguinte viram aquellas senhoras o cardeal Legado, que juneto á camara ducal na sala do docel rece-beram sentando-se no chão em um estrado, e em amplo encolhimento 5.
Também sentadas no chão receberam dias depois em Lisboa o mesmo Legado, a rainha I). Calharina (em Enxobregas,
1 «IIouvc a galanter ia de sahi rem voando perdizes c ou t ras aves ao abrir
os pasteis.» Ventur ino , loco citato. 2 E ra ainda dc cinco cober tas , cada uma dc cinco serviços, afora o ultimo
de f ruc ta ,confc i tos e d o c e s . Apezar d ' i sso , os banque te s no século xvi haviam
já decahido ext raordinar iamente do appara to , ccrcmonial c grandiosos epi-
sodios que outr 'ora os revest iam. 3 Veja-se Nota F no fim do volume. 4 Era a senhora I ) . Ca lha r ina , filha do infante I ) . Dua r t e e nela dc el-rei
D. Manuel . Foi por esta senhora q u e herdou a casa dc Bragança o direito dc suecessão á coroa.
1 «Feitos os cumpr imentos ao Legado, o convidaram a scntar-sc em uma
cadeira dc brocado debaixo do docel, c a infanta c a Senhora Calharina
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 197
onde habitava '), e a infanta D. Maria, a elegante cullora das sciencias e lettras patrias (veja-se Nota II no fim do volume) nos seus esplendentes paços a par Sanctos-o-novo. A antiga regente do reino nem docel tinha na sala desador-nada, e como único movei oflercccu ao Legado para sentar-se uma cadeira de couro, collocando-sc cila defronte sentada no chão. Eis o que singelamente refere testemunha ocular que tantas vezes citamos: «Achámol-a cm pó num aposento des-ordenado, como o era lodo o palacio... tendo-se cila assen-tado no chão e o Legado defronte cm uma cadeira de couro, ambos sem docel \ »
Tal fôra a mudança dc costumes (jue após si trazia a diversidade dos tempos! Que anlithesc entre a liberdade sorrindo desprctcnciosa c franca sob o sccptro democrata do rei eleito pelo povo, e o regimen auetoritario c repressivo, com que cm fins do século xvi se achava algemada a socie-dade portugueza!
As algemas foram-sc ainda cada vez mais estreitando—pelo menos exteriormente—até á epocha do marquez de Pombal.
Releve-nos o leitor esta digressão momentanea, sc bem que de todo ponto histórica.
Prosigamos.
no chão sobre um es t rado q u e ficava def ronte .» Ventur ino , loco citato,
pag. 339 .
0 t rajar das pr incczas, as damas q u e as acompanhavam, e out ras curiosas
circumstancias vejam-se em a Nota G 110 fim do volume. 1 Venturino, Viagem, ut supra; Panorama, t o m o 1, serie '2.*, pag. 3 1 1 . 2 Venturino, loco citalo.
CAPITULO XXIII
SUMXARIO. — Uma digressão. — O viver de nossos avós. Es tudo impor tan-
t íss imo.— 1). João II . — Um >iajantc em sua côrte. — Um cavalleiro dc
Borgonha nos paços de I) . AlTonso V . — A juvenil rainha e o regente «Io
re ino.—As duas c ò r t c s . — D . João II na \ ida in t ima.—Revelação de factos
mui cur iosos .—Lisboa tão g rande como Londres .—A côrte cm Setúbal .
—Um cozinheiro de el-rei c o bobo da ra inha .—Uma cs t a l agcm.—Au-
diência de el-rei ao v ia jan te .—Presen tes . Cem cruzados e dois mouros.
—Os portuguezes dVntão . Seus u sos .—As porluguczas. Seus amores .—
Confronto com as inglezas c ou t ras . — Os t ra jos . — Casas e moveis. — O
descobrimento da índia . Transformação na sociedade p o r t u g u e z a . — T e r -
ceiro viajante na córte. — Commcrcianlcs dc Lisboa. Sua opu lcnc ia .—
Aposentos c prec ios idades .— As lojas c o commercio da capi ta l .— índia
em Lisboa .—Volvamos ao Por to .
I
Uma digressão ainda. Será restriclissima. Não ousámos omittil-a, porque revela importantes factos da vida intima dc nossos avós.
Repetimos. Tudo que a este momenloso assumplo possa referir-se, e luz derrame sobre o crer c sentir das gerações que nos precederam, é de immcdiato interesse para a nossa historia social (tão ignorada inda hoje), c de vasto alcance para o estudo da civilisação portugueza.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Disséramos que fôra a côrtc dc D. João II uma das mais louçãs c galantes que tivera o reino.
De feito, diversões solcmnissimas nas grandes festividades do anno, freqüentes corridas dc touros, caçadas c montearias, certames dc luctadorcs, carreiras dc cavallos em que muitas vezes tomava parte o proprio rei, saraus e danças cn que também era clle um dos mais peritos \ occupavam-lhc o limitado espaço que a aridez dos ncgocios, e a lucta horrivel que contra os seus mantinha, lhe deixavam livre
Sc todavia sempre grandioso e esplendido se mostrava cm publico o filho dc AlTonso V, 110 traclo particular pulo contrario mantinha-se restr ido e dcsprctcncioso. Nunca a par da rainha comia de ordinário, a fim de que, abertas as poilas da grande sala, assistissem, e á sua mesa disputassem quantos no paro tinham ent rada 3 . Nesses dias, que abrangiam a ma-xima parte do anno, era essencialmente comczinho o appa-rato real.
Assim o alfirma em narração preciosíssima um viajante illustrado que, vindo então a Portugal, vio a 1). João II, tra-ctou-o de perto, e, segundo refere, foi por el-rei convidado a jantar cá sua própria mesa 4.
Outra producção notável do século x v 5 historiando a vinda
1 «Foi desenvolto. . . c s ingular (lançador cm todalas danças .» Rezende, Chron. de I). João II. Prefacio.
2 Rezende, loco citato; Ruy dc P ina , Chron. de D. João 11, cap. LXXXII. 3 Garcia dc Rezende, loco citato. 4 Nicolaus vou Popp lau , Viagem por Hcspanha e Portugal, t rad . do allc-
mão de fins do século xv, apud Liske coUect. 5 Chroniquc du bon Chcvalier .lacgues de Lalain. frerc et compagnon de
l ordre de la Toison d or. par Messirc Georgcs de Chastel lain, roi d'armes,
indiciairc des dues de Bourgognc, apud Buchon , collect.. vol. x u .
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 201
a Portugal tio famoso cavallciro dc Borgonha, Jacqucs dc Lalain nos tempos dc D. Affonso V cm o outomno de 1446 4, analvsa meudamente a côrte (1'este soberano, que então sc achava cm É v o r a d e s c r e v e a largos traços uma caçada real, um sarau abrilhantado pelas graças da juvenil rainha que dançou com o grande cavallciro, um banquete nos paços de S. Francisco, em que o infante 1). Pedro regente do reino 3
dava, segundo a praxe, agua ás mãos ao rei seu sobrinho, e ainda outras históricas circumstancias. Estas encontram-se todas adeantc particularmente descriptas \
Por agora, e em seguida ao que acima expozeramos, limi-
1 Fixamos esta data p o r q u e perfei tamente a determina a historia de Lalain
combinada com a chronica dc l luy de P ina e os documentos da chancellaria
de I). AlTonso V no archivo nacional . Chastcllain aflirma que o famoso caval -
lciro fora recebido em Évora depois do mcz dc ju lho de 14ÍG. Kuy dc Pina
c os documentos da chancellaria provam q u e cm Évora se achava cfícctiva-
mente naqucllc tempo a côrte, c que só d'alli veio a part i r cm princípios de
l i 17 para as Alcaçovas, e ao depois para San ta rém. Veja-se Chastcllain,
ut .supra, cap . 37 .° e 3 8 . ° ; Ruy de P i n a , Chron. dc D. Affonso V, cap . 87 .°
e 89.° , e arch. nac . da torre do tombo, liv. da chancell. de D. Affonso V. 2 Os mesmos escr iptores c documentos. 3 Assim que Affonso V completou quatorze annos , o infante D. Pedro com
a lealdade cm que era typo june tou côrtcs em Lisboa ( janeiro dc 1 H 6 ) , c
ahi entregou solemncmentc o governo a seu sobr inho perante o s T r e s Estados
reunidos na grande sala dos paços d 'Alcaçova. O soberano quiz porem que
o regente continuasse governando, c assim sc conservava, quando o caval-
lciro Lalain esteve cm Por tuga l . Andados a lguns mezes, AlTonso V recon-
siderando, exigiu a entrega do governo que o infante para logo lhe volveu,
seguindo-se os desastrosos successos q u e vieram a produzir a tragédia de
Alfarrobcira . Kuy dc P ina , Chron. de I). Affonso V, cap. 8G.* c 8 8 . ° ;
Bibliothcca Nac. d e Lisboa, sala dos mss . Cortes do reino, tomo II, pag . 2 7
doe. do cartorio de Si lves ; José Libera to F. dc Carvalho, Essai historico-
politique de la constitution ct du gouvernement dc Portugal, cap. iv, pag. 4 2 . 4 Veja-se Nota I no fim do volume.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
tamo-nos a transcrever algumas das mais interessantes nar-rações do viajante que a 1). João II visitara, e com seus pro-prios olhos vira o que assim descreve:
II
* El-rei como um senhor de alta intclligencia contenta-se com quatro, ou cinco pratos á sua mesa; bebe unicamente agua tirada do poço sem assucar nem especiarias, c passa sem outra coisa. O príncipe seu filho usa de vinho mesturado com agua, come dos mesmos pratos que seu pac, mas em separado serviço. Oscreados da mesa que assistem a el-rei c a seu filho são geralmente em numero dc dez, estão de pé, collocados por ordem deante da mesa, apoiam sobre esta as mãos c os ventres, e el-rei, como se fôra senhor humilde, sofire estas grosserias '.»
«Debaixo da mesa e aos pés de el-rei estão sentados seis ou oito moços pequenos e a cada lado um para sacudir-lhe as moscas com leques de seda 3. Entre ellcs reparte el-rei o seu primeiro prato de frueta, quando não pode comcl-o todo. Se não ha convidados á mesa, não sc serve de facas, e trinca com os dentes, ou parte com as mãos o pão, como
1 Tem razão o a i ic lor -v ia jan tc ; mas para estas grosserias ha attenuante
nas seguintes palavras de R u y dc P i n a : «comia (el-rei) com tanto vagar e
detença, que a elle fazia damno , c a todos que sua mesa aguardavam era dc
tanto nojo e cançasso, q u e sem m u y t a pena , toda a não podiam soíTrcr nem
a turar .» Pina , Chron. dc I). João II, cap . r .xxxn. 2 E r a m os mocos fidalgos Pe rpc tuou- sc ainda duran te séculos o mesmo
costume.
Vê-se que este uso existia na côrte já antes da descoberta da índia.
203 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
faria el-rei de Polonia, ainda que tivesse faca juncto a si l. O filho dc el-rei usa de uma faca á mesa. São ambos ser-vidos em pratos e vasos ordinários, como sc fossem príncipes de uma côrtc de pouca importancia.»
«Naquella côrte existe um costume singular: beijarem a
mão ao rei. •
«A cidade de Lisboa será tão grande como a de Colonia, ou Londres de Inglaterra 2.»
«De Lisboa a Satubcr 3 ha seis milhas. Alli encontrei el-rei de Portugal 4. A entrada e juncto a uma das portas da villa pude colher um albergue com meus dois crcados na morada de um sapateiro.»
Continua o auetor narrando (pie d esta casa fôra tirado por dois olíiciaes do paço que levavam ordem de somente repartir pelos (pie tinham-aposentadoria regia as pousadas da villa: Que vindo clle recommcndado a um cozinheiro de el-rei (allcmão), este cm nada o auxiliara, e que por um bôbo da rainha, o qual faliava a lingua de Brabantc, lograra por fim albergar-se no que em Portugal chamam Stallassmn onde cada qual vive por seu dinheiro, bem ou m a l 6 .
1 Alludc o auetor allcmão a uma antiga practica seguida cm Polonia. 2 Facto notável, e q u e hoje pareceria inc r i \ c l . 3 Setúbal . 1 I) . João II achava-se cflcctivamcnte naquel le tempo em Setúbal . Foi
então que matou alli o d u q u e de Vizcu. O auc to r -v ia jan lc entrara cm P o r -
tugal, segundo refere , nos fins de ju lho (1484) .
' Es ta lagcm. c En t re muitos aecidcptes curiosos menciona o auetor este que lhe sue -
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Ao depois proseguc:
«Vendo eu que todos me desprezavam (não querendo que fosse ao paço) tomei a resolução de apresentar-me eu mesmo a el-rei ás horas do seu jantar l. Apenas me apercebeu per-guntou-me por intermédio de um doutor se me haviam desi-gnado pousada, accrescentando que tivesse paciência, c que depois de comer, S. M. me concederia audiência. Findo com cííeito o jantar, el-rei mesmo me levou á sua camara. Alli proferi o meu discurso deante de el-rei, (pie m o acolheu e a mim proprio com muita graça 2.»
«El-rei entre todos os seus ó só c único senhor de alto
merecimento.»
«Em todo o tempo da minha rcsidencia (na côrte) man-
dava chamar-me á sua mesa c egreja, c me honrava tanto,
•
cedeu na estallagem: Deram-lhe alli um qua r to para «'11c c os crcados. A meia
noite quando já dormiam, entraram dent ro do mesmo quar to moças alegres
acompanhadas dc ladrões, c começaram a b r a d a r : «Quem são es les ladrões
que dormem no nosso quar to?» E logo alli por gosto dYlles o haveriam
despachado, mas ca lmaram-se , c foram col locar-sc sobre as camas a par
d'cllc e dos crcados, começando então a jogar os naipes (assim chamavam
então ás cartas) c cont inuando até de manhã . A mesma ceremonia repetia-se
nas noites seguintes. Popplau , loco citato. 1 Não pareça ex t ranho este facto. I) . João II, como atraz fica dieto, comia
em publico abr indo-sc as por tas da sala apenas começava o j an ta r , c havendo
livre en t rada . 2 E ra então uso cm todas as córtcs de Eu ropa qua lque r indivíduo, adroit-
tido á presença do soberano, d i r ig i r - lhe um d i scurso , de ordinário mui longo.
D'cssc ant iquado uso provém ainda hoje os discursos q u e pronunciam os
ministros plcnipotcnciarios ao ent regar a credencial respectiva.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA m
que á mesa me fazia sentar ao seu lado, e na egreja me conservava cm pé juncto á sua cadeira.»
«Com este soberano me demorei até á véspera nalivitaíis Mariae (7 de setembro). Pela manhã me despedi d clle, accumulado de favores, de passaportes por mar e terra c de cem cruzados.»
«0 thesoureiro recebeu ordem de comprar dois dos me-lhores mouros (pie se encontrassem, c em nome de S. M. oflereccu-nros dc presente. Mandei-os vestir desde logo, porque estavam nús como Dcos os fez. Em sua terra não precisam vestir-se por causa dos grandes calores. Vivem dc mistura com os animaes l.»
«Os portuguezes são folgasões, c não gostam de trabalhar. São entre si, c com o seu rei (cxccptuando os nobres), muito mais fieis que os inglezes. Não são tão cruéis, nem desas-sizados como estes. Em suas comidas e bebidas são mais moderados, porém mais feios. Tem a côr morena c o cabello negro; usam capas negras e largas, unidas ás costas, como os Agostinianos; poucas mulheres tem bellas. Parecem estas mais homens que mulheres, porém com olhos negros e for-mosos; em amores são ardentes como as inglczas, quando necessitam intima confiança. Penteiam o cabello sem exag-gerados adornos, e cobrem o peito com um laço dc lã, ou com um lenço de seda 2. Deixam olhar livremente para o rosto, e
1 O auetor allcmão designa sob o nome de mouros os negros da costa
d 'Africa. Aos mouros denomina pagãos. 2 Ainda hoje N igora este uso nas classes ba ixas c pr incipalmente no campo.
2 0 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
levam camisa c vestidos degolados ao ponto de que sc llies pôde ver a melado do seio descoberto. Da cinctura para baixo vestem muitas saias, o que as torna galantes e tão volumosas, como nunca vi em outra parte. Não são tão amaveis como as Lombardas ou as Franeezas.»
«As casas não estão providas de mobília, nem de trastes
de uso doméstico, nem tão limpas, como as das referidas
nações '.»
Até aqui o viajante allemão. Em nome da verdade cum-pre-nos porém notar que um século adeante, e principalmente depois de descoberta a índia haviam aqucllas condições da sociedade portugueza feito radical mudança. Assim o prova a narração de outro viajante, o illustrado Thiago Sobieski (pae dc João Sobieski rei dc Polonia), que visitara Portugal cm 161 i . Diz elle em seu livro:
«Entre os commerciantes (de Lisboa) encontram-se for-tunas fabulosas. No interior de suas casas surprehendcm as riquezas em lapizes e em pratas. Um commerciante portuguez por nome Dento preparou-me um aposento tão precioso, tão alcatifado e aromatisado de suavíssimos perfumes, que o proprio rei de Polonia haveria podido habital-o. Esta casa possuía preciosidades sem numero c cousas raras das índias. As lojas e casas de commercio de Lisboa estavam cheias de similhantes objectos, e ao entrar dentro parecia que sc eslava vivendo naquelles paizes 3.»
1 Nicolaus vou Popp lau , loco citato. 2 Thiago Sobieski , Peregrinação, I r ad . do polaco dc princípios do sc-
culo X V I I , apud Liskc, iv. J T . Sobieski, loco citato.
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 2 0 7
Muitas outras circumstancias curiosissimas referem ainda aquelles viajantes dos seeulos xv e xvn acerca do viver c sentir da sociedade portugueza nos alludidos seeulos. Fol-garíamos de cilal-as todas, se espaço houvéramos, e dc sobra não fôra já o que fica escripto.
Retomemos pois o fio da narração interrompida. Volvamos aos paços episcopaes do Porto, e sigamos o opulentissimo banquete com que, segundo fica dicto, o vencedor dc Alju-barrota celebrava—de bom ou máo g r a d o — o auto solcinne do seu consorcio.
CAPITULO XXIY
SOMMARIO . — Um banque te de nupeias na e d a d e - m e d i a . — Entremeies.—
Saltos e vo l te ios .—Jograes por tuguezes c m o u r o s . — D a n ç a s . — A s donas
cantando ao redor da s a l a . — D i a c no i t e .—A c e i a . — O passeio das tochas
cm festa dc bodas .—Proc i s são á câmara r eg i a .—As senhoras despem a
no iva .—Acompanhamento do no ivo .—A benção do le i to .—A copa n u -
pc ia l .—O dia s e g u i n t e . — T o r n e i o s e jus tas reaes .—Vencedores c e x t r a n -
ge i ro s .—Prêmios e presentes .
I
Para aos usos medievaes ser em tudo consoante o ban-quete de nupeias, cuja descripção encetaramos, também nos inlcrvallos dos serviços culinários se realisaram entremezes. Não constaram estes de representações scenicas ou panto-mimas, nem cantores ou ministreis ensoavam altas musicas. Jogos variados de lruões e jograes trepando cm cordas e torneando mesas, preencheram os intermédios Neste jogar eram, como vimos, insignes os portuguezes, c mais ainda os mouros agremiados pelas almuinhas deReslello, ou na mou-raria de Lisboa.
1 «Em quanto o espaço do comer durou faziom jogos, á vista de todos,
homens que o bem sabiom fazer , assi como t repar em cordas & tornos dc
mesas & salto real, e ou t ras cousas de sabor .» Lopes, pa r te 11, cap . 96 .°
14
190 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA
Sabido é que sendo por lei defeso a mouros e judeus morar entre christãos, viviam cm bairro separado, no ex-tremo de cujas ruas havia correntes que as cerravam, quando tangia o sino da oração (ave marias). «Entre estes mouros, escreve o auetor do Ensaio sobre os poetas portuguezes, espe-cialmente da mouraria... havia muitos (pie tomavam o oflicio de truões, e grangeavam a subsistência fazendo habilidades e equilibrios pelas praças, ruas e casas particulares cantando cantigas arabes, o (pie muito divertia os ociosos4 .»
Em fins do século xv havia em Lisboa um celebre jogral mouro por nome Zaide, ao qual o poeta do cancioneiro D. Rodrigo de Monsanto em trovas dirigidas ao conde Prior do Grato alludia nos seguintes versos:
«Dava tacs saltos, tão alto pulava
Mais alto que Zaide ba i lando com touca 2 . »
Ultimado o banquete nupcial, e levantadas mesas con-forme o uso do tempo, ergueram-se todos, e desde logo, e alli mesmo, donzellas e galantes começaram a dançar 3, não mediante o vertiginoso arrôbamcnto das orchestras dc nossos dias, mas ao simples e cadcnccado som das canções, que as
1 Costa c S i l \ a , Ensaio, tomo i , cap. xxvi , pag . 2 0 6 . 2 Ve jam-sc no cancioneiro dc Rezende as t rovas do referido poeta, e
Cos t a c S i l v a , loco citato. 3 Na maxima parte dos banquetes duran te a edade-media os convidados
ficavam na própria sala depois da comida, e nesse intui to levavam os var-
letcs todas as mesas para ficar dcsempachada a sala e começarem as danças.
Isto sc practicou, segundo refere a chronica, naqucl la solemnidade.
D. JOÂÜ 1 K A ALLIANÇA INGLEZA 2 1 1
donas sentadas em estrado mui baixo ao redor de toda a sala cantavam em coro com grande prazer
Duraram tacs folganças o resto do dia entrando pela noite até á ceia. Após esta deu remate ao serão o passeio das tochas, dança rigorosamente prescripta para noite de bodas 2 . Cada cavallciro c escudeiro nobre tomou então como par uma dama, e todos com tochas accesas nas mãos 3 procu-rando cada um apagar a (pie os outros levavam, e evitando que lhe apagassem a que trazia foram ao som da musica desfilando em passo harmonico atra vez das salas.
Esta dança, ou antes passeio, era então acto obrigatorio, como dissemos, cm noite de bodas.
A ceremonia, tão cxtranha a nossos actuaes usos, seguiu outra mais cxtranha ainda, e não já profana senão sacra. Era a coróa das solemnidades matrimoniaes na edade-media.
0 arcebispo de Braga empunhando o baculo, como nobre-mente meneara a espada, c acompanhado pelos bispos e demais prelados, dirigiu-se processionalmente em toda a
1 Lopes, loco citato. 2 Lacro ix , Moeurs et usages au Moyen-âge. verb. Jeux et divertissements,
pag. 285 . 3 «Chaquc danseur por te en main un long cierge al lumé, et a grand soin
d 'é \ i ter que ses voisins ne 1'éleignent en souíTIant dcssíis. Cetle danse, qu i
fu i usitee ju squ ' à la On du seizieme sièelc dans les fètes de eour , é tai t géné -
ralement réservée pour les noces .» Lacroix, Moeurs ct usages. verb. Jeux
et divertissements, pag. 2 8 o . 4 Es te uso medieval c a inda agora , como todos sabem, reproduzido
annualmcntc cm Roma ao cabir da noi te de terça-fe i ra dc en t rudo na d i -
versão denominada «Imoccolelti.» O corso c as jancl las que o bordam são
occupados por milhares dc pessoas tendo cada uma d*eslas uma vela na mão,
que procura conservar accesa, e apagar as que os vizinhos tem da mesma
fôrma, fc lueta incessante dc jogos e r isos.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
pompa do culto catholico aos aposentos regios, a fim de benzerem o leito nupeial. Precedia-os com tochas accesas toda a comitiva dc senhores e cavalleiros, inglezes c portu-guezes, c todos entraram na camara l .
II
No cmtanto, segundo praxe medieval que chegou quasi a nossos dias, as senhoras casadas haviam seguido c collo-cado no leito a nova esposa 2. Também o noivo, a quem até á porta acompanhara folgasã a turba dc cavalleiros velhos c moços soltando as desregradas expressões e trocadilhos consoantes ao dia 3, sc achava já deitado.
0 arcebispo e demais prelados entrando enlão gravemente no aposento rezaram sobre os noivos, e os benzeram segundo costume de Ingraterra 4.
Também segundo costume de Inglaterra lhes foi logo oííe-recido precioso vinho do Douro na copa nupeial que ambos
1 «KlHey se foi cm tanto pera sua Camara , & depois dc cca ao serão o
Arcebispo & outros Prelados cõ mui tas tochas acesas lhe benzerom a cama
daquellas bençoens, que a Igreja pera tal au to o rdenou .» Lopes, parte n ,
cap. 96 .° 2 «Au soir les dames couchérent la niariéc car à clles appartcnoi t 1'oflicc.»
Froissart , liv. h , cap . 229.® i Estes usos prevaleceram até 1834 em certa classe da sociedade po r tu -
gueza. Assim que as senhoras casadas haviam despido a noiva, era o noivo
levado cm t r iumpho pela cohortc galhofeira dos convidados a té á porta da
camara, c entrando clle, c cer rando a porta á chave, soltavam os dc fora as
mais certeiras imprecaeões em altos brados . Es te s prolongavam-se por longo
espaço. 4 Fernão Lopes, Chron.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
libaram, passando esta de mão em mão aos lábios dos que presentes eram ! : «E, accrcseenta a chronica, ficando el-rei com sua mulher, forom sc os outros pera suas pousadas.»
Estas ceremonias dc todo ponto alheias a nossos dias, mas de incontroverso rigor historico, pozeram remate ás bodas dc D. João I.
Achara-se em laes solemnidades também presente, como dissemos, o bispo castelhano dc Aquis e de Jacn. Vindo noutr ora a Portugal com o conde de Cambridge em tempos dc el-rei I). Fernando, havia elle aqui realisado já benção nupcial idêntica 110 dia, em que o rei portuguez efieituara nos paços d alcaçova de Lisboa os esponsaes de sua filha herdeira que oito annos mal contava, com o filho do conde de Cambridge quasi da mesma edade.
As duas crianças haviam durante o acto das bênçãos sido collocadas 110 mesmo leito, coberto este de uma colxa riquís-sima, que foi posteriormente dada a el-rei de Castella por occasião do seu casamento com a mesma infanta. «Era, diz a chronica, havida 110 reino vizinho por mui rica obra, qual outra hi nom havia \»
Ao dia seguinte a horas dc véspera seguiram-se cm pre-sença da rainha c dc donas c donzellas inglczas e portuguezas
1 Adams, Ilist. of England. tomo n , cap . v i u . Vcja-sc Matrimoniopresso
gli Ânglo-Sassoni, apud Fcr ra r io , tomo v i ; Inghilterra, pag. 100. 2 Lopes, Chron. delrei I). Fernando, cap. cxxx. Esta colxa era dc tape-
çaria negra tendo cm meio , bordadas a pérolas, duas grandes figuras de rei
e dc ra inha . A bordadura de redor formavam-n 'a arquetes dc aljofar com
figuras bordadas representando as l inhagens dos fidalgos dc Portugal com
as armas dc cada um, tudo em alto relevo. Lopes, loco citato.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
brilhantíssimos torneios c justas, onde, aflirma a chronica, •justavam c torneavom grandes fidalgos e cavalleiros, e outra gente nom Ás noites prolongavam-se as mesmas danças e cantarcs. Por quinze dias duraram estas festas rcaes
Sobre o resultado das justas nada escreveu Fernão Lopes, mas assegura Froissart (pie foram grandes, fortes c bem jus-tadas, cabendo os prêmios entre outros a messire Jchan de Ilolland c a Vasco Martins dc Mello. Segundo o cstvlo olíe-receu el-rei valiosas dadivas aos extrangeiros que ás suas bodas haviam concorrido \
Assim, com tacs alegrias e folgares, diz o chronista fla-
mengo, foi acolhida festejada c desposada a rainha de Por-
tugal 4.
1 Lopes, parte 11, cap. 97.° 2 «Por quinze d i a s . . . d u r a r a m as festas c jus tas rcaes .» Lopes, loco citato. 3 «Et y ot du roi aux étrangers bcaux dons donnés .» Froissar t , liv. m ,
cap. 53.° 4 Froissart , ut supra.
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CAPITULO X X V
SUMARIO. — Invasão dc C a s t c l l a . — P a r t e m cl-rci c seus cava l l c i ros .—O
duque sobre a f r o n t e i r a . — T r á s - o s - M o n t c s . — E n c o n t r a m - s e . — Y i c l o r i a
hypo the t i ca .—Demora pe rn i c iosa .—A embriaguez dos ingleses e a a r -
dcncia do c l i m a . — A pes t e .—Out ros flagcllos.—Mortandade horrível na
hoste ing leza .—O rei de Portug.il cm terra in imiga .—Imponentes forras .
— Os alliados e as princezas de Lancas t e r .—Transpõem a f ron te i r a .—
Tudo f o g e . — T e r r o r nos in imigos .—Acode- lhes França poderosamente.
— A defesa em Cas t c l l a .—Tac t i ca ardi losa. — Carlos V c o duque de
Lancas ter .
I
Passara havia muilo o praso capitulado entre João I c o duque de Lancaster para junetos realisarem a invasão de Castclla.
Ultimadas as festas, apressou-se el-rei a ir á frente dc seus cavallciros e homens d'armas reunir-se ao sogro, que já em Trás-os-Montcs o aguardava cerca da fronteira f.
Oito mezes havia que o duque aportara cm Galliza, seguido
de vinte mil inglezes considerados então, como temos dicto,
os primeiros pelejadores da christandade.
1 Lopes, par te n , cap. 99.®
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Sc desde logo João de Gaunt unisse a sua ainda então potentissima hoste á que segundo o tractado dc Ponte do Mouro devia fazer prestes o rei de Portugal, e se os dois príncipes sem delonga, mediante o que no mesmo tractado sc estipulara, entrassem por Castella, haveriam facilmente colhido, como já fica evidenciado, a conquista d aquelle reino, que em total carência sc achava então de capitães e gentes de guerra
Mas a demora do duque em terras de Galliza c Portugal durante oito mezes de prolongado ocio foi de todo ponto fatal ao bom êxito de seus designios, dando causa a que os castelhanos sc fortificassem, e a que lhes chegassem de França os imponentes soccorros que haviam sollicitado *.
Naquelle diuturno espaço, tão mal baratado pelo filho de Eduardo III, o abuso dos vinhos e a vchemcncia alcoolica des t e s 3 , prostrando-lhe pelas estradas cm contínua embria-guez homens d armas e archciros 4, a ardencia do clima alta-mente nocivo ao temperamento inglez5 , a peste, a dysenteria exacerbada com o apparecimento do est io6 , as febres clima-
1 Froissart , liv. III, cap. 7 8 . ° ; Mar iana , Ilist. dc Espaiia; Lafuente, parte II, liv. III, pag . 379 , 1 edição.
2 Froissart , liv. III, cap. 78 . ° 3 «Les vins ardents ct forts lcur rompoient les letes, ct scchoicnt les
entrailles.» Froissar t , loc. cit. 1 «Ccs archcrs buvoicnt tant qu ' i l s se couchoicnl lc p lus d u temps ivres.»
Froissart , liv. m , cap. 23 .° 1 «Anglois étoicnt là nour r i s d*ardcur ct dc chalcur .» Froissar t , liv. III,
cap. 78 .° 6 « I Iuus morriom dc pcstclcnca & out ros dc cor rcnca .» Lopes, p a r t e » ,
cap. 100.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
tericas 1 e a malquerença das povoações2 dizimaram a hoste do duque ao ponto dc, quando entrou por Castclla, só lhe restarem seiscentas lanças e seiscentos archciros. Mais de dois terços dc suas gentes haviam perecido victimas dos indicados flagellos 3.
Por sua parte ostentava-se o rei portuguez caudilhando forças numerosíssimas para a estreiteza do reino, e supe-riores em quasi o dobro ás que, segundo o tractado de Ponte do Mouro devia presentar. Obrigara-se el-rei a soccorrcr o duque seu sogro com duas mil lanças, mil besteiros e dois mil peões. Em vez d isso poz em campo tres mil lanças, dois mil besteiros e quatro mil peões. Quasi o dobro.
Era a primeira vez que o pendão glorioso do vencedor entrava terra de inimigos. Devia manifcstar-sc-lhcs temeroso c grande. Sc em batalha campal o aguardassem, cumpria que certa fosse contra elles a victoria.
Não sc aíToitaram a tanto os castelhanos.
Reunidas cerca dc Bragança as duas hostes alliadas A, c acompanhado sempre o duque de sua esposa c filhas (á ex-cepção de Filippa que sendo já rainha de Portugal ficara em
1 «lis mourroient sur lc chcmin dc c h a u d . . . avoient . . . fievres ct frissons
p a r les g r a n d e s c h a l e u r s . » F r o i s s a r t , loco cituto. 2 «I)'ellcs ma tauom por esses boscoens óc dcuczas os que achauom andar
buscando manl imento pela t e r ra .» l.opcs, parte 11, cap. 100.° 3 í . o p c s , loco citai o. 4 Froissart cm seu invariável costume dc al terar os nomes chama a B r a -
gança Auranche, c Ruchon cor r ig indo-o incorreu também em equivoco
emendando Auranche por Orensc . A esta cidade em Galliza nunca foi
D. João I.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
Coimbra ') , transpozcram finalmente portuguezes e inglezes a fronteira inimiga em fins de março (1387) entrando por
terra de Alcanizes 2. Ninguém encontraram que lhes tolhesse o passo. Tudo
ante os adiados havia fugido.
II
Escarmentado pelos anteriores revezes, devancando-lhc a mente, como visões terríveis, Aljubarrota, os Atoleiros, Valvcrde e Trancoso, não ousara o rei inimigo sahir ao encontro dos invasores. Pelo contrario 3.
A vinda dos inglezes contra Castella atterrara por tal arte o filho de Henrique de Trastamara, que mal soube que o duque de Lancaster se determinara a sahir dc Inglaterra
1 Lopes, pa r te u , cap. 99 . ° 2 Diz Fcrnão Lopes que os alliados passa ram a raia a 2 5 dc março. fc
equivoco. No dia 26 estavam ainda cm Por tuga l , pois nesse dia na aldeia
dc Babe, termo dc Bragança, firmaram o d u q u e c a duqueza um acto de
cessão perpetua a D. João I dc quaesquer direi tos q u e podessem haver sobre
os senhorios dc Por tugal . Ve ja - se o respectivo documento em Soares da
Silva, Memórias de el-rei I). João / , tomo iv, docum. xi , pag . 67.
Taes cedencias, c ainda as que menos razão t inham dc ser , tornavam-se
freqüentes naquel las eras . Depois de velha c c lausurada a Excellente Se-
nhora cedia as coroas dc Castella c Leão cm favor dc D. João III dc Por-
tugal. A herança não valia o custo do pergaminho que a continha. Existe
o documento original na torre do tombo, gavet . 13 , masso 9 , c está im-
presso cm Sousa, Provas á hist. genealog. da easa real, tomo II, doe. 13. 1 «EIRcy dcCastcla avisado por la perdida pasada nõ sc queria arr iscar . . .
dc venir a bajal la .» Mariana , Ilist. dc Espaiia, l iv. X V I I I , cap. 12.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 19o
enviou com a maxima instancia pedir a França quantos soccorros podcssem dar-lhe
Partiram d'este reino em continente diversos capitães caudilhando as terríveis companhias de aventureiros que enormes estragos vieram ao depois a causar em Castclla e principalmente na Galliza
A maxima parte dos senhores e cavallciros francczcs achava-se então ao norte do territorio, dedicados todos, como atraz fica dicto, á projectada invasão dc Inglaterra. Assim porém que abortou a grande idèa, concorreram clles dc toda França cm auxilio dc Castclla e 110 intuito de guerrear os inglczcs. O proprio Carlos VI então reinante enviou seu tio o duque de Bourbon com duas mil lanças. Chegou tarde 3.
No cmtanto por conselho dos primeiros capitães francczcs que ao serviço de João de Castclla foram assoldadar-se, como referimos, mandara elle arrasar todas as povoações chãs, e que os habitantes com seus haveres e quantos mantimentos pelos campos se encontrassem os recolhessem nos logares acastellados 4.
Ordenara mais o rei inimigo que fossem esses logares quanto possível fortificados e guarnecidos, não só pelas innu-meras companhias de aventureiros francczcs que em seu
1 «Et mandoi t souvent son é l â t . . . en Francc cn pr iant que on lui volsist
envoyer grands gents d ' a rmcs pour aider à défendre et garder son royaumc.»
Froissart, liv. m , cap . 37 . ° 2 Froissart , liv. m , cap . 35 .° 3 «Et disoient-on q u e c'étoit per reconfor tcr 1c roi d 'Espagne, et mcttrc
hors les Anglois dc son pays .» Fro issar t , l iv. m , cap. 50." Vejam-se Ayala,
Lafuentc, Fcrnão Lopes e demais his tor iadores . 4 Froissart , liv. w , cap . 33-°
2 0 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
a u x i l i o i a m chegando 4, senão ainda pelos moradores de Leão c Castella conccdendo-se o fôro de fidalgo a cada um dos que em tal conjunctura viesse servir com armas c cavallo. «Tal e r a o aperto», diz um sezudo escriptor liespanliol \
Tão extranha concessão foi posteriormente confirmada
pelas côrtes de Palcncia (1388) .
Rcalisadas as determinações referidas, deixava o caste-
lhano todo o territorio devassado aos inimigos, mas inteira-
mente desprovido de mantimentos 3.
Realisaria a fome o que não haviam podido lograr as
armas. Era a tactica ardilosa do arteiro filho de João, o bom Carlos V, o advogado, como zombctcando lhe chamava o
duque de Lancaster \
1 «Et cut là grande chevalerie dc Francc .» Froissar t , liv. III, cap. 58.° 2 Mar iana , Ilist. gen. dc Espaiia, liv. x v m , cap . x, pag. 31o . 3 «Nous nc les pouvons micux dcconfirc q u e dc nom combat t rc .»
«Laira- t -on les Anglois ct les Por t ingalois allcr ct venir parmi le pays
de Castillc. Ils n 'cmpor tcront pas lc pays quand ils s 'cn i ront .»
Estes alvitres apresentados no conselho do rei castelhano foram suggc-
ridos pelos famosos capitães Lignac, c de Passac, os quaes removido o pro-
jccto dc invasão á Ingla ter ra , enviara com suas companhias o rei de França
por vanguarda das forças q u e segu i r i am, como effectivamcntc seguiram o
duque dc Bourbon. Froissar t , liv. III, c ap . 50 .° c 58 . ° 4 A este proposito conta Christ ine dc P isan a seguinte aneedota : «En la
p rcsencc . . . du roy d 'Anglcterrc cschut à par lc r du roy dc Francc ; si v ot
aucuns barons qui distrent q u e c'cstoit un moul t sage pr incc ; dont alors lc
duc dc l .ancastre va dirc «que ce n'estoit q u e un advocat .» Quant lc r o j
Charles ot oy cc conte d i r e . . . il respondy en sour ian t . «E t sc nous sommcs
advocat, nous leur bast irons tel plait dont la scntcnce leur cnnuycra .» Livre
desfaits... du sage roy Charles V, pa r te n i , cap . xxix, edi t . Pcti tot , tomo vi,
Pag. 58 .
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 19o
Essa tactica havia eflecti vãmente salvo poucos annos antes a França inteira depois das assombrosas rotas de Crécv e Poitiers. Ao mesmo syslema recorria agora o attribulado senhor de Castclla.
Vejamos entretanto como procediam os alliados que, trans-posta a fronteira portugueza, pisavam já terra inimiga.
CAPITULO X X V I
SIMMARIO.—Avnnram os a l l i ados .—A festa dc R a m o s . — B c n a v c n l c . — U m
mez dc c c r c o . — P o r t a s ce r radas .—Cas tc l l a i naba lave l .—Rarcam os i n -
glezes.—A peste c o c l ima.—É! o d u q u e desamparado dos seus. Adoece.
— Incólume a hoste p o r t u g u e z a . — A f o m e . — P a s s a g e m do D o u r o . — I n -
glczcs sa lvam-se atravez dc Cas tc l l a .—Por tuguczcs mantém o d u q u e de
L a n c a s t e r . — N o b r e acção dc 1). João I . — T e r r o r nos cas te lhanos .—Sua
as tuc ia .—A vinda do d u q u e infruet i fera a Po r tuga l .—Propõe - lhe pazes
o castelhano. C o n d i ç õ e s . — J o ã o de Cuunt pe rdu lá r io .—Acode- lhc e l - re i .
—1 ' ranspor tam-n 'o gales por tuguezas . — Seis supprcm cento e t r in ta .
—A frota de Por tuga l vai servir Ing la te r ra .—Convenção opprobr iosa .—
Em vez de seis qu inze m e z e s . — F c r n ã o Lopes confu tado .—Reciproc idade
ingleza.
J
Entrados por Castclla portuguezes e inglczes, sem que força alguma adversa ousasse tolher-lhes passo, dirigiram-se, coino dissemos, a terra de Âlcanizes. Partindo cm continente foram juneto á ribeira dc Tavora pernoitar. Naquellas cer-canias passaram o dia seguinte, que era festa de Ramos. Em seguida marcharam; e avançando sempre até Benavento de Campos (quatorze léguas além do extremo), abi ao cabo dc dois dias de marcha assentaram arraiaes f .
Era Benavente cidade acastellada, e mui defensável. Du-
1 Lopes, par te u , cap . 100 . °
20 í d. j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
rante um mez a cercaram. Embalde. Escaramuças quasi diarias, freqüente correr pontas l, eis o constante lidar, ou antes desenfadamento exclusivo de siliadores e sitiados. Nunca estes porém abriram portas aos invasores. Idêntica reserva guardaram outros logares fortes. Algumas villas c aldeias chãs que não podiam como laes ter-se em defesa, eis tudo quanto lograram haver cm mão os alliados.
Nem um só castelhano alçava o pendão dc Lancaster. Todo o reino mantinha firme a voz dc João de Castclla. «Ninhuma villa, diz Fcrnão Lopes, nom se movia a receber o duque por senhor, nem outros logares, nem gentes ne-nhumas... Todo o reino em hum era contra cllc.» Perdida devia reputar-se pois a sua causa.
Accrcsce que as relíquias da hoste inglcza que ainda o acompanhavam, eram cada dia mais disimadas pelos íla-gcllos atraz referidos, c — sobre todos — pelas febres ma-lignas e pela epidemia reinante 2.
#
A terrível enfermidade succumbiram muitos dos principaes senhores de Inglaterra, como o proprio marechal da hoste,
1 Ifavia essencial differença entre correr pontas e escaramuças. Estas
eram refregas accidcntaes mais ou menos violentas q u e se davam entre
diversos troços de gente inimiga. Correr pontas eram contendas singulares,
como jus tas , rcalisadas a mão a rmada en t re guer re i ros dos dois campos em
espectaculo solcmne, a q u e uns c outros ass is t iam, suspensas momentanea-
mente as hostil idades. Estas diversões medievaes occorr iam dc ordinário
durante o cerco de qua lquer logar fort i f icado. 2 «Maladic Ies p r i t . Chaleurs , fievres et f ro idures les menèrent jusqu'à
la mort .» Froissart , liv. m , cap . 79 . °
A epidemia era a terrível peste bubônica . Veja-se Réligieux dc S.1 Dcnis, Chron. dc Charles VI, liv. VII, cap. 6.°
225 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Ricardo Burley Henrique Pcrcy irmão do almirante Thomnz Percy, o senhor dc Talbot, c centenas de outros. De archciros c meudas gentes pereceram mais de quinhentos. Causa horror a dcscripção que des t a s mortes presentam os escriptores coctaneos
Os poucos inglezes que iam sobrevivendo á catastrophe anhelavam por salvar-se desamparando o duque. Isto pra-cticaram sua própria filha c genro, João de Ilolland condes-tavel da hoste ingleza. Grande maravilha causou a D. João I que cm laes momentos volvessem costas ao príncipe sua filha e o condestavel do seu exercito.
Um e outra, obtido seguro do rei de Castella, atravessaram este reino caminho de Aquitania 3.
Conta Froissart que Ilolland, vendo o desbarato a que haviam chegado os inglezes na península, aconselhara o duque seu sogro que a todos desse permissão dc se ausentarem, dissolvendo-se assim dc vez a expedição britannica. Accres-cenla que. obtida a licença, e ao som de trombetas publicada por todo o arraial, enviara o irmão de Ricardo II emissários ao rei de Castella pedindo seguro para os seus atravessarem aquelle lerritorio, e que, ficando mui contente o rei por se ver ao abrigo de laes adversarios, concedera sob certas con-dições o seguro sollicitado.
1 Sobrinho c herdeiro do famoso Simão Bur ley , um dos privados de
Kicardo II c que maior poder teve cm Inglaterra , sendo a final degollado cm
quanto o sobrinho sc achava nesta guerra de Castella. Froissart , liv. III,
cap. 70.° 2 «Morurcnt dc la mori l le douze barons d*Anglctcrrc ct bien quat re vingts
chcvalicrs ct plus dc dcux cents ccuycrs , tous gentils hommcs . . . d 'archcrs
cl tclles gens plus dc c inqcents .» Froissar t , liv. III, cap. 70 .° 3 Walsingham, Historia brevis, pag . 3 4 2 ; Lopes, pa r te II, cap. 113.°
1M O
d . j o ã o i k a a l l t a n ç a i n g l e z a
Eram as condições:
Que os inglczcs despiriam as armaduras ás porlas de qualquer cidade 011 villa cm que entrassem, e que jurariam não mover guerra a Castclla durante cinco annos l.
Sob taes auspícios mais de mil cavallciros c muitos dos mais distinctos barões de Inglaterra, incluindo o proprio almi-rante, atravessaram então o territorio inimigo para se colherem a salvamento.
Os que mais terríveis que leões eram no lidar das batalhas fugiam agora afracados e temerosos ante os calores e as enfer-midades 2.
A final o duque adoeceu também gravemente. Em França chegaram a dal-o por morto 3.
Incólume se encontrava cm tanto a luzida hoste dos por-tuguezes, isentos da infecção c habituados ao clima \
A fome sobreveio como derradeiro ílagcllo 5. Não encon-travam já os invasores onde forragear c. O pouco que hou-
1 Fro issar t , liv. m , cap . 80 . ° a 82 . ° 2 «II n'y avoit si preux si r iche ni si jo ly q u e il ne fut en grand eflfroi
dc lui mème, et qu i at tcndit au t r e chosc q u e Ia m o r t . » Froissar t , liv. i u ,
cap. 79 .° 3 «Le duc chey en langucur et en ma lad ie . . . t r e s pcri l lcuse.» Froissart ,
liv. n i , cap . 81 . Ve ja - se Duchesnc, Ilist. d'Angleterre, liv. xvi, § 12.°, pag. 9 2 8 .
4 tCcux dc Portugal por toient assez bien celtc pe ine , car ils sont durs
et secs ct faits à l 'air dc Cas t i l l e .» Fro issar t , l iv. m , cap. 7 9 / 4 «Famis acerbi tate vigente pe r i e run t . » l tél igicux dc S.1 Denis , Chron.,
liv. vn , cap. C).° 6 Froissart , liv. m , cap . 7 9 . °
d . j o ã o i k a a l l t a n ç a i n g l e z a
vera csgotara-sc. Os castelhanos haviam encelleirado o resto l .
Coagidos por força maior, accordaram-se então osalliados em voltar a Portugal; e porque não j)arecesse que desistiam da guerra, seguiram outro caminho cortando por sueste sobre Villalpando. A duas léguas, norte de Çamora, passaram o Douro, desceram a par de Ciudad Rodrigo, c vieram por Almeida a entrar no reino 2.
Foi, como hoje se diria, uma campanha circular.
A hoste ingleza csvaccera-sc, conforme notaramos, sal-vando-se cada um como possível lhe foi atravez de Castella. Ficara I). João I com o seu lustroso exercito que por meio do terrilorio inimigo acompanhavam lealmente o duque de Lancaster.
Em defesa d'esle príncipe queria o monarcha portuguez a todo transe continuar a guerra sómente com os seus caval-leiros c homens d a r m a s . Tão nobre decisão que os nossos historiadores ignoraram, comprova-a o testemunho insuspeito do chronista inglez contemporâneo 3. Não a consentiu o generoso filho de Eduardo III.
Era tal porem o terror que os vencedores de Aljubarrota
infundiam por toda a parte, que não ousaram jamais os cas-
1 «II n 'y avoit ni chien, ni chat , n i coq, ni geline (gallinha), ni hommc,
ni femme; tout ctoit ga té , ct desamparé .» Froissar t , loco citato. 2 Lopes, par te 11, cap. 110.° c 113.°, e Fro issar t , liv. III, cap. 79 .° 3 «Hex Por tugal iae (ait) Anglici vos t r i . . . ad hostes r ccedun t . . . vadani
ergo & manus conseram & nul lum cx eis in \ i tam re l inquam.» Wals ingham,
Hist. brevis, pag. 3 Í 2 . *
t ) . j o a o i j : a a l l i a n ç á i n c l e z à
iclhanos approximar-se d'cllcs. A respeitosa distancia se iam conservando, apezar dc lerem já então lorças mui superiores compostas dos numerosos auxiliares francczcs sob o mando de distinclos capitães, cujo principal cabeça era Olivicr Duguesclin, irmão do celebre condeslavel d'este nome, fal-lecido havia poucos annos
A campanha abortara. A astucia do castelhano, desam-parando o lerritorio máo grado á superioridade das forças, logrou o que não houvera podido rcalisar sahindo a campo. A vinda do duque dc Lancaster cm nada aproveitou pois aos interesses dc Portugal, como asseveraramos.
II
Tornado a nosso reino João dc Gauní accedeu por sua parte a vantajosos capítulos de paz que lhe foram propostos pelo rei de Castclla. Com este veio a concertar um tractado cedendo de suasphantasiosas pretenções á corôa, e cm troco dando em casamento Catharina, sua filha e de 1). Constança, ao herdeiro de Castclla. Mais recebeu o duque e sua mulher valiosas sommas como indemnisação, e uma pensão vitalícia
0 que fica exposto demonstra evidentemente, repetimos,que da vinda do duque de Lancaster, e da confederação firmada
1 Froissart , liv. m , cap. 79 .° 2 A indemnisação foi de scisccntos mil f rancos , c de quaren ta mil a pensão
q u e annualmentc recebiam. Ve jam-se os rcspect i \os his tor iadores .
229 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
com Inglaterra ((J de maio 1380) não resullou vantagem alguma a Portugal.
Pelo contrario. Cavallciro como os que mais aprimorados eram, ligado ao
príncipe inglez por vínculos dc alíinidade estreitíssima, foi ainda João I moralmente obrigado a emprestar a seu sogro, um dos perdulários d aquelle século, sommas consideráveis cm prata e oiro, de que nunca lhe pediu retribuição, e (pie nunca provavelmente o duque llie satisfez Além d'isso prestou-lhe el-rei navios que a terra ingleza o levassem com os que ainda o seguiam á.
Sem contar a frota portugueza que de Inglaterra acom-panhara o duque dc Lancasler cm sua vinda á península, cenlo e trinta velas haviam sido então indispensáveis para transportar os vinte mil pelejadores (pie lhe obedeciam. Agora apenas seis galésbastaram para o conduzirem com os poucos que lhe restavam, e iam todos, diz a chronica, mui folgada-mente 3.
A estas ga lés—com pesar o mencionamos — dava con-serva sob o mando dc AlTonso Furtado, capitão do mar \ a luzida frota com que a nação portugueza, mediante a recente convenção que os seus embaixadores haviam capitulado cm Londres, como referimos, ficara obrigada a servir á sua custa
1 «Emprestou ao d u q u e assaz dc p r a t a . . . c dois mil & duzentos nobres . . .
e nom lhe requcrco dcllo pagamento .» Lopes, par te 11, cap. 118.° 2 Lopes, par te 11, cap . l l í ) . 0
3 Lopes, loc. cit. 4 Lopes, pa r te n , cap . 112.°
2 3 0 D- JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA
por seis mezes successivos, ou durante dois verões, a Ingla-
terra, quaes a Inglaterra escolhesse.
Eflectivamente a frota portugueza foi servir Inglaterra, e neste serviço permaneceu, não por seis mezes, não por dois verões, mas por quinze mezes ininterruptos.
0 arteiro Fcrnão Lopes que mui adrede occultara esle facto, c que—segundo já notámos — inulilisaria acaso a íntegra da convenção que o estabelecera, é sobre o mesmo facto não só completamente refutado pelo chronista inglcz Walsingham, seu contemporâneo, aflirmando este que o rei de Portugal enviara ao de Inglaterra uma frota de seis galés para o soccorrer c amparar contra os seus inimigos l, mas ainda ó o proprio chronista portuguez obrigado a refutar-se manifestamente a si mesmo nas seguintes notáveis palavras:
«AfTonso Furtado se partiu d'aquelle logar (Bayonna) para Inglaterra por servir a EIRey, como d'antes fôra concordado, andando por lá espaço de quinze mezesi.»
Ora, as palavras «como d a n t e s fôra concordado» refe-rem-se á convenção para o serviço das galés á Inglaterra, convenção que os embaixadores portuguezes haviam naquelle tempo firmado cm Londres, como dissemos, e que o astuto chronista nem uma vez mencionou.
0 serviço de el-rei, a que o mesmo chronista alludc, era, como também dissemos c provámos, c como antes de nós também disseram e provaram os escriptorcs e documentos
1 «Kcx Portugal iac misit regi Angliac sex Galcyas , ut adjuvarent eum, ct essent illi sola tio contra hostes suos .» Wals ingham, Historia brevis, pag. 318 .
2 Lopes, parte II, cap. 127.°
231 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
que citámos, serviço directo c exclusivo dc homens, armas e navios portuguezes á Inglaterra durante o espaço de quinze mezes, a expensas dc Portugal, c sem que na mínima com-pensação nos retribuíssem.
Tacs foram á luz da historia os resultados que nos pro-vieram então da alliança ingleza. Tal foi a reciprocidade que nos outorgaram os nossos alliados.
#
CAPITULO X X V I I
SUMMABIO.—Retrospecto.—D. João I e a Ing la te r ra .—Único serviço q u e
Portugal co lheu .—Quaes p re s tou . Sua impor tancia .—Val iosos soccorros
ao duque dc Lancas te r .—All ianças com Inglaterra inf rue t i feras .—O reino
l ibertado por esforços p róp r ios .—Por tuga l jungido á influencia b r i t a n -
nica .—A verdade pelos documentos .—Pol í t i ca externa de D. João I .—
Er ros .—Cont inuação ate os nossos d ia s .—Sys tcma util i tário dc Ingla-
te r ra .—Seu proceder com P o r t u g a l . — A b u s o s c resul tados .—Dilcmma
fa ta l .—A historia c o volver dos séculos .—Apreciações inexac tas .—Con-
seqüências.
I
Quando o regente dc Portugal, a braços com diflieuldades quasi invcnciveis, buscou o auxilio de Inglaterra para fazer facc a Castella inteira, c ainda aos que no interior do reino mantinham voz pelo extrangeiro, logrou este reino somente a concessão temporaria de recrutar por sua conta algumas gentes inglozas pagas á custa de Portugal.
Esta vantagem, aliás mui inferior ás que cl-rei I). Fer-nando oblivera no anterior tractado, foi a única em verdade que da alliança ingleza colheu Portugal sob o governo dc I). João I.
Em compensação grandes e mui gravosas foram as des-
d . j o ã o i k a a l l t a n ç a i n g l e z a
vantagens com que a mesma alliança veio então onerar a
nação portugueza.
Pela convenção que os embaixadores do regente firmaram em Londres, como largamente referimos, ficou a nação obri-gada a ir com dez vasos armados em guerra soccorrer, a expensas suas e por seis mezes, ou durante dois verões, a Inglaterra.
Cumpre notar que este soccorro não sc limitou somente a seis galés, como aííirmou o chronista inglez atraz citado. Compunha-o uma frota de dez galés completamente esqui-padas e armadas em guerra abrangendo o numero, assaz valioso para o tempo, dc dois mil trezentos e quarenta homens entre tripulantes c pelejadores. Assim o prova o proprio documento olíicial a que nos temos referido, e que o leitor encontrará integralmente exarado em a Nota E do presente volume.
Accresce que o oneroso soccorro que assim gratuitamente prestámos á corôa ingleza foi ainda aggravado com a duração de quinze mezes ininterruptos.
Mais. Pelo artigo 1 da convenção de 9 dc maio (1380) entre Portugal e a Grã-Bretanha estipulara-se (pie um dos dois Estados seria obrigado a prestar auxilio c soccorro ao outro contra todos os que intentassem destruil-o.
Em porfiada guerra com Castella se achou durante muitos annos a nação portugueza, e jamais a Inglaterra além da concessão feita a Portugal para por conta própria recrutar algumas gentes, lhe prestou qualquer outro soccorro de es-pecie alguma.
235 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Ainda mais. Com o duque de Lancaster concluirá D. Joãol outro tractado egualmcnte oneroso, obrigando-se a scrvil-o durante oito mezes consecutivos, e a entrar por Castella com imponente exercito capitaneado cm pessoa pelo proprio rei, c á sua custa mantido.
Mallograda a invasão de Castella e dc regresso ao reino, foi ainda el-rei moralmente constrangido a emprestar ao sogro valiosas sommas, c a p rove l -o—a expensas p róp r i a s—de galés e gentes que a terra ingleza o transportassem com os que lhe restavam.
Importa ainda notar que a alliança com o duque dc Lan-caster, e anteriormente a confederação dc 9 dc maio com o governo inglez, haviam sido estabelecidas, quando já Portugal inteiro se achava libertado do jugo castelhano, e o inimigo exhausto de forças para continuar a guerra, cm consequencia dc ter durante cerca de quatro annos de lueta incessante e dc contínuas rotas perdido a flor de seus capitães e a quasi totalidade de seus homens d 'armas.
Portugal, j ungido assim á influencia ingleza, c sem des sa influencia haver logrado vantagem importante, ficara solc-mnemente obrigado a servir, como elíectivamentc serviu, á sua custa, por mar c por terra, com gentes, armas e navios os interesses da nação britannica, ou antes o pendão deseus príncipes. E esta a verdade, verdade amarga, mas colhida nos irrefragaveis documentos que deixamos historiados.
Uma prcoccupação, terrível cm si, c mais ainda nas con-
seqüências desastrosas que durante séculos sc lhe tem sc-
230 t) . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
guido, foi então pelo governo de I). João 1 inaugurada como systema invariavel, mas fatal, na política externa da nação portugueza.
Apezar de totalmente derrotados, já os castelhanos pelo sobrenatural esforço de nossas hostes, apezar de aniquilado completamente o poderio dc nossos inimigos, e portanto reduzidos estes á impossibilidade de nos assoberbarem, apezar de se achar a cruz íloreteada de Aviz íluctuando in-vencível em toda a extensão dc Portugal e Algarves, e asse-gurada assim desdeo Minho áfoz do Guadiana a indepcndcncia da nação c a integridade de seu territorio, presumiram os conselheiros do antigo regedor do reino que as armas dc Inglaterra nos dariam auxilio vigoroso para a manutenção d'essa indepcndcncia, que a sós, c sem o soccorro cfleclivo de algum outro povo. linhamos denodadamente conquistado havia pouco, e solidamenle estabelecido.
Esta política dc facilidade, política errada, imprevidente, antipatriotica, e de todo alheia á que a allivcza dc AlTonsolV estabelecera, foi sem maduro exame, e ainda mais sem neces-sidade imperiosa, como acabamos de ver, iniciada cm Por-tugal pelo filho dc D. Pedro I, q u e — n o t e - s e — e r a também o genro do duque dc Lancaster, c o futuro cunhado dc Hen-rique IV de Inglaterra.
Salvas excepções raras, esta mesma política foi intencional-mente continuada pelos successores de D. João I ale aos nossos dias. Tem-se entendido que para a manutenção da indepcn-dcncia pátria seria maravilhoso escudo a alliança da Grã-Bretanha.
Por sua parte Inglaterra com o tradicional systema utili-
d . j o ã o i e a a i . m a n o a i n g l e z a 2 3 7
tario que lhe o reconhecido, principalmente quando se tracta de negociar comnosco, ou na hora do perigo nos tem — máo grado á Icttra expressa dos t raclados—negado soccorro abandonando-nos aos recursos proprios, ou se no decorrer dos séculos algum auxilio nos prestou, foi á custa de dolo-r o s a s perdas de lerrilorio nacional, mediante concessões mais ou menos onerosas, e sempre a troco de maiores ou menores sacrifícios impostos no momento critico da concessão. Do, ut des.
Eis o que nos ensina a historia de cinco séculos. Ou des-amparadosou explorados, tal ha s ido—com pena o dizemos— a sorte dos portuguezes em suas seculares relações com o alliado antigo.
II
A historia 6 a mestra da vida. Sc as gerações que aos tempos de D. João I seguiram
houvessem podido estudar a fundo a natureza das relações internacionacs, e ate certo ponto dc familia, entre aquelle soberano e os reis inglezes; se mesmo houvessem tido conhe-cimento exacto c minucioso das diversas phases porque pas-saram, e conseqüências (pie foram produzindo aqucllas nego-ciações estabelecidas pelo genro do duque de Lancasler; sc Fernão Lopes, o panegyrisla oflicial, tivesse escripto a ver-dade cm vez de occultal-a; se em vez de occultar a convenção de Londres e esconder que os embaixadores portuguezes a haviam sellado rojando a sua pai ria ao serviço de uma nação
2 3 8 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
extrangeira, livcsse o mesmo chronista referido estes faclos, c ainda publicado a própria convenção, como nós outros ao cabo dc cinco séculos publicamos boje por primeira vez em Portugal; se, como a conscicncioso historiador cumpria, tivesse o astuto chronista relatado (pie o povo porluguez, vencedor glorioso em sua terra que dos castelhanos libertara, fôra após a victoria, e quando já risco nenhum corria a sua indcpen-dencia, servir com armas, navios e gentes a nação ingleza, sem obter por este assignalado serviço retribuição especial, como fica demonstrado; sc ás mencionadas gerações tivesse alguém dado noticia da tenue concessão que anteriormente á existencia d'aquelle acto diplomático nos havia sido outor-gada, c que fôra a compensação única recebida por nós de Inglaterra, a par dos eminentes serviços que por mar e por terra c por tantos mezes prestaramos já ao duque de Lan-caster c ás suas phantasiosas pretenções a um throno, já á coróa ingleza e á manutenção de seu territorio, é possível, é natural ate, que essas gerações, predecessoras nossas cm Portugal no volver de tantos séculos, não tivessem — mais previdentes, ou melhor avisadas—incorrido durante o curso de suas relações intcrnacionaes cm alguns dos lamenlosos factos que a historia severa e imparcial deixou largamente exarados.
Prosigamos.
CAPITULO XXVIII
SUMMARIO.—Primordios cconomicos da Grã -Bre t anha .—A agr icu l tu ra .—O
inglez na cdade-media . — As pastagens c a cu l tura da 15.—Venda cm
b ru to .— Inglaterra não fabricava a i n d a . — F l a n d r c s e Florenca. Tecidos
maravilhosos. — l )c um lado o fabr icante , do outro a matér ia p r i m a . —
Infância da civilisação inglcza .—Commcrcio . Ext rangei ros privilegiados.
— Escravidão c a lgemas .—Navegação entorpecida .—Transformação i n -
stantanca de Ing l a t e r r a .—As indust r ias . Engrandccimento assombroso.—
Prior idade dos por tuguezes .—Asia c America .—Decadencia . Mor te .—
llcnascimento após sessenta annos . — Portugal c o antigo alliado. — P e -
ríodo de contemporisaç.õcs.—Cessão dc te r r i to r ios .—Bombaim c Tanger .
—Agonia dos sacr i f i cados .—Recusa dos governadores.—Violências i n -
glezas .—Inflexibi l idade da metropolc. Desmcmbração .—Dòr d ' a lma .—
A allianca inglcza c novos m a l e s . — M c t h v v c n . — 1 8 1 0 . — A escravatura .
— Outros tractados c outros factos. — O presente. — Corra-se o vco .—
Julgue a pa t r i a .—Auxi l io extranho c a indepcndcncia p rópr ia .—Nações
pequenas. — Por tugal compare-se . — O passado c o fu tu ro . Lição c
exemplo.
I
Quando a política secular, a que nos temos referido, foi inaugurada pelo neto de Alíonso IV, em completa antithese á que adoptara a ríspida inflexibilidade do heroe do Salado, não era ainda manufactora a Inglaterra. Apenas da agricul-tura colhia a subsistência.
«Na edade-media, escreve um historiador philosopho, o
d . j o ã o i k a a l l t a n ç a i n g l e z a
excêntrico Michclct, na edade-media o inglez era pouco mais ou menos o que é hoje: bem mantido, propenso á aclividade, c guerreiro porque não sabia ser industrial l.»
Em verdade aquelle povo laborioso c agreste, oecupando então somente parle dc uma ilha, e sobre a outra exercendo dominio ephcmcro, ainda não fabricava.
Tinha a maxima parte dc seu terrilorio absorvido por ferazes pastagens alimentando gados innumeros. Davam-lhe esles as lãs que já então preparava finíssimas, e (pie em mer-cado nenhum dc Europa tinham rival.
«A crcação do gado lanigero, aííirma um celebre escriptor allemão, era desde o século décimo terceiro mais florescente em Inglaterra do que em outro qualquer paiz de E u r o p a \ »
As lãs assim cuidadas eram cm continente vendidas á opulenta Flandrcs, ou á prospera Florença, que as transfor-mavam nos maravilhosos tecidos, assombro do mundo.
0 produeto agrícola achava-se pois dc um lado do estreito; do outro o fabricante 3. A Inglaterra, cuja capital não era então maior do que Lisboa no século xv 4, ministrava a ma-téria prima;outros fabricavam-na, imporlando-lhe depois por alto preço, c já transformados, os seus produclos originários.
1 IlUtoire de France, vol. 111, liv. vi , cap. i . 2 Schcrcr, Ilist. du commcrcc de toutes les nations, t r ad . par I I . Richclot
cl Vogel, tomo 11, § i\. Les Anglais. J Michclct, loco citato. 1 Assim o aííirma testemunha ocular d 'aqucl le século. Veja-se a pag. 203
do presente volume a interessante dcscripção dc Por tugal cm 1 IS Í pelo
viajante allemão Nicolaus von Popplau , q u e visitou então esle re ino.
241 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Tal situação cconomica não attingia sequer a infancia de um povo ei vi lisa d o.
Assim, por largos annos se conservou a hoje opulentissima nação britannica.
Pelo que respeita ao commercio inglez, não se presentava então este soh mais fagueiro aspecto. Em situação prccaria se rojava dependente e desajudado, pois que a exportação e a importação estavam principalmente cm mãos de cxtran-geiros, e extrangeiros privilegiados, como os Italianos, os Necrlandezes e os Anseatas.
Com taes privilégios, e só a extrangeiros outorgados, não podiam de fôrma alguma competir os nacionaes.
Eduardo III quiz abolir estes privilégios odiosos. Em 1353 deu aos inglezes a mesma liberdade de exportar que fruiam os extrangeiros. Mas tendo o rendimento das alfandegas diminuído por este facto, retirou a concessão aos naturaes! 1
O commercio algemado d'est'arte, o commercio cscravi-sado pelo monopolio extrangeiro, c estancando assim em sua origem um dos mais produetivos mananciaes da riqueza publica, entorpecia, como não podia deixar de entorpecer, a navegação.
Taes eram as condições precarias e de summo atrazo cm que se debatia a nação britannica no periodo a que nos estamos referindo, quando as armas portuguezas, as suas galés e gentes foram servir a coróa inglcza.
1 Schercr , loco citato.
16
2 4 2 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Com o volver dos tempos tudo mudou.
Activos, perseverantes, vivendo sob um clima que ao lidar contínuo os incitava, os inglezes incançaveis até alli no mister da guerra, foram-se tornando industriaes.
As vantagens, coibidas pela creação do gado lanigero e pela exportação das lãs, avivando-lbes a sede do lucro c o ardor da especulação, inspiraram-lhes crescente interesse, já pelos progressos agrícolas que a olhos vistos se multiplicavam, já pelo desenvolvimento da industria fabril aproveitando esta como matéria prima as lãs produzidas no territorio proprio, em vez dc serem, como até alli, entregues em bruto ao fabri-cante extrangeiro.
A multiplicidade dos produclos assim creados, o fervor dc cxportal-os, a decadencia dos Anseatas e seus privilégios, o exemplo dos portuguezes rasgando o mysterioso seio dos mares, e para Lisboa transportando, máo grado a Veneza, o emporio de índia e China, tornaram progressivamente os inglezes grandes navegadores.
I I
Também grandes navegadores haviam sido e mui antes dos inglezes os filhos de Portugal. Mas ao arrojo com que cnsinaramos ao mundo o caminho do Oriente, ao esforço com que havíamos fundado o assombroso império de Asia c dc America, succcdeu a decadencia rapida, o desanimo progres-sivo, a morte.
243 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Como a phcnix renasceu todavia o reino dc Portugal. Ao leão quebrara as garras com que por sessenta annos o lace-rara. Mas enfraquecido c despojado, ignorante do que pas-sara c reccioso do que seria o porvir, lançou este reino os olhos para o já então potentissimo alliado, do qual mediante seculares compromissos aguardava opporluno auxilio.
Não o ensinara a historia, ou antes t inham-lha havia séculos alterado adrede, e cm parte completamente escondido.
Á serie dc contemporisaçõcs que tão fatal nos fôra desde o reinado de 1). Sebastião, e que ainda, restaurado o reino, continuou submergindo-nos, novo período, e mais desastroso, sobreveio rcalisando terrível calamidade: a cessão dc terri-tórios. Asia e África, Bombaim c Tanger attcslam o que pesarosos referimos.
Dias de luclo, momentos de crucianle padecer foram aquelles para a nação portugueza sem distineção de classe. Não queriam os vendidos render-se ao dominador extran-geiro. Não queriam seus irmãos d aquém mar que se con-suinmasse o sacrifício, cm que os interesses de todos eram indistinetamente immolados, em que a patria commum ia para sempre ficar fatalmente reduzida e desmembrada.
«Os povos, escreveu com o bom senso que o distinguia o rcccntcmcnte fallecido acadêmico sr. Tullio, cm um dos seus valiosos artigos áccrca de D. Catbarina de Bragança, os povos sentiram vivamente a entrega de Tanger c Bombaim !.»
«Grande era a repugnancia, observa também o historiador
1 Archivo Pitíoresco, tomo xi, pag. 2 1 2 .
d . j o ã o i k a a l l t a n ç a i n g l e z a
brilhantíssimo, e actual ministro da Marinha c Ultramar, o sr. Pinheiro Chagas, grande era a repugnancia que os por-tu^uezes tinham em ceder ao extrangeiro as praças conquis-tadas pelo seu esforço, e testemunhas da sua gloria.»
< A opinião publica era tão contraria á entrega de Tanger c Bombaim, que a rainha regente depois de ter convocado as côrtes... deu contra ordem receiando que os procuradores recusassem sanccionar a entrega das praças l.»
Podíamos accumular as citações.
Ainda uma. O sábio visconde de Santarém, 011 antes o seu continuador illustrado, Rebello da Silva, censurando equi-vocadamente, mas nem por isso com menos injustiça, como adeante provamos 2, o governador da índia, escreveu 110 tomo xviii do Quadro elementar as palavras seguintes:
«A cessão de Bombaim foi a maior calamidade que podia aflligir os estabelecimentos e o poder de Portugal na índia... Cedel-a, como cedemos, equivaleu a cortarmos a cadeia dos nossos estabelecimentos e o poder de Portugal naquella costa, introduzindo uma poderosa nação maritima mesmo 110 seio das nossas conquistas 3.»
Embalde porém se torturava a nação, anhelando porque a não despojassem de seus territorios.
Quatro longos annos durou a agonia.
1 Sr . Pinheiro Chagas, Historia de Portugal, tomo vi, & 21 .° 2 Veja-se Nota K no fim do volume. 3 Quadro elementar, tomo x v m , pag. 2 .
245 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Supplicas, prantos, tergiversações dos victimados, oílicios dos governadores, observações e recusas (restes, tudo foi em-balde. A desmcmbração da patria realisou-se l.
Tres governadores simultaneamente recusaram executar o mandado terrível.
Em Tanger capitaneava um ancião honradíssimo, tão esfor-çado, como erudito. Era o conde da Ericcira, I). Fernando de Menezes auetor da historia de Tanger, da vida de D. João 11 (em latim) e de outras obras.
Instado pelo governo da metropole, como elle mesmo refere, a que entregasse a praça, ollerecendo-se-lhe em troco o titulo de marquez de Louriçal e outras mercês, recusou formalmente, resignou o cargo e manteve a honra a.
Ao successor foi promettido o titulo de conde d'Avintcs para effeituar a cedencia, evitando que se amotinassem os vendidos, nossos irmãos, cujo crime era quererem continuar a ser portuguezes 3. (
0 governador cumpriu. Tanger expiou a culpa da sua dedicação á metropole.
Na índia eram pela inopinada morte do vice-rei, conde dc
1 Ve ja -sc acerca dc Tange r o que refere o conde da Er icc i ra na sua h i s -
toria d 'aquel la c idade , liv. III, § 134.° e seguintes . Quan to a Bombaim con-
sultem-se os oílicios do governador , depois vice-rei da índ ia , Antonio de
Mello c Castro , da tados dc 2S de dezembro dc 1 «62 c 8 dc fevereiro dc 1 6 6 í ,
no tomo i \ do Supplcm. n Coll. dos Tratados do s r . Bikcr . 2 Conde da Er i cc i r a , I). Fe rnando , Historia dc Tangerc, liv. III, $ I:H.°,
pag. 27:2; S r . B i k c r , Supplcm. á Coll. dos Tratados, ubi supra, nota ,
pag. 2 2 7 . 3 Er icc i ra , loco citato.
2 4 6 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Sarzedas, governadores simultâneos Francisco de Mello e
Castro e Antonio de Sousa Coutinho l .
Ignorada ainda em Lisboa aquella morte e chamado o
vice-rei á côrte, foi expressamente nomeado outro, de cuja
obedicncia se não duvidava, para entregar Bombaim 2.
Vendo o nomeado a imporlancia militar e economica da formosíssima ilha, o seu porto rival do de Lisboa 3 , c o que perdia o reino se o cedesse, recusou também desempenhar o encargo para que havia sido expressamente eleito, e com esta repulsa aíTirinava desassombrado a el-rei (Alíonso VI) que «desempenhava o seu dever, mantinha a reputação das armas portuguezas, c impedia a total destruição do Estado da índia 4.»
A tão nobre proceder, a tão patriotico esforço respondeu a mctropole reiterando a ordem para se entregar Bombaim3 .
0 governador obedeceu, redarguindo porem que «só a obedicncia de vassallo podia constrangei-o áquella acção,
/ /
1 Er icc i ra (D. Luiz) , Portugal Restaurado, pa r te n , liv. iv . 2 «Que para a entrega de Bombaim se t inha resolvido chamar á côrte o
vice-rei da índ ia , c nomear out ro com cu j a obedicncia o governo podesse
contar .» S. Tull io , I). Catharina dc Bragança , Archivo Piltoresco, vol. xi,
pag. 2 1 2 . 3 «Vi o por to mais formoso e mais capaz q u e tem a índ ia , a que não faz
vantagem esse dc Lisboa.» Carta do governador , depois vice-rei da índia ,
Antonio dc Mello e Castro para el-rei sobre a entrega de Bombaim aos in -
glezes. Sccrct . do Gov. de C.oa, liv. das Monções, n . ° 2 8 . ° ; S r . Bikcr ,
Supplem., tomo ix, pag. 2 3 2 . 1 Antonio dc Mello c Castro, Carta a el-rei, ubi supra. 5 Carta dc el-rei ao vice-rei Antonio de Mello c Castro para se cumprirem
as ordens sobre a entrega de Bombaim, Livro das Monções, n.° 30.° , Sup-
plem. á Coll. dos Tratados, tomo ix , pag . 2 3 o .
247 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
porque antevia os grandes trabalhos que da entrega adviriam aos portuguezes l.
E do homem que tão patrioticos actos practicava, c com tão alcvantada isenção os referia cm taes tempos ao proprio rei, chegando ate a não cumprir as ordens que d'cstc rece-bera, disseram os supra mencionados escriptores que não entregara Bombaim *pelo inqualificável pretexto de serem os inglezes herejes e não parecer justo ceder-lhes um paiz onde havia tantos catholicos!»
Lamentando o equivoco de auetores aliás mui conspicuos, folgamos ao menos com que pelos irrefragaveis documentos » que apresentámos fique exuberantemente justificada a me-mória de um benemerilo da patria.
Ilonrcmol-o!
I I I
No instante dc irem ser assim nossos irmãos inmiolados cm África e Asia, tentaram clles derradeiro esforço appcllando para a ultima razão dos oppr imidos—a revolução.
Em Tanger foi necessaria a maxima puridade, c por fim
o ardil para consummar-se a entrega.
«Se Tanger se revoltasse, escrevia á regente de Portugal
1 «Só a obediência q u e devo como vassallo poderia fo r r a r -me a esta acção,
por que antevejo os g randes t rabalhos q u e . . . hão dc nascer aos portuguezes.»
Carta do vice-rei , Antonio de Mello e Castro a e l - re i . ( ioa , 5 dc j ane i ro de
166o. Livro das Monções, n .° 3 1 S u p p l c m . d Coll. dos Tratados, pag . 2 3 7 .
2 4 8 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
o seu embaixador em Londres, o sagaz marquez de Sande,
Vossa Majestade se obrigaria a pagar os gastos da armada
com que se fosse cobrar
«Ouviam-se por Ioda a parte os prantos, observa repas-sado de tristeza o ex-governador conde da Ericeira, e accre-sccnla: «Parecendo ao governador (I). Luiz d'Almeida) a occasiâo opporluna, mandou abrir a porta da ribeira aos inglezes que entrando como se a conquistaram, metteram grosso presidio no castello, e espalham-se (sic) por toda a cidade 2.»
Em J3ombaim os habitantes, veiados pelo dominador,
buscaram também por meios violentos esquivar-se ao jugo
extrangeiro 3.
Neste importante porto não conquistado pelos inglezes, mas que lhes era gratuitamente cedido, como vimos, practicaram 1
nossos alliados os mais duros excessos, já contra os soldados portuguezes, já contra a pessoa do governador da índia, já contra os proprios habitantes entregando-os aos infiéis, ou obrigando-os a mudar dc crença, impedindo aos ecclesiasticos o exercício das funeções religiosas, exigindo dc todos os novos subditos fidelidade ao governador inglez como senhor do espi-ritual e temporal, c afora muitas outras violências, arrancando até dos braços do vice-rei portuguez, como elle proprio refere, uma criança de peito para ser dada a mouros \
1 Carta do marquez de Sande á ra inha 1). Lu iza . Londres , 6 dc maio de
1661 . Rcbello da Si lva, Quadro elementar, tomo XVII, p a g . 178 . 2 E r ice i ra , Historia deTangere, l iv. m , § 141 .° 3 Sr . Bikcr , nota á pagina 2 6 9 do tomo ix, Supplem. á Coll. dos Tratados. 4 Carta do governador , depois v ice-re i da í n d i a , Antonio de Mello c Castro
249 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Sob tão negros auspícios feneceu para o domínio da nação portugueza a pérola do Indostão.
Peior inda em Tanger. Entregue a praça aos alliados, saquearam estes a cidade; arrebataram dos templos as ima-gens c vasos sagrados; arrojaram ás praias muitos habitantes para haverem alojamentos; constrangeram por extorsões innu-mcras a povoação attonita c os seus seis mil vizinhos a des-ampararem as propriedades, a perderem bens e alfaias; e a todos expulsaram para sempre dos lares proprios
Ainda mais. Não convindo aos inglezes a praça africana, e desattendendo os sacrifícios a que nos submetteramos para ceder-lha, foram espontaneamente collocal-a cm mãos dos mouros, menosprezaram assim as instancias que empregá-vamos para rehavcr a cidade que lhes não servia, e calcaram aos pés não só os interesses legítimos da nação amiga, senão ainda os devores de humanidade para com os habitantes perseguidos, arruinados, expatriados 2.
Carlos II de Inglaterra e sua esposa, D. Calharina de Portugal, queriam que nos fosse restiluida Tanger. Oppoz-se o duque de York (depois o infeliz rei Jacqucs II) conside-rando opprobrio que Inglaterra largasse uma cidade «pie lhe não convinha manter. Assim se fez 3.
a el-rei sobre a entrega d e Bombaim, ( loa , 2 8 dc dezembro dc 1GG2. Livro
das Monções, n .° 28 . ° , Supplcm. « Coll. dos Tratados, loco citato. 1 Ericcira , ubi supra, pag . 2 7 7 . 2 Er icc i ra , Historia dc Tangcrc, liv. III, § 143.° , pag. 2 8 1 . 3 Er icc i ra , ubi supra.
2 5 0 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
Tortura cm verdade a alma recordar lão negras scenas dc
nossa historia.
Não pararam todavia inda abi os graves males da nação portugueza em suas seculares relações com o potente alliado.
Ao acto internacional que cm 1661 desmembrou a 1110-narchia, ou(ros se seguiram essencialmente onerosos. Não comporta o restrictoassumpto d'eslc volume que detidamente os analyscmos agora. Alguns citamos apenas como sequencia do que deixamos exposto:
0 tràctado, dicto deMethwen (1703) , levantando a pro-hibição existente sobre a entrada dos pannos e lanificios britannicos, c abrindo á importação dos mesmos pannos e lanificios toda a monarchia portugueza, o que arrazou a in-dustria nacional, e veio a damnificar até a cultura vinícola, c o seu proprio commercio 1;
Outro ignominioso tractado, o dc 1810. admittindo indis-tinetamente em Portugal e nas suas ainda então importan-tíssimas colonias do ttrazil, de Asia e África todos os pro-duetos inglezes com o simples direito de 15 % ad valorem, destruindo assim a existcncia de nossas industrias, votando á miséria todas as classes de produetores fabris, e obrigando pela concorrência britannica a fecharem-se as fabricas na-
1 «Esle t rae lado, escreve o sr . P inhe i ro Chagas , foi a nossa completa
ruína por q u e nos poz completamente na depcndcncia industr ial da Ingla-
t e r r a , c até mesmo po rque , dando vantagens cxccpcionacs ;í cultura dos
vinhos, não foi menos nefasto aos ou t ros ramos da agr icu l tura mais dirccta-
menlc necessários a uui povo.» Sr . P inhe i ro Chagas , Historia dc Portugal,
tomo vi.
251 í d . j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
cionacs, rcsurgidas out rora á voz do marquez de Pombal, c depois d'elle continuadas;
As graves pendencias sobre o trafico da escravatura, em que o governo inglez, desattendendo a lealdade dc nossos esforços c dcsacatando-nos por tantas vezes, chegou a pu-blicar cm 1839 o famoso bill que cm menoscabo de todo o direito internacional auetorisava a captura dos navios por-tuguezes empregados (ou suppostos) no referido trafico, bem como submcttia ao julgamento dos tribunaes britannicos os portuguezes c suas propriedades que se encontrassem nos referidos navios;
(Notaremos rapidamente que uma voz, a mais auetorisada da Inglaterra, se ergueu então no parlamento a favor da inde-pendcncia dc Portugal; foi a voz do vencedor de Waterloo. Disse na camara dos Lords o duque de Wellinglon: «que o parlamento britannico não podia dar leis aos subditos es-trangeiros; e que o bill era uma invasão injusta dos direitos de Portugal, que, a submetter-se, deixaria de ser nação inde-pendente *.»)
As indemnisações cnormissimas dc 1840, havendo o governo britannico pago previamente a subditos seus com dinheiro nosso reclamações que Portugal não reconhecia, c exigindo o mesmo governo com terminantes ameaças o paga-mento demais dc mil c trezentos contos dc réis, que em parte não devíamos, porém que integralmente pagámos;
0 tractado de 1842 modificando o dc 1810 ; A intervenção de 1 8 4 7 ;
1 Veja-sc sobre esta maté r ia o in teressante escripto do marquez dc Sá
da Bandei ra : O trafico dá escravatura c o bill dc Lord Palmerston. Lisboa,
18U).
2 5 2 d - j o ã o i e a a l l i a n ç a i n g l e z a
* 0 desamparo na questão Charles et Georges; E ultimamente, lia pouco ainda...
Corramos o véo. Não profundemos o que ao presente
respeita. Mui recentes são taes datas para que folguemos de
historial-as.
A patria a todos julgará, tomando a cada um a respon-
sabilidade que lhe compete.
Desgraçada a nação que em auxilio extranho fundamenta
a independencia própria. Se o auxilio se realisa, vergonha é. Se em esperanças fica, é morte inevitável.
Que os arestos de nossa historia nos aproveitem pois. Que nos aproveite a historia de outros povos—pequenos em territorio, grandes pela própria iniciativa e pela sabedoria de seus governos.
Contemplando os habitantes da Suissa, da Bélgica, da Hollanda, estudemos a perseverança de uns, a actividadc de outros, o patriotismo de todos; estudemo-nos também a nós mesmos; comparemos o que somos com o que podíamos ser, com o que outros são; de altos commettimcntos colhamos lições profícuas; aclare-nos o passado o caminho do presente, e no que está por vir sejam-nos constante exemplo 1). João I c a alliança inglcza.
t
N O T A S
i
J
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n s r o T - ^ s
A
(Capi tu lo I, p a g i n a 9)
Carla original da rainha D. Filippa dc Lancaster a seu irmão cl-rci de
Inglaterra, Henrique IV.
«Tres h a u t ct t res pu issan t pr ínce mon sovcrcincmcnt 1 meulx amcc f r ie rc .
«Jc me rccomans a V a í í r c hau t e noblcssc si hurablemcnt el enl icrcmenl come
«je say ou p lus puisse dc tou t rnon ent icr cuc r . Sovcrcyncmcnt desirante
«do ic r 2 ct souvent savoir dc Xostre estat ct santié ct en especial de la p ros -
«peritee dc Vosfrc t res gentil p r r sone si bons plesantes et joieuses novelles
«come vous mesme tres noble pr ince meulx les savez d e v i s e r 3 ou en a s c u n e 4
«manterc s o u h c i d e r b pu r Xastrc sovercyn c a s e 6 ct confort . Et pur ce que
ccjc suy certcine que vous tres volenlters en oiriez semblablement d c c c a 7
«Vous signifie que 1c Hoy mon Seigneur soverein tous mes enfans voz entiers
«ncpveuz que toutdis * se rccomandcnt t res humhlcmcnt a vous ct moy leur
«micro Xostre ent icrc suer al fcisancc dycestcs estioms tres tous seins ct
«hettez dc corps 9 Kegracioms nostre crcalctir q u e tousjours vous veulle
1 extr ímement.
* d ou ir. 3 reconnaltrc; par le r ; dirc. 4 aucunc.
* souhaiter. 6 aise; contontcment. t
: d'ici. 8 toujours. 0 Esta phrasc significa: n feitura desta carta estamos todos de saúde e sãos de corpo.
Hettez significa cm francez moderno: bien portant; dizia-se também hailié; a palavra tres está no original antes de tous, quando deveria ser o conlrario.
2 5 6 n o t a s
«mcntcnir cn cn 1 honcur ct prospori tce sclon Vot l rc dcs i r . T res haut et tres
«puissant pr incc mon sovcrcincmcnt meulx amcc f r icrc vous plcsc savoir
«que p a r monsteur Jchan VViltschirc chcvalcr ct ambassa to r dc nosfre Cosyn
«lc Conte Da rondei j e suy cy enformee, comcwt dc p a r le dit conte a vous
«est duc unquorc 2 une some d o r , laqucl lc il obligea a vous paicr pur la
«licence que a vos/rc gracicusc segncuric pleust l i 3 grant icr ct donwer cn
«son non a a g e 4 qil pcut luy inarier a son ta lcnt ct cn que licu il vist
«convcnablc a son estat . E t pu r cc mon sovereinement meulx aince fricre
«que vous lc savez b/eu qil est ore mar icc non pas p a r son propre mouve-
«ment mes cins 6 p a r vosírc comandcmcnt cn p a r t i c al instancc dc moy, Je
«vous supplic pu r tant tres noble pr incc si ent íercincnt come j c say plus que
«vous li plesc quíter la dite somwc a ccste ma Rcqucs tc i s s in t 7 que jc que
«suy la cause dc sa mariage en p a r f i c puisse cslrc la cause dc la quítancc
«dcl dite sommc. E t si ascunc chose soit es 8 pa r t i e s dccca 9 que vous
«pourert trouver a plcsir vous mc lc plesc comander ct certificr ct jc lcferay
«a tout mon povotr sans feintise J c enrpê 10 nostre soverein Scigneur Jhu 11
«qil vous doigne tousjours prosperi tcc plcsancc et j oyc a tres locngc Durc r 1 5 .
«Escript cl palcys de luxbon lc ii i j ' j o u r dc novembre 1 3 .
«Vostre cnt icre et loyal
«Suer p(hilippc) dc p(or tugal ) .»
S r . Figanièrc, Catai, dos mss portugueses existentes no museu britannico,
pag. 1-20, citando Bibliothcca Cotoniana, Vcspas ianus , F . m , foi. 17.
1 Repetido no original. 2 encore. 3 lui. 4 Significa provavelmente minoridade. 5 sa volonté. 6 mais plutôt. 7 ainsi; afin. * cn les. 9 d'ici.
10 entendemos que palavra esta pôde ser; está em abbreviatura. 11 Jésus? 12 longue duree. u 0 fac-símile de D. Filippa (jue damos no texto deve interpretar-se comoseguo:«vosírc
eniiere el loyal suer j>(hilippa) de p(ortugal).»
B
(Capi tu lo I I , p a g i n a 20)
Carla de escambo enlrc el-rei I). Affonso IV e a camara de Lisboa sobre
um campo 110 silio da Oura cedido a el-rei, a fíui de (pie se podesse
fazer taracena para estarem quatro galés.
O sitio da Oura era então um ar rabalde dc Lisboa, ficando no extremo
oeste do presente arsenal da marinha c abrangendo o largo do corpo saneio
e vizinhanças.
A tercena, cdificada sobre o terreno então cedido a el-rei , tornou-se o núcleo
das fu turas construcçõcs q u e para o serviço marí t imo sc foram fabricando
no volver dos séculos até ao actual edifício, obra do marquez de Pombal .
Prova o documento appenso que , apezar do contracto estabelecido no re i -
nado anterior dc 1). Diniz entre este soberano e o genovez micer Manuel
Pcçanha ou Passano, era então mui restricta a frota portugueza. Não deve
porém causar maravi lha este facto, pois quando havia guerra marít ima ou
necessidade dc navios, era uso embarga rem-se quantas gales de particulares
sc julgassem necessarias a rmando-as desde logo cm gue r r a .
Eis a íntegra do curioso documen to :
En nouic dc deus amen . Sa ibham quantos esta carta dcscanbho virem que
Nos Aluaziis e vereadores c p rocurador do Concelho c o Tessoureiro e ho -
meens boons e mccsteiraaes s ingularmente e o Concelho da Cidade dc Lixbòa
apregoado c chamado vniuersalmente per pregom spccialmente pera esto,
veendo e consiirando que h u u m canpo que o dito Concelho ha na dita Cidade
no logo que chamam a Oi ra , cn no qual canpo nosso Senhor EIRcy Dom
Affonso o quar to sol dc tccr suas Galccs, era conpridoiro do dito Senhor
pera seruiço dc deus c sseu c prol e dclTendimcnto da ssa terra. Outrosy
veendo huum scanbho q u e o dito Senhor Rcy Dom AlTonso fez com o dito
Concelho pelo dito canpo conucm a ssaber que lhi quita pera scnprc a jugada
que o dito Senhor auia do pam q u e o dito Concelho auia no Alqucidom tcrmho
17
2 5 8 N o T A S
da dita Cidade que som en cada h u u m anno t r i in ta moyos dc pam meiado,
dcrom cm scanbho ao dito Senhor Rey o dito canpo pelas diuisoes que hy
ssom postas de guisa que possam hy flazer Taraccna pera s tarem quatro
('.alces. E outro si o canpo cm que sccm as casas cm q u e EIRcy tem a ma-
deira, juntas com o muro das Taracenas , e h u m a casa q u e lie contra o mar
que fez o almoxarife da Taraccna pera tecr m a d e i r a : Q u e el c todos seus
succcssorcs que depos el veerem aiam os di tos canpos pera sempre c a dita
casa c íTacam deles c cm eles todo aquelo q u e Ihys aplouger c for sua merece
comc dc ssuas próprias possissões. E r r enunc i a rom todo direito e aucauí
posse c propr iedade q u e eles comc Concelho ou come singulares pessoas
auiiam nos ditos canpos c casa, c t i raron nos de sy c poseron 110 por Cor-
poral possissom cm o dito Senhor e cm os seus succcssorcs que depos el
uecrcm. E promclcrom a nunca viinr contra este scanbho e prcmudacom
per si nem per outrem cn par te nem cn lodo em juizo nem fora dei , aberta-
mente nem seundudamente . E ssc contra cl fossem q u e todo aqucllo que hy
flosse atemptado contra o dito scanbho e p rcmudacom fosse nenhuum dc
dereito c que o dito scanbho fosse firme e s taui l c valioso pera todo scnpre
so obrigamento dos bceus do dito Concelho que pera esto obr igarom. Feita
a carta na Cidade dc Lixbooa 110 Paaço do Concelho nouc dias de Nouembro
Era de Mill e trezentos c nouccnta annos, tes temunhas Johannc anes palha-
uaana luaz i ldos jcc raes c Gonçalos tenezphar isseu e Alíonso inar t inzaluernaz
aluaziis do cr ime em a dita Cidade c Joham darrochela e I.ourcnço giraldez
c Affonso perez vereadores c Fernam mart inz p rocurador jccral do Concelho
da dita Cidade c Martim AffonsoTcssourci ro do Concelho e Fernam rodriguez
juyz por EIRcy cn na alflandega e Joham AlTonso das r regras e Phil ipc danicl
Sacador dclRcy e Joham simhom veedor das casas do di to Senhor cm a dita
Cidade c outros muytos homeens boons do dito Concelho. E eu Joham d u -
racez Tabclliom dclltey cm a dita Cidade q u e a esto presente ffoy e a rrogo
c por outorgamento dos ditos homeens boons c Concelho esta carta scrcui
e em ela meu sinal fiz que tal he . = Logar do signa! p u b l i c o = J o h a m corrcya
= J o h a m da r r o c h c I a = I.ourcnço g i r a l d e z = J o h a n n e a n c s =
Signal dc sello pendente .
Arch . Nac . , Gav. 13, maç . 1, n.° 2 5 .
c (Capi tu lo X , p a g i n a 87)
0 visconde de Santarém. Seus equívocos
Notáveis são os equívocos em que o visconde dc Santarém incorreu ao
tractar do embargo feito pelo governo inglez sobre os navios, marinheiros,
mercadorias e mercadores portuguezes. (Quadro elementar, tomo XIY. R e -
lações com Ingla terra . Prologó).
Confundindo a doutr ina do decreto que motivou aquelle embargo, escreve
o illustrado auetor que «o mestre dc Santhiago representou contra este ter-
rível procedimento, c que para conseguir a rcvocação de tacs medidas fôra
obrigado a promet ter cm nome dc Portugal que seriam indemnisados quacs -
quer que tivessem queixa dos mercadores portuguezes.»
Foi tudo jus tamente o contrar io .
O embaixador por tuguez não representou, nem podia representar contra
o embargo, po rque este se rcalisava exclusivamente cm proveito seu, m a n -
dando o governo inglez ent regar- lhe navios, mercadorias c mercadores, a fim
dc lhe servirem dc penhor , sobre que podesse levantar de emprest imo, como
dc feito levantou, as sommas indispensáveis para os encargos da expedição
a Portugal .
A ordem não teve pois revogação, conforme o auetor suppunha, e nem
podia tcl-a pelas razões q u e ficam dietas. O que cm provisão ofticial de te r -
minou o governo inglez, a rogo por ventura dos interessados, fo i : que os
navios, mercadorias c mercadores dc Por tugal fossem entregues ao embai-
xador, o qual se responsabi l isou a indemnisar qualquer que sobre os re fe-
ridos navios, mercadorias ou mcrcadorcs tivesse reclamação.
Eis o documento, q u e amplamente confirma o que dizemos e, segundo
vulgarmente sc diz, t i ra todas as duv idas :
S L P E R ARKSTATIONK NAVIÜM PORTUGALIAE DB I.NTENDBNDO
Kex, dilcctis s ibi , Johanni Polymond, Majori Villae nostrai Suthamptonia?,
& Roberto Rekerton, Servicnti nostro ad Arma , Salutcin.
2 g 0 n o t a s
Sciatis quòd assignavimus vos, con junc t im , & divisim, ad Arcstandum
& Capiendum omncs Naves dc Por tuga l i a , in q u o c u m q u e Por tu , seu supra
Marc, infra Ligeantiam nostrain, inventa) fucr in t , ac omncs Mercatorcs &
Mcrcandisas Navium praídic tarum,
E t cos Johanni de Fernandes, Magis t ro Sancti Jacobi dc Portugal ia , uni
Ambassiatorum & Procura to rum Regis Portugalia?, p ro qu ibusdam certis
causis, Concilio nostro per ipsum Johannem rcla t is , de l iberandum, qui qui -
dcin Johannes manucepit ad Kespondcndum, dc Na vi bus , Mercatoribus, &
Mcrcandisis supradict is , cu icumquc se conquer i volent i , & dc Arcsto prai-
dicto, tam Kcgi Portugalicc, quàm Communita t i e jusdcm l tegni , Nos servare
índempnes ;
Ét ideò vobis, super Fide & Ligeant ia , qu ibus nobis tenemini , Injungimus
& Mandamus, quòd circa Pr.xmissa cum omni Diligcntia intendalis , & ca
faciatis & exequamini in forma p r a d i c t a ;
Damus autem universis <fc s ingul is Admira l l i s , Capitaneis , Castellanis, &
eorum Loca tenentibus, Custodibus P o r t u u m Mar i s , & al iorum Locorum
Mari t imorum, Vicecomitibus, Ma jo r ibus , Ball ivis, Minis t r is , & aliis Fidc-
libus & Subdit is nostris, tam per Marc quàm per Te r r am consti tutis , quòd
vobis, in Prannissis omnibus & singulis facicndis & exequendis , Intendentes
sint, Consulentcs, & auxil iantes quot iens & p rou t per vos, seu al terum ves-
trilm, super hiis, cx par te nos t râ , fucr in t p r a m u n i t i ; dumtamcn idem J o -
hannes Custumas, Subs id ia , alia Dc\ cr ia , dc Mcrcandis is praidictis debita,
fidclitcr solvat prout decct.
In cu jus &c.
Teste Itege apud Westmonasterium, viccsimo sexto dic Mai i .
Rymer , Foedera, tomo VII, pag. 472 .
D
(Capi tu lo X I I I , p a g i n a 106)
0 capitão do mar. Suas funcções
O capitão do mar , capitão moor do mar , capitão moor da frota, ou capitão
da frota, que todos estes nomes se encontram nos documentos do tempo, era
cargo immediato ao dc Almirante . Havia este o mando supremo da frota, c
capitaneando-a sahia ao mar nas occasiõcs cm que se dava peleja marítima l .
Quando porém uma frota , ou a rmada ia barra fóra cm serviço de cl-rci ,
era o capitão do mar que sempre a caudilhava. Por este motivo Affonso
Furtado, então capitão do inar , part iu com a frota portugueza para de In -
glaterra acompanhar até á península o d u q u e de Lancaster cm 13SG, como
dissemos no capitulo xiv. Andado um anno, t ransportou clle o mesmo duque
c os seus até Bayonna de F rança , corno também referimos, c d 'ahi capi ta-
neando a expedição de dez galés se foi em soccorro dc Inglaterrra , conforme
a convenção firmada em Londres pelos embaixadores portuguezes, e que
publicada por pr imeira vez cm Por tuga l , sahc agora á luz cm a Xota E do
presente volume.
O capitão do mar , em harmonia com a instituição d'este cargo, tinha
mando sobre as diversas classes de marí t imos, q u e então na falta absoluta
dc um corpo super ior de mar inha eram as seguin tes :
Patrões, alcaidcs, a r raes , pet intacs , comitrcs, galcotes, marcantes e m a -
rinheiros.
Superintendia também o capitão mor em todas as caravcllas, barcas,
bateis c quaesquer navios assy grandes como pequenos, podendo embargal-os
para serviço dc cl-rci c bem assim tomar por força os marcantes dc qualquer
estado e condição que fossem.
1 «Seu oITicio é mui grande, cá el hade seer Coudilho de todolos navios que som pera guerrear.» Ordcn. A/fons., liv. i, tit. 5i.°, § B.«—Do Almirante e do que perteence a seu Oficio.
2G2 NOTAS
Este uso semi-barbaro auctor isava-o a legislação mar í t ima q u e geralmente
vigorava na Europa medieval.
Veja-se a carta do olíicio dc capitam moor da frota dada por D. João I
a Álvaro Vasques d'Almada (o depois famoso conde d 'Avranchcs) em 23 de
julho dc 1423, c Ordm. A/font., liv. i, t i t . LV «DO capi tam moor do mar.»
E
(Capi tu lo X I I I , p a g i n a 108)
Convenção firmada em Londres pelos embaixadores de Portugal estabelecendo
que de/, galés portuguesas armadas em guerra irão aexpensas dc Portugal
servir gratuitamente a coroa ingleza por seis mezes consecutivos, ou
durante o espaço de dois verões.
O R I G I N A L AÜTIIENTICO
Univcrsis Christi fidclibus, ad quos
presentes Litcra; pervencr int , Fcr-
nandus Magister Ordinis Sane ti Ja-
cobiin Kcgnis Portugalia- & Algarbi i ,
& Laurcnlius Johannes Fogaça C a n -
ccllarius Portugaliae, Militcs, Se re -
nissimi Principis <5: Domini , Domini
Johannis, I)ci gra t iâ , Portugalia: 6i
Algarbii Regis, Ambassia torcs , p r o -
curatorcs, & Cominissarii spccialcs,
ad Infrascripta Potes ta tcm sull icien-
teinhabentes, Salutem in eo per quem
Reges regnant & Príncipes domi -
nantur. •
Notum Facimus vobis q u ò d , vigore
Potestatis, ab codem Domino nostro
Rege nóbis spccialitcr commissa ' , in
aliqualem Rccompensat ioncm O n e -
ruin & Expcnsa rum, qua-, Sc ren i s -
simum Principem & D o m i n a m , I )o -
minum Ricardum, Regem Angliic,
circa Profectionem, i l lustris Pa t ru i
TRADUCÇÂO
A todos os fieis cm Christo que a
presente carta virem, Nós Fernando,
Mestre da Ordem de S . Thiago nos
Reinos dc Por tugal c Algarve, c Lou-
rcnço Annes Fogaça, Chancellcr dc
Por tuga l , Cavalleiros, Embaixado-
res, Procuradores , c Commissarios
cspeciacs do Sereníssimo Príncipe c
Senhor I). João por graça dc Deus
Rei dc Portugal c do Algarve tendo
para o que adeante seguepoderes bas -
tantes , vos enviamos Saudar n 'Aqucllc
por quem os Reis re inam c os Pr ín -
cipes dominam.
Saber vos fazemos que cm virtude
do Poder a nós especialmente com-
mcttido pelo mesmo Senhor, nosso
rei , para de a lgum modo compensar
os gastos c despesas que necessaria-
mente hão de sobrecarregar no p re -
sente anuo o Sereníssimo Príncipe e
Senhor, o Senhor Ricardo Rei dc In -
264 NC
sui , Domini Johannis, Dei gra t iâ ,
Regis Castclla: & Legionis Ducis L a n -
castriíc, pro Conqucstu ju r i s sui &
Succursu prsefati Domini nostri D o -
mini Regis Portugalia; , de praisenti
Anuo, subire necessariò oportebi t , cx
certa Scicntia, nominc Domini nostr i
prirdicli , Promisimus & Conccssimus
quòd praífatus Dominus noster Rex
Portugalia;, in jEstate próxima jam
instante, inveniet & mit tet Domino
Regi Angliíc p r s d i c t o Deccm (ialcas
(ipsius Domini nostri Domini Regis
Portugaliie Sumpt ibus & Expcnsis)
bene Armatas (videlicet) dc Uno P a -
t rono, Tr ibus Alealdibus, Scx A r r a i -
zis, Duobus Carpcntari is , Octo vcl
Deeem Marinari is , Triginta Balas-
tari is , Centum & Quatcrvigint i R c -
migibus, & Duobus Sutaneis , in q u a -
libet Galearum pra>dictarum;
Qua» quidem Gale® ad partes A n -
gli® venient, & dicto Regi Anglire,
jux ta Voluntatem & Disposit ioncm
suam vcl Admiral lorum suorum, u s -
que ad Fcstum Michaclis próximo
sequens, bene & legaliter s e n ire,
Inimicos ipsius dest rucrc & d a m p n i -
ficare, totis viribus t enebun tu r , n i -
chil peni tus pro dicto Scrvitio a dicto
Domino Rege Angliíe petendo seu
exigendo:
E t , in casu quòd , in dieta próxima
/Estatc, dictie Dcccm galc.-c Scrv i -
t ium Sex Mcnsium, dicto Regi A n -
glia;, Sumptibus ipsius Domini nostr i
Domini Regis Portugalia?, non per fe -
ccrint , tunc Dominus noster Rex Por -
A 3
glaterra no q u e respeita á part ida d<
seu l l lus t re Tio I). João por graça dí
Deus Rei de Castclla c Leão Duque dc
Lancas ter para a conquista de seu di-
reito c cm soccorro do supramcncio-
nado Senhor nosso, o Senhor I»ei de
Por tuga l , nós dc scicncia certa, cm
nome de nosso já dicto Senhor PRO-
METTEMOS C CONCEDEMOS QUE O UOSSO
referido Senhor E l -Rc i de Portugal na
entrada do p rox imo verão aprestirá
e mandará ao mencionado Senhor Rei
dc Ingla ter ra (por conta c a cxpcn»as
do propr io Senhor nosso, o Sênior
Rei de Por tugal ) dez galés bem ; r -
madas a s a b e r : dc um Pat rão , ties
Alcaidcs, seis Ar racs , dois Carpin-
teiros, oito ou dez Marinheiros , trinta
Besteiros , cento c oitenta Remciros c
dois Sotas (?) cm cada uma das galés
supra mencionadas .
As quaes Galés virão ás partes dc
Ingla ter ra , c serão teudas a com todas
suas forças bem clegalmente scr\ irem
o dicto Rei de Ingla terra destruírem
e damnif ícarcm os seus inimigos, con-
forme a sua Vontade c Disposição, ou
dc seus Almirantes a t é á festa próxima
fu tura dc S. Miguel , não pedindo nem
exig indocousa alguma pelo dicto ser-
viço ao dicto senhor Rei de Ingla-
te r ra .
E no caso em q u e no dicto proximo
verão as dietas dez galés não pcríizc-
rem du ran t e seis mezes o serviço ao
dicto Rei de Inglaterra a expensas do
mesmo Senhor nosso, o Senhor Rei
dc Por tuga l , então o supra dicto nosso
n o t a s 26o
tugalicc prícdictus, in alia yEstatc
extunc fu tu ra , quandocumquc pro
parte dicli Regis Anglia) indò r c q u i -
situs fueri t , per Literas seu Nuncium
ipsius Regis Anglia), per Deecrn Ga -
leas suíTicicnter Armatas , per Sex
Menses, inodo & formâ p rad i c t i s ,
faciel Deservir i ;
Díim tamen príefatus Rex Anglia!
pro tcmpore, excedente dictum S c r -
vitium Sex Mens ium, in tolo sa l i s -
faciat príefato Domino nostro P o r t u -
galiae Regi (vidclicct) jux ta Ra tam
Millc & Duccntorum Francorum pro
qualibet Galca pro M c n s e :
Et incipicnt computar i dicti Sex
Menses dic quâ dc Portu exier int ad
navigandumversus Angl iam ex Causa
pracdicta, l iccbitque dictis Galeis,
propc finem d ic torum Sex Mensium
(vidclicct) intra Quindccim Dies ante
finem eorundem, versus par les suas
próprias l ibere r e d i r e :
Et quamdiü stctcrint Gentes d ic la -
rum Galcarum, ad Sunip tus & E x -
pensas dicti Domini nostri Regis P o r -
tugalia), in obséquio ipsius Regis A n -
glia;, in Par l ibus mar in i s Vicinis ipsi
Regno Anglia), vel d ü m fucr in t in
redeundo versus par tes Portugalia)
per Dominum Regem Anglia) dc F r u -
mento, pro Pane cisdcm necessár io,
providebitur couípctcntcr u sque ad
Senhor El-Rei dc Portugal noutro f u -
turo verão a contar d'aquclla data ,
quando quer que por parte do dicto
Rei de Inglaterra seja para isso r e -
querido por carta ou emissário do
mesmo Rei dc Inglaterra , fará que
este, segundo o modo c fôrma já men-
cionados, se jaservidoduranteoespaço
dc seis mezes por dez gales sufiicicnte-
mente armadas .
Ent re tanto porém o referido Rei de
Inglaterra pelo tempo que exceder o
dicto serviço dc seis mezes satisfará
integralmente ao sobrcdicto nosso
Senhor E l -Re i dc Portugal, conforme
fica accordado, a somma de mil c d u -
zentos francos por cada Galé mensal-
mente .
E começarão a contar-se os dictos
seis Mezes desde o dia em que as Galés
pela causa já referida largarem da ci-
dade do Porto em navegação para I n -
gla ter ra , c ás dietas galés será out ro-
sim permit t ido regressar livremente
para sua terra quando esteja proximo
o fim dos dictos seis mezes, a s abe r :
dent ro dc quinze dias antes do re fe-
rido termo.
E cmtanto que as gentes das dietas
Galés estipendiadas a ex pensas do d i -
cto nosso Senhor El - re i dc Portugal
sc acharem cm serviço do mesmo Rei
dc Inglaterra nas aguas adjacentes ao
mesmo Reino dc Inglaterra,ou quando
estiverem de regresso para terras dc
Portugal serão compctcntcmcntc p r o -
vidas pelo Senhor Rei dc Inglaterra
dc Tr igo para o Pão que lhes seja pc^
2 6 6 n o t a s
Summam Quadr ingcn ta rum M a r c a -
rum S te r l ingorum;
Bona vcrò mobília & sc moventia
qu«TCiimque (cuji iscumquc gcncris
fucrint seu speciei) qua* per Gentes
dietarum Galearum, dum in Obséquio
dieti Regis Angli®, Sumpt ibus & E x -
pensis dieti Domini nostri Regis P o r -
tugalia; ext i ter int , super Inimicos
ipsius Regis Anglia;adquir i contigerit
& luerari , sint ipsius Domini nostr i
Regis Portugalia ' , & Gçntiuin p r a -
dietarum ineoncussè, ad d isponen-
dum dc cisdcm seeundum consue tu-
dinem in Regno suo us i ta tam.
Dc Bonis tamcn, qua; pcrpmndictas
Gentes adquiri contigerit p ro t e m -
porc , quo ad Sumptus & Expensas
dieli Regis Anglia; servier int , Tcrt ia
Pars ipsius Regis Angliíe cr i t , & sibi
vcl Dcputat is suis sinc contradict ione
quacumque l ibe rab i tu r :
Proviso semper quòd , si a l iquem
vcl aliqnos Duccs Bcllorum vcl Con-
flictuum, seu magnos Capitaneos, dc
Inimicis hu jusmodi , per dietas Gentes
capi contigeri t , dum stcterint ad E x -
pensas Principales Regis Angli<c s u -
pradicti , statim sine contradict ione
quacumquec idem l ibe rabun tu r ; Sa l -
va tamen Remunerat ionc sive Regardo
compctcnti , per diclum Regem A n -
gliíe facicndâ Illi, vcl Illis, qui dictos
Duccm vcl Duccs, seu Capi taneum
vcl Capitaneos hujusmodi , ccpcr int ,
cessario até á somma de quatrocentos
marcos s ter l inos .
Quacsquc r bens moveis e semo-
ventes (dc qua lque r gênero ou cspecie
q u e s e j a m j q n e forem acaso adquiridos
ou havidos sobre os Inimigos do mes-
mo Rei de Inglaterra pelas Gentes
das dietas Galés , cm quan to cm ser-
viço do diclo Rei de Inglaterra
est iverem, mant idas a expensas do
diclo nosso Senhor E l -Rc i dc Por-
tugal , ficarão per tencendo integral-
mente ao mesmo nosso Senhor El-Rci
dc Por tuga l e ás sobrcdictas Gentes
pa ra d'cllcs d isporem segundo cos-
tume em seu Reino usado .
Dos bens porém q u e aconteça se-
rem adqui r idos pelas sobrcdictas
Gentes d u r a n t e o tempo cm que scr-
^ irem por conta c a expensas do dicto
Rei de Ing la te r ra , a lerça parte per -
tencerá ao mesmo Rei de Inglaterra,
c sem contradicta qua lque r lhe será
l iberada , ou aos q u e por El lc depu-
tados fo rem.
P rc \ i s to fica sempre que,scoccorrcr
q u e algum ou alguns Cabos dc Guerra
ou cabeças dc mot im ou grandes Ca-
pitães forem do supradicto modo ca -
p turados d 'cn t re os Inimigos pelas
dietas gentes, q u a n d o a maxima parle
«la despesa feita com estas se achar a
cargo do supradic to Rei dc Inglaterra,
lhe se jam esses para logo sem contes-
tação alguma l iberados ; Salva porém
a Remuneração ou propina compe-
tente que pelo dicto Rei hajam dc con-
ceder-se Áquel le ou Áquclles que da
n o t a s 2 0 7
prout po tc run t inter sc vel per suos
Dcputatos ra t ionabi l i ter Convcnirc .
Rona verò ( inmobil ia , puta Villrc,
Terra», Castra, & Similia) si per G e n -
tes hu jusmodi , d ü m in Obséquio dicti
Regis Angli;c, super Inimicos ipsius
Regis, in aliis Regnis , Tc r r i s , & Do-
miniis, qua) pra-fatus Rcx Angliíc
J u r e petil híeredi tar io, invasa fuc r in t
& optenta, cidcm Regi Anglia1 p r o -
t inus l ibc rabun tu r absque Condi lione
vel Diflicultate q u a c u m q u c :
Nos , in supc r , Ambass ia tores Com-
missarii & Procura torcs Regis P o r t u -
galia) supradic t i , pro dicto Domino
nostro, Promis imus , ac c o r p o r a l e S a -
cramcntum, ad Sancta Dei EVangclia,
per Nos corporal i tcr tacta, Nominc
ejusdcm Domini nostri Regis P o r t u -
gal ia supradict i , & in ipsius An imam,
in p rxscn t i a P rocu ra to rum Domini
Regis Anglire pra-dicti , p r t t s t i t imus
adfac iendum, t enendum, & complcn -
dum omnia & singula suprascr ip ta ,
quatenus pro par te dicti Domini nos -
tri & ejus Nomine supe r i à s Conccs-
simus & Concordavirnus, b e n c , fir-
miter, & fidclitcr, s ine dolo, maio
ingenio, & fictionc q u i b u s c u m q u c .
In quo rum Tcs t imonia Sigilla nos -
tra Própr ia P r x s c n t i b u s apposu imus .
sobrcdicta fôrma capturarem os dictos
Cabo ou Cabos, Capitão ou Capitães
podendo aquelles entre si, ou por
seus deputados razoavelmente com-
binar - se .
Os bens immovcis porém (a saber :
Vil las ,Terras , Arraiacs,esimilhantcs)
se da fôrma já referida forem invadidos
c apresados sobre os inimigos do mes-
mo Rei em outros Reinos, Terras c
Dominios , cuja posse o alludido Rei
dc Inglaterra procura haver por seu
direito hereditário, serão para logo
esses bens liberados ao mesmo Rei dc
Inglaterra sem condição nem difíicul-
dade a lguma.
Nóspor tanto Embaixadores , Com-
missarios c Procuradores do supra -
dicto Rei dc Portugal, cm nome do
dicto Senhor nosso Havemos promet -
tido c por nosso corpo Jurado aos
Sanctos Evangelhos dc Deus por Nós
corporalmcntc tocados, cm Nome do
mesmo supradicto Senhor nosso E l -
Rci dc Portugal,c cm sua própria alma,
na presença dos Procuradores do já
referido Senhor Rei dc Inglaterra, que
serão realisadas, mantidas c com-
pletamente satisfeitas todas c cada
uma das supraescriptas condições cm
tudo quanto por parte do dicto Senhor
nosso c cm seu Nome deixámos acima
concedido e concordado bem, firme-
mente , c lealmente, sem dolo, máo
engenho, ou ficção qua lquer .
E m testemunho do que scllámos
a presente com os nossos scllos p ro-
pr ios .
r
2 6 8 n o t a s
Dat . apud Windesore, Nono Dic Dada cm W i n d s o r , Nono Dia do
Maii, A11110 Domini Milésimo, T r e s - Mez dc Maio, Anuo do Senhor, Mil
ccntcsimo, Octogcsimo Sexto, Trezentos oi tenta seis.
In Pracsentia,
Vcncrabil ium in Christo Pa t rum,
Dominorum,
WUliclmi Wyntonia,
Johannis Dunolmii,
Walt cri Covcntrensis & Lichfel-
densis,
Episcoporum:
Ac,
Nobilium Vi ro rum,
Dominorum,
Edmundi Ducis Eborum, Pa t ru i
dieti Domini Regis Angliíe:
Willielmi dc Monte Acuto, S a r u m .
Iíenrici de Percy, Northumbriaí ,
Comi t u m :
Et Simonis dc llurlcy Militis, S u b -
camerarii prscfati Domini Hegis A n -
gliíe,
Ac,
Dominorum,
Willielmi de Dighton,
Johannis de Wcndlyngburgh,
Canonicorum Ecclesia; Cathcdralis
Sancti Pauli Londonisc,
E t Johannis de h'irkcby Clcrici.
Et Ego Johannes de liouland, C lc-
ricus Carliolensis Dinecesis, Publ icus
Apostolicà authori tatc Notar ius , pra ; -
rnissis omnibus & singulis Trac ta t i s ,
E m presença
dos Vcneravcis em Christo Padres,
os Senhores B i spos :
Gui lherme, dc Wynton,
J o ã o , dc Durham,
Gual tc r , dc Covcntry e de Lich-
field.
E
dos nobres varões,
os Senhores ,
E d m u n d o , Duque dc York , Tio do
dicto Senhor Hei dc Inglaterra
Gui lherme de Monte Agudo,
H e n r i q u e dc Percy ,
Conde de Nor thumbcr l and :
E dc Simão dc Burlcy cavalleiro,
G u a r d a - r o u p a do mencionado Senhor
Hei de Inglaterra
E
dos Senhores ,
Gui lherme dc Dighton
João de Wcnd lyngburgh ,
Conegos da Egrc ja Cathcdral dc
S. Paulo de Londres E dc João de K e r k c b y , escrivão.
E eu João de Bouland Escrivão da
Diocese dc Carlisle, por Auctoridadc
Apostolicà Notario Publico, no s u -
pradicto anno da Encarnação do Se-
n o t a s 2 G 0
Jurat is , & Concordat is intcr Par tes
prícdictas, Sigil lorum tamen appos i -
tioni, prout inferius dcscr ib i tu r , d u m
sic, ut pnemi t t i tu r , per dictos A m -
bassatores, Commissarios , & P r o c u -
ratores ageren tur , Anuo Domini a b
Incarnationc suprad ic to , Indict ionc
Nona, Pontificatüs Sanct iss imi in
Christo Pat r i s & Domini nostri D o -
mini Urlani di\ inâ Providcntià Papos
ScxtiAnnoNono, Mensc ,Die , & Loco
prxdic l i s , una cum dict is l lcvcrcndis
in Christo Pa t r ibus Nobi l ibus & T c s -
t ibussupradict is 6: in f rascr ip t i s .p ra ; -
sens interfui , c aque sic ficri vidi &
audivi, a l iunde occupatus , per a l ium
scribi feci & mcsubscr ips i , a c S i g n u m
meum apposui pnesen t ibus c o n s u c -
tum in (idem & Tcs t imonium o m n i u m
praemissorum.
Subscqucnter verò , c isdem Anno ,
Indictionc, Pont i f icatu, Mensc (Dic
tamen cjusdcm Mcnsis Décima S c -
ptimâ) in q u a d a m Camcra , vocata
Camera Stcllata, infra Pa la t ium R e -
gale, Domini nostri Ricardi Regis
Anglije supradict i a p u d W c s t m o n a s -
terium, Londonicnsi Dioecese, p r ; e -
fati, Femandus & Lauren t ius , Sigilla
sua Prajsent ibus apposuc run t ,
Pnesent ibus tunc ib idem,
Hcvcrcndis in Christo P a t r i b u s ,
Dominis,
nhor , Indicção nona, anno nono do
Pontif icado do Sanctissimo cm Christo
Padre c Senhor Nosso, o Senhor Papa
pela ] ) i \ ina Providencia Urbano Sex -
to, 110 Mez, Dia c Logar acima m e n -
cionados june tamente com os dictos
Reverendos cm Christo Padres, No-
bres c Tes temunhas sobrcdictas c s u -
praescr iptas , assisti e fui presente a
todos c cada um dos acima dictos a r -
tigos Traclados , Jurados c Concorda-
dos entre as referidas Par tes , menos
á collocação dos sèllos, como adeante
é descripto, se bem que tudo o mais
conformcocxpo$lo,foiassimrcal isado
pelos dictos Embaixadores , Commis-
sarios e Procuradores , c tudo eu vi e
ouvi ser ass im fei to; c noutra parte
occupado então, tudo fiz por outro
escrever, e subscrevi , c puz nas p re -
sentes o meu costumado signal cm fé
c tes temunho dc quanto fica referido.
E m seguida pois nos mesmos Anno,
Indicção, Pontificado, Mez (110 dia
comtudo Décimo Septimo do mesmo
Mez) na Camara chamada a Gamara
Es t rc l lada dentro dos Rcacs Paços dc
nosso Senhor supradicto, Ricardo liei
dc Inglaterra cm Wes tmins tc r , Dio-
cese de Londres , os mencionados
Fernando c Lourcnço sellaram a p r e -
sente com os seus sèllos.
Presentes sc acharam então,
os Reverendos em Christo Padres,
os Senhores Bispos ;
270 n o t a s
Wülielmo WintonicB,
Waltero Covcntria: k Lichfcldia,
Episcopis,
Aca l i i s inmul t i tud inc copiosàTcs-
t ibus ad Praemissa vocatís spccialitcr
& rogatis.
Gui lherme, de Win ton ,
Gual te r , dc Covcntry c de Lich-
field,
E copioso numero de out ras Tes-
temunhas pa ra tudo o referido espe-
cialmente convocadas c rogadas.
I lymcr , Focdtra, tomo VII, pag . 5 2 1 .
F
(Capi tu lo X X I I , p a g i n a ií)0)
Banquete do duque de Bragança em Villa-Viçosa. Dcscripçào. Serviço da mesa.
Ceremonias.
«Comeu o Legado no dia seguinte em publico do modo seguinte: assen-
tou-se em uma das cabeceiras da mesa depois de ter lavado as mãos, só,
•porque o duque não quiz l avar - se ao mesmo tempo por cortczia. Assen-
tou-se o duque ao pé do Legado . . . Junc to ao d u q u e ficou I). Jaymc seu
irmão dc edade dc dez annos , após cllc I) . Francisco e I). Henr ique filhos
do conde de Tentugal vestidos cm tabardos d e panno mesclado á moda sol-
dadesca. . . A mesa estava del icadamente ornada e coberta com toalhas dc
bretanha c tela da índia cncrcspadas s ingularmente . Os manjares eram a b u n -
dantíssimos e sumptuosiss imos, mas postos desordenadamente . . . c na maior
parte pouco agradaveis . . . p o r q u e lhes deitavam á toa . . . assucar , canclla, espe-
ciarias c gemas dc ovos cozidos . . .
As cobertas da mesa foram cinco, cada uma dc cinco serviços, afora o
ultimo da f rue ta , confcitos e doces com a galanter ia de sahirem voando per-
dizes c outros passaros ao ab r i r os pasteis . Durou o jan ta r por espaço dc
mais dc tres horas .
SERVIÇO DA MESA
A cada coberta que sempre era servida por fidalgos, ou cavallciros, locavam
os alabalcs, Irombelas c adufes mais com ruído q u e com suavidade.
Quando o duque bebia , sendo a bebida água pu ra , segundo costumava,
vinha adeante o mordomo-mór com o bastão na mão, c alraz o mcstre-sala
com a salva. Dos lados estavam dois creados vestidos dc veludopreto c tabardos
dc panno c canas nas mãos chamados «porte i ros .» Seguiam-se oulros dois
chamados «macciros» com maças de pra ta com as armas ducacs , c além
d'cslcs mais dois com sobrevestes de bl ocado dc ouro cobertas de armas do
2 7 2 n o t a s
duque , chamados «reis dc a rmas ,» todos os quaes tendo no meio o «cscanção»
com a copa dc ouro e com o j a r r o cober to , estavam dc joelhos tocando en t re -
tanto os instrumentos. Repet iu-se esta ceremonia , q u a n d o o Legado bebeu.»
Venlur ino, Viagem a Portugal do cardeal Alexandrino, t rad . de A. I l e r -
culano, Panorama, vol. v , pag . 3 3 8 .
G
( C a p i t u l o X X I I , p a g i n a 196)
A senhora I). Calharina duqueza de Bragança e a infanta sua mãe recebem
0 Legado-Apostolico. Trajar das senhoras. Ceremonias do recebimento.
«Depois de missa voltando o Legado ao seu qua r to encontrou á porta da
Camara ducal esperando-o cm pé a infanta I) . Isabel, filha do defuneto duque
D. Jayme, viuva do infante D. Duar t e , filho dc e l - re i D. Manuel . . . Trazia
um vestido preto afogado, coberta quas i toda com o m a n t o : é de estatura
alta e direi ta , de edade dc sessenta annos ; ao pé d'ella estava sua filha
I). Calharina duqueza de Bragança , a qua l , parecendo-lhe po rven tu ra a b a -
timento dc sua real grandeza in t i lu la r -sc duqueza , sc chama a senhora Ca-
tharina Teria dc edade vinte c nove annos . Trazia vestido de vclludo preto
afogado cheio de espigui lhas galantes dc ouro , rubis c diamantes com meias
mangas aber tas ao meio com rede dc ouro , cabcllo liso c levantado em topete . . .
com um rosiclcr dc d iamantes c r u b i n s ao pei to de inestimável valor, e pu l -
seiras e brincos de grossissimas pérolas . Pegava- lhe na cauda dc uma saia
dc gorgorão branco que trazia por baixo, uma graciosa donzella acompa-
nhada d 'outras dez vestidas dc diversas telas e todas do mesmo feitio com
muitas jóias , além de qua t ro donas vestidas como a infanta viuva, só com
a dilTcrença de não serem os >cos tão compr idos . T inha ao pé dc si, de um
lado I). Theodosio seu filho, d u q u e dc Barcellos, de edade dc qua t ro annos,
c I). Duarte, dc t res , vestidos com gibões e calças dc tela bordados de pra ta ,
listrada de vermelho, côr tão louvada do Ariosto, com cordões de ouro e
pérolas.. . Do outro lado estavam as suas duas filhas D. Maria , de sete annos,
e I). Scraphina, dc seis, vestidas dc raso carmesim bordado dc o u r o . . .
Feitos os comprimentos ao Legado, o convidaram a sentar -se cm uma
cadeira dc brocado de ouro , debaixo do doccl e a infanta e a senhora Catha-
1 Sobre este ponto enganou-se o auetor viajante. Ignorava elle, o que nüo admira, que em Portugal os filhos ou Gibas de Infantes usam, posposto ao nome, o titulo de Senhor ou Senhora.
1 8
2 7 4 n o t a s
rina no chão sobre um estrado q u e ficava de f ron te . Conversaram algum tempo
estando as damas em pé do ou t ro lado, e o d u q u e assentado á esquerda do
Legado fallando com o pat r iarcha Alexandr ino , e os ou t ros prelados c gent is-
homens cm pé no meio da sala .»
Vcntur ino , Viagem a Portugal, t r ad . dc A. I l c rcu lano , Panorama, vol. v, pag. 3 3 8 c 339 .
H
(Cap i tu lo X X I I , p a g . 197)
A infanta I). Maria 1
A infanta D. M a r i a . . . se mostrava a formosa Minerva, com que pode
contender eom devida confiança, assi cm rara gentileza c sotil engenho, como
toda outra sobre humana perfeição.
Jorge Ferre i ra dc Vasconcellos, Memorial da segunda Tavola Redonda.
cap. xi.vn.
Alta, dc esplendidas fô rmas , elegantíssima, a filha dc I). Manuel , o ven-
turoso c da bondosa, quão infeliz Lconor dWus t r i a , ao depois segunda m u -
lher dc Francisco I dc França , alliava á gentileza majcstal ica do por te , deno-
tando grande energia c isenção de carac ter , uma formosura suavíssima bem
revelada na alvura da pclle, no azul cclcslc dos olhos \ iv idos , e na cor loira
dos cabcllos que por dc sobre uma ligeira coifa alcvantando-sc em a r r edon -
dada frisa ate ás fontes, segundo a moda do tempo, lhe coroavam de ouro
a espaçosa e ampla f ron te , onde o talento espontâneo evidentemente se e x -
pandia. Es te talento era ainda abr i lhantado por muita erudição, incessante
amor ao estudo, e in in ter rompido t racto, não j á com os livros clássicos, senão
ainda com os múlt iplos cscr iplos do tempo considerado, como se sabe, a
edade dc ouro da l i l t e ra tura po r tugueza .
Quasi desde a infancia fôra sua mãe Lconor dWus t r i a , a singela irmã
do imperador Carlos V, dest inada para esposa do então príncipe dc Portugal ,
primogênito dc e l - re i 1). Manue l .
Este porem desconfiado como e ra dc quan tos o cercavam, c rcceioso dc
quedando casa ao pr íncipe (ao depois I). João III) viesse clle a usurpar - lhe
1 A presente nola é extracto ile um esludo inédito «pie o auetor escreveu acerca des t a
infanta, e que espera publicar cm breve.
302 n o t a s
o mando, resolveu subi tamente , q u a n d o t inha v i \ o s n o \ e Olhos e tocava já
os cincocnta annos, casar com a própr ia noiva do seu pr imogêni to!
I.conor d*Áustria, conforme a própr ia na r r ação de embaixador contem-
porâneo não era bon i t a : «Madama Lianor , escrevia elle cm fevereiro de
1577 a cl-rci D. Manuel , nom hc m u y fe rmosa , nem lhe podem chamar
fe ia ; teern boõa graça c boom despejo , e pa r ccc -me de condiçam branda e
a>ysada; nom teem boõs dentes c hc pequena dc corpo, c parece o aynda
mais, por que qua nom trazem chapys q u e pasem dal tura de dons dedos;
hc g r a n d e dançadeira , e folgua de o f a z e r 2 . » Até aqui o embaixador. Se
porém os encantos da bclleza não fa \o rec iam mui to a nova rainha, a sua
physionomia relractava a mais candida bondade 3. I l ludida acerca do prín-
cipe que lhe representavam como deforme c bobo 4 , reconheceu apenas
entrada cm nossa côrte o laço q u e lhe haviam a r m a d o ; c comparando o
então \ icoso manccbo dc dez c seis annos , ao qual estivera promctt ida, com
o varão idoso, a quem violentamente a un iam, não ponde refrear de todo
os impulsos do coração q u e exter iormente supp lan ta ram as vozes do dever.
Tal c o q u e pódc colher-se da l inguagem reservada, mas unanime dos histo-
riadores contemporâneos. Assim o confirmou também o grande Ilerculano.
Ent re tanto deu Leonor a seu marido uma lilhinha (8 dc junho de 1521)
que recebendo o nome dc Mar ia , c a infanta dc que t ractamos.
O rei dc Por tugal (1). Manuel) zeloso por indole própr ia , e abrazado por
ciúmes de seu mesmo filho, nem quer ia vel-o, vivendo desde então cm infernal
supplicio. Ao cabo de tres annos al l iviou-o a morte , não extineto ainda o
remorso de haver ar rebatado ao filho a mulher que por tantas vezes lhe
designara.
Aturadas relações sc estabeleceram desde então en t re os antigos noivos.
Para salvar apparencias afiectou* a pr incipio a rainha viuva querer aco-
Ihcr-se ao mosteiro dc Odivcl las ; mas dissuadida pelo novo rei , habitaram
' Pero Corrêa embaixador a Flandres. 2 Carta do supra indicado a el-rei D. Manuel. Bruxcllas, 5 de fevereiro dc 1?>I7. Arcb.
nacional da lorre do tombo, Corpo chronologico, par te 1.*, maç. 21, n.° 26. a fKléonore sans ètre bclle, avail toute la g race de la bonté.» Mignet, Ricalité de Fran-
çois I el Charles Quint, vol. n, cap. S " , pag . 191. 4 «Contava muitos annos depois I). Brites do Mendonça, huma das damas que com ella
vinham,.. . que a bondosa senhora (a rainha) vendo aqui o Príncipe, e espantada do que lhe tinham dito... dizia para as damas com ironia, e ao parecer não sem magoa.» «Este es cl bovo?» Fr . I.uiz de Sousa, Aanaeí, par te i, cap. iv.
n o t a s 2 7 7
dc então cm deante palncios visinhos, embora nunca sob o mesmo tccto; c
quando pelos rebates dc peste sahiu I) . João III da capital para além do Tejo,
seguiu-o desde logo a juvenil rainha levando comsigo, como é natural , a
filhinha que idolatrava.
No cmtanto, ou para evitar cscandalos , 011 porque (segundo mais con-
forme parece) a graciosa irmã dc Carlos V por seu animo benevolente c
grande caridade se houvesse tornado sympathica á nação portugueza, os
cidadãos dc Lisboa un indo- se cm corpo, e em nome das povoações dc todo
o reino, representaram a el-rei ins tando-o a q u e recebesse por esposa a
viuva dc seu pac
Hesitou o perplexo fdho de D . Manuel . As murmurações redobravam
todavia. A côrte p ropa lava-as . O povo repercu t ia -as . Os embaixadores
extrangeiros — q u e já então os havia permanentes , do Papa , dc Franca e
dc Castclla — t ransmi t t i am-nas encarecidas a seus proprios soberanos.
lTm facto extranho veio a inda complicar , ou antes resolver, tão grave
assumpto.
Sahira cl-rci a lém do Te jo (de Salvater ra , onde se açoitara da poste)
caminho de San ta rém. Segu iu -o , como de cos tume, a rainha viuva. Ao
chegar a Mugc encont ra ram abi o embaixador castelhano, Christovão B a r -
roso, o qual cm nome dc seu amo in t imou á ra inha que parasse, e já não
acompanhasse mais seu en teado .
Exasperou-se Lconor d 'Áus t r i a , como é fácil suppór ; mas cedeu ao repre-
sentante dc seu i rmão. O embaixador pintou com tão vivas côrcs a Carlos V
este facto, c os que o haviam or ig inado , que o altivo imperador subitamente
ordenou a sua irmã q u e sem a minima delonga sahisse dc Portugal .
Pode calcular-se o dolorido t r anse por que passou a infeliz rainha, vio-
lentada assim a s e p a r a r - s e d ' aquc l lc q u e desde a infancia amara , c da filha
estremecida que dos braços lhe a r rancavam com a total prohibieão de a levar
comsigo.
Partiu pois desamparada c só (maio de 1323) .
Naqucllc momento plancara I). João III (fevereiro 1523) esposar a antiga
noiva, sua madras ta a g o r a 2 . Fa l lou- se até dc expedir embaixadores a Homa.
1 Andrade, Chron. de el-rei T). Joio III, parte 1, cap. 29.° 2 Carta importantíssima do dr. Simpson, embaixador dc Inglaterra em llcspanlia a Hen-
rique VIU: «Ouo cl-rci de Portugal nfto consentia que a rainha viuva dc cl-rci seu pac viesse a Hespanha, porque estava namorado d e l i a c a queria desposar.» Museu britan., bill. llarleyana.
2 7 8 n o t a s
Um d'cstes, enviado a outra missão, chegou a pe rgun t a r dc terra extrangeira
a el-rei sc eftectivamcnlc resolvia casar com a viuva a fim de sc impetrar
dispensa ! .
O arteiro filho dc D. Manuel não respondeu . Passados os instantes dc
cnthusiasmo, o tempo havia produzido o usual efleito sobre aquelle caracter
egoista, crasso, rcfalsado, cscrupuloso.
Ainda mais. Antes dc andados dois annos tomou el-rei por esposa uma
irmã da própria que tanto lhe sacrificara (fevereiro de 1525) .
E a pobre infanl inha?
El-rei seu i rmão, a pedido da camara c cidadãos dc Lisboa, não a deixou
sahir do reino, quebran tando assim o t ractado dc Saragoça dc 22 dc maio
(1518 q u e ratificara cm 2 dc j u n h o d 'aqucl le anno , c e m que solcmncmcntc
sc compromcttera a que a rainha no caso dc e m i u v a r podia i r - se dc Portugal
c levar seus filhos. D. João 111 faltou d 'cs t 'ar tc á sua palavra dc homem c dc
rei , calcou aos pés um acto internacional inviolável pela fé dos tractados, c
falseou o ju ramento que p res ta ra , quando ratificou aquel le acto diplomático2 .
Vinte e dois mezes contava apenas a pobre cr iança, quando seu irmão a
arrebatou assim aos carinhos da própr ia mãe .
Ao partir deixou-a esta cm poder da sua camare i r a -mór I). Joanna Ulasfet,
como pessoa dc que mais confiava c q u e t ambém a c rca ra .
Casado e l - re i , foi a infanta aos qua t ro annos en t regue á dirccção da rainha sua t ia .
Calharina d 'Austr ia t ímida, devota, i r resoluta , pouco poderia ensinar .
Maria deveu pois muito a si mesma, c aos conselhos da desolada mãe que
dc longe c sem cessar velava por cila.
Es tava-se cm pleno renascimento. A erudição clássica, o amor ao estudo, influenciados do extrangeiro, cxpandiam-sc amplamente por todo o nosso reino.
Felizmente «lc terras de Castella viera então chamado para mestre do duque
de Bragança um franccz erudi to . Sigé (cm portuguez Sigco) era o seu nome.
Comsigo t rouxe elle duas filhas,de que adeante fal íamos—Angela c Luiza—.
Uma e outra q u e entraram ao serviço da infanta , o caracter especial da
1 Existe o dncumonto na torre do lombo, em a preciosa collecçAo denominada Corpo Chronolorjico, parte II.
- Archiro nacional, casa da coroa, gaveta 1", maç. 1. A ratificação do principc encon-tra-se em Pacheco, Vida da Infanta D. Maria, cap. x"x, doe. iv.
NOTAS . á 7 9
educanda, a b r i lhan te epocha de desenvolvimenlo cm q u e viveu, e como cila
mesma refere cm carta q u e se conserva , os conselhos da ra inha sua mãe que
a incitava a c m p r c h e n d e r g r a n d e s e s tudos , con t r ibu í r am clTicazmcntc para
a summa i l lustração q u e eng randeceu a e rud i t a in fan ta , c lhe marcou ass i -
gnalado logar na his tor ia l i t le rar ia de nossa p a t r i a .
Soube Maria a f undo as l ínguas la t ina c g r e g a ; escrevia por tuguez sem
um erro c com formosa le t t ra . A p p r e n d e u sciencias na tu raes c ccclcsiasticas,
c foi auetora dc diversas o b r a s , q u e infe l izmente se p e r d e r a m . Ha d'ella duas
cartas or ig inaes . Uma em p o r t u g u e z a seu tio c c u n h a d o , o imperador Carlos V;
outra cm la t im a sua m ã e . Nesta ca r t a a d m i r a m - s e a pureza da lat inidadc,
o conciso da phrase , a e lcgancia do es tvlo . D'ahi pódc in fe r i r - se o qui late
das obras ex t rav iadas .
Conforme o t rac tado cm q u e sc e s t ipu la ram as condições pa ra o casamento
dec l - r e i seu pae devia a i n f a n t a , q u a n d o a t t ingissc os dezeseis annos , receber
o valioso pa t r imon io q u e lhe confe r i am aque l ias condições. Não lh'o deu
I). João III , c d 'es te a b u s o de re te r e l - re i em mão o q u e era de sua i rmã ,
abuso que tem o nome q u e nos não praz d a r - l h e , foi cila constante victima
Arb i t ra ram- lhe no cmtan to a l g u n s bens da coroa, c assim tomou desde logo
casa nos ant igos paços d a a lcaçova, c ao depois 110 campo de Sancta Clara cm
o edifício j u n e t o ao mos te i ro das f re i ras d ' e s t e nome , a fim de não p rocu ra r
fora os ollicios d iv inos , a q u e s e g u n d o p rac t i ca do tempo ass iduamente
assistia.
\
Com o andar dos annos os seus paços , q u e e r a m sumptuos i ss imos , e que
a infanta mudou a inda p a r a j u n e t o do convento das Commcndadc i ras de
Sanctos em f ren te ao pa lac io do e m b a i x a d o r de F r a n ç a , I lonora to dc C a i s 2 ,
no vallc de E n x o b r e g a s , en t ão o b a i r r o a r i s toc ra ta da capi ta l , fo ram-se t o r -
nando nuclco esp lend ido dc sc ienc ias , dc bc l las - le t t ras c a r tes , cschola dc
p in tura , de poesia , de m u s i c a , e dos ma i s prec iosos lavorcs e bordados , com
que á porfia sc e n r i q u e c i a m os t emplos e mos te i ros do r e ino .
Numeroso c fu lgente era nes tes paços da in fan ta o c i rculo das suas damas ,
1 Ao infante I). I.uiz e provavelmente a seus i rmãos deixou D. JoJo 111 dc satisfazer as
legitimas paterna c materna, <pin eram, como pódc suppôr-sc, mui importantes. Veja-se o
testamento do mesmo infante cm Sousa , Provas ú hist. <jcn., tomo 11. 2 Carla do embaixador castelhano Luiz Sarmicnto ao imperador Carlos V. Lisboa, 13
de março dc K>i2 apud Pacheco, Vida ctc. , cap. 8.°
280 n o t a s
a s quaes obrigava a constante lavor c a turado es tudo. Assim, provados
talentos desabrocharam á sua beneficente s o m b r a :
Luiza Sigéa, a grande escr iptora , mest ra da infanta cm sciencias c h u m a -
nidades, eximia nas línguas or ientaes c dou tas , admirada na Eu ropa , cor-
respondendo-sc com Filippc II dc Castella, c com o propr io Summo Pon-
tífice (Paulo III), e aue to ra do poema cm versos latinos «Cintra» e dc muitas
outras obras
Angela Sigéa irmã da precedente , e c o m o cila insigne cm sciencias c p r in -
cipalmente na musica, de q u e era dircctora nos paços da pr inceza;
Publ ia I lor tcns ia , a juvenil es tudante da Universidade dc Coimbra, onde
cursou humanidades , philosophia c theologia, d isputando alli c cm Elvas
na presença de cl-rci de l lcspanha conclusões publicas q u e lhe valeram
d'aquellc soberano uma pensão vi ta l íc ia ;
Paula Vicente, a filha condigna do celebre poeta comico, c, segundo sc
allirma, collaboradora nos úl t imos annos d 'cstc cm alguns dos famosos autos
que maravilhavam a côr te ;
A velha Joanna Vaz por cognome aphilosopha, poetisa notável , escriptora
cm diversas l ínguas, c pr incipalmente cm a latina q u e por determinação da
infanta ensinava a suas d a m a s 2 ;
Joanna do Taco, I) . Maria de Noronha , filha do marquez dc Vil la-Rcal ,
c ainda outras i l lus t raram-sc , mutuamente inf luenciadas pelo fulgir do astro
que vivificava a todas.
Muitos príncipes, como é notorio, e entre esses o Dclphim, primogênito
dc Francisco I, o imperador Maximil iano c Fil ippc II d i spu ta ram a mão da
infanta. Deveria pois ter sido ra inha dc França , imperatr iz de Allcmanha,
ou rainha dc Castella.
Todas estas all ianças lhe f rus t rou , já a cynica ambição dc seu tio o im-
perador Carlos V, já a hypocri ta avareza dc seu i rmão 1). João III, obst i -
nado sempre cm lhe não rest i tuir o valiosissimo capital da herança paterna .
Morto a final este soberano (1557) canhe lando embaldc a rainha D. Lconor
haver sua filha comsigo (o q u e cl-rci para não pagar o dote que lhe devia
procurara sempre desviar), instou a rainha por que ao menos podesse ir
encontrar a filha na fronteira dos dois reinos. Machinava leval-a comsigo.
' O poema existe na bibliolhcca publica de Lisboa. 2 Conforme Acliilles Estaco (no ?cu poema latino em honra d e s t a infanta) Joanna Var era
ent.lo já muito velha, ao passo que Luiza Sigéa tinha apenas vinte annos. Veja-sc Acliilles Estaco, Poesia latina cm honra da infanta I). Maria.
n o t a s 2 8 1
Em Lisboa porém, onde a infanta por suas virtudes c caridade incxhau-
rivel era idola t rada, não qu izeram os povos dcixal-a par t i r , sendo indis-
pensável que a infanta pres tasse peran te as auclor idadcs ju ramento solcmnc
dc que cm breve regressar ia .
Partiu a final. E m Badajoz sc encontrou aos t r inta c seis annos com sua
mãe que nunca até alli vira. Vinte d ias — o s mais felizes na vida dc ambas —
passaram june t a s ; mas fiel ao j u r a m e n t o prestado, leal á palavra que dera,
Maria suffocando no peito os mais extremosos aíTcclos dc sua alma, voltou
ao reino. Nenhuma consideração foi poderosa a desvial-a do juramento que
dera.
Lisboa inteira , diz empha t icamcntc um seu panegyris ta , voou ás margens
do Tejo para reccbcl -a . Felicitações mu tuas s e d a v a m todos, principalmente
os pobres que a appcl l idavam mãe.
O celebre h is tor iador Mignct , ha poucos dias fallccido, e com clle outros
cscriptorcs ext rangeiros , censuram esta resolução da infanta, acoimando-a
dc pouco aíTcctuosa para com sua mãe. Sabido é como geralmente escrevem
extrangeiros, quando t rac tam dc P o r t u g a l .
Ignorando as especiaes c i rcumstanc ias q u e revestiram a ida da princcza,
estes, a que nos refer imos , desv i r tua ram- lhe completamente as intenções
puríssimas.
Todos os actos de sua vida provam q u e Maria idolatrava a mãe a que
devia o ser. Mas acima da mais a rdente dedicação filial, por dc sobre os
mais puros aíTcclos do coração, estava a palavra dada solemnemenle á capital
do ceino, achava-se a manutenção do j u r a m e n t o que sobre os sanclos evan-
gelhos havia p res tado . E sc a inda hoje o cumpr imento da palavra c a m a -
nutenção do ju r amen to são condições rud imenta res na cxislcncia social dc
qualquer classe, mui to mais solidos e indestruetiveis vigoravam esses pr in-
cípios em um século de crenças tão vivas inda, e de tão ardente fé, como a
que cm Portugal sc man t inha então por mui tas causas .
Ainda assim, grandes luetas af f ronlou aquella alma candida . O coração
ret inha-a. Impcll ia-a o dever . Es te por fim supplanlou aquellc . Maria sacri-
ficou-se, victima da sua pa lavra , escrava do j u r amen to prestado.
Ao scparar-sc da filha, qu inze d ias apenas sobreviveu a rainha I). Lconor,
deixando-a universal herdei ra de sua dcscommunal r iqueza , o que tornou
infanta de Por tuga l uma das mais r icas pr incezas d 'aquel lc século.
«Tem neste re ino, escrevia no p ropr io tempo (cm 1567) o chronista Damião
28 á n o t a s
dc Góes, tão honrada casa dc crcados e damas, q u e para d i / c r - s c q u e é cgual
a todas as rainhas dc Europa não lhe falta mais q u e o nome dc uma d'ellas.»
E de feito, verdadeiramente real era o seu Ir acto , esplendido o seu \ i yc r ,
sumptuosissimos os seus paços, asylo, como dissemos, de sciencias, dc lct tras,
dc bellas-artcs.
Os sábios c poetas do tempo, c numerosíssimos e ram naquclla edade, celc-
b ra ram-na cm prosa c verso. Outros buscaram engrandecer -se , dedicando-lhe
livros que produziam.
D 'cn t re esses podem c i t a r - se :
O grande jur isconsul to .Manuel da Costa, então lente na Universidade dc
Co imbra ;
O doutor Aspicuelta Navarro, também então cathcdrat ico dc pr ima na
mesma Universidade;
Mariz cm seus diálogos;
Antonio dc Vasconccllos;
Manuel dc Faria c Sousa ;
Damião de Goes ;
Manuel dc Salinas e L i s a n a ;
Jorge Ferreira de Vasconccl los;
O poeta lalinista Acliilles Es taço , que a cantou num poema cm versos
l a t inos ;
O notável frei Luiz dc Granada , que por ordem sua compoz c lhe dedicou
um livro sobre inslrucção religiosa, que a infanta mandou dis t r ibuir pelas
parochias ;
O grande João dc Barros auetor do p ropr io elogio escripto cm honra da
infanta, c impresso nas obras do chant re Sevcrim dc F a r i a ;
E sobre todos Camões que á sentida morte da princeza (10 dc outubro
dc 1577) compoz o seguinte sone to :
Que levas, cruel mor t e? Um claro d i a ;
A que horas o tomas te? Amanhecendo;
Entendes o que levas? Não en tendo;
Pois quem t 'o fez levar? Quem o entendia .
Seu corpo quem o goza? A te r ra f r i a ;
Como ficou sua luz? Anoi tecendo;
Lusitania que d iz? Fica dizendo,
(f E m fim não mereci Dona Mar ia .»
n o t a s 283
Malastc quem a \ i o ? Já morto es tava;
Que diz o seu a m o r ? Fal lar não ousa ;
E quem o faz c a l a r ? Minha vontade;
Na morte que ficou? Saudade b rava ;
Que fica lá q u e v e r ? Nenhuma cousa,
Mas fica q u e chorar sua beldade.
Quando cm pleno renasc imento , no século de ouro da antiga l i t tcratura
portugueza, tantos e taes engenhos são unanimes em engrandecer a formo-
sura, os sublimes ta lentos , c as vir tudes elevadíssimas da infanta D. Maria,
quando os séculos poster iores , c ainda o actual , são também unanimes 110
mesmo respeitoso engrandeci inento e admiração, 6 porque cm verdade aquella
princeza por seu elevado méri to c raros dotes se tornara digna da justiça dos
contemporâneos, da admiração da poster idade.
I
(Capi tu lo X X I I I , p a g i n a 201)
A côrte de D. Affonso V e um cavalleiro andanle
O cavalleiro andante , cu jo lypo o engenho de Cervantcs, ou mais propr ia-
mente o tempo cm q u e este viveu, annul lou para sempre matando-o pelo
ridículo, era duran te a edade-media , e ainda depois, entidade valiosissima.
Affrontando os esforçados do mundo , colhia assignaladas honras o pa la -
dino, sempre que em qua lque r córte se apresentava.
Nos amplos domínios do d u q u e Fil ippe o bom de Borgonha, genro de
1). João I de Por tuga l , sobrelcvava-se en t re os mais ardidos messire Jacques
de Lalain, i rmão c companheiro da insigne ordem do tosão de ouro, inst i-
tuída por aquel le pr íncipe em honra , como temos dicto, dc sua esposa,
a infanta I). Isabel .
Pelejador incançavcl c cavalleiro andante segundo as generosas ideas do
tempo, correra aquel le ex t remado guerre i ro diversos reinos desafiando
quantos com cllc quizessem en t ra r cm p u g n a .
ÍVcntrc as cortes q u e assim visitou foi uma a de Por tugal .
I)a chronica do flamengo Chastclain, contemporâneo d'aquellcs successos,
cxtractamos cm summula a vinda a nosso reino do grande capitão, bem como
as curiosas c i rcumstancias q u e a reves t i ram.
Reinava então I) . AtTonso V sob a dirccção de seu tio c sogro, o illustrado
infante D. Pedro .
Apenas na côrte constou q u e sc aproximava o guerre i ro , foi mandado á
fronteira recebel-0 Pedro Peixoto , escudeiro dc e l - re i , com muitos homens
nobres ate trinta de cavallo
1 A chronica flamenga concorda perfeitamente com os documentos portuguezes do tempo. Pedro Peixoto era enUto (1446) simples escudeiro. Segundo uso da curto foi accrescentado no fóro, e cm 1574, havia subido já ao gráu de cavalleiro-fidalgo com a moradia de "50 réis. Litro das moradias da casa do sr. rei D. Affonso V, apud Sousa, llisl. gen.—Provas, tomo II, pag. 33.
2 8 G NOTAS
Aguardaram-no 110 Sabugal , extrema povoarão na raia portugueza d ' a -
quelle lado
Assim que ao longe se enxergou messire I.alain com os de sua comitiva,
o escudeiro correu a enconlral-o communicando- lhc a missão de que ia
incumbido. Agradeceu o cavalleiro andante a grande honra que lhe el-rei
fazia mandando assim recebe i -o ; e desde logo, june tos todos, cavalgaram
mui ledos ate á villa, onde messire sc agazalhou com os seus 11a pousada
que lhe haviam appare lhado. Desvcstidos todos e envergando as roupas 2 ,
sentaram-se a cear , e o escudeiro portuguez com ellcs. Grandes presentes
foram offerecidos ao hospede e aos da companhia , assim dc vinhos, carnes ,
doces e especiarias de muitas sortes , como dc tochas, cirios e brandões dc
cera. Trombctas , ministreis c muitos sonoros instrumentos tocavam á moda
da terra, c por tal ar te , q u e melhor se não podia fazer, sc estivera alli o
d u q u e dc l iorgonha. «Longo fora contar -vos , accrcsccnta o chronis ta , os
manjares e entremeses que então sc \ i r a m . »
Concluída a ceia c levantadas mesas , c o m i d a r a m messire Jacques a entrar
n u m j a rd im, onde em pract icas folgasãs sc recrearam a té á hora dc dei tar .
Então os homens nobres portuyalezcs despedi ram-se , indo cada um para
sua pousada.
Ao dia seguinte p repara ram-se para par t i r , enviando deante mulas c
azemelas com os bahíis c malotões. Esperados pelos por tuguezes ao sahir
da \ i l l a , foram todos caminho dc Évora , onde, segundo fama, se achava
el - re i .
Em Estremoz aguardava-os um g rande senhor da terra. o duque dc B r a -
gança, q u e os recebeu com muita honra c festejou grandemente .
Largaram na manhã seguinte para Evoramonte , e ahi encontraram já
muitos lidalgos enviados pelo rei de Portugal , a fim de cumpr imentarem c
acompanharem o cavalleiro. Mandou este cantar missa , conforme costumava,
e ouvindo-a mui devotamente, pa r t i ram para É v o r a .
Quando messire sc aproximava da cidade, \ i c ra in fora rcccbel-o muitos
1 Buchon, explicando o texto da Chronica de Chastelain, dá a esta povoaçâo o nome de Albuquerque. K manifesto equivoco, porque Albuquerque, além de ser terra castelhana, licava fôra da estrada que Lalain seguia. No texto de Chaslelain acha-se Aiogal, o que é evidentemente Sabugal.
Yeja-se o que sobre as vestes d este nome dissemos a pag. 13 í do presente volume.
n o t a s 2 8 7
senhores e cavalleiros, e cnlrc esses em nome de el-rei o senhor de Miranda >,
Álvaro de A lmada 2 , Kuy Borges s c Fernão Tcllcs da Silva
Esplcndcntc aposentadoria lhe fôra por mandado dc cl-rci aprestada na
cidade; c nessa noite muitos ofl iciacs-mórcs do paço o acompanharam á ceia,
finda a qual , c dadas graças a Nosso Senhor , começaram a folgar até á hora
da despedida.
Na manhã seguinte vestido messirc de Lalain cm suas melhores roupas ,
vieram muitos cavalleiros c escudeiros da casa real buscal-o para o condu-
zirem á presença de e l - re i .
Cavalgaram todos, mui luzidamente t rajados cm vestes de seda, c a t r a -
vessaram a rua direita que levava aos paços.
Na sala grande a c h a \ a m - s c june tos com muitos outros senhores da corte,
D. Pedro c I). J aymc , filhos do infante regente .
Estes dois príncipes, após mu tuas r e v e r e n d a s , collocaram-sc aos lados
do cavallciro, c assim o conduzi ram até á camara de e l - re i .
Estava o soberano acompanhado dc I). Ped ro dc Por tugal , duque dc
Coimbra, do d u q u e dc Bragança , c dc I). Fernando irmão do rei
Então messirc Jacqucs dc Lalain fazendo suas mesm as ao rei e aos p r ín -
cipes, apresentou as cartas dc crença de seu mui temido c soberano senhor
o duque dc Borgonha, e recitou o usual discurso, cm que p ropunha a empresa
de entrar cm liça com quan tos sc presentassem.
A resposta dc cl-rci foi a seguin te : «Messirc J acqucs dc Lalain, bem vindo
sede ao reino de Por tuga l . E m honra c reverencia dc nosso amado tio c bclla
1 Era AlTonso de Miranda, senhor de Gayapena, ' r ico homem, porteiro-mór dc el-rei c do conselho. Veja-se I). Affonso V, apud Sousa, Ilist. yen., tomo u. Livro das moradias, anno 11G9. Provas, tomo u, doe. 9 pag. 23.
J Era o grande conde dc Avranchcs, Álvaro Vasques dWlmada, cupitAo-mór do mar, alcaide-mór de Lisboa, c vulto importantíssimo na côrte, onde preponderava ainda enlào a influencia do infante I). Pedro.
3 Chastelain chama-lhe Kuy Berges. Era senhor de Carvalhaes, cavalleiro-fidalgo com a moradia de 1£S00 réis... «Deu (cl-rci) a Kuy Borges a terra de Carvalhaes.» Athaydc (I). Vasco), Copia das mercês que fez el-rei D. Affonso V. Livro das moradias da casa do mesmo rei apud Sousa, Protas, tomo II, doe. 8.° c 9.»
4 Foi senhor da terra dc Berrcdos, Livro das moradias, uti supra . J Era o infante I). Fernando, duque dc Beja e Vizeu, mestre dc Santhiago c pae de el-rei
D. Manuel. Veja-se Copia das mercês, uti supra .
2 8 8 n o t a s
tia de liorgonha nós vos desejamos prestar todos os serviços e bens a que
formos poderosos. Quanto á permissão para vossa empresa , ligeira resposta
nos cabe da r . Aguardac-a por hoje .»
No seguinte dia a horas dc véspera foi com o ccrcmonial , já dicto, messire
Jacqucs levado a palacio.
Achava-se o monarcha rodeado dos príncipes e senhores, incluindo os
do conselho. Por um dos mais notáveis foi então respondido «que cl-rci dc
Portugal c o d u q u e dc Borgonha estavam por tão estreitos laços de consa-
guinidade unidos, q u e não poderia el-rei soflVer que qua lquer dos dc sua
casa, ou reino tomasse armas contra um servidor da casa de Borgonha.»
Tão submissas c graciosas foram nesta conjunclura as palavras do a r r o -
jado pclejador , que maravi lharam os circuinstantcs, dizendo cada um «felizes
pac e mãe que tal filho geraram.»
Conduziram-no então aos aposentos da ra inha , depois dc servidas na
grande sala f ruetas c vinho, segundo uso.
Cercavam a rainha as princczas c todas suas damas , mui r icamente ador -
nadas á maneira da terra, e cada uma segundo seu estado.
Muito aprouve a todas o donoso porte do cavalleiro que , feitas reverente-
mente as mesuras de e t iqueta , se ret irou á pousada , acompanhado por muitos
senhores c cavallciros.
Eis cm resumo a dcscripção, para nós mui curiosa, do chronista flamengo
acerca da côrte portugueza no tempo de I). Affonso V.
Continua ainda :
Passados dois dias, deu el-rei cm seus paços um solemne banquete cm
honra de messire de I .alain.
Na cabeceira da mesa sentou-se o rei , tendo á direita o infante 1). Pedro e á esquerda o cavalleiro andante.
Segue na chronica a dcscripção do banque te que omil t imos para não
repetir o que acerca dc outros deixámos dcscr ipto.
De tarde passou el-rei para os aposentos das damas, onde compareceu
também o cavalleiro. Começaram logo as danças. Rompeu o sarau el-rei
sendo seu par a ra inha . Ninguém mais dançou então. Ao depois chamou o 1 A infanta I). Isabel, filha de I). Juào I, chamada cm Flandres Ia duchesse Isabeau dc
Portugal.
N O T A S m
soberano o cavallciro c convidou-o a que dançasse com sua real esposa.
Mui grato sc confessou a tal honra messirc dc Lalain. Seguiram em conti-
nente grandes danças por todo o palacio ao som dc melodiosos instrumentos
que os minis t re is tangiam.
Vinhos e especiarias pozeram o remate do cstylo á csplcndcnlc solemni-
dade, com q u e os reis portuguezes festejaram o grande cavallciro.
Por fim numa bella manhã tiveram cl-rci c a rainha vontade dc irem á
caça e a folgar por esses campos. Convidaram logo messirc Jacqucs c os dc
sua comitiva, q u e houveram todos a honra dc acompanhar os soberanos. E
assim, accrcsccnta ainda o chronista , ao cabo de doze ou treze dias dc inin-
terruptos prazeres re t i rou-se o cavallciro, essencialmente agradecido ás innu-
meras honras c aprazível tracto, com que rei, ra inha, princczas, senhores c
damas da côrte portugueza o haviam, durante aquelle tempo, acolhido,
festejado e divert ido
1 Veja-sc : Chronique du bon Chevalicr Jacqucs de Lalain. frire el compagnon de lordre
de la toison dor, par Messirc Georges de Chastelain, roi d a r m e s , indiciaire des dues de
Bourgogne, cap . xxvviu a X L I I ; Copia das mercês que fez el-rei l). Affonso V, por I). Vasco
do Athayde, Prior do Cra to ; Sousa, Ilist. geneal., tomo III, o 1'rovas, tomo II, doe. 8.° e
Livro das moradias, uti supra , doe. 9 ° ; Arch. nac. da torre do tombo, Livro da Chancel-
laria de D. A/fonso V; Buy de Pina, Chron. de D. A/fonso V, cap. 37.° e 38.° e outros.
18
K
(Capi tu lo X X V I I I , p a g i n a 244)
Entrega de Bombaim aos inglezes
E m o tomo XVIII do Quadro elementar das relações políticas e diplomatieas
de Portugal o visconde dc San ta rém, ou por ventura Rcbcllo da Silva, seu
cont inuador , mencionando a entrega de Bombaim aos inglezes, aflirmou que
o motivo por que o então governador da índia , Antonio de Mello c Castro,
entendera q u e não devia rcal isar-sc aquclla entrega, fôra para que Bombaim
não cahisse em mãos de hereges.
Devemos cm real idade lamentar que d 'cnt rc os dois abalisados h is tor ia -
dores o que tal equivoco abraçou fosse assim collocar-se a par do auetor
do Gabinete Historico.
Es te equivoco porem q u e involve grave calumnia, embora involuntár ia ,
contra as intenções e a capacidade dc um dos mais sisudos governadores
que teve a í nd ia , 6 completamente refutado pelas cartas originaes de cl-rci
D. AlTonso VI e da ra inha regente aquel le funccionario, c mais ainda pelos
proprios oflicios do mesmo governador , em que este com grande indcpen-
dencia, hombr idade e especial conhecimento dos factos e do terri torio expõe
c i r cuns t anc i adamen te ao soberano as valiosissimas razões por que a entrega
dc Bombaim seria essencialmente prejudic ia l á prosperidade da metropole,
á manutenção do Es tado da índ ia , c aos interesses e bem-estar de seus
habi tadores .
Es tas razões podem ver-se no que expozemos a pagina 2 4 6 , bem como
nos oflicios do governador a c l - rc i , datados de Goa em 2 8 de dezembro dc
1662 c 5 de j ane i ro dc 1 6 6 5 , e outrosim na resposta ao mesmo governador
de te rminando-sc - lhc a immcdiata ent rega .
Cumpre a inda notar que , sc o governador apresentou alguma vez a idèa
n o t a s
que lhe at t r ibuiram de não dever entregar-se Bombaim a hereges, seria para
illudir a at tenção dos inglezes e desvial-os das verdadeiras causas de inte-
resse nacional que sc oppunham áquella entrega.
Assim parecem demonstrar as seguintes palavras do propr io governador
em officio a cl-rci , propondo q u e sc olTercccsse a Inglaterra um milhão de
cruzados (que a índia portugueza se responsabilisava a pagar) cm vez de
scr- lhes cedida a i lha: «Se os inglezes suspei tarem que ha interesse p o r t u -
guez cm não entregar Bombaim, tudo lhes ha dc parecer jpouco '.»
Em vista do que resumidamente fica exposto em t r ibuto á verdade e des -
aggravo dc um prestante funccionario , res ta-nos applaudir que os i r r e f r a -
gaveis documentos q u e deixámos extractados viessem rebater ate á saciedadc
accusações infundadas , c plenamente just if icar as nobres aspirações e illi-
bado proceder de um benemérito que a inadvcrtencia havia, embora invo-
luntar iamente , alTrontado.
1 Carta do governador, depois vice-rei da Índia, Antonio de Mello c Castro, para el-rei sobre a entrega dc Bombaim aos inglezes. Sccret. do Gov. dc Goa, liv. das Monções, n.°28.° Sr. Biker, SuppUm., tomo ix, pag. 232.
F I M .
I Z N T D I O E
Pag. DEDICATÓRIA V
PREFACIO V N
C A P I T U L O I
D. Fernando ent re os soberanos de Por tuga l .—Má ventura .—
A r a i n h a . — A herdeira da coroa .—Integr idade da pá t r i a .—
O rei dc Cas te l la .—Pacto fa lseado.—Energia do povo po r tu -
g u e z . — O pendão da indcpendencia .—Bastardo c padre .—
Nobreza c bu rguez ia .—A arraia-meuda.—A eleição popular .
— O mestre d 'Av iz .—O reino c Leonor Tcllcs .—Invasão cas-
te lhana .—Por tuga l contra si mesmo.—Defesa .—Emissár ios
a Ing la te r ra .—Urgência dc auxi l ia res .—Os nobres e a regente.
— O mestre de Santhiago c o chancel lcr .—Suspei tas .—Missão
a Londres .—Os embaixadores .—Conveniências .—A sancta
ordem da cavallaria 1 a l O
C A P I T U L O I I
A edade-media e a cava l la r ia .—As grandes idèas sociacs.— S u b -
ordinação á eg re j a .—Como eram armados os cavalleiros.—
A vigí l ia .—O p re s t i t o .—No templo .—Dupla usança quando
era o rei q u e dava a inves t idura .—Pedro I e o conde dc IJar-
ce l los .—Dcscommunal a p p a r a t o . — A noite semelha o d i a .—
O rei dançando atravez das ruas .—Charac tc r especial das
d a n ç a s . — Musicas estrepitosas. — As trombetas de cl-rci
D. P e d r o . — U m capitão inglez .—Banquete ao povo.—Bois
294 ÍNDICE
inteiros assados .—O rei folgasão c o novel caval lc i ro .—Os
paços do regedor c o conde Andci ro .—Invasão dc inimigos.
- S a l v e - s e a p a t r i a . — O mestre na sé ca thcdra l .—O c h a n -
ccllcr novel.—Solemnidadcs da inves t idura .—A punhada so-
bre o pescoço.—O osculo da p a z . — É cavallciro
C A P I T U L O III
Lisboa c as bordes cas te lhanas .—Os embaixadores a Inglaterra .
—Luzimcnlo do mestre dc San th iago .—Nome da nau q u e o
t ranspor ta .—As naus na edade-med ia .—As gales, verdadeiros
vasos dc guerra — N a u s e ca r racas .—Mercador ia s .—O porto
de Lisboa.—Sua impor lanc ia .—O chancellcr do reino em uma
b a r c a . — M a r de rosas .—Ladrões sobre as aguas .—Boa ven-
tu ra .—A costa b r i t ann ica .—Plymou th .—Fra te rna l acolheita.
—A capital de Ing la te r ra .—Embaixadas dc hoje c as de
ou t r 'o ra .—Oricn tacs c ma r roqu ina s .—A Rússia exccpção
graciosa .—Os embaixadores cm Londres .—Tomam pousada .
—Nome da hospedaria c do hospedeiro. —O jantar .— Palacio
dc João dc Gaunt, duque dc L a n c a s t e r . — P o r q u e o p rocuram
os representantes dc Por tuga l? 23 a 2 8
C A P I T U L O IV
João dc Gaunt.— Origem d'este n o m e . — E d u a r d o III , o grande.
— O príncipe dc Galles, assombro do mundo .—In t imidade dc
João com o poeta Chauccr .—Seu amor por Branca dc Lan-
cas te r .—O primeiro d u q u e embaixador a P o r t u g a l . — G u e r r a
dos cem annos.—Allianças com as monarchias dc l l c spanha .
—Casamentos em Castella c Po r tuga l .—João dc Gaunt c a
fdha de AfTonso IV .—A infante dc Portugal e o herdeiro da
corôa ingleza.—Consorcio a jus tado . —Silencio dos his tor ia-
dores por tuguezes .—Provas por documentos .—Chegam a
Portugal embaixadores inglezes para realisarem o casamento.
—Por tuga l f rus t ra Inglaterra .—Castel la c Aragão .—Pol í t i ca
utilitaria das diversas cò r l e s .—O egoismo.—AlTonso IV c o
estandarte da patria 2 9 a 3 7
Pag.
11 a 21
Í N D I C E 295
CAPITULO XXI Pag.
João dc Gaunt esposa a herdeira dc L a n c a s t e r . - Nasce Filippa
fu tu ra rainha de Por tuga l .—Grandezas .—Mor te de « rança .
— O d u q u e em Escócia c Franca .—Com o príncipe negro i n -
vade Cas tc l la .—Pedro o cruel.—Ycnccm a batalha de Najara .
—João caudi lhando a vanguarda .—Pedro restituido a Cas-
t c l l a .—È morto por seu propr io i rmão.—Desamparo dasfdhas .
— A herdeira c o duque dc Lancaster .—Segundas nupeias .—
Ambições dc conquis ta .—Alto alcance da alliança com P o r -
tuga l .—Prcsentam-sc os embaixadores.—Como são recebidos. 39 a 4 1
C A P I T U L O VI
Amplíssimas possessões da casa de Lancas ter .—O palacio dc
Sabo ia .—Esp lendores .—João o bom, rei dc França .—Seu
captivciro.—Incêndio.—Rcedif icação.—Sem rival .—Primeiro
renasc imento .—Progressos .—A magnanimidade do d u q u e . —
Protecção aos grandes vu l tos .—Chauccr .—O DantecBoccacio.
— F r o i s s a r t . — F r e i João, o primeiro physico dc Ingla ter ra .—
Wicklcf , precursor dc Luthcro .—Tolcrancia .—Inf luencia im-
m e n s a . — J o ã o dc Gaunt em Escócia .—Insurre ição cm Ingla-
t e r r a . — A jaequcric.—Cem mil revolucionados.—A cgualdade
comple t a .—Hor ro re s .—Aduqueza c a s f i l h a s d o d u q u e . — P a r a
Escóc ia .—O castcllo dc Pontfract.—Desamparo.—Alta noite.
—Sete léguas a pc .—Salvam-se .—Episod io na vida da rainha
Filippa ignorado cm Portugal
C A P I T U L O VII
Os embaixadores no palacio dc Lancas ter .—A camara do duque .
—A d u q u e z a . — A dor de enxaqueca .—O chanccllcr perito cm
f ranccz .—Car tas do mcs t redWviz .—Oflc r t as .—Conquis ta dc Cas tc l la .—Especiar ias c v inhos .—O d u q u e cos embaixadores.
— L u x u o s a b a r c a . — O T a m i s a . — O s paços dc Wcstminstcr .
— 0 rei de Ing la t e r ra .—As credenciacs.—Favoravel acolhi-
mento .—Convi te a j a n t a r . — T r e s barcas rcacs .—Banque te .
2 9 6 ' í n d i c e
—A duqueza .—Fi l ippa , futura rainha dc P o r t u g a l . — R c t i -
r am-se as senhoras. Toast inglez.—Os vinhos e os embaixa-
dores .—Volvem as pr incczas .—Suas donas c donzel las .—A
formosura ingleza .—Dentre as mais bcllas u m a . — S e u nome
c situação na casa dc Lancas ter .—Um mysterio de ha cinco
séculos »
C A P I T U L O V I I I
Pag.
5o a 62
A verdade base da h is tor ia .—Vida intima dc João dc Gaunt.—
Donzellas creadas a pa r de Branca .—Uma entre as dema i s .—
—Encan tos .—Suas relações com o d u q u e . — U m mar ido .—
Mystcr ios .—Ella c a nova duqueza .—Fasc inação e ingenui-
dade .—Laços Ínt imos.—Viver no centro da f ami l i a .—Remor -
sos.—Confissão publ ica .—Protes tos dc emenda .—O coração
supplanta o dever . —A educação c o l a r .—Fi l ippa e a coroa
de Por tuga l .—O dcsabrochar da ex i s t enc ia .—Orphandadc .—
Mulhcr - typo .—Despedem-se os emba ixadores .—O hotel do
Falcão.—Grande passo dado .—O regedor dc Por tugal ante
a Inglaterra 63 a 71
C A P I T U L O IX
Os embaixadores .—Propic ia es t re ia .—A protecção do d u q u e .
—Estada occasional cm Londres .—Invasão dc Escócia .—Ferro
c sangue .—Os representantes de Por tugal e o re i dc Ingla terra .
—Caracter de Ricardo I I .—Seus pr ivados .—Influencia d e s -
tes .—Tact ica dos nossos embaixadores .—Auctor isação para
recrutarem gentes .—Sua impor tancia .—Situação peculiar da
Ing la te r ra .—França e Escócia .—As luetas in tes t inas .—Sacr i -
fícios por egoísmo.—Inglaterra cm Portugal gucrrèa F r a n ç a . . 7 3 a 7 8
C A P I T U L O X
Alistamento cm Inglaterra. — Faina dos embaixadores . — As
grandes companhias.—Flagello da F r a n ç a . — E m Castel la.—
Sua dccadcncia. — Seus melhores caudilhos. — Contractam
í n d i c e 2 9 7
Pag.
cinco os embaixadores .—Nomes dos que vieram a Por tugal .
—Aventure i ros e aux i l i a r a .—Pro f i s sõe s d ive rsas .—Cont rá -
rios cspcciaes .—Ingcrencia dogoverno br i tannico .— Embargo
dc navios para t r anspor te .—Emprés t imos a Por tuga l .—Caução
e seqües t ro de por tuguezes .—Auxi l io c violência.—O direito
internacional na cdadc-incdia 79 a 8 7
C A P I T U L O XI
E m b a r c a m as forças a u x i l i a r a . — D i r i g e m - s e ao Po r to .—Dis -
persão no m a r . — A salvamento.—Lisboa, uma nau c a barca.
—Documento contemporâneo.—Sua valia.—Gales castelhanas
an te a c i d a d e . - Peleja mar í t ima .—A barca ; esforço b r i t an -
n i co .—A n a u ; dez contra uma .—Ardi s castelhanos.—Os a r -
chciros inglezes. —Vic to r i a . — Computo da expedição. — A
quan t idade c a qual idade.— Deposito dos a u x i l i a r a cm Évora .
—Dis t r ibu ição mediante a g u e r r a . — F c r n ã o Lopes cortesão.
—Es t r a t agemas . — Refu tam-n 'o documentos c escriptores
cocvos .—Fôra seguido duran te séculos.—A critica dc hoje.
—Alexandre H c r c u l a n o . — O romance c a h is tor ia .—O velho
chronista peran te os nossos dias 8 9 a 9G
C A P I T U L O X I I
A expedição inglcza c o throno do mestre d'Aviz —A soberania
da nação .—Carac te r dc João I . — S e u s ac tos .—Aljubar ro la .
—Alliança ing lcza .—Pr imei ros cu idados .—Os do conselho.
—Intervenção popular na governarão do Es tado . — Novos
poderes aos emba ixadores .—Cr i se do governo br i tannico.—
Invasão i m m i n c n t e . — Aggridcm Escócia .—Momento dc r c -
poiso .—Persp icac ia dos nossos e m b a i x a d o r a . — É o rei dc
Portugal reconhecido por Ing la t e r r a .—O p a r l a m e n t o . — R c -
solvc-sc a conquis ta dc Castc l la .—Subsídios c gen te s .—Ne-
gociações para alliança com Por tuga l .—Pede o duque a João 1
na \ ios para o a c o m p a n h a r e m . — A luva .—O leopardo inglcz,
ou o leão caste lhano?
298 ÍNDICE
CAPITULO XIII Pag.
Acolhe el-rei o pedido do d u q u e dc Lancas te r .—Envia luzida
f r o t a . — O capitão do mar .—All iança mutua entre Portugal e
Ing la te r ra .—Trac tado em Londres.—Condições.—DilTercnça
das que firmara el-rci D. Fernando.—Concluem os emba ixa -
dores outra convenção.—Suas desvantagens para o re ino .—
£ desconhecida dc nossos h is tor iadores .—Astucias de Fernão
Lopes .—Portugal a serviço dc Ing la te r ra .—Mais condições
onerosas .—A reciprocidade ingleza.—Confrontações lesivas.
—Plcnipotenciar ios de I). Fe rnando c os dc 1). João I . —
Buscam estes jus t i f icar -se .—Auxi l io fictício a Por tuga l .—
Inglezes serviam exclusivamente o d u q u e dc Lancaster 10o a 112
C A P I T U L O X I V
Chega a Plymouth a frota por tugueza .—Assombro q u e produz.
—Ampla s lructura de gales c n a u s . — O Portugal dc hoje e o
dc ou t r ' o r a .—Duque dc Lancaster e o seu exercito, flor da
cavallaria. — Acompanham-n 'o esposa c filhas. — Faustoso
a p p a r a t o . — O r e i c a rainha dc Ing la te r ra .—Despedidas rcacs.
—Par t ida .—Cento c trinta ve las .—Em Gal l iza .—Submissão
progress iva .—O pendão dc Lancas t e r .—Júb i lo dc I) . João I
com a chegada do d u q u e . — E m b a i x a d a s mu tuas .—Accorda - sc
encontro immcdiato.—Convoca cl-rci os principacs do reino.
—Antigos nobres c os que a revolução p roduz i ra .—Idèas
novas i r rompendo .—O trabalho aspirando á conquista da so -
c iedade .—A frota por tugueza c o Por to .—Volvem os embai -
xadores á pa t r ia .—Como são acolhidos 1 1 3 a 119
C A P I T U L O X V
O duque dc Lancaster c a capital da Gall iza.—Magnificência da
côrte ingleza. — Pousadas vicejantcs .—O vinho c os archciros
cahidos pelas estradas. — A reunião dos dois p r ínc ipes .—Par te
cl-rci com os seus .—Rcunc-sc - lhc o g rande condestavel .—
Caminho de Monção .— Desce o d u q u e a Mclgaco.—Avis tam-se
ÍNDICE 2 9 9
Pag. sobre Minho .—A ponte do M o u r o . — O encont ro .—Luxuoso
appara to dos inglezes .—A comitiva por tugueza .—Jorneas c
bo rdados .—Fus tão c fe r ro .—Contras te honroso .—A rainha
Lconor TcIIcs c as vestes dc a r m a s . — Arnczes dc AIjubarrota
c a galanlcria inglcza 1 2 1 a l 3 2
C A P I T U L O X V I
O rei dc Portugal c o d u q u e dc Lancas te r .—Adeanta-sc o p r i -
m e i r o . — A b r a ç a m - s c . — A s tendas .—Despem-se a rmas .—O
b a n q u e t e . — A s campinas do Minho .—A mesa rea l .—As ou -
t ras .—Inglezes servidos pelos por tuguezes .—A tenda dc cl-rci
dc Castc l la .—O seu ora tor io .—Despojos da grande victoria.
—Admiração dos inglezes .—Conferências .—Pacto firmado.
—Por tuga l nada recebeu e dava tudo .—Segundo festim á po r -
tugueza. — U m banquete inglcz. — Eclipse. — Magnificência
ca lcul is ta .—Os banquetes na edade-media 133 a 139
C A P I T U L O X V I I
O viver das gerações ext ine tas .—Impor tancia (Veste es tudo.—
Sua applicação cm França .—Atrazo em Por tugal .—Escr ip torcs
antigos e m o d e r n o s . — A tcnda-palac io .—Oiro e sedas.—A
grande s a l a .—A alta mesa .—Copciras c credencias .—Precio-
s i d a d e s . — Archeiros em g u a r d a . — M i n i s t r e i s . — As flores
atravez dos séculos .—Adornos progressivos.—Monumentos
de ar te nos banque tes .—Isabe l de Portugal c a corte de B o r -
g o n h a . — As ou t ras mesas. — Commensacs portuguezes. —
Nomes c ca tegor ias .—Servem-nos os senhores dc Inglaterra.
—Profusão e sumptuos idade
C A P I T U L O X V I I I
Banque te s ; or igem d 'estc n o m e . — F o r a m servidos a cavallo.—
Sala dcscommuna l .—Franca entrada ao povo .—D. João II c
as festas d c Évora . O cavalleiro do c y s n c . - O rei actor d i -
verte os subd i tos .—Kapida t rans formação .—D. Manuel .—
3 0 0 ' ÍNDICE
Os autos de (lil Vicente e os parasitas da cor te .—Proscr ipção
das classes t raba lhadoras .—Uma ceia nos paços dc I). João I.
—Dadivas trazidas a cavallo.—Serviços das mesas .—Prcs t i to
á sa la .—Prescntação das iguar ias .—A côrte dc Borgonha m o -
delo para as festas cm Por tuga l .—O entremez, par te integrante
dos banquetes .—His tor ia sagrada c p ro fana .—Panlomimas
c h is t r iões .—Justas a cavallo dentro na sa la .—Autos cm
tablado. — Donas c galantes . — Danças c mascaradas. — Os
jograes ; pericia dos por tuguezes .—O d u q u e dc T.ancaslcr cm
acampamento mi l i ta r .—Intermédios musicacs .—Grat i f icação
a ministreis c a rau tos .—A grita do cs ty lo .—Fruc tas c vinhos,
o café de nossos d ias .—Despedida 151 a 16o
C A P I T U L O X I X
Confederação entre o duque de Lancaster c D. João I .—Soccorro
valiosissimo outorgado por e s t e . — A córôa dc Portugal a
I) . F i l ippa .—As concessões do duque .—Rec ip roc idade cphc-
mera .—A conquista dc Castella c a inacção dos a l l iados .—
El- rc i dissimula cm casar-se . - - Q u e mot ivos?—A lenda do
Barbadão.—Dois filhinhos.—Os votos sacros c a dispensa dc
Roma.—Ingla te r ra em cr i sc .—Froissar t c as tergiversações dc
cl-rci . — Correm os dias. — A palavra dada . — O duque dc
Lancaster não é o conde dc Cambridge. Solução u r g e n t e . . . 167 a 171
C A P I T U L O X X
O duque de Lancaster envia a filha ao P o r t o . — O co r t e jo .—Dis -
cordancias h i s tó r i ca s .—Aya la .—Fro i s sa r t .—Fernão Lopes.
—Atravcz de cinco scculos .—Dcducções .—Cumpria el-rei o
t ractado quanto á gue r ra .—Hes i t ações quanto ao casamento.
— Pouco cscrupuloso o duque . — Exigências pos i t ivas .—
Escreve cl-rci ás terras de seu r e ino .—Rcluc t anc i a .—Diva -
gacão ao longo das provincias .—Lisboa, coração e a l m a . —
No Porto a final.—Vè Filippa por primeira vez. Afastamento
rápido.—Regresso á ultima hora .—Caso ex t ranho .—Bênçãos
sem casamento .—Repugnancia manifesta 173 a 180
ÍNDICE 301
CAPITULO XXI Pag.
Chegou o d i a .—Pompas nupciacs .—Danças c t rebclhos.—A lira
para os torneios .—A cidade c a fes ta .— Poética dcscripção do
chronista . — A d o r n o das r u a s . — V e r d u r a s c perfumes. — O
pres t i to .—El- re i c a rainha a caval lo.—O arcebispo primaz
das I l e s p a n h a s . — P i p i a s e t rombetas. — As donas cantando
atraz dos noivos .—As solteiras. Soledade c esperanças .—Os
paços rcacs c a ca lhedra l .—As ondas populares .—Regular i -
dade no templo. — O cor te jo .—Classes c prccedencias. — O
condcstavcl mordomo-mór .—Senhores inglezes.—O irmão dc
el-rei dc Ingla ter ra .—A elerezia .—O gilvaz do arcebispo.—
Os noivos sob o pall io. Donas cm córo.—Matrimonio real.
—Os votos c a dispensação canonica .—Horas dc provação.
—Nos paços dc cl-rci 181 a 187
C A P I T U L O X X I I
Banquete debodas.—Inglezes e portuguezes.—Nobres c cidadãos.
—A burguezia sob um sccptro democrático.—Ccrcmonial no
serviço das iguar ias .—Progress is ta a côrte dc I). João I .—
Donas c donzcllas á mesa. -Anomal ias .—I) . João II e a ga -
lantcria cortcsã. — D. Manuel, o ocioso. — Proscripção das
senhoras .—Reinados te l r icos .—O duque dc Bragança c os
seus paços .—O Legado apostolico.—Recepção dc príncipe.—
Hcrcu lano .—Uma traducção notável.- A sociedade po r tu -
gueza no século xvi .—Banquete cm Vil la-Yiçosa.—Continua
a proscripção ao bello sexo.—A casa do doccl, e as senhoras
sentadas no chão .—A rainha I). Catharina c a infanta D. Maria.
—Ant i these .—Os dois séculos .—Expansões de liberdade, c
o absolulismo auetor i tar io 189 a 197
C A P I T U L O XXII I
Uma digressão.—O viver dc nossos avós. Es tudo importantíssimo.
—I) . João I I .—Um viajante em sua côr te .—Um cavalleiro dc
Borgonha nos paços dc I) . AÍTonso V . — A juvenil rainha c o
r
3 0 á í n d i c e
regente do r e i n o . — A s d u a s cor tes .—I) . João II na vida int ima.
—Revelação de factos mui curiosos.—Lisboa tão grande como
Londres .—A corte cm Se túba l .—Um cozinheiro dc cl-rci c o
bobo da ra inha .—Uma estalagcm. Audiência dc cl-rci ao
v ia jante .—Presentes . Cem cruzados c dois mouros.—Os p o r -
tuguezes d 'então. Seus usos .—As portuguezas. Seus amores.
—Confronto com as inglczas c ou t ras .—Os t ra jos .—Casas e
moveis .—O descobrimento da índia . Transformação na socie-
dade po r tugueza .—Terce i ro viajante na côrte. — Commcr-
ciantcs dc Lisboa. Sua opulencia .—Aposentos e preciosidades.
— A s lojas c o commcrcio da cap i ta l .—índia cm Lisboa.—
Volvamos ao Porto 199 a 207
C A P I T U L O X X I V
Um banquete de nupeias na edade-media .—Entremeses .—Sal tos
c vol te ios .—Jograes por tuguezes c m o u r o s . — D a n ç a s . — A s
donas cantando ao redor da sa la .—Dia c no i te .—A ce ia .—O
passeio das tochas em festa de bodas .—Proc issão á camara
reg ia .—As senhoras despem a no iva .—Acompanhamento do
noivo.—A benção do le i to .—A copa nupc ia l .—O dia seguinte.
—Torneios c justas r cacs .—Vencedores c ex t range i ros .—
Prêmios c presentes 2 0 9 a 2 1 1
C A P I T U L O X X V
Invasão dc Cas te l la .—Par tem el-rei c seus caval le i ros .—Oduque
sobre a f r o n t e i r a . — T r á s - o s - M o n t c s . — E n c o n t r a m - s e . — V i -
ctoria hypothct ica .—Demora pernic iosa .—A embriaguez dos
inglezes e a ardencia do c l ima .—A pes te .—Outros flagellos.
—Mortandade horrível na hoste ingleza.—O rei dc Portugal
cm terra in imiga .—Imponentes fo rças .—Osal l iados e a s p r i n -
cezas dc Lancas te r .—Transpõem a f ron te i r a .—Tudo foge .—
Terror nos inimigos.—Acodc-lhes França poderosamente .—
A defesa cm Castel la.—Tactica ardi losa .—Carlos V e o í luque
de Lancaster 2 1 5 a 221
ÍNDICE 3 0 3
C A P I T U L O X X V I
Pag.
Avançam os all iados. — A festa dc Kamos. — Benavcnte .— Um
mez dc cerco. — P o r t a s cerradas . — Castella inabalavel. —
Rarcam os inglezes.—A peste e o c l i m a . — Ê o duque desam-
parado dos seus. Adoece.—Incólume a hoste por tugueza.—A
fome.—Passagem do Douro.—Inglezes salvam-se atravez dc
Castella. —Por tuguezes mantém o duque dc Lancas te r .—
Nobre acção dc I) . João I . — T e r r o r nos castelhanos. — S u a
as tucia .— A vinda do d u q u e infruetifera a P o r t u g a l . — P r o -
põe-lhe pazes o castelhano. Condições.—João dc Gaunt pe r -
dulár io .—Acodc- lhe e l - rc i .—Transpor tam-n 'o galés por tu-
guezas .— Seis supprcm cento e t r in ta .—A frota dc Portugal
vai servir Inglaterra .—Convenção opprobr iosa .—Em vez de
seis quinze mezes .—Fernão Lopes confutado.—Reciprocidade
ingleza 223 a 231
C A P I T U L O X X V I I
Retrospecto. — D . João I c a Inglaterra . — Único serviço que
Portugal colheu.—Quaes pres tou. Suaimportancia.—Valiosos
soccorros ao d u q u e de Lancaster .—All ianças com Inglaterra
infruet iferas. — O reino l ibertado por esforços propr ios .—
Portugal j ung ido á influencia b r i t ann ica .—A verdade pelos
documentos .—Pol í t ica externa dc D. João I . — E r r o s . — C o n -
tinuação até os nossos d ias .—Systcma util i tário dc Inglaterra.
—Seu proceder com Por tuga l .—Abusos c resu l tados .—Di-
lemma fa t a l .—A historia e o volver dos séculos.—Apreciações
inexactas .—Conseqüências 233 a 2 3 8
C A P I T U L O XXVIII
Primordios cconomicos da Grã -Bre tanha . - A agricultura. — O
inglez na e d a d e - m e d i a . — As pastagens e a cultura da l ã . —
Venda em b r u t o . — I n g l a t e r r a não fabricava a inda .—Flandres
c Florcnça. Tecidos maravi lhosos .—De um lado o fabricante,
do outro a matér ia p r i m a . — Infancia da civilisação ingleza.
3 0 4 ' í n d i c e
Commercio. Extrangeiros pr ivi legiados. — Escrav idão e
algemas. — Navegação entorpecida . — T r a n s f o r m a ç ã o ins tan-
tânea dc Ingla te r ra .—As indus t r ias . Eng randec imcn lo a s som-
broso. — Pr ior idade dos por tuguezes . — Asia c A m e r i c a . —
Decadencia. Mor t e .—Renasc imen to após sessenta a n n o s . —
Portugal c o antigo a l l i a d o . — P e r i o d o de contcmporisações .
—Cessão dc t e r r i t o r io s .—Bomba im c T a n g e r . — A g o n i a dos
sacrificados. — Recusa dos g o v e r n a d o r e s . — V i o l ê n c i a s in -
glezas.—Inflexibil idade da mctropole. D e s m e m b r a r ã o . — D ó r
d 'a lma. — A alliança inglcza e novos males . — Mcthwcn . —
1810. — A escravatura . — O u t r o s t rac tados e ou t ros factos.
—O presente .—Corra-se o véo .—Ju lgue a p a t r i a . — A u x i l i o
extranho c a indepeiulencia p rópr ia . — Nações p e q u e n a s . —
Portugal comparc -sc .—O passado c o f u t u r o . Lição e exemplo. 239 a
N O T A S
A Carta original da rainha D. Filippa dc Lancaster a seu irmão
cl-rci de Inglaterra, Henr ique IV 255 (
B Carta dc escambo entre el-rei D. Affonso IV c a camara de
Lisboa sobre um campo no sitio da Oura cedido a e l - re i ,
a fim de que sc podesse fazer taraccna para estarem qua t ro
gales 257
C O visconde dc Santarém. Seus equívocos 259
D O capitão do mar . Suas funeções 261
E Convenção firmada cm Londres pelos embaixadores dc Por -
tugal estabelecendo q u e dez galés por tuguezas armadas
cm guerra irão a expensas dc Portugal s e n ir g ra tu i t a -
mente a coroa inglcza por seis mezes consecutivos, ou
durante o espaço de dois verões 263
F Banquete do duque dc Bragança em Vil la-Viçosa. Dcscr i -
pção. Serviço da mesa. Ccrcmonias 271 .
ti A senhora D. Catharina duqueza dc Bragança c a infanta
sua mãe recebem o I.cgado-Apostolico. T r a j a r das se-
nhoras. Ccrcmonias do recebimento 273 <
II A infanta 1). M a r i a . . 075 ;
- ' w ' I A côrte de D. Affonso V c um cavalleiro andante '285 ; K Entrega de Bombaim aos inglezes 291 <
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