d - lamb, roberto edgar

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ROBERTO EDGAR LAMB UMA JORNADA CIVILIZADORA: IMIGRAÇÃO, CONFLITO SOCIAL E SEGURANÇA PÚBLICA NA PROVÍNCIA DO PARANÁ - 1867 A 1882 Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Cursos de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Odilon Nadalin CURITIBA 1994

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  • ROBERTO EDGAR LAMB

    UMA JORNADA CIVILIZADORA: IMIGRAO, CONFLITO SOCIAL E SEGURANA PBLICA

    NA PROVNCIA DO PARAN - 1867 A 1882

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Cursos de Ps-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Srgio Odilon Nadalin

    CURITIBA 1994

  • ROBERTO EDGAR LAMB

    UMA JORNADA CIVILIZADORA: IMIGRAO, CONFLITO SOCIAL E SEGURANA PBLICA

    NA PROVNCIA DO PARAN - 1867 A 1882

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran, pela Comisso formada

    pelos professores:

    Orientador: Prof. Srgio Odilon Nadalin

    Profa. Ana Maria de Oliveira Burmester

    Profa. Maria Igns Mancini de Boni

    Curitiba, 04 de Novembro de 1994.

    ii

  • AGRADECIMENTOS

    No percurso da elaborao desta dissertao, desde os primeiros dias

    de pesquisa nos arquivos, fui acompanhado por muitas pessoas. Neste longo

    tempo de convvio com amigos, professores e colegas, felizmente compartilhei com

    eles as minhas indagaes e as mudanas de rumo. Este dilogo conduziu-me ao

    trabalho que ora apresento.

    Agradeo professora Ana Maria de Oliveira Burmester, coordenadora

    dos Cursos de Ps-Graduao em Histria da UFPR, pelo apoio profissional que

    tive por parte dos professores do Departamento de Histria. A convivncia nos

    gabinetes e na sala de aula resultou no apenas nesta dissertao, mas foi a base

    para minha atividade como professor na UEPG. Ao professor Srgio Odilon

    Nadalin, expresso minha gratido por ter aceito assumir a orientao desta

    pesquisa, tendo se mostrado receptivo num momento em que eu ainda estava em

    meio a muitas indefinies. Agradeo a carinhosa ateno que a professora Maria

    Igns Mancini de Boni sempre demonstrou para comigo. A ela e ao professor

    Ronald Raminelli devo a leitura da verso anterior da dissertao, e seus

    comentrios e crticas atentas que contriburam elaborao deste texto, como

    agora apresentado.

    A partir de 1992, esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio decisivo da

    Universidade Estadual de Ponta Grossa, atravs da Pr-Reitoria de Pesquisa e

    Ps-Graduao e do Departamento de Histria. Agradeo aqueles colegas que

    contriburam, de alguma forma, com este trabalho, nas pessoas de Elizabeth Alves

    Pinto, Carmencita de Holleben Mello Ditzel, Rosngela Wosiack Zulan, Christiane

    Marques Szesz e Helcio Ladeira.

    iii

  • Algumas pessoas contriburam com seu trabalho, durante o

    encaminhamento da pesquisa. A colaborao de Elizabeth, Walkria e Solange foi

    fundamental para o levantamento da documentao, nos arquivos; meus colegas

    de Ponta Grossa, Janja e Marco Aurlio, cuidaram da digitao e da apresentao

    visual do texto; as ltimas, e muitas, complementaes da digitao foram

    realizadas pelos amigos Vergnia e Reguse. A todos sou imensamente grato.

    Gostaria de destacar o profissionalismo e o constante interesse com que

    fui atendido por Daisy L. Ramos de Andrade, no Arquivo Pblico do Paran:

    lembro-me de minha visita ao Arquivo - a primeira aps o incndio - quando Daisy

    mostrou-se incansvel, e tranqilizou-me, ainda que frente quela terrvel perda.

    Esta longa jornada - de dias e noites marcados por incertezas e sonhos -

    foi acompanhada, e tambm vivida, por muitos amigos: Vergnia e Reguse foram

    meus companheiros inseparveis, os fiis amigos de todas as horas; em todos

    estes anos, Leandro foi o amigo com quem dividi muitos sonhos, trabalho e muitas

    viagens; Maria Luiza, Tatiana, Cacilda, Valfrido e Dcio acompanharam com

    interesse constante esta pesquisa, fizeram comentrios e estiveram sempre prontos

    a partilhar comigo suas experincias acadmicas; nossos encontros foram um

    estmulo para continuar.

    Nestes anos todos, encontrei afeio e apoio junto minha famlia, e

    quero dividir a alegria deste momento com eles. Minha me, Edith Wayhs Lamb,

    esteve sempre ao meu lado, diariamente, e carinhosamente dedico este trabalho a

    ela.

    iv

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS iii

    INTRODUO 1

    1 OS IMIGRANTES PERIGOSOS 11

    1.1 NOVOS HABITANTES NA PROVNCIA:

    CONFLITO ENTRE INGLESES E POLICIAIS 11

    1.2 DESVENDANDO ALGUNS CONFLITOS CULTURAIS 16

    1.3 IDENTIFICAO TNICA E CONFLITO 23

    1.4 BONS E MAUS IMIGRANTES:

    A LABORIOSIDADE COMO REFERNCIA 34

    2 CONCILIAO E CONFLITO 39

    2.1 EM BUSCA DE UMA HARMONIA SOCIAL:

    CONCESSES OFICIAIS 39

    2.2 OS COLONOS QUEIXOSOS 47

    2.2.1 OS LOTES 47

    2.2.2 ESTRADAS: VIAS DO PROGRESSO 53

    2.3.1 PELO IMIGRANTE, NADA DE TUTELAS! 56

    2.3.2 POR UMA COLONIZAO PATRITICA 60

    2.3.3 A DVIDA COLONIAL: QUEM PAGAR A CONTA? 64

    v

  • 3 A EXPERINCIA DIVERSA:

    POLICIAMENTO, TRABALHO E LAZER 75

    3.1 DO CRIME: PREVENO E PUNIO 75

    3.2 SEGURANA, TRABALHO E PROGRESSO 79

    3.3 BAILES E POLICIAMENTO 87

    3 4 TRABALHO HONESTO" E MORALIDADE 93

    CONSIDERAES FINAIS 102

    ANEXO 1 - FONTES 105

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 111

    vi

  • 1

    INTRODUO

    A partir de meados do sculo XIX, a recm-emancipada provncia do

    Paran manteve em destaque os emprendimentos de incentivo imigrao de

    trabalhadores europeus. O "problema imigratrio" foi definido com base na

    necessidade de criao de uma agricultura de abastecimento, em resposta

    escassez e caresta dos produtos agrcolas. Como resultado desta poltica, o

    cenrio provincial foi continuamente transformado, com a chegada e instalao de

    contingentes imigratrios de procedncia bastante varivel. Desde 1860 at 1882

    foram fundados 28 ncleos coloniais, com base num regime de pequenas

    propriedades.1 Ano aps ano, as alteraes na composio populacional

    evidenciavam este incentivo imigrao, levando os brasileiros, em reas rurais e

    urbanas, a um convivio cotidiano com franceses, alemes, ingleses, poloneses,

    italianos, SUOS e outros.

    "Por que as pessoas emigravam? Sobretudo por razes econmicas,

    quer dizer, porque eram pobres." 2 O nmero de europeus que convergiram para

    as Amricas foi bastante flutuante, durante todo o sculo XIX. Isto se devia s

    condies polticas e, sobretudo, econmicas vividas nos pases de origem e de

    destino. Na Europa, os homens deixavam o campo devido crescente

    concentrao fundiria e mecanizao na agricultura, que produzia a diminuio

    das oportunidades de trabalho rural; o movimento de populaes tambm se dava

    no sentido cidade-cidade, j que, com a industrializao e conseqente

    concorrncia com produtos de fbricas, artfices e artesos viam-se s portas da

    1 . BALHANA, A. P. Histria do Paran I. Curitiba : Grafipar, 1969. p. 164-166.

    2 . HOBSBAWM, E. J. A era do capitai : 1848-1875. 3.ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1962. p.213.

  • 2

    proletarizao. Tais condies fizeram muitos decidirem por cruzar o oceano,

    lembrando-se que outros, ainda, vieram fugidos de perseguies polticas. Em sua

    maioria, estes emigrantes tinham origem rural. Contudo, no foram poucos os

    trabalhadores especializados das cidades que buscaram resistir proletarizao

    deslocando-se para o continente sul-americano.3

    As polticas de incentivo imigrao e colonizao provincial estiveram

    acompanhadas de um conjunto de expectativas, presentes tanto entre os recm-

    chegados europeus como entre as elites locais. Quanto aos viajantes e seu

    destino, os agentes de propaganda na Europa haviam divulgado as riquezas deste

    "Novo Mundo", sobretudo a fertilidade do solo e seu clima favorvel ao

    desenvolvimento de uma agricultura semelhante europia. Quanto cena

    poltica provincial, evidenciava-se uma identificao das elites com os ideais de

    progresso e civilizao, conduzindo-se tambm uma associao da figura do

    imigrante europeu s qualidades do labor. Neste sentido, frente ao despertar

    destas expectativas diversas e frente a um espao territorial que estava por se

    desbravar, deu-se a experincia do contato cultural entre imigrantes e nacionais.

    Este estudo um questionamento desta experincia.

    A historiografia brasileira dos anos recentes trouxe discusso uma

    histria marcada pela experincia dos grupos populares. Um dos temas mais

    valorizados foi o universo dos conflitos que perpassaram a vida destas pessoas.

    Aqui, encaminhamos a anlise a partir desta perspectiva. As fontes foram

    selecionadas de forma a resgatar as vozes de uma populao que vivenciou o

    contato cultural em seus momentos de tenso e conflito. Tais situaes

    conflituosas apontam para o envolvimento de grupos populares de imigrantes de

    origens diversas - alemes, ingleses, poloneses e outros. Quanto populao

    3 . Ibidem, p.207-210; SEYFERTH, Giralda. A colonizao alem no vale do Itajai-MIrim. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1974. p.18-28, MAGALHES, Marionilde 0. B. de. Alemanha, me-ptria distante; utopia pangermanista no sul do Brasil. Campinas, 1993. Tese (Doutorado em Histria) - Departamento de Histria, Universidade Estadual de Campinas, p.16-19.

  • 3

    nacional, pretendemos destacar a ao das elites polticas, compreendendo neste

    grupo os individuos que, munidos de seu controle do poder pblico, procuraram

    delimitar e interferir, com sua autoridade poltica, os rumos do processo imigratrio

    e da colonizao.

    Por que conflitos ? Sabemos que a proposta poltica das elites prescrevia

    uma convivncia pacfica e a harmonia social, ambas necessrias ao sucesso da

    empreitada civilizadora. Este destaque dado ordem social aponta para os

    conflitos como possveis momentos de revelao, expondo as experincias

    particulares e(ou) esclarecendo possveis lutas e contradies sociais. Assim,

    trata-se de compreender os significados conferidos aos conflitos pelos sujeitos

    neles envolvidos, como tambm revelar a pluralidade de vises de mundo ali

    confrontadas.

    Para enveredar no mundo destes grupos sociais trabalharemos com o

    conceito de cultura, como sendo a totalidade de...

    sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e social estruturada e a conscincia social encontra realizao e expresso ( ...) : parentesco, costumes, as regras visveis e invisveis da regulao social, hegemonia e deferncia, formas simblicas de dominao e resistncia, f religiosa e impulsos milenaristas, maneiras, leis, instituies e ideologias*

    A abordagem da histria cultural tem conduzido uma discusso que

    importante para esclarecermos as dimenses desta pesquisa. A questo a da

    homogeneidade que pode ser suposta a partir da delimitao "cultura popular" e

    "cultura da elite". Como afirma Peter Burke, ao estudar o universo cultural da

    Europa poca moderna, "...a dificuldade em se definir 'povo' sugere que a

    cultura popular no era monoltica nem homognea. De fato, era extremamente

    * . THOMPSON, A misria da teoria ou um planetrio de erros : uma critica ao pensamento de Atthusser. Rk> de Janeiro : Zahar Editores, 1961. p. 188-189.

  • 4

    variada...".5 Algumas anlises da histria vista de baixo ressaltam a complicao

    de se lidar com a pluralidade da composio deste "povo" : "... um grupo muito

    variado, dividido por estratificao econmica, culturas profissionais e sexo..."6

    Sob esta tica, nas anlises sobre a coeso e o consenso comunitrios

    persistiriam dvidas quanto as divergncias das atitudes e quanto s tenses e

    lutas existentes entre os grupos de uma mesma comunidade.7 Uma resoluo

    simplificada e esclarecedora para este impasse, a nvel conceituai, est no uso

    plural destes conceitos (culturas do povo e culturas das elites).8 Ou ento, como

    sugere Jim Sharpe, fazendo-se o exame da experincia de setores dos grupos

    populares, em estudos de caso.9

    Este problema da homogeneidade particularmente relevante em se

    tratando dos estudos de Imigrao. A composio da populao europia que se

    dirigiu regio sul do Brasil era muito variada. Emigrados por motivos que

    variavam de acordo com a regio de origem e com a poca, havia aqueles com

    profisses caractersticas do meio rural, assim como outros se ocupavam em

    profisses especializadas e vinculadas ao meio urbano. Mesmo quando se tratava

    de populaes com evidentes identificaes - este o caso das populaes que

    faziam uso de uma mesma lngua, a alem - as diferenas internas existiam e

    podiam ser significativas.10

    5 . BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna : Europa, 1500-1800. So Paulo : Companhia das Letras, 1969. p.49.

    6 . SHARPE, Jim. A histria vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org ). A escrita da histria. Novas perspectivas. So Paulo : Ed. da UNESP, 1992. p.43.

    7 . DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn (Org ). A nova histria cultural. So Paulo : Martins Fontes, 1992. p.77-82.

    8 . BURKE, A cultura popular..., p.20-21.

    9 . SHARPE, A histria vista de baixo, p.44.

    1 0 . MAGALHES, p.20-21.

  • 5

    Porm, ainda que estejamos de acordo com estes questionamentos de

    uma homogeneidade do denominado "povo", no se anula o fato de que, para

    alm das diferenas entre os grupos de imigrantes europeus que se fixaram na

    provncia do Paran, em alguns momentos de sua experincia local estes mesmos

    grupos produziram elos que lhes conferiam uma identificao em comum.

    Tendo em vista a abrangncia e pluralidade do universo cultural

    provincial, este estudo no pretende esclarecer toda forma de particularidades e

    especificidades dos grupos imigrantes. Trataremos aqui de um pequeno nmero

    de sinais ou indicadores daquele processo histrico. Em alguns momentos, as I .

    especificidades sero valorizadas, j que podem conduzir explicao das

    experincias conflituosas. Por outro lado, muito do que vai ser considerado se

    refere aos imigrantes em seu conjunto : as polticas de colonizao e certas

    prticas policiais propostas pelas elites polticas por vezes no fizeram distines

    entre os colonos de origem europia; tambm se inclui aqui a hiptese de que as

    situaes conflituosas eram momentos em que a populao imigrante,

    compartilhando interesses ou conferindo significados comuns, manifestava ou

    formulava alguma identidade conjunta.

    A compreenso da formulao de identidades sociais exige alguns

    esclarecimentos sobre a questo da etnicidade. Um apoio conceituai ser

    importante para indagarmos em que medida as tenses e conflitos revelam a

    presena de identidades com configurao tnica e, sobretudo, que importncia

    tal identificao pode ter para a explicao das ocorrncias estudadas, em que

    pesem as significaes a elas conferidas pelos grupos envolvidos.

    A definio de contatos inter-grupais com base na etnicidade no

    simples decorrncia do fato destes grupos possurem diferentes procedncias

    nacionais, raciais ou culturais. O que conta na definio de um grupo tnico a

    forma como uma populao obedece mecanismos de identificao de si mesma e

  • 6

    dos outros. Isto quer dizer, segundo Barth, que uma identificao pode ser

    denominada tnica...

    quando classifica uma pessoa em termos de sua bsica e mais geral identidade, presumivelmente determinada por sua origem e experincia. Na medida em que os atores usam identidades tnicas para categorizar a si prprios e aos outros, por motivo de interao, eles formam grupos tnicos neste sentido organizacional."'''

    Desta forma, uma unidade tnica no simplesmente definida por

    similaridades ou diferenas culturais. O que tem que ser levado em considerao

    so aquelas semelhanas ou diferenas que os prprios sujeitos observam como

    significativas. A definio de Abner Cohen pode ser conduzida complementarmente

    : "... um grupo tnico pode ser operacionalmente definido como uma coletividade de

    pessoas que (a) participa de alguns padres de comportamento normativo e (b)

    forma uma parte de uma populao maior, interagindo com pessoas de outras

    coletividades dentro da armao de um sistema social...".12 Tais padres podem t

    estar presentes em contextos como parentesco, casamento, amizade, rituais e

    cerimoniais diversos. As situaes do contato entre os grupos da populao

    provincial podem ser ocasies propcias para a manipulao de padres, de forma

    a conferir-lhes uma conotao tnica.

    As abordagens culturais efetuadas por E. P. Thompson e Natalie Z.

    Davis, em sua valorizao da experincia e da cultura, nos revelam que as

    situaes conflituosas no so necessariamente definidas por conotaes

    econmicas. J so longos os anos que nos separam das interpretaes que

    relacionam os fenmenos sociais e intelectuais a "efeitos de sociedade", meros

    efeitos de um modo de produo, quando o absolutismo das determinaes

    1 1 . BARTH, F. Introduction. In: (Org.). Ethnic Groups and Boundaries. London: Allen and Unwin, 1969. p.13-14.

    1 2 . COHEN, A. The lessons of ethnicity. In: (Org ). Urban Ethnicity. London: Tavistok, 1974. p.ix.

  • 7

    histricas garantia s superestruturas um papel coadjuvante, como efeitos da

    base.13

    Detendo-se na questo especfica da violncia, Natalie Davis

    demonstrou - em referncia especfica aos levantes religiosos na Frana, no

    sculo XVI - que seu significado social pode no dever muito aos problemas

    econmicos. A autora dialoga com historiadores da multido, entre eles George

    Rud, que demonstra uma tendncia a identificar os conflitos religiosos

    expresso de rivalidade de pobres contra ricos, de assalariados contra donos de

    manufaturas e comerciantes, de artesos contra burgueses e mestres. N. Davis,

    ao contrrio, no v a violncia religiosa necessariamente associada a conflitos de

    classes, a conflitos de natureza scio-econmica. Ao "escutar as vozes do sculo

    XVI" encontra explicaes para tais ritos de violncia na prpria religio : em suas

    crenas religiosas tanto as comunidades catlicas quanto as protestantes

    encontraram legitimidade para suas aes. No seu estudo, a violncia religiosa

    explicada "...em termos dos objetivos de seus atos e em termos dos papis e

    padres de comportamnto possibilitados por sua cultura."14

    Em sua concepo de experincia vivida tambm Thompson evidencia

    que a convivncia social no estruturada apenas em termos de classe e que a

    experincia, mesmo gerada na vida material, manipulada pelos indivduos de

    formas que desafiam a previso.

    O que descobrimos (em minha opinio) est num termo que falta : 'experincia humana'. (...) Os homens e mulheres tambm retornam como sujeitos, dentro deste termo - no como sujeitos autnomos, 'indivduos livres', mas como pessoas que experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, em seguida 'tratam' essa experincia em sua conscincia e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (sim, 'relativamente autonmas') e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,

    1 3 . THOMPSON, p.174-181, 188.

    1 4 . DAVIS, N. Z. Ritos de violncia. In: . Culturas do povo: sociedade e cultura no inicio da Frana moderna; oito ensaios. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. p.131,149 e 155.

  • 8 atravs das estruturas de classes resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.

    Thompson prope uma percepo da histria que valoriza a

    compreenso e ao dos indivduos na histria. Este seu "empirismo" permite

    considerar que para cada sociedade, para cada poca, cabe aos indivduos a

    manipulao de inmeras variveis da vida social. assim que ressalta uma

    conscincia afetiva e moral como componente da experincia de homens e

    mulheres. Embora no se verifique uma desconexo entre moral e vida material,

    esta "nova" metade da cultura destaca que as pessoas ...

    tambm experimentam sua experincia como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigaes familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (atravs de formas mais elaboradas) na arte ou nas convices religiosas.-'6

    Desta forma, as anlises empreendidas por Natalie Davis e E. P.

    Thompson dimensionaram-nos acerca dos valores e significados mltiplos que a

    violncia pode adquirir para os agentes histricos envolvidos! A considerao da

    experincia vivida requer a valorizao das circunstncias contextuis,

    fundamentando a anlise na reintegrao das situaes conflituosas nos sistemas

    de valores particulares sociedade provincial. Isto , procurando os pontos de

    insero de valores nos comportamentos efetivos. Entendemos que no se trata

    de restringir os conflitos a explicaes exclusivamente materiais. Trata-se de

    perceb-los dentro do conjunto lgico que sugerem as informaes produzidas

    pelos seus agentes : se as lutas so travadas no campo dos costumes, da moral,

    no podemos menosprezar os significados prprios ao costume e moral.

    A amplitude aqui conferida ao conceito de cultura refere tambm que a

    cultura construda socialmente, logo, no "algo" esttico ou dado por definitivo,

    1 5 . THOMPSON, p.182.

    1 5 . Ibidem, p. 189.

  • 9

    a acompanhar a existncia de um grupo, ou de uma sociedade. A cultura

    produzida historicamente. Os sistemas que a compem "... se renem todos, num

    certo ponto, na experincia humana comum...".17 Trabalhar articuladamente

    experincia e cultura conduz a considerar a cultura no seu processo de

    inesgotvel produo, que tambm o seu processo de transformao. Assim,

    importa afirmar a validade desta concepo para o contato cultural na provincia.

    Os sujeitos histricos daquele momento trazem consigo, como bagagem cultural,

    um passado de experincias individuais e coletivas. Contudo, isto no toma

    aquele processo histrico passvel de pr-definio. Cada momento - em que se

    inclui a imigrao, a colonizao, o contato cultural - pode ser visto como "... um

    momento de vir-a-ser, de possibilidades alternativas...".18

    Seguindo estas premissas, o primeiro captulo trata de duas situaes

    conflituosas. A primeira delas envolve recm-chegados imigrantes ingleses e

    policiais a mando das autoridades governamentais. O outro conflito teve como

    oponentes um grupo de alemes e as praas da segurana pblica. Com estes

    dois relatos, procuramos ressaltar algumas das identificaes manifestas em

    funo das tenses do momento, indicando o quadro de definies culturais que

    fundamenta a experincia da vida no cotidiano da provncia paranaense.

    Tendo como base os relatrios oficiais sobre a colnia Assungui e as

    correspondncias enviadas ao Governo por imigrantes, o segundo captulo

    procura encaminhar uma discusso sobre as polticas de imigrao e de

    1 7 . THOMPSON, p.189.

    26 . Ibidem, p. 220-2.

  • 10

    colonizao. Buscamos revelar as correlaes entre as estratgias de conciliao

    e os momentos de tenso e de conflito - expressas sobretudo na regulamentao

    de concesses aos trabalhadores imigrantes - bem como acompanhar o

    surgimento de diversos posicionamentos acerca da questo imigratria.

    Finalmente, procuramos evidenciar que esses dois aspectos s so inteligveis se

    considerarmos a atuao de mltiplas foras nessa relao de poder.

    A ao dos imigrantes, seus questionamentos da poltica vigente, suas

    reivindicaes e, sobretudo, seus comportamentos tidos como perigosos tm como

    contrapartida um fortalecimento do aparato policial na provncia. No terceiro

    captulo, investigamos a organizao policial, com seus pressupostos, e algumas

    manifestaes que iam contra os ideais dos governantes.

  • 11

    1. OS IMIGRANTES PERIGOSOS

    The past is a foreign country; they do things differently there.

    HARTLEY, L. P. The Go-Between.

    1.1.NOVOS HABITANTES NA PROVNCIA: CONFLITO ENTRE INGLESES E

    POLICIAIS

    Nos anos de 1873 e 1874, novos contornos demarcaram as relaes entre

    certos grupos de migrantes e os representantes do poder pblico da provncia do

    Paran. O fortalecimento da imigrao, ento, suscitava novas preocupaes: as

    multides de imigrantes aglomerados nos arredores da cidade, a escassez de

    empregos - sobretudo para aqueles no familiarizados com a agricultura - punham

    em cena a insegurana da populao ante seus novos vizinhos19. Foi quando uma

    grande tenso dominou as relaes entre o governo provincial e recm-chegados

    imigrantes ingleses.

    Como acontecia freqentemente, no primeiro semestre de 1873 um grande

    grupo de imigrantes havia desembarcado no porto de Paranagu. Eram ingleses e

    tinham como destino final a colnia do Assungui. Sua primeira etapa de viagem os

    levou capital, onde deveriam permanecer provisoriamente, espera de que seus

    lotes e casas estivessem prontos, para ento seguir em direo colnia. Este

    percurso, incluindo a hospedagem temporria na capital, era comumente cumprido

    pelos imigrantes. Aos ingleses coubera, ento, aguardar sua viagem estabelecidos

    no Barigi, reunindo-se ali 331 imigrantes.

    1 9 . PARAN. Relatrio com que o Exmo. Sr. Dr. Frederico Jos C. de Abranches abriu a 1' sesso da 11a

    Legislatura da Assemblia Legislativa provincial no dia 16 de Fevereiro de 1874. Curityba: Typ. Viuva Lopes, 1874.

  • 12

    Por ocasio da passagem do cargo presidencial ao Dr. Abranches, em 13

    de Junho de 1873, o Comendador Manoel Antonio Guimares j fazia referncia a

    estes colonos. Ressaltava a seu sucessor que a hospedagem dos ingleses estava

    provocando um acrscimo nas despesas, o que perduraria at que seguissem ao

    Assungui. As despesas com esta colnia tambm eram apresentadas, e os

    resultados eram-desanimadores: a falta-deumaestrada de rodagem- para a capital

    impedira que o desenvolvimento e a prosperidade l-chegassemr Referia-se ainda a

    um "grande nmero de imigrantes" que chegara colnia e l no encontrara casa

    provisria disposio, o que lhes deveria ser garantido, de acordo com o

    Regulamento de 19 de Janeiro de 1867. Alguns destes "desalojados",

    possivelmente 39 colonos, haviam retornado capital, ficando tambm nos ranchos

    do Barigi. Pois bem, somavam 370 os colonos ingleses espera de um destino.

    Ainda em Junho, o novo presidente soube que a colnia do Assungui estava

    preparada para receb-los, e deu ordem para que seguissem viagem, num prazo de

    10 dias, "... sob pena de lhes serem suspensos os favores do decreto n 3784 de 19

    de janeiro de 1867...".20

    Entretanto, os ingleses no estavam dispostos a cumprir tal intimao:

    obstinados, decidiram no continuar a viagem at o Assungui. Formaram, ento,

    uma comisso, indo comunicar ao presidente a deciso, afirmando que gostariam

    de ser repatriados. O governo Imperial, quando informado acerca da situao,

    reagiu energicamente: o ministro da agricultura declarou serem inadmissveis

    quaisquer concesses aos ingleses, quando excludas do Regulamento de

    1867(Cap.ll), e, caso eles continuassem irredutveis, deveria cessar o auxlio que

    lhes era prestado.21 A reao do governo provincial a esta "pretenso" dos

    20

    . Ibidem, p. 40. O decreto citado o Regulamento para a administrao das colnias do Estado, que ser estudado mais adiante (cap. 2).

    2 1 . PARAN. Oficios. 0707/1873. D EAP, ano 1873, voi. 015, ap. 413. p. 111.

  • 13

    ingleses foi imediata. Esquecendo, ainda que momentaneamente, a "...hospitalidade

    para com os estrangeiros..."22, esta expresso to defendida de uma crena no

    "carter benigno das populaes" nacionais23 - suspendeu o fornecimento de

    alimentos para aqueles colonos, exceto aos doentes. Esta ao do governo

    provocou o medo da populao nacional de Curitiba, pois acreditava-se que fosse

    iminente um conflito.24

    A situao conflituosa ainda teria lances mais agressivos: os colonos

    ingleses estavam alojados no Barigi quando chegaram ao presidente da provncia,

    Dr. Frederico Abranches, denncias de que eles estariam reunindo l grande

    quantidade de armamento. Ante tais informaes, e como os nimos j estavam

    bastante exaltados, ordenou-se ao subdelegado de polcia de Curitiba, Previsto

    Columbia, que para l se dirigisse, acompanhado de 30 praas do Esquadro de

    Cavalaria. Seu objetivo seria verificar a veracidade da denncia, com expressas

    recomendaes de evitar um conflito entre soldados e colonos,"...por assim convir

    ordem pblica...".25

    Tal averiguao poderia ser uma simples ao policial, j que a posse e

    uso de armas proibidas eram objeto de contnua vigilncia e controle da polcia.

    Contudo, neste caso envolvendo os colonos ingleses, tornou-se evidente a

    temeridade dos policiais. Os acusados no eram apenas alguns poucos colonos,

    mas, sim, 370 imigrantes h pouco chegados na Provncia. At aquele ano, mesmo

    tendo sido enfrentadas dificuldades na implementao da poltica imigratria e

    " . . Relatrio apresentado Assemblia Legislativa do Paran na abertura da 9a Legislatura pelo presidente o limo. e Exmo. Sr. Dr. Antonio Luiz A. de Carvalho, no dia 15 de Fevereiro de 1870. Curityba: Typ. C. M. Lopes, 1870.

    2 3 . Ibidem, p. 4-5.

    2 4 . PARAN. Oficios. 1 aOS/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 413. p. 212.

    25 Ofcios da Secretaria de Polcia. 21/07/1873. DEAP, ano 1873, vol. 015, ap. 413. p. 220-2.

  • 14

    colonizadora, nenhum conflito de grandes propores ocorrera. Assim, aquela

    suspeita, suas conseqncias imprevisveis e, talvez, o medo de uma possvel

    revolta daqueles colonos, deixaram membros da elite provincial em sobressalto.

    Era dia 17 de Julho quando o subdelegado Columbia e as 30 praas

    seguiram para aquele local, encarregados de procurar o armamento e apreend-lo,

    caso se confirmassem as suspeitasr Tarefa ingrata:- alm de ocuparem-9-ranchosr

    erri-rea-extensa, os.colonos_reunidos formavamum-grupo-de mais-de~170_homens-

    adultos, em muito superior fora policial. Se os atritos entre o governo e os

    colonos j eram evidentes, a chegada das praas tornou ainda maior a exaltao

    dos nimos entre eles. As dificuldades para vistoriar a extensa rea, somadas

    exaltao, impediram que fossem apreendidas quaisquer armas, sendo que a

    polcia sequer as encontrou. Segundo o Chefe de Polcia provincial, Salvador Pires

    de Albuquerque, teria havido tempo suficiente para que os colonos ocultassem as

    armas existentes nos matos contguos. Albuquerque tinha certeza de que elas

    existiam e pregava "providncias extraordinrias" (sem especific-las) para

    preservar a cidade de ameaas ordem pblica. Sobre estas ameaas, dizia,

    aterradores boatos estariam circulando na capital.26

    O impacto da situao conflituosa do Barigi no se manifestou apenas na

    iminncia do conflito, sobretudo por ocasio da suspenso de alimentos queles

    colonos. Tambm no contribuiu apenas para fortalecer a tenso junto aos

    governantes e populao, tanto brasileira quanto imigrante. A tragicidade deste

    episdio, em suas conseqncias, foi sentida por muitos ingleses durante toda sua

    subseqente peregrinao pelas terras da provncia.

    Pressionados, 182 daqueles ingleses do Barigi seguiram "ao seu

    destino", isto , colnia do Assungui, enquanto os outros foram Corte. Alguns

    2 6 . Ibidem, p. 220-2.

  • 1 5

    meses depois, grande parte deles j havia abandonado a colonia: "sem motivo

    justificvel", era o que informava o Dr. Abranches, expondo sua auto-defesa.27

    Iniciava-se o ano de 1874, quando o vice-cnsul britnico em Paranagu dirigiu-se

    ao presidente da provncia comunicando-o acerca do "...completo estado de

    penria..." dos colonos ingleses, que haviam abandonado a colnia do Assungui e

    que estavam agora naquela cidade porturia.28 Preocupao idntica demonstrava

    o delegado de polcia de Paranagu, Manoel Antonio de Castro Almeida, fazendo

    ver ao chefe de polcia provincial o perigo representado pela crescente

    precariedade das condies daqueles cento e dezoito imigrantes ingleses, nmero

    que crescia diariamente.29 Sem roupas, sem meios de subsistncia, os chefes de

    famlia esmolavam pela cidade. As condies de vida daquelas famlias eram dignas

    de compaixo, dizia o delegado, que os recolhera ao quartel da cidade (assim,

    mantendo "o perigo" sob os olhos vigilantes da guarda), de onde saam para "...

    recorrer caridade pblica...", muito embora a populao j estivesse "...cansada

    de contribuir com o seu bolo...".30

    A situao de misria em que se achavam os colonos ingleses fez o vice-

    cnsul reclamar providncias ao presidente Abranches, o qual poderia...

    achar um remdio a tanta misria fazendo seguir esta gente para o Rio de Janeiro ou para outro ponto do Imprio, onde se lhes facilite os meios de v i d a ^

    O estado de pobreza destes imigrantes que abandonavam a provncia no

    parecia provocar medidas paliativas pelo governo, exceo da preocupao com

    2 7 . PARAN. Relatrio, 15/02/1874. p. 39-41.

    2 8 . . Oficios enviados ao presidente da provincia. 14A31/1974 DEAP, ano 1874, vol 003, ap. 431. p.14.

    2 9 . . Oficios da Secretaria de Policia. 03/01/1873. DEAP, ano 1873, vol. 003, ap. 431. p.246-7 e p.256-7.

    3 0 . Ibidem, p. 220-2.

    3 1 . PARAN. Oficios enviados ao presidente da provincia. 14^)1/1874. DEAP,ano 1874, vol. 003, ap.430. p. 14.

  • 16

    o "perigo" que uma multido mendicante acarretava ordem pblica. Temas como

    multido, misria e vagabundagem tinham em comum o fato de suscitar s

    autoridades a adoo de medidas de controle social. Informado desta "injustificvel

    retirada", coube ao Ministro da Agricultura enviar speras palavras ao presidente da

    provncia tratando da reivindicao consular:

    O governo no tem obrigao de dar passagem de volta a esta Corte, nem sustentar imigrantes, nem que abandonem seus prazos. Trate V. Exa. de chamar razo os que saram de Assungui e persuadi-los a voltar Colnia, onde lhes sero dados socorros que lhes meream. 32

    Desertores e fugitivos: assim classificados pelo Dr. Abranches, os ingleses

    de Paranagu, tidos como potenciais difamadores da colonizao local, buscavam

    transporte para o Rio de Janeiro e para as repblicas do Prata. Muitos haviam

    conseguido suas dispensas da colnia, as quais lhes garantiam livre sada da

    provncia. Apenas aguardavam naquele porto que a caridade pblica garantisse

    suas viagens. Ao vice-cnsul, ainda que levado "cham-los razo", propondo

    seu retorno ao Assungui, qualquer esforo parecia intil.33 Naquele mesmo ano, em

    seqncia ao que ao Juiz da Comarca de Paranagu pareciam "circunstncias

    extraordinrias", a autoridade britnica voltaria questo, ao apelar da deciso do

    tribunal local, que condenara o ingls James Paine a 5 anos e 3 meses de priso e

    multa, acusado de roubo, segundo o artigo 269 do Cdigo Criminal do Imprio.

    1.2. DESVENDANDO ALGUNS CONFLITOS CULTURAIS

    Este episdio e a decorrente tenso que caracterizou a presena destes

    ingleses na provncia. expem alguns grupos sociais, as elites e os colonos,

    3 . . Oficios enviados ao presidente. 14/01/1874. DEAP, ano 1874, vol. 003, ap. 430. p. 186.

    26 . Ibidem, p. 220-2.

  • 17

    deixando transparecer aspectos que lhes pareciam fundamentais sua estruturao

    enquanto grupo e realizao de suas expectativas, quer fossem constitutivas de

    suas identidades culturais, quer fossem estratgicas sua sobrevivncia material.

    A prpria descrio da ocorrncia tem esta finalidade: a exposio da

    multiplicidade cultural ento apresentada. importante contrapor as diferentes

    opinies-e-significados- conferidos-ao-episdio. - este confronto que permitir

    compreender-as-opes e definies que a experincia prope a-seus agentes,-bem-

    como revelar as variaes de percepo cultural, no prprio processo de formulao

    e manipulao de identidades, dentro do quadro de relaes de poder.

    A iminncia de um conflito entre a fora policial e os colonos ingleses

    revelou conotaes de uma luta entre dois grupos, ambos temerosos da ameaa

    exterior: para as autoridades polticas, estava em jogo a defesa de seus ideais. A

    garantia da ordem pblica indicava-lhes a manuteno de um ideal de sociedade,

    em que civilizao e progresso eram os fundamentos.

    Certamente, tal ocorrncia, (assim como muitas outras daqueles anos),

    contribuiu para reforar a conexo entre a poltica de colonizao e a administrao

    da segurana pblica provincial. O medo de que a manuteno da escravido

    trouxesse mais revoltas de negros e, assim, ameaasse a estrutura social vigente34,

    teve, em muitas circunstncias, um substituto: o medo de que os distrbios

    envolvendo estrangeiros pudessem servir difamao da poltica imigratria e

    impor entraves ao despertar do progresso provincial. A crena nos atributos dos

    imigrantes europeus, sobretudo a crena em sua laboriosidade, sustentava a

    poltica provincial da imigrao. Contudo, a prpria colnia Assungui, destino

    daqueles ingleses, vinha sofrendo baixas36, com a "...retirada de grande parte de

    3 4 . AZEVEDO, C.M.M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginrio das elites - sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

    3 8 PARAN Relatrio, 1502/1874. p. 40.

  • 18

    indivduos..." de tal nacionalidade. Estes revses eram preocupantes e atingiam os

    brios do governo: no ano seguinte, em discurso aos membros da Assemblia

    Legislativa, o Dr. Abranches procurava ressaltar que os distrbios ocorridos na

    capital, em 1873, embora tivessem como protagonistas estrangeiros, tinham carter

    momentneo. Desta forma, o presidente situava as alteraes da ordem pblica no

    campo da exceo, buscando conter possveis dissabores polticos36-.

    Segundo, o. presidente Abranches, ele mesmoenvolvido na luta em prol do

    progresso, a explicao para tais fatos estaria na falha dos agentes do governo na

    Europa, os quais teriam deixado de lado quaisquer escrpulos ao escolherem os

    futuros imigrantes. Os novos colonos seriam, "em sua quase totalidade", pessoas

    indolentes e de maus hbitos, aspectos que estavam tendo suas conseqncias

    mais danosas na provncia. Feroz ao criticar os colonos, impondo-lhes todas as

    responsabilidades pelos incidentes registrados, o Dr. Abranches afirmou:

    nada lhes faltou; foram socorridos de alimentos, tratados em suas enfermidades e obtiveram todos os favores que lhes eram garantidos. Ao governo, portanto, no pode caber a mnima responsabilidade de to desagradvel incidente.37

    Para o subdelegado Columbia, tais colonos eram simplesmente infratores

    da lei, tanto pela posse de armas proibidas, como pelas ameaas e provocaes

    que teriam lanado no momento da inspeo policial, configurando-se desacato da

    autoridade policial. Referindo-se ao ato criminoso praticado contra sua pessoa,

    Columbia reportava-se aos ingleses como sendo "gente bria, estpida, insolente e

    turbulenta" e "ladres"38.

    Mas havia outra verso sobre as condies que levaram ao desnimo

    muitos colonos. Para aquele grupo de ingleses, a experincia de reconstruo de

    3 6 . Ibidem, p. 2.

    3 7 . Ibidem, p. 39-41.

    3 8 PARAN. Oficios da Secretaria de Policia. 21 >7/1873. DEAP, ano 1873, vol 015, ap. 413. p. 220-2.

  • suas vidas na provncia estava se revelando uma aventura ingrata: os laos ptrios

    rompidos, a ao punitiva do governo provincial, as notcias desanimadoras trazidas

    do Assungui por outros colonos, relatando a difcil sobrevivncia naquela

    localidade, ressaltavam-lhes as incertezas de seu futuro. Possivelmente, a ameaa

    integridade e sobrevivncia do grupo tiveram, para tais ingleses, uma conotao

    tnica, j que se confrontavam com as-autoridades e com policiais de um pas no

    quaL tinham acabado de chegar. lnsegurosr os ingleses-do Barigi-se recusaram a

    seguir viagem colnia Assungui e expressaram seu desejo de serem repatriados.

    Por ironia, justamente um artigo de jornal, cujo intuito era criticar a

    imigrao inglesa, que nos permite conhecer uma outra histria, pois transcreve ali

    trechos de uma carta, que fra j publicada no 'Times", escrita por um colono ingls

    residente na provncia.39 Esta carta trata das condies de vida nesta provncia.

    Datada de Curitiba, 29 de Abril de 1873, (um pouco anterior s ocorrncias do

    Barigi), nela o imigrante George Arnold, agricultor, (provavelmente tendo

    recentemente regressado do Assungui) diz ter sido enganado juntamente com seus

    compatriotas. J antes de emigrarem, teriam acreditado em "...fbulas adrede

    forjadas..." sobre esta terra. Na provncia encontraram a dificuldade da subsistncia

    e a escassez de alimentos. Decepcionado, "...porque tudo so (sic) montes e

    serras, estas cobertas de matas impenetrveis...", dizia faltarem terrenos prprios

    para lavrar e, quando se plantava feijo preto e milho, estes eram destrudos por

    porcos selvagens e por macacos. No havia pastos, o que dificultava a criao de

    gado; terrenos para lavradio, aqui e ali alguns pequenos torres. Quanto ao caf,

    cinco anos esperava-se para v-lo produzir, e no eram arbustos, mas rvores. Os

    preos de todos os gneros alimentcios lhe pareciam exorbitantes. Arnold afirmava,

    sobre as condies de trabalho e sobrevivncia dos colonos, que no se lhes

    5 9 . DEZENOVE de Dezembro, 02/06/1873. p. 4. Cita o Jornal do Comrcio, o qual referncia esta carta publicao no Times.

  • 20

    proporcionavam meios para fazer uso do arado. Tambm lhe chamara a ateno o

    grande nmero de escravos existentes no pas.

    As condies de sua vida na provncia lhe tinham um sentido particular,

    passavam pelo crivo dos valores, dos costumes, da experincia deste ingls de

    nome George Arnold. A carta revela no s a viso que um imigrante tinha da

    colonizao, mas tambm mor em-um momento crtico de sua-experinciar

    reforaram=se os laos ptrios-de identificao. Esta identificao, era.contrastiva40

    e etnocntrica: na carta, as decepes surgem atravs da oposio entre as

    caractersticas que George Arnold define serem as de sua terra natal e as deste

    pas. A surpresa com a vegetao e a fauna tropicais, sua viso acerca da colo-

    nizao, os homens, as condies de trabalho e a sobrevivncia eram evidenciados

    e avaliados atravs da comparao. Alm disto, desconfiado, afirmava: "...consta-

    nos que todas nossas cartas so abertas e retidas em caminho por no contarem

    boas informaes a respeito da terra."41

    No difcil imaginar a recepo que teve esta carta, tambm publicada

    na imprensa local. Num artigo enfurecido, defendia-se "melhor escolha" dos

    imigrantes europeus destinados ao Paran: "No h que hesitar na escolha".

    Passavam a ser desprezados aqueles a quem pouco tempo antes eram conferidos

    os copiosos elogios de "...'homens pacientes e laboriosos (...) aptos para os mais

    rduos servios!'...".42

    4 0 . OLIVEIRA, R.C. de. Identidade, etnia e estrutura social. S3o Paulo : Pioneira, 1976 p. 5-6.

    4 1 . DEZENOVE de Dezembro, p. 4.

    4 2 . Ibidem, p. 4.

  • 21

    As queixas dos colonos do Assungui tambm chegaram Legao

    Britnica na Corte. Uma nota foi dirigida ao Governo Imperial, informando as

    condies de vida de uma famlia inglesa:

    George Brains, sua mulher e trs filhos de idade 4 V, 3 e 1 Vi - naturais de Bristol, chegaram em Julho ltimo a 'Idimburger Castle'. Foram engajados em Bristol por um Snr. Pearce de Queens Square. Foram enviados para o Assungui onde deram-lhe um telheiro para habitao no qual mal podiam acomodar-se, foram alimentados com feijo e farinha, obtendo carne com intervalos de 2 a 3 semanas. Que nunca recebeu um real do Governo. Que deixou a colnia por conselho do Diretor que estava sem fundos, que no podiam dar trabalho, que no h mdico na colnia, que ultimamente foi lhe oferecido um terreno nas matas que ele teria de limpar, conforme o Diretor Geral interino Alexandre Afonso de Carvalho.43

    Um relatrio de 1875 justifica algumas reclamaes dos imigrantes e

    esclarece o tipo de crticas que punham em sobressalto o Dr. Abranches. Seu autor

    era um observador enviado colnia do Assungui pelo ento presidente Lamenha

    Lins. Ele concordava que as condies de instalao dos imigrantes no eram

    adequadas, informando que as moradias preparadas para receber os colonos eram

    construdas com uma espcie de palmeira, a guissara, servindo-se da palha para a

    cobertura, que em pouco tempo apodrecia. As paredes apresentavam grandes

    fendas, que expunham os colonos s intempries do vento e das chuvas. Descrevia

    esta situao como um motivador de queixas: "...H colonos muito exigentes e

    importunos, mas quando se queixam (...) por causa do pssimo cmodo para

    morarem, esto cheios de razo contra as Diretorias passadas e a fiscalizao de

    seus subalternos..."44

    Este emissrio tarhbm afirmava que o solo local no prometia constantes

    colheitas: "...plantando-se em um mesmo lugar dois ou trs anos sucessivamente,

    preciso deixar crescer o mato por trs ou quatro anos...".45 Ressaltava, assim, a

    4 3 . PARAN. Ofcios. 08/05/1873. DEAP, ano 1873, vol. 011, ap. 409.

    4 4 . . Relatrio com informaes gerais sobre a colnia Assungui. Tesouraria de Fazenda da Provincia, 23/10/1875, in . Oficios. DEAP, ano 1875, vol. 016, ap. 471. p. 25-38.

    26 . Ibidem, p. 220-2.

  • 22

    necessidade de distribuir lotes com maiores reas individuais, para permitir o

    descanso da terra. Mesmo aqueles que acreditavam na fertilidade daquela terra

    previam as dificuldades de adaptao dos colonos europeus. Diziam ser uma regio

    propcia para culturas tipicamente brasileiras, como caf, cana e mandioca,

    geralmente considerando que os terrenos acidentados fossem inacessveis s

    culturas de tipo europeu e que no pudessem "...oferecer aos colonos estrangeiros

    atrao que os resolva a permanecer aqui...".46

    O que podemos inferir a partir destas informaes anteriores? A

    experincia do contato cultural tinha significaes diferenciadas para seus agentes;

    esta diferenciao estava demarcada pelo que a cultura - do imigrante ingls, da

    elite poltica - lhes sugeria como legtimo. Quando confrontados, ambos os grupos

    acreditavam estar assumindo uma posio correta e legtima no enfrentamento das

    dificuldades surgidas. Tais dificuldades tinham motivaes diferentes: aos

    governantes da provncia, interessava conduzir a implementao de seus ideais

    civilizadores com um mnimo de contratempos. As crticas que os atingiam estavam

    encontrando amparo justamente na ao daqueles que, esperava-se, deveriam

    engajar-se diligentes queles propsitos - os imigrantes. Coube s autoridades

    conduzir tais aes s pginas policiais, definindo seus autores como desordeiros,

    miserveis perigosos, ou mesmo ladres, que ameaavam a segurana pblica. Por

    este procedimento, asseguravam legitimidade punio, ao controle reforado, e

    garantiam a fora de seus ideais. Para os colonos ingleses, motivava-lhes a

    sobrevivncia material, e a experincia provincial lhes reservara obstculos de

    ordem cultural - perceptveis sobretudo na dificuldade em "tratar" esta nova vida em

    conjunto com as impresses resistentes da terra ptria - somados intransigncia

    das autoridades locais. A carta de G. Arnold sugere paralelos entre a sua

    . PARAN. Informaes gerais sobre a Colnia Assungui. Diretoria da Colnia Assungui, 31/11/1877, in Oficios. DEAP, ano 1877, vol. 018, ap. 528. p. 04-14.

  • 23

    experincia individual e aquela vivida pelos seus compatriotas: ressalta-se no

    contato cultural a dificuldade em lidar com o estranho, com a diferena, o que fazia

    do confronto um espao de definio para suas histrias.

    1,3. IDENTIFICAO TNICA E CONFLITO

    No foram poucas as ocasies em que a fora pblica se envolveu em

    conflitos com estrangeiros sendo, inclusive, freqentemente acusada de abusos no

    uso da fora e de instigadora da violncia atravs de provocaes movidas pelos

    seus soldados. De agentes da segurana pblica para agentes da desordem: para o

    chefe de polcia, Salvador Pires de Albuquerque, esta passagem teve, muitas

    vezes, seus motivadores nas questes de nacionalidade. Assim teria ocorrido na

    noite de 31 de julho de 1873, quando um conflito ps frente a frente as praas do

    Esquadro de Cavalaria e inmeros imigrantes alemes.47

    Naquela noite, os soldados da patrulha faziam a ronda. Ao chegarem na

    rua do Riachuelo, teriam encontrado dois alemes praticando desordens. Um deles,

    de nome Otto Grobord.foi preso ao tentar agredir uma das praas; o outro

    conseguiu fugir. Aps ter recolhido cadeia o referido Otto, a patrulha seguiu sua

    ronda prximo igreja matriz quando, ao chegar rua Alegre, foi surpreendida por

    um grupo de dez ou doze alemes. Estes, armados de paus e pedras, queriam a

    desforra da priso de seu patrcio: injuriaram e agrediram a patrulha; o soldado

    Sebastio Loureno Gomes, recebendo ento uma forte cacetada, caiu por terra

    ferido gravemente. Do conflito ento ocorrido, resultaram ferimentos em quatro

    alemes, mas eram apenas algumas contuses. O grupo de alemes, aps a ocor-

    Oficios da Secretaria de Policia, 168/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap 413. p. 212.

  • 24

    rncia, buscou refgio no hotel de Carlos Schibel, que permaneceu cercado pela

    fora policial durante toda a noite.48

    Mas esta no a nica verso sobre tal episdio. Produzida pelos

    soldados do Esquadro, refere-se a alemes bbados e agressivos, e a uma polcia

    cumpridora do seu dever, impedindo que desordens viessem a perturbar a

    tranqilidade pblica^ Gontudor algumas- testemunhas que teriam- presenciado a

    ocorrncia negaram.que.a agresso- tivesse partido dos alemesratribuindo o incio

    do conflito patrulha. Argumentaram que o alemo Joo Geiga* caminhava mansa

    e pacificamente no ptio da Matriz, no canto da rua Alegre, quando veio ao seu

    encontro a patrulha encarregada da ronda e o provocou, perguntando o que fazia

    ali. Geiga respondeu que no era da conta dos policiais. Ento,a patrulha

    desembainhou as espadas, dando planchadas no alemo, que, gritou: "O que quer

    de mim, soldado desgraado?!" Ainda segundo estes testemunhos, Joo Geiga

    repeliu os golpes de espada com um pau, resultando em ferimento no soldado

    Sebastio Gomes. Os gritos do alemo atraram ao local diversos soldados e

    alemes, estes, vindos do hotel Schibel, onde j chegara uma notcia de que

    soldados estavam matando um alemo.4*

    Com alguns alemes tendo sido feridos por espadeiradas, estes se

    refugiaram no hotel Schibel, rua da Assemblia. Durante toda a noite, o hotel

    permaneceu sob a vigilncia policial. Segundo o subdelegado Columbia, foi durante

    este perodo que se deu a seguinte ocorrncia: o alemo Frederico Henning, ao

    tentar sair do hotel pela porta dos fundos, foi ferido na cabea por um soldado,

    sendo preso e levado presena de Columbia. Depois de medicado, pde retirar-se

    4 8 . . Oficios da Secretaria de Policia, 18/06/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 414. pp. 207-12 e

    PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02.

    Geiga ou Joger. 4 9 . Ibidem.

  • de volta ao hotel, embora intimado a comparecer presena policial no dia

    seguinte.

    Com todas as sadas tomadas por sentinelas, por trs vezes, durante a

    noite, o subdelegado proclamou incomunicvel a referida casa. Entretanto, pediu ao

    gerente do hotel que permitisse sua entrada, mesmo quela hora da noite,

    acompanhado apenas de um oficial do Esquadro de Cavalaria,-para-atender os-

    feridos.-Tendo. prometido no efetuar nenhuma priso, encontrou no interior-do-hotel-

    dois alemes feridos, Carlos Gottlieb Thiele e Martim Schmoechtel, que foram

    conduzidos botica prxima. L, foram medicados e se realizaram os respectivos

    autos de corpo de delito. Somavam-se j quatro exames de corpo de delito: no

    soldado Sebastio Loureno Gomes, no alemo Frederico Henning e nos dois

    alemes acima citados. Os autos revelaram a gravidade dos ferimentos causados

    no conflito. Quanto ao soldado, em resposta aos quesitos mdicos, os peritos

    concluram o seguinte: 1o Quesito: Sim, havia ferimento, localizado na cabea; 2o,

    que este poderia ser mortal; 3o, que fra causado por instrumento cortante e

    contundente; 4o, que no resultara em mutilao; (...) 6o, que poderia resultar em

    inabilitao do orgo cerebral, sem que contudo ficasse ele destrudo; (...) 9o, que

    inabilitava o soldado para o servio por mais de 30 dias. O dano causado foi

    avaliado em 200 mil ris. Quanto ao exame de delito realizado nos alemes, os

    peritos responderam: 1o, sim, havia ferimentos; 2o, eles no eram mortais; 3o, foram

    causados por instrumentos cortantes; (...) 9o, os ferimentos no os inabilitavam para

    o servio por mais de 30 dias; 10, os danos causados foram avaliados, para cada

    um deles, em 10 mil ris.

    Na manh de 1o de agosto, o subdelegado, acompanhado de um

    escrivo, efetuou as prises de 12 estrangeiros, que se encontravam hospedados

    no hotel Schibel. Eram eles o suo Conrado Waldvogel, o italiano Ferrigoti Nicolo,

    e os alemes Frederico Schiling, Carlos Gottlieb Thiele, Martim Schmoechtel, Gui-

  • 26

    Iherme Vitte, Frederico Henning, Ernesto Uhlmann, Frederico Anders, Ricardo

    Hartmann, Waldeck Scoeller e Joo Frederico Geiga.

    O que nos interessa nesta histria compreender os significados que tal

    conflito assumiu para os agentes, quer fossem eles soldados ou alemes, e para as

    suas testemunhas. A principal fonte para tratar deste conflito um processo

    criminal, onde se encontram inmeros testemunhos relatando as circunstncias do

    acontecimento. Eles so o registro de inmeras verses que surgem de uma

    situao conflituosa. Assim, atravs do confronto das verses, possvel o

    conhecimento de alguns significados produzidos a partir do conflito e podemos

    "...penetrar nas lutas e contradies sociais que se expressam e, na verdade, se

    produzem nessas verses ou leituras..." do conflito.60 Podemos conhecer, tambm,

    que efeitos de verdade as verses produzem, sobretudo na ao da Justia.

    Os narradores desta histria, juizes, escrives, comerciantes ou

    agricultores, brasileiros ou estrangeiros, expressaram suas experincias atravs do

    seu olhar pessoal. Alcanamos o passado nos seus resqucios: so fragmentos de

    vidas, sentimentos, fatos diversos, sempre marcados pelas particularidades de seus

    narradores. Esta subjetividade da fonte, longe de desmerecer o trabalho do

    historiador, pode se revelar extremamente eficaz no resgate das identidades grupais

    manifestas naquele contexto. Nestes casos de conflitos e tenses, momentos em

    que os nimos exaltados expem diferenas culturais e experincias individuais, os

    .testemunhos.. .so.marcados poresta_ individualidade_e_pelas identidades-culturais,

    frutos da memria, da experincia e das expectativas de futuro. Aimprevisibilidade

    ante o que estava por vir, as surpresas presentes, as decepes e esperanas,

    demarcam os testemunhos do passado.

    6 0 . CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Beile poque. So Paulo: Brasiliense, 1966. p. 22-3.

  • O inqurito das testemunhas do conflito entre alemes e soldados foi

    realizado pelo subdelegado Columbia, no incio de Agosto, ainda sob o calor dos

    acontecimentos. Uma das testemunhas, Emilia Maria Tch, de 22 anos, solteira,

    natural da Holanda e que trabalhava como criada no hotel de Carlos Schibel, fez

    uma avaliao pessoal de alguns estrangeiros presos, hspedes e supostos

    participantes da batalha:

    - Conrado Waldvogel, suo: no saiu do hotel, porque era um homem

    "...de costumes, muito sossegado e que nunca se mete em questo nenhuma...".

    - Ferrigoti Nicola: "...sem dvida deixou de ir porque, sendo italiano, (...)

    nunca se mete nas questes dos alemes, alm de ser muito quieto e bom

    homem...".

    Por estas pequenas consideraes, j podemos ver que Emilia entendia

    aquele conflito como particular aos alemes e que, portanto, no suscitara o

    envolvimento de um hspede suo e de outro italiano. Ela reservou palavras para

    acentuar a identidade alem da "vtima": naquela noite, dizia Emilia, entraram no

    hotel alguns hspedes (sem especificar quais deles), pedindo que acudissem, pois

    alguns soldados estavam matando um alemo. Posta condio de testemunha

    presencial, Emilia disse ter acorrido ao local da luta "...um grande nmero de

    soldados, que com espadas desembainhadas atacavam um grupo de prussianos

    que se defendia com paus, alguns outros com pedras e assim se vieram retirando

    _at__ganharem__a_porta__do hotel.. .". A luta, nesta sua verso, -teve sua motivao

    em uma agresso perpetrada pelos policiais,

    No extremo oposto a esta verso, estava o despacho do Quartel de

    Comando do Esquadro de Cavalaria da Provncia do Paran. Datado de

    01/08/1873, segundo ele dois praas do Esquadro teriam pedido ajuda, aps

    serem atacados por um grupo de 10 ou 12 alemes armados de cacetes, achando-

    se j um praa prostrado e gravemente ferido.

  • 28

    No interrogatrio, o subdelegado procurou definir as circunstncias em

    que se deu o conflito, sobretudo como este iniciou e quem eram os autores dos

    ferimentos do soldado e dos dois alemes (o outro alemo foi ferido

    posteriormente). Este era um objetivo bastante restrito, o que por vezes torna o

    processo criminal repetitivo. Mas a verso produzida pelas praas do Esquadro, ao

    relacionar o conflito a uma "questo de nacionalidade", revelava uma interpretao

    que dava destaque aos critrios tnicos de identificao como motivadores da

    rivalidade.

    Lino Lemos do Prado, brasileiro, de 20 anos, Cabo de Esquadra da

    Cavalaria, interrogado pelo Tenente Joaquim Theodoro S. Freire> afirmou que

    estava "...rondando a rua da Carioca, encontrou dois paisanos alemes brigando e

    mandou apart-los; um deles acomodou-se, porm o outro altercou razes com uma

    praa da patrulha de nome Christiano Fernando Henrichsen, o qual de

    naturalidade alemo (sic) e, querendo agredir esta praa, mandei prend-lo...".

    Christiano F. Henrichsen, de 19 anos, natural da Dinamarca, Soldado da

    1a Companhia do Esquadro de Cavalaria, ao contar detalhes do dilogo ento

    travado, ressaltou o estranhamento de um alemo, ao se deparar com seu

    conterrneo (Christiano) aparentemente to assimilado sociedade nacional.

    Aquele alemo, "o mais bbado", procurou ento esclarecer bastante indignado: as

    praas, "que de nada serviam", nacionais ou no, no tinham o direito de interferir

    nos_co_stumes_alemes,__quandoestes_caracterizassem--questes -particulares". -

    ".Finalmente, querendo brigar com ele testemunha...", foi preso. Saindo, dali,

    segundo Christiano, encontraram o seu companheiro e mais 10 ou 12 alemes, e

    aquele dizia que "...estes ero os soldados que tinham prendido o seu patrcio, e

    que deviam tirarem (sic) a desforra...".

    A discusso acerca das relaes entre os imigrantes e a populao

    nacional, suscitada pelos confrontos de 1873, fez fortalecer no projeto de

  • 29

    colonizao do governo provincial uma estratgia de controle policial das tenses e

    conflitos que se acreditava originados por questes de nacionalidade. Para o chefe

    de polcia da Provncia, Salvador Pires de Albuquerque, havia um clima de tenso

    permanente no convvio entre os envolvidos:

    incontestvel (...) que reina profunda ojeriza entre os alemes e os praas do Esquadro e, deste antagonismo entre a fora pblica e a populao alem, que constitui grande maioria desta capital, resulta uma causa permanente de desordens e conflitos.61

    Embora no negasse ser defeituoso o testemunho dos patrulheiros, por

    terem tomado parte no confronto com os alemes, e, mesmo reconhecendo ter a

    patrulha contribudo muito para sua deflagrao, "provocando-o, de alguma sorte",

    Pires de Albuquerque ressaltou ao Dr. Abranches, em 16/08/1873, a exgua fora

    policial de que dispunham as autoridades policiais.

    Seus argumentos tambm expunham um aspecto fundamental do contato

    cultural, decorrente da imigrao europia: como a populao percebia possveis

    conflitos no convvio de estrangeiros e brasileiros. A exaltao dos nimos, entre

    soldados e alemes, pusera em alarme a cidade, atemorizando sobretudo a

    populao nacional, "...que nessas ocasies com justa razo considera-se o alvo

    das ameaas dos estrangeiros."62 Trazendo a presso do medo populao,

    segundo aquela autoridade pblica, tais hostilidades estariam sendo estimuladas

    por uma populao estrangeira inebriada de orgulho de nacionalidade e ignorante

    das leis deste pas.63

    Embora as .referidas tenses-e_os conflitos-tenham sido compreendidos

    pelas autoridades como uma "quejsto .nacional", tais evidncias no .apontam para

    possveis correlaes destas ocorrncias com expresses e reivindicaes de

    6 1 . PARAN. Ofcios da Secretria de Policia, 16/08/1873 DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 413. p. 22.

    6 2 . Ibidem, p. 22.

    6 3 . Ibidem, p. 22.

  • 30

    patriotismo (como compromisso e identificao a um "Estado-nao"). A construo

    de uma identificao tnica, neste caso, remete mais aos termos culturais

    "trabalhados" pelos indivduos em situao de contato. Isto , eram os laos

    culturais estabelecidos com os companheiros da jornada migratria que saam

    fortalecidos: "De quem poderiam os imigrantes esperar auxlio, em sua nova vida,

    estranha e desconhecida, seno de parentes e amigos, de gente da antiga terra?

    (...) Quem o entenderia (...)? Quem poderia dar-lhes a feio de uma comunidade e

    no de uma pilha de estrangeiros (...)?n64. Com quem poderia compartilhar

    costumes, a lngua, a religio, os valores?

    As conseqncias imediatas do confronto de 31 de julho confirmam que,

    naquele momento conturbado da vida na capital, as identidades grupais tiveram sua

    componente tnica destacada: em 03 de Agosto, quando ainda estava em

    andamento o inqurito para averiguar as responsabilidades sobre o conflito, quase

    300 alemes residentes na cidade e nos subrbios se reuniram na Hospedaria

    Mayer, decididos a reclamar a soltura de seus compatriotas, e at mesmo, segundo

    Previsto Columbia, "projetavam soltar a viva fora seus compatriotas detidos".65

    Com efeito, ao final da tarde uma comisso de alemes apresentou-se Cmara

    Municipal, querendo saber do subdelegado porque alguns alemes continuavam

    presos, tendo j decorrido mais de 24 horas desde que haviam sido recolhidos

    cadeia, sem culpa formada, o que lhes configurava ser uma ilegalidade. A eles o

    subdelegado, explicou_que era equivocada tal apreciao da deteno.dos alemes,

    pois estes tinham sido presos em flagrante, logo, legalmente. Informados tambm

    sobre o andamento do inqurito, retiraram-se daquela casa parecendo satisfeitos

    com tais argumentos.

    6 4 . HOBSBAWM, E. J. A era dos Imprios: 1875-1914. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988. p. 218-219.

    6 5 . PARAN. Relatrio presidencial, 15/02/1874. p. 3 "...Perderia de importncia esta ocorrncia, se entre os individuos daquela nacionalidade nao se pronunciassem de modo inconveniente contra a priso dos culpados e no pretendesse, como se propalara, assaltar a cadeia e dar fuga aos criminosos"

  • 31

    A violncia de grupos envolvendo estrangeiros, na cidade de Curitiba,

    sendo ocasional, no se apresentava enquanto a forma sempre escolhida para

    expresso de reivindicaes ou crticas. Eram manifestaes que ocorriam com

    pouca freqncia e, em geral, seus motivadores e participantes no ero os

    mesmos de manifestaes anteriores. Mas ainda que tais conflitos grupais fossem

    ocasionais, caracterizavam expresso de tenses constantes nas relaes

    imigrantes-brasileiros. Alm disto, atos violentos tinham grande repercusso

    naquele cotidiano: estas experincias, alm de provocar um acrscimo de tenses,

    criando receio de que novas alteraes da ordem pblica pudessem sobrevir,

    incitavam a populao a perceber qualquer rixa ou conflito envolvendo estrangeiros

    como sendo expresses de uma "questo de nacionalidades".

    Contudo, tais tenses e conflitos no eram necessariamente legitimados e

    fortalecidos pelos membros dessas comunidades. Tal evidncia atenta para as

    distines na composio dos grupos, para alm das nacionalidades. Alm das

    diferenas marcantes quanto s ocupaes profissionais, o passar dos anos

    tambm evidenciou diferenas quanto ao poder aquisitivo e capacidade de

    integrao na esfera pblica local.66 Quanto interferncia de imigrantes buscando

    a pacificao de tenses, possivelmente eram motivados por seu zelo vida

    comunitria, mas tambm obtinham, assim, um fortalecimento de suas relaes

    pessoais com as autoridades do poder pblico. Como ressaltou o subdelegado

    Columbia, se havia muitos indivduos associados perturbao de 31 de Julho de

    1873, e exaltao dos nimos dela decorrente, alguns outros agiam movidos de

    ideal pacificador:

    prudncia e prestgio de Engenheiro Gottlieb Briehand e de outros seus compatriotas no menos importantes devemos o no se ter dado algum lamentvel acontecimento na noite de 3 do corrente por terem conseguido acalmar os nimos de quase 300 alemes.57

    5 6 . MAGALHES, p.19-21.

    5 7 . PARAN . Oficios da Secretria de Polcia, 18/02/1873. DEAP, ano 1873, vol. 016, ap. 414. p. 207-212.

  • 32

    Aps o tenso dia 3 de Agosto, continuavam na cadeia de Curitiba os

    alemes Joo F. Geiga, Carlos Gottlieb e Martim Schmoechtel, estes dois, por

    estarem feridos, o que fra considerado "indcio de que estavam na luta".58 O

    soldado Christiano Fernando Henrichsen, em novo testemunho, disse ter

    reconhecido os trs presos como integrantes do grupo de alemes que atacara a

    patrulha: vira Joo F. Geiga ferir seu companheiro, o soldado Sebastio B. Gomes,

    e vira tambm os outros dois resistirem armados de paus e pedras e se oporem a

    que se prendesse Geiga.

    Favorecidos por termos de fiana, no valor de 600$000 ris para cada um,

    Carlos Thiele e Martim Schmoechtel receberam, no dia 04 de Agosto, seus alvars

    de soltura. No dia seguinte, findo o inqurito, o subdelegado Columbia apresentou

    suas concluses, indicando os culpados: Joo F. Geiga, pelo crime de ferimento

    grave praticado no soldado Sebastio Gomes; o cabo Lino Lemes do Prado e os

    soldados Christiano F. Henrichsen e Sebastio Gomes, pelos crimes de

    provocao, espancamento e ferimentos em diversos estrangeiros; os rus

    afianados Carlos Thiele e Martim Schmoechtel, pelo crime de resistncia, com que

    pretendiam impedir a priso de Geiga.59

    Contudo, o promotor Joaquim d'Almeida Faria Sobrinho, encarregado de

    conduzir a denncia que permitiria Justia dar andamento ao processo criminal,

    decidiu enquadrar em crime, segundo o Cdigo Criminal do Imprio, apenas Joo F.

    Geiga, 20 anos, natural da Prssia, residente nesta cidade h 2 anos, jornaleiro:

    o denunciado, que fazia parte do pequeno grupo de alemes, vivamente agredindo um dos soldados, de nome Sebastio Loureno Gomes, descarregou-lhe sobre a cabea, to forte cacetada que prostrou sem sentidos (...) Assim procedendo, tornou-se (...) criminoso em face ao

    5 8 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 28.

    5 9 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 35.

  • 3 3 Art. 205 do Cdigo Criminal (...) Para, que, pois, seja (...) punido com as penas em que incorreu, vem o mesmo Promotor dar a presente denncia *

    Quanto s praas, no foram denunciadas, pois, segundo o promotor, a

    provocao deles no constitua crime no Cdigo Penal, "seno a circunstncia

    definida no art. 189, 8o", enquanto que, a respeito dos ferimentos de alguns

    alemes, que poderiam ser imputveis aos soldados, "no pode caber denncia no

    caso" porque no houve priso em flagrante. J os dois alemes afianados Thiele

    e Schmoechtel, tambm no foram includos na denncia da Promotoria, "...porque

    dos autos no consta a existncia de ordem legal, a que pudessem opor eles a

    resistncia, que se lhes imputa, e nem indcio h de outro qualquer crime..."61

    A inquirio das testemunhas, realizada nos meses de agosto e setembro

    daquele ano, nada esclarecia acerca das relaes entre imigrantes e brasileiros no

    contexto em que se deu o conflito entre as praas do Esquadro de Cavalaria e os

    alemes hospedados no hotel Schibel. A Justia, enquanto autora do processo no

    qual era ru Joo F. Geiga, estava preocupada em esclarecer as circunstncias em

    que fra ferido o soldado Sebastio Gomes e saber, sobretudo, se as testemunhas

    identificavam o ru como autor dos ferimentos. Ante tais restries, resolvemos

    expor as especificidades do processo, cientes de que, se o contexto do conflito fica

    esquecido, iluminam-se as intenes da Justia, na sua restrita nsia de responder

    ao inevitvel dilema: culpado ou inocente?

    A 1a e 2a testemunhas do processo no souberam informar ao Juiz se o

    ru participara doxonfronto; a 5a testemunha declarou .que ouviu tanto de soldados

    quanto dos alemes que Geiga tinha sido um dos participantes da luta; a 4a

    testemunha, que se encontrava no interior de sua casa comercial, no momento da

    ocorrncia, afirmou "...que conhece algum tanto o ru presente e pareceu-lhe ouvir

    6 6 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 2. observao: apesar de seu nome ser Johann Friedrich Joger, usamos no texto o nome adotado no processo criminal, abrasileirado.

    59 . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 35.

  • a sua voz entre os que atacaram, no princpio da luta..."; as testemunhas 3a, 6a e 7a

    (embora estas duas ltimas, sendo soldados, tivessem suas declaraes sob

    suspeita) afirmaram ter visto o ru no conflito, armado de pau, e ser ele o autor dos

    ferimentos j referidos. Dada a palavra ao ru, este contestou tais declaraes,

    afirmando no ter estado presente ao conflito, pois encontrava-se ento na rua do

    Fogo, em uma casa de negcios alem, bebendo. O curador do ru, tentando

    tambm atenuar certos depoimentos, indagava s testemunhas 3a, 4a e 7a, se, no

    momento em que aconteceu o referido ferimento, os soldados estavam com suas

    espadas desembainhadas, ao que lhe responderam que sim, a fora pblica servia-

    se de espadas.62

    Aps pronunciado no art. 205 do Cdigo Criminal, apresentando o libelo

    crime acusatorio pelo promotor pblico Joaquim d'Almeida Faria Sobrinho, o ru

    Joo Frederico Jager foi levado julgamento em 18/12/1873. Coube ao Jri decidir,

    por unanimidade de votos, pela negao das acusaes atribudas ao ru. Desta

    forma, Geiga foi absolvido pelo juiz Agostinho Ermelino de Leo.

    1.4. BONS E MAUS IMIGRANTES: A LABORIOSIDADE COMO REFERNCIA

    O contato entre imigrantes e nacionais, as questes culturais presentes

    em situaes _conflituosas__CQnno_ estas d e l 8 7 3 .- que causariam^ento tantas

    expectativas e temores populao, entre brasileiros e estrangeiros - demarcaram

    a experincia colonizatria tambm sob a forma de impasse. O grande projeto

    poltico de construo impetuosa de uma sociedade de progresso e civilizao,

    atravs da imigrao e da colonizao, encontrava um de seus maiores obstculos:

    . PROCESSO criminal. DEAP, caixa A22, ordem 02. f. 46-68.

  • 35

    os momentos de difcil convivencia dos seus diferentes atores. Planejado tal qual

    espetculo, verdadeira busca do velo de ouro, os papis previamente delegados a

    cada grupo pela prestimosa natureza - conforme se supunha - no tinham ainda

    sido bem assimilados. H muito recebendo reverncias, a tranqilidade pblica

    estava maculada: no relatrio provincial de 15 de Fevereiro de 1874, o presidente

    Abranches mostrou-se penalizado, pois no pde repetir a satisfao de seus

    antecessores, anunciando haver paz na provncia. Pelo contrrio, ao informar da

    alterao na ordem pblica, mesmo que "...momentnea e local, visto limitou-se

    capital...", o presidente salientou terem os distrbios protagonistas estrangeiros.63

    Para os letrados do sculo XIX, que conviviam com concepes cientficas

    fundadas na percepo das diferenas raciais e culturais dos povos, que

    compreendiam o "carter" e a "ndole" humanas com base em tais suposies

    postas condio de verdades - parmetros que conferiam aos europeus o atributo

    da laboriosidade necessria ao progresso da provncia -, para aqueles que tanto

    esperavam da cincia da "Natureza Humana", a jornada da colonizao,

    certamente, trouxe muitas surpresas.

    Os anos de 1873 e 1874 trouxeram s autoridades novas definies da

    imigrao: se os europeus eram o grande estmulo ao progresso, a companhia

    necessria naquela caminhada, por outro lado, mostravam-se propensos a

    envolver-se em manifestaes perigosas ordem pblica e, conseqentemente,

    repr_esentavam,.a_partir daquelas circunstncias, tambm uma ameaa _ao_processo_

    civilizador. Esta suposta dualidade do carter imigrante, ressaltou s autoridades a

    figura do paranaense: este continuava a desfrutar do conceito de pacfico e

    ordeiro64 e, se no era laborioso e empreendedor, ainda assim a natureza lhe

    6 3 . PARAN. Relatrio presidencial, 15/0271874. p. 3.

    6 4 . Ibidem, p. 2.

  • facultara a doura de hbitos pacficos, e a ele caberia uma nova misso:

    "...transformar as tendncias ms de alguns colonos que, como matrias impuras, a

    onda da imigrao..." trazia de envolta e lanava s praias brasileiras.65Mas se o

    papel reservado aos brasileiros sofreu alteraes, nada alterava a certeza ento rei-

    nante de que o progresso j tinha seus agentes, e sua presena era imprescindvel:

    os imigrantes, bons ou maus, ainda representavam a potncia civilizadora.

    certo que as elites polticas tinham os princpios da ordem como

    fundamentais ao bom andamento da colonizao. Isto ficou bem evidente quando

    conhecemos as reaes das autoridades por ocasio dos conflitos e da

    movimentao de grupos de imigrantes pobres pelas cidades da provncia. Existiam,

    porm, outros elementos aglutinados nestes principios, importantes sua

    compreenso.

    Pelo que a pouco j referimos, a figura do imigrante adquiriu dupla face:

    ou o imigrante era laborioso, respeitador das leis e, assim, um "bom" imigrante; ou

    ele era indolente, agitador e descumpridor do compromisso assumido para com a

    nao que o recebeu, tendo se mostrado um "mau" imigrante. A oposio entre

    laboriosidade e indolncia revela que o eixo de referncia na criao desta

    concepo era o elemento trabalho: aquele que trabalhava, que no esmorecia

    ante as dificuldades que a colonizao de um territrio ainda por desbravar pudesse

    impor, este era o imigrante ansiosamente esperado, o que vinha a estas paragens

    em busca de "trabalho honesto" e assim concorria para o aumento da riqueza da

    Provncia e conseqente concretizao do futuro antevisto66 ; j os maus imigrantes,

    eram os protagonistas dos distrbios que freqentemente aconteciam na capital. Os

    6 6 . PARAN. Relatrio com que o Exmo. Sr. Dr. Frederico Jos C. de A. Abranches abriu a 2 sesso da 11a

    Legislatura da Assemblia Legislativa Provincial no dia 16 de Fevereiro de 1875. Curityba. Typ. Viva Lopes, 1875 p. 4-5.

    6 6 . . Relatrio apresentado a Assemblia Legislativa do Paran no dia 15 de Fevereiro de 1877, pelo Presidente da Provincia e Exmo. Sr. Dr. Adoipho Lamenha Lins. Curityba: Typ. Viva Lopes, 1877. p. 13-15.

  • 37

    fatos que alteravam o bom andamento da colonizao no desmentiam a ndole

    pacfica dos paranaenses, pois estes eram exemplares em sua moralidade e na

    docilidade de seus costumes67. Isto mesmo, tal era o apregoado: os rixosos da

    cidade, os protagonistas de distrbios e descumpridores das leis deste pas,

    comumente eram estrangeiros. claro que os imigrantes aventureiros, turbulentos,

    de ms inclinaes, eram assim designados no campo da exceo; isto, mesmo

    quando as crticas a lhes desferir eram prdigas, e inclusive quando a polcia era

    chamada a empregar os meios repressivos da qual dispunha. No campo da

    exceo, eram vistos como maus trabalhadores, aqueles que no pareciam conter

    em si nem respeito ordem, nem qualquer hbito salutar, sobretudo o do trabalho.

    No toa que aqueles anos viram surgir, junto defesa da instruo moral e

    religiosa, prpria para revelar bons costumes na "gente rude", um ardoroso

    incentivo s instituies voltadas ao aprendizado de ofcios profissionalizantes.

    "Escola, trabalho e religio: eis os meios de abrandar os maus instintos do

    homem".68 Instruo profissional e educao: "...alavancas da ordem e do

    progresso. Sem esta nenhuma perfeio para a sociedade e sem aquela nenhuma

    aspirao, nenhum trabalho, nenhuma indstria e da nenhuma prosperidade...".69

    Estas demonstraes de esperana dos governantes provinciais quanto a possvel

    regenerao dos indivduos turbulentos - ressaltando-se os "maus-imigrantes"- nos

    mostram que ganhava destaque, dentre os critrios prprios avaliao das

    qualidades do homem, o que se definia como "hbito": "bons hbitos" no

    dependiam apenas de aptides pr-determinadas em cada indivduo; poderiam ser

    6 7 . . Relatrio do Chefe de Policia Cassiano Tavares Bastos, 01 de Janeiro de 1881. Manuscrito, in PARAN.

    Ofcios. DEAP, ano 1881, v.001, ap.620. 6 8 . Ibidem.

    6 9 . PARAN. Informes gerais sobre a colnia do Assungui, 30/08/1880, in . Ofcios. DEAP, ano 1880, vol. 016, ap. 604. p. 192-205.

  • 38

    adquiridos. Caso o bom senso no se manifestasse, ento a " ... represso prescrita

    pelas leis ... " seria decisiva.70

    70 __ o Relatrio presIdencial. 1510211875.

  • 39

    2. CONCILIAO E CONFLITO

    "... a natureza esplndida: quem no a conhece atribuir fantasia a mais plida descrio de suas riquezas naturais..."

    Lamenha Lins

    2.1. EM BUSCA DE UMA HARMONIA SOCIAL: CONCESSES OFICIAIS

    A discusso sobre a presena de imigrantes no Imprio foi intensa, a nvel

    nacional, poca de 1860 a 1888. As elites brasileiras discutiam a substituio do

    trabalhador escravo por uma mo-de-obra livre. Se, por uma lado, pressentiam-se

    ameaas ordem vigente, temendo-se revoltas escravas, esta viso pessimista, de

    crise, j convivia com novos ideais de progresso, sendo aqueles anos ento

    pensados como um tempo de transio, em que novas relaes de mercado se

    estabeleceriam definitivamente.71

    Na provncia do Paran, este debate veio cena com freqentes rasgos

    de eloqncia. Muitas das animadoras esperanas da elite no sucesso da imigrao

    e da colonizao deviam-se crena na existncia de inmeras riquezas na terra

    paranaense. Ardorosamente cantadas nos relatrios presidenciais, as qualidades

    da provncia do Paran, principalmente a fertilidade de seu solo, eram a garantia de

    vindoura prosperidade. Em 15 de Fevereiro de 1875, assim discursou o Presidente

    Frederico Abranches:

    7 1 . AZEVEDO, p.59-60.

  • Povoar os nossos imensos e desconhecidos territrios, levar a vida aos sertes onde a ao dos sculos amontoou tesouros de rara valia, e que ali jazem entregues ao esquecimento, eis o grande pensamento em que se fundem todas as aspiraes dos brasileiros. Nesse empenho trabalham todos. Governo e povo, estadistas e escritores, associaes coletivas e empresas individuais do-se as mos num comum esforo e caminham a mesma trilha, visam o mesmo objetivo, inspiram-se num mesmo interesse e animam-se numa mesma esperana. a conquista do velo de ouro, no como os cantores da herolda grega o conceberam, em raptos de frtil imaginao; mas real, tangvel como todos esses instrumentos do trabalho e smbolos do progresso, que revelam a vitalidade das naes e os triunfos do sculo XIX. A locomotiva, o navio a vapor, o aparelho de Bunsen, a segadeira mecnica e outros iguais inventos deste sculo prodigioso ho de conduzir-nos posse segura dessas riquezas que hoje se nos ocultam no seio da natureza pujante de seiva e fremente de vida que nos cerca. E nesse grande momento quem duvida que ao Paran caiba uma parte importante, uma notvel cooperao. Basta atentar-lhes para os seus mltiplos recursos e para as multiplicadas disposies que conta e que favorecem as aspiraes do imigrante europeu, para no descrer do vaticinio e cancionar sua realizao.^

    Em tom proftico, o Dr. Abranches vislumbrava o progresso como domnio

    da tecnologia que ento invadia a vida dos europeus. No por acaso que fazia

    referncia locomotiva: esta era a inovao tecnolgica que maior impacto tivera

    no sculo XIX. Por outro lado, o desejo de multiplicao dos benefcios que a

    tecnologia pudesse proporcionar, implicavam em trazer provncia este smbolo, a

    mquina, mas tambm o homem a quem a natureza propiciara a aptido para cri-la

    e desenvolv-la. Naquele momento a prioridade recaiu indiscutivelmente sobre os

    imigrantes europeus agricultores, e sua escolha deveu muito associao

    europeus-progresso-tecnologia.

    Nestas imagens douradas do futuro, tais ideais manifestavam-se

    condicionados por uma harmonia social: estabelecer laos harmnicos nas suas

    relaes com o povo eqivalia, ao Dr. Abranches, demonstrao de capacidade e

    aptido para_escalar_aJrondosa_construo da.civilizao, cumprindo seus-requisk

    tos, mesmo que a custa de momentneos sacrifcios.

    Neste sentido, a ao das elites, nas dcadas de 1860 e 1870, esteve

    demarcada, em muitos aspectos, por uma inteno de manter as relaes sociais

    pontuadas por um harmonioso - ainda que aparente - convvio social. Com

    7 2 PARAN Relatrio presidencial, 1S02/1875.

  • freqncia, os governantes provinciais propalavam a confiana de que a harmonia

    social estava bem encaminhada na provncia: a crena na ndole pacfica dos

    paranaenses estava em pleno vigor. O Dr. Abranches - acima citado - tambm no

    parecia temeroso de que "seu" povo criasse obstculos jornada civilizadora. Os

    chefes de polcia no se cansavam de expor que os crimes contra a propriedade

    eram poucos na provncia, e teciam elogios aos pobres, que, de bom carter,

    respeitavam a propriedade alheia.

    Mas estas afirmaes so, sobretudo, um indicativo de que a sede de

    progresso e o ideal de harmonia social designavam que ao povo tambm cabiam

    responsabilidades. Ao imigrante cabia a tarefa de revelar as riquezas ainda ocultas,

    colher os tesouros aqui escondidos; para tanto, a natureza lhe conferira uma

    capacidade laboriosa que se supunha incomparvel. Desde o ano 1850, com a lei

    de terras (18 de Setembro de 1850), o governo imperial se colocara como tutor dos

    imigrantes73, e inmeros decretos regulamentaram concesses aos colonos

    estrangeiros, para auxili-los em seu estabelecimento na provncia. J entre as

    responsabilidades cabveis aos nacionais estava a compreenso da necessidade de

    concesso de privilgios aos imigrantes, devendo estes serem recebidos com a

    hospitalidade caracterstica dos paranaenses. Conforme ressaltavam as

    autoridades, estes eram pequenos esforos e o futuro se encarregaria de lhes

    recompensar.

    Apesar destas, exaltaes, freqentes,tambm no foram poucas as

    situaes em que as elites paranaenses demonstraram suas incertezas quanto_aos

    trunfos a erigir a tranqilidade local: as reavaliaes sobre a colonizao -

    baseadas, em muito, na questo do carter e das aptides de brasileiros e

    imigrantes - estiveram presentes tanto nos pronunciamentos da elite poltica,

    7 3 . . Relatrio apresentado Assemblia Legislativa do paran, no dia 15 de Fevereiro de 1876, pelo Presidente da provncia o Exmo. Sr. Dr. Adolfo Lamenha Lins Curityba: Typ. Viva Lopes, 1876.

  • 42

    quanto em suas prticas administrativas. Atento a esta questo, o chefe de polcia

    da provncia dizia, em 1879:

    Divirjo da opinio de meus antecessores sobre a ndole da populao... A populao dos campos rixosa, grosseira e violenta. O nmero de ferimentos extraordinrio. A falta de fora pblica e a indiferena dos que assistem s desordens justificam a impunidade.74

    Mostra destas incertezas e da instabilidade das avaliaes, as relaes

    sociais travadas pelos diversos grupos imigrantes, entre si e com a populao

    nacional, situadas como elemento essencial para o bom andamento da colonizao,

    foram continuamente "gerenciadas". Quando esteve ciente de que sua empreitada

    civilizadora se fazia acompanhar de tenses, queixas, reivindicaes e distrbios, o

    governo no se restringiu a prticas colonizatrias, e, mesmo, incluiu nelas

    constantes medidas de controle social, que caminharam lado a lado com outros

    empreendimentos na busca do progresso provincial.

    As adversidades enfrentadas com a imigrao e a colonizao, naqueles i

    anos, tornaram-se visveis em vrios pontos da provncia. Em um local tiveram

    grande destaque: a colnia do Assungui. No incio, muitas das aspiraes de

    sucesso da estratgia colonizadora foram depositadas, pelas autoridades provin-

    ciais, no desenvolvimento do Assungui. Talvez por isso, os entraves e decepes ali

    germinados tenham sido profundamente sentidos, com reflexos na poltica, a nvel

    provincial.

    A colnia do Assungui fra fundada em 1860 e estava sujeita

    administrao pblica, sendo mantida com recursos do Estado. Destinara-se, de

    incio, a receber apenas estrangeiros. Porm, j em 1861, tornou-se mista, pois o

    Governo Imperial permitiu a venda de terrenos s famlias de nacionais pobres, con-

    cedendo-lhes os mesmos favores de que gozavam os estrangeiros. Contudo, a

    condio imposta era de que estas famlias fossem estabelecidas ao lado e perto do

    74

    1879. p. 32-3. Relatrio do Chefe de Polcia da Provncia, Carlos Augusto de Carvalho, em 20 de Fevereiro de

  • ncleo do Assungui, sem que ficassem misturadas com as residncias dos

    imigrantes.76

    Apesar destas restries, o contato entre imigrantes e nacionais foi

    freqente ali. A tal ponto que, j em 1866, o vice-presidente da Provncia, Agostinho

    Ermelino de Leo, relacionava o atraso no desenvo