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_>>> Enxerto Jornal Valor Econômico - CAD D - EU - 29/3/2012 (16:57) - Página 8- Cor: BLACKCYANMAGENTAYELLOW D8 | Valor | Quinta-feira, 29 de março de 2012 EU & E ST I LO VINHO Uma quinta brasileira em terras de Portugal A Quinta da Covela, comprada pelo brasileiro Marcelo Lima, volta a produzir neste ano. Por Rodrigo Uchoa, da Covela ANA PAULA CARVALHO A Quinta da Covela: área da adega, onde os vinhos são feitos, e parte dos vinhedos. Local é uma “bacia”, um anfiteatro protegido dos ventos frios da região A quinta é um anfiteatro, com seu microclima particular. À bei- ra do Douro, são pouco menos de 19 hectares — até grande para a região, onde imperam as peque- ninas propriedades familiares. Os vinhos que saíram de lá até agora são de personalidade por- tuguesa, brancos extremamente gastronômicos e tintos até um pouco rudes, mas que conquis- tam depois do baque inicial. A história da Quinta de Covela passa pelo Velho Portugal, pelo Portugal Novo Rico e agora ga- nha novo rumo. Tornou-se o re- verso do “Fado Tropical”, de Chi- co Buarque, que dizia que “o Rio Amazonas/ que corre trás-os-montes/ e numa pororo- ca/ deságua no Tejo”. É hoje um pedacinho do Brasil lá. Foi com- prada pelo brasileiro Marcelo Lima, um dos donos da Artesia — fundo de gestão dos recursos dos próprios sócios. O que significa isso para Portu- gal? E para Marcelo Lima? E para os fãs dos vinhos portugueses? É preciso ir por partes. Antes, temos de chegar à Quinta da Co- vela. Pouco mais de 120 km da ci- dade do Porto, depois de passar por estradas que cortam serras escarpadas, vai-se chegando à beira d’água. Até ali, as pequenas cidades que se sucederam pouco passavam de vilas: Marco de Ca- naveses — terra natal de Carmen Miranda — , Cabeça Santa, Rio de Galinhas, Alpendurada, Baião, Santa Marinha do Zêzere. Pedin- do indicação nas redondezas, to- dos pareciam conhecer a quinta. Isso se dá por bons motivos. Ela foi do cineasta Manoel de Oli- veira, homem ainda em ativida- de aos 103 anos. Quem conta tu- do é Antonio Loureiro, há 40 anos trabalhando na quinta, um repositório vivo de sua história. “O cineasta Manoel de Oliveira a recebeu de herança da família de sua mulher. Aumentou muito a quinta, quase como querendo provar que era merecedor do ca- samento.” Foi no tempo do Velho Portugal, uma sociedade que mais fazia lembrar o “ancien ré- gime”. Manoel de Oliveira se des- fez da propriedade após a Revo- lução de 74, a Revolução dos Cra- vos. Os tempos já eram outros. Após passar pelas mãos da ca- sa Ramos Pinto, a quinta foi com- prada em meados dos anos 90 pelo empresário Nuno Araújo. Esses pareciam agora os tempos do Novo Portugal. Araújo tor- nou-se uma figura conhecida pe- lo empreendedorismo e pela ri- queza. Era a cara do Portugal da União Europeia, não do Portugal “ancien régime”. Antonio conta que Nuno Araújo não fazia con- tas ao colocar dinheiro na quin- ta. Melhorias nas adegas, no ma- quinário, no calçamento das es- tradinhas. “Era um homem de grande visão”, diz Antonio. Porém, os negócios de Nuno começaram a fazer água. De em- presário que foi responsável pela automação do sistema bancário português, em meados dos anos 2000, ele já havia se tornado alvo dos cobradores. Uma série de motivos podem ser elencados. Um deles está diretamente liga- do à quinta. Araújo planejava construir 12 modernas casas nas encostas dando vistas ao Douro. O empreendimento imobiliário se destinava principalmente a compradores britânicos, dizia ele. Pois bem, três dessas casas fo- ram completadas antes que o di- nheiro realmente secasse e a es- perada chegada da esquadra sal- vadora de ingleses se mostrasse uma miragem no deserto. Hoje, lá estão elas, três casas modernas — um estilo que lembra o nosso Isay Weinfeld, de linhas retas e paredes envidraçadas — , com belas piscinas e vista deslum- brante do serpenteio do Douro. Uma lembrança da exuberância irracional lusa. Pois aí temos um novo Portu- gal, que tem de aprender a lidar com vicissitudes pós-bonança. E aí entram os nossos novos personagens. Entra o novo rumo. Marcelo Lima é uma figura jo- vial, simpática. Chega ao restau- rante Maní, em São Paulo, carre- gando feliz duas garrafas de Co- vela. Sorridente, esguio, meio gri- salho e, acima de tudo, avesso a fotos — “Acho ótimo entrar nas lojas da Le Lis Blanc, fazer com- pras e não ser reconhecido”, diz ele. A referência à Le Lis Blanc é uma amostra da diversidade de seus negócios. Ex-executivo do Banco Garantia, Marcelo largou o mercado financeiro quando re- solveu comprar uma agência de publicidade. Mais adiante, fun- dou a Artesia com Marcio Camar- go, antigo colega do Garantia. A Artesia é uma empresa de gestão dos investimentos próprios e ho- je controla a Metalfrio, a Le Lis Blanc e dois pequenos bancos nos Estados Unidos, por exemplo. Por que comprar uma quinta? “É um sonho. Um investimento pessoal, não ligado à Artesia. O que aconteceu é que o Erwin [Russel, holandês que também é sócio da Artesia] me obrigou a deixá-lo entrar de sócio”, diz, em meio a risos. Outro a entrar na aventura foi o inglês Tony Smith, jornalista que foi correspondente da Associated Press e do “New York Times” aqui no Brasil — além de ter trabalhado em Lisboa nos anos 80, época em que a cidade mais se assemelhava a Tânger. “Tony é um agregador, um apai- xonado. Vai ser importantíssimo para a quinta”, diz Marcelo. O sonho começou a se materia- lizar quando ele descobriu que uma bela quinta estava para ir a leilão, depois de ter sido tomada pelo banco por causa de suas dívi- das. Houve alguns percalços pelo caminho, mas, conta-se lá na re- gião, que finalmente ela foi arre- matada por 3 milhões — cá en- tre nós, o preço de um aparta- mento de luxo na região dos Jar- dins, em São Paulo. Marcelo não comenta o preço. “Dá para colo- car preço na paixão?” Pois agora o trio está com as mãos na massa. Tony estava na Califórnia quando passei pela quinta, em fevereiro. Fazia um curso na Universidade da Califór- nia, em Davies, um dos mais im- portantes centros de enologia do mundo. Mas o fato é que se mu- dou de mala e cuia para a Covela. Será o homem de frente da re- construção da quinta, que sofreu muito com o abandono a que foi relegada no período em que este- ve sob a administração do banco. Mantiveram o enólogo Rui Cunha, que já era o responsável pela produção do Covela sob o antigo dono. “Não há por que mudar. Eles já faziam ali um vi- nho de grande prestígio. E nós Entrada de casa de armazenagem e cozinha: estrutura de pedra típica do Douro Antonio Loureiro: repositório vivo da história da Quinta da Covela Vista dos vinhedos: quinta investe agora em mais cepas portuguesas Ruínas de casa antiga: Manoel de Oliveira as queria conservar assim RODRIGO UCHOA / VALOR CREDITO pretendemos voltar a fazer isso. Um vinho entre os grandes”, diz Marcelo, mostrando sua veia empresarial, ambiciosa — afinal, isso também é paixão, não é? Depois do interregno em que a quinta esteve desativada, a mão do trio já pode ser sentida ali. Novas cepas estão sendo testadas. Eles pretendem investir no caráter por- tuguês, de mais arinto e menos chardonnay. Um pouco de gewür- ztraminer, para o toque frutado. Terão alguns obstáculos im- portantes. Primeiro, estão fora da região demarcada do Douro. Es- tar na região do Vinho Verde, on- de o Minho encontra o Rio Dou- ro, significa de cara menos pres- tígio mercadológico. Se continuarem com o caráter das últimas levas do Covela, terão pelo menos algo bom sobre o que trabalhar. Os brancos produ- zidos lá são de uma acidez pre- mente, o que lhes dá frescor ex- cepcional. Têm estrutura tam- bém. Ou seja, têm de tudo para ganhar terreno no Brasil, por combinarem sobremaneira com a nossa gastronomia. Os tintos também podem se aproveitar de um fenômeno que vem ocorren- do no gosto brasileiro: há muito mais gente procurando vinhos de caráter diverso, que se distan- ciem dos “fruit bombs” que do- minam o nosso mercado. Próximos passos? Marcelo confirma que já está procurando outras quintas dentro da região demarcada do Douro, para pro- duzir no futuro o seu próprio vi- nho do Porto. Voltando ao Chico Buarque, po- de ser então que finalmente o Dou- ro passe a correr pelo Cerrado e de- ságue no Velho Chico. “Ai, esta ter- ra ainda vai cumprir seu ideal”, ainda vai tornar-se um Bric. Excepcionalmente hoje Jorge Lucki deixa de escrever sua coluna. Volta dia 12 de abril

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Enxerto

Jornal Valor Econômico - CAD D - EU - 29/3/2012 (16:57) - Página 8- Cor: BLACKCYANMAGENTAYELLOW

D8 | Valor | Quinta-feira, 29 de março de 20 1 2

EU&E ST I LOVINHO

Uma quintab ra s i l e i raem terrasde PortugalA Quinta da Covela, comprada pelobrasileiro Marcelo Lima, volta a produzirneste ano. Por Rodrigo Uchoa, da Covela

ANA PAULA CARVALHO

A Quinta da Covela: área da adega, onde os vinhos são feitos, e parte dos vinhedos. Local é uma “ba c i a ”, um anfiteatro protegido dos ventos frios da regiãoA quinta é um anfiteatro, com

seu microclima particular. À bei-ra do Douro, são pouco menos de19 hectares — até grande para aregião, onde imperam as peque-ninas propriedades familiares.Os vinhos que saíram de lá atéagora são de personalidade por-tuguesa, brancos extremamentegastronômicos e tintos até umpouco rudes, mas que conquis-tam depois do baque inicial. Ahistória da Quinta de Covelapassa pelo Velho Portugal, peloPortugal Novo Rico e agora ga-nha novo rumo. Tornou-se o re-verso do “Fado Tropical”, de Chi-co Buarque, que dizia que “o RioAmazonas/ que corretrás-os-montes/ e numa pororo-ca/ deságua no Tejo”. É hoje umpedacinho do Brasil lá. Foi com-prada pelo brasileiro MarceloLima, um dos donos da Artesia— fundo de gestão dos recursosdos próprios sócios.

O que significa isso para Portu-gal? E para Marcelo Lima? E paraos fãs dos vinhos portugueses?

É preciso ir por partes. Antes,temos de chegar à Quinta da Co-vela. Pouco mais de 120 km da ci-dade do Porto, depois de passarpor estradas que cortam serrasescarpadas, vai-se chegando àbeira d’água. Até ali, as pequenascidades que se sucederam poucopassavam de vilas: Marco de Ca-naveses — terra natal de CarmenMiranda — , Cabeça Santa, Rio deGalinhas, Alpendurada, Baião,Santa Marinha do Zêzere. Pedin-do indicação nas redondezas, to-dos pareciam conhecer a quinta.

Isso se dá por bons motivos.Ela foi do cineasta Manoel de Oli-veira, homem ainda em ativida-de aos 103 anos. Quem conta tu-do é Antonio Loureiro, há 40anos trabalhando na quinta, umrepositório vivo de sua história.“O cineasta Manoel de Oliveira arecebeu de herança da família desua mulher. Aumentou muito aquinta, quase como querendoprovar que era merecedor do ca-s a m e n t o.” Foi no tempo do VelhoPortugal, uma sociedade quemais fazia lembrar o “ancien ré-g i m e”. Manoel de Oliveira se des-fez da propriedade após a Revo-lução de 74, a Revolução dos Cra-vos. Os tempos já eram outros.

Após passar pelas mãos da ca-sa Ramos Pinto, a quinta foi com-prada em meados dos anos 90pelo empresário Nuno Araújo.Esses pareciam agora os temposdo Novo Portugal. Araújo tor-nou-se uma figura conhecida pe-lo empreendedorismo e pela ri-queza. Era a cara do Portugal daUnião Europeia, não do Portugal“ancien régime”. Antonio contaque Nuno Araújo não fazia con-tas ao colocar dinheiro na quin-ta. Melhorias nas adegas, no ma-quinário, no calçamento das es-tradinhas. “Era um homem degrande visão”, diz Antonio.

Porém, os negócios de Nunocomeçaram a fazer água. De em-presário que foi responsável pelaautomação do sistema bancárioportuguês, em meados dos anos2000, ele já havia se tornado alvodos cobradores. Uma série demotivos podem ser elencados.Um deles está diretamente liga-do à quinta. Araújo planejavaconstruir 12 modernas casas nasencostas dando vistas ao Douro.O empreendimento imobiliáriose destinava principalmente acompradores britânicos, dizia

ele. Pois bem, três dessas casas fo-ram completadas antes que o di-nheiro realmente secasse e a es-perada chegada da esquadra sal-vadora de ingleses se mostrasseuma miragem no deserto. Hoje,lá estão elas, três casas modernas— um estilo que lembra o nossoIsay Weinfeld, de linhas retas eparedes envidraçadas — , combelas piscinas e vista deslum-brante do serpenteio do Douro.Uma lembrança da exuberânciairracional lusa.

Pois aí temos um novo Portu-gal, que tem de aprender a lidarcom vicissitudes pós-bonança.

E aí entram os nossos novospersonagens. Entra o novo rumo.

Marcelo Lima é uma figura jo-vial, simpática. Chega ao restau-rante Maní, em São Paulo, carre-gando feliz duas garrafas de Co-vela. Sorridente, esguio, meio gri-salho e, acima de tudo, avesso afotos — “Acho ótimo entrar naslojas da Le Lis Blanc, fazer com-pras e não ser reconhecido”, dizele. A referência à Le Lis Blanc éuma amostra da diversidade deseus negócios. Ex-executivo doBanco Garantia, Marcelo largou omercado financeiro quando re-solveu comprar uma agência depublicidade. Mais adiante, fun-dou a Artesia com Marcio Camar-go, antigo colega do Garantia. AArtesia é uma empresa de gestãodos investimentos próprios e ho-je controla a Metalfrio, a Le LisBlanc e dois pequenos bancos nosEstados Unidos, por exemplo.

Por que comprar uma quinta?“É um sonho. Um investimentopessoal, não ligado à Artesia. Oque aconteceu é que o Erwin[Russel, holandês que também ésócio da Artesia] me obrigou adeixá-lo entrar de sócio”, diz, emmeio a risos. Outro a entrar naaventura foi o inglês Tony Smith,jornalista que foi correspondenteda Associated Press e do “NewYork Times” aqui no Brasil — alémde ter trabalhado em Lisboa nosanos 80, época em que a cidademais se assemelhava a Tânger.“Tony é um agregador, um apai-xonado. Vai ser importantíssimopara a quinta”, diz Marcelo.

O sonho começou a se materia-lizar quando ele descobriu queuma bela quinta estava para ir aleilão, depois de ter sido tomadapelo banco por causa de suas dívi-das. Houve alguns percalços pelocaminho, mas, conta-se lá na re-gião, que finalmente ela foi arre-matada por € 3 milhões — cá en-tre nós, o preço de um aparta-mento de luxo na região dos Jar-dins, em São Paulo. Marcelo nãocomenta o preço. “Dá para colo-car preço na paixão?”

Pois agora o trio está com asmãos na massa. Tony estava naCalifórnia quando passei pelaquinta, em fevereiro. Fazia umcurso na Universidade da Califór-nia, em Davies, um dos mais im-portantes centros de enologia domundo. Mas o fato é que se mu-dou de mala e cuia para a Covela.Será o homem de frente da re-construção da quinta, que sofreumuito com o abandono a que foirelegada no período em que este-ve sob a administração do banco.

Mantiveram o enólogo RuiCunha, que já era o responsávelpela produção do Covela sob oantigo dono. “Não há por quemudar. Eles já faziam ali um vi-nho de grande prestígio. E nós

Entrada de casa de armazenagem e cozinha: estrutura de pedra típica do Douro Antonio Loureiro: repositório vivo da história da Quinta da Covela

Vista dos vinhedos: quinta investe agora em mais cepas portuguesas Ruínas de casa antiga: Manoel de Oliveira as queria conservar assim

RODRIGO UCHOA / VALOR

C R E D I TO

pretendemos voltar a fazer isso.Um vinho entre os grandes”, dizMarcelo, mostrando sua veiaempresarial, ambiciosa — afinal,isso também é paixão, não é?

Depois do interregno em que aquinta esteve desativada, a mão dotrio já pode ser sentida ali. Novascepas estão sendo testadas. Elespretendem investir no caráter por-tuguês, de mais arinto e menoschardonnay. Um pouco de gewür-ztraminer, para o toque frutado.

Terão alguns obstáculos im-portantes. Primeiro, estão fora daregião demarcada do Douro. Es-tar na região do Vinho Verde, on-de o Minho encontra o Rio Dou-ro, significa de cara menos pres-tígio mercadológico.

Se continuarem com o caráterdas últimas levas do Covela, terãopelo menos algo bom sobre oque trabalhar. Os brancos produ-zidos lá são de uma acidez pre-mente, o que lhes dá frescor ex-cepcional. Têm estrutura tam-bém. Ou seja, têm de tudo paraganhar terreno no Brasil, porcombinarem sobremaneira coma nossa gastronomia. Os tintostambém podem se aproveitar deum fenômeno que vem ocorren-do no gosto brasileiro: há muitomais gente procurando vinhosde caráter diverso, que se distan-ciem dos “fruit bombs” que do-minam o nosso mercado.

Próximos passos? Marceloconfirma que já está procurando

outras quintas dentro da regiãodemarcada do Douro, para pro-duzir no futuro o seu próprio vi-nho do Porto.

Voltando ao Chico Buarque, po-de ser então que finalmente o Dou-ro passe a correr pelo Cerrado e de-

ságue no Velho Chico. “Ai, esta ter-ra ainda vai cumprir seu ideal”,ainda vai tornar-se um Bric.

Excepcionalmente hoje Jorge Luckideixa de escrever sua coluna. Voltadia 12 de abril